Editor
Eduardo Lacerda
ISBN 978-85-8297-017-1
CDD – 869.91
Editora Patuá
Rua Lobato, 86
CEP 03288-010 São Paulo - SP • Brasil
Tel.: 11 2911-8156
www.editorapatua.com.br
LIBERDADE
MARCELINO FREIRE
para
minha mãe
e todos que fazem parte da minha vida
11
caio carmacho
12
livre-me
meia furada
são trinta,
trinta e cinco
centavos
trinta e cinco
segundos
trinta, trinta
e tantos avos
desesperados
13
caio carmacho
para neném
amar
é substância estranha
insuficiente quando não boba
desnorteada
porque
antes de tudo
é palavra avulsa
solta no boçal
da boca louca
por presságio,
quando damos conta do estrago,
já era
14
livre-me
atravessa ruas
descabela as horas
arranha gargantas
escapa às definições
e aos dedos
não contente
, antes de voltar ao trabalho,
tira para dançar
15
caio carmacho
e os passantes pensam:
‘ai ai, que ventinho bom...’
e os velejadores pensam:
‘hoje é dia!’
e a mocinha do tempo:
‘uma nova frente fria se aproxima...’
e os parapentistas:
‘voar-voar subir-subir’
e a nasa:
‘houston, we have a poem’
e os andinos da praça da sé
16
livre-me
workaholics
a pia pinga
a geladeira comunica seus
parcelados serviços
17
caio carmacho
urbano rapaz
18
livre-me
horóscopo do dia
19
caio carmacho
iniciais bb
a musa de sanja
usou as palavras como rampa
e deslizou com sua prancha
através de risos e sentidos distintos
20
livre-me
latin lovers
príncipe de bengala
escondendo a espada
21
caio carmacho
22
livre-me
instrumentos necessários
à sobrevida do pensamento
23
caio carmacho
objeto voador
não identificado
balão de hélio
furado
estrela vulgar
a vagar
no céu de gêmeos
só por hoje
não seremos mais
os mesmos
24
livre-me
livre-me
cada qual
me soa
inteiro
quanta letra
me falta
um tanto
de ser leve
o que solto
é canto
25
caio carmacho
fuga de alcatraz
26
livre-me
latido
haraquiri
28
livre-me
bas-fonds
descortinadas
carcomidas
a cidade se desliga
feito vitrolinha
e existe algo
suspeito
algo pralém
do que é corpo
trabalho
arte
vida
29
caio carmacho
e vai saber
varadas a assaduras
& biritas
30
livre-me
ali opaco,
fazendo sombra
percorrendo enganada
a madrugada ausente
31
caio carmacho
32
livre-me
rins
o que me entristece
não são os 5 reais gastos,
mas a alegria
transbordando a latrina
33
caio carmacho
matrioshka
só os futuros cientistas
poderão saber
em uma autópsia exata de sua psique
o estrondoso momento
que precede os dias sangrentos
34
livre-me
casamento/conversão
este sou eu
fumante traveco boêmio poeta palhaço
(mãozinha pro alto, aleluia sr!)
um dia antes de você me transformar em:
santo barroco, marido de louça,
codorna assexuada, manequim de
loja de 1 e 99
dessa triste cidade
35
caio carmacho
laerte
como defini-la
quando está vestida
com seu batom encarnado
e sua fisionomia de tia?
36
livre-me
augusta
vidas paralelas,
caminhantes sem destino
enquanto piazzolla
toca um tango argentino
37
caio carmacho
cachaça coqueiro
38
livre-me
chove
e você sai descalça na rua
e você sai nua na rua
e você sai pintada na rua
e você é sufocada na rua
e você bebe a água da chuva
e você sorri chora
grita agoniza reza
para que o fim do mundo
seja agora
colorido nítido lírico
como um último
suspiro
de vida
numa
quarta feira de cinzas
39
caio carmacho
turismo sexual
na geografia do corpo
sou mais a pornografia
dos sentidos
40
livre-me
rio
o sol se estende
da orla das têmporas
aos mananciais
dos pés
41
caio carmacho
saravá onan!
43
caio carmacho
que me perdoem
as castas
mas nada me deixa
mais tarado
que
você, dentro de um box,
cheirando
à água sanitária
44
livre-me
espírito natalino
boas festas!
