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ARTIGO TEMÁTICO

NOTAS BREVES SOBRE


A INFÂNCIA NOS CONTOS
DE CLARICE LISPECTOR*

Flavia Trocoli1

Resumo: este texto parte do pressuposto segundo o qual se lê um tex-


to sempre em relação a outro, implícita ou explicitamente, e propõe-se
a indicar caminhos para pensar os modos de representação da infância
em alguns textos de Clarice Lispector. Dessa proposta, apreende-se que
a infância em Lispector sempre se desvia da idealização e da moral insti-
tuída e, seguindo esta vertente afastada de toda simplificação, mostrarei
também que, também ao escrever para crianças, a autora coloca em cena
sofisticados procedimentos narrativos.

Palavras-Chave: Clarice Lispector; Infância; Literatura Infantil.

1. CHAPEUZINHO VERMELHO: ENTRE TEXTOS QUE SE DEVORAM

A  ntes de entrar nos textos de Clarice Lispector (1920-1977),


gostaria de fazer um breve passeio pelos desvios, distorções,
transformações, sofridos pela história de Chapeuzinho Vermelho.
Harold Bloom, autor do célebre e polêmico O cânone ocidental: os

* Recebido em 06/06/2014, aceito em 11/11/2014.


1 Doutora em Teoria da História Literária pela UNICAMP; Professora Adjunta
do Departamento de Ciência da Literatura da Universidade Federal do Rio
de Janeiro. Pesquisadora do Centro de Pesquisas Outrarte / IEL/ UNICAMP.
E-mail: <flavia.trocoli@gmail.com>.

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Livros e a Escola do Tempo, constrói sua teoria da poesia a partir
de interpretações, distorções e deslocamentos que faz dos textos
de Vico (1668-1744), de Nietzsche (1844-1900) e de Freud (1856-
1939). Posicionando-se explicitamente contra as correntes de
estudo que restringem a interpretação das obras literárias a con-
dicionantes sociais, Harold Bloom afirma a primazia do estético
e a relação entre grandes textos, entre grandes poemas, entre
grandes autores. Ao afirmar que crítica é a arte de conhecer os
caminhos que vão de um poema a outro, Bloom força a crítica
literária a repensar conceitos como: originalidade, antecedência,
influência, intertextualidade.
Em A angústia da influência, Bloom monta sua teoria da
poesia, em que um poema é lido retroativamente como inter-
pretação, desvio e distorção de outro-poema. O conceito de “an-
gústia da influência” dramatiza as relações entre um poema e o
poema-pai-precursor. Angustiar-se, a partir de Bloom, é saber
presentificada a possibilidade de ser assimilado, devorado ou
confundido na e pela voz-do-Outro-poema precursor. Sair da
angústia é saber passar com ela e por ela através dos desvios,
distorções. Impossível não assinalar que, nas versões moralizan-
tes de Chapeuzinho Vermelho, desviar-se implica a devoração da
protagonista como punição, enquanto que, na crítica literária de
Bloom, desviar-se implica conquistar a própria voz e ser salvo de
ser devorado pelo outro.
Para fazer ressoar a bela metáfora de Bloom, em The bre-
aking of the vessels, escrever literatura é quebrar e remontar o
vaso sabendo que algo sempre faltará, que a incompletude é o
destino, assim como o equívoco e a repressão mostram que a
voz-do-Outro-poema, depois da quebra, da perda, ganhou uma
nova forma, é um novo poema que, no entanto, esconde e revela
a voz vinda de outro lugar, de outros livros, guarda marcas do
texto que foi assimilado e transformado.
Primeiramente, é preciso dizer que tais transformações não
têm medida exata, pois é sabido que, em suas origens, a história

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de Chapeuzinho Vermelho pertenceu exclusivamente ao regis-
tro oral. Os estudiosos dos contos de fada consideram o francês
Charles Perrault (1628-1703) o primeiro autor a nos oferecer um
registo escrito da narrativa em 1697 em um volume assim intitu-
lado: Histoires ou Contes du temps passé, avec des moralités. Diz a
especialista Maria Tatar:

“A coletânea de contos de fadas de Perrault inclui histórias


que vieram a integrar o cânone clássico: A Bela Adormecida,
Chapeuzinho Vermelho, Barba Azul, O pequeno Polegar, As
fadas, Riquet o Topetudo e O mestre gato ou O Gato de Bo-
tas. Transplantando contos populares de suas origens cam-
ponesas para uma cultura cortesã que valorizava uma forma
literariamente estilizada e toques extravagantes, Perrault
produziu um volume com um apelo popular sem preceden-
tes. Histórias que antes haviam sido vistas como vulgares e
grosseiras com efeitos grotescos e burlescos, foram implan-
tadas no centro de uma nova cultura literária, uma cultura
que pretendia socializar, civilizar e educar crianças.” (TA-
TAR, 2004, p. 355)

Portanto, é a partir dessa escrita que o estudioso da lite-


ratura pode inserir Chapeuzinho Vermelho na tradição literária
e pensar suas transformações num âmbito mais propriamente
literário e menos histórico ou antropológico. O que quer dizer
pensar privilegianto o âmbito literário? Quer dizer que, na leitu-
ra do texto, se dará prioridade às transformações das categorias
narrativas – narrador, tempo, personagem, espaço, enredo.
Não nos esqueçamos que o objetivo moralizante é apre-
sentado já no título da coletânea de Perrault: Histórias ou Contos
do tempo passado, com moralidades. Entretanto, tal objetivo não
é dito e explicado nas linhas do conto, a moral não se apresenta
de qualquer maneira, ela está sugerida através da força e da efi-
ciência das rimas para a memorização:

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“Moral
Vemos que as meninas,
E sobretudo as mocinhas
Lindas, elegantes e finas,
Não devem a qualquer um escutar.
E se o fazem, Não é surpresa
Que do lobo virem o jantar.
Falo “do” lobo, pois nem todos eles
São de fato equiparáveis.
Alguns são até muito amáveis
Serenos, sem fel nem irritação.
Esses doces lobos, com toda educação,
Acompanham as jovens senhoritas
Pelos becos afora e além do portão.
Mas ai! Esses lobos gentis e prestimosos,
São, entre todos, os mais perigosos.”
(Apud TATAR, 2004, p. 338)

