DESAFIOS DA
ARTIGO
DESINSTITUCIONALIZAÇÃO
NO CONTEXTO DOS SERVIÇOS
SUBSTITUTIVOS DE SAÚDE MENTAL
DESAFÍOS DE LA DESINSTITUCIONALIZACIÓN EN EL CONTEXTO
DE LOS SERVICIOS SUSTITUTIVOS DE SALUD MENTAL
http://dx.doi.org/10.1590/1807-0310/2019v31190259
CHALLENGES IN DE-INSTITUTIONALIZATION PROCESS IN
MENTAL HEALTH COMMUNITY SERVICES
RESUMO: A partir da Reforma Psiquiátrica Brasileira (RPB) e da implementação de serviços substitutivos ao modelo
manicomial, novas práticas de cuidado aos usuários de saúde mental foram se constituindo. O presente trabalho coloca
em questão os desafios da RPB frente aos impasses da desinstitucionalização nos serviços substitutivos. A pesquisa
desenvolveu-se em um Centro de Atenção Psicossocial (CAPS), em um município localizado na região metropolitana
de Porto Alegre/RS, e utilizou-se a pesquisa-intervenção como estratégia metodológica, apostando na ideia de que
conhecimento e prática caminham juntos. Foram realizadas oficinas com um grupo de usuários que possuíam uma
longa trajetória de tratamento e de tempo de permanência diária no CAPS a fim de mapear alguns de seus percursos
pela cidade e realizar saídas a campo para percorrer esses trajetos. Os efeitos produzidos pela intervenção colocaram
em análise a relação com a cidade, a vulnerabilidade econômica dos usuários, além dos desdobramentos produzidos na
pesquisadora.
PALAVRAS-CHAVES: Centro de Atenção Psicossocial CAPS; Desinstitucionalização; Saúde mental.
ABSTRACT: After the Brazilian Psychiatric Reform (BPR) and the implementation of community-based health
facilities replacing the asylum model, new practices of care to mental health users were built. This work inquires the
challenges faced by BPR regarding the deistutitionalization in the community-based health facilities. The research
was developed at a Psychosocial Care Center (CAPS) in a municipality at Porto Alegre Metropolitan Region. It used
the intervention-research approach as a methodological strategy, betting in the idea that knowledge production and
practices can walk together. Workshops with a group of long-term CAPS’s users, who spent most of their daytime
at the health facility, were done. The goal was to map some of the user’s preferred routes in the city and then follow
these routes with them. The results achieved by this intervention put in analysis the relations with the city, the user’s
economic vulnerability, and unfolded into the researcher herself.
KEYWORDS: Psychosocial Care Center (CAPS); Deistutitionalization; Mental Health.
Introdução
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Cidade e loucura
É necessário olhar para essas questões permanecendo atentos ao que ocorre fora dos
serviços: estaria a cidade acolhendo esses usuários? A existência de uma lógica manicomial
presente nos processos de subjetivação e influenciando os modos de se habitar a cidade,
permitiria pressupor que a relação loucura e cidade pode ser vista como um analisador da
desinstitucionalização (Amorim & Dimenstein, 2009). Afinal, no contemporâneo, a figura
do louco ainda está associada à doença mental e tem seu espaço de circulação restrito.
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Entretanto, a cidade da atualidade não é mais vista como espaço promovedor de en-
contros, deseja-se agora uma circulação fluída com menos paradas. Mizoguchi (2009, p.
14) fala do imperativo do medo e do paradoxo produzido na relação da loucura com a
cidade contemporânea: “em uma época essencialmente marcada por privatizações e indi-
vidualismos, a segregação dá-se não mais pelo encarceramento dos anormais em espaços
fechados, mas sim pela exclusividade da permissão à infiltração e ao deslocamento”.
