2012
S63L
Inclui bibliografia
ISBN 978-85-387-3334-8
CDD: 869.909
CDU: 821.134.3(81).09
Ricardo Iannace
Sueli Saraiva
Gabarito......................................................................................261
Referências.................................................................................271
Anotações..................................................................................287
O trecho acima faz parte do longo discurso proferido sob intensas vaias
por Menotti Del Picchia, um dos mentores da Semana de Arte Moderna de
1922, considerada o marco do modernismo brasileiro. Entre os promotores
da Semana, cuja proposta vinha se desenvolvendo desde 1917, destacam-
se ainda Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Manuel Bandeira, Sérgio
Milliet, Guilherme de Almeida, Graça Aranha, além de muitos outros artis-
tas embebidos das novas ideias estéticas europeias, vistas como a última
pá de cal às agonizantes correntes literárias que vigoravam por aqui desde
a segunda metade do século XIX: o Parnasianismo e o Simbolismo.
“Ruins, mas de um ruim esquisito”. Essa frase de Manuel Bandeira sobre os versos
do estreante Mário de Andrade com o seu Há uma Gota de Sangue em cada Poema
(1917) talvez possa ser emprestada para resumir a impressão do público diante
das novidades estéticas trazidas cinco anos mais tarde pela “Semana”. Afinal, de
11 a 18 de fevereiro, apesar das vaias e semblantes de reprovação da burguesia
culta que compareceu ao Teatro Municipal de São Paulo, o evento foi concluído,
repercutiu para além das fronteiras do Sudeste e certamente agitou as rodas de
conversas durante todo aquele ano de 1922. Vejamos algumas observações do
historiador da “Semana”, Mário da Silva Brito (apud BOSI, 1994, p. 337):
A grande noite da Semana foi a segunda. A conferência de Graça Aranha, que abriu os festivais,
confusa e declamatória, foi ouvida respeitosamente pelo público, que provavelmente não a
entendeu, e o espetáculo de Villa-Lobos, no dia 17, foi perturbado, principalmente porque se
supôs fosse “futurismo” o artista se apresentar de casaca e chinelo, quando o compositor assim
se calçava por estar com um calo arruinado... Mas não era contra a música que os passadistas
se revoltavam. A irritação dirigia-se especialmente à nova literatura e às novas manifestações
da arte plástica.
Embora possa ter havido uma certa inconsistência ideológica por parte dos
artistas modernistas por não conseguirem superar por completo os limites for-
mais da expressão artística trazida de fora – conforme a autocrítica feita duas
décadas mais tarde por Mário de Andrade (“éramos uns inconscientes”), que la-
mentava que no desenrolar dos fatos tenha faltado aos primeiros modernistas
(1922-1930), da chamada “fase heroica”, repensar “com objetividade o problema
da sua inserção na práxis brasileira” (BOSI, 1994, p. 343) –, de qualquer forma, a
“Semana” se tornou um divisor de águas, um jato de rebeldia no conservadoris-
mo da República Velha (1894-1930) e o despertar de uma nova forma de com-
preender a brasilidade.
uma poesia que é, nas palavras de Otto Maria Carpeaux, “poesia objetiva” (cf.
1943, p. 331). Em Alguma Poesia (1930), seu livro de estreia, dedicado ao amigo
Mário de Andrade, o poema “Sentimental” revela um eu-lírico “interiorizado”,
mas que não descuida da visão social:
Eu estava sonhando...
E há em todas as consciências um cartaz amarelo:
“Neste país é proibido sonhar.”
(DRUMMOND DE ANDRADE, 1988, p. 14-15)
Para ser regional, segundo Afrânio Coutinho (1986, p. 235), “uma obra de arte
não somente tem que ser localizada numa região, senão também deve retirar
sua substância real [seu conteúdo] desse local”.
O regionalismo nordestino:
declínio econômico, ascensão literária
A cana-de-açúcar, de origem asiática, foi a base da exploração colonial nos sé-
culos XVI e XVII, e um dos principais fomentadores da escravidão e do desenvol-
vimento do patriarcado nordestino. De um modo geral, os engenhos de açúcar
regeram a vida econômica e social nos primeiros séculos do Brasil. Mas, enquan-
to no Norte-Nordeste a riqueza se fazia pelas moendas, no Sudeste, as bandeiras
paulistas se embrenhavam pelas matas em busca de escravos e metais precio-
sos, sendo posteriormente substituídos pelo café, que se firmou soberano.
A partir do século XIX, a economia brasileira foi regida pelo café no Sul e
Sudeste, criando obstáculos à recuperação da decadente economia açucareira
nordestina. Com a ascensão das regiões meridionais e a consequente concentra-
ção de riqueza privada e investimentos públicos nessas áreas, nasceu uma nova
“aristocracia rural”, os barões do café. Enquanto isso, a vida no Nordeste e em
outras áreas se tornou cada vez mais difícil, e, com a aceleração da crise em 1850,
encerrou-se o ciclo de poder patriarcal que se fez em torno dos engenhos.
Mas dez anos antes, a seca já era retratada na obra que inaugurou a literatura
de ficção: A Bagaceira (1928), de José Américo de Almeida. O romance, apesar de
traçar o quadro da vida num engenho de açúcar, trata igualmente da seca e seus
personagens-tipo, isto é, o retirante, o jagunço etc.
Enquanto isso, o escritor baiano Jorge Amado adotava como pano de fundo
de seus romances o trabalho nas fazendas de cacau do sul da Bahia. Surge, deste
modo, um terceiro e importante elemento na literatura regionalista nordestina,
o cacau. A exemplo de Lins do Rego e seu ciclo da cana-de-açúcar, Jorge Amado
batizou de “ciclo do cacau” o conjunto de romances Cacau (1933), Terras do Sem
Fim (1942) e São Jorge dos Ilhéus (1944).
Nesse sentido, o romance se coloca na linha do romance social dos anos 1930
– diferentemente das obras anteriores de Lins do Rego, em que a crítica social
ficava nas entrelinhas, permanecendo em primeiro plano o relato memorialis-
20 Para assistir as videoaulas deste livro, assine o site www.planoeducacao.com.br
Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br
Modernismo dos anos 1930: o regionalismo
A primeira parte traz o seleiro, mestre José Amaro, trabalhador, pobre e orgu-
lhoso de sua condição de autonomia:
O mestre José Amaro, seleiro dos velhos tempos, trabalhava na porta de casa, com a fresca
da manhã de maio agitando as folhas da pitombeira que sombreava a sua casa de taipa, de
telheiro sujo. Lá para dentro estava a família. Sentia-se cheiro de panela no fogo, chiado do
toicinho no braseiro que enchia a sala de fumaça.
– Vai trabalhar para o velho José Paulino? É bom homem, mas eu lhe digo: estas mãos que o
senhor vê nunca cortaram sola para ele. Tem a sua riqueza, e fique com ela. Não sou criado de
ninguém. Gritou comigo, não vai. (REGO, p. 1998, p. 5)
A relação de Lula com o Santa Fé, senhor de engenho por laços de casamento,
era apenas de exploração das riquezas que ele produzia. Assim, o homem com
porte de senhor fidalgo, educado no Recife e órfão de pai morto na Revolução de
1848, ignorava a demanda do engenho para desgosto do sogro: “Tinha terra gorda
para trabalhar, dinheiro, negros, sementes, e ficava dentro de casa, naquela leseira,
naquela preguiça sem fim” (REGO, 1998, p. 128). Num segundo momento, com a
morte dos sogros, ele revela sua face de algoz e se torna o capitão Lula de Holanda,
o senhor de engenho mais cruel e odiado no Santa Fé e arredores. Porém, todo o
vigor era empregado no desmando e maldade, e nenhuma atenção era dedicada
ao trabalho no engenho, empresa que decaía de forma vertiginosa, acentuando-se
com a abolição da escravatura. Por fim, a queda do engenho foi a síntese da dege-
neração física e espiritual do senhor da casa-grande e sua família.
Erico Verissimo
Os anos chegavam e se iam. Mas o trabalho fazia Ana esquecer o tempo. No inverno tudo
ficava pior: a água gelava nas gamelas que passavam a noite ao relento; pela manhã o chão
frequentemente estava branco de geada e houve um agosto em que, quando foi lavar roupa na
sanga, Ana teve primeiro de quebrar com uma pedra a superfície gelada da água. (VERISSIMO,
1956b, p. 185)
Texto complementar
[...]
Uma das conclusões que se pode tirar dessa história do regionalismo bra-
sileiro é que a transição difícil nos reajustes sucessivos da nossa economia aos
avanços do capitalismo mundial se trama de modo específico e a literatura
tende a recontar o processo ora como decadência, ora como ascensão, ora
com pessimismo, ora com otimismo, dependendo de que lado está: da mo-
dernização ou da ruína. Quando consegue superar o otimismo autocentrado
das elites ganhadoras ou o simples ressentimento das frações perdedoras, ex-
pressando o modo como o pobre “paga o pato” em um e outro caso, ela supera
também os limites estreitos da ideologia, para virar forma de conhecimento e
vivência solitária dos diferentes problemas do homem pobre brasileiro.
São essas algumas das questões em jogo nas teses [abaixo], que aparece-
ram assim como um esforço de síntese, tentando deixar claro o que já ficou
menos obscuro para mim, depois de tantos encontros, desencontros e reen-
contros com escritores, obras e movimentos regionalistas. [...]
Teses
audível ao leitor da cidade, de onde surge e para a qual se destina essa lite-
ratura. À tensão entre idílio e realismo correspondem outras constitutivas do
regionalismo: entre nação e região, oralidade e a letra, campo e cidade, estó-
ria romanesca e romance; entre a visão nostálgica do passado e a denúncia
das misérias do presente.
10. Se o local e o provincial não são vistos como pura matéria, mas como
modo de formar, como perspectiva sobre o mundo, a dicotomia entre local
e universal se torna falsa. O importante é ver como o universal se realiza no
particular, superando-se como abstração na concretude deste e permitindo
a este superar-se como concreto na generalidade daquele. Desse modo, as
“peculiaridades regionais” alcançam uma existência que as transcende. Assim,
espaço fechado e mundo, ao mesmo tempo objetivos e subjetivos, não neces-
sitam perder sua amplitude simbólica. A função da crítica diante de obras que
se enquadram na tendência regionalista é, por isso, indagar da função que a
regionalidade exerce nelas; e perguntar como a arte da palavra faz com que,
através de um material que parece confiná-las ao beco a que se referem, algu-
mas alcancem a dimensão mais geral da beleza e, com ela, a possibilidade de
falar a leitores de outros becos de espaço e tempo, permanecendo, enquanto
outras (mesmo muitas que se querem imediatamente cosmopolitas, urbanas
e modernas) se perdem para uma história permanente da leitura.
Dicas de estudo
Para que o estudante possa completar as informações sobre a história brasilei-
ra refletida na literatura regional dos anos 1930, sugerimos as seguintes obras:
Estudos literários
1. Explique a reação do público que assistiu à Semana de Arte de 1922 em rela-
ção às propostas estéticas que foram apresentadas.
Com a pena irresoluta, muito tempo contemplei destroços flutuantes. Eu tinha confiado
naquele naufrágio, idealizara um grande naufrágio cheio de adjetivos enérgicos, e por
fim me aparecia um pequenino naufrágio inexpressivo, um naufrágio reles. E outro:
dezoito linhas de letra espichada, com emendas. (RAMOS, 1961, p. 99)
ratura nacional. Uma leitura mais atenta de Caetés, entretanto, pode nos dar uma
outra visão do assunto. As limitações estilísticas de João Valério, bem como sua
dificuldade na construção do romance histórico sobre os caetés, revelam mais
o esgotamento de uma temática e de um gênero que foram importantes no
século XIX, mas que nos novecentos não tinha mais lugar. Valério poderia nem
ser tão medíocre literariamente como ele mesmo vai se avaliando ao longo do
livro, mas sua fixação em retomar as fórmulas passadas da literatura brasileira é
que é o verdadeiro empecilho para sua realização como escritor.
A escolha do tema do “romance” de João Valério também não pode ser negli-
genciada. Mais do que simplesmente possibilitar uma relação com a produção
indianista do Romantismo, o motivo dos caetés canibais faz ainda um contra-
ponto ao movimento antropofágico da primeira fase modernista, proposto por
Oswald de Andrade.1 Na antropofagia oswaldiana, a cultura brasileira deveria
deglutir as obras e as estéticas estrangeiras, a fim de incorporá-las de forma
criativa à sua produção nacional, que então poderia entregar uma produção de
alto nível e, ao mesmo tempo, marcadamente nacional. No caso de Graciliano
Ramos, ele parece nos dizer exatamente o contrário: não há mais como engolir
os modelos estrangeiros, a estética “Sardinha” nos é intragável, e a literatura bra-
sileira deve se pôr em suas próprias bases e fontes.
Como prova extraliterária das interpretações que acabam de ser feitas, pode-
-se acrescentar o trecho de uma carta de Graciliano (1936) a sua segunda esposa,
Heloísa, que principiava também na carreira de escritora: “Foi o palavreado difícil
1
Aqui é necessária uma ressalva. O Manifesto Antropófago de Oswald é publicado em 1928, e Caetés, segundo o próprio autor, foi escrito entre 1925
e 1930. Então talvez só se possa falar numa coincidência de símbolos e reflexão entre os dois escritores.
A realidade brasileira
da obra de Graciliano Ramos
E qual é a realidade que Graciliano desejava expressar em sua obra? Podemos
defini-la em termos cronológicos como o período que compreende o Entreguer-
ras e o imediato pós-Segunda Guerra Mundial (entre as décadas de 1920 e 1950),
e situá-la geograficamente no Nordeste brasileiro. Apenas pela terminologia
escolhida para delimitar temporalmente essa realidade, pode-se perceber que
se trata do momento mais turbulento e trágico do século XX, considerado por
muitos historiadores um dos períodos mais terríveis da história da humanidade.
bruxas. Dessa forma, Vargas obtém maior controle sobre a nação e um importan-
te subterfúgio para se perpetuar no poder: o perigo comunista. Foi assim que,
em 1937, ele lança mão de um documento forjado, o Plano Cohen, que supos-
tamente revelaria um novo golpe comunista em andamento, como o de 1935,
provocando intenso temor na sociedade brasileira. Graças a essa fraude, quem
dá o golpe é Vargas, que instaura o regime ditatorial do Estado Novo.
Todo este excurso histórico tem muito a ver com o estudo da obra de Gracilia-
no. Como já indicamos no início do capítulo, para o romancista era da realidade
nacional que a literatura brasileira deveria cuidar e deveria saber expressá-la de
forma literária. Mas não é só isso, os episódios relatados correspondem estreita-
mente à experiência vital do escritor. Como ele mesmo estabeleceu como prin-
cípio de sua poética romanesca, que o autor só deveria escrever sobre aquilo
que experimentara, da realidade que vivera – “só conseguimos deitar no papel
os nossos sentimentos, a nossa vida. Arte é sangue, é carne. Além disso não há
nada. As nossas personagens são pedaços de nós mesmos, só podemos expor o
que somos” (RAMOS, 1992, p. 213). Vamos em seguida apresentar parte de sua
obra em constante diálogo com sua biografia e a realidade brasileira.
Caetés
Graciliano Ramos nos legou quatro romances de superior qualidade: Caetés
(1933), São Bernardo (1934), Angústia (1936) e Vidas Secas (1938), e dois livros de
memórias de grande importância em nossa literatura: Infância (1945) e Memó-
rias do Cárcere (1953, póstumo). Sua produção ainda comporta contos, crônicas,
relatos de viagem e textos de literatura infantil, que infelizmente não podere-
mos abordar aqui.
Caciques! Que entendia eu de caciques? Melhor seria compor uma novela em que arrumasse
padre Atanásio, o Dr. Liberato, Nicolau Varejão, o Pinheiro, D. Engrácia [personagens de Caetés].
Mas como achar enredo, dispor as personagens, dar-lhes vida? Decididamente não tinha
habilidade para a empresa: por mais que me esforçasse, só conseguiria garatujar uma narrativa
embaciada e amorfa. (RAMOS, 1961, p. 85)
Perceba com atenção: aquilo que o narrador, por estar comprometido com
uma visão retrógrada da literatura, diz não poder fazer, que é a representação da
realidade em que está inserido, é exatamente o que está sendo feito imediata-
mente diante dos olhos do leitor! Eis a genialidade de Ramos: pôr em ação no ro-
mance aquilo que o próprio texto diz não ser possível realizar, quebrando assim
as expectativas de quem lê, e abrindo sua mente para novas perspectivas.
Caetés tem sido sistematicamente visto como uma obra menor de Gracilia-
no (o livro é “bom, mas não ótimo”, segundo BOSI, 1994, p. 402), mas aqui nos
parece haver uma certa má vontade com um romance de estreia, talvez pelo
preconceito de que não se pode acertar logo na primeira tentativa. Pelo exposto,
nosso leitor deve fazer uma nova leitura do livro para, quem sabe, comprovar o
grau de inventividade e maestria que nele há.
