ditadura brasileira
Edison Veiga
De Bled (Eslovênia) para a BBC News Brasil
Pelo menos 19 crianças foram sequestradas e adotadas ilegalmente por famílias de militares ou
famílias ligadas às Forças Armadas durante a Ditadura Militar do Brasil (19641985) - em um
mecanismo similar ao ocorrido em outros regimes militares sul-americanos do período, segundo
o livro Cativeiro Sem Fim (Ed. Alameda), que será lançado no próximo dia 2 de abril.
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Seu autor, o jornalista Eduardo Reina, diz que todos os casos foram escondidos, ocultados e
negados ao longo dos últimos 34 anos.
"Até agora, identifiquei e comprovei 19 casos de sequestros e/ou apropriação de bebês, crianças e
adolescentes durante a ditadura no País", afirma o jornalista, que teve apoio do Instituto Vladimir
Herzog para fazer a investigação.
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SP
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"Todos guardam semelhanças com crimes desse tipo ocorridos na Argentina, Chile, Uruguai,
Paraguai e Bolívia durante períodos de repressão militar."
Dos 19 casos identificados até agora, 11 são ligados à guerrilha do Araguaia, movimento
guerrilheiro de oposição ao regime que ocorreu entre o final da década de 1960 e o ano de 1974 na
Amazônia. "As vítimas são filhos de guerrilheiros e de camponeses que aderiram ao movimento.
Era o segredo dentro do segredo", diz Reina.
Esses 11 casos, conforme descobriu o jornalista, foram realizados entre 1972 e 1974. Um dos casos
reportados no livro é o de Juracy Bezerra de Oliveira. Quando ele tinha 6 anos, foi retirado de sua
família pelos militares. Por engano.
"Pensavam que ele era Giovani, filho do líder guerrilheiro Osvaldo Orlando da Costa, o Osvaldão",
conta o pesquisador. "Em comum com Giovani, Juracy tinha a pele morena, a idade aproximada e o
nome da mãe biológica, Maria."
Conforme apurou o jornalista, Juracy foi levado para Fortaleza pelo tenente Antônio Essilio
Azevedo Costa. Acabou registrado em cartório com o nome do militar como seu pai biológico. "O
nome da mãe, entretanto, foi mantido: Maria Bezerra de Oliveira", conta Reina.
Ele viveu em Fortaleza até completar 20 anos. Depois voltou ao Araguaia em busca da mãe
verdadeira. "Juracy também teve o irmão mais novo - Miracy - levado por outro militar. O sargento
João Lima Filho foi com Miracy para Natal. Anos depois, Juracy e a mãe fizeram buscas pelo
menino. Não foi encontrado", relata o autor do livro.
"A mágoa que tenho deles, dos militares, é de terem me tirado da minha família biológica. Hoje em
dia meus irmãos têm terra, gado. Eu tenho nada. O Exército tinha prometido me dar meio mundo e
fundos. E não deu", desabafa Juracy.
Mas Giovani, o filho do Osvaldão, também teria sido encontrado pelos militares. Na operação que
terminou com a morte da mulher do guerrilheiro, Maria Viana, os militares encontraram e levaram
Giovani e Ieda, outra filha dela.
"Eu tinha seis anos. Quando cheguei no nosso barraco tinha acontecido isso. Eles tinham matado
minha mãe e carregado o irmão meu, mais minha irmã, que sumiu também", relata Antônio Viana
da Conceição, filho de Maria e irmão de Giovani e Ieda - que nunca mais foram encontrados.
Pesquisa
Em entrevista à BBC News Brasil, o jornalista Eduardo Reina conta que estuda o tema há pelo
menos 20 anos. "Mas não conseguia deslanchar pela falta de provas e testemunhos concretos", diz
ele. Em 2016, decidiu ir a campo em busca de relatos concretos e de documentos.
"Nesse período, realizei mais de uma centena de entrevistas. Li mais de 150 livros sobre a ditadura,
além de teses de doutorado e dissertações de mestrado, artigos acadêmicos, matérias de jornais.
Pesquisei mais de 4 mil edições dos jornais O Estado de S.Paulo, Folha de S.Paulo, O Globo e Estado
de Minas à procura de matérias sobre o tema, além de outras leituras de artigos e documentos."
Depois de muita checagem e cruzamento de informações, Reina conclui que ao menos os 19 casos
relatados no seu livro são reais.
Reina procurou as Forças Armadas mas elas não quiseram se manifestar sobre os casos
identificados. "Instituições envolvidas mantêm a posição de negação. Assim como se nega a prática
da tortura e do assassinato nos porões do DOI-CODI, nas bases militares, nos quartéis e nas
prisões", diz o jornalista.
"A divulgação desses 19 crimes hediondos, que não prescrevem, deve ser feita para que a história
da ditadura do Brasil seja contada sob o olhar de todos os envolvidos. E tomara que a comunicação
desses sequestros de bebês, crianças e adolescentes pelos militares leve outras pessoas a
revelarem o que sabem e novos casos possam ser identificados."
