DIREITO
DISCIPLINA DE FILOSOFIA DO
DIREITO – 2011
FILOSOFIA DO
DIREITO
Prof. Dr. ROMANELLO
Introdução...........................................................................................
..................................
2
I. O surgimento da
Filosofia...........................................................................................
5
II. A justiça na concepção de Platão (428 – 347
a.C.).................................................... 26
III. A justiça na concepção de Aristóteles (384-322
a.C.)................................................ 35
IV. A Filosofia no período medieval: Agostinho e Tomás de
Aquino............................... 45
V. O
Jusnaturalismo..................................................................................
...................... 59
VI. A filosofia prática de Immanuel Kant (1724-
1804)...................................................... 76
VII. O positivismo
jurídico................................................................................................
.. 90
IX. O pensamento de Hans Kelsen (1881-
1973)............................................................. 100
X. A teoria tridimensional do direito: Miguel Reale (1910
-)............................................106
Referências
Bibliográficas...................................................................................
............... 110
Introduç
ão
“Filosofia
do Direito
esclareça-se
desde logo,
não é
disciplina
jurídica,
mas é a
própria
Filosofia
enquanto
voltada para
uma ordem
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9
)
1 Jaeger,
Werner W. Paidéia: a formação do homem grego . São
Paulo: Martins Fontes, 1989, p. 4. [grifo nosso]
2
A Filosofia ensina a pensar.
Ensina a formular perguntas.
Ingressar nos estudos filosóficos
significa fundamentalmente assumir a
árdua tarefa do autoconhecimento que
implica transformar o seu próprio
olhar, muitas vezes desatento, em um
olhar cuidadoso diante das obviedades.
Significa abolir a pressa e o
imediatismo. A Filosofia significa a
formação de uma atitude - uma
atitude diante da vida. Como disse
Kant em suas lições de Lógica,
filosofar é algo que só se pode
aprender pelo exercício, pelo uso
próprio e autônomo da razão. Um
exercício sem medo.
Estudar Filosofia significa estabelecer um
diálogo com homens de notório saber, que
viveram
em outras épocas. É bom conhecê-los e
compreender seus costumes, pois assim podemos
avaliar
mais lucidamente os nossos. 2 Não posso deixar de
mencionar as célebres palavras de Descartes na
obra Discurso do Método:
“a leitura de todos os
bons livros é qual uma
conversação com as
pessoas mais
qualificadas dos
séculos passados, que
foram seus autores, e
até uma conversação
premeditada, na qual
eles nos revelam tão-
somente os melhores
de seus pensamentos.
(...) É bom saber algo
dos costumes de
diversos povos, a fim
de que julguemos os
nossos mais sãmente e
não pensemos que tudo
quanto é contra os
nossos modos é ridículo
e contrário à razão,
como soem proceder
aos que nada viram”.
1 - O conceito de Filosofia
Observando a advertência de Marilena
Chauí, na obra Convite à Filosofia, a
Filosofia não se
confunde com Ciência, mas pode ser entendida
como reflexão crítica sobre os procedimentos e
conceitos científicos, pois se trata de
um saber que é cronologicamente
anterior ao surgimento da própria
ciência; não é tampouco Religião,
antes, porém reflexão crítica sobre as
origens e formas das
crenças religiosas; não se reduz à Arte, mas se vê
diante de uma reflexão crítica sobre os conteúdos,
formas, significações da obra de arte e do
trabalho artístico; também não pode ser
considerada
Sociologia ou Psicologia, mas reflexão crítica sobre
os fundamentos dessas ciências humanas de suma
importância; a Filosofia não se limita à esfera
Política, mas se configura como possível
interpretação,
compreensão e reflexão sobre a
origem, a natureza e as formas do
poder; por fim, Filosofia não é
História, e sim interpretação do
sentido dos acontecimentos enquanto
inseridos no tempo e no espaço e a
compreensão do que seja o próprio
tempo. A Filosofia está na história,
pois é produto cultural do homem;
um saber do homem situado. A
Filosofia busca desvelar as
interpretações e limites de cada
época.
Podemos então definir
Filosofia como a fundamentação
teórica e crítica dos conhecimentos e
práticas. Trata-se de um saber que
se preocupa com as origens, causas,
forma e o conteúdo dos valores
éticos, políticos, artísticos e culturais.
O seu olhar observa com cuidado as
transformações históricas, a
consciência em suas várias
modalidades: imaginação, percepção,
memória, linguagem, inteligência,
experiência, reflexão, comportamento,
vontade, desejo, paixões; busca
compreender as idéias ou significados
gerais: realidade, mundo, natureza,
cultura, história, subjetividade,
objetividade, diferença, repetição,
semelhança, conflito, contradição e
mudança.
O olhar filosófico se afasta das crenças,
sentimentos, prejuízos, preconceitos; toma
distância
para interrogar e não aceitar as coisas
passivamente. A Filosofia diz “não” ao senso
comum, para
indagar “o que é”, “como é” e “por que é” –
momentos que constituem o pensamento crítico. O
seu
conhecimento se realiza por reflexão que se
configura no momento em que o pensamento
volta-se
para si mesmo a fim de indagar como é possível
o próprio pensamento. Sua reflexão é radical,
porquanto investiga a raiz, a origem de tudo o que
existe. A Filosofia é um pensamento sistemático, o
que significa dizer que não é mera
opinião. Na verdade a Filosofia
segue uma lógica de enunciados
precisos e rigorosos, opera com
conceitos ou idéias obtidos por
procedimentos de demonstração e
prova. Assim, a Filosofia enquanto
saber exige fundamentação racional
do que é enunciado e pensado e deve
formar um conjunto coerente de idéias
racionalmente demonstráveis.
5
O valor da Filosofia encontra-se, portanto,
na fundamentação ou justificação do
trabalho
científico ao indagar “o que é o homem?”, “o
que é vontade?”, “o que é a razão?”, “como nos
tornamos livres?”, “o que é um valor?”. Podemos
estudar a Filosofia sob o aspecto temático ou
podemos compreendê-la a partir de seu devir
histórico, ou seja, a história da Filosofia a partir
de
períodos que exprimem e manifestam os
problemas e as questões que, em cada época, os
homens
colocaram para si mesmos e para o
mundo. Será possível perceber que as
transformações no modo de conhecer
ampliaram os campos de
investigação do filósofo. Os
períodos foram classificados pela
tradição da seguinte forma:
Antigüidade Clássica ou Filosofia
Antiga, Filosofia Medieval, Filosofia
Moderna e Filosofia Contemporânea.
7
Este poeta foi considerado o pai da cultura
grega por ter sido a sua obra fundamental
para a
manutenção das tradições. Além de Homero, o
pensamento de Hesíodo foi igualmente importante,
porquanto marca uma nova fase da cultura grega.
Em sua obra denominada Teogonia descreve a
criação do mundo, dos deuses e a organização do
Olimpo. Em Os trabalhos e Os Dias narra o mito
das
cinco idades da humanidade.
Por ocasião do séc. VIII
a.C., com a invenção da moeda
cunhada, a região vivenciou um
renascimento das relações
comerciais que resultou na ruína
das antigas linhagens tribais e no
surgimento de pequenas cidades de
agricultores e artesãos. Lentamente
se formou uma nova organização
social e política que segundo ensina
Jean-Pierre Vernant destacou a
supremacia da razão, do discurso.
Assim, a palavra, o discurso e a
razão ganharam grande relevo nessa
nova organização social. O discurso
tornou-se condição fundamental para
a participação nos assuntos públicos.
O que se configurou nesta etapa e a
revolução política que ensejou o
desenvolvimento do pensamento
humano. Assim, as discussões
políticas, a elaboração das leis,
deixaram de ser privilégio da
aristocracia grega.
Pólis do plural póleis é uma palavra
grega que expressa a idéia de cidades-
estados
autogovernadas do mundo grego. Cada pólis tinha
suas próprias leis de cidadania, cunhagem de
moedas, costumes, festivais, ritos e etc. Como nos
ensina Jaeger, a pólis configurou um novo momento
para os gregos, uma nova forma de convivência
humana: “A polis é o centro principal a partir do
qual
se organiza historicamente o período mais
importante da evolução grega. Situa-se, por isso, no
centro
de todas as considerações históricas”. 5 O termo
pólis propiciou o aparecimento de palavras como
político e política e, conseqüentemente, a idéia de
justiça. Com a palavra pólis surgiu também o direito
de cada cidadão de emitir, na esfera pública, o seu
pensamento para possível debate. A pólis valorizou
o humano, a discussão, a persuasão, a força do
melhor argumento, enfim o próprio
desenvolvimento
do discurso.
O interesse pela justiça se desenvolveu na
vida comunitária da pólis grega e assumiu
um
grande valor que se afigurou com a mesma
intensidade que a força exercida pelo ideal
cavaleiresco
dos primeiros estágios da cultura grega aristocrática.
A idéia do homem justo assume, portanto, um
novo locus no pensamento grego, porque aquele
que cumpre a lei e se regula por ela, cumpre o
seu
dever. Observa-se que a pólis introduz uma
verdadeira revolução: “O ideal antigo e livre da
Arete6
heróica dos heróis homéricos converte-se em
rigoroso dever para com o Estado, ao qual todos
os
5 Jaeger, Werner W. Paidéia: a formação do homem grego . São
Paulo: Martins Fontes, 1989, p.73.
6 areté, aretai (pl.) – excelência, virtude.
8
cidadãos sem exceção estão submetidos, tal como
são obrigados a respeitar a fronteira entre o próprio
e o alheio”. 7
Com a mudança das formas de vida, surgiu
um novo espírito centrado na vida pública.
A
literatura que testemunha a idéia de justiça como
fundamento da sociedade humana estende-se desde
os tempos primitivos da epopéia, ou seja, do séc.
VIII até o séc. VI a.C. Jaeger narra que nos
tempos
homéricos “toda manifestação do
direito ficou sem discussão na mão
dos nobres que administravam a
justiça segundo a tradição, sem leis
escritas. Contudo, o aumento da
oposição entre os nobres e os
cidadãos livres, a qual deve ter
surgido em conseqüência do
enriquecimento dos cidadãos alheios
à
nobreza, gerou facilmente o abuso político da
magistratura e levou o povo a exigir leis escritas”.
8 A
4 - Os Filósofos pré-socráticos 9
Já compreendemos que o que consideramos
por Grécia Antiga não constituiu um
Estado no
sentido moderno do termo, mas o conjunto de
várias cidades autônomas entre si denominadas
pólis.
Sabe-se que o berço da Filosofia teria
sido a pólis de Mileto, situada na
Jônia, litoral ocidental da Ásia menor.
Nesta cidade temos três pensadores
pré-socráticos de grande importância:
Tales, Anaximadro e Anaxímenes.
Esses primeiros filósofos,
denominados filósofos da Physis,
tinham como objetivo construir uma
explicação racional e sistemática do
universo. Tais pensadores buscavam
a matéria-
prima, a arché, existente em todos os seres. Seria,
portanto a busca pelo princípio originário, ou
substancial de todas as coisas.
Tales de Mileto foi
considerado o primeiro filósofo e
sabe-se que era estudioso de
astronomia e, segundo conta a
tradição, chegou a prever um eclipse
total do sol ocorrida em 28 de maio
de 585 a.C. Este pensador apresentou
grande desempenho em geometria e
demonstrou que todos os ângulos
10
de movimento, espaço, tempo e infinito. Neste
argumento Zenão nega o movimento da seguinte
maneira: afirma que o mais lento em uma
corrida jamais será alcançado pelo mais rápido, se
e
somente se, o mais lento sair bem à frente, porque
o mais rápido terá que primeiro alcançar o ponto de
onde partiu o mais lento que, por sua vez,
continuaria se movendo. Para entendermos melhor
esse
paradoxo de Zenão é preciso
compreender o exemplo que nos
forneceu e que resumidamente é o
seguinte: em uma determinada
corrida, se a tartaruga (mais lenta)
saísse à frente de Aquiles (herói);
este herói não conseguiria alcançá-la
em face da vantagem que a
tartaruga obteve por ocasião da
largada.
Empédocles de Agrigento (490-430 a.C.)
tentou conciliar as idéias de Parmênides
com o
pensamento de Heráclito, ou seja, conciliar a idéia
de essência imutável obtida pela razão com a idéia
de movimento, o vir-a-ser, captado pelos
sentidos. Acreditou que o elemento primordial
era
constituído por quatro elementos: o
fogo, a terra, a água e o ar. Tais
elementos seriam misturados de
modos diversos a partir de dois
princípios universais, a saber: de um
lado, o amor, personificando a idéia
de força de atração ou harmonização
das coisas; de outro o ódio
responsável pela desagregação ou
separação das coisas.
11
O homem desta época vivia em uma
comunidade autárquica e sagrada que
configurava o
microcosmo, a pólis. Cada cidade apresentava
independência jurídico-política. Protegida por seus
deuses baseava-se em normas tradicionais de
fundamento religioso, themistes, regulamentações
que
paulatinamente constituíram o nomos. Podemos
entender por nomos a idéia de ordem da pólis, ou
seja, as regras morais e os preceitos jurídicos
indistintamente misturados. O cuidado com os
valores
culturais de cada pólis garantia uma convivência
pacífica. Não fica difícil perceber que a idéia de
justiça significava garantir essa convivência
harmônica a partir de uma repressão a tudo que
pudesse
comprometer a ordem estabelecida.
Esse sentido seria alargado diante das
novas necessidades que a vida
comunitária exigiria.
Truyol y Serra aponta que Anaximandro
teria transposto ou deslocado a idéia de
justiça da
pólis para o universo. 11 Este seria uma grande
pólis, ou seja, uma grande comunidade sujeita a
uma
lei ordenadora. Ele afirma a
existência de uma justiça cósmica
de caráter imanente que preside a
geração e a dissolução dos seres
particulares. Para este autor, idéias
semelhantes seriam usadas mais tarde
por Parmênides de Eléia e
Empédocles de Agrigento nos
poemas que cada qual escreveu,
ambos intitulados Acerca da Natureza. Parmênides
teria personificado a Justiça nas deusas Themis e
Dike entre o dia e a noite e entre a verdade e a
opinião. A justiça aparece no seu poema como um
princípio estático que assegura a imutabilidade do
ser que ele afirma com vigor: o ser é e o não ser -
não é. Empédocles usa a idéia de
justiça para tentar uma explicação
do universo; o amor e o ódio
enquanto forças originais fazem e
desfazem as coisas; a lei estende-se
sem alteração.
Sabe-se que Pitágoras e Heráclito
apresentaram considerações mais explícitas
sobre a vida
social. Com Pitágoras ganha relevo a preocupação
ética e religiosa. Cresce o interesse pela vida
humana e individual e a Filosofia se configura na
possibilidade de uma purificação interior. 12
Pitágoras
antecipa também a relação entre Filosofia e política.
Os pitagóricos foram os primeiros a
organizar uma teoria da justiça no interior de
sua doutrina
dos números. Deste modo, conceberam os
números como essência das coisas e expressão
de
harmonia e regularidade no sentido específico de
totalidade ordenada. Essa harmonia, transposta para
a esfera humana, assume o sentido de uma
correlação de condutas. Os pitagóricos formularam
uma
definição de justiça como “aquilo que alguém sofre
por algo” – a justiça como uma relação aritmética de
igualdade entre dois termos. Esta igualdade
aparece como elemento essencial da justiça.
Simbolizavam a justiça nos números 4 e 9, porque
a multiplicação de um número par (2) por ele
mesmo daria 4; a multiplicação de
um número ímpar (3) por ele
mesmo alcançaria o número 9. A
justiça nessa concepção funda-se na
ordem natural presidida pelo número.
12
Heráclito de Éfeso associa justiça e
ordem universal. Como concebeu a
realidade em
perpétuo devir; afirmou ainda que o devir nasce
dos contrastes e que este surge da luta, a justiça é
luta. Todavia esse perpétuo fluir é presidido por
uma lei eterna e universal, o logos. Este logos seria
o
responsável pela harmonia invisível entre os
opostos. Esta unidade realizada pelo logos
manifesta-se
no fogo. Heráclito evoca as Erínias, personagens
da mitologia que eram servidoras de Dike, que
segundo a narrativa mítica, forçavam
o Sol a voltar à órbita se acaso se
afastassem. Por analogia o logos
estaria oferecendo ao homem a
norma para a ação correta. Todos os
homens participam dessa
ordem, embora nem todos a revelem em sua
conduta. Essa lei única e divina alimenta a lei
humana,
conferindo o seu sentido de sagrado e justificando
qualquer sacrifício em seu nome.
Importa perceber que a moralidade,
tanto para os pitagóricos quanto para
Heráclito,
fundamenta-se numa lei natural. Na fase pré-socrática
houve, portanto, um jusnaturalismo cosmológico
de cunho panteísta. 13 Essa filosofia natural pré-
socrática conferiu validade à concepção helênica
de
justo percebida em Hesíodo e Homero. Sabe-se
que a idéia de igualdade na reciprocidade,
apresentada na narrativa hesiódica,
superou o sentido de autoridade
expresso nos poemas homéricos
enquanto sentido da justiça. Esse
predomínio da concepção de
Hesíodo aconteceu por ocasião de
profundas transformações políticas e
sociais nos séc. VII e VI a.C. que
conduziu às codificações e destacou
a figura de Sólon.
Sólon, legislador e poeta, anunciou em
suas Elegias o conceito de eunomia, ou seja,
a ordem
equilibrada, fundada na justiça. Sólon observou a
necessidade de homogeneidade social que excluiria
as desigualdades excessivas. A cidade deve ser
comum a todos e todos devem se interessar por
sua
conservação, o que configuraria o que ele
entendeu por eunomia. Sólon fustigou a hybris
como a
máxima negação da ordem.
No âmbito literário, os poetas trágicos
como Ésquilo e Sófocles foram os
herdeiros dessa
concepção de justiça pré-socrática. A
lei representa o equilíbrio e a hybris a
desmedida. A negação da lei deve ser
resolvida com uma sanção conforme
o princípio que conhecemos pelo
nome de talião: “quem praticou a
violência sofrerá violência” (Ésquilo,
Agamémnon). Resgatar o equilíbrio
entre o crime e o castigo é função da
pólis. A idéia de retribuição está
fundada na mais antiga tradição e
configura uma legalidade cósmica que
para os homens assumia o caráter de
férreo destino.
Sófocles acrescenta um problema novo: o
do antagonismo entre as leis humanas e as
leis
divinas. Este conflito constitui o núcleo dramático
da tragédia Antígona. Ao apresentar esse conflito,
13
Sófocles conduz-nos, de certo modo, à filosofia
jurídica da sofística, todavia reconheça e enfatize o
caráter sagrado das leis não escritas. 14
Heródoto de Halicarnasso transpôs para o
âmbito da história a concepção de justiça
oferecida
pela tradição. Trata-se de uma concepção religiosa
de justiça em que os deuses ansiosos por justiça
procuram manter os homens longe da demasia e
dos excessos do orgulho, longe da desmedida. Esse
pensador considerado o “pai da história” apresenta
um novo problema: a diversidade das convicções e
instituições humanas, ou seja, a relatividade dos
costumes, a não universalidade das leis entre as
pólis. Este pensador nos conduz à problemática da
sofística.
Segundo Aristóteles, Demócrito de Abdera
(460-370 a.C.) foi o último dos pré-
socráticos, ou
filósofos da physis. A importância
de mencioná-lo separado dos demais
é que ele inaugura o que
denominamos de período sistemático
da filosofia helênica que, por sua vez,
culminará no pensamento de Platão e
Aristóteles. Um estudo através dos
fragmentos deste pensador nos
permite perceber que sua ética
apresenta um desenvolvimento
independente de sua filosofia
natural. Sabemos que Demócrito
professou um materialismo
mecanicista que considerava os
átomos, móveis no vazio, os
elementos últimos da realidade. A tradição atribui a
Leucipo a inspiração deste pensamento que a rigor
despoja o universo de qualquer concepção divina.