São Bernardo e o último romance escrito por Graciliano, Vidas Secas (1938), são
as duas obras desse autor mais próximas da corrente do regionalismo nordesti-
no, a qual vinha sendo desenvolvida por nomes como José Lins do Rego, Rachel
de Queiroz e Jorge Amado. O que não quer dizer que os dois títulos possam ser
simplesmente rotulados assim, sem mais nem menos, pois, conforme o crítico
José Carlos Garbuglio (1987, p. 444-445) define, “Graciliano Ramos não é um ro-
mancista da seca. Ele tem um romance que por acaso trata das secas. Ele não é
Muito longe de ser uma apologia ao self-made man,2 o segundo livro de Graciliano
faz uma história da acumulação primitiva do capital em terras brasileiras. O romance
pode ser visto como uma exemplificação nacional da máxima atribuída a Balzac, ro-
mancista francês do século XIX: “Por trás de toda grande fortuna há um crime”. Para
atingir seus objetivos de ascensão social e, em particular, tornar-se o proprietário da
Fazenda São Bernardo, Honório deixou de lado a ética, suas regras morais, qualquer
escrúpulo e mesmo o próprio orgulho. Ele próprio o confessa no início do livro:
2
Self-made man (2004): Alguém que se fez por si próprio, com seu esforço.
No auge de sua fortuna, Paulo Honório, como todo bom burguês, quer dar
sentido e dignidade ao patrimônio conquistado, algo que o faça se perpetuar
no tempo, levando o nome do dono mesmo depois de morto. É assim que ele
pensa num herdeiro e toma a decisão de se casar. Entra em cena a já mencionada
Madalena, professora muito pobre que vivia com a tia D. Glória, único parente da
moça. O casamento se faz por conveniências: o fazendeiro quer um herdeiro, a
professora quer segurança material e prestígio social. Entretanto, a coisa desan-
da: Madalena concebe o filho pretendido por Honório, mas não se submete ao
mundo materialista do marido e procura se afirmar como indivíduo. No entanto,
na fazenda daquele capitalista rude e pragmático só há lugar para um indivíduo,
ao qual se subordinam todos os outros seres: máquinas, animais e homens – o
dono original. Madalena, diferente dos outros bens de Paulo Honório, não lhe
entrega algumas das funções pelas quais o homem a havia levado para sua casa,
ou seja, afeto, reconhecimento e gratidão.
Acostumado a obter o que desejava pela força, o dono de São Bernardo faz
da vida de Madalena um inferno. Vencida em seus propósitos, mas sem capitu-
lar em seus princípios de individuação, a professora termina se suicidando. O
trágico fim da esposa leva Paulo Honório a um profundo conflito interior, pois
sua morte frustra muitas de suas aspirações burguesas e abre uma fenda em sua
carcaça psicológica. Com isso, a força descomunal que punha na acumulação de
riquezas perde o seu vigor e o leva a um declínio como proprietário e adminis-
trador. É o fim de São Bernardo – da fazenda e do romance.
Vidas Secas difere dos romances analisados até aqui em vários pontos, a co-
meçar pela perspectiva do livro que é toda dada a partir de uma família miserá-
vel de retirantes da seca em Alagoas, uma gente cuja formação cultural e experi-
ência brutalizada de vida mal lhe permitiam a expressão verbal. Assim a história
é narrada em terceira pessoa, processo único dentre os romances de Graciliano,
com o uso sistemático do discurso indireto livre, no qual o narrador empresta
sua voz aos sentimentos e digressões dos personagens.
A seca da qual fogem Fabiano, sinha Vitória, o menino mais velho, o menino
mais novo e a cachorra Baleia é uma impiedosa força da natureza que, para ser
não vencida, mas sobrevivida, exige dos mais pobres a máxima cunhada por Eu-
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Literatura Brasileira Contemporânea
Texto complementar
[...]
Luís da Silva é membro de uma família rural em decadência, que por isso
vive na cidade a experiência da penúria, e este é o principal fundamento
prático de sua vida desventurada. A trajetória desse personagem é um ápice
de frustração, que nele suscita, tal qual em João Valério, ódio pelos mais fa-
vorecidos na escala social. A figura de Julião Tavares é a encarnação desse
outro de classe que tem de ser, sob a pressão do ódio obsessivo, eliminado.
No entanto, o desvalimento de Luís da Silva torna ambivalentes seus sen-
timentos em relação ao antagonista, o qual lhe inspira repulsa e inveja. Na
Enfim, Vidas Secas, no qual podemos apontar de saída dois traços que o
singularizam entre os romances do escritor alagoano: é o único escrito em
terceira pessoa e é também o único que eleva a plano de destaque o drama
do nordestino miserável, a tragédia social do Nordeste.
Dicas de estudo
Ficção e Confissão: ensaios sobre Graciliano Ramos, de Antonio Candido,
Editora Ouro sobre Azul.
Estudos literários
1. Disserte sobre o estilo literário de Graciliano e procure vinculá-lo aos prová-
veis princípios estético-críticos a que ele se propunha.
3. Faça uma análise sucinta das principais linhas de força do romance São Ber-
nardo.
Os anos pré-45:
em busca do equilíbrio perdido
Poesia
(DRUMMOND DE ANDRADE, 1988, p. 20)
Tradição e modernidade
A classificação de um poeta em uma ou outra “geração” não é uma decisão
estanque, como também não ocorre com a própria literatura; por isso, há histo-
riadores que afirmam que a literatura contemporânea brasileira – em vigência
– teve início nos anos 1930. De qualquer modo, é sempre vantajoso no estudo
literário identificar um período histórico em que, de algum modo, os aconteci-
mentos tenham provocado uma manifestação coletiva que levou a mudanças
artísticas, inclusive com um mesmo artista integrando diferentes momentos,
como foi o caso de Drummond.
Alguns membros dessa geração, apoiados pela crítica, defendiam uma rup-
tura categórica com as estéticas anteriores, decretando a morte de todo e qual-
quer resquício de Modernismo. No Primeiro Congresso Paulista de Poesia, em
1948, Domingos Carvalho da Silva (1915-2004) entusiasmava-se com a nova
onda literária:
Estamos, em conclusão, diante de uma nova poesia, profundamente, radicalmente nacional.
Diversa da que prevaleceu até poucos anos atrás no ambiente literário nacional. Não se trata
de uma questão opinativa, mas de um fato verificável objetivamente. O Modernismo foi ultra-
passado. Cabe portanto aos poetas novos prosseguir o rumo que se anuncia, sem transigência
com o passadismo e sem compromisso com a Semana de Arte Moderna. (SILVA, 1948, p. 67-69)
São muitas as diferenças de estilo entre os poetas dessa época, mas um ele-
mento comum a quase todos foi o uso da metalinguagem como uma verdadeira
declaração de princípios, manifestando, ainda que de forma dispersa e individu-
alista, a renovação da forma poética. Um dos casos exemplares são estes versos
de “Canto em Louvor da Poesia” (1945), de Domingos Carvalho da Silva (apud
MOISÉS, 1996, p. 384):
O amador de poemas:
Péricles Eugênio da Silva Ramos
Além do entusiasmado Domingos Carvalho da Silva que já mencionamos,
destacaremos alguns autores que ascenderam sob a chamada Geração de 45.
O primeiro deles é o poeta e crítico literário nascido em Lorena, interior de São
Paulo, Péricles Eugênio da Silva Ramos (1919-1992). Como era praxe entre os
filhos da burguesia brasileira do início do século passado, Silva Ramos formou-se
na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco; porém, o jovem deixou de
lado as coisas da lei, dedicando-se às letras, ajudando a firmar o que deveriam
ser os preceitos da Geração de 45.
Silva Ramos exerceu uma outra atividade comum aos literatos do período, a
tradução de obras que em geral contribuíam para a opção e/ou formação literária.
Entre seus trabalhos de tradução constam, por exemplo, os Sonetos de Shakespe-
are e uma coletânea de poetas líricos gregos e latinos, autores que certamente
contribuíram para a sua lírica. Além da prática da poesia, Péricles Eugênio da Silva
Ramos é reconhecido como um dos maiores especialistas no estudo da poética,
conforme atestam seus diversos ensaios publicados, entre outras coletâneas, em
O Amador de Poemas (1956). Algumas características atribuídas a sua poesia são:
serenidade, neoparnasianismo, classicismo helênico, memorialismo e confissão;
esses últimos ao invocar as lembranças da infância passada em Lorena. Sua estreia
na poesia se deu em 1946 com Lamentação Floral, obra com traços neoparnasia-
nos, conforme vemos em “O mundo, o novo mundo”:
[...]
Esses versos que, à primeira leitura, parecem mergulhados num tom “passa-
dista”, na verdade atendem aos preceitos de harmonia que o poeta defendia ao
lado de Domingos Carvalho da Silva: técnica, precisão de linguagem, intensida-
de emotiva, sentimento de medida, equilíbrio entre dicção e ritmo e abolição do
prosaísmo.
Lêdo Ivo
Ivo foi um dos poetas mais hostis ao Modernismo de 22, mas ao mesmo
tempo não se identificava com a poética de seus contemporâneos de 1945. O
crítico Wilson Martins (2004) argumenta que o próprio Ivo se definia como um
“transgressor” das ideias do período, pois, na opinião desse crítico, “os poetas re-
presentativos dessa escola eram eruditos de gabinete procurando imitar os ver-
dadeiros clássicos, propostos como modelos nos manuais de poética antiga”.
Deste modo, Ivo seria contemporâneo da Geração de 45, mas não exatamen-
te partidário das esparsas ideias ali apresentadas. Alguns críticos o consideram,
de fato, um redentor daquela geração de poetas desnorteados entre a estética
modernista e o mundo pós-guerra. Wilson Martins (2004) resume seu argumen-
to em prol de Ivo: “Em conjunto, a ‘poesia de 45’ foi anacrônica por definição e co-
letivizante por necessidade, enquanto os grandes poetas são sempre individua-
listas autônomos que deformam ou conformam o que encontram, exatamente
o que ocorre com Lêdo Ivo”.
Por tudo isso, Lêdo Ivo foi capaz de dar forma elevada àquela técnica, preci-
são de linguagem, emotividade, sentimento de medida que estavam no hori-
zonte da nova poesia, mas com a peculiaridade de reunir todo esse aparato com
um propósito claro: devolver a emoção à poesia brasileira.
Para Ivo, ser poeta é ser livre para descobrir o indizível, indescritível; é contem-
plar o belo e o sublime através de um mundo de formas orientado pela paixão:
“minha paixão reduz o mundo a formas” (“Jorrar”, em Um Brasileiro em Paris, apud
MOISÉS, 1996, p. 392). Enfim, é não se abster das possibilidades da poesia simbo-
lista ensinada pelo mestre Rimbaud.
Ao lado de João Cabral de Melo Neto e José Paulo Paes, Lêdo Ivo representa
os poetas que, mirando o horizonte, construíram a ponte entre o Modernismo e
o Concretismo, desenhando novas rotas no mapa de nossa poesia.
Em 1947, aos 21 anos, José Paulo Paes publicou em Curitiba o seu primeiro livro
de poemas. Nesse trabalho, o jovem revela apaixonadamente a sua admiração
pelos modernistas de 1922, confessando-se um aprendiz no próprio título dessa
obra inaugural: O Aluno. Sua reverência era para os mestres Carlos Drummond
de Andrade, Manuel Bandeira, Murilo Mendes, além dos estrangeiros Rimbaud,
Neruda, Éluard; nomeados ao longo do livro, a exemplo deste soneto:
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Literatura Brasileira Contemporânea
L’Affaire Sardinha
São meus todos os versos já cantados:
A flor, a rua, as músicas de infância,
O líquido momento e os azulados
Horizontes perdidos na distância. [...]
Apesar do tom de exaltação aos mestres, o aluno José Paulo levou uma repri-
menda do professor Drummond de Andrade, que o incitou a remexer a algibeira e
encontrar a sua própria fonte para a dança das tais borboletas, ou seja, desapegar-
se dos estilos sedimentados e formar a sua poética do mundo e dos homens.
Residindo na cidade de São Paulo desde 1949, ele publica o seu segundo livro,
Cúmplices, em 1951, dedicado à Dora, que no ano seguinte seria a sua esposa. O
tema predominante é o amor, mas a forma epigramática impede a desmedida.
Neste poema, o surpreendente último verso refreia o exagero emotivo com a
imagem de um cão:
Por fim, valem também para José Paulo Paes as palavras que Wilson Martins
(2004) dedicou a Lêdo Ivo, citadas anteriormente neste capítulo: “os grandes
poetas são sempre individualistas autônomos que deformam ou conformam
o que encontram”. Paes superou o modernismo anacrônico e encontrou a sua
própria voz lírica. Essa foi uma das inestimáveis contribuições de José Paulo Paes
para a literatura brasileira e mundial.
Manoel de Barros
No grupo de poetas que, a exemplo de Lêdo Ivo e José Paulo Paes, não res-
ponderam diretamente à convocação de ruptura com os “mestres do passado”
da Geração de 45, ouviu-se uma voz mato-grossense que, injustamente, esteve
ausente dos holofotes da crítica até meados dos anos de 1980. Estamos falando
de Manoel de Barros (1917), o poeta que desconstrói a palavra extraindo dela a
própria essência da vida:
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Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br
Literatura Brasileira Contemporânea
Seu interesse pelas letras foi despertado ainda no colégio com as obras do
padre Antonio Vieira e sua escrita elaborada em torno de frases plásticas que
pareciam mais importantes do que o próprio discurso do padre português. Mais
tarde, já na faculdade de Direito no Rio de Janeiro, tornou-se mais um dos admi-
radores do poeta francês Rimbaud e sua rebeldia pós-romântica. Mas, a essên-
cia de sua poesia, publicada pela primeira vez em 1937 com Poemas Concebidos
sem Pecado, encontra-se na experiência de sua infância vivida no Pantanal mato-
grossense, onde o pai era fazendeiro.
Títulos como Compêndio para Uso dos Pássaros (1961), Gramática Expositiva do
Chão (1969), Arranjos para Assobio (1983), O Guardador de Águas (1989) etc., de-
nunciam a sensibilidade para as coisas ao rés do chão, para a dinâmica da natureza
aprendida no quintal da infância. Foi nesse contexto que o pantaneiro Manoel de
Barros, mesmo quando estava radicado no Rio de Janeiro, deu à luz uma poesia
que muitos críticos consideram uma espécie de “poesia roseana”, ou seja, a recria-
ção linguística no jogo com as palavras (“No descomeço era o verbo”), a invocação
da matéria, as imagens telúricas, o folclore e costumes regionais que moldam seu
estilo remetem à escrita do prosador Guimarães Rosa. Vejamos um pequeno frag-
Nesse sentido, a poesia em prosa flui naturalmente em sua obra, ao lado dos
sonetos e das epigramas: algumas de suas formas de expressão, cujo estilo de
escrita não se enquadraria em molduras, ao contrário, seus versos fluem livres e
só obedecem à pluralidade lírica de um autor que não se deixou prender a ne-
nhuma corrente ou ideário.
Três coisas
Não consigo entender
O tempo
A morte
Teu olhar
O tempo é muito comprido
A morte não tem sentido
Teu olhar me põe perdido
(1984, p. 89)
Aliada à sua arte de poetizar celebrando a vida, Paulo Mendes Campos foi
um valoroso pensador da poesia. Em textos ensaísticos ele argumentou em prol
do que chamava de “os pormenores felizes da poesia”, aquelas características da
poesia que, em certa medida, eram defendidas igualmente pelos poetas de sua
geração: “imagens exatas, assonâncias, a valorização das palavras e dos sons,
uma exaltação de rimas, linguagem profundamente alusiva, a precisão contras-
tando com o impreciso, o familiar tornando-se estranho, o estranho tornando-se
familiar, o equilíbrio de tons e emoções [...]” (CAMPOS, 1952, p. 6).
Quanto à metalinguagem, neste poeta ela serviu como instrumento para ma-
nifestar o propósito de sua poesia, que hoje alguns poderiam aproximar, por
assim dizer, da vertente de “autoajuda”. Algo que pode ser visto nos versos do
longo poema “Hino à vida”, em que o poeta incita a prosseguir, apesar do ine-
vitável fim, pois homem e poeta devem “Continuar a primeira palavra escrita, /
Continuar a frase, não resigná-la / A temor, imperfeição, náusea, / Continuar com
imenso trabalho”, e assim encerra o seu apelo à poesia e à vida:
A breve análise que propusemos deste período de nossa história literária não
encerra uma conclusão; no entanto é possível defender que os poetas que se
elevaram a partir de 1945 não puderam rejeitar a velha casa de alicerces muito
sólidos que receberam de herança, mas não abriram mão de uma “reforma” geral
para atender às demandas da nova família poética. Então, paredes foram que-
bradas para facilitar o trânsito das ideias, e as que restaram foram pintadas com
mesclas de cores tradicionais e modernas. Com isso, recuperaram o livre arbí-
trio para sua expressão, sem temer a inquisição dos guardiões de 22, em versos
plenos de sonoridade e ritmo, imagens e figuras de linguagem, além dos devi-
dos cuidados métricos a critério exclusivo de sua expressão poética.