Os muros que antes serviam para impedir a saída, como os do hospício que aprisio-
navam os loucos, são agora utilizados para impedir a entrada e promover o convívio entre
iguais como, por exemplo, nos grandes condomínios: “A autorreclusão dos iguais, ao invés
do aprisionamento dos distintos, se dá com a proliferação de espaços privados e público-
-privados cada vez mais autônomos em sua subsistência cotidiana de serviços e lazeres”
(Costa & Fonseca, 2013, p. 26). Nesta “lógica dos condomínios”, apresentada por Dunker
(2004), na qual se atualiza o desejo de estar entre “iguais”, cria-se um estado especial de lei
que irá fomentar rígidos regulamentos internos, garantindo segurança e proteção. Desta
forma, a existência do condomínio implica o reconhecimento da barbárie, daquilo que não
pertence aos “iguais”, ou seja, os excluídos.
A falta de determinados espaços urbanos não parece ser “privilégio” apenas dos loucos.
Esse esvaziamento dos laços comunitários perpassa a sociedade contemporânea como um
todo. Assim, haveria um desafio ainda maior para os usuários de serviços de saúde mental:
superar os estigmas na construção de novas redes e se inserir em um contexto no qual cada
vez há mais enfraquecimento das trocas e dos encontros (Salles & Miranda, 2016).
Guattari (1992) fala da cidade subjetiva atravessada por níveis singulares e coletivos
das pessoas; a cidade como uma grande máquina que produz subjetividade. É necessário
inventar uma democracia em que todos tomem a palavra em relação à cidade. “É o socius,
em toda sua complexidade, que exige ser re-singularizado, re-trabalhado, re-experimen-
tado” (Guattari, 1992, p. 176). Uma cidade subjetiva em sua processualidade, aberta à
invenção, ao heterogêneo.
Décadas após o início da RPB, com o gradual fechamento dos manicômios e após uma
série de conquistas políticas no campo da saúde, as questões surgem em outra dimensão: é
possível produzir brechas na cidade para promover o encontro com a diferença? Como as
ações dos serviços de saúde mental podem reverberar no território? Ao olhar para o proces-
so de “cronificação”, coloca-se um novo desafio para os serviços substitutivos: buscar outros
itinerários a serem percorridos, outros espaços a serem habitados.
O percurso metodológico
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croniCIDADES
Logo no início das saídas realizadas pelo grupo, começaram a surgir alguns indícios
da relação com a cidade; não se tratava de um desconhecimento sobre os espaços existentes
no município ou uma dificuldade de se articular em busca de informação. Pelo contrário, o
grupo demonstrava bastante desenvoltura: dominavam os trajetos, não se constrangiam ao
acessar os diferentes lugares. Entretanto, os lugares pareciam esvaziados: praças com pou-
quíssimas pessoas, igrejas fechadas no horário em que o grupo acontecia (horário que os
usuários frequentam o CAPS), ou seja, poucos atrativos para quem está passeando sozinho,
expressando um esvaziamento da possibilidade de produção de encontros.
O esvaziamento do espaço público é típico das cidades contemporâneas, os espaços de
convivência tornam-se cada vez mais privatizados (shoppings, clubes, bares, etc.), restando
à rua o lugar de passagem, um meio para acessar outros lugares, de preferência em carros
para evitar ao máximo um possível contato com o outro. Frente a essa experiência com o
urbano, cada vez mais restrita, o que inicialmente aparecia como um confinamento acaba
surgindo como uma possibilidade. O CAPS era um dos poucos lugares para se estar com
outras pessoas, e, nas saídas do grupo, ficou mais nítida sua potência como espaço articu-
lador de encontros e uma via para a circulação pela cidade.
Nesse encontro com o urbano, vão surgindo pistas de um dos desdobramentos da
pesquisa: se tomamos a “cronicidade” não apenas pela patologia, pelo diagnóstico, mas as-
sociada ao tempo, por uma relação de longa duração com o serviço – a ideia de institucio-
nalização –, emerge um novo aspecto em nossas questões: a própria cidade que também se
“cronifica”. Quando não há mais nada para se fazer, o CAPS ainda é um lugar interessante.