Sua ética apresenta o que podemos denominar de
hedonismo esclarecido, ou seja, concebia a
felicidade na moderação, na preeminência da alma
sobre
os sentidos, sua meta era a eutimia que
significava um estado de alma sereno
e alegre, de
tranqüilidade e equilíbrio. O seu individualismo
se refletia na esfera da família e, nesse sentido,
combatia o casamento e a paternidade, porque
acreditava que tais coisas perturbavam o espírito.
Essa
concepção não se estendia ao âmbito político, pois
compreendia que a prosperidade do indivíduo está
vinculada à vida na pólis. Daí
preocupar-se com questões sobre o
bom governo e sobre normas. Como
Sócrates, Demócrito inclina-se para
uma aristocracia vinculada ao conceito
de sabedoria: em seu modo de ver os
melhores deveriam governar.
6 - Democracia ateniense
A democracia ateniense não foi obra de um
único homem, entenda-se aqui Clístenes,
sabe-se
que esteve presente pelo menos por dois séculos de
existência (508 a 322) no mundo grego ateniense.
Tradicionalmente, comentamos que Clístenes
desenvolveu um sistema de democracia, em 508-
7,
entendido como isonomia, ou seja, igualdade
perante a lei, mas observa-se que a palavra
democracia
foi inventada tardiamente. Demokratía
é considerada uma palavra ambígua
no universo ateniense, ou melhor,
grego; literalmente krátos significa
poder soberano do demos. Demos
tinha acepções diversas
15 Péricles:
estadista e general, incentivador da democracia e do
imperialismo ateniense.JONES, Peter (org) O mundo de
Atenas. Uma introdução à cultura clássica ateniense. São
Paulo: Martins Fontes, 1997.
15
Os cidadãos de mais de dezoito anos que
estivessem inscritos nos registros do seu
demo
(comunidade) poderiam integrar a
ekklesia. O assunto principal era a
política externa. Este órgão não só
deliberava sobre as políticas a
serem seguidas, como também
legislava. Tal função foi
posteriormente delegada a um órgão
menor de legisladores ( nomothétai),
por volta de 403 a.C. De
acordo com os relatos de Aristóteles, na década de
320 a ekklesia realizava quatro reuniões fixas em
cada um dos meses que constituíam os dez
meses civis. A primeira reunião era denominada
de
ekklesia soberana (Kúria). Cada participante era
inicialmente verificado, em seguida iniciavam as
oferendas de purificação,
pronunciavam maldições contra
traidores e, a partir de então,
começavam as sessões. Sabe-se que
uma reunião ordinária durava menos
do que um dia.
Outro fator importante a ser destacado é
que na prática nem todos os cidadãos
participavam
da ekklesia ou poderiam subir à tribuna. Acreditam
alguns historiadores que a população de cidadãos
de Atenas flutuava em torno de 20
ou 50 mil pessoas, mas que pelo
menos 5 mil efetivamente
participavam da ekklesia. Tanto o
local não comportava um grande
número de cidadãos como muitos não
se sentiam atraídos pelo debate ou
ainda viviam desmotivados pela longa
distância que teriam que percorrer dos
demos até a Pnix. Nesse sentido, no
séc. IV introduziram uma espécie de
pagamento para compensar o
comparecimento que implicava perda
de horas de trabalho. Por razões não
difíceis
de compreender, entre 400 e 330 a Pnix sofreu
reformas para acomodar um número cada vez
crescente de cidadãos alcançando o quorum de 13
mil participantes.
A ekklesia exigia qualidades
especiais em seus oradores que
lançavam mão da persuasão para
obter êxito em relação aos seus
interesses. Essa habilidade imperiosa
para o cidadão ateniense
proporcionou um grande
desenvolvimento da educação
sofística. Os cidadãos que falam à
tribuna eram denominados de
rhetores, ou seja, oradores ou ainda
politeuómenoi, os políticos.
Os rhetores falavam na ekklesia na
qualidade de líderes de pequenos grupos de
políticos ou
pessoas com idéias parecidas (não confundir
com o que chamamos hodiernamente de partidos
políticos). Eram agrupamentos informais, onde
aquele que expressava com maior clareza uas
idéias,
freqüentemente tornava-se o porta-voz. Alguns
desses oradores foram também denominados de
demagogós que significa literalmente, “o condutor
do demos“ 16.
A condução da justiça em Atenas era
responsabilidade dos thesmothétai, seis
funcionários. A
democracia ateniense implicava também uma
grande participação do cidadão nos tribunais. Em
Atenas, ou melhor, na antiga Grécia não havia a
separação dos poderes. Foi Aristóteles em sua obra
Política que ressaltou que o cidadão de uma
democracia não só participava da boulé e ekklesia,
como
também, participava nos tribunais.
7 - A Sofística e Sócrates
O século V vivenciou um esplêndido
apogeu cultural na cidade de Atenas,
considerada a
capital intelectual do mundo helênico. Esta
cidade-estado experimentou um verdadeiro
entrecruzamento de pensamentos filosóficos que
contribuiu para a passagem do período cosmológico
para a fase antropológica. Foi nesse contexto que
surgiram os sofistas. A sofística se tornara uma
exigência da própria democracia ateniense:
formar cidadãos capazes de brilhar nas
assembléias.
Estes senhores cultivaram a retórica, conferindo
maior importância à argumentação - a arte de
convencer por meio do discurso em detrimento da
busca pela Verdade.
Muitos estudiosos denominaram esta fase
como o Iluminismo grego, pois a tendência à
retórica
baseava-se em certo racionalismo e um espírito
crítico que calcava aos pés a tradição helênica.
Ressaltaram a contraposição entre o natural e o
convencional, ou seja, é o costume, o arbítrio dos
homens que estabelece o que é justo ou injusto,
certo ou errado. Tais homens causaram receio e
escândalo que se refletiram nas comédias de
Aristófanes e nos diálogos de Platão.
Todas as informações que temos dos
sofistas foram obtidas através dos diálogos
de Platão,
seu inimigo declarado. O único estudo da sofística
repousa na existência de alguns fragmentos ou
fontes indiretas, além de não constituir uma
unidade sistemática. Nos diálogos de Platão os
sofistas
figuram como os interlocutores de Sócrates. Nesse
sentido, resta-nos a máxima prudência possível ao
tentar compreendê-los.
Mas o que fizeram tais homens? Os
sofistas freqüentemente criticavam o
fundamento que
conferia validade às leis e costumes da tradição.
Atacavam o aspecto sagrado da tradição helênica.
Eles observavam a diversidade cultural de sua
época
e percebiam a mudança na esfera das
instituições. A lei e os costumes assumiam um
caráter essencialmente humano, convencional,
vinculado à vontade dos homens.
Assim como nos pensadores
jônicos, o ponto de partida dos
sofistas foi o movimento e a procura
de uma realidade única capaz de
permanecer idêntica a si mesma.
Nesse sentido, surgiu com os sofistas
a dicotomia natureza ( physis) e lei
(nomos) ou convenção. A
moralidade passa a estar
desligada da ordem natural e o interesse pela
conveniência assume o status de pilares da vida
social.
19
Trasímaco da Calcedônia que figura como
personagem na República, livro I, afirmava
que a
origem do nomos estaria no interesse,
interesse do mais forte. Cada governo
promulga leis que lhe são favoráveis.
O justo é o que interessa ao governo
estabelecido. (Trasímaco pretende
descrever aquilo que de fato
acontecia)
Cálicles, personagem do
diálogo Górgias de Platão, concebe o
nomos como estabelecido em
benefício da massa dos fracos como
um limite ao excesso de superioridade
dos mais fortes. Cálicles confundia os
mais fortes com os melhores. Em seu
modo de ver, a injustiça consistiria
em alguém se destacar dos demais.
Há na sua doutrina uma clara
oposição entre um estado de natureza
e o estado
civil, regido por um direito positivo que limita a
liberdade natural. O seu conceito de natureza se
reduz
aos instintos irracionais primitivos e espontâneos no
homem.
A oposição entre natureza e convenção criou
as condições de possibilidades para uma
crítica
das instituições positivas. Nesse sentido,
atacaram os privilégios de cidadania e de
classe, a
escravidão, a subordinação da mulher ao marido 20
e a discriminação entre gregos e bárbaros. Sabe-se
que um sofista chamado Antifonte, escrevera a
obra Sobre a Verdade da qual restou apenas um
fragmento, afirmava a igualdade natural de todos
os homens, asseverando que as leis estabelecidas
pelos homens eram leis contrárias à natureza que,
na verdade, deveriam conduzir a um igualitarismo
democrático. Em outro tratado atribuído a
Antifonte, Sobre a Concórdia ,
os fragmentos que se
conservaram afirmavam a
obediência às leis fundamentadas
em um egoísmo enraizado numa
educação criadora de hábitos
socialmente aceitos.
Crítias, parente de Platão e
que fora membro do governo tirânico
dos Trinta em Atenas, atribuiu a uma
argúcia a origem da obediência às
leis e a crença nos deuses. No seu
modo de ver como um crime só
pode ser punido se a infração for
conhecida, o homem teria inventado
um ser divino que tudo vê,
conhecedor das infrações mais ocultas.
Outro sofista importante foi Protágoras de
Abdera que, ao lado de Górgias de Leontini,
figura
como um dos mais antigos representantes da
sofística. Sabe-se que Protágoras fora amigo de
Péricles
e que recebera deste a tarefa de elaborar a redação
das leis da colônia ateniense de Turioi, no Sul da
Itália, por volta de 444 ou 443 a.C. Observa-se
também que Platão tratou-o de forma diferenciada.
No
mito platônico, Protágoras
fundamenta a coesão social nas
virtudes do pudor e da justiça,
ofertadas aos homens por Zeus.
Como os homens viviam em
incessantes lutas, Zeus concedeu o
dom que iria permitir a edificação
das cidades. Esse mito retrata o
problema do desenvolvimento das
aptidões sociais a partir de uma dura
e lenta aquisição do gênero humano
prevalecendo sobre as tendências
egoístas. Para Protágoras quem não
possuir as duas virtudes mencionadas
deveria ser eliminado da sociedade,
justificando desse modo a supressão
dos insociáveis mediante uma teoria
da pena como
20
função intimidatória em nome da defesa social. Há
a crença numa virtude social média que o esforço
pedagógico seria capaz de aperfeiçoar – certo
otimismo antropológico. Neste sofista encontramos
um
relativismo ético que converte em regra desejável a
utilidade social. Protágoras transforma o nomos em
conseqüência de um acordo de todos os membros
da sociedade. O justo será o conveniente em cada
caso, desvelando assim, certo
pragmatismo. Protágoras configurou
também o momento de um
relativismo gnosiológico expresso em
sua mais famosa frase: “o homem é a
medida de todas as coisas: das que
são enquanto são; das que não são,
enquanto não são”.
A sofística contribuiu para a reflexão
filosófica na medida em que estimulou os
debates sobre
os valores partilhados e introduziu novas idéias. O
racionalismo que marca suas considerações críticas
inspirou projetos de reformas institucionais que
conduziram
à formulação de constituições
supostamente perfeitas. Para alguns
estudiosos do helenismo, esse teria
sido o momento do surgimento de
um gênero literário que para outros
só aconteceria muito mais tarde: a
utopia. As duas primeiras utopias
seriam as de Hipodamo de Mileto e
de Fáleas da Calcedônia que foram
analisadas por Aristóteles no livro II
da Política.
A diversidade nas instituições que inspirara
os sofistas contribuiu para o surgimento de
várias
formas de governo. A pólis era a maneira comum
de organização, mas o regime variava conforme os
indivíduos ou grupos que detinham o poder. Os
gregos denominaram de tiranos, os homens que
alcançavam o poder de forma irregular, a palavra não
tinha o sentido pejorativo que atribuímos.
O mundo grego vivenciou a monarquia, o
surgimento de uma classe média com a
passagem
de uma economia natural para uma de cunho
mercantil, oligarquias, tiranias e democracia direta
que
desembocou em demagogia. Heródoto, no livro III,
de sua obra História, oferece-nos uma ficção em
que há uma séria discussão sobre as
diversas formas políticas de governo.
Heródoto as observa e as classifica
de acordo com o exercício do poder:
monarquia, o poder supremo pertence
a um indivíduo; oligarquia, o poder
pertence a um grupo reduzido de
homens que receberam uma educação
específica;
isonomia, que pertence ao conjunto dos cidadãos, o
demos. Esta classificação será sistematicamente
observada por Platão, no diálogo O Político e, em
Aristóteles, na obra Política.
Na época que estamos a considerar dois
nomes são importantes para o debate
sobre as
formas de governo: Isócrates e Demóstenes.
Ambos trataram de um problema fundamental à
Democracia: a chefia nesse regime democrático.
Combateram a demagogia e a corrupção dos
tribunais populares. A despeito dos vícios desse
regime Demóstenes o considerava o único legítimo.
Já
Isócrates21 propôs uma reforma que significaria a
substituição de uma democracia direta por uma
indireta e, nesse sentido, os melhores estariam
encarregados da gestão dos negócios públicos. Foi
este pensador que distinguiu o sentido de justiça
de “dar a cada um o que merece” do sentido “dar
a
24
monárquica seria a mais desejável visto não
exigir participação do súdito na vida pública.
Não
conceberam a dicotomia natureza/ norma, mas
afirmaram que nada é justo por natureza e, nesse
sentido, não há outro direito que o direito positivo,
fruto da vontade humana. Eles professavam um
positivismo moral e jurídico que mais tarde será
adotado por Epicuro.
O apogeu dessas duas doutrinas que
contribuíram para posterior formação do
estoicismo e do
epicurismo marca a decadência da pólis grega
como forma
suprema de vida. O extremo
individualismo que surge opera certo desligamento
da felicidade em relação à comunidade e em
relação à tradicional concepção do homem como
bom cidadão.
25
Parte II - A justiça na
concepção de Platão (428 –
347 a.C.)27
“Mas, a
verdade é
que é mais
bem
governada a
polis em
que aqueles
que devem
deter o
poder são
os menos
ansiosos
de poder.
Ocorre o
contrário com aquela cujos
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)
1 - Introdução
Platão nasceu em 427 ou 428
a.C. Filho de uma família da
aristocracia ateniense que se dedicava
à política, foi discípulo de Crátilo que
por sua vez foi seguidor de Heráclito
e, posteriormente, Platão tornou-se
discípulo de Sócrates. Fundou sua
Academia em 387 a.C., nos arredores
de Atenas, em cujo pórtico figurava:
“Não passe destes portões quem não tiver
estudado geometria” . A academia de
Platão durou cerca de um milênio, até
o momento em que Justiniano a
dissolveu em 529 d.C.
Nos dizeres de Truyol y Serra:
“Sócrates
ultrapassou o
relativismo e o
individualismo
dos sofistas, ao
afirmar a
existência de
uma ordem
moral objetiva
de validade
absoluta, não
deixou, apesar
de tudo, um
sistema, que
desenvolvesse
os seus
postulados. Por
sua vez, as
escolas
socráticas
limitaram-se a
destacar
unilateralmente
aspectos,
ocasionalmente
antinômicos do
seu ensino. A
tarefa de
desdobrar em
vasta síntese o
que em
Sócrates era
apenas gérmen,
viria a caber a Platão”. 28
Nesse sentido Platão fornece a primeira
formulação clássica da Filosofia, isto é, a
problemática
do conhecimento, a possibilidade do conhecimento
enquanto realidade. Para isso tem por preocupação
o método na relação direta se é possível o
conhecimento; a verificação se o conhecimento
passa pelos
sentidos ou pela razão; o mundo sensível e o mundo
inteligível como objetos de conhecimento.
Para Platão a Filosofia adquire a função de
crítica dos fundamentos da cultura. A obra
desse
filósofo é uma longa reflexão sobre a
decadência dos costumes atenienses,
tanto do sentido de política como dos
valores e ideais (modelo), contexto
histórico que condenou seu mestre
Sócrates à morte. Por isso afirma-se
que o pensamento platônico é
essencialmente político, isso
considerando a tradição em que ele
se situa e a crise política de seu
tempo. Platão em suas reflexões
analisa as estruturas múltiplas de
sua cidade e suas respectivas
interferências na vida dos homens.
Tal análise é realizada
por meio do diálogo, cuja função seria denunciar
a fragilidade e a ausência de fundamentos das
opiniões dos homens. O papel do filósofo seria,
portanto, o de levar seu interlocutor, através da
dialética (da discussão), a dar luz às idéias, uma
vez que aprender é recordar as formas puras
contempladas pela alma quando livre do corpo.
Percebe-se então que Platão abraça o problema
26
socrático da superação do cepticismo gnosiológico
(impossibilidade do conhecimento) dos sofistas,
isso a partir da aplicação do método socrático
(maiêutica), fonte de sua dialética.
No processo de buscar a essência pelo
método da discussão, Platão apela para o
mito como
recurso. E, sendo assim, qual a função do mito no
pensamento platônico? “O eros filosófico de Platão
voa jubilosamente nas asas do mito,
comprazendo- se no símbolo e na fábula”
(Truyol y Serra, 120). O mito exerce
função importante em seus diálogos,
uma vez que a tradição mitológica
mantém-se como referência cultural
importante. Trata-se de um discurso
indireto, enriquecido com símbolos
para ajudar na compreensão dos
objetos, coisas e idéias complexas. E
partindo desse princípio Platão
concebeu o mundo em uma realidade
dualista: de um lado, o mundo
material visível com objetos
particulares,
concretos, imperfeitos, mutáveis, perecíveis. Mundo
este que denominou de mundo das sombras, em
que o conhecimento é superficial, imediato e
incompleto. De outro lado, concebeu o que chamou
de
mundo inteligível ou mundo das idéias com
realidades abstratas, perfeitas, eternas, imutáveis,
inteligíveis.
Nesse mundo inteligível
encontramos as idéias (formas puras)
das coisas, ou seja, a natureza
essencial das coisas. A partir desse
princípio, para Platão, a essência é a
-histórica, ou seja, trata-se de uma
forma permanente na qual persiste às
mudanças. A essência possui
existência prévia aos objetos. Quando
pretendemos conhecer algo,
descobrimos a essência imutável
deste algo que está sendo investigado
(Manfredo, 1993: 30).
Em contrapartida as coisas singulares que
existem no mundo são sombras das idéias
que
configuram formas primordiais ou arquétipos
eternos. É por isso que os sentidos não oferecem a
possibilidade do conhecimento verdadeiro e sim
aparências enganosas, apenas doxa. O ponto de
partida é o senso comum, a mera
opinião para um reexame crítico. A
esse respeito o próprio Platão
comenta que:
“A Filosofia
corresponderia a um
método para se atingir
o ideal em todas as
áreas pela superação do
senso comum,
estabelecendo o que
deve ser aceito por
todos, independente de
origem, classe ou
função. É isso que
significa a
universalidade da
razão. A prática
filosófica envolve
assim, em certo
sentido, o abandono do
mundo sensível e a
busca do mundo das
idéias” (A República,
Cap. VI e VII).
Portanto, as idéias (formas puras)
constituem a verdadeira realidade e na sua
hierarquia,
coroa-se a idéia do Bem. O fim
supremo do homem é realizar, o
quanto possível, o Bem, vencendo os
sentidos por intermédio de uma vida
virtuosa fundada no autêntico saber.
Importa subordinar os sentidos à
razão, porque essa hierarquia
ontológica existe também na
esfera axiológica conseqüentemente.
Essa relação hierárquica influenciará
seu pensamento político e diretamente
suas construções éticas.
27
A República (Politeia), o
Político (Politikós) e As Leis (Nomoi)
são diálogos que nos oferecem a
medida da importância da filosofia
político-jurídica no pensamento de
Platão. O tema da justiça, da melhor
forma de vida em comunidade,
constitui o eixo em torno do qual
gira a sua especulação
filosófica, o que nos revela a sua Carta VII. Esta
famosa epístola descreve o processo da vocação
político–filosófica de Platão e sua desilusão com a
vida pública, visto que os homens públicos são
dominados pelos interesses particulares.
