Dias
Objetivo: “Propomos, neste artigo, uma breve apreciação do conjunto de paisagens realizadas nos diferentes
anos de sua carreira, analisando seus aspectos técnicos e teóricos, seus objetivos e seu papel como pintor e
diretor de uma instituição artística no Brasil do século XIX.”
“Antes da produção artística vinculada ao ambiente acadêmico e de sua consolidação como diretor da
Academia Imperial de Belas-Artes em 1840, Félix-Émile Taunay realiza um conjunto de obras que reflete
sobretudo sua primeira formação como pintor, próxima à produção do principal responsável por seu primeiro
contato com as artes, o pai Nicolas-Antoine Taunay e, portanto, ainda ligada àquela atmosfera pictórica da
paisagística europeia.”
Estilos de pintura: “As obras datadas dos anos de 1823, 1828 e 1829 representam uma natureza ainda ligada
à doutrina clássica europeia, também cotejada pelo pai no Brasil, e já consagrada por Claude Lorrain com suas
paisagens romanas impregnadas de luzes douradas que indicavam, acima de tudo, a nostalgia do passado
clássico. Na Europa, o pai Nicolas-Antoine Taunay dava às suas obras a inspiração da campagna romana à
maneira de Lorrain e, no Brasil, procura transpor às telas a sua formação ao atribuir à natureza fluminense um
sentimento também arcádico e pastoril, dando aos morros cariocas a mesma atmosfera serena na apreciação
dos frades e seus rebanhos.”
Comparação com as obras do pai: “A partir dessas telas realizadas por Nicolas-Antoine Taunay, é possível
pensarmos em sua influência direta nas obras produzidas pelo filho nesse período. O tratamento da luz na
composição dado pelo pintor paisagista, expresso de maneira admirável por Taunay-pai no Brasil, singulariza-
o em meio a uma série de artistas situados no Rio de Janeiro nessa época. A relação entre a produção inicial
de nosso artista e as obras do pai é patente e requer um exame apurado dos elementos que compõem as telas
realizadas no período. Tentaremos aqui realizar uma primeira aproximação das obras de Félix-Émile Taunay
com aquelas de seu primeiro formador, indicando os pontos de referência entre elas e seus objetivos naquele
momento.”
Divergências na trajetória: “No entanto, ao pensarmos no conjunto das obras de Taunay-filho no Brasil,
veremos que a questão desfaz-se em momentos específicos de sua produção como paisagista e como artista
acadêmico, principalmente ao analisarmos as paisagens Mata reduzida a carvão e Vista da Mãe-d’água. Por
isso insistimos neste ponto e analisamos individualmente suas obras nos dois períodos, tentando identificar os
sinais de divergência.”
“A relação entre a literatura e o elemento pictórico teria já se originado anteriormente ao período aqui tratado,
recorrente entre os viajantes e naturalistas de passagem pelo Brasil ao final do século XVIII, estendendo-se
ao século XIX, os quais traziam em seus diários e pranchas o discurso científico acerca da natureza,
investigando-a e transmitindo ao mundo o conhecimento através da escrita e do instrumento visual.”
Sentido em Vista de um mato virgem que se está reduzindo a carvão: “Dividindo-a em duas partes que se
antagonizam, Taunay procura transmitir a sua mensagem histórica, identificando, de um lado, a natureza em
seu estado intocado, ainda composta de uma vegetação que é natural e grandiosa, mas que já sente o início do
processo ocorrido no lado oposto, e, de outro, a floresta já inserida no contexto do “desenvolvimento”,
queimada e transformada em carvão, abrindo no espaço uma clareira repleta de homens e de um cemitério de
troncos. Composta de tons variados de verde e de múltiplas espécies de “plantas que se conhecem”, fielmente
de acordo com a vegetação ali representada, Taunay mostra já em seu primeiro plano o sentido da obra.”
