11 - 26, (2005)
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A maioria dos resultados da dinâmica relativı́stica já havia sido obtida antes do artigo de Einstein de 1905.
A partir do eletromagnetismo, já haviam sido obtidas relações entre massa e velocidade, e massa e energia. Esses
desenvolvimentos foram devidos a uma crença generalizada no éter como sendo uma realidade fı́sica capaz de
produzir forças e que era dotado de propriedades mecânicas como massa, energia e momento. Este artigo descreve
o desenvolvimento dessas idéias e compara os resultados obtidos pelos partidários do éter com as propostas de
Einstein.
Palavras-chave: teoria da relatividade, Albert Einstein, dinâmica relativı́stica, história da fı́sica.
Most of the results of relativistic dynamics had already been obtained before Einstein’s 1905 paper. Rela-
tions between mass and velocity, and mass and energy, had already been obtained from electromagnetic theory.
Those developments were due to a widespread belief in the ether as a physical reality, that could produce forces
and was endowed with mechanical properties such as mass, energy and momentum. This paper describes the
development of those ideas and compares the results obtained by the ether partisans and Einstein’s proposals.
Keywords: relativity theory, Albert Einstein, relativistic dynamics, history of physics.
do pensamento de Aristóteles) acreditava-se que era im- cussões infindáveis e não proporcionando um conheci-
possı́vel que um corpo atuasse sobre outro sem con- mento firme, bem estabelecido. Quando Coulomb, no
tato; portanto, a ação de um ı́mã deveria ser explicada final do século XVIII, estabeleceu que as forças eletros-
através de alguma coisa que não vemos, que transmite táticas e magnéticas (entre os pólos de ı́mãs) obedeciam
a força entre o ı́mã e o pedaço de ferro [9]. à lei do inverso do quadrado da distância, parecia que
Quando Isaac Newton propôs a teoria gravitacional, todas as forças importantes da natureza obedeciam ao
no século XVII, ele não pensava que o Sol e os planetas mesmo esquema e que bastava conhecer essas leis para
se atraı́ssem por uma ação direta a distância. Imagi- explicar os fenômenos – sem ficar perguntando como
nava que deveria haver algum modo de explicar a um ı́mã consegue atrair ou repelir outro ı́mã.
gravitação, mas foi incapaz de encontrar um mecanismo
Quando Hans Christian Ørsted descobriu o eletro-
que explicasse os fenômenos conhecidos e que não intro-
magnetismo, em 1829, ele adotou outra postura. Para
duzisse enormes dificuldades fı́sicas. Por isso, preferiu
explicar como uma agulha magnética se posicionava
evitar hipóteses sobre isso, utilizando a gravitação para
perto do fio condutor ele supôs que a corrente elétrica
explicar os fenômenos observáveis, porém sem explicar
produzia turbilhões que giravam em torno do fio, pois
a própria gravitação. Em uma carta a Leibniz, Newton
não era possı́vel explicar o efeito através da idéia de
escreveu:
atrações e repulsões [12]. No entanto, sua proposta teve
pequena aceitação. Ampère mostrou que as forças entre
Pois como os movimentos celestes são
correntes elétricas podiam ser analisadas como simples
mais regulares do que se viessem de vórtices
atrações e repulsões e, supondo que um ı́mã é equi-
e obedecessem a outras leis, os vórtices
valente a um solenóide, explicou todos os fenômenos
em nada contribuem para regular e sim
eletromagnéticos que eram conhecidos utilizando a idéia
para perturbar os movimentos dos plane-
de forças a distância5 .
tas e cometas; e como todos os fenômenos
dos céus e do mar seguem-se precisamente, Foi Michael Faraday (1791-1867) quem, em meados
tanto quanto estou ciente, apenas de que a do século XIX, defendeu mais fortemente a idéia de que
gravidade age de acordo com as leis des- as forças eletromagnéticas são transmitidas por linhas
critas por mim; e como a natureza é muito de força que têm realidade fı́sica6 . Segundo ele, duas
simples; eu próprio concluı́ que todas as cargas elétricas que se atraem ou repelem não intera-
outras causas devem ser rejeitadas, e que gem diretamente a distância. Elas são puxadas ou em-
os céus devem ser despidos tanto quanto purradas pelas linhas de força, que seriam coisas reais,
possı́vel de matéria; caso contrário o movi- que se estendem pelo espaço e que transmitem as forças
mento dos planetas e cometas seria impe- entre as cargas. Cada carga elétrica era pensada por
dido e tornado irregular. Mas se, enquanto Faraday como uma pequena esfera dotada de “cabe-
isso, alguém explicar a gravidade e todas as los” que se espalhavam para todos os lados. Os “ca-
suas leis pela ação de alguma matéria mais belos” de uma carga elétrica negativa estariam sempre
sutil, e mostrar que o movimento dos plane- ligados a cargas elétricas positivas, e vice-versa. Ne-
tas e cometas não será perturbado por essa nhum desses fios ligaria duas cargas de mesmo sinal.
matéria, eu estarei longe de objetar. (New- Supondo que essas linhas de força são semelhantes a
ton, carta para Leibniz, 16 de outubro de molas que tendem a diminuir de tamanho era possı́vel
1693 em Newton, Correspondence, v. 3, entender que elas puxavam as cargas de sinais opos-
p. 287 [10]) tos umas para as outras. Além disso, supondo que
elas se empurram umas às outras lateralmente, era
A posição de Newton não foi corretamente com- possı́vel explicar os fenômenos de aparente repulsão
preendida por seus contemporâneos, e no século XVIII entre cargas de mesmo sinal ([17], §§1224-5, 1231,
quase todos os “newtonianos” afirmavam que a força 1297). Os efeitos magnéticos também seriam produzi-
gravitacional era uma ação direta a distância4 . A dos por linhas de força magnética, com propriedades
procura de hipóteses explicativas para a gravitação e semelhantes a essas ([17], §§3266-8, 3280, 3294-5; ver
outras forças (como eletricidade e magnetismo) parecia também [18]). Porém, a partir da descoberta do efeito
ser não apenas inútil mas até nociva, levando a dis- magneto-óptico7 , Faraday passou a considerar que as
4 Hesse [11] apresenta uma boa descrição histórica e análise filosófica da tensão existente entre a idéia de ação direta a distância e a
idéia de campo (que corresponde exatamente à suposição de que há um intermediário responsável pelas forças), nesse perı́odo.