45
caio carmacho
46
livre-me
47
caio carmacho
como pecados
como pedidos
como a bandeira
da frança
como um bezerro
de ouro
como memórias
difusas
48
livre-me
como araras
criadas em cativeiro
como um sms
psicografado
como as canções
de gil tom zé caetano mautner jorge ben e macalé
49
caio carmacho
overture XXX
50
livre-me
eu acústico
para pedrote
música de DIMENSÃO é
dimensão de SOM foi
é de MÚSICA se
fim da lembrança de
quer quem seja fui
51
caio carmacho
1º semestre de semiótica
na faculdade
descobri essa máxima de marx
via haroldo de campos:
‘ser radical é tomar as coisas pela raiz/
e a raiz para o homem, é o próprio
homem’
na época
tudo o que eu via
era a sua bunda
e como niemeyer
sonhava linhas curvas
auscultava os tremores
produzidos nesta
fábrica de signos
escatológicos e maravilhosos
52
livre-me
toda montanha
serra arco
ficava no chinelo
comparada a esta imagem
primordial
que ao truque
de um salto agulha
duas luas
eclipsando o sol
53
caio carmacho
fortuna crítica
54
livre-me
a)
- marulho
- bramir de vozes geracionais
- freestyle
- estampido de biribinha
- calotas polares derretidas
- incompatibilidade de gênese
- hienas no cio
- monturo estético
- jesus desolado (je suis désolé)
- a arte bela-bélica por ela mesma
- um elefante branco atravessando a folha em branco
- tiê-sangue
- biro-biro
- o ego do poeta q está cansado de sobras
- ‘’ ‘’ ‘’ ‘’ ‘’ fez redução de estômago
- ‘’ ‘’ ‘’ ‘’ ‘’ saqueou um orquidário
- ‘’ ‘’ ‘’ ‘’ ‘’ saiu em turnê pela europa
- ‘’ ‘’ ‘’ ‘’ ‘’ mandou lembranças
b)
- comprimidos antidepressivos
- rodinho de pia
- roda-gigante
55
caio carmacho
- toadas
- tráfico de influência
- torradas
- charutos cubanos
- tomadas
- extrema-unção
- boneca vudu
- talk show
- greve de metalúrgicos
- ausência de sentido
- hecatombe
- lado b do lp do agepê
- artigos de segunda mão
- sacolé de morango
- obturação
- golpe de karatê
- sex shop 24h
- armação ilimitada
- pompoarismo
- lasanha congelada
- desperdício de tempo
- dispersão
- fonte de proteínas
- velhas em chamas
- diversão para toda a família
c)
defina-me
ou
te deformo
56
livre-me
homenagem a ws
57
caio carmacho
escrever na 3ª pessoa
reconhecer
que existe vida inteligente
lá fora
58
livre-me
afinidade
59
caio carmacho
caixa alta
prefiro polinizar
palavras
a polemizar situações
60
livre-me
baratas aladas
vêm e vão
vão
e vêm
no
vaivém do
verão
61
caio carmacho
do asteroide B612
da galáxia de saint-exupéry
o pequeno príncipe
dá uma geralzinha nos vulcões
ameaçado pelo humor instável
de uma rosa carente e
bipolar
arranca melancólico os últimos vestígios
dos baobás
e aguarda a revoada dos pássaros
para emigrar em bando para outro lugar
enquanto
no planeta terra
na cidade outrora conhecida
como são sebastião do rio de janeiro
à rua duvivier 49
um poeta de oitenta e poucos anos
ajeita os óculos e medita
sobre morte gatos galos frutas
estrelas flores vivências pessoas pinturas
ao mesmo tempo que mira o horizonte
e limpa as unhas
62
livre-me
aberto-fechado
a beleza convulsiva
deve vir naturalmente
caso contrário o poema
se metaforiza no cárcere
da sua própria semente
63
caio carmacho
64
livre-me
genética
do pai
herdei o sobrenome
a falta de senso prático
e as mãos sem calos
a possível careca
alguns livros do italo calvino
hemorroida e dívidas hereditárias
de empreendimentos extintos
quero acreditar
que não sou a continuação de meu pai
ainda que o nariz e o sorriso
possam me denunciar
65
caio carmacho
férias frustradas
as trombetas da liberdade
soarão tão altas quanto as buzinas dos automóveis
de passeio
rá, a praia...
parece que é logo ali
bem longe de hoje
66
livre-me
mashup
67
caio carmacho
68
livre-me
maturidade
o alvo preferido
das atendentes de telemarketing
dos ambulantes
dos crentes
dos bêbados
dos mendigos e
instituições de caridade
o incrível engolidor
de batráquios
que tomava no rabo
pelo chefe
que nunca negou
a vontade da mãe
da namorada
dos amigos filhos irmãos e afins
69
caio carmacho
divino mesmo
é ter um não sob medida
se aquecendo no ringue
ansiando a sineta
para desferir o maior golpe
da língua
70
livre-me
western spaghetti
71
caio carmacho
- tô ficando maluco!