E é essa moralidade, conforme veremos, que será distorci-


da e desviada pelos autores modernos de Chapeuzinho Vermelho:
Anne Sexton, Chico Buarque, Clarice Lispector, Guimarães Rosa.
Antes deles, passemos pelos irmãos Grimm.
Em 1812 e 1815, Jacob e Wilhelm Grimm publicam Contos
da infância e do lar com o objetivo claro de compilar, em registro
erudito, os contos populares alemães, ameaçados pela urbani-
zação e pela industrialização. Inicialmente, o projeto de reunião
das histórias populares tinha um caráter documental, mas no
decorrer dos anos os irmãos Grimm foram revisando as histórias
de modo que elas se tornaram uma leitura adequada e educativa
para crianças na hora de dormir. Para adequá-las, eliminaram as
referências à gravidez fora do casamento e o humor vulgar sem,
contudo, abrandar a violência.
Se Charles Perrault encerra sua adaptação literária da Cha-
peuzinho Vermelho com o lobo devorando a menina, os irmãos

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Grimm inserem a figura do caçador que salva a menina e sua
avó. Na versão dos Grimm, diferentemente da versão de Perrault,
a mãe de Chapeuzinho dá instruções claras sobre como ela deve
se comportar: não se desviar do caminho, não esquecer de dar
bom-dia à avó e não ficar bisbilhotando a casa. Tais palavras são
retomadas pela própria Chapeuzinho após ser salva pelo caça-
dor: “Chapeuzinho Vermelho disse consigo: ‘Nunca se desvie do
caminho e nunca entre na mata quando sua mãe proibir.” (Apud
TATAR, 2004, p. 35) A moral, aqui extraída pela própria menina
e não pelo narrador anônimo, também aparece numa segunda
versão da história que os irmãos Grimm narram em seguida: “Há
uma história sobre uma outra vez em que Chapeuzinho Verme-
lho encontrou um lobo quando ia para a casa da avó, levando-lhe
uns bolinhos. O lobo tentou desviá-la da trilha, mas Chapeuzi-
nho Vermelho estava alerta e seguiu em frente.” (Apud TATAR,
2004, p. 35)
No século XX, mais precisamente em 1954, encomendam
ao escritor Italo Calvino (1923-1985) a escolha e transcrição de
narrativas populares italianas de maneira que a antologia fosse
comparável àquelas de Perrault e dos Grimm. Calvino aceita o de-
safio e escreve também uma bonita Introdução ao livro, que se
intitulou Fábulas italianas: coletadas na tradição popular e trans-
critas a partir de diferentes dialetos, não quero deixar de citar o au-
tor testemunhando sobre a dificuldade e o fascínio de sua tarefa:

“Em meio a tudo isso, apoiava-me no provérbio toscano caro


a Nerucci: ‘La novella num è bella, se sopra num ci si rapella”,
a novela vale por aquilo que nela tece e volta a tecer quem
a reproduz, por aquele tanto de novo que a ela se agrega ao
passar de boca em boca. Decidi tornar-me, também eu, um elo
da anônima cadeia sem fim pela qual as fábulas se perpetuam,
elos que não são jamais puros instrumentos, transmissores
passivos, mas (e aqui o provérbio e Benedetto Croce se en-
contram) seus verdadeiros ‘autores’.” (CALVINO, 2006, p. 23)

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A falsa avó foi o título que Calvino deu à sua Chapeuzinho
Vermelho. O autor escolhe para a narração a forma direta do diá-
logo, ou seja, a cada personagem é dado o direito de falar, a nar-
ração indireta, pela voz do narrador, resume-se a pouquíssimas
linhas.
No primeiro e mais extenso parágrafo, composto de qua-
tro linhas, o narrador não começa com o “Era uma vez”, apenas
conta que uma dona de casa precisa de uma peneira empresta-
da e manda a filha buscá-la na casa da avó. A menina prepara
uma cesta com merenda e se põe a caminho. Os diálogos se dão
com o Rio Jordão, que pede roscas para deixá-la passar, e com
a Porta Gradeada, que pede pão com óleo para suas dobradiças
enferrujadas. Na casa da avó, temos mais um parágrafo narrado
em terceira pessoa: “O aposento estava escuro. Quem estava na
cama era a Ogra, não a avó, pois a avó fora devorada inteirinha
pela Ogra, da cabeça aos pés, menos os dentes, que pusera para
cozinhar numa panelinha, e as orelhas, que pusera para fritar
numa frigideira.” (CALVINO, 2006, p. 280).
Em seguida, começa mais um longo diálogo entre a menina
e a Ogra. Quando percebe que, “com ou sem pelos, a avó jamais
tivera um rabo”, aquela deveria ser a Ogra, a menina pede para
ir fazer as suas necessidades e a Ogra, disfarçada de avó, manda
que ela vá pelo alçapão amarrada por uma corda. A menina desce
e amarra uma cabra em seu lugar e escapa da Ogra.
A versão italiana de Calvino não tem lição de moral como
em Perrault ou nos Grimm. A Ogra é quem é enganada, a menina
é salva por sua própria astúcia e sobre a avó só se sabe que foi
devorada. O diálogo entre a menina e a Ogra apresenta um des-
vio interessante:

“- Por que tem as mãos tão peludas, vovó?


- Por causa dos muitos anéis que usava nos dedos.
Tocou em seu peito.
- Por que tem o peito tão peludo vovó?