5 Não é possı́vel, evidentemente, apresentar aqui todos os detalhes sobre o desenvolvimento do eletromagnetismo. Há uma boa obra
é descrita por Williams, 1965, capı́tulo 10 [14]. Ver também [15]. As idéias sobre linhas de força aqui apresentadas estão presentes nos
trabalhos que Faraday escreveu em torno de 1850 [16].
7 Tomando-se um sólido transparente (como o vidro) que não atua sobre a polarização da luz e colocando-o entre os pólos de um
forte eletroı́mã, vê-se que o material se torna opticamente ativo e que passa a girar o plano de polarização da luz, quando a luz tem um
movimento paralelo às linhas de força magnéticas. Isso indicava que cada linha do campo magnético tinha uma simetria semelhante à
A dinâmica relativı́stica antes de Einstein 13
linhas de força magnéticas possuı́am uma propriedade Não ficava muito claro, no trabalho de Faraday,
especial: elas girariam em torno de seu comprimento como as linhas de força elétricas e magnéticas intera-
([17], §§2162-75; [19]; [14], pp. 386-391) giam entre si.
Figura 1 - Faraday entendia a repulsão e atração entre cargas elétricas como efeitos indiretos, produzidos pelas linhas de força.
Essa é uma simplificação, que se destina a facilitar a leitura por parte dos fı́sicos atuais. A notação matemática utilizada no eletromag-
netismo durante o século XIX era geralmente diferente de atual [21].
14 Martins
com Maxwell, a energia eletrostática de uma carga não de um fio esticado. Por isso, a inércia da corrente
está dentro da carga, mas sim distribuı́da sob forma de elétrica é muito maior, também.
tensão no éter em sua volta. Segundo ele, a energia ele- Quando se estabelece uma corrente elétrica em um
trostática é uma energia potencial associada às tensões condutor, cria-se um campo magnético à sua volta, que
do éter ([20], §§109-10, 630, 638; [22]; [23]). armazena energia. Essa energia não pode desaparecer
Seguindo uma análise matemática que já havia sido e, quando se tenta interromper a corrente elétrica, essa
desenvolvida por William Thomson [24] Maxwell de- energia produz efeitos, como a faı́sca descrita acima. É
senvolveu essa idéia quantitativamente e mostrou que razoável aceitarmos, seguindo Maxwell, que essa ener-
a energia eletrostática associada a qualquer condutor gia do campo magnético é um tipo de energia cinética,
carregado podia ser calculada analisando-se o campo ou seja, uma energia associada ao movimento.
elétrico desse condutor, em todo o espaço ([20], §99a): Maxwell desenvolveu a teoria quantitativa desses
Z fenômenos e mostrou que era possı́vel calcular a ener-
1 gia associada à corrente elétrica em um fio a partir
We = εE 2 dV . (2)
2 do campo magnético no espaço em volta do condu-
tor. Em cada ponto do espaço onde há campos elétricos
Ainda utilizamos a mesma equação de Maxwell para e magnéticos há uma densidade de energia elétrica ρe
isso, atualmente; mas já não pensamos que estamos (energia potencial) proporcional ao quadrado do campo
calculando a energia potencial do éter, ao fazer esses elétrico E e uma densidade de energia magnética ρm
cálculos. (energia cinética) proporcional ao quadrado do campo
Na teoria de Maxwell, além de energia potencial, magnético H:
o éter tem também uma energia cinética, associada
ao campo magnético ([20], §630-638). Esse é um as- dW e εE 2
pecto da teoria que é mais difı́cil de entender. Só pode ρe = = , (3)
dV 2
haver energia cinética se houver movimento. Por que o
campo magnético deveria estar associado a movimentos
dW m µ
do éter? ρm = = H 2. (4)
dV 2
Há duas justificativas para essa associação. Em
primeiro lugar, as correntes elétricas produzem campos Em sua concepção, essa energia estaria sob a forma
magnéticos, e correntes elétricas representam o movi- de movimentos reais (de rotação) produzidos no éter,
mento de cargas. Portanto, há uma relação entre cam- pois ele aceitava que o efeito magneto-óptico de Fara-
pos magnéticos e movimentos e poderia ser possı́vel as- day era uma evidência do movimento rotacional do éter
sociar uma energia cinética a eles. em torno das linhas de força magnéticas ([20], §§636,
Mas há um segundo argumento, um pouco dife- 821, 831).
rente e mais significativo. Quando há uma corrente Nós continuamos a utilizar a fórmula de Maxwell,
elétrica percorrendo um fio e a corrente é interrompida mas já não pensamos que estamos calculando uma ener-
bruscamente (por exemplo, cortando-se o fio), aparece gia cinética do éter.
uma faı́sca, que indica que a corrente elétrica tem uma Se o campo elétrico está associado a movimentos no
tendência a se manter. Esse fenômeno é devido à auto- éter, deve haver também um momento vinculado a ele.
indução das correntes elétricas e foi considerado por E, na teoria de Maxwell, isso realmente ocorre. Porém,
Maxwell como semelhante à inércia dos corpos materi- o campo magnético em torno de um fio que transporta
ais ([20] §§546-7). Não se deve pensar que isso repre- uma corrente elétrica não é paralelo ao fio e sim per-
senta a própria inércia das cargas em movimento dentro pendicular a ele, formando cı́rculos concêntricos em
dos condutores. O fenômeno é de outro tipo, pois não torno do condutor. A direção do momento associado ao
depende apenas da intensidade da corrente elétrica e do campo magnético não pode ser, portanto, a direção das
comprimento do fio, mas também da forma do condu- linhas de força. Maxwell acabou por concluir que o mo-
tor. A auto-indução de um fio esticado é muito menor mento associado ao campo magnético tem a direção do
do que a de um fio enrolado sob a forma de uma bobina. potencial vetor 9 . Quando uma carga elétrica q (mesmo
Cortando-se o fio que liga uma bateria a um fio enro- parada) está em um campo magnético, ela tem um mo-
lado sob a forma de um solenóide aparece uma faı́sca mento p~ adicional, proporcional ao potencial vetor A ~
muito mais forte do que no caso em que a mesma ba-
teria está ligada ao mesmo fio, mas o fio está esticado, ~
p~ = q A. (5)
em vez de formar uma bobina ([20], §§548-9).