A realidade política de
Atenas marcada pelas
particularidades, por injustiças e
corrupções, o fez desistir de ingressar
na vida pública. Platão compreendeu a
corrupção como um dos fenômenos
de sua época e acreditou que a
Filosofia poderia resgatar a ordem e
a justiça nas relações sociais. O seu
programa visava instaurar uma
política fundamentada no saber.
Seu projeto configurava uma
concepção pedagógica da comunidade. A obra a
República contempla a idéia de uma comunidade
alternativa àquelas existentes. A
relevância da educação no
pensamento de Platão é outra marca
de seu pensamento. Para ele uma
sociedade deveria ser edificada a
partir de laços integrativos. Para
tanto destaca a importância da
educação, pois de fato suas
implicações logicamente que obrigam
a criação de uma identidade
cultural, portanto política no sentido
de unidade comunitária. Nessa
perspectiva Platão é o primeiro
pensador a defender o caráter
público da educação, entregando ao
poder público comunitário a
responsabilidade de sua execução.
Como o sentido da educação é comunitário
e a política visa por meio daquela
estabelecer
laços integrativos no interior da polis, a razão é a
medida de tudo que possa ser perceptível pela
inteligência e, nesse contexto, a justiça afigura-se
como a virtude suprema do cidadão, o fundamento
da polis. Para Platão sua carência propicia a
degeneração dos regimes políticos. A obediência às
leis
configura, na concepção grega um quanto de
harmonia, isto é, como ordem do cosmos. Partindo
dessa
premissa temos que compreender o
paralelo que estabeleceu entre a
tripartição da alma e a sua teoria da
polis.
28
justiça que estabelece o equilíbrio de cada uma
das faculdades em seu âmbito próprio e função
específica.
Estabelecendo uma analogia da alma com a
cidade, Platão apresenta o que podemos
chamar
de concepção organicista de sociedade . A Cidade
constaria de três classes diferenciadas por suas
funções próprias. A primeira seria a dos
magistrados ou governantes, guiados pela
sabedoria; a
segunda dos guerreiros que defenderiam a polis
interna e externamente, cultivando a fortaleza; a
terceira e última dos artesãos
(artífices), comerciantes, agricultores e
aqueles que constituiriam a base
econômica da cidade. As classes dos
guerreiros e dos artífices aceitam o
domínio dos governantes pela ação
da temperança ou moderação. Assim
como na alma, a justiça apresenta-se
primordialmente para garantia do
funcionamento do todo e da
manutenção da hierarquia baseada
nas tarefas específicas de cada
classe.
O seu pensamento político inspirou-se no
postulado segundo o qual a parte se
subordina ao
todo, o que significa dizer que as classes se
subordinariam ao bem comum da cidade. Platão
opera
uma inversão na concepção
individualista da sofística quanto à
relatividade das coisas, buscando o
sentido de universalidade pela
superação da individualidade absoluta.
Nesse modo de ver, o indivíduo
se situa no plano coletivo e não em uma
autonomia absoluta perante a polis. Esta existe
para tornar
possível a vida humana. Há uma
divisão de trabalho que permite
coordenar as diversas aptidões
visando o bem comum. Destarte o
horizonte do indivíduo seria o
horizonte do cidadão. Faz-se mister
ressaltar que as classes da República
não se baseiam em uma ordem
hereditária. O ponto fundamental
repousa sobre as aptidões pessoais dos membros
da polis, desenvolvidas pela cidade através do
processo educacional orgânico-administrado. A
aristocracia de Platão é uma aristocracia do espírito
–o
saber legitima o poder. Ademais, Platão equiparava
a mulher ao varão observando uma educação
idêntica para ambos os sexos. Platão em seu projeto
político-pedagógico suprime a instituição família e
a propriedade privada para as duas
classes superiores dos magistrados e
dos guerreiros a fim de afastar
interesses particulares que
pudessem conduzir à corrupção.
Somente as duas classes superiores
teriam participação na vida pública,
enquanto que o complexo dos artífices
estaria limitado à vida na esfera
privada.
Na cidade platônica, governada pelo sentido
da filosofia, não seria necessário o direito
positivo,
pois os magistrados deveriam decidir, em cada
caso particular, o que a justiça exigiria segundo as
circunstâncias. Esse pensamento não perdura nos
diálogos considerados tardios, O Político e As leis,
em que Platão, mais velho,
desiludido com as experiências na
Sicília, admite a necessidade de fixar
princípios de governo em leis
positivas. Reconhece a importância da
família e da propriedade privada,
evitando-se o excesso de riqueza e
pobreza, pois no seu entender seria a
causa de toda a discórdia
civil. A cidade descrita na obra As Leis se
afigura como uma teocracia em que os
magistrados
29
assumem a dignidade de intérpretes da vontade
divina. Em O Político, apresenta a necessidade de
uma legalidade. Há uma clara
mudança de perspectiva em Platão
mais velho, consciente da
imperfeição dos homens.
4 - A idéia de Justiça
A idéia socrática de que a Cidade (o poder
político), na qual a família e o indivíduo
formavam
um todo harmônico, permanece na
obra A República e se torna o
fundamento da idéia de justiça como
virtude, que significa a observância
permanente da lei e, ao mesmo
tempo, como idéia da razão. O
sentido de ordem política ideal é o de
justiça que correlaciona
intrinsecamente lei e justiça. As leis
são justas porque são editadas por
quem pratica a virtude da justiça e a
conhece em sua estrutura para além
do plano das aparências, isto é, numa
imagem divina. Nesse sentido
encontramos a ligação entre
as duas perspectivas do conceito de justiça em
Platão: justiça como idéia (forma pura) e justiça
como
virtude.
30
Segundo Joaquim Carlos Salgado, 29 o
pensamento platônico sobre a justiça é o
ponto de
partida para uma reflexão sobre a
idéia de justiça como igualdade.
Platão apresenta duas perspectivas de
sua concepção de justiça na obra a
República, a saber: a justiça como
idéia e a justiça como virtude ou
prática individual. Nas primeiras
obras, Platão apresenta o conceito de
justiça comprometido com a
idéia de virtude do cidadão ou do filósofo. Ao
relacionar o célebre livro VII, da República, que
narra a
Alegoria da Caverna em conjunto com
sua teoria da reminiscência,
compreende-se com maior clareza o
que o fundador da Academia
assinala na Carta VII, isto é, “só
conhece a justiça àquele que é justo” , ou
seja, só conhece a justiça àquele que
a compreende na perspectiva divina,
pelo conhecimento da alma e não dos
sentidos.
Platão enfatiza o agir justo na medida em
que considera o outro como portador dos
mesmos
direitos para a superação da ótica egoísta. O
outro nos desvela uma dimensão exterior e o
comprometimento do homem com a sua polis.
Tanto na República quanto no Górgias, Platão
enfatiza
através de seu personagem, Sócrates,
que fazer a justiça é melhor que
recebê-la, e sofrer a injustiça é
melhor que praticá-la. Na República,
exprime que o melhor modo de viver
é o viver praticando a justiça,
correlacionando atos justos com alma
sadia. A justiça é uma virtude que
fundamenta e fortifica a alma. Embora
no Críton, a concepção de justiça se
apresente como a conformidade das
ações com a lei, a essência da idéia
de justiça platônica não se limita
somente a esse entendimento.
Na República, livro I, Platão expressa a
difusa idéia de justiça em um conceito
preciso a partir
do entendimento do poeta Simônides, 30 que
afirmava a idéia de justiça como dar a cada um o
que lhe
é devido. Platão amplia essa idéia
para além da simples relação entre
particulares e a relaciona
diretamente com a estrutura de sua
cidade. No dizer de Salgado:
“Dar a cada um
o que lhe
pertence, o que
lhe é adequado,
explicita-se na
estrutura do
Estado
Platônico,
dividido em
planos,
segundo as
aptidões de
cada um de
seus
participantes, de
modo
semelhante ao
que ocorre com
a alma humana,
na sua
concepção. O
que é devido a
cada um, o que
lhe pertence por
natureza é o
posto que
corresponde às
suas aptidões e
a função que
cada um, por
força dessas
mesmas
aptidões, pode
desempenhar no
Estado”.31
31
elabora duas vertentes do conceito de justiça: a
justiça como idéia norteadora do direito e da lei, e a
justiça como virtude norteada e determinada pela lei.
Ou dizendo de outro modo, a idéia de justiça e a
concepção da justiça como hábito de cumprir o
direito .
Por fim Platão desenvolve um conceito de
justiça retributiva e transcendente. Vejamos.
Na República, livro X encontra-se o mito de
Er que consagra o sentido de justiça
retributiva e
transcendente. O mito narra a
história de um guerreiro chamado Er
que vivencia a experiência da justiça
como recompensa no além-túmulo.
Er, natural da Panfília, na Ásia
Menor, bravo soldado que morreu em
combate, jaz na pira funerária dez
dias após sua morte. Subitamente,
volta à vida e narra o que viu no
mundo além-túmulo. Disse que,
depois de morto, viajou até uma terra
estranha onde o solo era rasgado por
dois grandes abismos. Por cima, havia
dois buracos correspondentes no Céu.
Entre os abismos estavam sentados
os juízes que julgavam todas as
almas e as marcavam com um sinal:
os justos entravam pelo abismo da
direito, para o Céu; os injustos
entravam pelo abismo da esquerda,
que conduzia ao mundo subterrâneo.
Er não foi autorizado a entrar em
qualquer dos buracos, mas foi
escolhido para levar uma mensagem
aos mortais. Observou que as almas
dos injustos passavam por uma longa
experiência vivenciando dez vezes
mais todo o mal que causaram. Este
é o sentido retributivo da justiça em
Platão.
As almas dos justos falavam
em felicidade e alegria, recompensas
de uma vida virtuosa. As almas
vindas dos subterrâneos, após
expiarem todo o mal que praticaram
e vivenciar as dores do
arrependimento, eram encaminhadas
ao trono das Parcas: Láquesis,
Átropo e Cloto para receberem novas
vidas como mortais. Cada alma
poderia escolher a vida que desejava,
algumas eram sensatas
outras tolas. Todas, após suas escolhas, bebiam a
água do rio do esquecimento, de modo que
perdessem todas as recordações da
vida passada, para renascer em novas
vidas. Muitas praticavam os mesmos
erros. A justiça para Platão não é
deste mundo, mas se configura como
a recompensa para aquele que escolhe
a vida moral e conforme ao direito.
32
O idealismo político de Platão
exerceu grande influência na
posteridade. Plotino tentou fundar uma
cidade segundo o modelo da
República com a ajuda do Imperador
Galeno, projeto este que ficou
inacabado por ocasião do falecimento
do monarca. Através dos discípulos
de Plotino, o platonismo alcançou os
Padres da Igreja Grega. Santo
Agostinho incorporou o platonismo
(teoria das idéias) na concepção cristã
do mundo. A sua doutrina
determinou a orientação do
pensamento medieval até a recepção
do aristotelismo por Alberto Magno e
Tomás de Aquino, no séc. XIII,
permanecendo ainda através da
corrente franciscana da Escolástica.
A influência platônica no
Renascimento propiciou a abertura de
várias Academias a começar por
Florença (1459), através de Cosme de
Médices e dirigida por Marsílio
Ficino (1433-99). Houve clara
influência sobre a obra Utopia de
Tomas More (1478-1535) e sobre o
conjunto do pensamento de
Campanella (1568-1639). Nos séculos
XVII e XVIII houve grande influência
na Inglaterra, notadamente na Escola
de Cambridge, com Henry More
(1614-1687), mais tarde
parcialmente ofuscada pelo
predomínio do utilitarismo e do
evolucionismo no séc. XIX.
Embora Platão esteja distante
de nossa realidade, longe deste
mundo nada simples, complexo por
mecanismos até em certa medida
desnecessários, pode-se ler Platão
dentro da dimensão crítica dos
costumes, dos valores e dos
hábitos constituídos por uma visão
utilitarista dos interesses imediatos.
Mesmo não nos parecendo próximo,
Platão, através de seu olhar idealista,
ajuda-nos a vislumbrar uma
possibilidade meio que perdida: a
reconstrução de uma nova estrutura
social a partir de uma reestruturação
do homem para essa nova sociedade,
tendo por fundamento o ideal de
justiça para além das aparências e do
sentido mesquinho que por ora corrói
o tecido da vida coletiva.
33
parece, que os bons ocupam as
magistraturas, quando governam; e então
vão para o poder, não como quem vai
tomar conta de qualquer benefício, nem
para com ele gozar, mas como quem vai
para uma necessidade, sem ter pessoas
melhores do que eles, nem mesmos
iguais, para quem possam relegá-lo.
Efectivamente, arriscar- nos-íamos, se
houvesse um Estado de homens de bem,
a que houvesse competições para não
governar, como agora as há para alcançar
o poder, e tornar-se-ia então evidente que
o verdadeiro chefe não nasceu para velar
pela sua conveniência, mas pela dos seus súbditos. De
tal maneira que todo aquele que fosse sensato preferiria
receber benefícios de outrem a ter o trabalho de ajudar
ele os outros. Portanto, de modo algum concordo com
Trasímaco, em que a justiça seja a conveniência do
mais forte. Mas esse ponto havemos de o examinar de
novo”. (pp.38-39) 32
32 Platão. A República. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian:
1993.
34
Parte III - A justiça na
concepção de Aristóteles
(384-322 a.C.)
“Os
verd
adeir
os
praze
res
do
hom
em
são
as
açõe
s
conf
orme
a
virtude”
(Aristóteles)
1 - Introdução
38
télos estão intrinsecamente ligados formando a base
da ética do pensamento de Aristóteles, uma é tica
imanente da felicidade terrestre.
Importa observar que a teoria moral de
Aristóteles é aristocrática; uma moral que
atinge a elite,
para homens sábios, felizes e materialmente
privilegiados, mas que exclui crianças, escravos
e
trabalhadores manuais. Platão e Aristóteles
concebiam a escravidão como instituição natural
que se
justificava pela suposta incapacidade de certos
homens para se autogovernar. Estes devem se
submeter a outrem. Sob o ponto de
vista econômico, Aristóteles diz que
o escravo é um instrumento
indispensável na produção dos bens.
Na verdade, três bens constituem a
felicidade para Aristóteles, são bens
interiores à alma, a saber: a
sabedoria, a virtude e o prazer
(recompensa natural da vida
virtuosa). Este pensador considera
ainda como importantes: a amizade,
a saúde, a posse de bens (inclui-se
aqui o escravo), a sorte e os dons.
O conceito de eudemonia vincula-se ao
conceito de justiça apresentado por Platão
na obra A
República. Aristóteles também compreende a noção
de justiça como uma virtude 45 que precisa ser
praticada constantemente46 e não pode ser tomada
como aquisição contínua. 47 A justiça é um exercício
político. No livro II-6, da Ética a
Nicômaco, Aristóteles apresenta o
sentido do conceito de virtude como
hábito, ou seja, algo construído, algo
que temos em potencial. A natureza
oferece as condições de
possibilidades para que o homem
possa desenvolver suas aptidões
conforme sua essência racional. A
justiça enquanto um valor ético se
desvela em nossos atos. “Toda
virtude e toda técnic a nascem e se
desenvolvem pelo exercício”. 48
Observa-se que a prática da
virtude não se confunde com um
mero saber técnico, não basta a
conformidade, exige-se a consciência
do ato virtuoso. O homem
considerado justo deve agir por força
de sua vontade racional. Na Ética a
Nicômaco, Aristóteles enumera três
condições para que um ato
seja virtuoso: 1. O homem deve ter consciência da
justiça de seu ato; 2. A vontade deve agir motivada
pela própria ação; 3. Deve-se agir
com inabalável certeza da justeza
do ato. As virtudes são disposições
ou hábitos adquiridos ao longo da
vida e se fundamentam na idéia de
que o homem deve
sempre realizar o melhor de si. A virtude será uma
espécie de meio termo, de termo médio entre os
extremos: o excesso e a deficiência.
Para Aristóteles, a justiça é uma virtude que
só pode ser praticada em relação ao outro e
de
modo consciente. O objeto da justiça é realizar a
felicidade na pólis, o seu oposto, a injustiça,
poderá
ocorrer por falta ou por excesso.
45
Disposições constantes do espírito, as quais por esforço de vontade
inclinam à prática do bem.
Cf. livro II-4, 1105b, Ética a Nicômaco.
Ressalta-se que a conceituação da justiça como uma virtude
não implica o caráter de uma idéia
ontologicamente transcendente como acontece em Platão.
48SALGADO, Joaquim Carlos. A Idéia de Justiça em Kant.
Seu fundamento na liberdade e na igualdade . Belo
Horizonte: UFMG, 1995, p.33.
39
Aristóteles distingue duas classes de justiça:
a universal e a particular. A justiça universal,
total
ou integral significa a justiça em sentido amplo que
pode ser definida como conformidade ao nomos
(norma jurídica, costume, convenção social,
tradição). Esta norma constituinte do nomos é
dirigida a
todos. A ação deve corresponder a um tipo de justo
que é o justo legal. “Aquele que contraria as leis
contraria a todos que são por elas protegidos e
beneficiados; aquele que as acata, serve a todos
que
por elas são protegidos ou benefic iados”.49 O
membro da pólis se relaciona com todos os
demais,
ainda que virtualmente, e compartilha com todos
os efeitos de sua atitude ou omissão. A justiça
universal ressalta a importância da
legalidade como um dos aspectos que
fundamenta a coesão social. A
comunidade existe virtualmente na
pessoa de cada membro. O homem
virtuoso é aquele que desvela em
seu modo de agir a observância do
princípio neminem laedere (Não
prejudique a ninguém).
A justiça particular significa em sentido
estrito o hábito de realizar a igualdade.
Este tipo de
justiça refere-se ao outro no sentido
de uma relação direta entre partes,
típica da experiência citadina.
Percebemos que este tipo de justiça
vincula-se com a justiça universal,
pois o transgressor da justiça
particular se compromete também
diante do nomos.
O justo particular apresenta-se em duas
formas distintas: o justo particular
distributivo que
desvela a justiça distributiva e o justo particular
corretivo que apresenta a justiça corretiva. A idéia
de
justiça distributiva surge no sentido
de igualdade na devida proporção.
Essa modalidade de justiça regula as
ações da sociedade política com seus
membros e tem por objeto a justa
distribuição dos bens públicos:
honras, riquezas, encargos sociais
e obrigações. Essa distribuição
também se
fundamenta na igualdade que não se confunde
com uma igualdade matemática e rígida, mas
geométrica ou proporcional que observa o dever
de dar a cada um o que lhe é devido; observa os
dotes naturais do cidadão, sua dignidade, o
nível de suas funções, sua formação e posição na
hierarquia organizacional da pólis.50 O princípio de
igualdade que figura neste tipo de justiça exige uma
desigualdade de tratamento, pois
sendo diferentes segundo o mérito, os
benefícios a serem atribuídos também
devem ser diferentes.
A outra modalidade de justiça particular é a
justiça corretiva ou sinalagmática, que se
divide em
comutativa e judicial. Trata-se de um tipo de
justiça que regula as relações entre cidadãos e
utiliza o
critério do justo meio aritmético ou igualdade
matemática (se devo x, pagarei x). Observa-se que
este
tipo não focaliza em primeiro plano
as pessoas, mas sim as coisas.
Medem-se os benefícios ou
prejuízos que as pessoas podem
experimentar, ou seja, as coisas e os
atos no seu valor efetivo. Nos casos
de ações que geram
constrangimento para uma das
partes, caberá ao juiz restabelecer a
igualdade rompida através de uma
sentença. Quando há a vontade dos
interessados como elemento
51Bilateral.
52 Aqui percebemos que a idéia que fundamenta a
responsabilidade civil já estava presente na experiência da
pólis grega.
53Os diversos modos de falar de justiça
podem ser observados em: Grande Moral,
1194 b,1193b, Retórica,1373; Política, 1279a,
1301b.
54 Decretos,sentenças, as decisões do poder administrativo,
caracterizam-se por circunstancialidade ou especialidade.