Texto complementar
A Geração de 451
(MELO NETO, 2006, p. 741-752)
Primeira parte
Apesar de existir há alguns anos a querela que acompanhou o nascimen-
to e o batismo da chamada Geração de 45 e apesar de os poetas dessa gera-
ção se mostrarem quase tão interessados em explicar-se quanto em criar, a
verdade é que o denominador comum do grupo ainda não foi estabelecido
com a desejada precisão.
Creio ver um equívoco nesses dois pontos de vista. Ambos parecem partir
da ideia de que é a revolta e a negação pelo avesso de tudo o que se estava
fazendo ou pensando, que caracteriza um novo movimento literário. De certa
maneira, em muitas literaturas, e na nossa principalmente, essa tem sido a lei
que prevalece. Não, por exemplo, na literatura inglesa. Lembro-me, a esse
respeito de um pequeno discurso de Stephen Spender, falando exatamente
na sabedoria da poesia inglesa, que não parece jamais interessar-se em levar
às últimas consequências práticas as ideias estéticas de um momento deter-
minado. A seu ver, essa capacidade para o compromise era o que a distinguia
melhor da de outros países, da francesa, por exemplo.
Uma geração pode continuar outra. A poesia dos poetas brasileiros que,
nascidos no princípio do século, estrearam por volta de 1930, quando a face
mais agudamente destruidora dos modernistas de 1922 estava superada,
não foi dirigida contra as ideias da Semana de Arte Moderna. Ao contrário
partiram deles, dos pontos de partida que eles haviam fixado no meio de
seu combate. E não me consta que alguém, em nome da necessidade de
renovação pela revolta, houvesse exigido desses poetas de 1930, o retorno
ao que existia antes de 1922.
O que esses poetas fizeram foi tirar o máximo de partido possível das con-
quistas do Modernismo. Aproveitando o terreno desentulhado, puderam iniciar
logo seu trabalho de criação positiva. O fato de não terem participado na primei-
ra fila do combate dava-lhes uma vantagem inicial: um recuo, um ponto de vista
de meia-isenção, suficiente para que pudessem distinguir o que naquela luta
era episódico, truque, deformação exigida pela própria luta. Em muitos casos,
os autores dessa Geração de 30 iniciaram sua criação positiva antes mesmo dos
responsáveis pelas operações de limpeza. Estes, em geral, tardaram ainda a se
ver livres das deformações e só mais tarde, aproveitando-se muitas vezes das
conclusões dos companheiros mais jovens, puderam iniciar sua obra pessoal.
Não é preciso lembrar que alguns deles só foram capazes de realizar bem a pri-
meira fase polêmica, a poesia da Semana de Arte Moderna.
A atitude dos poetas da Geração de 45 também não podia ser uma atitu-
de de revolta. Na verdade, as possibilidades do terreno aberto pelo Moder-
nismo longe estão de esgotadas. Os poetas dos anos 1930, juntamente com
os poetas de 1922 que puderam superar o combate pelo combate, estabe-
leceram dentro desse território, núcleos de exploração importantes. Mas se
alguns desses núcleos mostram-se agora de fogo morto, se alguns dos ex-
ploradores mostram-se cansados ou dispostos a abandonar o terreno, nada
disso é prova contra a riqueza que ali ainda existe.
Dicas de estudo
Para que o estudante possa completar as informações sobre as características
da poesia brasileira no período a partir de 1945, sugerimos as seguintes obras:
Estudos literários
1. Carlos Drummond de Andrade é considerado ícone da Geração de 30, mas
sua poesia foi igualmente importante para a Geração de 45. Por quê?
É chegada a prosa de 45
A Geração de 45, que os historiadores da literatura brasileira denomi-
nam terceira fase modernista, ou mesmo modernismo “tardio”, apresenta-
se com outra dicção. O projeto vislumbrado pelos autores que surgem
nesse período, projeto que pouco a pouco se consolida e convence a crí-
tica literária, alicerça-se sobremaneira na metalinguagem. É intencional o
interesse dos autores em valorizar os elementos que materializam os seus
estratos poéticos, a fim de realçar, mais que nunca, os planos da expressão
Diz mais:
Os fatos do livro não importam; não são eles que procuro identificar com a figura da autora,
pois o que devemos reter e contemplar é o ser humano que está animando estas páginas de
ficção. O que se deverá fixar, antes de tudo, em Perto do Coração Selvagem, será exatamente
aquela personalidade da sua autora, a sua estranha natureza humana. (LINS, 1963, p. 189)
Álvaro Lins não vê com bons olhos o talhe inacabado da obra, identificando
falta de unidade na estrutura do romance. Alcunha a protagonista Joana, alter
ego da autora, ao que lhe parece, de “estranha natureza humana”. Tal impressão
resulta da receptividade intensa, sensível, sinestésica, reticente que compreen-
de, em larga medida, a feminilidade da personagem cuja infância, adolescência
e fase adulta confluem-se e saltam simultaneamente às páginas. Lê-se no capí-
tulo “O banho”:
A água cega e surda mas alegremente não muda brilhando e burbulhando de encontro ao
esmalte claro da banheira. O quarto abafado de vapores mornos, os espelhos embaçados, o
reflexo do corpo já nu de uma jovem nos mosaicos úmidos das paredes.
A moça ri mansamente de alegria de corpo. Suas pernas delgadas, lisas, os seios pequenos
brotaram da água. Ela mal se conhece, nem cresceu de todo, apenas emergiu da infância. [...]
Imerge na banheira como no mar. Um mundo morno se fecha sobre ela silenciosamente,
quietamente... (LISPECTOR, 1990, p. 76-77)
Já o crítico Sérgio Milliet, no mesmo ano, observa na obra pontos que vão
além do hibridismo de vozes (narrador, autora e personagem), valorizando o li-
rismo na tessitura da intriga e a agudeza de Joana, que “vê crescer dentro de si a
invenção, a clarividência e a curiosidade”. Pois,
[...] para essa heroína de olhos fixos nos pormenores, nos mais tênues movimentos da vida, não
há uma realidade, mas várias; e todo o seu drama nasce da contradição, do antagonismo de
seu mundo próprio, cheio de significados específicos, com os olhos alheios, ou mais vulgares e
impenetráveis. (MILLIET, 1981, p. 28-29)
A ficção de Clarice Lispector merece justamente ser valorizada por essa vee-
mência, isto é, desordem no jeito de representar. Aliás, a autora expõe suas perso-
nagens, com regularidade, a experiências que culminam em significativas crises
existenciais. E por assim exibir a vida interior da mulher de classe média carioca
do seu tempo, coube-lhe o reconhecimento como escritora que melhor expan-
diu, em língua portuguesa, a identidade feminina, perpassando todas as idades
(da infância à velhice) – o que não quer dizer que os homens que figuram em
seus textos se delineiem menos expressivos.
Sabe-se que Ana leva uma vida sem grandes surpresas, acompanhando os
filhos que cresciam,
[...] tomavam banho, exigiam para si. [...] A cozinha era enfim espaçosa, o fogão enguiçado
dava estouros. O calor era forte no apartamento que estavam aos poucos pagando. Mas o
vento batendo nas cortinas que ela mesma cortara lembrava-lhe que se quisesse podia parar
e enxugar a testa, olhando o calmo horizonte. (LISPECTOR, 1983, p. 19)
1
Affonso Romano de Sant’Anna, em “Clarice: A Epifania da Escrita”, texto publicado como prefácio do volume de contos A Legião Estrangeira de
Clarice Lispector (São Paulo: Ática, 1977, p. 4-5), afiança que, com as personagens claricianas, “ocorre um fenômeno que a autora não nomeia, mas
que a crítica pode chamar de epifania: uma súbita revelação da verdade. [...] Significa um relato da experiência que a princípio se torna simples e
rotineira, mas que acaba por mostrar a força de uma inusitada revelação. É a percepção de uma realidade atordoante [...], a consciência se abre para
o mundo em momentos luminosos”.
Nas árvores as frutas eram pretas, doces como mel. Havia no chão caroços secos cheios de
circunvoluções, como pequenos cérebros apodrecidos. O banco estava manchado de sucos
roxos. Com suavidade intensa rumorejavam as águas. No tronco da árvore pregavam-se as
luxuosas patas de uma aranha. A crueza do mundo era tranquila. O assassinato era profundo.
E a morte não era o que pensávamos. (LISPECTOR, 1983, p. 25-26)
Nos romances, reincidem essas provações – mas num esquema não tão demar-
cado como nos contos; não o fosse, as áreas de ocupação de suas personagens se
desenhariam menos acidentadas e impactantes, é o que se depreende do entorno
de Virgínia em O Lustre (1946), de Lucrécia Neves em A Cidade Sitiada (1949), de
Martim em A Maçã no Escuro (1961), de G.H. em A Paixão Segundo G.H. (1964) e de
Macabéa em A Hora da Estrela (1977). Os dois últimos títulos citados já se tornaram
referência, e gozam de alto prestígio na história da literatura brasileira.
[...] este romance, se segue a trilha do romance social dos anos 1930, que tem o Nordeste como
espaço da fome e da miséria, lança a personagem já no cenário agressivo da grande capital –
como tantos milhões de brasileiros que assim tentam melhorar de vida. E laça o receptor de
modo intenso pelas entranhas. Tal como Clarice, quando afirma que “há gente que cose para
fora, eu coso para dentro”, esse livro fisga o leitor na íntima e difícil angústia de um conflito,
que é social, mas que aparece experimentado de dentro, na sua densa repercussão de ordem
existencial.
Até porque nenhuma outra narrativa de Lispector arquiteta com tanta tena-
cidade a exclusão; enfoca, entre outros pontos, a questão da fome e da mora-
dia, uma vez que Macabéa aluga um quarto coletivo, em bairro miserável do
subúrbio carioca, com moças que trabalham nas Lojas Americanas, além de se
alimentar de cachorro-quente e Coca-Cola (consumo barato). A protagonista
desconhece as etiquetas básicas de higiene, tem uma dor de dente lancinante
e, sempre que pode, toma aspirina, para amenizar uma outra dor: a de existir.
Contenta-se com o mínimo. É ouvinte de um programa de rádio que, de minuto
a minuto, informa as horas e desperta para curiosidades gerais.
Considerações finais
Muitos são os estudos publicados sobre Clarice Lispector. A autora é tra-
duzida e pesquisada em vários países. Pesquisas em universidades brasileiras
têm-lhe concebido inúmeras perspectivas de abordagem: a relação entre vida e
obra (biografia) a partir também de leitura de suas fotografias (fotobiografia); a
transcrição de cartas que trocou com amigos e familiares; as adaptações de seus
textos para o cinema e para o teatro; as traduções de autores ingleses e franceses
que realizou; a aproximação entre os escritos ficcionais, a produção jornalística e
a pintura que compôs – esta, no antepenúltimo ano de vida, em 1975.
Texto complementar
Os Laços de Família
(LISPECTOR, 1983, p. 107-117)
Ainda estava sob a impressão da cena meio cômica entre sua mãe e seu
marido, na hora da despedida. Durante as duas semanas da visita da velha,
os dois mal se haviam suportado; os bons-dias e as boas-tardes soavam a
cada momento com uma delicadeza cautelosa que a fazia querer rir. Mas eis
que na hora da despedida, antes de entrarem no táxi, a mãe se transformara
em sogra exemplar e o marido se tornara o bom genro. “Perdoe alguma pa-
lavra mal dita”, dissera a velha senhora, e Catarina, com alguma alegria, vira
Antônio não saber o que fazer das malas nas mãos, a gaguejar – perturbado
em ser o bom genro. “Se eu rio, eles pensam que estou louca”, pensara Cata-
rina franzindo as sobrancelhas. “Quem casa um filho perde um filho, quem
casa uma filha ganha mais um”, acrescentara a mãe, e Antônio aproveitara
sua gripe para tossir. Catarina, de pé, observava com malícia o marido, cuja
segurança se desvanecera para dar lugar a um homem moreno e miúdo, for-
çado a ser filho daquela mulherzinha grisalha… Foi então que a vontade de
rir tornou-se mais forte. Felizmente nunca precisava rir de fato quando tinha
vontade de rir: seus olhos tomavam uma expressão esperta e contida, torna-
vam-se mais estrábicos – e o riso saía pelos olhos. Sempre doía um pouco ser
capaz de rir. Mas nada podia fazer contra: desde pequena rira pelos olhos,
desde sempre fora estrábica.
– Continuo a dizer que o menino está magro, disse a mãe resistindo aos
solavancos do carro. E apesar de Antônio não estar presente, ela usava o
mesmo tom de desafio e acusação que empregava diante dele. Tanto que
uma noite Antônio se agitara: não é por culpa minha, Severina! Ele chamava
a sogra de Severina, pois antes do casamento projetava serem sogra e genro
modernos. Logo à primeira visita da mãe ao casal, a palavra Severina tornara-
se difícil na boca do marido, e agora, então, o fato de chamá-la pelo nome
não impedira que… – Catarina olhava-os e ria.
– Sim, sim!
– “Ela” foi?
Passou pela sala, sem parar avisou ao marido: vamos sair! e bateu a porta
do apartamento.
Por que andava ela tão forte, segurando a mão da criança? Pela janela via
sua mulher prendendo com força a mão da criança e caminhando depressa,
com os olhos fixos adiante; e, mesmo sem ver, o homem adivinhava sua boca
endurecida. A criança, não se sabia por que obscura compreensão, também
olhava fixo para a frente, surpreendida e ingênua. Vistas de cima as duas fi-
guras perdiam a perspectiva familiar, pareciam achatadas ao solo e mais es-
curas à luz do mar. Os cabelos da criança voavam…
“Mas e eu? e eu?” perguntou assustado. Os dois tinham ido embora sozi-
nhos. E ele ficara. “Com o seu sábado.” E sua gripe. No apartamento arruma-
do, onde “tudo corria bem”. Quem sabe se sua mulher estava fugindo com o
filho da sala de luz bem regulada, dos móveis bem escolhidos, das cortinas
e dos quadros? Fora isso o que ele lhe dera. Apartamento de um engenhei-
ro. E sabia que se a mulher aproveitava da situação de um marido moço e
cheio de futuro – desprezava-a também, com aqueles olhos sonsos, fugindo
com seu filho nervoso e magro. O homem inquietou-se. Porque não poderia
continuar a lhe dar senão mais sucesso. E porque sabia que ela o ajudaria a
consegui-lo e odiaria o que conseguissem. Assim era aquela calma mulher
de trinta e dois anos que nunca falava propriamente, como se tivesse vivido
sempre. As relações entre ambos eram tão tranquilas. Às vezes ele procurava
humilhá-la, entrava no quarto enquanto ela mudava de roupa porque sabia
que ela detestava ser vista nua. Por que precisava humilhá-la? No entanto
ele bem sabia que ela só seria de um homem enquanto fosse orgulhosa. Mas
Mas ele a olhara da janela, vira-a andar depressa de mãos dadas com o
filho, e dissera-se: ela está tomando o momento de alegria – sozinha. Sentira-
-se frustrado porque há muito não poderia viver senão com ela. E ela con-
seguia tomar seus momentos – sozinha. Por exemplo, que fizera sua mulher
entre o trem e o apartamento? Não que a suspeitasse mas inquietava-se.
Dicas de estudo
A fim de que o estudante complemente a sua leitura sobre Clarice Lispector,
apresentamos as seguintes sugestões:
Clarice – uma vida que se conta, de Nádia Battella Gotlib, Editora Ática.
Estudos literários
1. É possível afirmar que a transgressão àquele sistema literário inclinado à li-
nearidade na exposição dos eventos narrativos, por meio de enredos que se
retratam e se projetam mais definidos e sequenciados, caracteriza o projeto
ficcional de Clarice Lispector? Por quê?
Cabe frisar que o autor de Sagarana é exímio conhecedor desse homem. Nas-
cido em Cordisburgo, região centro-norte do estado de Minas Gerais, em 1908,
e falecido em 1967, aos 59 anos, no Rio de Janeiro, é filho de pai comerciante e
assiste já na infância à cotidianidade singular do seu povo. Em entrevista con-
cedida em janeiro de 1965 ao crítico Günter W. Lorenz, em Gênova, Rosa é cate-
górico ao identificar-se como sertanejo, uma vez que “este pequeno mundo do
sertão, este mundo original e cheio de contrastes”, lhe é “o símbolo, diria mesmo
o modelo de” seu universo” (LORENZ, 1979, p. 7).
verifica-se estreita equivalência entre o sujeito mentor que conduz a trama ro-
siana e a concepção de narrador defendida pelo filósofo Walter Benjamin em
ensaio datado de 1936. Segundo o pensador alemão:
A experiência que passa de pessoa a pessoa é a fonte a que recorreram todos os narradores.