Paralelo com a obra de Thomas Ender: “A ilustração é composta de maneira a oferecer ao espectador o
impacto da técnica empregada; no primeiro plano, aparece a grandíssima figueira de centenárias raízes à
mostra, envolta de pequenas vegetações. Ao fundo, a narrativa se completa, contrapondo-se imediatamente ao
primeiro plano, apresentando um grande número de troncos cortados, com o ambiente tomado pela fumaça no
último plano. O paralelo com a tela de Taunay parece claro, não somente por tratar-se da devastação das
florestas tropicais, ainda que para fins diferentes, o carvão e a lavoura, mas por estabelecer uma composição
pictórica narrativa, onde se apresenta uma mensagem histórica calculadamente construída tanto por Taunay
quanto por Ender.”
“Encontramos aí a fusão entre a linguagem artística e literária, pois ambas procuram demonstrar em seu
discurso as transformações ocorridas na paisagem alterada pela ação do homem – lavoura, carvão e minério –
, manifestadas através de uma narrativa histórica atualizada e documental. Alencar, Ender e Taunay
reproduzem em seus discursos a descrição científica ou botânica da vegetação, aliada a uma composição ou
narrativa minuciosamente calculada, transmissora de uma mensagem histórica e documental da paisagem por
meio do instrumento da escrita ou visual.”
“Gonzaga-Duque atinge exatamente o nosso ponto de abordagem, pois é clara a intenção de Taunay em
desvincular a sua obra do caráter arcádico da pintura, aproximando-a dos ilustradores botânicos
expedicionários, além de compor sua tela de maneira cuidadosa e calculada, elaborando sua narrativa histórica
com minúcia.”
Conclusão: “A partir dessas diversidades técnica e temática, a produção de Taunay oferece ainda um amplo
campo de abordagem, visto suas variações de acordo com os períodos de sua composição. Seu estudo inicial
oferece como interpretação o emprego de uma concepção diferenciada no tratamento da paisagem e da
temática para as telas produzidas dentro e fora do ambiente acadêmico. No caso específico da paisagem e da
pintura de história, sobretudo as obras aqui analisadas produzidas por Taunay para a Academia e mostradas
nas exposições gerais a partir de 184030, notamos como o pintor constrói um novo modelo de paisagem,
retomando a ilustração científica dos viajantes e inserindo a pintura em uma temática histórica, identificando
e narrando fatos atuais e estreitando suas relações com a literatura, cuja abordagem centrava-se também nessas
questões. Leva ao público um modelo artístico atualizado para o tratamento da paisagem, contraposta àquela
temática arcádica e pastoril realizada por ele próprio e principalmente pelo pai Nicolas-Antoine Taunay no
Rio de Janeiro, formando na Academia uma nova concepção artística na abordagem aos temas nacionais. A
diversidade de sua produção faz-se, portanto, presente, demonstrando sua formação, seus objetivos como
pintor e seus projetos como diretor da Academia Imperial de Belas-Artes ao visar, sobretudo, a construção de
uma arte brasileira, intensamente citada em seus discursos presentes nas atas das sessões públicas anuais da
instituição. Discussão incessante e saborosa na historiografia da arte no Brasil, percorremos ainda os caminhos
de sua interpretação.”
MATTOS, Claudia Valladão de. Paisagem, Monumento e Crítica Ambiental na Obra de Félix-
Émile Taunay. 19&20, Rio de Janeiro, v. V, n. 2, abr. 2010.
“A pintura de paisagem produzida no Brasil, ao contrário daquela realizada na América do Norte e em alguns
outros países latino-americanos, nem sempre foi marcada por tal repertório romântico. Como observa Luciano
Migliaccio (MIGLIACCIO, 2000), nos tempos da colônia, as representações da paisagem brasileira
associavam-se frequentemente a fins militares, ou econômicos e, mesmo após a independência, elas foram
fortemente marcadas pelo universo da ilustração científica, característico da maior parte da pintura de viajantes
europeus que transitavam pelo país. Apesar disso, entre as décadas de 1840 e 1850 podemos identificar alguns
artistas que usaram a paisagem como veículo para a constituição de um discurso sobre o Brasil.”