41
pode acarretar uma lei específica. O princípio
neminem laedere que significa que não devemos
prejudicar as pessoas, um preceito da justiça
natural, pode ser positivado em norma que prevê
uma
punição para atos como o homicídio, a injúria etc.
Os conflitos entre preceitos jurídicos legais e
preceitos jurídicos naturais não invalidavam a ordem
jurídica da pólis grega; não eram concebidos por
Aristóteles, exceto em um sistema corrompido.
A eventual tensão entre a generalidade
abstrata da lei e a singularidade concreta
dos casos
reais era mediada pela eqüidade ( epieikéia), em
atenção à justiça natural.
A eqüidade é a forma corretiva da justiça
legal quando esta engendra certa injustiça
pela
própria generalidade de seus preceitos
normativos. Nesse sentido, o julgador, coloca-se
como
legislador, e opera a adaptação da lei ao caso
concreto. Para Aristóteles, o julgador assumindo
a
postura do legislador torna-se um homem
preocupado com a correção ética da justiça, um
homem
équo. Aristóteles define o homem équo como
aquele que não é rigoroso na aplicação da
justiça,
quando esta se configura como a pior solução,
mas que fundamenta seus juízos nos princípios da
moral.
O grego reverenciava o nomos (a lei ou
costume) porque era fundamental para a
existência da
própria pólis como comunidade ética-política.
Nesse sentido, “a ordem é a lei e o governo da
lei é
preferível ao de qualquer cidadão, porque a lei é a
razão sem apetites”, dirá Aristóteles na Política. 55
Se o objetivo da atividade humana é a
vida na pólis, esta deve ser anterior ao
indivíduo.
Todavia, historicamente a pólis é a ultima fase de
um processo ascendente de sociabilidade. 56 Há no
homem um impulso social que se desvela
primeiramente na família, em seguida na aldeia até
alcançar
a estrutura equivalente a uma pólis grega. A cidade
é por sua natureza uma unidade na diversidade.
A lei escrita ou não escrita, o nomos,
surge da experiência citadina e, portanto,
é
intrinsecamente superior a qualquer decisão
individual por mais sábia que seja. Por ser o
nomos a
razão desprovida de paixão deve ser a suprema
autoridade da sociedade política. No Direito da
pólis
há elementos naturais e permanentes e também
convencionais e mutáveis. A razão é comum a
todos
os homens - todos são iguais; o nomos é razão
porque realiza a igualdade jurídica formal. A lei
comum seria uma lei natural ou
original, pois teria validade geral,
independente da opinião dos homens,
embora não imutável porque até a
própria natureza é mutável.
A conformidade com a lei
apresenta a relação que o sentido de
justiça particular mantém com a idéia
de eqüidade. O termo eqüitativo
desvela o sentido de que o justo
ultrapassa a simples dimensão da lei
escrita, ou seja, vai além da razão de
ser da lei escrita e se liga
diretamente ao sentido de lei natural,
na medida em que pode ser
compreendido como um critério de
ajuizamento da igualdade
42
ditada pela razão conforme à lei natural. Observo
que a razão significa para Aristóteles uma forma
superior da natureza humana. A
eqüidade surge para corrigir os lapsos
da lei convencional, sobretudo
quando a lei, aplicada
mecanicamente, não corresponder à
justiça. As circunstâncias
particulares exigem a aplicação da
eqüidade para dirimir um caso
concreto, buscando uma igualdade
entre as partes.
O équo 57 é aquele que busca a igualdade
no momento concreto da relação da justiça.
O bem
comum é o fim ou o bem principal da pólis. O
pressuposto fundamental do pensamento de
Aristóteles
acerca da justiça é a idéia de que o homem é um
ser destinado naturalmente à vida em comunidade –
a sociabilidade como um imperativo
da natureza humana. A justiça seria o
bem supremo no âmbito da política,
na medida em que procura o
benefício da comunidade; busca uma
felicidade no âmbito da comunidade.
Enfim, o sentido de igualdade que
aparece em Aristóteles, embora seja
um conceito já pensado pelos
pitagóricos, apresenta o caráter de
definição da idéia de justiça.
A noção de alteridade é
fundamental ao seu conceito de
justiça, pois a justiça é uma virtude
que só pode ser praticada em relação
ao outro de modo consciente, na
medida em que essa prática se
destina à realização do seu elemento
fundamental: a igualdade, ou a
conformidade com a lei. O
objetivo é realizar a felicidade na pólis num plano
mais alto, ou o bem comum de modo geral. 58 Os
elementos que compõem o conceito aristotélicode
justiça são: o
outro, a consciência do ato
(vontade), a conformidade com a lei e o bem
comum, a igualdade. A dimensão do outro, ou
seja, a
alteridade observada enquanto ser racional é
fundamental para realização da justiça. A justiça
no
entendimento de Aristóteles se afigura em como
fazer um bem para o outro. 59 O homem injusto é
aquele que age com injustiça, embora não queira
receber o ato injusto de outrem. O ato de justiça
exige a mediação da vontade, só se realiza
voluntariamente ou conscientemente.
Segundo Aristóteles, ato voluntário
significa aquele “cuja origem se acha no
agente que
conhece todas as circunstâncias da ação”. 60
Somente o homem é capaz de possuir uma
faculdade da
vontade apta a discernir o que deve fazer ou não.
Na Ética a Nicômaco, menciona: “Chamo
voluntário,
como disse anteriormente, a ação que depende do
agente e que este realiza conscientemente, isto é,
sem ignorar a pessoa que a ação a feta os meios
empregados e o fim da ação”. 61
A moralidade do ato fundamenta-se no
critério da premeditação ou escolha
deliberada.
Salgado observa que na pólis o justo não está
separado do direito positivo em geral, ou da
norma
costumeira ou ainda do padrão de comportamento
partilhado na comunidade.
57 Reto,justo.
58 SALGADO, Joaquim Carlos. A Idéia de Justiça em Kant.
Seu fundamento na liberdade e na igualdade . Belo Horizonte:
UFMG, 1995, p. 37.
59 ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Col. Os pensadores. São
Paulo: Abril Cultural, 1979, pp.1130a, 1134b.
60 Idem ibidem, p. 1110ª
61 Idem ibidem, p. 1135ª
43
A teoria das formas de governo em
Aristóteles segue a clássica organização
apresentada por
Platão no Político, ou seja, três formas puras:
monarquia, aristocracia, democracia moderada ou
política; e três impuras: tirania,
oligarquia e democracia radical que
equivale à demagogia. O fato é que
Aristóteles usa um critério econômico
para distinguir tais formas. Observa
que o princípio de autoridade
em cada um dos regimes repousa sobre a situação
econômica: a oligarquia, na riqueza de uma
minoria; democracia radical, uma
maioria pobre; na monarquia e
aristocracia, uma virtude superior;
tirania, na fraude e violência.
Aristóteles também compreende que o
melhor governo seria um governo
misto. Cada pólis necessita de um governo que
corresponda ao seu caráter e necessidades próprias.
Aristóteles também distinguiu as atividades do
governo em deliberativas ou legislativas, executiva
e
judicial. E apresentou um ponto de vista técnico-
político preocupado com a conservação do poder e
com a ética.
O aristotelismo alcançou o ocidente
através dos árabes e judeus, em traduções
latinas
indiretas, sobretudo pela Escola de Toledo, até ser
estudado diretamente e predominar a partir do séc.
XIII, na Escolástica. Com Tomás de Aquino
houve uma
adaptação prévia do aristotelismo ao
Cristianismo. No Renascimento,
fundamentou doutrinas opostas à
Escolástica e muitas vezes
incompatíveis com o Cristianismo.
Vinculou-se de novo ao Cristianismo
através da neo-escolástica católica dos
séculos XVI e XVII e com a
escolástica protestante. No que se
refere à sua filosofia prática até hoje o
mundo tem sido visto em boa parte
com olhos aristotélicos.
44
Parte IV - A Filosofia no período
medieval: Agostinho e Tomás de
Aquino
“(...
)
não
cui
deis
da
car
ne
co
m
de
ma
siad
os
des
ejos
”.
Paulo de Tarso
1 - O Mundo Medieval
O cristianismo nasceu em um
mundo helenizado impregnado de
elementos religiosos orientais. A
novidade da perspectiva religiosa
cristã propiciou o que alguns
compreendem como filosofia cristã,
ou seja, um pensamento que se
desenvolve nos limites das verdades
estabelecidas pela fé, na busca de
fundamentos racionais. A novidade
que a perspectiva cristã oferece é
radical em sua concepção de
Deus. Não podemos perder de vista como os
povos primitivos e depois os gregos concebiam a
divindade. Na idade média há uma nova relação
entre Deus e criatura. Surge uma nova concepção
acerca da criação que engendra uma absoluta
dependência de tudo e todos para com Deus.
O sentimento da grandeza de Deus, próprio
do judaísmo, é transposto para o cristão e
contribui
para fortalecer o sentido da humildade como virtude.
Isso fica mais claro quando comparamos o sábio
estóico com o santo cristão: o sábio estóico se
orgulha de se assemelhar à divindade, o santo
cristão,
que não é um ser autônomo e sim
criatura nada pode sem a graça
divina. A criação do homem “a
imagem e semelhança de Deus” lhe
confere certo esplendor: po ssui
uma dignidade intrínseca. A
concepção grega do homem integrado na Natureza
ou na pólis cede lugar à interioridade do sujeito.
Deus não é só o Senhor dos Hebreus, mas
o Pai, conjugando em um só o poder e o
amor. A
idéia de filiação divina fortalece a
solidariedade essencial para a
comunidade que passa a se afigurar
como uma pessoa moral que
participa de uma história universal
e, nesse sentido, ressalta um só
destino para o gênero humano. O
homem vive o drama da queda e da
redenção como fatos históricos. O
mundo torna-se o lugar da experiência
que permitirá a superação espiritual
para a salvação.
Segundo Truyol y Serra, o cristianismo
pelas suas origens e suas primeiras lutas,
pertence à
Antigüidade. Durante seis séculos firmou seus
passos com êxito crescente até ser reconhecido
oficialmente no Império Romano.
Na sua fase inicial o pensamento
cristão desenvolve-se paralelamente
ao pensamento pagão da última fase.
Dentro deste período antigo e depois
medieval do cristianismo a tradição
estabelece os seguintes limites: o
pensamento patrístico e o
escolástico. A
Patrística tem seu lugar nos séculos II –VI e a
Escolástica, do XII ao XIV. O período que se dá
entre
essas duas épocas se define por uma
silenciosa afirmação social e política
da cristandade medieval e sua
cultura.
Compreendemos que o mundo antigo nos
oferecia o espetáculo da competição entre
duas
sabedorias: a grega e a hebraica. Este conflito
marcou o fim do período antigo e o esforço da
Idade
45
Média em articular a sabedoria divina com a
sabedoria humana. A sabedoria grega apresentava
um
interesse direcionado para o mundo. Nesse sentido,
o seu paganismo lançava raízes no pensamento
mágico. A razão grega acreditava no destino, na
boa ou má sorte, nas inspirações superiores, na
adivinhação etc. A razão grega partia da realidade
tangível e visível, do vir-a-ser, do comportamento
humano. Na sabedoria hebraica ou da salvação,
Deus é quem concebe a sabedoria ao homem.
O cristianismo promoveu uma modificação
nos valores éticos: operaram a
transcendência do
fim último, onde Deus se torna o valor supremo.
Surge o Deus pessoal criador do mundo; sendo ele
perfeito, independente e livre. A transfiguração da
felicidade em bem-aventurança, o que significa dizer
que não é através da razão, mas da fé que o
homem alcança a felicidade. Esta felicidade está
expressa no sentido de posse ou visão intuitiva de
Deus. E, por fim, destacaram as virtudes teologais
(fé, esperança e caridade) que passam a ofuscar as
virtudes morais.
A idade Média foi considerada a época
intermediária entre a Antigüidade e os
tempos
modernos, é o período compreendido entre a
queda do Império Romano do Ocidente (476) 62
ea
tomada de Constantinopla63. O
medievalista Alain de Libera ensina
em sua obra A Filosofia Medieval
(1998) que a história da filosofia
medieval é escrita, em geral, do
ponto de vista do cristianismo
ocidental. E que, portanto, esse
gesto não é isento de
conseqüências, pois fixa os objetos,
os problemas, os campos de
investigação, avaliam, podam,
repartem segundo suas perspectivas,
interesses, tradições, impõem esquecimentos,
imprimem suas diretrizes e direções. Na verdade,
a
história da filosofia medieval é constituída por
várias fases: a latina, a grega, a árabe-muçulmana
e
uma judaica.
O período da Idade Média é, para alguns,
conquista de um só grupo os cristãos
ocidentais.
Em seu Tratado da Opinião (1735), o marquês
Gilbert-Charles Le Grende de Saint-Aubin retrata a
filosofia medieval de modo nada
lisonjeiro: “Após a tomada de
Constantinopla, os franceses trouxeram
os livros de Aristóteles comentados
pelos árabes. Introduziu-se, então, uma
filosofia tirada de Avicena e de outros
comentadores africanos; e o mau
gosto arabesco estragou as escolas,
como a arquitetura e as demais artes
haviam sido corrompidas pelo gosto
gótico. Sutilezas vãs e bárbaras
tomaram o lugar da antiga filosofia, e
apoderaram-se da lógica e da
metafísica, que eram praticamente os
únicos objetos dos filósofos de então”.
Para outros pensadores árabe-
muçulmanos, a Idade Média
configurou o nascimento, o impulso e
apogeu de uma cultura. Uma idéia
aceita na visão de Alain de Libera é
a de que a Idade Média viu a teologia
cristã tomar definitivamente o lugar da
filosofia grega.
46
Este autor entendeu que o ocidente cristão
foi filosoficamente estéril e só despertou do
seu
longo sono a partir das influências do oriente
muçulmano para o ocidente muçulmano e depois
para o
ocidente cristão.
Mencionou que “O século de Justiniano
é, para nós, um período crucial: é o
século da
reconquista, da suprema afirmação da
romanidade bizantina, da reconstrução
da unidade do Império de
Constantino. Ora, é nessa época que o
poder político cristão decide erradicar
a filosofia pagã. (...) O espaço
histórico em que se situa Justiniano
não é medieval nem tardo-antigo: o
tempo em que sua ação se inscreve é
o da romanidade. Justiniano é um
romano. É um imperador romano que
se esforça
por acabar com a filosofia como instituição e
realidade social. (...) Portanto, o conflito entre o
helenismo
e o cristianismo não termina com o suposto exílio
dos filósofos 64 na Pérsia, nem a filosofia está
morta,
nessa época. Ao contrário, inicia-se um movimento
de deslocamento ou de translação da ciência: a
translatio studiorum, que vai durar até o final da
Idade Média”. 65
O cristianismo triunfa a partir de Constantino
(c. 280 – 337) permitindo a liberdade de
culto aos
cristãos e reconhecendo a competência da
autoridade episcopal nos processos civis. Na
prática o
cristianismo já possuía estrutura organizada
denominada Igreja (ekklesia). Com o edito de
Milão, a
Igreja de Roma foi erigida em
centro da cristandade o que
engendrou inúmeras disputas sobre
divergências na interpretação da
mensagem de Jesus. O confronto de
opiniões fortaleceu a Igreja católica
(em grego Igreja universal). Foi nesse
contexto que surgiu a Filosofia
Patrística com a missão de apresentar
uma única versão do Evangelho, não
só como revelação divina, mas
também como resultado de juízos
racionais. Tentou-se munir a fé com
argumentos racionais. Dentre os
inúmeros padres da Igreja, destacou-
se Santo Agostinho, considerado “o
pai da filosofia cristã”.
2 - Aurélio de Agostinho
A influência da filosofia cristã de Agostinho
perdurou até o século XIII, momento da
descoberta
do pensamento de Aristóteles. Agostinho pregou
uma aproximação entre o pensamento platônico e o
pensamento cristão. É preciso lembrar que este
pensador conheceu a filosofia de Platão através dos
filósofos neoplatônicos de Alexandria
e de traduções latinas. Aurélio de
Agostinho nasceu no Norte da África,
na cidade de Tagaste, província
romana e faleceu como bispo de
Hipona em 430, aos 72 anos
de idade. Agostinho vivenciou os últimos anos do
Império Romano. Compreendeu essa decadência
como a mão de Deus castigando os homens da
cidade terrena e anunciando o triunfo do
cristianismo.
Este pensador tornou-se mestre em retórica e,
segundo relata em suas Confissões, a leitura de
um
determinado diálogo de Cícero,
Hortensius, que exprime um
verdadeiro elogio à filosofia, o
despertou para os estudos filosóficos.
64 Simplício e Damáscio.
65 p.14-5.
47
Agostinho aderiu ao maniqueísmo, religião de
origem Persa, fundada por Mani, no séc. III,
que
apresentava uma visão dualista do mundo: o bem
versus o mal. Mais tarde interessou-se pelo sermão
de Santo Ambrósio, bispo de Milão, estudou os
filósofos neoplatônicos em particular Plotino e em
386
converteu-se ao cristianismo. Escreveu os diálogos
De magistro, Contra os Acadêmicos, Contra os
Maniqueus e as Confissões. Quando assumiu a
diocese de Hipona redigiu Sobre a doutrina cristã,
Sobre a trindade e Cidade de Deus.
Sua contribuição para o
desenvolvimento de uma filosofia
cristã se deve à sua formulação
relacionando teologia e filosofia, sua
teoria do conhecimento com ênfase
na
subjetividade e uma teoria da história expressa na
obra Cidade de Deus.
A sua filosofia foi elaborada
a partir de uma aproximação entre
neoplatonismo de Plotino e Porfírio
com os ensinamentos de São Paulo e
o evangelho de São João. Na escola
de Alexandria, o platonismo era
interpretado como uma antecipação
do cristianismo. Para Agostinho a
filosofia antiga consistia em uma
preparação da alma para a
contemplação da verdade revelada.
Dessa concepção surgiu uma forte
desvalorização do mundo. Agostinho
apresentou uma teoria do
conhecimento na mesma direção da
filosofia platônica, inatista, ou seja,
há um conhecimento prévio,
independente da experiência que
permite o processo do conhecer.
Agostinho rejeitou a doutrina platônica da
anamnese, todavia desenvolveu uma
teoria da
interioridade e iluminação. Essa noção
de interioridade se configura como um
prenúncio do conceito de subjetividade
que surge no período moderno ( In
interiore homine habitat veritas ). Essa
interioridade permite acessar a
Verdade. A mente humana que é
mutável e falível possui a centelha
divina que é o seu intelecto –
imagem e semelhança a Deus. Com
este pensamento Agostinho explica o
ponto de partida do conhecimento
humano.
Na obra Cidade de Deus
(c.413- 427) nosso autor interpreta a
história da humanidade desde o
gênesis até o juízo final e a
redenção. Assim, formula a noção
de história, apresentando um fio
condutor, rompendo com a concepção
grega de uma visão cíclica, sem
início e sem fim. Este sentido de
história deveria incutir na mente
humana que a história é aquela que
exprime o triunfo da Cidade Divina,
daí resulta a necessidade da fé como
um novo ânimo para viver.
Agostinho representa o momento da
cristianização da Europa Ocidental e
ressalta a supremacia do poder
espiritual sobre o poder temporal, ou
seja, o Papa acima dos Reis e nobres
feudais. Nesta obra Agostinho
apresenta a felicidade como a
motivação do pensar filosófico e
formula a tese segundo a qual o
homem não tem razão para filosofar,
exceto para atingir a felicidade. A
filosofia, por conseguinte, passa a ser
vista como indagação humana à
procura da beatitude. Esta está
presente nas Sagradas Escrituras.
No que se refere à sua teoria do
conhecimento, Agostinho afirmou que o erro
está em querer
que as sensações possam expressar uma verdade
ao sujeito. Com esta idéia na Cidade de Deus,
Agostinho antecipou a reflexão do cogito
cartesiano. Quando formulou a seguinte frase: “eu
me
48
engano, eu sou, pois aquele que não é não pode
se r enganado” – apresentou a primeira certeza, a
essência do ser humano - o homem como ser
pensante
em que o seu pensar o difere da
materialidade do corpo.