E, entre as narrativas escritas, as melhores são as que menos se distinguem das histórias orais,
contadas pelos inúmeros narradores anônimos. (BENJAMIN, 1994, p. 198)
Certo dia, por acaso, chega a esse lugar o bando de Joãozinho Bem-Bem. Ma-
traga recebe-o com hospitalidade e resiste ao convite sincero do chefe dos jagun-
ços em agregá-lo ao grupo forasteiro. Todavia, o destino propiciará um último
encontro entre eles: recuperado, depois de despedir-se dos pretos que o acolhe-
ram, parte a esmo, e a caminho depara-se com Joãozinho e seu bando envolvidos
numa vingança que implicaria a morte de um inocente. Não atendido pelo chefe,
seu velho comparsa, Matraga lança-se contra ele, morrendo ambos nesse duelo.
E o povo, enquanto isso, dizia: – “Foi Deus quem mandou esse homem no jumento, por mór de
salvar as famílias da gente!...” E a turba começou a querer desfeitear o cadáver de seu Joãozinho
Bem-Bem, todos cantando uma cantiga que qualquer um estava inventando na horinha:
– Para com essa matinada, cambada de gente herege!... E depois enterrem bem direitinho o
corpo, com muito respeito e em chão sagrado, que esse aí é o meu parente seu Joãozinho
Bem-Bem! (ROSA, 1984, p. 385-386)
A sina desse herói tem fechamento sublime e com alta reserva de ambigui-
dade. Matraga – sujeito com histórico desonrado – sacrifica-se por um estranho,
divergindo da injustiça que durante muito tempo o condecorou.
Em “Sorôco, sua mãe, sua filha”, um viúvo encaminha as mais íntimas e próxi-
mas parentas ao vagão do trem que as conduzirá ao hospício. É quando as duas
mulheres se põem a cantar, iniciando uma cantoria contagiante, a consumir esse
pai e filho assistido pelo povoado que, em solidariedade, reforça o coro insano.
Num rompido – ele começou a cantar, alteado, forte, mas sozinho para si – e era a cantiga,
mesma, de desatino, que as duas tanto tinham cantado. Cantava continuando./ [...] [E] todos,
de uma vez, de dó dele, principiaram também a acompanhar aquele canto sem razão. (ROSA,
1962, p. 18)
Mas, então, ao menos, que, no artigo da morte, peguem em mim, e me depositem também
numa canoinha de nada, nessa água que não para, de longas beiras: e, eu, rio abaixo, rio a fora,
rio a dentro – o rio. (ROSA, 1962, p. 37)
Rosa em versos
Rosa implantou na literatura brasileira uma nova língua. No entanto, seu
enlevo não se restringe à excentricidade vernacular: deve-se, e muito, à prodi-
giosa mestria de urdir um sertão fantasioso, de entalhe insólito e, por mais anta-
gônico que pareça, incisivamente verdadeiro.
Um chamado João
Projetava na gravatinha
a quinta face das coisas,
inenarrável narrada?
Um estranho chamado João
para disfarçar, para farçar
o que não ousamos compreender?
Tinha pastos, buritis plantados
no apartamento?
no peito?
Vegetal ele era ou passarinho
sob a robusta ossatura com pinta
de boi risonho?
Era um teatro
e todos os artistas
no mesmo papel,
ciranda multívoca?
João era tudo?
tudo escondido, florindo
como flor é flor, mesmo não semeada?
Mapa com acidentes
deslizando para fora, falando?
Guardava rios no bolso,
cada qual com a cor de suas águas?
sem misturar, sem conflitar?
E de cada gota redigia
nome, curva, fim,
e no destinado geral
seu fado era saber
para contar sem desnudar
o que não deve ser desnudado
e por isso se veste de véus novos?
se lhe perguntavam
que mistério é esse?
Texto complementar
Nosso pai era homem cumpridor, ordeiro, positivo; e sido assim desde moci-
nho e menino, pelo que testemunharam as diversas sensatas pessoas, quando
indaguei a informação. Do que eu mesmo me alembro, ele não figurava mais es-
túrdio nem mais triste do que os outros, conhecidos nossos. Só quieto. Nossa mãe
era quem regia, e que ralhava no diário com a gente – minha irmã, meu irmão e
eu. Mas se deu que, certo dia, nosso pai mandou fazer para si uma canoa.
de ser toda fabricada, escolhida forte e arqueada em rijo, própria para dever
durar na água por uns vinte ou trinta anos. Nossa mãe jurou muito contra a
ideia. Seria que, ele, que nessas artes não vadiava, se ia propor agora para
pescarias e caçadas? Nosso pai nada não dizia. Nossa casa, no tempo, ainda
era mais próxima do rio, obra de nem quarto de légua: o rio por aí se esten-
dendo grande, fundo, calado que sempre. Largo, de não se poder ver a forma
da outra beira. E esquecer não posso, do dia em que a canoa ficou pronta.
Nosso pai não voltou. Ele não tinha ido a nenhuma parte. Só executava a
invenção de se permanecer naqueles espaços do rio, de meio a meio, sempre
dentro da canoa, para dela não saltar, nunca mais. A estranheza dessa verda-
de deu para estarrecer de todo a gente. Aquilo que não havia, acontecia. Os
parentes, vizinhos e conhecidos nossos, se reuniram, tomaram juntamente
conselho.
Nossa mãe, vergonhosa, se portou com muita cordura; por isso, todos
pensaram de nosso pai a razão em que não queriam falar: doideira. Só uns
achavam o entanto de poder também ser pagamento de promessa; ou que,
nosso pai, quem sabe, por escrúpulo de estar com alguma feia doença, que
seja, a lepra, se desertava para outra sina de existir, perto e longe de sua fa-
mília dele. As vozes das notícias se dando pelas certas pessoas – passadores,
moradores das beiras, até do afastado da outra banda – descrevendo que
nosso pai nunca se surgia a tomar terra, em ponto nem canto, de dia nem de
noite, da forma como cursava no rio, solto solitariamente. Então, pois, nossa
mãe e os aparentados nossos, assentaram: que o mantimento que tivesse,
ocultado na canoa, se gastava; e, ele, ou desembarcava e viajava s’embora,
No que num engano. Eu mesmo cumpria de trazer para ele, cada dia, um
tanto de comida furtada: a ideia que senti, logo na primeira noite, quando
o pessoal nosso experimentou de acender fogueiras em beirada do rio, en-
quanto que, no alumiado delas, se rezava e se chamava. Depois, no seguinte,
apareci, com rapadura, broa de pão, cacho de bananas. Enxerguei nosso pai,
no enfim de uma hora, tão custosa para sobrevir: só assim, ele no ao-longe,
sentado no fundo da canoa, suspendida no liso do rio. Me viu, não remou
para cá, não fez sinal. Mostrei o de comer, depositei num oco de pedra do
barranco, a salvo de bicho mexer e a seco de chuva e orvalho. Isso, que fiz,
e refiz, sempre, tempos a fora. Surpresa que mais tarde tive: que nossa mãe
sabia desse meu encargo, só se encobrindo de não saber; ela mesma deixa-
va, facilitado, sobra de coisas, para o meu conseguir. Nossa mãe muito não
se demonstrava.
Mandou vir o tio nosso, irmão dela, para auxiliar na fazenda e nos negó-
cios. Mandou vir o mestre, para nós, os meninos. Incumbiu ao padre que um
dia se revestisse, em praia de margem, para esconjurar e clamar a nosso pai
o dever de desistir da tristonha teima. De outra, por arranjo dela, para medo,
vieram os dois soldados. Tudo o que não valeu de nada. Nosso pai passa-
va ao largo, avistado ou diluso, cruzando na canoa, sem deixar ninguém se
chegar à pega ou à fala. Mesmo quando foi, não faz muito, dos homens do
jornal, que trouxeram a lancha e tencionavam tirar retrato dele, não vence-
ram: nosso pai se desaparecia para a outra banda, aproava a canoa no brejão,
de léguas, que há, por entre juncos e mato, e só ele conhecesse, a palmos, a
escuridão, daquele.
Minha irmã se casou; nossa mãe não quis festa. A gente imaginava nele,
quando se comia uma comida mais gostosa; assim como, no gasalhado da
noite, no desamparo dessas noites de muita chuva, fria, forte, nosso pai só
com a mão e uma cabaça para ir esvaziando a canoa da água do temporal.
Às vezes, algum conhecido nosso achava que eu ia ficando mais parecido
com nosso pai. Mas eu sabia que ele agora virara cabeludo, barbudo, de
unhas grandes, mal e magro, ficado preto de sol e dos pêlos, com o aspecto
de bicho, conforme quase nu, mesmo dispondo das peças de roupas que a
gente de tempos em tempos fornecia.
Nem queria saber de nós; não tinha afeto? Mas, por afeto mesmo, de res-
peito, sempre que às vezes me louvavam, por causa de algum meu bom pro-
cedimento, eu falava: – “Foi pai que um dia me ensinou a fazer assim...”; o que
não era o certo, exato; mas, que era mentira por verdade. Sendo que, se ele
não se lembrava mais, nem queria saber da gente, por que, então, não subia
ou descia o rio, para outras paragens, longe, no não encontrável? Só ele sou-
besse. Mas minha irmã teve menino, ela mesma entestou que queria mostrar
para ele o neto. Viemos, todos, no barranco, foi num dia bonito, minha irmã
de vestido branco, que tinha sido o do casamento, ela erguia nos braços a
criancinha, o marido dela segurou, para defender os dois, o guarda-sol. A
gente chamou, esperou. Nosso pai não apareceu. Minha irmã chorou, nós
todos aí choramos, abraçados.
Minha irmã se mudou, com o marido, para longe daqui. Meu irmão re-
solveu e se foi, para uma cidade. Os tempos mudavam, no devagar depres-
sa dos tempos. Nossa mãe terminou indo também, de uma vez, residir com
minha irmã, ela estava envelhecida. Eu fiquei aqui, de resto. Eu nunca podia
querer me casar. Eu permaneci, com as bagagens da vida. Nosso pai carecia
de mim, eu sei – na vagação, no rio no ermo – sem dar razão de seu feito. Seja
que, quando eu quis mesmo saber, e firme indaguei, me diz-que-disseram:
que constava que nosso pai, alguma vez, tivesse revelado a explicação, ao
homem que para ele aprontara a canoa. Mas, agora, esse homem já tinha
morrido, ninguém soubesse, fizesse recordação, de nada mais. Só as falsas
conversas, sem senso, como por ocasião, no começo, na vinda das primei-
ras cheias do rio, com chuvas que não estiavam, todos temeram o fim-do-
mundo, diziam: que nosso pai fosse o avisado que nem Noé, que, portanto,
a canoa ele tinha antecipado; pois agora me entrelembro. Meu pai, eu não
podia malsinar. E apontavam já em mim uns primeiros cabelos brancos.
Sou homem de tristes palavras. De que era que eu tinha tanta, tanta
culpa? Se o meu pai, sempre fazendo ausência: e o rio-rio-rio, o rio – pondo
perpétuo. Eu sofria já o começo de velhice – esta vida era só o demoramento.
Eu mesmo tinha achaques, ânsias, cá de baixo, cansaços, perrenguice de reu-
matismo. E ele? Por quê? Devia de padecer demais. De tão idoso, não ia, mais
dia menos dia, fraquejar do vigor, deixar que a canoa emborcasse, ou que
bubuiasse sem pulso, na levada do rio, para se despenhar horas abaixo, em
tororoma e no tombo da cachoeira, brava, com o fervimento e morte. Aper-
tava o coração. Ele estava lá, sem a minha tranquilidade. Sou o culpado do
que nem sei, de dor em aberto, no meu foro. Soubesse – se as coisas fossem
outras. E fui tomando ideia.
Sem fazer véspera. Sou doido? Não. Na nossa casa, a palavra doido não
se falava, nunca mais se falou, os anos todos, não se condenava ninguém de
doido. Ninguém é doido. Ou, então, todos. Só fiz, que fui lá. Com um lenço,
para o aceno ser mais. Eu estava muito no meu sentido. Esperei. Ao por fim,
ele apareceu, aí e lá, o vulto. Estava ali, sentado à popa. Estava ali, de grito.
Chamei, umas quantas vezes. E falei, o que me urgia, jurado e declarado, tive
que reforçar a voz: – “Pai, o senhor está velho, já fez o seu tanto... Agora, o
senhor vem, não carece mais... O senhor vem, e eu, agora mesmo, quando
que seja, a ambas vontades, eu tomo o seu lugar, do senhor, na canoa!...” E,
assim dizendo, meu coração bateu no compasso do mais certo.
Ele me escutou. Ficou em pé. Manejou remo n’água, proava para cá, con-
cordado. E eu tremi, profundo, de repente: porque, antes, ele tinha levantado
Sofri o grave frio dos medos, adoeci. Sei que ninguém soube mais dele.
Sou homem, depois desse falimento? Sou o que não foi, o que vai ficar calado.
Sei que agora é tarde, e temo abreviar com a vida, nos rasos do mundo. Mas,
então, ao menos, que, no artigo da morte, peguem em mim, e me deposi-
tem também numa canoinha de nada, nessa água que não pára, de longas
beiras: e, eu, rio abaixo, rio a fora, rio a dentro – o rio.
Dicas de estudo
A fim de que o estudante complemente a sua leitura sobre Guimarães Rosa,
apresentamos as seguintes sugestões:
Estudos literários
1. Embora a narrativa de Guimarães Rosa se apresente como regionalista, é pos-
sível atestar que o tratamento dado ao regional, em sua obra, se difere do de-
senvolvido pelos modernistas da Geração de 30. Comente essa afirmação.
2. O texto rosiano mostra-se bastante identificado com os relatos orais. Tal pro-
ximidade lhe confere, então, uma estruturação mais simplificada?
João Cabral faleceu em 1999, mas sua poesia continua viva e atuante
em nossa cultura, como prova as novas edições de sua obra e a contínua
referência a ele feita pelos escritores em atividade. Ferreira Gullar continua
escrevendo, publicando e atuando na cultura e política nacionais.
O menino guenzo era João Cabral de Melo Neto (Recife, 1920 – Rio de Janeiro,
1999), que fora uma criança bem dotada, havendo aprendido a ler muito cedo, e
passara a maior parte da infância nos engenhos de sua enorme e tradicional fa-
mília. Foi assim que o futuro poeta iniciou uma profunda relação com a paisagem
rural de seu estado, com os sofridos trabalhadores da terra, com o fluxo tortuoso
do belo rio Capibaribe e, sem dúvida, foi iniciado na poesia popular e autêntica do
Nordeste brasileiro. Misture-se tudo isso e acrescente-se uma estupenda técnica
poética arduamente desenvolvida ao longo dos anos, e se terá uma das obras líri-
cas mais marcadamente brasileiras e altamente inventivas do século XX.
– O cassaco de engenho
vai amarelamente
entre todo esse azul
que é Pernambuco sempre.
– Mesmo contra o amarelo
da palha canavial,
ainda é mais amarelo
o seu, porque moral.
– O cassaco de engenho
é o amarelo tipo:
– É amarelo de corpo
e de estado de espírito.
– De onde a calma que às vezes
parece sabedoria:
– Mas não é calma, nada,
é o nada, é calmaria.
(MELO NETO, 1988, p. 63)
1
“O que vem a ser o cassaco? Trabalhador na plantação de cana-de-açúcar com todas as marcas de penúria, doença e morte que essa condição im-
plica. O dicionário de Houaiss vai ao encalço de uma possível origem africana, banta, do termo: no quicongo angolês, Kasakana quer dizer ‘trabalhar,
fazer qualquer coisa sob o império da fome ou de outras necessidades’ ” (BOSI, 2004, p. 195).
2
Muito magro, adoentado ou fraco. É assim que o poeta se descreve em “O rio”: “um menino bastante guenzo / de tarde olhava o rio / como se filme
de cinema; / via-me, rio, passar / com meu variado cortejo / de coisas vivas, mortas, / coisas de lixo e de despejo” (MELO NETO, 2006, p. 137).
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Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br
João Cabral de Melo Neto e Ferreira Gullar: duas poéticas
É claro que temos aqui uma crítica à ideologia das elites dominantes no Nordeste
do Brasil. Chegamos, portanto, a uma característica a mais da poesia de João Cabral,
sua grande sensibilidade social, que é instrumentalizada numa contundente crítica
às condições dos menos favorecidos e numa posição política de esquerda.