Além disso, foram recorrentes as conversas em torno das agressões que os partici-
pantes sofreram pela polícia e dos “paredões” pelos quais passaram. A polícia, a serviço da
manutenção da segregação, antevendo algum possível risco: não é um ato que justifica a
violência, mas a possibilidade de que algo desestabilize a “ordem”. Um medo instaurado
que vem justamente tirando a potência da polis como espaço de encontro, de troca. Uma
certa paranoia onde o “inimigo” sempre pode estar ao lado. Na cidade contemporânea, os
asilos e o encarceramento dos anormais não são a principal forma de segregação, outros
dispositivos disciplinares são utilizados para a manutenção da “segurança” de seus habi-
tantes, à pretensão de paz revestida pelo higienismo.
Além do fator classe social, é necessário olhar para a interseccionalidade ao pensar na
violência sofrida por essas pessoas. A grande maioria dos participantes do grupo era de ho-
mens negros. Marcas do racismo institucional no campo da segurança pública brasileira e da
filtragem racial na abordagem de suspeitos (Barros, 2008; Sinhoretto et al., 2014).
Em contraponto, uma determinada praça despontou como unanimidade para o grupo
quando o assunto referia-se a “locais que gostam de frequentar”. Um pequeno espaço na
região mais central da cidade que parece acolher diferentes pessoas, moradores de rua,
gente que marca encontros, ou “faz hora” para algum compromisso. Ali, o recorte de
classes parece minimizado. É comum ver alguém sozinho lendo o jornal ou navegando no
celular. E, como é típico em cidades menores, com frequência é possível encontrar algum
conhecido ao acaso.
Essa praça foi bastante citada e foi relacionada ao fato de “olhar o movimento”, ativi-
dade que o grupo apontou como uma possibilidade quando não se tem dinheiro. Assim, a
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“falta do que fazer” também está vinculada à falta de dinheiro. Todos os passeios realizados
foram em locais em que a entrada era gratuita. Além disso, nenhum dos espaços era voltado
diretamente para o consumo (restaurante, lojas etc.). Ao mostrarem “sua cidade”, apresen-
taram, também, a dificuldade de inserção nos espaços de lazer; afinal, na maioria das vezes,
a “diversão” no nosso modo de subjetivação capitalista está relacionada ao consumo.
A cidade que discrimina os grupos sociais também apareceu em diferentes conver-
sas, explicitando a segregação, agora não mais pelo aprisionamento dos diferentes, mas
pela dificuldade de acesso a territórios onde o capital é quem regula a entrada. A questão
econômica emerge como elemento de segregação, uma vez que a entrada só é possível
“pela porta dos fundos”, ou seja, não mais pelo estigma da loucura, mas pelas marcas da
pobreza.
A cidade e seus diferentes tempos também surgiram como um analisador. Uma sen-
sação de nostalgia permeou os encontros, tanto pelas falas que remetiam a uma cidade “de
antigamente”, quanto pela relação com o urbano, pelo desejo por uma época onde a veloci-
dade parecia ser outra. A cidade, dos tempos atuais, trazia consigo certo tom de amedron-
tamento aos participantes, a ida à capital, por exemplo, era relatada como algo temeroso.
Se em alguns momentos a nostalgia parecia estar relacionada à idade e a um tempo cro-
nológico, visto que quase todos tinham entre 50/60 anos, algumas falas apontavam para
uma outra noção de tempo, um tempo que soava distante, mas não pela passagem dos anos.
Muitos dos relatos do passado estavam associados a um período ainda não marcado pelas
internações, pelo tratamento em saúde mental. Será que esse tempo nostálgico não estaria
no passado ainda não marcado pela doença? É comum o fato de pessoas que passaram por
episódios de intermação ou de intenso sofrimento psíquico resgatarem um período da sua
vida onde a relação com a patologia, com a Classificação Internacional de Doenças (CID),
não estava presente. Frases como: “quando eu era são...”, “quando eu não era doente...”,
surgiram no grupo, mas não ficam restritos a ele. Frases que transmitem uma sensação de
ruptura precoce. Comumente escutam-se pessoas com uma idade avançada falando de um
passado produtivo, pois, para tais sujeitos, o “passado produtivo” teve um encurtamento
marcado pela doença.