A reportagem da BBC News Brasil também solicitou esclarecimentos às Forças Armadas, por meio
da assessoria de comunicação do Ministério da Defesa. Até o fechamento desta reportagem,
entretanto, eles não se posicionaram.
Camponeses
Entre novembro de 1973 e o início de 1974, seis filhos de camponeses aliados aos guerrilheiros do
Araguaia teriam sido sequestrados, segundo informações descobertas por
Reina. José Vieira, Antônio José da Silva, José Wilson de Brito Feitosa, José de Ribamar, Osniel
Ferreira da Cruz e Sebastião de Santana. "Eram todos jovens, adolescentes que trabalhavam na
roça para o sustento de suas famílias. Foram enviados a quartéis", conta o jornalista.
José Vieira é filho de Luiz Vieira, agricultor que foi morto pelas forças militares durante a guerra no
Araguaia. José foi preso junto com o guerrilheiro Piauí, então subcomandante do Destacamento A,
em São Domingos do Araguaia.
"Sai de lá com o Piauí. Ele era o comandante dos guerrilheiros. Eu fiquei lá e a tropa chegou e me
cercou. Soube que eu tinha ido lá para falar com minha mãe. Mas antes de minha mãe chegar em
casa, a tropa cercou. Aí me pegaram. Eu mais ele, o Piauí", descreve Vieira.
Piauí, apelido de Antônio de Pádua Costa, ex-estudante de Astronomia da UFRJ, é listado como um
dos guerrilheiros "desaparecidos", após ser capturado no inínicio de 1974. A essa altura, o Exército
havia enviado milhares de soldados para caçar os cerca de 80 guerrilheiros que se esconderam na
mata no sul do Pará. Segundo o relatório da Comissão da Verdade, setenta deles foram mortos ou
executados na selva.
Um garimpeiro chamado Dejocy Vieira da Silva, que mora em Serra Pelada no Pará, conta que
foram 11 as crianças sequestradas naquela época. Eram filhas de guerrilheiros com camponesas e
filhos de camponeses que aderiram à guerrilha do Araguaia. Dejocy esteve inicialmente com os
comunistas do PCdoB. Depois, durante combate na selva com militares, levou tiro. Sobreviveu, mas
ficou com sequelas. Então se bandeou para o lado do major Sebastião Curió e passou a ajudar o
Exército.
Dejocy confirma a existência de ordem para sequestrar e desaparecer com os filhos dos
guerrilheiros e de camponeses. Afirma se lembrar da história do sequestro de Giovani, filho do líder
dos guerrilheiros, Oswaldão. Não presenciou o crime. Diz que foram realizadas em segredo as
operações de sequestro dos filhos de guerrilheiros e de lavradores. "Fizeram tudo às caladas", diz o
garimpeiro-guerrilheiro.
Foi somente em 2013, após uma discussão em família, que Rosângela descobriu que havia sido
sequestrada. "Sua certidão de nascimento é falsificada, foi registrada em 1967 em cartório no
bairro do Catete, no Rio. O documento aponta 1963 como ano de seu nascimento", conta Reina. "A
certidão apresenta como local de nascimento um imóvel numa rua no bairro do Flamengo. Mas
levantamento em cartório demonstra que a casa citada na certidão pertence a autarquia de
previdência dos servidores públicos desde 1958."
Rosângela segue em busca de seus pais biológicos. Debilitada física e emocionalmente, ela
conversou com o autor do livro. "Hoje vivo na angústia de não saber quem sou, quantos anos
tenho, e sequer saber quem foram ou quem são meus pais. Todos se negam terminantemente a
falar sobre esse assunto. Só desejo saber quem sou, e onde está a minha família. Acredito que esse
direito eu tenho, depois de sofrer tantos anos. Hoje só sei que sou um ser humano que nada sabe
sobre seus pais. Desejo Justiça", diz ela.
"A família Paraná fez um pacto de silêncio para que não se fale o nome dos pais biológicos ou de
onde a bebê veio", conta Reina. "Odilma, irmã de Odyr, o pai adotivo já falecido, confirma apenas
que Rosângela foi adotada e que a mãe 'era uma baderneira'."
Reina comenta que o objetivo de seu trabalho "é puramente jornalístico e histórico". "Dar voz
àqueles que foram esquecidos à força, invisibilizados pela história e pela mídia. Contar a verdadeira
história da ditadura no Brasil, no período entre 1964 e 1985, sem filtros ou pendências de
narrativa."
"É mostrar a verdade. Mostrar a realidade. Mostrar a história de pessoas que foram jogadas no
buraco negro da história do Brasil. De pessoas que foram usadas pelas forças militares na ditadura.
Mostrar as histórias de pessoas que vivem num cativeiro sem fim."
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