Maxwell mostrou que esses efeitos podem ser com- Portanto, o éter, na teoria de Maxwell, possui diver-
preendidos se associarmos a inércia da corrente elétrica sas propriedades mecânicas: ele produz forças e tensões
ao campo magnético que ela produz. Em um solenóide, (e pode produzir pressão, no caso da luz); contém ener-
o campo magnético é muito mais forte do que em torno gia cinética e potencial; e contém momento mecânico.
9O caminho que levou Maxwell a este conceito do potencial vetor é descrito em [25].
A dinâmica relativı́stica antes de Einstein 15
A versão final da teoria de Maxwell foi publicada magnético, é evidente que a energia magnética Wm as-
em 1873, em seu livro Treatise on electricity and mag- sociada à carga em movimento será proporcional ao
netism. A produção experimental de ondas eletro- quadrado da velocidade. O resultado da integração da
magnéticas por Heinrich Hertz (1857-1894), em 1887, densidade de energia magnética sobre todo o espaço é
foi uma importante confirmação da teoria [26]. Pode-se
dizer que, no final do século XIX, praticamente todos os q2 v2
Wm = , (8)
fı́sicos haviam se convencido de que a teoria de Maxwell 12ε0 πac2
descrevia corretamente todos os fenômenos conhecidos onde v é a velocidade da carga q, a é o seu raio e c é a
e que o éter eletromagnético realmente existia. velocidade da luz no vácuo.
A energia magnética de uma carga em movimento
(não muito rápido) é proporcional ao quadrado da sua
4. Análise de Thomson para uma carga velocidade, como a energia cinética K de uma partı́cula,
em movimento na fı́sica clássica:
Em 1881, utilizando a teoria de Maxwell, Joseph John mv 2
Thomson (1856-1940) estudou o movimento de uma K= . (9)
2
carga elétrica no vácuo, procurando analisar as suas Comparando-se as duas fórmulas, vê-se que a ener-
propriedades dinâmicas. Ele analisou as variações de gia magnética pode ser considerada como uma ener-
energia do campo eletromagnético devidas ao movi- gia cinética adicional, e a expressão entre parênteses na
mento da carga [27]10 . equação abaixo pode ser interpretada como uma “massa
Uma carga elétrica parada tem apenas campo eletromagnética”:
elétrico e energia eletrostática. Para uma carga q dis-
µ ¶
tribuı́da sobre a superfı́cie de uma esfera de raio a, o 1 q2
valor dessa energia eletrostática We é Wm = v2 . (10)
2 6ε0 πac2
Essa energia magnética poderia ser considerada
q2
We = . (6) como um tipo de energia cinética, em dois sentidos.
8ε0 πa
Primeiramente, porque já vimos que Maxwell e seus
Uma carga elétrica em movimento produz à sua seguidores consideravam que a energia magnética seria
volta um campo magnético, circular (como o que existe a energia cinética do éter. Em segundo lugar, porque
em volta de um fio conduzindo corrente elétrica). O a energia magnética relacionada com a carga em movi-
campo magnético produzido pela carga em movimento mento era proporcional ao quadrado de sua velocidade,
contém uma energia adicional, que não estava presente exatamente como na fórmula usual da energia cinética
quando a carga estava parada. Qual o valor dessa ener- de uma partı́cula.
gia adicional? A massa eletromagnética de uma esfera com carga
Primeiramente, era necessário saber qual o valor dos q seria, portanto, igual a:
campos elétrico e magnético, em cada ponto do espaço,
em torno da carga em movimento. Isso nunca havia q2
me = (11)
sido calculado, antes. 6ε0 πac2
Thomson supôs que, para velocidades baixas da Porém, já havı́amos visto que a energia eletrostática
carga, seu campo elétrico não muda muito com o movi- da mesma esfera era igual a
mento (ou seja, em primeira aproximação, o campo é
igual ao de uma carga parada). Assim, a energia do q2
We = . (12)
campo elétrico não depende da velocidade. Mas o movi- 8ε0 πa
mento da carga é equivalente a uma corrente elétrica e Portanto, a “massa eletromagnética” é proporcional
produz um campo magnético à sua volta. Em primeira à energia eletrostática associada à carga
aproximação, o valor desse campo magnético H é dado
por 4 We
me = . (13)
3 c2
~ = ~v × E,
H ~ (7) Essa fórmula não aparece no trabalho de Thomson
de 1881, mas é obtida facilmente a partir de seus re-
onde ~v é a velocidade da carga e E ~ é o seu campo sultados. Note-se sua semelhança com a relação rela-
elétrico em cada ponto do espaço. tivı́stica entre massa e energia, m = E/c2 . O fator
Como o campo magnético é proporcional à primeira numérico 4/3 será discutido posteriormente.
potência da velocidade e como a densidade de ener- Na época, esses resultados foram interpretados da
gia magnética é proporcional ao quadrado do campo seguinte forma. Uma partı́cula sem carga, para ser
10 O artigo de Thomson continha um pequeno lapso, que foi corrigido alguns meses depois por George Francis Fitzgerald (1851-
1901)[28].
16 Martins
acelerada até a velocidade v, precisa receber uma ener- Thomson deduziu novamente os mesmos resultados, por
gia K dada por K = 1/2mv 2 , correspondente ao tra- outro método, confirmando as equações de Heaviside
balho fornecido pela força aceleradora. Essa energia [32],[33].
fica armazenada na própria partı́cula. No caso de uma Atualmente é bastante fácil calcular o campo de
partı́cula carregada, além dessa energia cinética or- uma carga em movimento utilizando a teoria da relativi-
dinária, existe uma energia magnética adicional. Assim dade, que nos permite passar do campo eletrostático de
sendo, para acelerar a partı́cula carregada, a força ace- uma carga em repouso ao seu campo em relação a qual-
leradora deve fornecer uma energia total maior do que quer referencial. Mas, na época, essas transformações
no caso da partı́cula neutra. Essa energia pode ser re- ainda não eram conhecidas.
presentada por K’ = 1/2(m + me )v 2 , onde me é a massa Em 1896, utilizando os resultados de Heaviside, um
eletromagnética. estudante de J.J. Thomson chamado George Frederic
Como vimos, esse conceito de massa eletro- Charles Searle (1864-1954) provou que o campo de uma
magnética surgiu por comparação com a fórmula da carga pontual em movimento rápido é igual ao campo
energia cinética. Trata-se de um conceito especı́fico, de uma carga em forma de elipsóide, com seu compri-
que poderia ser chamado de “massa cinética” ou de “ca- mento reduzido na direção do movimento por um fator
q
pacidade de energia cinética eletromagnética”, se ado-
1 − v /c2 [34]. Ele deu a essa esfera achatada o nome
2
tarmos a nomenclatura proposta por Henri Poincaré
de “elipsóide de Heaviside”.