Os destinos percorridos pelo grupo também eram demarcados por tempos distintos.
Havia uma diferença entre as caminhadas dentro dos bairros em relação àquelas na ave-
nida central da cidade. Nesta última, andava-se em fila, em um passo apressado, a conver-
sa diminuía, quase como se não estivessem em grupo. Já em espaços mais afastados das
grandes vias, as conversas seguiam em outro ritmo, mais de uma vez foi preciso “cuidar
o relógio” para que o tempo de retorno ao CAPS não ultrapassasse muito do combinado.
Entretanto, essa diferença entre os tempos, apesar de percebida e até mesmo apreciada,
não era tomada como algo ruim pelos participantes; a industrialização, nas falas deles, era
trazida também como sinônimo de progresso.
Em uma entrevista, Paul Virilio (2012) afirma o poder da velocidade na sociedade
capitalista: afinal, riqueza e velocidade estão interligadas e a acumulação do capital passa
pela aceleração na lógica do “tempo é dinheiro”. O autor exemplifica com as negociações
financeiras na era da Internet, onde segundos podem gerar a perda de milhões em ope-
rações: como exemplo, cita o ocorrido, no dia 6 de maio de 2010, em Wall Street quando
um grande número de operações realizadas em um curto espaço de tempo provocou uma
pane que acarretou na perda de bilhões de dólares. Assim, a velocidade é tida como a “pro-
paganda do progresso”, e o século XXI volta-se para a conquista do tempo infinitesimal.
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Além disso, a peculiaridade com que a psicose vivencia as questões de espaço e tempo
deve ser levada em conta quando olhamos para a relação que esses sujeitos estabelecem
com a cidade. Se a afobação e a aceleração da rua parecem assustar, acolher um ritmo di-
ferente e promover uma parada nos fluxos intensos é importante. Nesse sentido, o CAPS
pode assumir o papel de intermediador entre o serviço e a cidade em seus diferentes rit-
mos, o que potencializaria habitar o urbano de forma ampla. Entretanto, não parece só
uma questão de “adaptar” os usuários de saúde mental ao ritmo das cidades contemporâ-
neas. A velocidade frenética da cidade e a otimização do tempo são um imperativo do capi-
talismo. Nessa lógica, o tempo torna-se um bem, uma mercadoria, cada segundo a mais de
produção pode gerar mais lucro. Peter Pál Pelbart, em seu livro A nau do tempo-rei (1993),
associa essa possibilidade de dar uma “parada” no tempo – peculiar à loucura – a um ato
grevista, um movimento de resistência a essa aceleração e à demanda de produtividade que
impera. Não se trata de inserir os loucos na lógica do tempo da urgência, mas, por que não,
compartilhar dessas outras temporalidades ao habitar o urbano? O que o tempo da loucura
teria a nos dizer?
Outra característica do grupo, talvez, mais do que conhecer novos locais, foi a possi-
bilidade de revisitar espaços, de atualizar a memória e trazer vida a lugares já esquecidos.
Nestes percursos fomos surpreendidos: três dos nossos destinos não existiam mais, ou não
eram mais acessíveis ao público. Apesar de certo tom de ressentimento que essa situação
trouxe para algumas das conversas, a tentativa de revisitar a “cidade do passado” também
rendeu muitas lembranças boas e teve a função de promover uma espécie de pertencimento
ao grupo. Eles compartilhavam o conhecimento sobre algo que já não poderia mais ser visto.
“Crônicos”?
A alguns usuários de saúde mental é atribuído o termo “crônico”, tanto pela inalcan-
çável “cura” quanto, principalmente, por aquilo que perdura, que se arrasta ao longo do
tempo sem muita perspectiva de mudança, de um prognóstico positivo. Os “crônicos” ne-
cessitariam de um cuidado em saúde por longos períodos, o que justificaria permanecerem
por tanto tempo nos serviços. Talvez mais “supervisionados” do que investidos de cuidado,
por isso é tão comum o CAPS servir mais como um espaço de convivência do que de local
de “tratamento” para essas pessoas, ou seja, uma função diferente daquela que se poderia
tradicionalmente esperar dos equipamentos de saúde.