Ocorre que esta idéia já estava presente em
Platão e chegou a Agostinho através de
Plotino.
No diálogo Alcebíades, Platão define o homem
como uma alma que serve ao corpo. Agostinho
assimilou essa transcendência hierárquica da alma
sobre o corpo e, nesse sentido, enfatizou que a
alma possui funções importantes dentre as quais a
de permitir o conhecimento verdadeiro, excluindo-
se, portanto, a percepção sensível. Assim, temos
dois tipos diferentes de conhecimento: um limitado
aos sentidos, e outro conhecimento necessário,
imutável e eterno. Mas como o homem que é
mutável
e falível acessa a Verdade? Para
Agostinho, somente através de algo
que transcende a própria alma
humana: Deus.
Agostinho utilizou a metáfora platônica
da alegoria da caverna ou mito da
caverna e
apresentou o conhecimento verdadeiro
como aquele que previamente foi
iluminado pela luz divina. Há um
saber prévio existindo de modo infuso
que cria as condições de possibilidade
para o conhecimento humano. A
percepção de um conteúdo na alma
decorre da irradiação divina. Importa
perceber que Deus não substitui o
intelecto humano, na verdade
precisa dele. O que temos que
perceber é que Agostinho está
afirmando a tese segundo a qual
todo conhecimento verdadeiro é
resultado de um processo de
iluminação divina. Deus é um Ser
transcendente que daria fundamento à
Verdade. Para Agostinho, o mal é o
não-ser, a privação do bem, não
existe como um princípio poderoso a
reger o mundo.
O homem é réprobo miserável condenado à
danação eterna e só recuperável mediante a
graça
divina. O homem é criatura privilegiada porquanto
feito à semelhança de Deus. Essa especificidade se
desvela nas faculdades da Alma: a memória, a
inteligência e a vontade. Esta última é a mais
importante porque é o centro da personalidade
humana: é livre e nela reside também a essência
do
pecado que é a transgressão da Lei Divina criada
por Deus. A queda do homem decorre do seu livre-
arbítrio e, portanto, a salvação depende de Deus. 66
Falar de uma Filosofia
jurídica implícita no pensamento de
Agostinho nos lembra a influência
que Cícero exerceu em seu
pensamento. Com Agostinho, surge
uma nova concepção de justiça: a
justiça divina. Nesta nova concepção,
todos os homens são filhos de Deus
e, portanto iguais. Se todos
são iguais, a justiça consistirá à moda aristotélica
da justiça distributiva. Agostinho quis dizer que a
cada um será dado segundo o seu
mérito, ou seja, a observância da lei
de Deus, a lei natural e, depois, a lei
humana.
66 Calvino
(1509-1564) levou as teses agostinianas às últimas
conseqüências.
49
Nos dizeres de Joaquim Salgado, o sentido
de igualdade perante a lei se configura no
próprio
princípio de justiça que preside o ato de criação.
Todavia essa igualdade não esgota a idéia de justiça.
Há que se falar também na graça como um tipo de
justiça em sua doutrina da iluminação.
Agostinho assimilou a concepção estóica da
existência de uma lei natural universal
dividida em
Lex aeterna, lex naturalis e lex humana , onde
figura a idéia de dar a cada um o que é seu. O
próprio
Deus, criador do Céu e da Terra, está no horizonte
desse princípio ou fórmula, pois o homem deve
dar-Lhe amor incondicionado. Assim
a suma justiça é a adequação do agir
humano com a vontade divina, é a
submissão absoluta a Deus. Nesse
sentido afirma Joaquim Salgado:
“Dar a Deus o
que é de Deus e
a César o que é
de César é um
princípio que
fundamenta a
doutrina da
diferença entre
o inteligível e o
sensível, a
cidade de Deus
e a cidade dos
homens em
Santo
Agostinho. A
igualdade dos
homens entre si
é posta por
santo Agostinho
como absoluta, mas somente na
esfera da cidade de Deus”. 67
A finalidade última do
homem é Deus e, nesse sentido, a
cidade que não observa esta ordem
pratica a injustiça. Combater esse mal
é um dever sem piedade. Assim,
Agostinho justifica o castigo infligido
aos maus, para que a justiça perfeita
se opere na cidade. Esta sua
concepção legitimou a servidão, pois
a servidão nasce do pecado e serve
ao propósito de expiação dos males
praticados. O homem tornado escravo
não deve subverter a ordem social.
A justiça, portanto consiste em dar a cada
um o que é seu, que por sua vez é ditado
pela
vontade de Deus. Como os homens não são
perfeitos e se tornam pecadores, a justiça perfeita,
como
igualdade de todos, só acontece na
cidade de Deus. A lei eterna liga a
criatura a Deus e a justiça se
configura na submissão à vontade
divina. Na ordem natural, a lei
natural prescreve a harmonia do
homem com ele mesmo, com a
natureza e com o sobrenatural. A
justiça está no reconhecimento do
homem como imagem de Deus,
desprezando a carne e valorizando a
alma. Esta dignidade é o que confere
o equilíbrio. No que se refere à Lei
humana, Agostinho enfatizou que esta
deve ter como fonte de referência a
Lei natural.
A Patrística de Agostinho foi
marcadamente um período em que
predominou o Novo
Testamento como doutrina
constituída por regras morais e
pela crença na salvação através do
sacrifício de Cristo. Segundo José
Américo M. Pessanha, a nova fé não
apresentava fundamentação filosófica,
mas uma religião que servia de
contestação da ordem imperial
vigente (os romanos). Essa nova
religião buscava no campo dos
filósofos gregos os conteúdos para
uma filosofia cristã.
Predominaram nesta fase escritos que
apresentavam o cristianismo em sintonia
com as
verdades racionais. O problema central da Patrística
foi, portanto o problema da relação entre razão e
3 - Tomás de Aquino
O século XIII foi denominado de “século de
São Tomás” e da “escolástica”. Este
momento é o
período da quinta, sexta, sétima e oitava
cruzadas. O período entre 1200 e 1300 é marcado
pelo
surgimento de duas ordens
mendicantes: os dominicanos ou
“irmãos pregadores” de Domingo de
Gusmão; os franciscanos ou “irmãos
menores” de Francisco de Assis
(João Bernardone). Temos, também,
a criação das universidades; novas
traduções de Aristóteles e de
Averróis; o apogeu das formas
literárias criadas no final do séc.
XII: comentários de sentenças,
sumas de teologia e a assimilação
da filosofia natural peripatética. No
início do séc. XIII, as únicas obras de
Platão acessíveis
eram o fragmento do Timeu traduzido por
Calcídio, o Mênon e o Fédon traduzidos por
Henrique
Aristipo da Catânia. Tais textos não tiveram grande
repercussão no séc. XIII, pois a verdadeira difusão
do pensamento de Platão ocorreu no séc. XV com
a tradução da República pelo emigrado bizantino
Manuel Crisóloras, prosseguindo com Leonardo
Bruni que traduz o Fédon, Górgias, Crítias,
Apologia
de Sócrates e Banquete. Termina com
as traduções de Platão e
Plotino realizadas por
Marsílio Ficino. A obra de
Aristóteles só foi conhecida
em parte por volta do séc.
XII o que gerou
conseqüências para a história do
aristotelismo medieval, pois a obra de
Avicena, seu comentador, fora
conhecida antes. Tal fato ressalta que
os tradutores de Toledo
interessavam-se mais pela filosofia
árabe-muçulmana e judaica do que
pelo corpus aristotelicum. O ingresso
do pensamento de Aristóteles foi
preparado pelo pensamento dos
peripatéticos árabes. Nesse sentido,
podemos dizer junto com Libera que
nunca existiu o aristotelismo em
estado puro e que Tomás de Aquino
realizou uma certa desplatonização do
pensamento aristotélico. Segundo
Libera: “Os medievais, em geral,
pensaram que Aristóteles compusera
orgânica e completamente suas obras.
Eles não imaginaram a gênese interior
do corpus nem as condições
concretas de sua composição. Com
Averróis e Tomás de Aquino, o
método do grande comentário,
fundamentado em recortes do texto e
na sua recomposição por divisões e
subdivisões lógicas, impôs a idéia que
as obras do Estagirita apresentavam
um plano perfeitamente
ordenado, quando, pelo contrário, a composição nada
tinha de intrinsecamente ligado”. 68
Para a maioria dos historiadores da filosofia
medieval, o séc. XII em particular
corresponde aos
anos sombrios de uma verdadeira ditadura
intelectual de Aristóteles. Ledo engano. Para
compreender
o lugar exato de Aristóteles no pensamento
medieval latinófono é preciso ter em mente os três
fatos
elementares: 1. o conhecimento
de Aristóteles pelos latinos é
fenômeno tardio, começa
aproximadamente 700 anos após a
queda do Império romano do
Ocidente; 2. é um fenômeno
68 P. 359.
51
ambíguo, levando em conta os
numerosos apócrifos, incorporados
pela tradição interpretativa; 3. é um
fenômeno supradeterminado, levando
em conta a redescoberta do texto
aristotélico pelos comentários ou pelas
leituras do peripatetismo árabe, na
verdade, um aristotelismo
neoplatonizante.
Ademais, a própria categoria “aristotelismo”
é desconhecida na Idade Média e o avanço
de
Aristóteles foi institucionalmente combatido desde o
final do séc. XII até a segunda metade do século
XIII e intelectualmente trazido à cena a partir da
segunda metade do séc. XIV. Somente a Lógica de
Aristóteles, reduzida ao estritamente necessário se
relacionou com a teologia da época. Acreditava-se
que a Lógica era neutra. As proibições se
dirigiam à Metafísica, aos livros naturais e às
sumas
extraídas dessa. Em 1230, a querela
do aristotelismo é transposta para o
interior da faculdade de Teologia, o
papa Gregório IX previne os teólogos
contra as novidades profanas, pois
entendia que a fé não teria mérito
quando a razão humana estivesse
a emprestar seus recursos.
Somente na
Universidade de Toulouse, Aristóteles é lido sem
restrição – Aristóteles não seria mais corrigido.
Inocêncio IV estende a proibição até
a Universidade de Toulouse, sendo
esta restrição reeditada em 1263,
todavia tornando-se letra morta. O
papado não teve poder para impedir a
difusão do aristotelismo através de
Averróis, no interior das
Universidades.
Do século XI ao século XIII, o problema
que apaixonou a Idade Média e que orientou
a reflexão
filosófica foi o problema dos universais, levantado a
propósito da obra Isagoge de Porfírio69, discípulo
de Plotino. A preocupação da Escolástica com as
palavras resulta da investigação da Bíblia como
portadora de verdades. Importa
perceber a diferença entre o sentido
literal e o saber simbólico. Por tanto,
neste período desenvolveu-se grande
estudo da linguagem para depois
examinar a realidade das coisas. A
indagação era: qual a relação entre
as palavras e as coisas? O célebre
romancista
Umberto Eco escreveu a obra O nome da rosa
para colocar essa questão medieval dos universais.
Veja-se a Rosa como símbolo de perfeição. A
palavra rosa subsiste à morte da própria flor – qual
seria
a relação entre o nome e a coisa? Linguagem e
realidade? Diante de tais indagações os medievais
tomaram duas direções: o nominalismo e o realismo.
Os nominalistas compreendiam que os universais
eram termos que designam idéias
gerais, meras palavras sem existência
real; pura abstração que o intelecto
faz. Os realistas sustentam que há
uma existência efetiva dos
universais. Essa existência pode ser
à maneira platônica ou à moda
aristotélica.
A partir do séc. XII, as obras
de Aristóteles começam a ser
divulgadas por intermédio dos árabes
que continuavam instalados em
Espanha. O aristotelismo será
conhecido através dos comentários
dos árabes. Fato que constituía
ameaça para o acordo entre a
reflexão filosófica e a fé cristã.
3.1 - Fé e Razão
Para Tomás de Aquino, a fé significa
obediência e confiança na Palavra de Deus;
mas, não é
um impulso cego da sensibilidade, e menos ainda
um sacrificium intellectus. Pela adesão total que ela
exige dum ser dotado de razão e vontade, suscita
por si própria a pesquisa teológica. Com a expressão
Fides quaerens intellectus de Santo Anselmo se
define no trabalho da teologia: a fé em busca da
inteligência. Para Tomás, a fé não está ligada a
uma pesquisa da razão natural para demonstrar
aquilo
em que se acredita. O teólogo apela para a razão
natural, não para provar este ou aquele artigo de
fé,
por exemplo, a criação do mundo ou
o mistério de um Deus em três
pessoas, mas para explicitar o
conteúdo desses artigos e captar a
ordem dos argumentos pelos quais se
passa de um para outro. Não existe
fé para um ser privado de razão,
tal como não há conhecimento
sobrenatural sem a possibilidade
dum conhecimento natural.
A necessidade duma inclusão
do conhecimento natural no
conhecimento sobrenatural não
significa a necessidade de uma
anterioridade histórica do
conhecimento filosófico de Deus
relativamente ao ato de fé. O
conhecimento da fé pressupõe e pré-
exige a validade do conhecimento
natural de Deus, não somente para
dar um mínimo de sentido intelectual
à palavra Deus, mas também porque
é o mesmo Deus que é visado pela
razão e pela fé.
Não há um Deus para a fé e
outro para a razão: só a afirmação
de Deus pela fé difere da afirmação
de Deus pela razão. Deus, objeto
adequado da fé, transcende o objeto
próprio da razão, mas é o próprio
Deus o objeto real – objectum ut res
– da fé e da razão. A priori é
impossível saber e crer uma mesma
coisa sob o mesmo ponto de vista. O
que é objeto da fé não é da ciência.
Mas Tomás acredita que para um
mesmo objeto poderá haver fé e saber,
ao mesmo tempo, e no mesmo
indivíduo, todavia sob perspectivas
diferentes.
O mérito do Tomismo é
manter assim, entre a fé e a razão,
uma distinção sem separação e uma
união sem confusão. Nem a fé está
subordinada à razão, nem a razão é
anexada pela fé, e, no entanto, elas
vivem uma da outra e realizam-se
numa promoção mútua e nessa
relação recíproca, encontram-se a si
mesmas. O Tomismo caracteriza-se
na crença inabalável no acordo entre
a verdade terrestre evidenciada pela
razão e a verdade de fé recebida pela
revelação.
A especulação teológica depende
diretamente da fé, a reflexão filosófica é
essencialmente
obra da razão. O filósofo considera as criaturas
em si mesmas, o teólogo encara-as na sua relação
com Deus. O teólogo aprecia as causas
primeiras, o filósofo aprecia as causas segundas.
Nesse
sentido, a Teologia é mais perfeita que a filosofia,
devido à sua maior semelhança com a Ciência
54
Divina, uma vez que Deus se
conhece primeiramente a si mesmo e
vê em si próprio todo o resto. A
teologia que é iluminada pela luz
natural da fé, não recebe os seus
princípios da filosofia, mas
diretamente de Deus, graças à
revelação. Para Tomás somos feitos
de tal modo que o nosso intelecto
deve partir dos conhecimentos
obtidos através da luz natural da
razão para ser encaminhado para os
conhecimentos que ultrapassam a
razão e formam o objeto da teologia.
Não cabe à Filosofia procurar para a
teologia essa evidência do seu objeto que a
tornaria uma
ciência perfeita mesmo para nós. Filosofia constitui
simplesmente a pré-compreensão ou o preâmbulo
necessário à inteligibilidade das verdades reveladas.
Há uma inclusão do conhecimento natural no
conhecimento sobrenatural. E segundo E. Gilson, o
acordo da Filosofia com a Teologia, no Tomismo,
é conseqüência necessária das exigências da razão
e não simples desejo.
Na visão de Édouard Hugon, a grandeza
filosófica de Tomás de Aquino muitas
vezes é
esquecida ao denominá-la de “filosofia aristotélico-
tomista”. De fato, Tomás de Aquino seguiu as trilhas
de Aristóteles, mas reformulou-os de tal modo que
arquitetou uma nova filosofia. Introduziu na filosofia
peripatética os conceitos de Deus
como criador das coisas,
temporalidade da matéria-prima, do
próprio ser, levando às últimas
conseqüências aquilo que Aristóteles
esboçara. O ponto fundamental de
sua filosofia é o realismo. O seu
ponto de partida é a realidade das
coisas e não das idéias imaginadas. O
seu tomismo origina-se da percepção
sensível do mundo para dela tirar no
âmbito da inteligência um conjunto
conseqüente e harmonioso de teses.
Tomás de Aquino buscou
as razões principais das coisas
existentes, apreendidas pelos
sentidos, conceituadas pela
inteligência, dirigindo-se às
explicações últimas das mesmas.
Nessa trajetória partia das percepções
mais primitivas até alcançar a certeza
do Ser Supremo: das mudanças, da
causalidade existente entre elas, da
contingência, das perfeições e da
ordem harmoniosa das coisas. Deus
seria a explicação de todas as coisas,
por conseguinte, seu realismo é a
filosofia do ser e da verdade;
verdade que seria a correspondência
da mente com as coisas. Em
primeiro lugar, as
coisas, depois a mente, ou dizendo de outro modo,
em primeiro l ugar o objeto e depois o sujeito. “O
critério supremo do tomismo é a verdade
imparcialmente aceita”. 71 Diz-nos Tomás de
Aquino: “O
estudo da filosofia não é para se
saber o que os homens pensaram,
mas para que se manifeste a
verdade” (De Coelo et Mundo, I,22).
A noção de ser é o
fundamento primeiro das coisas e a
última determinação da perfeição das
mesmas. A noção do ser é a
primeira que afeta nossa
inteligência e perpassa todos os
nossos conhecimentos. O ser é a
própria natureza de Deus, ou seja,
sabemos através de uma operação
lógica que Deus é e o conhecemos
por meio de uma analogia. “Se o
Tomismo admite entes de razão, cuja
57
dizer que não é através da razão,
mas da fé que o homem alcança a
felicidade. Esta felicidade está
expressa no sentido de posse ou
visão intuitiva de Deus. 3. as
virtudes teologais (fé, esperança e
caridade) se colocam acima das
virtudes morais.
58
Parte V - O
Jusnaturalism
o
59
ou particular de uma dada civitas, baseando-se no
princípio de que o direito particular prevalece sobre
o direito geral – “lex specialis derogat generali ”. 77
Não podemos olvidar que a sociedade
medieval era marcadamente uma sociedade
pluralista,
ou seja, inúmeros agrupamentos sociais cada qual
dispondo seu próprio ordenamento jurídico. Nesse
contexto, o direito positivo assumira o caráter de
fenômeno social, posto pela sociedade civil. Por
outro
lado, o direito natural passara a ocupar status
privilegiado, uma vez que adquirira o status de
norma
fundada na própria vontade de Deus – como a lei
escrita por Deus no coração dos homens.
O direito natural é percebido como aquele
contido na lei mosaica, no Velho Testamento
e no
Evangelho. Desta concepção derivou a idéia
jusnaturalista do direito natural como superior ao
direito
positivo. A esse respeito ressalta Norberto Bobbio
que se trata de uma distinção de grau e não de
qualificação, pois tanto um como outro se
configuram como direito na mesma acepção do
termo.
Somente com o advento do positivismo jurídico é
que o direito natural é excluído da categoria do
direito.
63
T. Hobbes (1588-1679); J. Spinoza (1632-1677); S.
Pufendorf (1632-1694); J. Locke (1632-1704); J.-J.
Rousseau (1712-1778), I. Kant (1724-1804).