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- Por causa do monte de colares que usava no pescoço.
Tocou em seus quadris.
- Por que quadris tão peludos, vovó?
Porque usava um espartilho muito apertado.”
(CALVINO, 2006, p. 280)

Alguns comentadores de Chapeuzinho Vermelho classificam


como “absurdo” o diálogo entre Chapeuzinho e o lobo: “como a
menina não percebe que aquele peludo deitado na cama não é
sua avó!!”. O que me interessa destacar é que a literatura é mes-
mo o espaço para o absurdo, para a falta de sentido, para o inex-
plicável, enfim, para o estranho que, como nos ensinou Sigmund
Freud, só se tornou estranho porque um dia nos foi íntimo. Prova
disso que retorna de maneira estranha é que tal diálogo entre a
Chapeuzinho e o lobo é insistentemente retomado e transforma-
do pelos outros autores do conto de fadas. Calvino, por exemplo,
o tornou ainda mais esquisito fornecendo uma explicação que
não explica em nada os pelos da avó.
Antes de passarmos a outras versões da Chapeuzinho,
lembremos o famosíssimo diálogo, na versão de Perrault:

“Chapeuzinho Vermelho tirou a roupa e foi se enfiar na cama,


onde ficou muito espantada ao ver a figura da avó de camiso-
la. Disse a ela:
‘Minha avó, que braços grandes você tem!’
‘É para abraçar você melhor, minha neta.’
‘Minha avó, que pernas grandes você tem!’
‘É para correr melhor, minha filha.’
‘Minha avó, que orelhas grandes você tem!’
‘É para escutar melhor, minha filha.’
‘Minha avó, que olhos grandes você tem!’
‘É para enxergar você melhor, minha filha.’
‘Minha avó, que dentes grandes você tem!’
‘É para comer você.’

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E dizendo estas palavras, o lobo malvado se jogou em cima
de Chapeuzinho Vermelho e a comeu.” (Apud TATAR, 2006,
p. 338)

Fita verde no cabelo: nova velha estória foi o título dado


pelo escritor Guimarães Rosa (1908-1967) a sua versão de Cha-
peuzinho Vermelho, publicada postumamente em Ave, palavra,
1969/1970. No subtítulo – nova velha estória – condensa-se não
só aquela expressão de Calvino para referir-se às fábulas em sua
propriedade mais secreta – sua infinita variedade e infinita re-
petição – como também a “angústia da influência” de Bloom, de
acordo com a qual um texto repete e renova outros textos.
No primeiro parágrafo, Rosa já imprime seu estilo atra-
vés de um neologismo: “Havia uma aldeia em algum lugar, nem
maior nem menor, com velhos e velhas que velhavam, homens
e mulheres que esperavam, e meninos e meninas que nasciam
e cresciam.” (Rosa 1992) (Grifo meu) E, no segundo parágrafo,
através da sintaxe: “Todos com juízo, suficientemente, menos
uma meninazinha, a que por enquanto. Aquela, um dia, saiu de lá,
com uma fita verde inventada no cabelo.” (Grifo meu)
A menina de Calvino não tem chapéu, nem a de Rosa, esta
última tem uma fita verde “inventada” no cabelo. A menina de
Rosa logo parte para visitar sua avó num tempo em que “tudo
era uma vez”. Na travessia do bosque, Fita-verde, a inventada por
Rosa, não encontra nenhum lobo. “Viu só os lenhadores que por
lá lenhavam” e que tinham exterminado o lobo. Ao chegar na
casa da avó, Fita-verde percebe com tristeza que, na travessia do
bosque, perdera sua grande fita. Começa, então, a versão rosiana
para o diálogo que, aqui, de fato, se faz entre a menina e sua avó:

“- Vovozinha, que braços tão magros, os seus, e que mãos tão


trementes!
- É porque não vou poder nunca mais te abraçar, minha neta...
- a avó murmurou.

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- Vovozinha, mas que lábios, ai, tão arroxeados!
- É porque não vou nunca mais poder te beijar, minha neta...
a avó suspirou.
- Vovozinha, e que olhos tão fundos e parados, nesse rosto
encovado, pálido?
- É porque já não te estou vendo, nunca mais, minha neti-
nha... - a avó ainda gemeu.
Fita-verde mais se assustou, como se fosse ter juízo pela pri-
meira vez. Gritou: - Vovozinha, eu tenho medo do Lobo! ...
Mas a avó não estava mais lá, sendo que demasiado ausente, a
não ser pelo frio, triste e tão repentino corpo.” (ROSA, 1992)

A perda da fita anuncia a perda da avó, o encontro com a


morte. Lembremos ainda que em sua aldeia ter a fita verde in-
ventada no cabelo coincide com o tempo em que tudo era uma
vez. Está marcado assim, o tempo do faz-de-conta, faz-de-conta
que a morte não existe. No entanto, a perda da fita e o encon-
tro com a morte não autoriza o leitor a interpretar que tais per-
das desmerecem aquilo que é inventado, o ficcional. Muito pelo
contrário, Guimarães Rosa vale-se do espaço ficcional para fazer
dele o lugar de acontecimento da morte.
Em 1979, Chico Buarque de Holanda (1944) escreve sua
versão para a Chapeuzinho Vermelho chamada agora de Cha-
peuzinho Amarelo: “Era a Chapeuzinho Amarelo. Amarelada de
medo.” Como Perrault para escrever sua “Moral”, Chico, como
bom poeta e músico também se vale das rimas:

“Tinha medo de tudo,


aquela Chapeuzinho.
Já não ria.
Em festa, não aparecia.
Não subia escada,
nem descia.
Não estava resfriada

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mas tossia.
Ouvia conto de fada
e estremecia.
Não brincava mais de nada,
nem de amarelinha.” (BUARQUE DE HOLANDA, 2007)