(1854-1912) e Paul Langevin (1872-1946)11 . Mais adi-
ante veremos que surgiram outros conceitos de massa No mesmo artigo, Searle calculou a energia asso-
diferentes desse. ciada ao campo de uma esfera carregada, obtendo um
Note-se que a massa eletromagnética e a energia resultado válido para altas velocidades. Esse resul-
cinética que lhe está associada não estão dentro da tado exato mostrou que a energia eletromagnética adi-
partı́cula e sim distribuı́das pelo éter em torno da carga, cional (ou seja, descontando a energia eletrostática de
ocupando um volume infinito. repouso) era igual a
Em 1895 (antes da descoberta do elétron), Joseph µ ¶
Larmor sugeriu que a matéria poderia ser simplesmente q2 c c+v
W = ln −2 . (14)
um conjunto de partı́culas elétricas e que, nesse caso, 8ε0 πa v c−v
toda a inércia poderia ser de origem eletromagnética.
Nesse caso, não existiria a “massa ordinária” 12 . Essa energia não é proporcional ao quadrado da ve-
Após o trabalho de J.J. Thomson, o éter tinha uma locidade, no caso de altas velocidades. Porém, desen-
nova propriedade mecânica: além de exercer forças, volvendo em série a fórmula acima, pode-se verificar
produzir pressões, ter energia potencial e cinética e um que ela se reduz ao resultado obtido por Thomson, no
momento magnético, existia também a massa eletro- caso de baixas velocidades,
magnética. Note-se que essa massa eletromagnética não
é a massa do próprio éter. É a massa associada a uma µ ¶
q2 v2 v4 v6
mudança no éter – pois o campo magnético produzido W = + 4 + 6 + ... . (15)
4ε0 πa 3c2 5c 7c
por uma carga em movimento seria justamente essa mu-
dança. Se a velocidade for próxima à velocidade da luz, a
energia eletromagnética da carga crescerá mais depressa
5. O campo de cargas em movimento do que o quadrado da velocidade da partı́cula. Isso
rápido poderia ser interpretado supondo que a massa eletro-
magnética aumenta com a velocidade.
Quando uma carga elétrica se move com alta velocidade A equação obtida por Searle mostrava que a energia
(comparável à velocidade da luz), o seu campo elétrico do campo eletromagnético de uma carga em movimento
se deforma e a análise de J.J. Thomson já não pode ser tenderia a infinito, quando a velocidade da carga ten-
aplicada. A própria energia elétrica em torno da carga desse a c. Portanto, seria necessário fornecer um tra-
depende da velocidade; e é necessário fazer um cálculo balho infinito para acelerar essa carga até a velocidade
mais complicado para a energia magnética da carga. da luz. Por essa razão, Thomson e Searle concluı́ram
O primeiro pesquisador que conseguiu calcular o que era impossı́vel acelerar uma carga a uma veloci-
campo de uma carga em movimento rápido foi Oliver dade igual ou superior a c [35]. Esse é um resultado
Heaviside (1850-1925), em um artigo publicado em 1889 bem conhecido da teoria da relatividade, que estava no
[31]. Esses cálculos eram muito complexos e alguns entanto sendo deduzido a partir de considerações pura-
autores criticaram o método operacional utilizado por mente eletromagnéticas, sem fazer uso dos postulados
Heaviside para chegar ao seu resultado. Por isso, J.J. da relatividade especial.
11 É possı́vel definir a massa inercial de diversas maneiras, e as diferentes definições levam a diferentes equações, no caso da teoria da
No caso em que a força é longitudinal, (dv/dt)v̂ é a até esse momento, não era relativı́stica – ou seja, não
aceleração longitudinal ~a// , e dG/dv pode ser interpre- utilizava em suas deduções o princı́pio da relatividade.
tado como a massa do elétron. Abraham a chamou de Note-se que, nos trabalhos desencadeados por J.J.
“massa longitudinal”. Thomson em 1881, a massa eletromagnética era cal-
Se a força é perpendicular à velocidade do elétron culada a partir de considerações de energia cinética.
(como no caso de uma força magnética que atua sobre Ou seja: tomava-se a equação K = mv 2 /2 como sendo
a partı́cula em movimento), os módulos da velocidade a relação fundamental a partir da qual se definia a
e do momento não sofrerão mudança, mas o elétron massa eletromagnética. Pode-se chamar esse conceito
será desviado e sua trajetória será circular. Nesse caso, de massa cinética. Posteriormente, na abordagem uti-
temos que lizada por Abraham, as massas eletromagnéticas (lon-
gitudinal e transversal) passam a ser calculadas a par-
~
dG dv̂ G d~v G tir da relação vetorial p~ = m~v , que é depois derivada
F~⊥ = =G = = ~a⊥ . (21)
dt dt v dt v em relação ao tempo para se obter as acelerações nos
A aceleração transversal ~a⊥ é a aceleração casos em que a força é paralela ou perpendicular ao
centrı́peta do movimento circular do elétron e G/v pode movimento da partı́cula. Então, utilizando-se a relação
ser interpretado como a massa do elétron. Abraham a F~ = m~a, obtêm-se as duas massas. Pode-se chamar
chamou de “massa transversal”. A partir da equação esse conceito de massa acelerativa.
do momento eletromagnético do elétron, obtemos os
seguintes valores para a massa longitudinal e transver-
sal: 7. A massa associada à luz
todas elas, massas inerciais (não envolvem conceitos estava em repouso, e na superfı́cie na parte da frente
de gravitação e peso). Na fı́sica clássica elas são um da caixa será menor. O motivo é, basicamente, que a
único conceito [51]. Na fı́sica relativı́stica, são distin- caixa aumenta de velocidade entre os momentos em que
tas e geralmente levam a resultados diferentes. Dessas a radiação é refletida na parede oposta e o momento em
três, considera-se que a mais fundamental (e que é uti- que atinge a superfı́cie.
lizada nas deduções atuais da teoria da relatividade) é Assim, a radiação produzirá uma força resultante
a massa maupertuisiana, ou seja, a massa que aparece contrária ao movimento da caixa. Portanto, para acele-
na relação p~ = m~v . rar a caixa cheia de luz é necessária uma força maior
Atualmente dizemos que a luz não tem massa. É do que para acelerar a mesma caixa sem radiação. Em
conveniente, portanto, esclarecer melhor esse ponto. outras palavras, a radiação aumenta a inércia da caixa.