Entretanto, com o decorrer da pesquisa, produziu-se uma relativização da própria
“cronicidade” daquelas pessoas. Corpos supostamente docilizados demonstraram-se mais
desejantes do que se imaginava. Como exemplo, as faltas posteriormente justificadas pelo
mau tempo, algum “bico” feito na vizinhança, etc. A chuva ou a necessidade de ir ao banco
tinham um lugar de prioridade, algumas coisas não sendo mudadas para se adaptar à roti-
na do CAPS. A afirmação “se não tivesse o CAPS ia ficar em casa dormindo” surgia como
unanimidade para o grupo, mas também é demarcada como uma opção.
Percebeu-se também o quanto a sensação de marasmo, atribuída ao fato de aquelas
pessoas passarem anos frequentando o mesmo serviço, pode ser equivocada. Visto de outra
perspectiva, aquele espaço, que parecia homogêneo, possui multiplicidades. Em um dado
momento, quando foi questionado o fato de os usuários ficarem restritos ao trajeto de casa
para o CAPS, um dos participantes contou que ele fazia isso, mas complementou: “o CAPS
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mudou muito nos últimos anos!”, o grupo pode falar sobre as mudanças dos profissionais
no serviço, das diferentes casas que o CAPS ocupou nos últimos anos e do fato de apenas
duas profissionais estarem trabalhando desde a sua implementação na cidade. Demar-
caram que, apesar de frequentarem o serviço há muitos anos, não se tratava sempre do
mesmo espaço. Conseguiam ver movimento em algo que os trabalhadores olhavam como
estagnação: não era o “mesmo” CAPS que frequentavam durante esses anos e justamente
por estarem há mais tempo no local é que conseguiam ver o que de novo havia nele.
O objetivo da pesquisa não era apenas acompanhar os usuários, mas também produzir
intervenção nos espaços por onde eles circulavam, acreditando que a desinstitucionaliza-
ção também está relacionada a como essas pessoas fariam a sua inscrição no social. Não
só o que a cidade coloca para o CAPS, mas o que o CAPS coloca para a cidade. Contudo,
durante os percursos, o medo e a falta de aceitação da loucura não despontaram como im-
peditivos para a circulação do grupo, não tendo sido percebido nenhum tipo de preconceito
gerado pelo fato de serem usuários de saúde mental. Talvez a presença de um profissional
de um serviço de saúde serviu como um facilitador para o processo de circulação nos dife-
rentes espaços. Entretanto, isso não parece ter sido a questão principal. O atravessamento
de classe parece ter se sobressaído em relação à loucura.
Questões relacionadas à garantia de direitos também apareceram nas conversas.
Quanto ao deslocamento pela cidade, dos cinco participantes, quatro possuíam “passe li-
vre”. Mas esse passeio de transporte público é acompanhado por uma certa cautela, uti-
lizando apenas as lotações que passam em frente a suas casas, e o destino final é o centro
da cidade; como em uma obediência às rotas previamente estabelecidas pela companhia
de transporte público. Apenas um dos participantes não recebia o Benefício de Prestação
Continuada (BPC) ou aposentadoria por invalidez, porém estava, com o auxílio de um ad-
vogado, reivindicando seu direito. Com esse dinheiro, além de seu próprio sustento, eles
auxiliavam suas famílias e, em um caso, era a única fonte de renda para todos (mãe, irmã,
cunhado e sobrinhos).
Outro relato bastante presente na fala de um dos participantes (que tinha em torno
de 30 anos de idade) era a “falta do que fazer” em seu território, mesmo sendo um local
de bastante investimento em termos de políticas públicas. Apesar de existirem diferentes
recursos no local, nenhum era voltado para sua faixa etária. Reflexo da nossa sociedade
e do não lugar para aqueles que estão em idade produtiva para o trabalho, mas estão fora
dele. Também da nossa, ainda escassa, política de inclusão para o emprego, onde aqueles
que destoam dificilmente conseguirão brechas para atuar em um mercado formal. Além
disso, as poucas possibilidades de inserção no trabalho – sendo formal ou não – estavam
relacionadas a atividades que exigem grande esforço físico, com uma contrapartida muito
baixa de remuneração.