Depois de ouvirmos que o lobo não existia, acompanhado


de uma ótima ilustração de Ziraldo, em que o Lobo é a sombra
de Chapeuzinho, ouvimos o seguinte: “Mesmo assim a Chapeu-
zinho tinha cada vez mais medo do medo do medo de um dia en-
contrar um LOBO. Um LOBO que não existia.” E de tanto medo,
claro, a menina acaba encontrando o seu lobo. E então o ines-
perado: com o encontro, o medo do lobo se dissipa e, uma vez
subtraído o medo, “ela ficou só com o lobo.”
Na Chapeuzinho de Chico, não tem avó, nem lobo se fingin-
do de avó. O Lobo quer se mostrar lobo mau. Diante da falta de
medo da Chapeuzinho, o lobo grita forte: “Eu sou o lobo”. E grita
mais: Lo Bo Lo Bo Lo Bo Lo Bo Lo Bo Lo. E no jogo das letras o
Lobo já é Bolo e fica com medo “da Chapeuzim. Com medo de ser
comido com vela e tudo, inteirim.” A menina só não come o bolo
de lobo, porque prefere de chocolate. E sem medo de brincar e
de inventar, tudo transforma: “raio virou orrái, barata é tabará, a
bruxa virou xabru e o diabo é bodiá.”
Mestres em saber-fazer com a língua, Chico Buarque joga
com as letras e a poeta norte-americana Anne Sexton (1928-
1974) joga com o equívoco, com o mal-entendido. Sua versão de
Chapeuzinho Vermelho é publicada em Transformations, 1971.2
O poema de Anne Sexton intitula-se “Chapeuzinho Verme-
lho” (“Red Riding Hood”) e já no primeiro verso está anunciada a
dimensão de engano: “Muitos são os enganadores:” (“Many are
the deceivers:”) Menos lírico e mais narrativo, o poema começa

2 Consultado em 25/01/2015: http://allpoetry.com/poem/8505447-Red-Ri-


ding-Hood-by-Anne-Sexton

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narrando a história de uma mãe que, enganada por outras duas
mulheres, perde as economias da vida inteira. O tom do poema é
irônico, por exemplo, quando a mãe encarrega a menina de levar
para a avó a cesta com bolo e vinho, o sujeito-lírico pergunta:
“Vinho e bolo? / Onde está a aspirina? E a penicilina? / Onde está
o suco de frutas?”
Na casa da avó, ela e a menina são devoradas pelo lobo
e salvas pelo caçador. Neste momento, o sujeito-lírico compara
o gesto do caçador de cortar a barriga do lobo com o corte da
cesariana. Então, caçador, Chapeuzinho e a avó decidem que o
lobo não deveria morrer simplesmente com o tiro, decidem en-
cher sua barriga de pedras e costurá-la. De lugar de nascimento,
a barriga se torna túmulo, pois o lobo “estava tão pesado como
um cemitério”. Ao acordar e tentar levantar, o lobo cai morto.
“Morto pelo seu próprio peso.” Os três se sentam ao lado do ca-
dáver e lancham o bolo e o vinho.
Nascimento e morte, enganadores e enganados, devorado-
res e devorados, como distingui-los na poesia moderna de Anne
Sexton? Qual moral extrair? Muitas e nenhuma.
Variam e se repetem o ritmo das perguntas e a estranheza
das respostas.

2. “DIABÓLICA INOCÊNCIA”

“Os desastres de Sofia” é o primeiro conto do livro A legião


estrangeira, de 1964, de Clarice Lispector. Sofia é o nome da nar-
radora-protagonista e, imediatamente, evoca a tradição literária,
pois é tanto o nome da noiva de Emílio (refiro-me à obra Emi-
lio ou da Educação, de Jean-Jacques Rosseau) quanto o nome da
protagonista do livro de Condessa de Ségur (a tradução brasileira
recebeu o título de Sofia, a desastrada).
O nome próprio carrega a tradição literária, como toda
criança suporta as marcas de histórias contadas ou caladas que
antecederam e provocaram seu nascimento. A tradição, contudo,

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não aparece explicitamente apenas no nome próprio, a história
de Chapeuzinho Vermelho torna-se parte do texto:

De chofre explicava-se para que eu nascera com a mão dura, e


para que eu nascera sem nojo da dor. Para que te servem essas
unhas longas? Para te arranhar de morte e para arrancar teus
espinhos mortais, responde o lobo do homem. Para que te serve
essa cruel boca de fome? Para te morder e para soprar a fim de
que eu não te doa demais, meu amor já que tenho que te doer, eu
sou o lobo inevitável pois a vida me foi dada. Para que te servem
essas mãos que ardem e prendem? Para ficarmos de mãos dadas,
pois preciso tanto, tanto, tanto – uivaram os lobos, e olharam
intimados as próprias garras antes de se aconchegarem um no
outro para amar e dormir. (LISPECTOR, 1992, pp: 24-25)

Logo, pode-se notar que a história da Chapeuzinho Ver-


melho não é reproduzida por Clarice Lispector, é transformada,
recontada, ressignificada. Nos primeiros parágrafos do conto, a
narradora nos apresenta um personagem, um professor, e nos
situa no tempo: “O professor era gordo, grande e silencioso, de
ombros contraídos. [...] E eu era atraída por ele.” (Grifos meus) O
verbo ser declinado no pretérito imperfeito do indicativo aponta
que se trata de algo acontecido, se trata das memórias da nar-
radora quando era menina-aluna. Sobre a atração que sentia, a
narradora revela que não era atração de uma mulher por um ho-
mem, ela amava o professor como uma criança, amor que não é
puro, mas amor mesclado com cólera, irritação, martírio, vergo-
nha, perplexidade, enfim, amor feito de “escuríssima doçura”. A
menina não o amava silenciosamente, o amor se fazia em ges-
tos de provocação: a aluna passou a falar alto, interromper a li-
ção com piadinhas, mexer com os colegas, até a dor de sentir-se
odiada pelo objeto de amor.
Nesse ponto, já podemos dizer que o conto de Clarice Lis-
pector não simplifica nem um pouco a relação da criança com

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o outro, no caso o professor. Nas primeiras linhas desmonta-se
o mito da criança envolta em sentimentos puros. Bem longe da
pureza e da inocência, a criança tem que se lidar com o amor e
o ódio, com a doçura e a crueldade e com o fascínio estranho de
fazer sofrer, diz a narradora: “Tornara-se um prazer já terrível o
de não deixá-lo em paz.” (LISPECTOR, 1996, p.10)
Entretanto, não é só a menina que tortura seu professor,
ela é torturada pela própria infância, em suas próprias palavras:
“torturada por uma infância enorme que eu temia nunca chegar
ao fim”, a infância como ponto de espera para a vida adulta é
sentida até mesmo como uma humilhação. A narradora nos diz
que não estudar não era um gesto provocativo ou de rebelião
contra o professor, o fato é que ser criança a ocupava, dava tra-
balho, escutemos o belo trecho:

A verdade é que não me sobrava tempo para estudar. As ale-


grias me ocupavam, ficar atenta me tomava dias e dias; havia
os livros de história que eu lia roendo de paixão as unhas até
o sabugo, nos meus primeiros êxtases de tristeza, refinamen-
to que já descobrira; havia meninos que eu escolhera e que
não haviam me escolhido, eu perdia horas de sofrimento por-
que eles eram inatingíveis, e mais outras horas de sofrimento
aceitando-os com ternura, [...]; sem falar que estava perma-
nentemente ocupada em querer e não querer ser o que eu era,
não me decidia por qual de mim, toda eu é que não podia; ter
nascido era cheio de erros a corrigir. Não, não era para irritar
o professor que eu não estudava; só tinha tempo de crescer.
(LISPECTOR, 1996, p.12)

Enquanto cresce, a menina se depara com a escrita e com a


morte. Numa das aulas, a tarefa é fazer uma redação, a partir de
uma história narrada pelo professor. Então, o professor conta so-
bre um homem que sonhara que ficara rico, arrumara sua trouxa
e partira à procura de seu tesouro. Sem nada encontrar, retorna

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de mãos vazias e começa a plantar no próprio quintal. De tanto
plantar e de tanto colher, o homem fica rico. A moral da história
é evidente: o trabalho árduo enriquece.
Como a menina reproduziria essa história com suas pró-
prias palavras? Ela não reproduz, inventa e usa as próprias pa-
lavras, mas transgredindo e desafiando a moral estabelecida,
subvertendo o sentido de antemão dado. Assim como o faz a li-
teratura de Clarice Lispector e toda grande literatura. Em outras
palavras, a literatura não se contenta com um sentido único, não
se contenta com uma única moral, pelo contrário, é o lugar da
sua problematização.
Desafiando a moral da história contada pelo professor, a
menina escreve sobre tesouros que não são frutos do trabalho,
mas frutos da gratuidade, que estão desde sempre lá, apenas es-
perando para serem descobertos. E o professor a surpreende, diz
ele: “- Sua composição do tesouro está tão bonita. O tesouro que
é só mesmo descobrir. [...] Você é uma menina muito engraçada,
disse afinal.” (LISPECTOR, 1996, p. 20-21)
Nesse lugar fora dos ideais fixos e imutáveis, nem mesmo
receber elogios é facil. Isso que a menina escuta como um ines-
perado agradecimento causa tanto desconcerto que, à noite, se
transforma em crise de vômitos. Inesperadamente, tudo o que
nela não prestava se transformara em tesouro. Nem diabólica,
nem inocente, mas tramada de uma “diabólica inocência” que
não se entende, nem se explica, nas palavras da narradora: Ig-
norância que ali em pé - numa solidão sem dor, não menor que a
das árvores – eu recuperava inteira, a ignorância e a sua verdade
incompreensível. (LISPECTOR, 1996, p. 21)
Incompreensíveis e desconcertantes como os efeitos da
sua escrita e a morte do seu professor. Como a sua própria in-
fância. Desse não entender, é preciso construir narrativas, no
plural, claro.

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3. “A FELICIDADE CLANDESTINA” OU O LIVRO/AMANTE

Em “Os desastres de Sofia”, as mãos infantis não são ape-


nas para acariciar, elas também têm prazer em infligir dor no
outro. Ou seja, a criança, longe de ser a vítima bondosa, também
pode encarnar a figura do lobo mau. Nesse caminho de desmis-
tificar a infância pensada como reino da pureza e de uma felici-
dade imaculada, passemos a um outro conto de Clarice Lispector
intitulado: “Felicidade clandestina”. O adjetivo “clandestina” já
nos remete àquilo que é feito às escondidas, que pode ser ilícito
ou ilegal. Vejamos como se tece essa felicidade.
Mais uma vez, trata-se de uma narrativa de memórias, a
narradora-adulta começa se apresentando e apresentando uma
colega. Da narradora-menina, o leitor sabe que ela é pobre e de-
voradora de histórias. Da sua colega, sabe-se que o pai é dono de
livraria e

“que talento [a colega] tinha para a crueldade. Ela toda era


pura vingança, chupando balas com barulho. Como essa me-
nina devia nos odiar, nós que éramos imperdoavelmente bo-
nitinhas, esguias, altinhas, de cabelos livres. Comigo exerceu
com calma ferocidade o seu sadismo. Na minha ânsia de ler,
eu nem notava as humilhações a que ela me submetia: con-
tinuava a implorar-lhe emprestados os livros que ela não lia.
[...] Como casualmente, informou-me que possuía As reina-
ções de Narizinho, de Monteiro Lobato. Era um livro grosso,
meu Deus, era um livro para se ficar vivendo com ele, comen-
do-o, dormindo-o.” (LISPECTOR, 1998, p.9)

Enquanto a referência literária explícita em “Os desastres


de Sofia” é Chapeuzinho Vermelho, em “Felicidade clandestina”
são As reinações de Narizinho. Porém, o que é objeto de devoração
aqui não é propriamente a menina, mas sim o livro. É o desejo
de ler que impulsiona a narradora-menina a percorrer, aos pulos,

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o caminho de sua casa à casa da amiga, que a tortura adiando, a
cada dia, o empréstimo da obra de Lobato. Até que um dia a mãe
da colega intervém e empresta o livro à narradora-menina:

“Como contar o que se seguiu? Eu estava estonteada, e assim


recebi o livro na mão. Acho que eu não disse nada. Peguei o li-
vro. [...] Chegando em casa, não comecei a ler. Fingia que não
o tinha, só para depois ter o susto de o ter. [...] A felicidade
sempre iria ser clandestina para mim. [...] Às vezes sentava-
-me na rede, balançando-me com o livro aberto no colo, sem
tocá-lo, em êxtase puríssimo. Não era mais uma menina com
um livro: era uma mulher com seu amante.” (LISPECTOR,
1998, p.12)

A última frase permite que retornemos ao texto acentuan-


do seu caráter erótico. Se lermos retroativamente, ou seja, se re-
lermos o conto a partir da frase final – “era uma mulher com seu
amante” – ressignificamos uma outra passagem, a seguinte: “Era
um livro grosso, meu Deus, era um livro para se ficar vivendo
com ele, comendo-o, dormindo-o.” Quando sobrepomos aman-
te, grosso, viver com ele, dormir com ele, comê-lo e dormi-lo,
essa narrativa sobre a infância fica ainda mais erotizada, atando
infância e sexualidade.

4. A CRIANÇA E A POESIA

Através dos contos de Clarice Lispector, começamos a des-


mistificar a infância como o tempo da pureza, ao contrário, as
narradoras-mulheres/meninas de Clarice Lispector vivem situa-
ções em que amor, maldade, e erotismo tornam a infância com-
plexa e paradoxal. Chamo atenção agora para o modo como nos-
sa autora vincula a infância e a criação poética.
Iremos até Perto do coração selvagem, publicado em 1944,
primeiro romance de Clarice Lispector. O primeiro capítulo inti-

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tula-se “O Pai” e flagra o tédio de Joana ainda criança. Desse té-
dio surge uma poesia, espaço do sem sentido. Sem sentido apon-
tado pelo pai da menina justamente ao lhe cobrar um sentido:

[..] Nada veio porém. Nada. Difícil aspirar as pessoas como as-
pirador de pó. - Papai, inventei uma poesia. - Como é o nome?
- Eu e o sol. - Sem esperar muito recitou: - “As galinhas que
estão no quintal já comeram duas minhocas mas eu não vi”.
- Sim? Que é que você e o sol tem a ver com a poesia? Ela
olhou-o um segundo. Ele não compreendera... (LISPECTOR,
1980, p.14)

Embora o capítulo comece com os ruídos da máquina de


escrever do pai, de um relógio e do silêncio, o tempo não é cro-
nologizado. O tempo é o da passagem de uma brincadeira para
outra e sobretudo dos intervalos e brancos que o brincar não
preenche. Esses intervalos são ressaltados e permanecem como
verdadeiros hiatos, dois são os motivos. Primeiro motivo, esse
tempo da infância não é acompanhado de nenhuma tentativa de
psicologização da criança, queremos dizer com isso que o nar-
rador não se coloca como um adulto que explicará o comporta-
mento da menina. Ao contrário, é como se o leitor estivesse ven-
do a cena do ponto de vista da própria criança sem teorias, sem
modelos explicativos. E, segundo motivo, não se busca nenhum
encadeamento racional entre as cenas da infância: a da testa na
vidraça olhando o quintal do vizinho, a da feitura da poesia, a da
brincadeira em que Joana é filha, fada, carro azul e professora, a
da pergunta de quem pela primeira vez disse a palavra “nunca”.
O encadeamento entre as cenas é tão tênue quanto a liga-
ção dos ruídos que abrem o romance: “Entre o relógio, a máqui-
na e o silêncio havia uma orelha à escuta, grande, cor-de-rosa e
morta. Os três sons estavam ligados pela luz do dia e pelo ranger
das folhinhas da árvore que se esfregavam umas nas outras ra-
diantes.” (LISPECTOR, 1980, p. 11)

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A respeito do primeiro capítulo de Perto do coração selva-
gem, podemos dizer que enquanto o pai quer que a poesia da
criança tenha um sentido, também aquilo que chamamos moral
da história, a menina experimenta a linguagem e, na linguagem,
(re)cria a cena vista. Enquanto o adulto quer compreender, a
criança quer inventar. No seu belo livro intitulado Os três tempos
da lei, 1997, o psicanalista Alain Didier-Weill destaca a capaci-
dade que a criança tem de se espantar. Ela olha uma pedrinha e
enxerga ali um mistério, já o adulto possui conhecimentos sobre
a pedra, sabe que é um objeto mineral, composto de cálcio, etc.,
etc. Como na criança o espanto ainda não foi substituído pela
compreensão e pelo sentido, o espaço está aberto para o misté-
rio, para o enigma e para o sem sentido.
Dito tudo isso, podemos pensar que quando um adulto
conta uma história preocupado em ensinar, moralizar, ele coloca
em segundo plano a capacidade da criança inventar e explorar as
rimas, as melodias, o sem sentido que há no amor e na morte. Ex-
periências pelas quais a criança inevitavelmente passa. Resta a
nós, adultos, emprestar nossa voz para que ela passe com poesia.

5. PARA GENTE PEQUENA. E PARA GENTE GRANDE.

Em 1968, Clarice Lispector publica o livro A mulher que ma-


tou os peixes, já no título coloca-se em cena o tema do assassina-
to, tema proibido se pensamos no ideal de criança inocente e que
precisa ser poupada dos dissabores da vida e da morte. Tema que
poderia nos causar alguma estranheza: história de assassinato
para crianças? Um romance policial para crianças? Não demora
muito para a narradora nos frustrar e surpreender, pois não se
trata de uma investigação para saber a identidade misteriosa da
mulher que matou os peixes, diz na primeira linha: “Essa mulher
que matou os peixes infelizmente sou eu.” (LISPECTOR, 1993,
p. 7) Então, logo a nossa narradora já quer se inocentar, deixe-
mos ela falar:

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“Mas juro a vocês que foi sem querer. Logo eu! Que não tenho
coragem de matar uma coisa viva! Até deixo de comer uma
barata ou outra. Dou minha palavra de honra que sou pessoa
de confiança e meu coração é doce: perto de mim nunca deixo
criança nem bicho sofrer. Pois logo eu matei dois peixinhos
vermelhos que não fazem mal à ninguém [...] Não tenho cora-
gem ainda de contar agora mesmo como aconteceu.” (LISPEC-
TOR, 1993, p. 7) (Grifo meu)