A luz não possui massa de repouso. Ou seja: se O cálculo é bastante complicado, pois deve-se levar
fosse possı́vel reduzir a velocidade da luz (no vácuo) em conta a radiação que caminha em todas as direções,
e colocá-la em repouso, sua massa seria nula. Não é dentro da caixa refletora. O resultado, no entanto, é
possı́vel parar a luz, e pode-se perguntar que sentido uma relação bastante simples entre a energia total E
tem, então, falar sobre tal massa de repouso. Supo- da radiação e sua contribuição m à inércia da caixa17
nhamos que temos um pulso de radiação, de energia E,
se movendo na direção x, em um determinado referen- 4E
m= . (24)
cial S. Agora, suponhamos que um outro referencial S’ 3c2
se move na mesma direção e sentido. Quanto maior a O aumento de massa da caixa era proporcional à
velocidade desse referencial S’ em relação ao primeiro, energia da radiação dentro dela. Note-se que aqui, como
menor será a energia E’ da radiação em relação a ele, e no caso da teoria do elétron, aparece o fator numérico
menor será também sua massa (calculada pela equação 4/3. Isso não era um engano. A diferença entre essas
m’= E’/c2 ). Quando a velocidade desse referencial se equações e a famosa relação E = mc 2 será esclarecida
aproxima de c, a massa do pulso de radiação tende mais adiante.
a zero, em relação a ele. Não existe, portanto, con- Hasenöhrl também calculou a mudança da energia
tradição entre a idéia de que a massa de repouso da luz da radiação decorrente da aceleração da caixa. Ele
é nula, e a relação m = E/c2 aplicada à luz. provou que a radiação total seria uma função da veloci-
Em 1901 foi testada experimentalmente a existência dade da caixa. Portanto, quando a caixa é acelerada,
de uma pressão da luz em espelhos, que havia sido uma parte do trabalho realizado pelas forças externas é
prevista teoricamente por Maxwell em 1873. O resul- transformado em energia adicional da radiação. Como
tado positivo obtido por Pyotr Lebedew (1866–1912) a inércia da radiação é proporcional à sua energia, e
e por Ernest Fox Nichols (1869-1924) e Gordon Fer- como essa energia aumenta com a velocidade da caixa,
rie Hull (1870-1956), não constituiu nenhuma surpresa, a inércia total aumentará com a velocidade do sistema.
pois havia forte confiança na previsão [52], [53] e [54]16 . Quando a velocidade da caixa tende a c, sua inércia
Na verdade, esse efeito nem mesmo é uma propriedade tende a infinito.
especı́fica das ondas eletromagnéticas. Qualquer onda Se a temperatura interna da caixa aumentasse, a
que transporte energia (como o som ou ondas na água) energia da radiação também aumentaria. Por isso,
também produz uma pressão [56]. Hasenöhrl concluiu que a massa de um corpo depende
Essa confirmação experimental da pressão da luz, de sua energia cinética e de sua temperatura.
em 1901, levou a novos desenvolvimentos teóricos. Em Abraham, logo depois, mostrou que era possı́vel cal-
1904, Max Abraham calculou a pressão produzida pela cular de forma mais simples o momento total associado
radiação sobre uma superfı́cie em movimento, quando à radiação dentro da caixa em movimento. Utilizando
um feixe de luz atinge um espelho formando qualquer esse outro método, obteve um resultado igual ao de
ângulo com sua normal [57]. Utilizando os resultados Hasenöhrl. No entanto, note-se que os métodos uti-
de Abraham, Friedrich Hasenöhrl (1874-1916) estudou lizados eram diferentes e os conceitos envolvidos eram
a dinâmica de uma caixa cheia de radiação [58]. distintos. O que Abraham calculou foi a massa mauper-
Suponhamos uma caixa em forma de paralelepı́pedo, tuisiana da radiação dentro da caixa. O que Hasenöhrl
com arestas paralelas aos eixos x, y, z com superfı́cies calculou foi a contribuição da radiação para a massa
internas perfeitamente refletoras, cheia de radiação. acelerativa do sistema.
Se a caixa estiver em repouso, a radiação produzirá
pressões iguais em todas suas faces. Suponhamos, 8. O elétron de Lorentz
agora, que a caixa que estava em repouso é acelerada
paralelamente ao eixo x. A pressão da luz na superfı́cie Em 1892, Lorentz estudou o resultado nulo do experi-
da parte de trás da caixa será maior do que quando ela mento de Michelson e Morley, chegando à conclusão de
16 [55]descreve a história da busca da pressão da luz.
17 Hasenöhrlchegou inicialmente a um resultado um pouco diferente deste, em 1904, por um erro de integração. Seu engano foi
corrigido por Max Abraham no mesmo ano, e reconhecido por Hasenöhrl em 1905.
20 Martins
Posteriormente,
q ele passou a utilizar a expressão Portanto, a diferença entre as duas séries é um fa-
exata L = L0 1 − v /c2 , que representaria a contração
2 tor numérico no termo de segunda ordem em β = v/c.
dos corpos através do éter – ou, mais exatamente, a Quando a velocidade tende a zero, as duas fórmulas
razão entre as dimensões longitudinais e as dimensões dão o mesmo resultado para a massa eletromagnética
transversais do corpo deveria obedecer a essa relação. do elétron.