Assim, a “cronificação” também estaria associada a uma série de desinvestimentos.
Ao olharmos para os usuários que frequentam o CAPS com maior assiduidade, percebe-se
que, na maioria das vezes, são pessoas com baixa escolaridade, em vulnerabilidade social
e que o serviço, além de promover o cuidado em saúde mental, também é um espaço para
realizar refeições, tomar banho etc.
Durante a realização do grupo, a escassez de espaços de convivência na cidade ficou
evidente, e o CAPS mostrou-se como um suporte relevante em momentos difíceis, uma
opção para quando havia brigas em casa, por exemplo, mas também um espaço para se
frequentar quando não se “tinha nada para fazer”. A necessidade de ter um lugar para ir
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todos os dias e “passar o tempo” foi trazida em diversos momentos pelos participantes.
Entretanto, o ato de “passar o tempo” é o que justamente acabaria atribuindo o caráter
“cronificante” a eles. O tempo livre, na contemporaneidade, é tido como algo problemá-
tico. No imperativo do ritmo acelerado, a ociosidade é encarada como perda de tempo,
esse – como já dito antes – quando tomado como um bem, uma mercadoria que deve ser
constantemente otimizada. Talvez o motivo pelo qual os profissionais de saúde demons-
trem incômodo com o modo de estar no CAPS e tentarem preencher o tempo dos usuários
com diferentes atividades. Estar em um local, por um longo período “sem fazer nada”, não
parece plausível atualmente.
Se, por um lado, havia uma falta de opção, também existia uma certa resistência em
circular em outros lugares. Mesmo convites aparentemente atrativos, como a festa patroci-
nada pelo município em seu aniversário (sem articulação com o grupo), ou o Baile da Ter-
ceira Idade em que os participantes foram convidados (e só um compareceu), o novo parece
não ser muito interessante. Entretanto, a possibilidade de estar com essa pessoa no baile,
e vê-la posteriormente contagiando seus colegas para acompanhá-la em um próximo, dá
pistas de um trabalho a ser feito pelo CAPS. Acompanhar essa circulação pela cidade, pois,
se não há pessoas nas praças, por que não ocupá-las? Talvez com atividades externas a
cidade também possa tornar-se mais atrativa.
Estar entre a instituição e o urbano é o que propõe o Acompanhamento Terapêutico
(AT) como modalidade clínica:
O CAPS poderia emprestar essa função AT e auxiliar para que os espaços públicos
sejam habitados e não apenas transitados, que lugares de passagem se tornem espaços de
convivência. Algo também a ser feito em grupo, para além das questões clínicas, um dis-
positivo a serviço da apropriação da cidade.
Outros questionamentos foram surgindo em relação à dificuldade em sair do CAPS;
a primeira saída do grupo, por exemplo, demorou um mês para acontecer. Geralmente, as
atividades externas são organizadas pelos técnicos, sem muita intervenção dos usuários.
Fora a escolha do destino, toda a organização é feita sem que os usuários participem do
processo. No entanto, a demanda neste grupo era diferente: eles deveriam escolher o local
e planejar como chegariam (se usariam transporte público ou iriam a pé, se daria tempo
de fazer a atividade em uma manhã etc.). Isto aponta para a própria falta de hábito dos
profissionais em sair do serviço, pois realizar essa circulação pela cidade pode ser difícil e
trabalhosa, fazendo com que também os trabalhadores se acomodem, se institucionalizan-
do, visto que esperar que os usuários venham até o CAPS, realizem uma atividade e voltem
para casa demanda bem menos tempo e planejamento. Mas por que não compartilhar essa
tarefa? Dividir a responsabilidade da circulação pelo território com o usuário poderia di-
minuir essa inércia.