Essas poucas linhas já são suficientes para percebermos


que a narradora não elimina de seu relato a contradição: não tem
coragem de matar coisas vivas, porém mata baratas. Mais adian-
te ela dirá que não mente para crianças, porém às vezes é neces-
sário mentir para adultos. Dito com outras palavras, a narradora
não se coloca numa posição para dar lições de morais do tipo:
“NUNCA se deve matar coisa viva” ou “NUNCA se deve mentir”.
Tanto ela quanto o seu pequeno interlocutor sabem que, na vida
como na literatura, entre o preto e o branco, há muitas zonas
cinzentas.
O leitor que percorreu outros textos de Clarice Lispec-
tor escuta no breve trecho algumas características do estilo
de Clarice Lispector. Seu leitor sabe que não é a primeira vez
que a autora traz as baratas para seu texto e, mais impor-
tante, que é peculiar ao narrador de Clarice Lispector adiar
o seu relato, ouçamos o que ela diz no seu romance A paixão
segundo G.H., 1964:

“- - - - - - estou procurando, estou procurando. Estou tentando


entender. Tentando dar a alguém o que vivi e não sei a quem,
mas não quero ficar com o que vivi. Não sei o que fazer do que
vivi, tenho medo dessa desorganização profunda. Não confio
no que me aconteceu. Aconteceu-me alguma coisa que eu,
pelo fato de não a saber como viver, vivi uma outra?” (LIS-
PECTOR, 1986, p. 7)

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A estratégia da narradora para se inocentar do assassinato
dos peixes é mostrar às crianças seu amor pelos bichos. Conta-
-nos que teve uma infância rodeada de gatos e nunca deixava
que dessem as ninhadas de sua gata. E mostra aí a diferença en-
tre pontos de vista dela e dos outros: “O resultado é que a casa
ficou alegre para mim, mas infernal para as pessoas grandes.”
O que os adultos fazem? Dão escondido da menina a gata e sua
última ninhada, ela fica tão infeliz que adoece e nos conta que “A
febre só passou muito tempo depois”. Em seguida, faz um corte
no narrado: “Bem, vamos mudar de assunto. Antes de começar
[...]”
Nesse corte e nesse começar o que já tinha sido começado,
o leitor familiarizado aos textos de Clarice Lispector reconhece
outras de suas marcas. O narrador clariciano, aquele dito para
gente grande, faz interrupções, não obedece à ordem cronológi-
ca, vai e volta e, muitas vezes, dirige-se ao leitor, como nos casos
de Água viva, 1973, e A hora da estrela, 1977. O narrador clari-
ciano é instável, muitas vezes irônico, oscilante, incerto, muitas
vezes bem próximo do modo das narrativas orais. Essas histórias,
que se desenvolvem na precariedade do “agora”, tentando salvar
o passado, ou se salvar, têm caracterísitcas narrativas que são
aproximadas da estrutura do conselho. Sobre isso, baseada em
Walter Benjamin, diz a filósofa Jeanne Marie Gagnebin:

“O conselho só pode ser, portanto, dado se uma história con-


seguir ser dita, colocada em palavras, e isso não de maneira
definitiva ou exaustiva, mas, pelo contrário, com as hesita-
ções, as tentativas, até as angústias de uma história “que se
desenvolve agora”, que admite, portanto, vários desenvolvi-
mentos possíveis, várias seqüências diferentes, várias con-
clusões desconhecidas que ele pode ajudar não só a escolher,
mas mesmo a inventar, na retomada e na transformação por
muitos de uma narrativa à primeira vista encerrada na sua
solidão.” (GAGNEBIN, 1994, pp. 72-73)

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O leitor de Clarice Lispector sabe que essas palavras de
Gagnebin dizem muito sobre o modo de narrar da literatura de
Clarice Lispector tanto para gente grande quanto para gente pe-
quena. Aliás, a narradora de A mulher que matou os peixes acon-
selha: “Se vocês gostam de escrever ou desenhar ou dançar ou
cantar, façam porque é ótimo: enquanto a gente brinca assim,
não se sente mais sozinha, fica de coração quente.” (LISPEC-
TOR, 1993, p.19)
É, talvez, por ter confiança no poder de sedução do seu
narrador que Clarice Lispector, em A mulher que matou os peixes,
não economiza em histórias. Assim, ela também não despreza
na criança a capacidade de escutar e seu contar é longo, vai e
vem, interroga e se interroga: “Vocês fariam carinho num rato?
[...] Vocês sabem que tive uma guerra danada contra as baratas
e quem ganhou nessa guerra fui eu? Tenho pena das baratas
porque ninguém tem vontade de ser bom com elas. Elas só são
amadas por outras baratas. Não tenho culpa: quem mandou elas
virem?” (LISPECTOR, 1993, p.11 e p.14)
Ratos, baratas, lagartixas, moscas e mosquitos são os bi-
chos que a narradora chama de naturais, aqueles que não con-
vidamos para estarem na nossa casa. Eles, simplesmente, vêm.
Existe a outra classe, a dos bichos convidados: coelhos, pinti-
nhos que como nós sentem saudade do calor da galinha-mãe,
cachorros, macacos. Certa vez, a narradora compra uma miqui-
nha, com carinha de mulher, e a chama de Lisete. Porém, Lisete
adoece e morre. Eis, a meu ver, um dos trechos mais delicados da
narrativa:

“De pura saudade, um de meus filhos perguntou:


- ‘Você acha que Lisete morreu de brincos e colar?’
Eu disse que tinha certeza que sim, e que, mesmo morta, ela
continuaria linda.
Também de pura saudade, o outro filho olhou para mim e dis-
se com muito carinho:

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- ‘Você sabe, mamãe, que você se parece muito com Lisete?’
Se vocês pensam que eu me ofendi porque me parecia com
Lisete, estào enganados. Primeiro, porque a gente se pare-
ce mesmo com um macaquinho; segundo, porque Lisete era
cheia de graça e muito bonita.
- ‘Obrigada, meu filho’ – foi isso que eu disse a ele e dei-lhe
um beijo no rosto.
Um dia desses vou comprar um miquinho com saúde. Mas es-
quecer Lisete? Nunca.” (LISPECTOR, 1993, pp.32-34)

Tendo ultrapassado a página 30 do livro de Clarice Lispec-


tor, o leitor se perguntará: e a história da mulher que matou os
peixes? Enquanto conta e não conta, a narradora dá outros con-
selhos, conta histórias de bichos de amigos, algumas bem tristes,
outras engraçadas, fala de medo e, aqui, mais uma vez declara
seu amor pelos bichos:

“Eu fico muito ofendida quando bicho tem medo de mim,


pois sou corajosa e protejo os animais. Quem de vocês tiver
medo, eu cuido e consolo. Porque sei o que é o medo que as
crianças têm porque já fui criança. Até hoje ainda tenho medo
de certas coisas.” (LISPECTOR, 1993, p.60)

Até que uma vez feita a sua defesa, a narradora vai con-
tar sobre seu crime: “Bem, agora chegou a hora de falar sobre o
meu crime: matei dois peixinhos. Juro que não foi de propósito.
Juro que não foi culpa minha. Se fosse, eu dizia.” (Lispector 1993,
p.61) Então, a mulher-narradora vai aos fatos: o filho vai viajar e
a deixa encarregada e alimentar os dois peixinhos. Ocupada com
seus escritos, ela esquece de alimentar os peixinhos e trocar a
água do aquário e, como peixe não late nem mia, quando lembra
de sua tarefa, os peixes já tinham morrido de fome. E o relato
termina com uma pergunta: “Vocês me perdoam?”

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Ainda que muito diferente das narrativas para gente gran-
de de Clarice Lispector, a narrativa para gente pequena intitula-
da A mulher que matou os peixes se constrói a partir de elementos
que estão presentes nos bons textos literários modernos3: a per-
da da onisciência narrativa4, a supressão da cronologia que dis-
farça a nossa complicada vivência do tempo, o espaço literário
como espaço de experiência da morte, a colocação de perguntas
sem respostas, a relação entre textos como forma de alargar a
experiência literária do leitor.

Brief notes on childhood in tales of Clarice Lispector

Abstract: This text assumes that reading a text is always relative to an-
other, either implicitly or explicitly, and it is aimed to indicate ways to
think about the childhood arrangements of representation in some texts of
Clarice Lispector. From this proposal it is possible to apprehend that the
childhood in Lispector’s texts always deviates from the established ideal-
ization and morals and, following this remote part of the whole simplifi-
cation I will also show that when writing for children, the author puts into
play sophisticated narrative techniques.

Keywords: Clarice Lispector; Childhood; Children’s Literature.

REFERÊNCIAS

BLOOM, Harold. A angústia da Influência: uma teoria da poesia (1973). Tradu-


ção: Macos Santarrita. 2a ed. Rio de Janeiro: Imago, 2002.

3 Uma excelente exposição de questões sobre o romance moderno pode ser


encontrada em LEITE, Ligia Chiappini Moraes. O foco narrativo. São Paulo:
Ática, 1991.
4 Para saber mais sobre os vários modos de construção do narrador, recomendo
ao leitor uma boa introdução sobre o assunto: ROSENFELD, Anatol. Refle-
xões sobre o romance moderno. In: Texto e contexto. São Paulo: Perspectiva.

educativa, Goiânia, v. 17, n. 2, p. 385-408, jul./dez. 2014 407


______. The breaking of the vessels. Chicago and London: University of Chicago
Press, 1982.
______. O Cânone Ocidental: os Livros e a Escola do Tempo (1994). Tradução: Mar-
cos Santarrita. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.
BUARQUE, Chico. Chapeuzinho Amarelo. Ilustração: Ziraldo. Rio de Janeiro,
José Olympio, 2007.
CALVINO, Italo. Fábulas italianas: coletadas na tradição popular durante os
cem últimos anos e transcritas a partir de diferentes dialetos. (tradução: Nilson
Moulin) São Paulo, Companhia das Letras, 2006.
DIDIER-WEILL, Alain. Os três tempos da lei: o mandamento siderante, a injunção
do supereu e a invocação musical. Tradução: Ana Maria de Alencar. Revisão téc-
nica: Marcos Comaru. Rio de Janeiro: Zahar, 1997.
GAGNEBIN, Jeanne Marie. Não contar mais? In: História e narração em Walter
Benjamin. São Paulo: Perspectiva, FAPESP; Campinas: UNICAMP, 1994.
LEITE, Ligia Chiappini Moraes. O foco narrativo. São Paulo: Ática, 1991.
LISPETOR, Clarice. Perto do coração selvagem. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
1980
______. Laços de família. (1960). Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1990.
______. A legião estrangeira. (1964). Rio de Janeiro: Editora Siciliano, 1992.
______. A paixão segundo G.H. (1964) Rio de Janeiro: Nova Fronteira. 11 ed.,
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______. Felicidade clandestina. (1971). Rio de Janeiro: Rocco, 1998.
______. A mulher que matou os peixes. Ilustração Carlos Scliar. Rio de janeiro, José
Olympio, 1993.
Rosa, João Guimarães. Fita verde no cabelo: nova velha estória. Ilustração: Roger
Mello. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1992.
ROSENFELD, Anatol. Reflexões sobre o romance moderno. In: Texto e contexto.
São Paulo: Perspectiva, s/d.
SEXTON, Anne. “Red-Ridding-Hood”. Consultado em 25/01/2015: http://allpo-
etry.com/poem/8505447-Red-Riding-Hood-by-Anne-Sexton
TATAR, Maria (edição, introdução e notas). Contos de fadas: edição comentada
e ilustrada. (tradução: Maria Luiza X. de A. Borges. Rio de Janeiro, Jorge Zahar,
2004.

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