O meio ambiente também pilota as embarcações, por meio das correntes marítimas,
dos ventos, dos acidentes de percurso, das tempestades e assim por diante. Dessa
forma os pilotos guiam, mas também são guiados. Não há velejador experiente que
não saiba disso. Portanto, pode-se dizer que construímos o mundo e, ao mesmo
tempo, somos construídos por ele. Como em todo esse processo entram sempre as
outras pessoas e os demais seres vivos, tal construção é necessariamente
compartilhada. Para mentes condicionadas como as nossas não é nada fácil aceitar
esse ponto de vista, porque ele nos obriga a sair do conforto e da passividade de
receber informações vindas de um mundo já pronto e acabado – tal como um produto
recém saído de uma linha de montagem industrial e oferecido ao consumo. Pelo
contrário, a idéia de que o mundo é construído por nós, num processo incessante e
interativo, é um convite à participação ativa nessa construção. Mais ainda, é um
convite à assunção das responsabilidades que ela implica. Não se trata, porém, de
uma escolha retórica, e sim do cumprimento de determinações que derivam da nossa
própria condição de viventes. Maturana e Varela mostram que a idéia de que o mundo
não é pré-dado, e que o construímos ao longo de nossa interação com ele, não é
apenas teórica: apóia-se em evidências concretas. Várias delas estão expostas – com
a freqüente utilização de exemplos e relatos de experimentos – nas páginas deste
livro.
Mas o que fazer para que o ser humano se veja também como parte do mundo
natural? Para tanto, é preciso que ele observe a si mesmo enquanto observa o
mundo. Esse passo é fundamental, pois permite compreender que entre o observador
e o observado (entre o ser humano e o mundo) não há hierarquia nem separação,
mas sim cooperatividade na circularidade. Na verdade, Maturana e Varela dão – não
apenas com este livro, mas com o conjunto de suas respectivas obras – uma
contribuição relevante à compreensão daquilo que talvez seja o maior problema
epistemológico de nossa cultura: a extrema dificuldade que temos de lidar com tudo
aquilo que é subjetivo e qualitativo. Mas temos outra limitação. Para nós, não é fácil
aceitar que o subjetivo e o qualitativo não se propõem a ser superiores ao objetivo e
ao quantitativo; e que não pretendem descartá-los e substitui-los, mas sim manter
com eles uma relação complementar. Não entendemos que todas essas instâncias
são necessárias, e que é essencial que entre elas haja um relacionamento
transacional, uma circularidade produtiva. Tal situação tem produzido, como foi dito,
conseqüências éticas importantes. Parece incrível, mas muitas pessoas (inclusive
cientistas e filósofos) imaginam que o trabalho científico deve afastar de suas
preocupações a subjetividade e a dimensão qualitativa – como se a ciência não fosse
um trabalho feito por seres humanos. Maturana e Varela mostram, com abundância
de exemplos e constatações, que a subjetividade (tanto quanto a objetividade), e a
qualidade (tanto quanto a quantidade), são na verdade indispensáveis ao
conhecimento e, portanto, à ciência. Hoje, os dois autores seguem caminhos
diferentes. No entanto, a diversidade de suas linhas de trabalho atuais não elimina um
traço básico do ideário original: o que sustenta que os seres vivos e o mundo estão
interligados, de modo que não podem ser compreendidos em separado.
Humberto Mariotti