Inicialmente, Lorentz utilizou a equação apenas À primeira vista, pareceria fácil distinguir experi-
para objetos macroscópicos. Depois, ele assumiu que mentalmente qual das duas fórmulas é a mais adequada.
essa contração deveria se aplicar aos componentes mi- A questão não é tão simples, no entanto, pois a com-
croscópicos dos corpos, incluindo o elétron. Por isso, em paração é bastante indireta. Lorentz analisou os dados
1904 ele foi levado a desenvolver uma nova teoria dos experimentais de Kaufmann utilizando sua própria teo-
elétrons, semelhante à de Abraham (ou seja, baseando- ria e concluiu que as medidas eram compatı́veis tanto
se em cálculos de momento) mas utilizando um modelo com ela quanto com a teoria de Abraham.
de um elétron contraı́do, em vez de um elétron esférico
[61]. 9. O elétron de Bucherer
O processo de cálculo era semelhante ao utilizado
por Abraham. Apenas os limites geométricos de inte- Além dos modelos de Abraham e Lorentz, havia outras
gração eram diferentes. Lorentz obteve para o momento possibilidades. No mesmo ano em que Lorentz publi-
do elétron o seguinte valor cou sua teoria, Alfred Heinrich Bucherer (1863-1927)
propôs uma outra [62],[63]. Ele assumiu que o elétron
e2 1 se contraı́a devido ao movimento, como Lorentz havia
G= 2
q v. (26)
6ε0 πRc 2 assumido, mas supôs que o seu volume permanecesse
1 − v 2 /c
constante. Ou seja: o raio longitudinal do elétron con-
¡ ¢1/3
Seguindo a abordagem de Abraham, ele calculou a traı́do se tornaria L = R 1 − v 2 /c2 e o seu raio
partir do momento tanto a massa longitudinal quanto 0
¡ ¢
2 2 −1/6
transversal se tornaria L = R 1 − v /c , onde R
a massa transversal do elétron, obtendo os seguintes é o raio do elétron em repouso. A razão entre as duas di-
valores mensões obedeceria à equação de contração de Lorentz.
Independentemente de Bucherer, a mesma teoria foi
e2 1
m// = ³ ´3/2 , (27) proposta, no ano seguinte, por Paul Langevin [64]. Com
6ε0 πRc2 2 esse novo modelo, foram obtidas novas equações para
1− v 2 /c
as massas longitudinal e transversal do elétron:
e2 1
m⊥ = ³ ´1/2 . (28) e2 1
6ε0 πRc2 2 m// = ³ ´4/3 , (31)
1− v 2 /c 6ε0 πRc2 2
1 − v 2 /c
As equações de Lorentz parecem muito diferentes
das de Abraham (e são muito mais simples). No e2 1
m⊥ = 2 ³ ´1/3 . (32)
entanto, para baixas velocidades, elas dão resultados 6ε0 πRc 2
1 − v 2 /c
semelhantes. Se desenvolvermos em série a fórmula de
Abraham para a massa transversal do elétron, obtere- Eram possı́veis outros modelos diferentes desses.
mos Todas as teorias acima referidas supunham que a carga
do elétron estava espalhada sobre sua superfı́cie; mas
·µ ¶ µ ¶¸ ela poderia estar distribuı́da em todo o seu volume.
e2 1 1+β 1+β ∼ Além disso, podiam ser feitas outras hipóteses sobre a
m⊥ = ln −1 =
8ε0 πRc2 β 2 2β 1−β forma do elétron e sobre a distribuição de sua carga.
µ ¶
e2 2 2 Cada modelo levava a resultados diferentes para a
1 + β + .... (29) relação entre massa e velocidade.
6ε0 πRc2 5
Nos anos seguintes, Kaufmann publicou novos da-
No caso da fórmula de Lorentz, o desenvolvimento dos experimentais e comparou suas medidas às três teo-
em série dá o resultado rias do elétron descritas acima [65]. Ele concluiu que a
A dinâmica relativı́stica antes de Einstein 21
demonstrações) alguns dos resultados do artigo mais longo. Já se escreveu muito a respeito das semelhanças e diferenças entre a con-
tribuição de Poincaré e o trabalho de Einstein. Ver [69] (que traduziu uma grande parte do artigo de 1906 de Poincaré); [70]; [71];
[50].
19 A abordagem de Poincaré não é aceita por todos os autores. F. Rohrlich e outros fı́sicos criticaram a introdução da tensão de
Poincaré e tentaram estabelecer a compatibilidade entre a eletrodinâmica e a relatividade especial por um caminho diferente. Parece,
no entanto, que Poincaré não estava errado, e que existem duas abordagens diferentes igualmente viáveis: a de Poincaré e a de Rohrlich.
Ver [72].
22 Martins
• As transformações das grandezas eletromag- relações entre massa e energia para casos especı́ficos
néticas; [75]. Einstein não provou que essa relação era geral,
apenas a deduziu em um caso particular e depois propôs
• A maior parte da dinâmica relativı́stica. que fosse considerada aplicável a todos os casos. Ela,
na verdade, não é geral. Não se aplica a sistemas exten-
Os principais resultados da dinâmica relativı́stica
sos submetidos a pressões (como foi explicado acima) e
que haviam sido obtidos antes de Einstein eram:
não se aplica à energia potencial (quando um elétron se
• A equação da variação da massa do elétron com move em um campo externo, sua massa não deve ser
a velocidade; calculada levando-se em conta sua energia potencial)20 .
Além disso, no estudo relativı́stico de meios contı́nuos,
• A relação entre fluxo de energia e densidade de o conceito de massa inercial maupertuisiana deixa de
momento; ser aplicável, pois a relação p~ = m~v se torna inválida.
De fato, no caso de sistemas extensos, o momento e
• A relação entre massa e energia, em alguns casos
a velocidade podem ter direções diferentes e, assim, a
especı́ficos (sem formulação geral).
equação p~ = m~v deixa de ter sentido. É possı́vel uti-
Esses resultados não foram obtidos de forma rápida lizar a equação E = mc 2 como se fosse uma definição
nem foram o resultado da “genialidade” de uma única geral de um tipo de massa relativı́stica, como propõem
pessoa. Foram construı́dos gradualmente, por um con- muitos autores; porém, nesse caso, a massa obtida não
junto de pesquisadores, conforme relatado neste artigo. pode ser utilizada para calcular o momento e outras
Alguns deles são bem conhecidos (Thomson, Lorentz, propriedades de sistemas extensos com tensões, meios
Poincaré), mas há muitos outros que contribuı́ram de contı́nuos ou partı́culas dotadas de energia potencial.
forma fundamental para a criação da teoria relativı́stica Minha opinião pessoal é de que a relação E = mc 2 não
e de quem nunca se fala. foi uma boa contribuição de Einstein, pois até hoje ela
O que Einstein introduziu de novo, então, em 1905? prejudica a compreensão da teoria da relatividade.