Intenção do artista: “Na década de 1840, Félix-Émile Taunay realiza dois quadros intitulados
respectivamente Vista da Mãe D’Água(Exposição Geral de Belas Artes, 1840) e Vista de um mato virgem que
está se reduzindo a carvão (Exposição Geral de Belas Artes, 1843), que se concentram na temática da natureza
brasileira. De acordo com Migliaccio (MIGLIACCIO, 2000: 76), as duas obras demonstram a intenção do
artista em fazer do embate entre natureza selvagem e civilização o verdadeiro tema de uma pintura de
caráter nacional.”
Objetivos: “Sem descordar em princípio dessa interpretação, o presente artigo pretende apontar para um
vínculo entre os projetos de Taunay para uma pintura de paisagem nacional e um importante debate sobre o
destino das florestas brasileiras que tinha sido reavivado nas décadas após a independência, especialmente nos
círculos intelectuais do Instituto Histórico Geográfico Brasileiro, ao qual pertencia Félix Taunay. Um dos
pontos centrais desse trabalho será propor uma interpretação mais detalhada e talvez mais “política” das
obras Vista de um mato virgem que se está reduzindo a carvão e Vista da Mãe D’Água, entendendo-as como
uma tomada de posição do artista com relação a debates específicos que marcaram o período entre o final do
primeiro reinado e o início do Segundo Império. Demonstraremos que o compromisso de Taunay com esses
debates levou-o a desenvolver um conceito bastante original de monumento, desenhado para responder a
questões específicas da realidade brasileira.”
Crítica ambiental: “Ao longo de todo o século XIX, a crítica ambiental no Brasil seguiu esse mesmo curso
pragmático. Apesar da autoridade de intelectuais românticos com Humboldt, ou Chamberlain, por vezes
citados pelos autores brasileiros envolvidos com a questão, a preocupação com a natureza permaneceu
marcada pela necessidade de implementar um uso racional dos recursos do país de forma a permitir um
progresso seguro no presente e no futuro.”
José Bonifácio: “O retorno de Bonifácio ao Brasil e seu envolvimento político com os rumos do país tornou
o seu pensamento ainda mais complexo. Ao lado da dinâmica da natureza, José Bonifácio passou a considerar
as estruturas sociais que contribuíam para o estado das coisas no Brasil, dando o que talvez tenha sido a sua
mais importante contribuição para a crítica ambiental do período, através da associação entre destruição das
florestas e o sistema escravocrata.”
Comparação com outras produções sobre o tema: “A leitura dessas passagens do Manual do Agricultor
Brasileiro não deixa dúvidas quanto à afinidade de Félix-Émile Taunay com as ideias defendidas por seu
irmão. O quadro Vista de um mato virgem que se está reduzindo a carvão põe diante dos olhos de seu público
o próprio drama da destruição das florestas, causadora de todos os males descritos no livro. O quadro divide-
se em duas partes. À direita encontramos uma floresta majestosa e centenária, de configuração complexa e
repleta de espécies úteis (podemos ver, por exemplo, um grande jatobá no canto superior direito do quadro).
Vindo de dentro da mata densa, e desembocando em um poço natural em primeiro plano, corre um rio de
águas límpidas.”
“À esquerda, essa bela parcela de mata atlântica é contraposta a uma paisagem desoladora, onde homens
negros trabalham sem cessar derrubando a mata a machado e empilhando os enormes troncos para queimá-
los. A relação entre escravidão e derrubada das matas tornou-se, como vimos, um tema recorrente da crítica
ambiental, desde José Bonifácio. Carlos Taunay também enfatiza essa ligação, ainda que não defendesse como
Bonifácio, a abolição imediata dos negros. Félix-Émile, por sua vez, incorpora em seu quadro, essa mesma
crítica ao efeito nocivo do trabalho cativo. A brutalidade dos movimentos dos machados e a indiferença dos
negros com relação ao destino da floresta torna-se ainda mais evidente pela presença, no quadro, de um único
homem branco, de braços estendidos que, como bem observou Elaine Dias (DIAS, 2005: 405), medindo-se
com a imponente obra da natureza, evoca concepções românticas do sublime.”