A pesquisa iniciou com as premissas de que a cidade não acolheria a loucura, que o
CAPS “cronificaria” os usuários e que haveria uma dificuldade por parte dessas pessoas
em circular pelo urbano. Porém, o grupo despontou como um dispositivo no qual as expe-
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riências locais puderam ser postas em análise (Rocha & Aguiar, 2003); ocupar o lugar de
pesquisadora possibilitou repensar o papel de trabalhadora. Poder olhar para os efeitos da
relação técnico/usuários e os reflexos dessa nas relações de saber/poder no cotidiano do
serviço, colocando em questão alguns dos pensamentos naturalizados, ideias preconcebi-
das e não verificadas, atravessamentos na relação profissional/usuários.
Pensar o CAPS como local que perpetua a “cronicidade” e a relação com a cidade
como algo embrutecido parece não dar conta das problemáticas aqui levantadas. Também
apontar que “não se tem rede” pode soar como uma saída fácil para esse problema. O que
nos parece mais interessante é poder habitar o que existe para além dos serviços. Se a cida-
de atualmente é tomada como espaço de passagem, contrária ao encontro, caberia também
ao CAPS propor atividades em outro tempo. Poder efetivamente trabalhar no território,
fazer redes, incluindo essa diferença, sustentando outros lugares possíveis.
No decorrer dos encontros, os usuários foram mostrando os lugares que existiam em
sua cidade e que havia um esvaziamento de sentido nos espaços de convivência, mais do
que uma falta de acolhimento por parte do urbano. Um desdobramento na questão inicial: a
cidade também “cronifica”. Também mostraram que fazer a mesma coisa todos os dias não
é necessariamente algo a ser combatido. Seguir o imperativo: fazer a mesma coisa todos os
dias pode ser resistência, sendo nômade quando não se move, mas quando se habita o espaço.
O CAPS podendo operar como lugar de parada. O tempo dos usuários como uma forma de
resistência quando uma circulação mais ampla pode estar atrelada a um imperativo de mo-
vimento, resistência a essa velocidade do urbano que nos invade. O CAPS atuando dentro
dessa “lógica de condomínio” como um espaço de troca entre os pares e de proteção.
O dinheiro também surgiu como um importante analisador: a restrição ao circular no
urbano estaria relacionada à loucura ou à pobreza? Dinheiro como um ponto nevrálgico;
sabe-se que a grande maioria de usuários dos serviços de saúde mental pertencente ao
SUS também é atravessada por um recorte de classe, de um grau de escolaridade. Se a vida
citadina, em nosso modo de subjetivação contemporâneo, perpassa pelo poder aquisitivo,
não seria diferente com os participantes do grupo.
Assim, se esses “novos crônicos” não carregam marcas dos hospitais psiquiátricos (rou-
pas identificadas), carregam a marca da pobreza. Torna-se necessário olhar para a questão
não se restringindo ao campo da saúde, pensando também em ações intersetoriais. Se, em
sua maioria, os usuários de saúde mental do SUS possuem baixa escolaridade e possibilida-
des precárias de emprego, como estreitar relações e promover ações vinculadas à educação e
ao trabalho? Não olhar a doença de forma isolada (separando-a do social) era um dos lemas
defendidos pelos psiquiatras italianos. Poder falar sobre loucura e relacioná-la com outros
marcadores de exclusão é uma forma de ampliar a questão e não limitá-la ao patológico.
No decorrer da pesquisa, percebeu-se que o CAPS ainda é um equipamento de socia-
bilidade importante, ao menos no município em questão, pela pouca diversidade de espaços
voltados ao lazer. Com isso, pretendemos deixar claro que não se trata de uma genera-
lização. Provavelmente em outros municípios, com dispositivos diferentes, a relação de
usuários de saúde mental e a cidade pode se dar de outra forma.
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JULIA BONGIOVANNI
https://orcid.org/0000-0002-3690-2001
Psicóloga atua em um CAPS II, especialista em saúde da família e comunidade,
mestre em Psicologia Social e Institucional pela UFRGS.
E-mail: juliabongiovanni@yahoo.com.br
ISSN 1807-0310 13
DESAFIOS DA DESINSTITUCIONALIZAÇÃO NO CONTEXTO DOS...
ISSN 1807-0310 14