Tais autores apresentaram o
uso comum de uma mesma sintaxe
ou estrutura conceitual para
racionalizar a força e alicerçar o
poder no consenso. Desta forma,
podemos compreender dois níveis
distintos, a saber:
64
6 - Proposta para uma distinção entre direito
natural e direito positivo
Segundo ensina Norberto Bobbio, na obra
O positivismo jurídico, a clássica distinção
entre
direito natural e direito positivo já se encontra
claramente exposta no cap. VII, do Livro V, da
Ética a
Nicômaco de Aristóteles. Nesta obra o
direito positivo é denominado de
direito legal; o direito natural se define
pelos termos “justiça” e “direito”. Para
Aristóteles, o direito natural possui
eficácia em toda parte e prescreve
ações cujo valor não exige
ajuizamentos, sua bondade é objetiva,
são ações consideradas boas em si
mesmas. O direito positivo tem
eficácia apenas nas comunidades
políticas em que é posto; o direito
positivo é aquele que estabelece
ações que, antes de serem reguladas,
podem ser cumpridas
indiferentemente de um modo ou de
outro, mas se imposta por lei,
devem observar o seu modo
prescrito em lei.
No direito romano a dicotomia direito
natural e direito positivo pode ser vista a
partir da
distinção entre jus naturale (inclui-se aqui o jus
gentium) e jus civile, que seria o correlato ao
nosso
direito positivo. Segundo Bobbio, o
primeiro tipo de direito corresponderia
à natureza, à razão natural e o
segundo tipo corresponderia às
estatuições do povo. O direito
natural seria aquele que a natureza
ensina aos homens e o direito
positivo aquele organizado por um
determinado povo em uma
determinada época.
67
fundamenta-se no preceito erga omnis, sendo
portanto livre no exercício do poder. Sua ação é
sempre
justa.
Sendo o Estado conditio sine
qua non à preservação da paz e da
justiça, este mesmo Estado detém os
meios necessários ao fim perseguido.
Tais meios são absolutos, não há
nenhuma divisão de poder, pois o
soberano em suas determinações o
tem como força instrumental na
execução da justiça, ou seja, no
respeito aos contratos válidos, visto
que numa sociedade fundada na lei,
todo e qualquer contrato válido deve
ser cumprido, pois isso é a perfeita
expressão de justiça, a garantia dos
interesses firmados. Entretanto, caso
assim não proceda, instala-se a
insegurança, é o retorno ao estado
de natureza, a fragmentação, a
guerra de todos contra todos em
ato e potência, a beligerância
propriamente dita e sua permanente
pré-disposição: a insegurança total.
O soberano é o supremo
mandatário, exerce o poder no firme
propósito de manter a paz e
possibilitar as condições necessárias
ao quotidiano da vida. Os membros
dessa sociedade podem trabalhar, ter
propriedade, utilizar as estradas em
segurança, sair de casa sem nenhum
medo de saque, desenvolver a
indústria e o comércio, expandir
riquezas e dormir tranqüilamente. O
soberano representa a soberania do
Estado e guarda zelosamente a
sociedade constituída. Seu poder não
é um fim em si mesmo, é apenas
instrumento de coesão das forças
existentes, sua finalidade consiste na
esperança de todos celebrando e
respeitando contratos. O soberano
deve ser forte para impor sua
autoridade, tanto no plano interno
quanto no externo, o receio da
punição leva o respeito à lei por parte
dos súditos, o firme e violento contra-
ataque do seu exército é a medida da
segurança territorial de toda e
qualquer invasão externa.
Finalizando, os limites do
soberano, os limites da soberania
exercida por um só corpo político
absoluto estão relacionados ao
exercício de sua função. Aquela
multidão de homens quando instituiu
o Estado, o poder soberano, designou
seu representante para exercer
autoridade necessária e eficiente ao
interesse da unidade dos homens,
garantindo justiça e paz, em troca
oferecendo toda obediência
possível. Em nome dessa obediência e da
representatividade, o soberano não pode promover
injustiças e insegurança no plano interno e no plano
externo. Tanto o bem do povo quanto o bem do
soberano são inseparáveis, este é o legítimo
representante daquele, instituído para fazer valer o
bem
comum, o fim de todo Estado: justiça e
segurança. Quando esse fim não é alcançado e os
súditos
passam a viver sob o estado de insegurança, como
vítimas de injustiças, não encontram no soberano
o poder de solução (podendo ser até
o soberano agente de injustiças e
insegurança), só lhes resta o uso da
razão, manter sua existência,
garantir sua vida da melhor maneira
possível, o que seria o retorno à
barbárie.
68
8.2 - John Locke (1632-1704)
A proposta do presente
seminário é analisar os conteúdos
daquilo que comumente
entendemos por direitos civis e em
que medida o pensamento lockiano é
suficiente para responder as
exigências das novas relações
políticas existentes em nossos dias.
Toma-se John Locke (1632-1704) por
fundamento em razão de uma tese
muito simples: ao se debruçar sobre a
Constituição brasileira de 1988, logo
se percebe os valores da livre
iniciativa, do trabalho, da
propriedade e da divisão dos poderes
políticos com o propósito de
organizar um governo civil capaz de
atinar para as expectativas dos
indivíduos. Se de fato isso ocorre
ou não na ordem material, constitui
um problema a ser devidamente
estudo.
Destarte dividiu-se o
presente texto em três tópicos e
uma conclusão. O primeiro tópico
trabalho a noção de direitos civis a
partir da Carta de 1988 sem travar
nenhuma discussão doutrinária. No
segundo tópico faço uma pequena
resenha do pensamento político de
Locke, situando-o na tradição
filosófica como um pensador
preocupado com a ordem legal nas
relações de sociedade. N terceiro e
último tópico, destaco o sentido de
legalidade tanto como premissa
fundamental para o pensamento de
Locke, como uma realidade
construída enquanto algo necessária
ao bom termo da sociedade.
8.2.1 - Noção de direitos civis dentro da
Constituição de 1988
Primeiramente é preciso entender o
significado de direitos civis e com isso
verificar o grau de
responsabilidade que a constituição de 1988 impôs
ao Estado brasileiro na consecução de seu fim.
Por direitos civis pode-se entender todos
os direitos concernentes ao homem no
tocante à
vida, à liberdade, à segurança, à igualdade e à
propriedade nos termos estabelecidos pela lei.
Esses
são os elementos que informam os direitos civis
na constituição brasileira de 1988, no seu art. 5º.
Entende-se que tais direitos são
essenciais não só ao plano do
indivíduo como também ao plano
coletivo, portanto os direitos civis
assumem a dimensão de
necessidade social. A satisfação do
indivíduo implica no equilíbrio da
sociedade que é pensada como um
corpo representado na perspectiva
dos seus componentes. Para pensar os
direitos civis (aqueles individuais e
coletivos) face à exclusão social que
atormenta a vida brasileira,
focalizou-se o item propriedade
como problema central. Isso porque
a propriedade no nosso sistema
político assume a possibilidade do
homem se
manifestar não somente como igual, mas também
como necessariamente responsável pelo corpo
social.
Pode-se dizer que a propriedade assume
um caráter imprescindível nas relações
político-
sociais, porque implica o nível de liberdade do
indivíduo e o sentir-se cidadão de fato. A
propriedade
69
corrobora o nível do indivíduo na
sociedade. A propriedade pronuncia
o real sentido de cidadania porque
sou cidadão quando disponho de mim
mesmo como ser capaz de produzir.
“Jusnaturalismo é
uma doutrina
segundo a qual existe
e pode ser conhecido
um „direito natural‟,
ou seja, um sistema
de normas de
conduta
intersubjetiva
diverso do sistema
constituído pelas
normas fixadas pelo
Estado (direito
positivo). Este direito
natural tem validade
em si, é anterior e
superior ao direito
positivo e, em caso
de conflito. E ele
que
deve prevalecer” . 88
Em contrapartida há
especificidades dentro do pensamento
jusnaturalista, a começar pela
distinção entre junaturalismo antigo e
jusnaturalismo moderno. Enquanto
este constitui uma teoria dos direitos
subjetivos, aquele se assenta na tese
de que o direito natural deveria
representar um sistema de normas
objetivas, cravadas no cotidiano
legal da sociedade. A tese
jusnaturalista moderna compreende
que o direito natural expressa uma
relação de princípios compreendidos
pela razão, ou se quisermos como
Locke, descoberta pela razão, que
é justamente a capacidade de
compreensão existente nos homens.
Tais direitos não seriam uma
construção dos Estados ou das
legislações, mas um ditame da justa
razão que mostraria aos homens os
limites daquilo que convém.
É nesse contexto que surge a
figura de John Locke como um
verdadeiro filho do século XVII. O
jusnaturalismo de Locke pressupõe
uma ordem universal a partir de um
Deus que criou os homens para o
propósito segundo o qual, todos pelo
trabalho, pudessem construir sua
prosperidade. Nesse aspecto, a
prosperidade está diretamente
relacionada ao sentido de
propriedade, que para o filósofo
inglês pode ser sintetizada em vida
(bem estar), posses e liberdade. Para
Locke, todo homem tem
direito ao fruto do seu trabalho, logo a
propriedade assume o status de categoria
político-
epistemológica. Enquanto
epistemológica promove a
compreensão da propriedade como
chave dos movimentos políticos, que
por sua vez determina a forma de
organização coletiva visando um
modo de produção de bens à vida
material.
Nesse contexto, podemos perguntar ao velho
Locke o que levou o homem a deixar o
estado de
natureza, situação de relativa paz, para fundar
uma sociedade civil, já que esta toma daquela a
71
ação não seja mais que a chancela política de
seus interesses. O Poder Legislativo não passa de
representação popular, por isso é
supremo e a ele são
submetidos os poderes
executivo e federativo. O
Poder Legislativo só é o
ordenador da sociedade
porque tem representação
popular e sua
destinação é elaborar leis justas e
precisas ao bem comum. O Poder
Executivo é aquele que executará as
leis, poder permanente na
administração dos negócios públicos
escolhidos pelo Legislativo. Atua no
âmbito comunal, nos problemas intra-
sociedade. O Poder Federativo é uma
extensão do executivo, sua
função é relativa aos negócios estrangeiros, quanto
à paz, quanto à guerra. Os exercícios dos poderes
Executivo e Federativo podem ser
realizados pelos mesmos membros,
distintos do Legislativo, cujos
membros não podem pertencer a
outro poder. Outra característica do
Legislativo é que sua atuação não é
permanente, sua finalidade é elaborar
leis, uma vez elaboradas extingue-se
a legislatura e seus membros voltam
a ser súditos.
Locke deixa claro em seu
Segundo Tratado Sobre O Governo
Civil , que a sociedade sob um poder
político, o Estado, somente existe para
promover a paz na possibilidade da
segurança permitir o gozo e o uso da
propriedade, bem como na execução
da justiça entendida como bem estar
comum. O Estado não existe para
satisfazer um grupo de pessoas, sua
ação positiva visa toda comunidade,
justamente associada aos interesses
dos homens que deixaram as
incertezas do estado de natureza para
viverem sob uma ordem legal. Locke
afirma que o corpo político está
subordinado à sociedade, portanto,
seus atos não podem contrariar tal
princípio, e assim não acontecendo, o
Estado declarando guerra à sociedade
em razão de sua insubordinação,
enseja o direito à resistência e, por
fim, o dissolverá para constituir um
outro Legislativo para um novo
governo.
Ao construir sua tese de que
o homem abandona o estado de
natureza e contrata com outros
homens a sociedade civil para a
preservação da propriedade, Locke
está pensando naqueles homens
proprietários de terra, portanto não
levando em consideração aqueles
que não possuem alguma
propriedade, inclusive os que não
possuem a si mesmos. Todavia,
forçosamente podemos pensar que o
filósofo inglês trouxe algo de
diferente, mesmo não atentando para
tal princípio, que sendo a
propriedade um direito natural, e os
homens iguais, todos, sem distinção
devem ser contemplados no seu
direito ao uso, gozo e disponibilidade,
daquilo que constituiu pelo trabalho.
Nesse sentido, pode-se, por relação,
supor que todos aqueles que formam
uma sociedade devem ter direitos
resguardados por ela.
72
cabe ao Legislativo o papel de edificá-las na
proteção da vida, posse de bens e liberdade, ao
que o
nosso autor chama de propriedade.
Na formulação política
lockiana, o papel do Poder Legislativo
é de ordem primordial, isto é, tem a
função de estabelecer normas
necessárias à existência da sociedade
como um corpo político, e
sendo assim, o Poder Legislativo assume o status
de poder supremo dentro de uma sociedade que
pretende como governo a própria
legalidade. Para Locke, o poder
legislativo institui normas para
comandar a sociedade, o Executivo
para aplicá-las, por fim estabelecer
funções de poder distintas para que
não haja arbitrariedade por parte dos
poderes constituídos. Se o Poder
Legislativo agir de forma diversa de
sua destinação, ou se todos os
poderes, em seus atos, não
respeitarem o povo, que é o
verdadeiro soberano, caberá ao próprio povo apelar
para os céus no sentido de desobediência civil.
Para Locke, tais poderes públicos
somente existem em função do
soberano que é o povo, logo seria
absurdo um governo ou mesmo um
Estado que fuja de suas funções
essenciais. Caso ocorra, caberá ao
povo destitui-lo e formar um outro
que atenda ao pacto firmado como fim
último.
A legalidade é o espírito do
sistema político lockiano. Claro que
essa legalidade pode se tornar algo
conservador para aqueles que estão
fora do círculo dos proprietários que
por sua vez organizam a sociedade.
Mas o que importa é destacar a
legalidade submetida ao povo, o
Legislativo submetido ao povo e a
administração submetida a esse
mesmo povo.
O dado da exclusão social é
sem sombra de dúvida o fato de não
possuir propriedade, ou pelo menos
não possuir a si mesmo como tal. Os
homens acordam entre si os limites
de suas ações para que esse limite
seja administrado pela sociedade na
pessoa do poder público, isto posto
leva ao raciocínio que o Estado em
sua função precípua, de administrar
os limites das ações humanas em
sociedade, não pode se furtar do
dever de contemplar os seus
membros em suas múltiplas
expectativas. Ou o Estado exerce o
seu papel na contemplação dos seus
fins, ou pode se destituído de
suas funções para que um outro modelo leve em
conta os homens como realmente iguais.
90 Idem: 120.
74
O pacto social dá ao poder
soberano, corpo político da
sociedade civil, poder absoluto
sobre seus membros, inclusive sobre
a propriedade, que só existe
enquanto possibilidade jurídica
graças à legitimação desta por parte
do soberano. O limite do poder
soberano está adstrito ao contrato
social
naquilo que se convencionam naquilo que ficou
firmado como interesse público. É o interesse
público
o norte do poder soberano em suas
deliberações; sua instituição obedece
aos princípios da liberdade e da
igualdade, na lei como força da
vontade geral, meio que fixa,
estabelece todos os direitos e
deveres dos cidadãos. O poder
soberano pela sua própria natureza é
quem institui o poder executivo,
aquele que irá executar, ou seja, administrar as
leis promulgadas. O poder executivo “é um corpo
intermediário estabelecido entre os
súditos e o soberano” ,
encarregado da manutenção das
liberdades civil e política; e no
governo que se estabelece a relação
do todo com o todo, do soberano
com o Estado, não podemos
confundir o soberano com as
instâncias administrativas do poder,
visto que o soberano embora
permanente enquanto garante da
vontade geral se dá em assembléia.
Gostaríamos de ressaltar, ao finalizar o
presente texto, que em Rousseau não existe
a
possibilidade do poder legislativo existir fora do
soberano. Rousseau entende que não se pode
representar vontades. O povo não pode prescindir
do seu direito-dever de participar da vida política
do seu Estado, abrir mão desta condição é arruinar
todo o corpo político, é colocar sob perigo e
mesmo arruinando toda organização estatal
constituída. O povo é quem ratifica a lei, nula é
toda lei
que não leva sua chancela. É importante ressaltar
que os deputados são comissários do povo.
“A diminuição do amor à pátria,
a ação do interesse particular, a
imensidão dos Estados,
as conquistas, os abusos do
governo fizeram com que se
imaginassem o recurso dos
deputados ou representantes do
povo nas assembléias da nação”
(Rousseau, s/d: 131).
75
Parte VI – A filosofia prática
de Immanuel Kant (1724-
1804)
“Ninguém
pode me
constranger
a ser feliz
à sua
maneira
(...) mas a
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1- Introdução
76
“A nossa época
é a época da
crítica, à qual
tudo tem que se
submeter. A
religião, pela
sua santidade e
a legislação,
pela sua
majestade,
querem
igualmente
subtrair-se a
ela. Mas então
suscitam contra
elas justificadas
suspeitas e não
podem aspirar
ao sincero
respeito, que a
razão só
concede a quem
pode sustentar o
seu livre e
público
exame.”92
77
O que Kant entendeu pela esfera da
prática? Kant concebeu a liberdade
transcendental, ou
seja, o homem é dotado de livre-arbítrio e,
portanto, tudo o que se relaciona com essa
dimensão do
livre-arbítrio “é chamado prático”.97 Resulta dessa
afirmação que devo entender por prático o que diz
respeito à moral e ao direito. Então, a liberdade
prática, que significa liberdade da vontade, é uma
variante da liberdade transcendental.
Deve-se observar, portanto, que este
autor se filiou a uma tradição
filosófica que estabeleceu a
separação entre uma faculdade
superior (a razão) e uma faculdade
sensitiva (as inclinações).
Nesse sentido, a independência da
vontade de motivos empíricos está
estritamente
relacionada com a fundamentação da moralidade
kantiana. Porque a moralidade implica o conceito de
autonomia, que é conseqüência da existência de
uma vontade livre de motivos sensíveis ou direções
estranhas. Kant precisou de uma liberdade
transcendental relacionada com a dimensão racional
do
homem para construir a sua teoria moral. Seu
argumento se baseia na idéia de que sempre que
nos
pensamos como livres reconhecemos
a consciência da possibilidade de
autonomia. Se como ser racional o
homem é dotado de uma vontade
livre capaz da elevada função de
permitir a moralidade, seria
contraditório que este mesmo homem
permanecesse sob tutelas. E, assim,
associada à idéia de liberdade está a
idéia da autonomia, que, por um
lado, é entendida como liberdade
em relação a direções estranhas e,
por outro, como a liberdade da
faculdade da vontade capaz de
autolegislar.
79
Na terceira parte da
introdução geral, Kant concentra seus
esforços na clássica distinção entre a
legislação moral e a jurídica.
Encontramos nesse ponto o problema
inicial da filosofia do direito: a
distinção entre as duas esferas. Nesse
sentido, o que efetivamente distingue
as duas legislações não é
tão somente o fato de uma legislação ser interna e
a outra externa, mas em particular a idéia do dever
como impulso.
Para entendermos melhor essa idéia temos
que considerar que toda legislação – como
diz
Kant – possui dois elementos constitutivos, a
saber:
o
elemento objetivo, que significa a
representação da lei como necessária à ação e
que portanto converte a ação em dever, e um
elemento subjetivo, que liga a
representação da lei ao fundamento
de determinação do arbítrio para
realização de tal ação. No primeiro
momento, temos o que Kant
denominou de conhecimento teórico
da possibilidade da regra prática e, no
segundo, o dever como impulso.
“A legislação
que erige uma
ação como
dever, e o dever,
ao mesmo
tempo como
impulso, é ética.
Aquela, pelo
contrário, que
não compreende
esta última
condição na lei
e que admite
também um
motivo diferente
da idéia do
próprio dever é
jurídica. No que
diz respeito à
esta última,
vemos
facilmente que
estes motivos,
diferentes da
idéia do dever,
têm que extrair-
se de
fundamentos
patológicos da
determinação do
arbítrio, das
inclinações e
aversões e,
dentre estas, das últimas
porque tem que ser uma
legislação que obrigue, não
um
chamado atraente”.101
80
Há também deveres interiores que não são
éticos e deveres exteriores que não são
jurídicos;
há deveres éticos diretos (moralidade) e deveres
éticos indiretos (legalidade). Isso implica dizer que
todos os deveres são também deveres éticos;
todo dever é considerado dever de virtude. 105
Os
atributos de interno e externo apenas sinalizam para
a forma de adesão, observando ou não o animus
com o qual é cumprida uma ação.