digo com ar grave de quem enxerga luz
no escuro
72
livre-me
após a queda
de energia
todos os relógios
tornaram-se autônomos
daí em diante
minha passada do banheiro
para a cozinha às 9h30
virou uma marcha-ré em delay descompassada
espremer as espinhas vespertinas
= um ato longuíssimo de horror e higiene
o dia por sua vez
ficou curto
para tanto sono acelerado
RETROCEDER:
o pé de feijão virou broto num king size de algodão
ex-namoradas voltaram mortas-vivas de suas tumbas
para cobrar eterna fidelidade
73
caio carmacho
AVANÇAR:
vejo os filhos dos meus filhos tendo
filhos e mais filhos
brigando pela herança e me mandando
prum asilo
vejo também mulheres com guelras e crianças com
nadadeiras
comprando oxigênio genérico no atacadão
PROSSEGUIR:
o tempo é o não-tempo
e o não-tempo é o não-espaço
freak show
ficção
somos todos ilhas oníricas
de sentimentos em edição
74
livre-me
informe publicitário
é necessário dizer
em caráter de urgência
que a vida não é só alarde
75
caio carmacho
tomar de assalto
o mercado
como um pirata
invadir todas as costas
com textos de apresentação
prontos
no claro pretexto
dos sem-terra
de assumir os latifúndios
improdutivos
à revelia da bandeira estatística
cravada
numa caverna escura
de ilusão e desencanto
a quimera do salário
a cercear nossos dias e alegrias
prazer, minha experiência
de vida
não faz jus a nenhum portfólio
76
livre-me
77
caio carmacho
amém!
78
livre-me
isto não é
uma notícia
ou sequer um cachimbo
não é música
poema
abismo
não é concerto
a céu aberto
reunião de família
fonte alternativa
de energia
79
caio carmacho
um enroladinho
de salsicha
a vizinha gostosa
ou tudo ao contrário
cidades gozando
pontes
rotinas ofuscadas
pelas supernovas destes dias
80
livre-me
a mãe adoeceu,
não teve jeito
aprendeu sozinho
a lavar
as próprias roupas
desde então
nunca mais tirou da
cabeça
as pequenas coisas
importantes
a mãe, o alvejante
81
caio carmacho
público-alvo
cheia de eufemismos
e nunca mais
82
livre-me
você
que de santa nunca teve nada
que povoou meu imaginário
e minhas estantes pornográficas
com audaciosas posições ornamentais
na década de 90
onde está você
silvia saint
q não te escuto/ toco/ vejo[???]
em que site te downloadear?
já pedi pro odair josé
compor uma balada
na linha de ‘cadê você’
para lhe oferecer
nu em pelo
quando aterrissar
na república tcheca
levarei todo o meu dinheiro
e uma réplica sua de silicone
e finalmente você será minha
83
caio carmacho
só minha
sem cu doce (ou com, como preferir)
quando o inverno chegar
eu quero tchu eu quero tchá
te ofertar meu leite ainda quente
me batizar na fonte do deleite
e renascer feito um lázaro ou um alien
do seu ventre
84
livre-me
mosh
85
caio carmacho
a ambição
possui 7 cabeças
que pensam sozinhas
individualmente
seu delírio
não pode ser medido
por uma trena invisível
86
livre-me
ilhado
entre o horizonte e o mar
sonhando acordado
na fenda secular
de cada dia
desastrado que é
no seu labor de
vida
engendra
gestos artificiais
&
flores do mais
87
caio carmacho
a importância do convívio
a morte
serve para lembrar
o que se deve guardar
plantar os vivos
cuidar
dos vivos
aguentar os vivos
viver
com os vivos
enquanto há tempo
88
livre-me
ilha grande
o oxigênio é pouco
e caro como as visões
acima da raridade
mais halo
menos fôlego
mais útero
89
caio carmacho
há vida ainda
ainda vida há
háinda?
90
livre-me
obliterando tristezas
sublimando desejos
cicatrizando feridas
de água-viva
vidavidavida
91
caio carmacho
metafísica
para nádia
e antes mesmo da
grande estreia
você já é uma entidade
um nome uma data uma hora
um signo uma cidade um país um sexo
uma ideia uma ciência uma esperança
uma possibilidade
92
livre-me
em cada coisa
restar-se
o império do avesso
sobre o direito
em cada pessoa
estar coabitar
o império dos vivos
sobre os mais vivos ainda
93
caio carmacho
composição
e agora
que faremos
faremos nus
94
livre-me
livre-me: um mantra
uma proposta
um estratagema
literárias ou não
and love me
como se não houvesse amanhã
95
Coleção Patuscada
Outros títulos