Há três novidades, fundamentalmente, no trabalho
de Einstein. Uma delas é a estruturação da teoria da
A terceira novidade do trabalho de Einstein de 1905
relatividade de um modo muito mais simples do que
é epistemológica e não fı́sica. Ele negou a validade da
os trabalhos de Lorentz e Poincaré. Einstein deduziu
idéia de éter, alegando que a fı́sica apenas deveria li-
os resultados básicos (a cinemática relativı́stica) a par-
dar com aquilo que pode ser observado e medido [77].
tir de dois postulados (o princı́pio da relatividade e o
Outros autores, como Lorentz e Poincaré, aceitavam
princı́pio da constância da velocidade da luz). Os dois
que o éter não podia ser detectado, mas consideravam
princı́pios não eram novos, é claro. O primeiro (da rela-
que esse conceito era útil, pois permitia compreender os
tividade) já havia sido proposto claramente, com esse
fenômenos de ação a distância e de propagação da luz.
mesmo nome, por Poincaré. O segundo era uma con-
Aceitar ou não o éter não era uma questão cientı́fica,
seqüência direta da suposição de que existia o éter e que
propriamente dita, pois não podia ser decidida por ex-
a luz era uma onda que se propaga nesse meio. Embora
perimentos. Ou seja: nenhum experimento provou que
ambos os princı́pios fossem aceitos pelos fı́sicos anteri-
existia o éter e nenhum experimento provou que ele não
ores, foi Einstein quem mostrou que todas as deduções
existia. Se fosse possı́vel medir a velocidade da Terra
se tornavam muito mais simples se eles fossem assumi-
em relação ao éter, não seria apenas a teoria de Eins-
dos como o ponto de partida básico (ou seja, se fossem
tein que teria que ser abandonada: as de Lorentz e
assumidos como postulados). Não há dúvidas de que
Poincaré também cairiam por terra. Todos os experi-
isso foi uma importante contribuição. Note-se, no en-
mentos que confirmaram a teoria de Einstein confir-
tanto, que a mesma coisa ocorre, normalmente, quando
maram também as teorias de Lorentz e Poincaré. Na
se elabora uma versão didática de uma teoria cientı́fica.
verdade, nem mesmo se deve dizer que essas são teorias
Quando Maxwell publicou seu Treatise of electricity
diferentes. É melhor dizer que são interpretações dife-
and magnetism, sua teoria foi apresentada de um modo
rentes da mesma teoria fı́sica, pois suas conseqüências
confuso, difı́cil de entender. Obras posteriores, como o
observáveis são idênticas.
livro em que Poincaré expôs a teoria de Maxwell [74],
eram muitı́ssimo mais simples, com deduções claras e
simples. Pode-se dizer que o trabalho de Einstein de É importante esclarecer que esse terceiro aspecto é
1905 está para os trabalhos de Poincaré e Lorentz como totalmente independente dos outros. Não é necessário
a formulação didática de uma teoria está, normalmente, abandonar o éter para utilizar os dois postulados da teo-
para sua primeira proposta. ria da relatividade. Além disso, é importante enfatizar
A segunda novidade de Einstein, em 1905, foi pro- que o próprio Einstein, em 1920, mudou de opinião a
por a equação E = mc 2 como uma relação geral da sua respeito do éter. Em uma conferência ministrada nesse
teoria. Antes dele, vários autores já haviam encontrado ano, ele afirmou:
20 Ver, a esse respeito, a dissertação de mestrado de Sı́lvia Petean [76].
A dinâmica relativı́stica antes de Einstein 23
Recapitulando, podemos dizer que, de acor- lado, eles proporcionaram uma teoria dinâmica do éter,
do com a teoria da relatividade geral, o mostrando que era possı́vel atribuir forças, pressões,
espaço tem qualidades fı́sicas; neste sentido, energia, momento e massa ao campo eletromagnético.
portanto, existe um éter. De acordo com Por outro lado, ao estudar as partı́culas fundamentais
a relatividade geral, um espaço sem éter é da matéria, essas relações foram aplicadas ao elétron,
impensável [Gemäß der allgemeinen Rela- e sua dinâmica tornou-se uma conseqüência do eletro-
tivitätstheorie ist ein Raum ohne Äther un- magnetismo. Assim, parecia que a teoria mais fun-
denkbar]; porque em tal espaço não have- damental da natureza era o eletromagnetismo e que a
ria propagação da luz, nem possibilidade de própria matéria poderia ser explicada a partir do éter.
padrões de espaço e de tempo (regras de me- No inı́cio do século XX já havia experimentos que
dida e relógios), nem intervalos de espaço- mostravam que a luz exercia pressão (e, portanto, trans-
tempo, no sentido fı́sico. (Einstein, 1920, portava momento) e que a massa do elétron variava
p. 32) com sua velocidade. Isso reforçava as teorias sobre a
dinâmica do éter e sobre o eletromagnetismo.
Seja qual for o significado preciso do pensamento de Alguns fı́sicos acreditavam que o eletromagnetismo
Einstein em 1920, podemos perceber que nessa época seria suficiente para explicar todas as leis da matéria.
a palavra “éter” deixou de ser um palavrão, para ele. Poincaré, no entanto, mostrou que isso era impossı́vel
Talvez isso ajude o leitor a ter menos preconceitos em e que era necessário introduzir forças que não tinham
relação aos fı́sicos que aceitavam o éter, no inı́cio do natureza eletromagnética, na teoria do elétron. Porém,
século XX. mesmo sem esclarecer que tipo de forças eram essas,
Se Einstein nunca tivesse nascido, o desenvolvi- ele mostrou que era possı́vel elaborar uma teoria que
mento da fı́sica relativı́stica teria sido ligeiramente incluı́a tanto essas tensões quanto o eletromagnetismo,
diferente. Provavelmente a idéia do éter continuaria e que era compatı́vel com o princı́pio da relatividade.