Voltando à sua biografia, passada a infância nas fazendas de seus pais, João
Cabral estuda no Recife, completando apenas o nível secundário. Motivos de
saúde, segundo alguns biógrafos, o impediram de cursar a universidade. O que
paradoxalmente não o impediu de ser um bom futebolista e de vencer o cam-
peonato estadual juvenil pelo time do Santa Cruz (com certeza para desgosto
de seu conterrâneo Ariano Suassuna, poeta e sportista [torcedor do Sport Club
do Recife] fanático) em 1935. O amor pelo futebol acabou virando também um
dos temas recorrentes em sua poesia, em que, além de louvar a beleza plástica
do esporte bretão, ainda homenageou grandes ídolos de sua época, como, por
exemplo, Ademir da Guia (ídolo maior do clube Palmeiras) e Ademir Meneses
(craque pernambucano), entre outros.
Nesse magnífico poema, João Cabral aproxima o futebol da tourada, uma outra
de suas fascinações, e um tema sempre presente em sua obra. Mas, no caso, o
futebol, além da destreza também necessária nas corridas de touros, requer uma
malícia e uma atenção que o leva mais para o campo do sexo e da sedução. Talvez
o poeta visse os dois esportes como representações psicanalíticas – a psicanálise
foi um de seus grandes interesses intelectuais –, em que um, a tauromaquia, se en-
contra na esfera da Tânatos (a pulsão da violência e da morte), enquanto o futebol
se compõe mais na esfera de Eros (a pulsão do sexo e da vida).
No início de sua vida adulta, João Cabral entra para a carreira diplomática, exer-
cendo várias funções oficiais em diversos países, sendo que suas diversas estadas
na Espanha foram imprescindíveis para uma das linhas mais produtivas de sua pro-
dução poética: a paixão pela cultura espanhola. Além do já citado entusiasmo pela
tauromaquia desenvolvida naquele país, o poeta pernambucano ainda trabalhou
temas ligados à vida em cidades espanholas (em especial Sevilha), à arte flamenca,
à poesia castelhana, ao artesanato produzido na Espanha, e por aí afora.
“A palo seco”
[...]
Graciliano Ramos,
desenho de arquiteto,
as paredes caiadas,
a elegância dos pregos,
a cidade de Córdoba,
o arame dos insetos.
Ele é reconhecido no Brasil e no exterior como um dos maiores poetas do século XX,
deixando várias gerações de escritores profundamente influenciados por sua obra e
poética, ou seja, pelos princípios artísticos que ele elegeu para fazer poesia.
Tecendo a manhã
1
Um galo sozinho não tece a manhã:
ele precisará sempre de outros galos.
De um que apanhe esse grito que ele
e o lance a outro; de um outro galo
que apanhe o grito que um galo antes
e o lance a outro; e de outros galos
que com muitos outros galos se cruzem
os fios de sol de seus gritos de galo
para que a manhã, desde uma tela tênue,
se vá tecendo, entre todos os galos.
2
E se encorpando em tela, entre todos,
se erguendo tenda, onde entrem todos,
se entretendendo para todos, no toldo
(a manhã) que plana livre de armação.
A manhã, toldo de um tecido tão aéreo
que, tecido, se eleva por si: luz balão.
(MELO NETO, 2006, p. 345)
Este poema possui uma extensa polissemia (vários sentidos), podendo ser
lido metalinguisticamente como uma referência ao próprio fazer poético. Nessa
direção, o eu lírico estaria afirmando o processo coletivo da poesia (a “manhã”),
que só se realiza quando as vozes de vários poetas (os “galos”) se integrem e
gerem uma obra comum, capaz de conter todos os homens, poetas e leitores,
e assim iluminar a realidade como um todo: “A manhã, toldo de um tecido tão
aéreo / que, tecido, se eleva por si: luz balão”.
Juntando as duas leituras, podemos avaliar que a poética de João Cabral não
se esgota numa experimentação textual vazia, um jogo lúdico de palavras para
um petit comité (grupo de amigos íntimos) do poeta, mas é um esforço para se
construir uma ponte altamente significativa entre as pessoas, a fim de iluminar
uma realidade sombria, cuja opacidade só serve à dominação ilegítima e impos-
sibilita a realização dos indivíduos e sua sociedade.
Poema sujo
[...]
newtoniense
alzirense
meu corpo nascido numa porta-e-janela da Rua dos Prazeres
ao lado de uma padaria sob o signo de Virgo
sob as balas do 24º BC
na revolução de 30 [...]
combatente clandestino aliado da classe operária
meu coração de menino
(GULLAR, 2001, p. 240)
Poema Sujo foi escrito em 1975 na Argentina, durante o exílio de Gullar. Por
isso, antes de falarmos do texto, seria importante contextualizar o período de
sua redação.
A partir daí, Ferreira Gullar passa por um momento mais “popular” em sua poesia
– motivo: atingir com maior objetividade as populações marginalizadas. O poeta
toma consciência de que seu país e sua cultura precisavam mais de engajamento po-
lítico e denúncia social do que experimentações vanguardistas. É desse período suas
realizações com a literatura de cordel João Boa-Morte, Cabra Marcado para Morrer e
Quem Matou Aparecida (1962). É interessante notar como tal decisão acabou apro-
ximando-o de João Cabral de Melo Neto, que havia publicado Dois Parlamentos em
1961 e viria a editar Morte e Vida Severina em 1965, ambos com laivos cordelistas.
[...] [...]
Sucedeu na Paraíba – O meu nome é Severino,
mas é uma história banal não tenho outro de pia.
em todo aquele Nordeste. Como há muitos Severinos,
Podia ser no Sergipe, que é santo de romaria,
Pernambuco ou Maranhão, deram então de me chamar
que todo cabra-da-peste Severino de Maria;
ali se chama João [...]
Boa-Morte, vida não. E se somos Severinos
[...] iguais em tudo na vida,
Trabalhava noite e dia morremos de morte igual,
nas terras do fazendeiro, mesma morte severina:
mal dormia, mal comia, que é a morte de que se morre
mal recebia dinheiro; de velhice antes dos trinta,
se recebia não dava de emboscada antes dos vinte
pra acender o candeeiro. de fome um pouco por dia
João não sabia como
fugir desse cativeiro. [...] [...]
(GULLAR, 2001, p. 111-112) (MELO NETO, 1988, p. 70-71)
Indiferenciação, fome e morte são motivos presentes nos textos escolhidos para
a comparação dos dois poetas. Logo, não é só a forma que une as obras de mesmo
período, mas o conteúdo social de forte apelo denunciativo. A década de 1960 é
marcada, portanto, por corajosas escolhas poéticas e políticas, o que levou Gullar
a se chocar de frente com as forças repressivas do Golpe Militar de 1964. Depois de
publicar o importante ensaio “Vanguarda e subdesenvolvimento”, e com a edição
pela ditadura do Ato Institucional n.º 5, Gullar foi preso no Rio de Janeiro. Passou
algum tempo na cadeia na companhia do jornalista Paulo Francis e dos composi-
tores Gilberto Gil e Caetano Veloso. Solto, ele resolve se exilar e, em 1971, vai para
Paris. Mais tarde se fixa em Buenos Aires, onde escreve o Poema Sujo.
Segundo o poeta, o título dessa sua obra, Poema Sujo, remete ao submundo
do cotidiano, o lado feio e excluído da vida diária, o lixo. Gullar faz um percurso
memorialista a sua infância e a São Luís, mas não para recolher momentos idílicos
e afetivos. Há aí uma preferência pelo reprimido, pelo corpo em suas reentrâncias
[...]
lá vai o trem com o menino
lá vai a vida a rodar
lá vai ciranda e destino
cidade e noite a girar
lá vai o trem sem destino
pro dia novo encontrar
correndo vai pela terra
vai pela serra
vai pelo mar
cantando pela serra do luar
correndo entre as estrelas a voar
no ar
piuí! piuí piuí
no ar
piuí! piuí piuí
[...]
(GULLAR, 2001, p. 245-246)
Nessa obra, Gullar realiza uma grande proeza: sem abrir mão das conquistas
formais que o Modernismo e as vanguardas haviam obtido, nosso poeta faz uma
longa composição lírica de enorme beleza literária e, ao mesmo tempo, bastan-
te acessível a um público bem mais amplo. Razões do sucesso de vendas, bem
como de uma posição de destaque na literatura nacional.
Sem dúvida, após passar pela experiência radical das vanguardas concretistas
e neoconcretista (este último um movimento por ele liderado principalmente no
Rio de Janeiro) e pelos trabalhos cordelistas, Gullar atinge uma síntese perfeita
em sua poética. A grande razão para isso pode estar nestas palavras do próprio
escritor maranhense:
[...] eu sou um homem político, comprometido com as coisas, e não separo a poesia da minha
vida. É como eu digo: a poesia nasce da prosa, da vida. A poesia não é algo que acontece num
recanto celeste. Ela acontece aqui, no chão, no meio da gente. Eu costumo escrever inclusive
andando na rua. (apud STYCER, 1993, p. 12)
Mais do que isso, Gullar não fica preso num cotidiano que serve apenas de
pano de fundo para suspiros metafísicos e metáforas espirituais, como foi a linha
de muitos poetas anteriores e atuais. Sua poesia morde onde a vida dói mate-
rialmente, carnalmente, de fato e de direito. No entanto, a poesia não pode cair
apenas no panfletário, nem na banalidade linguística: a expressividade literária
e a beleza estética do texto precisam continuar presentes.
Não há vagas
O preço do feijão
não cabe no poema. O preço
do arroz
não cabe no poema.
Não cabem no poema o gás
a luz o telefone
a sonegação
do leite
da carne
do açúcar
do pão.
O funcionário público
não cabe no poema
com seu salário de fome
sua vida fechada
em arquivos.
Como não cabe no poema
o operário
O poema, senhores,
não fede
nem cheira.
(GULLAR, 2001, p. 162)
É disso que estamos falando, a poesia de Gullar “fede e cheira” a uma vida que
muitas vezes é rasteira, comezinha, feia e suja, e cujo atributo poético principal
está em ser “vida”, tanto em seu conteúdo como na forma que vai assumindo
conforme seu tema, seu motivo assim o exija. Seja o preço do feijão, a impudi-
cícia de nosso corpo, a impotência civil ou o sonho utópico dos que vivem nas
margens da vida social.
Texto complementar
Dicas de estudo
Sobre João Cabral de Melo Neto, continua sendo imprescindível o magistral
ensaio feito por Benedito Nunes, João Cabral de Melo Neto, Editora Vozes.
Estudos literários
1. Disserte, brevemente, sobre as polarizações que a poesia brasileira sofreu
no século XX, identificando a posição de Ferreira Gullar e João Cabral nesse
quadro poético.
3. Para Ferreira Gullar, qual a relação que deve existir entre “expressão poética”
e “vida” na poesia contemporânea?
2
Noigandres é um termo de origem provençal. Na época da publicação da revista não se conhecia o seu significado. Hoje, especula-se que signi-
fique “proteger do tédio”.
ideograma:3 apelo à comunicação não verbal. o poema concreto comunica a própria estrutura:
estrutura-conteúdo. O poema concreto é um objeto em e por si mesmo, não um intérprete
de objetos exteriores e/ou sensações mais ou menos subjetivas. Seu material: a palavra
(som, forma visual, carga semântica). Seu problema: um problema de funções-relações desse
material. Fatores de proximidade e semelhança, psicologia da gestalt4. Ritmo: força relacional.
O poema concreto, usando o sistema fonético (dígitos) e uma sintaxe analógica, cria uma área
linguística específica – “verbivocovisual” – que participa das vantagens da comunicação não
verbal sem abdicar das virtualidades da palavra. Com o poema concreto ocorre o fenômeno da
metacomunicação: coincidência e simultaneidade da comunicação verbal e não verbal, com a
nota de que se trata de uma comunicação de formas, de uma estrutura-conteúdo, não da usual
comunicação de mensagens. (CAMPOS, 2006, p. 216)
Décio Pignatari
Décio Pignatari –, pelo Clube de Poesia de São Paulo, criado naquele mesmo tur-
bulento Congresso de 1948. Os “novíssimos” Haroldo de Campos e Pignatari logo
se destacariam de seu grupo geracional em termos de revolução verbal e formal,
conforme apontaria o sempre atento crítico Buarque de Holanda.
A “obra em aberto” proposta por Haroldo de Campos foi condição sine qua
non para a poesia concreta que nasceria do intercurso com as artes consideradas
afins. Desse modo, em 1956, Haroldo de Campos visita o mundo da arquitetura
e publica na revista AD – Arquitetura e Decoração, o poema “olho por olho a olho
nu”, propagando a estética concretista e a sua metapoesia:
6
“Obra aberta” é um conceito estético que procura explicar a polissemia das obras de arte. Segunda essa ideia, uma realização artística, para além
dos propósitos originais de seu autor, é uma composição complexa e viva, graças à permanente mudança que a linguagem sofre no decorrer da
história. Isso confere ao leitor ou espectador uma parcela de criatividade na construção do sentido dessa obra, fazendo com que ela esteja aberta a
expressar outros valores e significados que não sejam apenas os propostos por seu autor.
NO
THANKS
TO
Chamado por seus detratores, entre eles alguns renomados poetas e críti-
cos de linha conservadora, de “inventor da ginástica pontuacional”; “poeta da
tipografia”; “Puzzles” etc., Cummings só começou a ser lentamente reconhecido
pelo poeta que é por volta de 1954, com o lançamento de Poems 1923-1954,
pela mesma Harcourt Brace citada no “poema-taça” acima. Mas foi do lado sul
da América que o poeta encontrou um de seus mais fiéis admiradores: Augusto
de Campos. Ainda no início dos anos 1950, o co-fundador de Noigandres, reco-
nhecia a maestria do homem “que não tinha renda, porque não estava à venda”
(CUMMINGS, 1986, p. 24), um rebelde que definitivamente participou da revolu-
ção artística ocidental ocorrida no século XX.
Foi pela ousada via da tradução que Augusto de Campos ajudou a romper,
conforme ele afirma, “o ritual do boicote e da ignorância em torno da poesia
‘tipográfica’ de Cummings” (CUMMINGS, 1986, p. 21). Em 1960, após três anos de
trabalho árduo sob a rigorosa tutela do mestre norte-americano, a cultura brasi-
leira teve acesso a 10 Poemas de e. e. cummings, uma publicação que, não fosse as
incontáveis provas tipográficas trocadas entre o Brasil e os Estados Unidos, teria
sido a primeira tradução de Cummings no mundo (mérito que coube a alemães e
italianos). Mas o resultado veio coroado pelos “Congratulations” [Parabéns] finais
(CUMMINGS, 1986, Apêndice 1) do exigente Cummings a Augusto de Campos.
Em 1986, Campos lançou um nova e ampliada edição intitulada 40 poem(a)s.
(CAMPOS, 2009b)
O que chama logo a atenção é a forma outdoor, espécie de placa publicitá-
ria. A fonte escolhida, composta de círculos concêntricos, produz uma ilusão de
ótica que dá a impressão de as palavras estarem em movimento, causando ainda
um certo efeito hipnótico. O conteúdo verbal apresenta uma espécie de balanço
poético do eu lírico, no qual este declara haver mudado tudo (certamente em
termos estéticos) e, agora, depois da mudança, ele se encontra mudo (sem voz,
ou sem expressão). Duas interpretações são possíveis aqui. A primeira, seguindo
nossa leitura inicial, seria o desapontamento do poeta com o resultado da mu-
dança, que o teria levado a um beco sem saída para sua produção poética – por
isso a mudez, o espaço vazio após a última palavra. A outra interpretação passa-
ria por um jogo com a polissemia do termo “mudo”, que então teria valor verbal,
ou seja, “eu mudo”, possibilitando assim o sentido de que o poeta se decidiu por
uma nova mudança – algo como uma “revolução permanente”.
O poema é por demais ambíguo e, por tal razão, causou polêmica quando foi
publicado originalmente no jornal Folha de S.Paulo, em 27 de janeiro de 1985. O
texto foi duramente criticado por Roberto Schwarz (cf. SCHWARZ, 1987, p. 57 e
ss.), influente teórico da literatura, provocando assim uma série de artigos por
parte de vários intelectuais.
Augusto de Campos
Entre escolher
Montanha-russa
Roda-gigante
Ou trem-fantasma,
Eu escolhi
Meu carrossel.
Paguei com vida
– Engenho e arte –
Pelo meu árdego corcel. [...]
(PIGNATARI, 2004, p. 19)
Rupturas e continuidades
Se a história da arte demonstra que sua evolução se dá na arena dos deba-
tes e polêmicas em torno das manifestações artísticas de um período, a poesia
concretista não poderia querer escapar desse destino. Assim, o grupo paulista
Noigandres não figurou sozinho no palco literário-poético das décadas de 1950
em diante.
Um terceiro poeta que não abdicou dos traços tradicionais em plena era do
Concretismo foi Mário Faustino (1930-1962). Apesar de seu falecimento precoce,
o poeta nascido em Teresina deixou uma obra curta, porém robusta, considera-
da próxima da experiência concretista. Com uma poesia adepta tanto do Sur-
realismo e do Neossimbolismo (Rimbaud etc.) quanto do experimentalismo de
Cummings, seus versos igualmente destoam da estética concretista “ortodoxa”.