A liberdade torna-se o ponto chave entre as
duas esferas, pois se constitui no conceito
limite
capaz de conferir sentido e direção à conduta
humana na esfera da vida em sociedade. 106 As
normas
jurídicas e éticas derivam da razão e não da
natureza. Derivam da vontade humana legisladora.
A partir
desta concepção podemos dizer que o direito
identifica-se com a idéia de autonomia. O conceito
de
direito coincide com o conceito de autonomia no
sentido de que “A legislação própria da razão
prática é
a liberdade em sentido positivo, autonomia”. 107 Esta
relação entre direito e autonomia exclui qualquer
possibilidade de violência,
menoridade e os mais variados tipos
de desrespeitos para com certas regras
de convivência mútua. O conceito de
liberdade vincula-se necessariamente
à idéia de uma sociedade, daí o
sentido de limitação recíproca, pois
não podemos esperar que todos
tenham motivação ética para o
cumprimento das leis. As leis morais
e jurídicas são leis da liberdade, ou
seja, leis que ordenam na medida em
que somos livres.
82
livre do determinismo natural e tem uma vontade
própria, da qual derivam os conceitos e leis tanto
morais como jurídicas”.111
Embora Kant afirme a existência de
direitos inatos em À Paz Perpétua, na
Metafísica dos
Costumes ressalta que só há um único direito inato,
que é a liberdade no sentido de independência do
arbítrio de outrem:
“A liberdade
(independência
do arbítrio
necessitante de
todo outro), na
medida em que
pode coexistir
com a liberdade
de todo outro
segundo uma lei
universal, é o
único direito
originário,
pertencente a
todo homem em
virtude de sua
humanidade”112
Apresentou na Fundamentação: “a
liberdade tem de pressupor -se como
propriedade da
vontade de todos os seres
racionais”113. O conceito de igualdade
decorre desta idéia de liberdade como
direito inato, pois todos são
igualmente independentes. A
igualdade inata é: “a independência
que
consiste em não ser obrigado por outros senão
àquilo a que também reciprocamente podemos
obrigar-
lhes” 114
Na verdade, a igualdade, a qualidade do
homem como sui iuris, ser homem
íntegro e o
conteúdo da formulação do imperativo categórico
acima mencionado já se encontram no princípio da
liberdade originária como elementos constitutivos
dela.
83
de direito a partir do conceito de racionalidade.
Trata-se de uma razão prática-jurídica e não
pragmática, ou seja, direcionada a
interesses particulares independentes
de qualquer moralidade. A
racionalidade permite o
reconhecimento recíproco e a
unificação das vontades e, nesse
sentido, sublinho mais uma vez que
não é a experiência da violência
como pensava Hobbes, mas um
princípio da razão. É a razão que
nos impulsiona a abandonar o
estado de natureza, embora seja
concebido
como estado de direito privado, em favor de um
estado de direito, onde não há uma razão privada,
mas um interesse comum e um tribunal capaz de
assegurar e reconhecer os direitos de todos.
Kant compreendia o direito natural como
não estatutário e, portanto cognoscível pela
razão de
todo homem e, nesse sentido, a justiça pertence a
ele. 116 Isto posto, o Estado para Kant deve
reconhecer em cada um a habilidade
de ser seu próprio senhor e,
portanto, não permitir qualquer
privilégio ou interesse especial
protegido. A igualdade formal, que
não é igualdade de posses, mas de
oportunidade, é uma conseqüência
necessária do único direito inato: a
liberdade. Nesse sentido,
compreendendo o típico egoísmo humano, o
Estado pode e deve usar a coerção mediante leis
para
senão eliminar, pelo menos controlar
os abusos. A legislação civil deve
realizar o direito natural que serve de
fundamento racional à legislação
positiva.
Segundo N. Bobbio, com a doutrina do
contrato e do direito natural, o Estado
assume a figura
de associação voluntária com vistas a defender
alguns interesses. 117 Kant partiu em defesa desse
modelo de Estado, cuja meta seria
assegurar a liberdade de cada um
com base em uma lei universal
racional e, portanto, condenou o
Estado eudemológico que pretendia
tomar para si a tarefa de tornar
seus súditos felizes, já que a verdadeira função do
Estado não se confunde com essa tarefa, mas deve
ser tão somente salvaguardar a liberdade que
permita a cada um buscar a sua própria felicidade.
Por
felicidade entenda-se o pleno desenvolvimento de
todas as suas disposições.
Kant demonstrou uma grande aversão por
um Estado do tipo paternalista que
mantinha os
súditos na condição de uma menoridade perpétua.
118 Ele acreditava que havia uma tendência natural
7 - A doutrina do Direito
Kant define a doutrina do
direito como um conjunto de leis
que se apresentam como leis
externas ou exteriores, que constituem
o que se chama direito positivo, cujo
interessado é o jurisperito
(Iurisperitus), aquele que conhece as
leis externas em sua aplicação aos
casos que se apresentam na
experiência, estudo denominado pelo
nome técnico de jurisprudência (
Iurisprudentia). Além da doutrina
do direito e da jurisprudência encontramos a
Ciência do Direito, que corresponde ao
conhecimento
sistemático da doutrina do direito natural ( Ius
naturae).
Para compreendermos o direito como idéia
da justiça é preciso abandonar o campo
empírico e
dirigir-se à razão pura. Kant entende que o conceito
de direito diz respeito a uma relação externa entre
pessoas cujas ações implicam-se mutuamente.
Não se trata de uma relação entre um arbítrio e
um
desejo, mas entre arbítrios, e nessa
relação recíproca não interessa
muito saber o fim a que se
propõem, mas sim a forma da
relação; em última análise, trata-se de
conciliar a liberdade de um com a
liberdade do outro, isto é, a liberdade
em sociedade. Assim, Kant formula
pela primeira vez na obra em foco o
seu conceito de direito como “o
conjunto das condições, por meio das
quais o arbítrio de um
pode estar de acordo com o arbítrio de um outro
segundo uma lei universal da liberdade”. 119 O
princípio
universal do direito expressa a
necessidade de coexistência dos
arbítrios segundo uma lei universal.
Uma lei universal do direito que
determina que devo agir externamente
de forma tal que preciso sempre
respeitar a liberdade do arbítrio do outro nada
mais é do que uma obrigação que me determina
a
razão: “age exteriormente de maneira que o uso
livre do teu arbítrio possa estar de acordo com a
liberdade de qualquer outro, segund o uma lei
universal”. 120
É preciso levar em conta os três elementos
constitutivos do seu conceito de direito: o
primeiro
diz respeito apenas às relações externas, ou seja, é
um direito intersubjetivo; o segundo estabelece a
relação entre arbítrios, pois a intersubjetividade
pode ocasionar lesões nos outros; o terceiro não se
preocupa com a matéria do arbítrio, mas tão
somente com a forma, pois o direito não concerne
aos
objetos particulares.
O direito, aparentemente mais do que a
moral, está relacionado à coerção, pois
está
diretamente ligado a esse sentido de obrigar
alguém a agir de uma forma e não de outra, por
meio da
coerção. O termo coerção pode ser entendido como
a possibilidade de regular as relações humanas a
partir de leis externamente válidas.
Quando usamos a expressão coerção
legal limitamos esse sentido para um
tipo específico de controle baseado
em leis positivas.
2 - As escolas Jurídicas
Segundo ensina Ana Lúcia Sabadell130
podemos compreender a expressão “escola
jurídica”
como um grupo de autores que compartilham uma
determinada visão sobre a função do direito, suas
regras, validade e conteúdos. Nesse sentido, cada
escola jurídica oferece respostas a três indagações:
o que é o direito, como funciona o direito e como
deveria ser configurado esse direito.
Várias escolas jurídicas surgiram ao longo
dos anos, cada qual caracterizando sua
época e sua
cultura jurídica. Encontramos, portanto, inúmeras
escolas rivais e outras que apresentam pontos de
continuidade entre si, ou seja, escolas que se
inspiraram em outras dando continuidade às suas
concepções. De um modo geral, podemos
classificar as escolas em dois grandes grupos: as
escolas
moralistas e as positivistas. As escolas moralistas
são aquelas que valorizam o direito natural e se
caracterizam por um pensamento jusnaturalista. As
escolas positivistas são aquelas que entendem o
direito como um sistema de normas que regulam o
comportamento social.
130 Sabadell,
Ana Lúcia. Manual de sociologia jurídica. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 17.
90
concreta e social do Direito, comparando-o ao
fenômeno da linguagem. Para este filósofo-jurista
direito e linguagem apresentam um início anônimo
e visam atender tendências e interesses múltiplos
de um povo. Ressaltamos aqui uma advertência
de Norberto Bobbio: “Note-se bem que escola
histórica e positivismo jurídico não são a mesma
coisa; contudo, a primeira preparou o segundo
através
de sua crítica radical do direito nat ural”. 131
Segundo estudiosos, temos pela primeira
vez uma refutação filosófica do direito
natural.
Savigny invocou contra a lei escrita, ou seja, a lei
abstrata e racional, a força viva dos costumes, o
“espírito do povo”, pois temia o perigo de leis
destituídas de eficácia. Para Savigny, o direito vive
na
consciência popular porque é do povo
que ele nasce. Trata-se do espírito do
povo ( Volksgeist) que produz o
direito positivo. A função legislativa
seria, portanto, a expressão da
necessidade de dar ao direito positivo
uma existência exterior cognoscível.
Savigny respirou a atmosfera
romântica dos alemães de
Heidelberg, recebeu influência de
vários autores como: Edmundo Burke
(1729-1797), considerado um dos
precursores do historicismo político-
jurídico; Joseph De Maistre (1754-
1821); Justus Moser (1720-1794),
Adam Muller e Gustav Hugo (1765-
1844) que só considerav o direito
positivo como objeto da ciência.
Sua obra fundamental foi Da Vocação de
nosso Tempo para a Legislação e a
Jurisprudência
(1814), onde objeta a codificação, além da obra que
marcou o grande florescer do Direito romano na
Alemanha, Sistema de Direito Romano Atual (1840).
Assim, a Escola Histórica do direito não foi
precursora do positivismo jurídico, mas de
certas
correntes jusfilosóficas como, por exemplo, a escola
sociológica e a escola realista que no final do séc.
XIX; ambas se posicionaram criticamente em relação
ao próprio juspositivismo.
Conforme ensina Norberto Bobbio, “O
fato histórico que constitui a causa
imediata do
positivismo jurídico deve, ao
contrário, ser investigado nas grandes
codificações ocorridas entre o fim do
séc. XVIII e o início do séc. XIX,
que representaram a realização política
do princípio da onipotência do
legislador”.132
Sabemos que as codificações foram
incentivadas pelo pensamento iluminista que
congregou
a idéia de um sistema de normas racionalmente
elaboradas com a exigência de um código imposto
pelo Estado. Foi neste omento que houve uma
certa identificação com o positivismo jurídico – o
direito como expressão de uma autoridade legitimada
para legislar.
Ao observarmos as características da
Escola Histórica temos que ressaltar um
traço
fundamental, a saber: a intenção de
substituir um olhar generalizante e
abstrato da história humana por uma
visão que considera o homem em sua
individualidade. Enquanto os
racionalistas consideravam o
131
Bobbio, N. O positivismo Jurídico, p. 45
132
O Positivismo Jurídico: lições de filosofia p54.
do direito. São Paulo: Ícone, 1995,
91
homem como integrante de uma humanidade
abstrata, o historicismo focaliza o seu caráter
individual.
Bobbio enumera cinco características da Escola em
apreço:
1. Valorização da individualidade/diversidade
histórica
– pretende-se a superação do
entendimento dos jusnaturalistas, segundo o qual é
possível falar em Homem com caracteres sempre
iguais e imutáveis (De Maistre).
2. Valorização do sentido irracional na
história/há impulsos e paixões - a mola mestra da
história
não é a razão, mas o elemento passional e emotivo
do homem.
3. Valorização da descrença no progresso
iluminista – há certo pessimismo antropológico
porque
não acredita nos magníficos destinos e progressos da
humanidade (Burke).
4. Idealização do passado – valorizam o
passado, as origens. Os iluministas desprezavam o
passado e zombavam da ingenuidade e ignorância
dos antigos (Justus Moser)
5. Valorização da tradição, instituições e
costumes da sociedade – esta idéia foi difundida
por
Herder e Burke que alorizavam os costumes
formados através de um desenvolvimento lento e
secular.
92
uma nova civilização que valoriza a razão e a
autoridade do Estado. Configura-se, portanto, uma
estreita relação entre o movimento do iluminismo e o
processo de codificação.
Ocorre que grande polêmica surgiu por
ocasião em que os exércitos da França
revolucionária
ocuparam uma parte da Alemanha, difundindo o
Código de Napoleão. Este código adotara princípios
estranhos a um povo que vivia em situação
semifeudal, onde a codificação prussiana de 1797
conservava a distinção da
população em castas, baseada em
privilégios. Esta situação gerou a
oposição de vários conservadores
alemães, dentre eles: Rehberg que
elaborou um artigo em defesa da
tradição prussiana. Thibaut (1772-
1840), famoso jurista alemão fez uma
apreciação anônima do texto
conservador de seu coetâneo. Na
verdade assumiu uma posição
moderada, de conciliação, entre
história e razão para a construção de
um sistema de direito positivo.
Afirmou que:
“Os alemães
estão a muitos
séculos
paralisados,
oprimidos,
separados uns
dos outros por
causa de um
labirinto de
costumes
heterogêneos,
em parte
irracionais e
perniciosos.
Justamente
agora se
apresenta uma
ocasião
inesperadamente
favorável para a
reforma do
direito civil como não se
apresentava e talvez não se
apresente mais em mil anos.” 133
93
expressamente elaboradas. O
processo de codificação das normas
francesas encontra sua origem na
cultura racionalista que predominou
no interior do pensamento
iluminista. Como fato histórico
fundamental destacamos a Revolução
Francesa, momento em que a idéia de
codificar o direito adquiriu
consistência política.
O fato é que a sociedade
francesa encontrava-se fragmentada e
na concepção racionalista as velhas
leis deveriam ser substituídas por
um direito simples e unitário. Os
iluministas estavam convencidos de
que existia um verdadeiro direito. Os
juristas da Revolução se propuseram a
eliminar a multiplicidade de normas
jurídicas pelo desenvolvimento
histórico e instaurar no seu lugar um
direito fundado na Natureza e
adaptado às exigências universais
humanas.
Segundo Bobbio, o novo
código se distanciou
progressivamente da inspiração
originária se reaproximando da
tradição jurídica francesa do direito
romano comum. O protagonista desta
primeira fase de codificação foi
Cambacérès (1753-1824), jurista e
político prudente que participou da
Convenção que decidiu a morte do
Rei Luiz XVI. Não era extremista e
chegou a se opor a Robespierre. Com
o golpe de Estado operado por
Napoleão, 18 Brumário, foi nomeado
segundo-cônsul e depois
arquichanceler.
Durante a Convenção este
jurista apresentou três projetos para
um novo código de clara inspiração
jusnaturalista. Em um dos seus
projetos já equiparava filhos
naturais aos legítimos, proposição
radicalmente nova, fundada em
princípios como igualdade dos
cônjuges, a possibilidade do divórcio
e da comunidade patrimonial. Na
verdade este autor evocou a definição
ciceroniana do direito natural. Dos
três projetos, o de 1793, 1794 e
1796, foi este último que apresentou
características mais técnicas e uma
notável atenuação das idéias
jusnaturalistas que influenciou na
elaboração de um projeto definitivo
do Código Civil Francês.
O projeto do Código Civil
foi obra de uma comissão criada por
Napoleão. O papel mais importante
foi realizado por Portalis (1746-1807),
liberal moderado, crítico do
pensamento kantiano, perseguido por
Robespierre e posteriormente
protegido no governo de Napoleão.
Elaborou severa crítica contra os
excessos da revolução e representou
em certo sentido o início do
movimento de Restauração. O projeto
definitivo do novo código abandonou
decididamente a concepção
jusnaturalista. O código de Napoleão
representou, na realidade, a expressão
orgânica e sintética da tradição
francesa do direito comum.
Os projetos inspirados nas
idéias do jusnaturalismo racionalista
representavam a Revolução quando
esta queria fazer tábula rasa de todo
o passado. Mas as intenções da
comissão napoleônica pretendia
elaborar uma síntese do passado que
não deveria excluir os costumes e o
direito comum
romano. Na verdade foram os primeiros intérpretes
que consideraram o novo código uma ruptura com
o passado e no entendimento de Bobbio, a adoção
do princípio da nipotência do legislador – um dos
94
dogmas fundamentais do positivismo jurídico. O
problemático art. 4 o. do Código dispõe: “O juiz
que se
recusar a julgar sob o pretexto do
silêncio, da obscuridade ou da
insuficiência da lei, poderá ser
processado como culpável de justiça
denegada”. O juiz deve usar a
interpretaç ão, a integração da lei e
buscar no interior do próprio sistema
legislativo resolver o silêncio da lei.
Neste caso, o dogma da onipotência
do legislador impõe ao juiz a
necessidade de encontrar resposta para
todos os problemas, gerando um outro
dogma, o da completude do
ordenamento jurídico. A intenção dos
legisladores do novo Código era
evitar a possibilidade de uma prática
judiciária, pela qual os juízes se
abstinham de
decidir e devolviam os atos ao poder legislativo
para obter disposições a propósito. Além do art. 4
o., o
95
A escola exegética configurou um
procedimento específico de análise
comentando artigo por
artigo do Código Napoleônico. A história da
influência dessa escola pode ser dividida em três
fases: de
1804 a 1830, o seu início; de 1830 a
1880, considerado período do seu
apogeu; de 1880 até o fim do séc.
XIX, o seu declínio. As
características fundamentais dessa
escola são:
1. Desvalorização da importância e significado
do direito natural para o jurista;
2. Concepção rigidamente estatal do direito: as
normas jurídicas legítimas são aquelas impostas
pelo Estado;
3. Interpretação da lei fundada no legislador:
se a lei é manifestação da vontade do Estado,
busca-se na vontade do legislador a correta
interpretação da lei nos casos de obscuridades e
lacunas;
4. O culto ao texto da lei: o operador do
direito deve seguir rigorosamente o que está escrito;
5. O respeito pelo princípio de autoridade: os
primeiros comentadores do código gozaram de
grande prestígio e influenciaram inúmeros juristas
posteriores.
A tese fundamental da Escola
é a de que o Direito por excelência é
o revelado pelas leis, que são
normas gerais escritas emanadas
pelo Estado, constitutivas de
direito e instauradoras de
faculdades e obrigações, sendo o
Direito um sistema de conceitos bem
articulados e coerentes, não
apresentando senão lacunas aparentes. O
verdadeiro jurista deve partir do Direito Positivo,
sem
procurar respostas fora das leis. Surge assim a idéia
de uma Dogmática Jurídica 134 conceitual ou uma
Jurisprudência 135 conceitual, como objeto do jurista.
Significa dizer que existe uma ratio iuris específica,
ou seja, uma interpretação conceitual
de regras do Direito. Essa concepção
(normativista e conceitual do Direito)
compreendia que a lei deveria ser
atingida em seu espírito e, convém
ressaltar, que a interpretação se
limitava a um trabalho rigorosamente
declaratório. Qualquer mudança na lei
deveria seguir o processo legislativo.
97
entende o Direito como Ciência. A validade da
norma jurídica decorre da sua origem em um
ordenamento jurídico. A justiça decorre da sua
validade.
Segundo N. Bobbio podemos observar
sete problemas fundamentais nessa
doutrina: 1. O
positivismo jurídico compreende o direito como um
fato e não um valor. Isto significa dizer que o jurista
deve estudar o direito do mesmo modo como o
cientista estuda a realidade natural, não
formulando
juízos de valor. Nesse sentido, o
termo direito se afigura como
avalorativo ou não valorativo. O
direito não recebe o qualificativo de
bom ou mau. Deste modo de ver
surge uma teoria da validade do
direito denominada formalismo
jurídico, cuja validade do direito
repousa na sua estrutura formal. 2. O
direito é definido em função do
conceito de coação, situação esta que
propicia o aparecimento de uma
teoria chamada teoria da coatividade
do direito. Observa o autor
supracitado que este caráter do direito
não é
exclusividade do juspositivismo, pois foi
apresentado pelo jusnaturalista Christian Tomasius.