a ser aceita por quase todos (embora fosse rejeitada pe- Note-se que o desenvolvimento da relação entre
los empiristas do inı́cio do século). Poderia também de- massa e velocidade e entre massa e energia dependeu
morar bastante para que outra pessoa produzisse uma de muitas contribuições diferentes, por muitos fı́sicos
versão das teorias de Lorentz e Poincaré que fosse mais distintos. Essa é a regra, não a exceção, na história da
simples e fácil de manipular. Mas praticamente todos ciência. Atribuir uma teoria complexa, como a relativi-
os resultados fı́sicos da teoria da relatividade especial dade, a uma única pessoa, é uma distorção completa
surgiram antes de Einstein, e nesse sentido a história da história. Para entendermos por quê se atribui a
da fı́sica poderia ter prescindido de seu nascimento. teoria unicamente a Einstein é necessário explorar as
A maior parte do desenvolvimento posterior da dimensões sociológicas da ciência, assim como alguns
teoria da relatividade especial foi também realizada fatores psicológicos da humanidade – como a necessi-
por outros pesquisadores – e não por Einstein. A dade generalizada (e infantil) de acreditar em heróis.
termodinâmica relativı́stica foi desenvolvida por Max Os fı́sicos geralmente elogiam Maxwell pelas suas
Planck, que também esclareceu as propriedades rela- quatro equações (que ele nunca escreveu) e procuram
tivı́sticas de sistemas extensos submetidos a forças ex- esquecer e perdoar sua crença no éter (que era central
ternas [73], [79]. A introdução do formalismo quadridi- em seu pensamento). Vimos, no entanto, que o conceito
mensional espaço-temporal foi iniciada por Poincaré e de éter, tão desprezado hoje em dia, teve um impor-
completada por Minkowski [80]. A formulação tensorial tante papel no desenvolvimento de estudos dinâmicos
do eletromagnetismo relativı́stico foi feita por Abra- que levaram a alguns dos mais importantes resultados
ham e Minkowski [81], [82]. A dinâmica relativı́stica da teoria da relatividade.
de meios contı́nuos foi completada por Max von Laue, De Maxwell a Lorentz e Poincaré, passando por
que foi quem criou o tensor de momento-energia ([83], Thomson, Heaviside, Poynting, Abraham e muitos ou-
[84], [85]). Todos esses avanços tiveram também con- tros, a crença no éter como o substrato fı́sico funda-
tribuições de muitos outros pesquisadores. Porém, mental dos fenômenos eletromagnéticos guiou o estudo
Einstein esteve alheio a esses importantes desenvolvi- de suas propriedades dinâmicas. Sem essa crença, os
mentos. Parece que, se Einstein tivesse morrido logo desenvolvimentos descritos neste artigo não poderiam
depois de publicar seus trabalhos de 1905, isso não ter ocorrido pois ninguém pensaria em atribuir ener-
teria feito nenhuma diferença significativa no desen- gia, momento e massa ao espaço vazio. Portanto, a
volvimento da teoria da relatividade especial. crença no éter e o estudo de suas propriedades foi
um passo fundamental no desenvolvimento da dinâmica
12. Conclusão relativı́stica.
É claro que a confirmação de diversas conseqüências
O desenvolvimento do eletromagnetismo de Maxwell, da teoria do éter não são uma prova de que o éter exis-
através de seu próprio trabalho e do de seus continua- te – exatamente como a confirmação de diversas con-
dores, levou a uma nova visão de mundo. Por um seqüências de qualquer teoria (incluindo a relatividade
24 Martins
de Einstein, ou a mecânica quântica) nunca pode ser [11] M. Hesse, Forces and Fields. The Concept of Action
considerada uma prova de que a teoria está correta. at a Distance in the History of Physics (Philosophical
A teoria que atingiu seu ápice nas mãos de Lorentz Library, New York, 1961).
e Poincaré não era a teoria de Einstein. Suas visões [12] R.A. Martins, Cadernos de História e Filosofia da
de mundo eram diferentes. Eles aceitavam o éter, em- Ciência 10, 102 (1986).
bora também aceitassem que era impossı́vel detectar o [13] O. Darrigol, Electrodynamics from Ampère to Einstein.
movimento em relação a esse meio. Sua abordagem (Oxford University Press, New York, 2000).
epistemológica era também diferente da de Einstein.
[14] L.P. Williams, Michael Faraday (Basic Books, New
No entanto, quase todas as previsões cientı́ficas da teo- York, 1965).
ria de Einstein já estavam lá, nos artigos publicados
antes de seu primeiro trabalho de 1905. O conteúdo [15] N.J. Nercessian, Faraday’s Field Concept, editado por
D. Gooding e F.A.J.L. James Faraday Rediscovered.
empı́rico dessas duas teorias é idêntico. Por mais es-
Essays on the Life and Work of Michael Faraday, 1791-
tranho que pareça, é impossı́vel distinguir, por qualquer
1867 (American Institute of Physics, New York, 1989)
experimento, a interpretação de Lorentz e Poincaré da p. 174-187.
interpretação de Einstein.
[16] M. Faraday, Philosophical Magazine [series 4] 3, 401
(1852).
Agradecimento [17] M. Faraday, Experimental Researches in Electricity,
editado por Robert Maynard Hutchins, Great Books
O autor agradece o apoio que tem recebido da Fundação of the Western World. (Encyclopaedia Britannica, Inc,
de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo Chicago, 1952).
(FAPESP) e do Conselho Nacional de Desenvolvimento
[18] D. Gooding, Historical Studies in the Physical Sciences
Cientı́fico e Tecnológico (CNPq) para a realização de
11, 231 (1981).
suas pesquisas. Uma versão em inglês, um pouco
diferente do presente artigo, está sendo publicada em [19] B. Spencer, Isis 61, 34 (1970).
Physics Before and After Albert Einstein: An Histor- [20] J.C. Maxwell, Treatise on Electricity and Magnetism
ical Perspective, edited by M.M. Capria (Amsterdam: (Dover, New York, 1954), 3rd ed.
IOS Press, 2004). O autor agradece ao prof. Capria [21] C.C. Silva, Da Força ao Tensor: Evolução do Con-
a autorização para publicar a presente adaptação em ceito Fı́sico e da Representação Matemática do Campo
português. Eletromagnético (Universidade Estadual de Campinas,
Campinas, 2002).
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