“Criar para renovar” era sem dúvida a proposta dos concretistas. Daí a sim-
patia de Faustino com esses poetas que prezavam tanto a inovação quanto o
exercício crítico. Mas seu caminho ao lado do experimentalismo concretista não
chegou a render-lhe a alcunha de concretista “de fato”, pois, embora fazendo
amplo uso de fragmentos e recortes, jamais abriu mão da estrutura canônica do
verso. Antes, o poeta preferiu reconstruir antigas formas com roupagem moder-
nas, contrariando a essência do Concretismo.
Em seu projeto poético, ele desenvolveu temas como “amor e morte, tempo
e eternidade, sexo, carne e espírito, vida agônica, salvação e perdição, pureza e
impureza” (NUNES, 1966, p. 5). Faustino seguiu um programa que tinha por ob-
jetivo uma poesia ao mesmo tempo moderna e tradicional, na qual conteúdo e
forma devem dialogar em busca de renovação.
Por fim, ele assim resume suas considerações: “Integrados ou não na proble-
mática e no desafio de 22, a verdade é que a Geração de 45, o Concretismo e o
Texto complementar
R. Tal como a vejo, a poesia concreta não surgiu como uma especializa-
ção formal dentro do campo da poesia moderna, como se poderia falar do
carmen figuratum da Antiguidade, mas, antes, como uma proposta de radica-
lização da linguagem poética, na qual os aspectos visuais constituem apenas
um dos parâmetros relevantes. O que se buscou com a poesia concreta foi
recuperar a especificidade da própria linguagem poética, a materialidade do
poema e a sua autonomia, a partir de uma revisão e radicalização dos proce-
dimentos da poesia moderna e da elaboração de um novo projeto criativo
no contexto das novas mídias.
Dicas de estudo
Para que o estudante possa completar as informações sobre o movimento
poético-literário concretista, fazemos as seguintes sugestões:
Estudos literários
1. Explique a relação entre a poesia concreta e a ideia de “concretismo” adotada
nas artes plásticas.
competente, chegando a ser reconhecido como o que estaria mais próximo de uma
escritura “realista mágica” brasileira no período.
Ao trazer a questão indígena para aquela que seria a mais acabada narrativa
histórica do Brasil contemporâneo, o autor alia-se à corrente hispano-americana
de resgate das raízes autóctones na representação ficcional e, em termos de li-
teratura brasileira, ele ousa, assim como o fez Guimarães Rosa, adentrar os espa-
ços profundos da geografia brasileira, para ouvir a voz da terra, que costuma ser
funda e quase inaudível.
A reviravolta temática no final deste conto revela uma das principais carac-
terísticas de Scliar: a maestria no fechamento do enredo, com um final ora aber-
tamente crítico da sociedade moderna (como neste caso em que o capitalismo
vence a intelectualidade) ou tendendo ao insólito, ao fantástico. Mesmo na se-
gunda alternativa, e de modo paradoxal, há sempre uma perfeita sintonia com o
curso da narrativa, dando-lhe, um natural fecho de ouro, objetivo buscado pelos
praticantes da narrativa curta ou da poesia.
A jovem de 21 anos estreou no seu percurso literário com Praia Viva (1944) e
O Cacto Vermelho (1949), ambos livros de contos, gênero predominante em sua
extensa carreira literária, apesar de a escritora ter se consagrado definitivamente
na cena literária com o romance Ciranda de Pedra, em 1954. É inegável, portanto,
que a ascensão do gênero conto na literatura brasileira é tributária da dedicação
privilegiada dessa escritora pela narrativa curta, uma forma que, no parecer de
Massaud Moisés (1989, p. 482), “melhor se adapta à sua visão do mundo”.
coisas do Brasil atingiu seu ápice já na década de 1990, com o romance Agosto.
Aqui, realidade e ficção encontram-se para recontar um dos episódios mais dra-
máticos da história brasileira: a morte de Getúlio Vargas.
Leitor da Bíblia, Rubião trouxe as Sagradas Escrituras para a sua criação ficcio-
nal. A presença dos textos sagrados confirma-se inclusive pelas epígrafes de pas-
sagens bíblicas em seus contos. Por exemplo, no conto “O Edifício”, publicado pela
primeira vez em 1965, o autor recupera o tom da proclamação profética (“Chegará
o dia em que os teus pardieiros se transformarão em edifícios; naquele dia ficarás
fora da lei”, Miquéias, 7: 11) para denunciar a desordem instalada na mente das
personagens e no espaço físico que ocupam. E mais: desenvolve em suas narrati-
vas o gosto pelo desdobramento extraordinário, quando não insólito.
Não há dificuldade em perceber que Murilo Rubião, neste conto, faz refe-
rência ao período de modernização do Brasil, o qual testemunhara nas ruas de
Belo Horizonte (MG). Os primeiros arranha-céus, os gigantescos galpões fabris,
a urbanização desenfreada em capitais como a Belo Horizonte de Murilo Rubião
nos anos 1930 aguçaram a sensibilidade de artistas, que viam no processo o pre-
núncio do caos social, do capitalismo canibalesco; da fragmentação do eu até a
automatização do indivíduo num mundo sem respostas; enfim, da realidade em
si mesma, insólita. Assim é o mundo do engenheiro no edifício em construção,
e também da personagem de um interiorano que vem à cidade grande para
uma entrevista com o gerente de uma fábrica no conto “A fila”, em O Convidado
(1974), em que homens esperam por uma entrevista de emprego numa imensu-
rável fila. Ali, todas as tentativas do personagem central de conseguir sua entre-
vista são infrutíferas, ele é continuamente impedido de atingir seu objetivo por
funcionários subalternos. O conto, portanto, faz uma crítica mordaz à burocracia
“surrealista” típica do cotidiano capitalista.
Assim eu quereria minha última crônica: que fosse pura como esse sorriso. (SABINO, 1965, p. 174)
Sabino iniciou sua carreira literária na década de 1940 com o livro de contos
Os Grilos não Cantam Mais (1941), consagrando-se ainda com narrativas médias
e longas, das quais se destacam, sobretudo, duas obras: os romances O Encontro
Marcado (1956) e O Grande Mentecapto (1979). No intervalo desses livros, Sabino
dedicou-se essencialmente à escrita de crônicas, publicadas entre 1960 e 1977
sob os títulos: O Homem Nu (1960); A Mulher do Vizinho (1962); A Companheira de
Viagem (1965); A Inglesa Deslumbrada (1967); Gente (1975); Deixa o Alfredo Falar!
(1976); O Encontro das Águas: crônica irreverente de uma cidade tropical (1977). De
1980 até a sua morte em 2004, o autor dividiu-se entre a narrativa longa e curta,
com uma maestria que lhe rendeu uma sólida carreira internacional, recebendo
traduções em diversas línguas e prêmios no Brasil e no exterior. Em julho de
1999, foi agraciado pela Academia Brasileira de Letras com o prêmio “Machado
de Assis” em razão do conjunto de sua obra.
das frases mais famosas da cultura brasileira: “Pros pobres, é dura lex sed lex: a lei
é dura, mas é lei. Pros ricos, dura lex sed latex: a lei é dura, mas estica” (SABINO,
1985, p. 87). Do mesmo modo que a antiguidade clássica nos ensinou que rindo
se corrigem os costumes (ridendo castigat mores), tal princípio se fez amplamen-
te presente em toda a ficção de Sabino, o qual soube perceber de forma aguda
o tragicômico entremeado no cotidiano dos grandes centros urbanos, com indi-
víduos aturdidos entre a luta pela sobrevivência diária e a busca pela afirmação
de sua humanidade.
Texto complementar
[...] o maior defeito deste livro és tu, leitor. Tu tens pressa de envelhecer, e o livro anda
devagar; tu amas a narração direta e nutrida, o estilo regular e fluente, e este livro e o meu
estilo são como os ébrios, guinam à direita e à esquerda, andam e param, resmungam,
urram, gargalham, ameaçam o céu, escorregam e caem...
Dicas de estudo
Para um estudo mais profundo e complementar às questões que apresenta-
mos sobre a prosa contemporânea, fazemos as seguintes sugestões:
Estudos literários
1. Explique a relação entre a conjuntura política na América Latina e a concep-
ção estética nas literaturas de seus países na segunda metade do século XX.
3. “Pros pobres, é dura lex sed lex: a lei é dura, mas é lei. Pros ricos, dura lex sed
latex: a lei é dura, mas estica” (SABINO, Fernando. A Falta que Ela me Faz. Rio
de Janeiro: Record, 1985. p. 87). Comente essa famosa frase que integra uma
crônica de Fernando Sabino com base no projeto estético do autor.
Esse diálogo com o cânone universal rendeu-lhe por vezes o epíteto de poeta
passadista. Porém, conforme recorda o crítico Ricardo Thomé (1995), Ivan Jun-
queira faz na verdade um “palimpsesto1 poético”, isto é, ele não nega as gera-
ções passadas, antes, ele escreve os seus versos sobre as marcas deixadas pelos
escritos anteriores, somando a sua camada poética à superfície herdada de um
Manuel Bandeira, um Carlos Drummond de Andrade, um Baudelaire e assim su-
cessivamente. Junqueira consolida essa imagem no poema “Palimpsesto”:
Os temas recorrentes em sua obra são a morte, o amor e a própria arte; temas
que resultam numa poesia da famigerada condição humana. Mas, a imagem da
morte que aparece desde já nos títulos de seus livros (Os Mortos; A Sagração dos
Ossos) não significa, no entanto, apego ao niilismo2 ou a lamentação pelo paraíso
perdido, antes o poeta destaca a morte para louvar a vida. Exemplo dessa atitude
1
Palimpsesto (2001): papiro ou pergaminho cujo texto primitivo foi raspado, para dar lugar a outro”.
2
Niilismo (2001): ponto de vista que considera que as crenças e os valores tradicionais são infundados e que não há qualquer sentido ou utilidade
na existência.
Este poema, que traz o paradoxo já no título, “Nunca sempre”, integra o livro
Novolume. Nele verifica-se o requinte artesanal no manuseio das palavras carac-
terístico de Torres Filho. No movimento inebriante dos versos, à primeira vista
herméticos, vai se desvelando um lirismo lúdico, jogos verbais, trocadilhos, alu-
sões, paradoxos e um vívido senso de humor. Outra característica marcante em
seus poemas é a elaboração formal, que neste exemplo é essencial para a intera-
ção leitor-poema. Basta reler o poema, preferencialmente em voz alta!
Filho da elite paulista da primeira metade do século, cursou por obrigação fa-
miliar o curso de Direito no Largo do São Francisco (USP) e concomitantemente,
por vocação, o curso de Filosofia na mesma Universidade. Com os diplomas em
mãos, ignorou o de Direito e seguiu a ciência da razão. Trilhou um bem sucedido
percurso acadêmico tornando-se um dos mais prestigiados professores da Univer-
sidade de São Paulo. Exerceu com o mesmo zelo a carreira docente e a de poeta,
ficcionista, tradutor e historiador da filosofia moderna. “No fundo”, afirma o crítico
Davi Arrigucci Jr., Rubens Rodrigues Torres Filho “se vincula à linhagem dos poetas
doutos, modernos e críticos, já sem filiação definida, mas com certeza um autor
para quem pesa a muita leitura e o saber universitário” (TORRES FILHO, 2009).
Ainda por mãos femininas, vamos revisitar a seara da poesia mineira e reli-
giosa de Adélia Prado (1936- ). Ao contrário de Ana Cristina César e Hilda Hilst,
Adélia Prado encontrou seu lugar ao sol canônico e figura na literatura contem-
porânea como uma das mais importantes poetisas brasileiras em atividade.
seguinte, em 1981, com Terra de Santa Cruz. Suas próximas publicações poéticas
incluem: O Pelicano (1987); A Faca no Peito (1988) e Oráculos de Maio (1999). Além
dos volumes de poemas, a obra de Adélia Prado compõe-se das prosas: Solte os
Cachorros (1979); Cacos para um Vitral (1980); Os Componentes da Banda (1984);
O Homem da Mão Seca (1994); Manuscritos de Filipa (1999) e Filandras (2001).
Aos 20 anos, ainda como estudante de Direito, Hilst lançara seu primeiro livro
de poesia Presságio (1950), iniciando uma carreira que se dividiria, com a mesma
grandeza artística, em prosa, poesia e dramaturgia.
Bela, rica, independente e intelectual, a jovem Hilst foi uma “celebridade cultu-
ral” nas décadas de 1950 e 1960. Muitos foram os que suspiraram pela musa em
nada recatada. Um de seus muitos amigos artistas e intelectuais, Carlos Drummond
de Andrade, lhe escreveu um poema em 1952, cantando um certo amor platônico
por aquela que chamou de “estrela Aldebarã” (a estrela mais brilhante da conste-
lação Taurus). Nos versos, o gauche se declara “mui pertubado” ao abrir o jornal e
ver a então socialite “Hilda, que é sab(ilda)” “por entre espécies grã-finas”, “girando
em boates”, com “tanto vestido assinado” que “cobre e recobre de vez / sua preclara
nudez”. E o poeta lamenta: “Hilda dos outros, não minha... (...) não vês que nesses
teus giroflês / esqueces quem tanto te ama?” (LEITE NETO, 1991, p. 5-7).
Nos anos de 1990 e 1991, após uma longa carreira de glórias e esquecimentos, a
escritora procura recuperar a atenção da crítica e do público lançando uma trilogia
erótica ou, como ela mesma definiu, “obscena”. A popularidade de fato aconteceu,
mas em duas vias. De um lado, um número significativo de leitores reviveu a obra da
escritora e isso pode ser comprovado com uma simples busca na internet. Mas, por
outro lado, houve uma tentativa da crítica especializada de soterrar a produção literá-
ria e dramatúrgica hilstiana sob esses três volumes-anátemas, pois “pornográficos”.
A singularidade de Ana C. foi, portanto, fazer uma poesia com estilo próprio,
numa linguagem apurada, menos coloquial, e subjetiva. Enfim Ana Cristina
César pertencia à tal “Geração Mimeógrafo”, mas seu estilo não correspondia
exatamente àquele típico dos poemas de seus pares. Sua lição de poesia está
impressa em versos como:
olho muito tempo o corpo de um poema
até perder de vista o que não seja corpo
e sentir separado dentre os dentes
um filete de sangue
nas gengivas (CÉSAR, 2001, p. 249)
assim como muitos dos ideais culturais dos anos 1960, a ideia de literatura mar-
ginal persiste até os dias de hoje.
Texto complementar
certos paradigmas durante anos a fio (muitas vezes até hoje) e, de outro, a
interrupção abrupta de experiências artísticas levadas ao limite. São dois ex-
tremos entre os quais há algo em comum: tanto um quanto outro ajudam-nos
a compreender porque, como consequência da frustração, alguns sofreram a
suspensão da própria vida e obra, e outros continuaram a reiterar o mesmo,
como se a história tivesse parado. Há, porém, um terceiro tipo de desdobra-
mento: poetas que, sem significativas alterações de fundo, conseguiram aden-
sar e enraizar sua visada reflexiva. Nas artes plásticas, um pintor como Iberê
Camargo (1914-1994), nas séries finais dos anos de 1990, vislumbra essa es-
tranha percepção da estagnação melancólica do tempo representando velhas
crianças de expressão inocente ou alvar cujo corpo dissolve-se, e cujos olhos
se confundem com o azul do fundo, ao lado de uma bicicleta imóvel.
Francisco Alvim, batizado pelo amigo Cacaso como o poeta da “voz dos
outros”, no Elefante (2000) apresenta nos poemas situações em que a mais
funda percepção de impasses individuais perfura pungente o paradoxo
entre a eficiência moderna e a paralisia das escolhas do sujeito transformado
Dicas de estudo
Para que o estudante possa completar as informações sobre a poesia con-
temporânea, sugerimos o seguinte material:
Revista Cult. Dossiê Essa tal de poesia. Edição 102, 10 de maio de 2006, p. 5-53.
Esta edição traz, além do texto “Cinco pontas de uma estrela”, de Viviana Bosi,
indicado como texto complementar desse capítulo, outros artigos impres-
cindíveis para um estudo detalhado da poesia contemporânea: “Virando as
Estudos literários
1. O que significa dizer que Ivan Junqueira faz um “palimpsesto poético”? Por-
que a necessidade de tal observação?
3. Qual a diferença entre a poesia marginal dos anos 1970 e a poesia marginal
hoje?