3. A
teoria da legislação como fonte do direito. Na
relação entre lei e costume admite-se apenas o
costume
secundum legem e eventualmente o praeter legem.
4. O positivismo jurídico compreende a norma
como um comando (teoria da norma
jurídica), implicando em uma teoria
imperativista do direito. 5. A teoria
do ordenamento jurídico considera o
conjunto de normas jurídicas
vigentes numa sociedade e
implica uma teoria da coerência e da
completude deste ordenamento jurídico. 6. O
positivismo
sustenta a teoria da interpretação
mecanicista que consiste em
enfatizar o aspecto declarativo em
detrimento de uma análise criativa ou
produtiva. 7. O positivismo jurídico
sustenta a idéia da obediência absoluta
à lei.
De acordo com os ensinamentos de Norberto
Bobbio, “O positivism o jurídico nasce do
esforço
de transformar o estudo do direito numa
verdadeira e adequada ciência que tivesse as
mesmas
características das ciências físico- matemáticas,
naturais e sociais”. 136
Estamos no âmbito da
avaloratividade do direito enquanto
ciência, ou seja, na separação entre
juízos de fato e juízos de valor. A
ciência deve excluir de sua esfera
juízos de valor, pois pretende um
conhecimento objetivo da realidade.
Este é um traço fundamental na
separação entre o mundo antigo e o
moderno: o homem
moderno renuncia a uma visão metafísica da
realidade.
O positivismo estuda o direito
tal qual é e não como deveria ser, ou
seja, juspositivista estuda o direito
real sem se vincular com um
suposto direito ideal. Observa-se,
para fins didáticos, que o conceito
de valor não se confunde com o de
validade, uma vez que uma norma
jurídica é válida quando faz parte de
um ordenamento jurídico real, ou
seja, efetivamente existe em uma
determinada sociedade.
O valor de uma norma jurídica indica a
qualidade de tal norma conforme sua relação
com um
suposto direito ideal. Uma norma jurídica será
justa quando corresponder a esse direito ideal.
99
Parte VIII - O pensamento
de Hans Kelsen (1881-
1973)
“O anseio
por justiça
é o eterno
anseio do
homem por
felicidade.
Não
podendo
encontrá-la como
indivíduo isolado,
procura essa
felicidade dentro
da sociedade”
Kelsen
1 – Introdução
Este pensador foi jurista de notável valor,
filósofo, sociólogo e juiz (entre 1921-1930)
da Corte
Constitucional da Áustria. Foi iniciador do que se
denomina de lógica jurídica e autor intelectual da
Constituição republicana austríaca. Sua obra mais
importante foi Teoria Pura do Direito (1934). Exilou-
se nos Estados Unidos por ocasião
do advento do nazismo e lecionou na
Universidade de Berkeley. Kelsen
freqüentou o conhecido Círculo de
Viena que reunia intelectuais como
Carnap, Wittgenstein e Freud.
Kelsen foi influenciado pela
filosofia do Círculo de Viena que era,
na verdade, um grupo de pensadores
que contribuíram para o surgimento
do neopositivismo vienense. Os
filósofos do Círculo de Viena eram
professores da Universidade de Viena,
pensadores antimetafísicos, filósofos
da ciência. A cidade de Viena era
propícia ao surgimento do
neopositivismo porque nesta região
se desenvolveu durante a segunda
metade do séc. XIX, o liberalismo
com seu patrimônio de idéias
originadas do Iluminismo, do
empirismo e do utilitarismo. A
universidade de Viena se mantivera
sob a influência
católica e, portanto, ficou imune à corrente do
idealismo. Foi, portanto, a mentalidade escolástica
que
preparou a abordagem lógica das questões
filosóficas. O círculo de Viena era constituído por
um grupo
de jovens doutores em Filosofia
da ciência que organizavam
colóquios semanais, dentre eles
destacamos: Hans Hahn, Otto
Neurath, Olga Neurath, Félix
Kaufmann, Carnap e tantos outros.
Uma das teses do Círculo de Viena
era afastar o conhecimento
metafísico, a ética e a religião do
âmbito científico.
Sua obra foi de extrema importância para o
pensamento jurídico do séc. XX. O
objetivo da
obra seria discutir e propor os
princípios e métodos da teoria
jurídica, reflexo dos debates
metodológicos que ocuparam os
intelectuais do séc. XIX. Kelsen
vivenciava uma época marcada pelo
positivismo jurídico nas suas diversas
tendências e pelos teóricos da livre
interpretação do direito. Esse
momento colocava em relevo a
própria autonomia do direito enquanto
ciência jurídica. Nesse sentido,
alguns entendiam a metodologia correta como
aquela que aproxima o direito e as demais
ciências
humanas. Outros compreendiam a
ciência jurídica como esfera
autônoma, livre de qualquer juízo
valorativo. Kelsen procurou um
conhecimento objetivo, desvinculado
de qualquer ideologia.
Há que se falar também na tentativa de
uma volta aos parâmetros do direito natural.
Nesse
entrecruzamento de correntes, o
pensamento de Kelsen se
comprometia com a busca de um
método e objeto próprios, capazes de
superar as confusões metodológicas e
dar mais autonomia científica ao
100
jurista. Com esse objetivo, Kelsen
propôs o princípio da pureza,
segundo o qual o método e o objeto
específicos da ciência jurídica
deveriam ter o enfoque normativo,
isto quer dizer que, o direito deveria
ser visto como norma e não como
fato social ou valor transcendente.
Essa proposta causou polêmica, o que
resultou na acusação de reduzir o
direito à norma, ou seja, abandonar
a dimensão social e valorativa (para
alguns, despir o direito de caracteres
humanos), todavia não tenha sido
essa a sua intenção. Sem dúvida, o
direito é um fenômeno complexo,
mas no seu modo de ver deveria ser
observado autonomamente pelo jurista
sob pena de incorrer em debates
infindáveis.
O que podemos entender por norma
senão uma regra de conduta que poderá
ser moral,
religiosa e jurídica. As normas morais e religiosas
fundam sua obrigatoriedade na consciência pessoal;
as jurídicas são protegidas por uma eventual força
coercitiva externa. 138 Isto posto podemos focalizar o
conceito de norma em Kelsen. Para este autor,
normas são prescrições de dever-ser que conferem
ao
comportamento humano um sentido
prescritivo e, portanto, trata-se de
um comando, produto da vontade
humana que proíbe, obriga ou permite
determinado comportamento. Tércio
Sampaio Ferraz Jr. oferece o seguinte
exemplo: existe a categoria de ser e a
do dever ser; as prescrições são
prescrições de dever ser, ou seja, o
ato de levantar o braço em uma
palestra poderá ter dois sentidos, um
descritivo onde interessa apenas
observar que alguém levantou o braço
e um sentido prescritivo onde levantar
o
braço deve ser entendido como voto a favor de
uma proposta.
Essa norma adquire existência
independente de seu autor; essa
existência chama-se validade. Kelsen
compreende a ciência jurídica como
uma ciência pura de normas e as
investiga no seu encadeamento
hierárquico. A validade de uma
norma está ligada a normas
superiores que culminam numa
norma fundamental. Kelsen também
elaborou uma teoria da norma
fundamental onde a norma somente
será considerada jurídica e legítima
se, e somente se, for estabelecida em
conformidade com as prescrições
contidas na norma fundamental,
valorativamente neutra. Disto
decorre que todo o ordenamento
jurídico vale e é legítimo em função
dessa norma fundamental (constituição,
posta por um poder eficaz). Ainda
que haja uma norma injusta, será
válida e legítima desde que decorra
de uma norma fundamental legítima.
Kelsen foi grande defensor da
neutralidade científica aplicada à
ciência jurídica,
compreendendo a necessidade do direito se afigurar
como uma esfera autônoma em relação à moral e
a política. Para Kelsen, Direito e Estado se
confundem. Isto implica dizer que o Estado se
configura
num conjunto de normas
estabelecidas prescrevendo uma
sanção para determinados
comportamentos. Sem essa ordem
normativa, o Estado deixaria de existir
no sentido jurídico.
102
As normas jurídicas recebem o
qualificativo de válidas ou inválidas e
as proposições podem ser consideradas
como verdadeiras ou falsas. Ou
dizendo de outro modo, uma lei
poderá ser válida ou não conforme a
sua existência no mundo jurídico e
uma proposição acerca de uma lei
poderá ser ou não verdadeira; poderá
ocorrer que um jurista qualquer tenha
formulado um juízo equivocado
acerca da tal lei – sua proposição será
falsa.
5 - Validade e eficácia
A validade da norma jurídica para Kelsen
vincula-se inicialmente à sua relação com a
norma
fundamental, sobretudo no que concerne ao
problema da manifestação de vontade de uma
autoridade
competente: “A norma jurídica é válida se
emanada de autoridade com competência para
editá-la,
ainda que o respectivo comando não
se compatibilize com disposição
contida em normas de hierarquia
superior”.141
Como um legítimo
representante do pensamento jurídico-
positivista, Kelsen relaciona validade e
eficácia, a partir da dicotomia entre a
norma singularmente considerada e a
ordem positiva como um todo. A
validade exige também a eficácia da
norma jurídica e, nesse ponto, nosso
autor rejeita duas
idéias: a de que a validade não depende da
eficácia, como também, a de que validade e
eficácia se
identifiquem.
Qual seria a posição de Kelsen?
Observando as duas instâncias: a da norma
singularmente
considerada e a da ordem positiva, este autor
sustenta que as normas deixam de ser válidas se
perderem a eficácia. Validade e eficácia não são
termos sinônimos, mas guardam forte relação entre
si. Segundo Kelsen, a eficácia se
revela como condição de validade
em ambas as instâncias e nesse
sentido qualquer norma jurídica
totalmente ineficaz é inválida.
A reivindicação do representante do
tráfico organizado e a do agente fiscal
diferem
fundamentalmente por não ter a primeira validade
jurídica, na medida em que não se sustenta em
norma hipotética alguma; a segunda
reivindicação é válida, porque o
direito instituído pelo Estado se
revela eficaz e torna legítima tal
situação. A eficácia necessária à
vigência da ordem jurídica é medida
em termos globais, ou seja, se a
legislação de um país vigora, ainda
que alguns dos seus artigos sejam
totalmente ineficazes e
conseqüentemente inválidos. A
validade da ordem jurídica não
depende da eficácia de todas as
normas que a constituem. Todavia,
o inverso é possível, isto é, a
norma singularmente considerada
perde eficácia se houver ineficácia
global da ordem jurídica.
141 Coelho,
Fábio U. Para entender Kelsen. São Paulo: Max
Limonad, 1999, p. 41.
104
São três os pressupostos que condicionam
a validade da norma jurídica, a saber: 1.
A
competência da autoridade que a editou, com base
na norma hipotética fundamental; 2. O mínimo de
eficácia que desconsidera a inobservância
episódica ou temporária; 3. A eficácia global da
ordem
jurídica.
6 - Causalidade e imputação
O objeto da ciência jurídica
compreende as normas e, nesse
sentido, os cientistas do direito
operam de forma diferente dos
cientistas sociais, pois não
estabelecem relações de causalidade,
mas relações de imputação. Isto quer
dizer que, entre dois fatos como, por
exemplo, um homicídio e a punição
correspondente há uma ligação de
outra ordem e esta ligação é a
imputação. A sanção
referente ao homicídio não foi causada pela
conduta em si mesma, mas exige a prova de
seu
acontecimento. O direito pertence a uma ciência
normativa que não visa prescrever condutas, mas
tão
somente examinar as normas e estruturar seus
enunciados a partir do princípio da imputação.
Imputar significa atribuir
coisa desonrosa ou criminosa a uma
pessoa; creditar algo que não seja
evidente ou decorra analiticamente.
Causalidade significa uma relação
necessária e universal entre dois
termos no caso das ciências naturais,
ou uma ligação de causa e efeito
também utilizada
pelas ciências sociais como, por exemplo, a
sociologia que vincula por causalidade a taxa de
desemprego e o índice de violência.
Duas distinções são relevantes entre
causalidade e imputação, a saber: 1. A
imputação
depende da vontade humana; a causalidade
independe dessa interferência. Há o ponto inicial e
o
terminal, claramente definidos na proposição
jurídica. 2. A imputação não deriva de nenhum
outro
conseqüente imputado, não há uma
cadeia de sucessões; a causalidade
implica em infinitude, ou seja, uma
cadeia de sucessões.
7 - Direito e Justiça
Para Kelsen, a justiça possui
valor inconstante, relativo, dissolúvel
e mutável. Trata-se de um julgamento
de valor que possui caráter subjetivo.
A multiplicidade de valores sobre o
justo reafirma a possibilidade de o
direito positivo se chocar pelo menos
com algum sentido de justiça. Como
doutrinas morais não fazem parte do
conhecimento dos juristas, pois estes
estão preocupados com as normas
jurídicas, o direito positivo
desvincula-se de questões de justiça.
105
Parte IX - A teoria tridimensional
do direito: Miguel Reale (1910 -).
“A norma
jurídica é a
indicação
de um
caminho,
porém para
percorrer
um
caminho
devo partir
de
determinad
o ponto e
ser guiado
por certa
direção:
o ponto
de
partida
da
norma é
o fato,
rumo a
determin
ado
valor”. (Miguel Rea
1 - Introdução
Miguel Reale ocupa lugar de
destaque no pensamento filosófico-
jurídico brasileiro. Bacharel em
Direito desde 1934, sua vida foi
marcada por intensa participação nos
movimentos estudantis e políticos de
sua época. Foi professor de latim,
psicologia, direito comercial, legislação
fiscal, português,
escreveu inúmeros artigos e livros. Em 1941, aos
31 anos, ocupou a cátedra outrora ocupada por
João Arruda, com a apresentação da tese
Fundamentos do Direito . Com esta obra,
apresentou sua
concepção culturalista do Direito,
segundo a qual o estudo do fenômeno
jurídico somente será possível a partir
de um estudo integral, ou seja, uma
apreciação panorâmica e completa
dos elementos do Direito em
detrimento de uma postura unilateral
baseada apenas no fato jurídico.
Reale ressaltou a insuficiência
daqueles que defendiam “um
verdadeiro dualismo ou uma
justaposição de perspectivas, como se
houvesse um direito para o jurista e
um outro para o filósofo, cada um
deles isolado em seu
domínio, sem que a tarefa de um repercut isse, de
maneira direta e permanente, na tarefa do outro ” 142
Segundo exprime Cretella Júnior, Miguel
Reale tentou uma “síntese entre o sujeito
ético do
kantismo e o espírito histórico do hegelianismo”. 143
Reale formulou uma teoria tridimensional do direito
com caráter dialético relacionando três termos
(fato, valor e norma), de modo diferente das
diversas
teorias tridimensionais que correlacionaram norma,
fato e valor, ou seja, o aspecto fático, axiológico e
prescritivo do Direito, num sentido estático. Em seu
modo de ver:
2 - A tridimensionalidade da lei
Segundo Miguel Reale, no campo das
ciências sociais encontramos palavras que
apresentam
uma multiplicidade de acepções ao longo do devir
histórico. Nesse sentido, a palavra Direito assumiu
sentidos diferentes conforme interesses e
preferências que em cada momento histórico
recebeu
certo destaque. Inicialmente o homem vivenciava
o direito como um fato, depois essa idéia cedeu
lugar para a intuição do direito como
sentimento do justo e
conseqüentemente ao sentido de obrig
ação jurídica, que hoje se nos
apresenta como algo intuitivo e
evidente. A importância do Direito
Romano se afigura na ciência que
denominavam de jurisprudência
(senso prudente de medida) que
focalizava o Direito como norma. No
dizer de Reale, “Eis aí, por tanto,
através de um estudo sumário da
experiência das estimativas históricas,
como os significados da palavra
Direito se delinearam segundo três
elementos fundamentais: o elemento
valor, como intuição primordial; o
elemento norma, como medida de
concreção do valioso no plano da
conduta social: e, finalmente, o
elemento fato, como condição da
conduta, base empírica da ligação
intersubjetiva, coincidindo a análise
histórica com a da realidade
jurídica fenomenologicamente observada”.145
Miguel Reale observa que encontraremos
os três elementos onde quer que se
encontre a
experiência jurídica e é nesse modo de ver que
podemos falar em triplo enfoque do Direito.
Podemos
observar o Direito enquanto valor, estudado pela
Filosofia do Direito na parte denominada de
deontologia Jurídica; podemos ainda observá-lo
como norma ordenadora da conduta, objeto de
estudo
da Ciência do Direito ou Jurisprudência e da
Filosofia do Direito na esfera da Epistemologia;
também
podemos estudar o Direito como fato social e
histórico, objeto de investigação da Sociologia e
da
Etnologia do Direito e da Filosofia do Direito
na parte denominada Culturologia Jurídica . Para
entendermos melhor essa relação entre norma, fato e
valor, podemos pensar no exemplo oferecido por
107
Severo Hryniewicz: “tomemos um exemplo do
Direito Penal: a prática de um homicídio. Temos
primeiro
um fato – fulano matou sicrano. No fato está
implícito o atentado contra um valor ético
fundamental – o
valor da vida. E, por fim, temos uma norma
jurídica – artigo 121 do CP – que prevê uma
sanção para,
de algum modo, - compensar - o desrespeito ao
valor. Se não houvesse na base uma categoria
axiológica – o valor vida – não teriam sentido tanto
a elaboração de uma norma que visa à preservação
do valor vida, quanto todos os proced imentos
posteriores ao fato no âmbito penal”. 146
Reale afirma que a teoria tridimensional é
fruto da verificação objetiva da consistência
fático-
axiológica-normativa de qualquer porção ou
momento da experiência jurídica. É formada de
consciência de todas as implicações do direito – a
essência triádica do direito. Uma análise rigorosa
desta teoria implica formular
algumas questões: como se garante
a unidade a partir desses três
fatores? Como se correlacionam?
Como se distinguem?
Para Reale, fato, valor e norma estão sempre
correlacionados não importa o ponto de
vista: se
filosófico, sociológico ou jurídico. Tal correlação
possui natureza dialética, uma mútua implicação
entre
esses elementos – entre fato e valor
que implica em um momento
normativo. Segundo exprime nosso
autor, o direito “não é puro fato, nem
pura norma, mas é o fato social na
forma que lhe dá uma norma
racionalmente promulgada por uma
autoridade competente”.
A novidade da teoria de Reale está na
utilização do conceito de dialética, retirado
do sentido do
termo alemão lebenswelt, que significa mundo da
vida presente na obra Crise das Ciências do filósofo
alemão Edmundo Husserl (1859-1938) que
desenvolveu um pensamento crítico do positivismo
(em sua
pretensão de objetivism e verdade científica). Para
Husserl, toda consciência é intencional, ou seja,
não há consciência separada do
mundo, não há objeto em si, afastado
da consciência que o percebe. Isto
significa dizer que não há fatos com
objetividade pretendida, pois o mundo
que percebo é o mundo para mim. A
crise da ciência se desvela na sua
tentativa de redução da razão à
racionalidade científica. Na verdade, a
ciência não tem nada a nos dizer
sobre nossa liberdade. A mera ciência
do fato exclui o homem de sua
análise.
Assim, Reale insere o
conceito de dialética na relação entre
fato, valor e norma, a partir do
sentido de mundo da vida (
lebenswelt) que expressa o complexo
de noções, opiniões, regras, valores e
etc, ou seja, uma vida cultural que
está em constante acontecer, o
lugar de nossas originárias
formações de sentido. O direito está, portanto,
inserido na fervilhante experiência do mundo da
vida. E
essa tridimensionalidade não se limita à esfera
jurídica. A função da Filosofia para Reale está na
tarefa
de libertar a história da fetichização da ciência e da
técnica – da clausura para desvelar a verdadeira
humanidade. O mundo da vida é o mundo da
criatividade intencional da subjetividade.
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