“Sabemos que Félix-Émile Taunay tornara-se professor de desenho e de francês de D. Pedro II e suas irmãs
em 1835 e que em meados de 1839 foi nomeado sub-preceptor do futuro imperador, ao lado do bispo
de Chrysopolis. De acordo com o testemunho de seu filho, Alfredo Taunay (o Visconde de Taunay), que
publicou em 1916 alguns fragmentos de memórias do seu pai na revista do IHGB, no cumprimento dessa
tarefa, a natureza brasileira desempenhou um papel central: “Ao imperador menino, então, foram os desvelos
de meu pai inexcedíveis e, ajudado pelos esplendores da natureza brasileira, em cuja adoração viveu sempre,
por aí é que buscou e conseguiu impingir na alma do jovem soberano o culto do Belo [...].” (TAUNAY, 1916:
96) De fato, tais memórias de Félix Èmile revelam um programa pedagógico de inspiração roussoniana. Em
vários trechos percebemos a convicção de Taunay de que o desenvolvimento de uma sensibilidade com relação
à natureza levaria à possibilidade de apreciação das artes e ao refinamento cultural em geral.”
Análise da obra: “Ainda que igualmente comprometido com as ideias preservacionistas às quais ele era
simpático, o quadro Vista da Mãe D’Água parece desenvolver um discurso mais complexo. Nessa obra,
Taunay preocupa-se em indicar um caminho viável para conciliar o desenvolvimento da nação brasileira, sua
entrada plena para a comunidade de países civilizados, e uma política de preservação das matas nativas ainda
intocadas. Como o próprio Taunay, enquanto diretor da Academia, reiteradamente afirmara, a medida e a
história de uma civilização estaria corporificada em seus monumentos e portanto era necessário pensar a
tradição do monumento em sua relação com a realidade local. Nas cidades valia as regras da Europa: deveria-
se construir monumentos imortais, de inspiração clássica, pois deles “dependem os destinos da fama das
sociedades humanas [...] quando já quaisquer outros vestígios desapareceram.” (TAUNAY apud DIAS, 2005:
248). Porém ao lado desse conceito tradicional de monumento, em Vista da Mãe D’Água, Taunay parece
conceber um outro, no qual ocorreria uma simbiose entre monumento e natureza, isto é, entre natureza e
história. De acordo com essa concepção, a ocupação ponderada dos sítios naturais (da forma proposta por
Bonifácio e seus discípulos), sem destruí-los, levaria à construção de um monumento, símbolo da grandeza
de seu soberano. Como estratégia retórica, isto é, como forma de sugerir esse caminho como o mais legítimo
para a atuação do próprio D. Pedro II, em Vista da Mãe D’Água, Taunay apresenta sua nova visão de natureza
como monumento, sob as vestes de uma herança da casa Bragança a seu herdeiro. A simbiose entre construção
(reservatório e aqueduto) e mata é assim louvada como o grande legado da casa de Bragança ao Brasil. A
passagem da “notícia” que vincula “a grandeza das obras” à “magnificência sem par dos sítios que elas
atravessam” parece muito relevante desse ponto de vista.”
Conclusão: “Em Vista da Mãe D’Água, também a obra dos Bragança tornou aquele trecho da natureza
memorável, um monumento relacionado à grande história do país. Confrontado com a realidade brasileira e
com todos os desafios envolvendo a construção da nova nação brasileira, Felix-Émile Taunay reinventa a
pintura de paisagem propondo um conceito novo de monumento que pudesse servir também a seu engajamento
político em defesa da bela natureza dos trópicos.”