Apesar de escrita e publicada, uma peça teatral pode até ser conside-
rada literatura, razão pela qual estamos abordando este gênero artístico
aqui, mas, enquanto não for encenada, ela não pode ser com propriedade
chamada de teatro. Foi o que aconteceu com o Rei da Vela, que levou trinta
anos para ter esse direito. A razão da demora se deve em parte às característi-
cas inovadoras da peça, mas também ao seu conteúdo altamente polêmico e
denunciativo. Abelardo I, o “rei da vela”, é um agiota que se aproveita da crise de
1929 (crack da Bolsa de Nova Iorque) e, através de empréstimos escorchantes,
vai dilapidando antigos fazendeiros e outros burgueses. Na verdade, a peça des-
vela os mecanismos da acumulação capitalista internacional e de como isso se
processa em especial nos países periféricos como o Brasil, conforme podemos
ver neste diálogo entre Abelardo I e sua noiva Heloísa, filha de um fazendeiro
arruinado pela crise do café:
Abelardo I – Não faça ironia com a sua própria felicidade! Nós dois sabemos que milhares
de trabalhadores lutam de sol a sol para nos dar farra e conforto. Com a enxada nas mãos
calosas e sujas. Mas eu tenho tanta culpa disso como o papaníqueis bem colocado que se
enche diariamente de moedas. É assim a sociedade em que vivemos. O regímen capitalista
que Deus guarde...
Heloísa – E você não teme nada?
Abelardo I – Os ingleses e americanos temem por nós. Estamos ligados ao destino deles.
Devemos tudo, o que temos e o que não temos. Hipotecamos palmeiras... quedas de água.
Cardeais!
Heloísa – Eu li num jornal que devemos só à Inglaterra trezentos milhões de libras, mas só
chegaram aqui trinta milhões...
Abelardo I – É provável! Mas compromisso é compromisso! Os países inferiores têm que
trabalhar para os países superiores como os pobres trabalham para os ricos. Você acredita que
New York teria aquelas babéis vivas de arranha-céus e as vinte mil pernas mais bonitas da terra
se não se trabalhasse para Wall Street de Ribeirão Preto a Cingapura, de Manaus a Libéria?
Eu sei que sou um simples feitor do capital estrangeiro. Um lacaio, se quiserem! Mas não me
queixo. É por isso que possuo uma lancha, uma ilha e você... (ANDRADE, 1999, p. 55-56)
Para que essa peça pudesse então ser posta no palco foi necessária todo uma
profunda reformulação do teatro no Brasil: novas técnicas de encenação, o sur-
gimento da figura do diretor teatral (até então inexistente) e de um corpo de
atores e técnicos com uma nova formação e postura artística. Foi o que aconte-
ceu a partir de Vestido de Noiva de Nelson Rodrigues, peça encenada pelo revolu-
cionário (para os padrões da época) grupo teatral carioca Os Comediantes. Mas
vamos conhecer toda essa história de uma forma mais organizada, começando
pelo próprio Nelson Rodrigues.
(Plano da alucinação)
Alaíde – Me lembrei agora! [...] Foi uma conversa que eu ouvi quando a gente se mudou. No
dia mesmo, entre papai e mamãe. Deixe eu me recordar como foi... Já sei! Papai estava dizendo:
“O negócio acabava...
(Escurece o plano da alucinação. Luz no plano da memória. Aparecem pai e mãe de Alaíde.)
Pai – (continuando a frase) ... numa orgia louca.”
Mãe – E tudo isso aqui?
Pai – Aqui, então?!
Mãe – Alaíde e Lúcia morando em casa de madame Clessi. Com certeza, é no quarto de Alaíde
que ela dormia. O melhor da casa!
Pai – Deixa a mulher! Já morreu!
Mãe – Assassinada. O jornal não deu?
Pai – Deu. Eu ainda não sonhava conhecer você. Foi um crime muito falado. Saiu fotografia.
Mãe – No sótão tem retratos dela, uma mala cheia de roupas. Vou mandar botar fogo em tudo.
Pai – Manda.
(Apaga-se o plano da memória. Luz no plano da alucinação.)
Alaíde – (preocupada) Mamãe falou em Lúcia. Mas quem é Lúcia? Não sei. Não me lembro.
(RODRIGUES, 1993, p. 354)
Lúcia é a irmã de Alaíde, que nesse estado de alucinação tem lapsos de me-
mória. O enredo, na verdade, é a tentativa da mulher acidentada, em seu delírio
1
Segundo Aristóteles, uma obra teatral precisa apresentar unidade de tempo, de espaço e de ação, ou seja, transcorrer num mesmo período de
tempo, dentro do mesmo lugar e seus atos serem todos articulados dentro do esquema de causa e efeito.
Destacam-se ainda entre sua vasta produção cênica as peças Álbum de Fa-
mília (1946), uma tragédia burguesa brasileira centrada no complexo de Édipo,
Valsa n°. 6 (1951), um fantástico monólogo em que Mocinha, uma adolescente,
faz uma dolorosa autoanálise, e Senhora dos Afogados (1956), em que Rodrigues
retoma o tema do complexo de Édipo. Outras peças importantes: Os Sete Gati-
nhos (1958), Bonitinha mas Ordinária (1961) e Toda Nudez será Castigada (1966),
havendo sido levadas ao cinema com grande impacto.
Nesse sentido, pode-se apresentar como uma peça revolucionária o texto A Mais-
Valia Vai Acabar, Seu Edgar, de 1960, composta por Vianinha com a colaboração de
estudantes de sociologia e economia. Nessa obra, o dramaturgo busca de forma te-
atral e popular explicar o conceito marxista de “mais-valia”. Para tanto, Vianinha põe
em cena quatro operários: D 1, D 2, D 3 e D 4, sendo a letra “D” sigla para “desgraça-
do”. Numa forma próxima do teatro de revista e do cordel, com trilha sonora de Car-
linhos Lyra, D 4, numa frenética busca por entender os mecanismos de dominação
do capitalismo, enfim atinge tal conhecimento. Numa cena altamente plástica, D 4
leva D 1 a uma feira imaginária, onde as mercadorias são vendidas não por dinheiro,
mas por horas de trabalho despendidas na sua fabricação. Ao término da feira, D 1
comprara tudo o que precisava diariamente para viver e só gastara 2 horas/dia de
trabalho das 8 diárias que tinha obtido com seu próprio suor; no entanto, na saída
da feira, o capitalista fica com as 6 horas/dia que sobrara:
D 1: Como é?
D 4: A gente vende a gente, não é?
INDIVÍDUO: É.
D 4: A força que a gente tem na cabeça, no estômago, nas pernas... O gaguinho disse que isso
era mer... mercadoria tam... também.
INDIVÍDUO: Sem dúvida.
D 1: Eu sou mercadoria?
INDIVÍDUO: Pois então.
D 4: É assim, 1. Não dependeu de mim, do Amim, de você. Nossa força de trabalho é mercadoria.
E sabe quanto vale? O tempo de trabalho que leva pra fazer ela.
D 1: E quanto é que a gente vale?
INDIVÍDUO: Cinco mil réis e uma casca de laranja.
D 4: Nossa força de trabalho vale o tempo de trabalho que gastam pra fazer as coisas que a
gente come, veste... E agora você viu... Isso vale duas horas... Você trabalha oito. As seis horas
que sobram eles embolsam. Tudo é vendido pelo valor certinho... só que é vendido. Tem dono
e endereço direitinho.
INDIVÍDUO: Direitinho, direitinho.
Erradinho, erradinho.
Qual dos dois é mais bonitinho?
D 1: Vem cá, isso é assim mesmo.
INDIVÍDUO: Ele é bastante burro, heim?
D 4: Acho que é.
D 1: E aqueles tempos que os vendedores falavam, são esses mesmos?
D 4: Não sei. Acho que nem o autor sabe direito. (VIANNA FILHO, 1981, p. 271)
Teatro Oficina
Logo no início deste capítulo, mencionamos o Teatro Oficina, um grupo de
artistas que havia posto em cena pela primeira vez a inovadora peça de Oswald
de Andrade, O Rei da Vela. O grupo nasce na Faculdade de Direito do Largo de S.
Francisco, da USP, em 1958, tendo como propósito ser um contraponto tanto ao
O Teatro Oficina continua vivo e atuante até hoje, agora com o nome Oficina
Uzyna Uzona, sendo responsável por espetáculos altamente inventivos e expe-
rimentais na cena paulistana.
Texto complementar
Dicas de estudo
Sugerimos a leitura do restante do ensaio de Sábato Magaldi apresenta-
do na seção “Texto complementar”: Panorama do Teatro Brasileiro, Editora
Global, p. 236-244.
Estudos literários
1. Nelson Rodrigues é considerado por muitos o pai do teatro moderno brasi-
leiro. Qual de suas peças foi responsável pela mudança no cenário dramatúr-
gico e quais foram as características inovadoras dessa obra?
Tendências pós-modernas
Há qualquer coisa no ar. Um fantasma circula entre nós nestes anos 1980: o pós-
modernismo. Uma vontade de participar e uma desconfiança geral. Jogging, sex-shops,
mas gente dizendo: “Deus está morto, Marx também e eu não estou me sentindo muito
bem”. Videogames em casa, auroras de laser na danceteria. Nietzsche e Boy George
comandam o desencanto radical sob o guarda-chuva nuclear. Nessa geleia total, uns
veem um piquenique no jardim das delícias; outros, o último tango à beira do caos.
(SANTOS, 1986, p. 7)
Ao refletir criticamente sobre o mundo que nos cerca, vamos nos deparar mais
cedo do que imaginamos com o termo pós-modernismo, conceito de caráter si-
nuoso, mas essencial para a reflexão crítica da nossa contemporaneidade seja no
campo estético, ideológico ou literário. Por isso, é vantajoso iniciarmos este capítu-
lo sobre os novos autores e o novo espaço na literatura brasileira retomando bre-
vemente a discussão do conceito. A ideia de “pós-modernidade” abarca uma série
de significados controversos e tem sido motivo de intensos e acalorados debates
entre os críticos. Em geral, fala-se de um “paradigma pós-moderno” operando na
cultura, evitando-se com isso o comprometimento com qualquer hipótese sobre
a natureza do pós-modernismo. De qualquer modo, é consensual a ideia de que
esse “conjunto de tendências, paradigmas e teorias de diversos domínios do co-
nhecimento, em particular como possível explicação estética, ideológica, literária
e/ou crítica de todas as manifestações artísticas” (CEIA, 2009) se espraiou pelo Oci-
dente após 1945, consolidando-se na segunda metade do século XX.
As passagens acima são parte da análise que o crítico Roberto Schwarz faz
do romance Estorvo (1991), a primeira incursão no gênero romance do compo-
sitor-poeta, intérprete, dramaturgo, cronista e ficcionista carioca Chico Buarque
de Hollanda. Artista-ícone na história da música popular brasileira, Chico Buar-
que, como é conhecido, tem sido um dos mais sensíveis pensadores da cultura
e da sociedade contemporânea e traduz suas reflexões com sagacidade, seja no
campo musical, teatral ou literário. Considerado um verdadeiro artesão da língua
portuguesa (basta recordar a letra da música “Construção”, de 1971), Chico Bu-
arque, um “veterano de 1968”, no dizer de Schwarz (1999, p. 180), publicou sua
primeira prosa em 1974, a novela Fazenda Modelo: novela pecuária. Abertamen-
te uma obra crítica do regime militar, o enredo traz uma clara alegoria daque-
le momento de opressão: o povo é substituído por uma boiada; e o país, por
uma grande fazenda. O narrador é um boi, e a narrativa é dedicada a uma vaca.
Assim iniciou a carreira literária de Chico Buarque, que foi retomada em 1991, já
em tempos de democracia e pós-modernismo, com o romance Estorvo. Artista
de poucas, mas valiosas obras literárias, Chico Buarque publicou ainda a novela
Benjamim, em 1995 e o romance Budapeste, em 2003.
Flagrante: As pessoas que o conhecem ficaram muito surpresas com a sua confissão de estupro
e participação no assassinato da jovem Frederica Stucker. Como o senhor mesmo explicaria
que um homem considerado por todos como tímido, austero e, segundo alguns, até obscuro,
de repente se veja cometendo crimes dessa natureza?
Antenor: É necessária muita cautela para chegar a alguma verdade quando se trata de atos
humanos. Não acredito em causas isoladas ou muito precisas. Mas eu, mais do que todos,
estou interessado, a respeito desse caso todo, em chegar a uma verdade pelo menos relativa.
[...] (SANT’ANNA, 1997, p. 607)
O gaúcho João Gilberto Noll (1946- ) é um dos escritores que a crítica situa, ao
lado de Bernardo Carvalho, na esfera do pós-modernismo. Em 1970, Noll publica
sua primeira antologia de contos, Roda de Fogo, iniciando uma promissora car-
reira literária. Dez anos mais tarde, em 1980, é a vez de O Cego e a Dançarina, livro
que o colocaria em definitivo sob os holofotes do público e da crítica, renden-
do ao autor três dos mais importantes prêmios literários no Brasil: “Revelação
do Ano”, da Associação Paulista de Críticos de Arte; “Ficção do Ano”, do Instituto
Nacional do Livro e o “Prêmio Jabuti”, da Câmara Brasileira do Livro. Em 1983,
o conto “Alguma coisa urgentemente”, contido neste O Cego e a Dançarina, foi
adaptado para o cinema com o título Nunca Fomos tão Felizes.
Os contos, crônicas e romances que Noll produziu até 1996 foram compi-
lados num volume único em 1997. Nas 785 páginas desta obra parcialmente
completa constam, além de O Cego e a Dançarina, os romances A Fúria do Corpo
(1981); Bandoleiros (1985); Rastros de Verão (1986); Hotel Atlântico (1989); O Quieto
Animal da Esquina (1991); Harmada (1993); A Céu Aberto (1996). A esse conjunto
de obras foram acrescentados até o presente momento mais quatro romances e
dois livros de contos: os romances Canoas e Marolas (1999); Berkeley em Bellagio
(2002); Lorde (2004) e Acenos e Afagos (2008); e os contos reunidos em Mínimos
Múltiplos Comuns (2003) e A Máquina do Ser (2006).
Em O Filho da Mãe, Bernardo Carvalho opta pela primeira vez por um narrador
em terceira pessoa, já que, seguindo a tendência dominante na literatura pós-
moderna, seus outros nove romances são narrados em primeira pessoa – con-
forme ocorre em Aberrações (1993); Os Onze (1995); Os Bêbados e os Sonâmbulos
(1996); Teatro (1998); As Iniciais (1999); Medo de Sade (2000); Nove Noites (2002);
Mongólia (2003) e O Sol se Põe em São Paulo (2007). Sobre essa mudança do foco
narrativo no seu décimo romance, o autor afirmou em entrevista: “Ao usar pela
primeira vez um narrador em terceira pessoa, onisciente, senti uma liberdade
incrível. [...] Podia sair da cabeça de um personagem e entrar na de outro. Minha
perspectiva não estava mais limitada a um narrador-protagonista” (KRAPP, 2009).
O que fica nas entrelinhas dessa confissão é que a liberdade proporcionada pela
narrativa onisciente serviu como um contraponto à opressão que o espaço teria
exercido, extraordinariamente, sobre o próprio autor.
foi o caso da experiência do próprio escritor na Rússia. Desse modo, sem propor
uma escrita autobiográfica, e consciente sobre aquilo que separa um texto lite-
rário de um texto documental, Bernardo Carvalho desenvolve um realismo crí-
tico, a partir de um jogo seguro entre realidade e ficção: note-se que muitos de
seus narradores são escritores, espelhando ficcionalmente a própria experiência
do autor. Suas estratégias literárias conectadas à realidade colaboram para uma
reflexão metalinguística sobre a própria literatura e a forma como esta se rela-
ciona com a realidade e, principalmente, retira o leitor da sua zona de conforto,
exigindo sua participação consciente no ato de leitura.
Lins traz para a literatura o realismo bruto de uma situação social que perfaz,
na contemporaneidade, uma parte significativa da miséria social brasileira que
atinge cidadãos duplamente oprimidos. Externamente são trabalhadores discri-
minados pela sociedade em geral por pertencerem às comunidades periféricas,
as chamadas favelas. Internamente são vitimados pela violência alimentada co-
tidianamente pelo tráfico de drogas que parasita esses ambientes de concentra-
ção de pobreza. Da violência e perversidade sustentadas pelos traficantes “do
morro” e também do asfalto, e pelos consumidores “do asfalto” e também do
morro, emerge um conteúdo narrativo com todos os matizes da arte pós-moder-
na. Em Cidade de Deus, o insólito não é metáfora, mas sim um recurso literário:
226 Para assistir as videoaulas deste livro, assine o site www.planoeducacao.com.br
Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br
Novos autores, autores jovens e a internet como espaço literário
A favela agora tinha dono: Miúdo. Só ele poderia traficar na favela. Deu uma das bocas-de-
fumo para Sandro Cenoura na consideração, porém o resto era dele e do Pardalzinho. A
Teresona continuaria a vender, mas teria apenas dez por cento sobre as vendas, assim como
qualquer vapor. (LINS, 2003, p. 160)
(2003) – que retratam os dilemas sociais das periferias da cidade de São Paulo e
foram publicadas em livro – mantém on-line um site e um blog (<www.ferrez.com.
br> / <http://ferrez.blogspot.com>). Outro exemplo dessa nova geração de auto-
res que circulam primordialmente pela rede mundial de computadores é o per-
nambucano radicado em São Paulo, Marcelino Freire (1967), vencedor do Prêmio
Jabuti de Literatura em 2006, com o livro Contos Negreiros (2005), e autor também
de EraOdito (2002); Angu de Sangue (2000) e BaléRalé (2003). Marcelino Freire é
encontrado na “rede” no endereço: <www.eraodito.blogspot.com>.
Texto complementar
lução, instalando a ditadura que controlou o país por duas décadas. Elizabe-
th Bishop vislumbrou perfeitamente o alvo, mas acreditou demais na pro-
verbial paciência brasileira. Se pudesse reescrever o trecho, provavelmente
abandonaria a caracterização macunaímica do povo feliz, embora à espera
do nada. Uma nação de Pedros pedreiros esperando um trem que nunca
sairia da estação.
Dialéticas em colisão
Disputa simbólica
revela o lado oculto de sua ginga, ou seja, esclarece que o malandro somente
pode existir à custa de um otário. Ainda mais: o otário, via de regra, é alguém
do povo, um entre tantos dos inúmeros excluídos. Malandro que é malandro
não cospe para cima. Lembremos o samba de Zeca Compositor: “Enquanto
existir otário no mundo,/ malandro acorda ao meio-dia”.
Tal prática possui nome e, ao que se sabe, constitui ofício dos mais an-
tigos. Difícil compreender o propósito dessas cenas na estrutura narrativa
da série. Difícil não se incomodar com um tratamento tão estereotipado e
ofensivo. Ou será que se trata de evitar a discussão sobre o problema grave
das favelas dominadas pelo narcotráfico por meio da exotização do próximo,
demasiadamente próximo? Resta uma última pergunta: qual o propósito da
crescente infantilização do foco narrativo e dos protagonistas? Desse modo,
os problemas associados ao narcotráfico podem ser deixados à margem e,
assim, reencontramos a “humanidade” das relações “mesmo” numa favela. Tal
infantilização termina por criar uma favela abstrata, totalmente descontex-
tualizada, como se sua vista privilegiada não passasse de um elemento de
valorização imobiliária e todos os barracos fossem apartamentos de cober-
tura. No segundo ano da série, a favela transformou-se no cenário de uma
sensualidade à flor da pele, uma miniatura da imagem turística de Salvador
em pleno morro carioca. Em breve, os espectadores de Cidade dos Homens
abandonarão sua teimosia e trocarão o asfalto congestionado pela vida
aventurosa das favelas. Afinal, somos todos brasileiros; logo, filhos de Deus,
na cidade maravilhosa.
[...]
Dicas de estudo
Para que o estudante possa completar as informações sobre a literatura con-
temporânea e a sociedade brasileira a partir dos anos de 1960, sugerimos o se-
guinte material:
Título da famosa coleção Primeiros Passos, trata-se de uma breve mas con-
sistente referência à matéria pós-modernismo. Escrita numa linguagem
didática e “jovial”, a obra esclarece as bases culturais que formam a socie-
dade contemporânea, respondendo a questões como “o que ocorreu nas
artes com o fim das vanguardas?”, ou “por que o niilismo voltou à boca dos
filósofos?”.
Nunca Fomos Tão Felizes (1984), dirigido por Murilo Salles, baseado no
conto “Alguma coisa urgentemente”, de João Gilberto Noll.
Estudos literários
1. De um modo geral, o que está por trás do conceito de pós-modernismo?
3. “A favela agora tinha dono: Miúdo. Só ele poderia traficar na favela. Deu uma
das bocas-de-fumo para Sandro Cenoura na consideração, porém o resto era
dele e do Pardalzinho. A Teresona continuaria a vender, mas teria apenas dez
por cento sobre as vendas, assim como qualquer vapor”. Essa passagem do
romance Cidade de Deus (1997), de Paulo Lins, revela uma das facetas mais
perversas da sociedade contemporânea: o mercado do tráfico de drogas.
Quais os índices da economia capitalista que são revelados nesse excerto?
Seu percurso profissional pela crítica literária se inicia a partir de 1943, com con-
tribuições ao jornal paulistano Folha da Manhã, onde elaborou críticas, por exemplo,
dos primeiros livros de João Cabral de Melo Neto e Clarice Lispector. Em 1959, veio a
público a terceira publicação de Antonio Candido, Formação da Literatura Brasileira
(Momentos Decisivos), obra em dois extensos volumes abordando a produção literá-
ria desde a segunda metade do século XVIII até final do século XIX. Consagrando-se
como um dos mais importantes estudos críticos da literatura brasileira, a obra é
referência obrigatória para o entendimento de nossa história literária.
A forma didática de especificar conceitos e ideias – que por outras mãos po-
deriam se tornar obscuros – é uma das características deste pensador sereno e
objetivo da cultura brasileira. Exemplos de seu didatismo são encontrados em
variadas notas sobre literatura e sociedade, campo de estudo em torno do qual
gira a sua crítica. Sobre a função social da literatura, ele explica:
A função social comporta o papel que a obra desempenha no estabelecimento de relações,
na satisfação de necessidades espirituais e materiais, na manutenção ou mudança de uma
certa ordem na sociedade. [...] Considerada em si, a função social independe da vontade ou
da consciência dos autores e consumidores de literatura. Decorre da própria natureza da obra,
da sua inserção no universo de valores culturais e do seu caráter de expressão, coroada pela
comunicação. (CANDIDO, 2000, p. 40)
Entre suas publicações destacam-se – além das obras citadas até aqui – os
seguintes títulos: Introdução ao Método Crítico de Sílvio Romero (1945); Ficção e
Confissão (1956); A Personagem de Ficção (1963); Tese e Antítese (1964); Literatura
e Sociedade (1965); Vários Escritos (1960); Radicais de Ocasião (1978); Quatro Espe-
ras (1990); Brigada Ligeira e outros Escritos (1992); O Discurso e a Cidade (1993); O
Estudo Analítico do Poema (1999); A Educação pela Noite e outros Ensaios (2000).
Todos os títulos foram reeditados inúmeras vezes e permanecem na lista de
obras obrigatórias no estudo universitário de literatura brasileira.
Roberto Schwarz:
literatura, sociedade e capitalismo
Nascido em Viena em 1938, Roberto Schwarz, filho de judeus austríacos,
veio para o Brasil ainda muito pequeno para se tornar um dos mais brasileiros
críticos de nossa cultura e literatura. Ex-aluno do sociólogo e crítico literário
Antonio Candido, e seu seguidor imediato no campo da literatura e sociedade,
Schwarz é um pensador alinhado com a crítica marxista. Suas reflexões sobre
a formação da sociedade brasileira desvelam uma contemporaneidade onde
ecoam os vícios do escravismo, do patriarcalismo, do favoritismo etc. Uma tal
visão crítica é balizada, em especial, pela análise dos interstícios de Memórias
Póstumas de Brás Cubas (1881), obra de nosso escritor maior, Machado de Assis
(1839-1908). As reflexões acerca da obra e seu escritor renderam a Schwarz
textos memoráveis como Ao Vencedor as Batatas (1977) e Um Mestre na Periferia
do Capitalismo (1990).
O célebre ensaio “As ideias fora do lugar”, que também inicia o livro Ao Ven-
cedor as Batatas, é crucial como introdução ao pensamento crítico de Roberto
Schwarz. Nele, o estudioso dialoga com importantes nomes da sociologia, da
história e da economia do Brasil contemporâneo – Sérgio Buarque de Holan-
da, Emília Viotti da Costa, Fernando Henrique Cardoso, Maria Sylvia de Carvalho
Franco, Luiz Felipe Alencastro, entre outros – para refletir sobre a disparidade
social brasileira após a independência (1822). O texto revela que, por um lado, a
sociedade brasileira do século XIX proclamava as formas e teorias do estado bur-
guês moderno e seus ideais iluministas de liberdade, igualdade e fraternidade;
por outro lado, o escravismo que vigorou oficialmente até 1888 chocava-se com
tais ideias liberais, criando uma situação paradoxal.
1
A Fapesp – Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (www.fapesp.br) – edita a Revista Fapesp, edição on line: <www.revistapes-
quisa.fapesp.br>.
a vida daqueles que não eram nem “senhores” nem “escravos”, nem proprietá-
rios nem proletários, ou seja, os “homens livres na ordem escravocrata” (FRANCO,
1997, p. 10). Schwarz (2000, p. 17) argumenta: “O escravismo desmente as ideias
liberais; mais insidiosamente o favor, tão incompatível com elas quanto o pri-
meiro, as absorve e desloca, originando um padrão particular”. É esse “padrão
particular” que resume as “ideias fora do lugar”, as quais Schwarz verá refletidas
exemplarmente na obra daquele a quem ele denominou de “mestre na periferia
do capitalismo”, Machado de Assis.
2
Estudos Culturais (2009): De uma forma geral, chamamos Estudos Culturais à disciplina que se ocupa do estudo dos diferentes aspectos da cultura,
envolvendo, por exemplo, outras disciplinas como a história, a filosofia, a sociologia, a etnografia, a teoria da literatura etc. Trata-se de uma disciplina
acadêmica, [...] sendo habitual ligar [sua] origem ao próprio desenvolvimento do pós-modernismo e às suas celebrações contra a alta cultura e as
elites sociais, aos seus debates sobre multiculturalismo que têm tido particular expressão nos Estados Unidos, à sua ênfase nos estudos sobre pós-
colonialismo, [...] às suas manifestações sobre cultura popular urbana.
A ousadia crítico-teórica de Luiz Costa Lima pode ser debatida e até contes-
tada, mas os desafios que o crítico impõe jamais podem ser considerados me-
nores. Seu labor teórico, de esmerado detalhe e sutileza, tem sido uma das mais
consistentes propostas de exercício crítico disponível aos estudiosos da literatu-
ra contemporânea. Os mais de 40 anos de trabalho ininterrupto de sua produção
ensaística não arrefeceram as dúvidas que definem o pensador sensato. Em en-
trevista de 11 de abril de 2009, o crítico assevera a respeito de sua vocação:
Eu me vejo como teórico da literatura, mas com o mínimo de bom senso para saber que a
teoria não vem antes da prática. Trata-se de verificar, ler, ler e ler, levantar objeção à sua própria
interpretação, ver se aquilo comprova isso. É claro que todos esses recursos não são suficientes
para ter certeza de que você não está se enganando. Mas procuro nunca fazer com que a teoria
seja algo que se imponha a priori. Teorizar a priori pode dar em besteira. (apud BERTOL, 2009,
p. 4)
O rol de livros assinados pelo septuagenário Costa Lima é extenso. Ele começa
a publicar na década de 1960 e mantém o mesmo fôlego na produção de títulos
que revelam consistência e originalidade em sua trajetória intelectual. Outros
exemplos, além das obras já citadas, são: Mímesis e Modernidade (1980); Disper-
sa Demanda (1981); O Livro do Seminário (1983); Sociedade e o Discurso Ficcional
(1986); A Aguarrás do Tempo: estudos sobre a narrativa (1989); Pensamentos nos
Trópicos (1991); Vida e Mimesis (1995); Terra Ignota (1997); Mimesis: desafio ao
pensamento (2000); Euclides da Cunha: contrastes e confrontos do Brasil (2000);
Intervenções (2002).
Maugüé e Roger Bastide. Foi sob a orientação de Bastide que, em 1950, Gilda de
Mello e Souza apresentou a sua tese de doutorado, A Moda no Século XIX: ensaio
de sociologia estética, legando sua contribuição para o entendimento do mundo
feminino na sociedade brasileira do século XIX. O ensaio veio a público em 1987,
sob o título O Espírito das Roupas: a moda no século XIX.
Sobre o exercício crítico de Gilda de Mello e Souza, sua colega Otília Beatriz
Fiori Arantes (2006, p. 313) comenta:
Um pouco por temperamento, mas sobretudo por uma escolha muito meditada, Gilda sempre
valorizara, na interpretação das obras, aquilo que aparentemente era desimportante e que
não aparecia de imediato numa primeira leitura ou a olho nu, os pequenos indícios a serem
perseguidos, como as pegadas, por um caçador, ou os “sinais” característicos que despertam a
imaginação de um detetive, de modo a decifrar o enigma que nos é proposto pela obra, fosse
ela quadro, filme ou livro.
A maestria de Dona Gilda pode ser conferida nas obras aqui mencionadas,
além de artigos dispersos em periódicos, a exemplo da Revista Discurso,3 da USP,
fundada e dirigida por ela nos anos 1970, e publicada ainda hoje como referên-
cia cultural brasileira.
3
Apesar de ser uma edição impressa, alguns números podem ser acessados no endereço <www.fflch.usp.br/df/site/publicacoes/discurso.php>.
Leyla Perrone-Moisés:
em defesa dos velhos tempos literários
A riqueza da crítica literária, toda a gente sabe, encontra-se na existência de
visões antagônicas que contribuem para o debate intelectual. Desse modo, en-
quanto, por exemplo, Antonio Candido persegue a linha da literatura e socieda-
de, Roberto Schwarz adota o marxismo como base de suas reflexões e Gilda de
Mello e Souza vale-se da corrente filosófica estética, a professora Leyla Perrone-
Moisés adota a visão crítica que defende a literatura como entidade autônoma,
desvinculada do processo social ou das perspectivas teóricas atuais como os es-
tudos culturais. Seu objetivo é defender, sobretudo, os critérios estéticos para a
interpretação literária, ou a “literatura pura”.
Texto complementar
[...]
Para terminar, e para sair do “odioso eu”, algumas palavras sobre o ensino
da literatura e a crítica literária. Muitas coisas mudaram desde que me tornei
crítica literária. A mais importante e a mais grave é que a literatura, tal como
era concebida na alta modernidade, perdeu muito de seu prestígio. A cria-
ção literária não é mais concebida como uma das mais nobres atividades
humanas, uma “vocação” à qual o escritor dedicava todas suas forças e podia
até sacrificar sua vida. A literatura, atualmente, é apenas uma das atividades
de comunicação, uma atividade como qualquer outra, que dá prestígio e, às
vezes, muito dinheiro.
acho que a literatura como tal esteja acabando. A produção não, a produção
não tem de ser vigiada, nem palpitada por ninguém. A literatura segue o
caminho que ela terá de seguir. A literatura está em mutação, como sempre
esteve. E se não sabemos muito bem para onde ela está indo, é porque ainda
não temos os parâmetros para aferir isso. Os escritores criarão esses parâme-
tros, e cabe aos críticos reconhecê-los.
Ora, o texto literário tem uma especificidade e um valor que devem ser
preservados. Atualmente, há muita informação cultural circulando, o que não
redunda em cultura, porque essas informações são superficiais, indiferencia-
das, veiculadas sem nenhum critério de seleção e recebidas de modo aleató-
rio. É como um antídoto a essa indiferenciação generalizada da informação
que a literatura deve ser ensinada e estudada. A grande obra literária é meio
de conhecimento, de crítica do real e exercício da liberdade imaginativa, sem
a qual a história é vivida como fatalidade. O acesso às obras dotadas desses
valores e ao instrumental que permite a sua melhor fruição é um direito ao
qual corresponde um dever do professor e do crítico.
Dicas de estudo
Para complementação ao estudo da crítica brasileira contemporânea, sugeri-
mos o seguinte material:
Estudos literários
1. Segundo João Alexandre Barbosa, por que se justifica estudar a crítica lite-
rária juntamente com o seu objeto, a Literatura, e, desse modo, considerar o
crítico como escritor e a sua crítica como literatura?
2. A obra de Graciliano foi escrita e reflete o período que vai do Entreguerras até
o pós-Segunda Guerra Mundial. Em termos mundiais, ocorreu o Crash de 1929,
a ascensão do nazi-fascismo, a difusão dos partidos comunistas e a Segunda
Guerra Mundial (1939-1945). Na esfera nacional, temos a Revolução de 1930,
o Estado Novo de Getúlio Vargas, o início do processo de industrialização e
urbanização brasileiro, e o aprofundamento das disparidades regionais.
3. Para Ferreira Gullar, a poesia nasce da prosa e da vida, e não é fruto de uma
inspiração divinamente produzida. No entanto, o poeta não deve abrir mão da
expressão poética, ou seja, o poema deve falar da vida até mesmo mais mes-
quinha, no entanto o texto deve ser literariamente belo e bem construído.
3. Fernando Sabino em suas crônicas, bem como nos contos e romances, tra-
ta as condições opressivas da vida moderna com humor e sátira, realizando
assim o espírito de uma outra grande frase latina: ridendo castigat mores, ou
seja, rindo se corrigem os costumes.
2. Em 1974, aos 30 anos de idade, Chico Buarque, publica a sua primeira obra
ficcional em prosa: Fazenda Modelo: novela pecuária, criticando, no calor da
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Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br
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