2013
UNIVERSIDADE DE LISBOA
FACULDADE DE BELAS ARTES
2013
RESUMO
Mapa para um lugar algures é uma dissertação teórica – prática que afirma a
importância da fotografia efectuada sem câmara ou lente, como forma de assegurar a
sobrevivência do medium fotográfico enquanto processamento fotoquímico numa era
em que o advento do digital se tornou uma prática totalitária nos discursos e nas obras
fotográficas.
Porque é que as imagens fotográficas experimentais foram postas à margem da
ontologia da fotografia? Não farão elas parte da sua génese por direito, ao assentarem
na essência da luz e na fotossensibilidade química do suporte? Não será que os
desenvolvimentos mecânicos e ópticos do dispositivo fotográfico ao longo dos
tempos forçaram a ideia de que era na figuração e na cópia fidedigna da realidade que
a fotografia devia circunscrever a sua ontologia e os seus propósitos?
Que diferenças existem entre uma imagem abstracta e uma concreta? Que
lugar ocupam estas imagens na contemporaneidade hiper democratizada dominada
pelo digital?
De forma a responder a estas questões servir-nos-emos de um encadeamento
de conceitos divididos por quatro momentos que compõem esta dissertação. Na
primeira parte relacionaremos historicamente a Arte Concreta com a ciência e a
fotografia, convocando as sinergias que daí advieram e que permitiram a legitimação
do concreto na fotografia à luz das afirmações de Gottfried Jager.
No capítulo seguinte situar-nos-emos em torno do conceito de contacto,
confluindo as ideias para a dimensão química da fotografia, nomeadamente para o
género do fotograma.
No terceiro capítulo desenvolveremos os conceitos de mapa e sublime,
procurando relacioná-los com a fotografia, no sentido de responder e dar conta de
exemplos de trabalhos que explorem os limites da própria fotografia, e que nos
transportem para terrenos desconhecidos.
Finalmente no último capítulo, expomos a componente prática da dissertação,
analisando-a à luz dos conceitos referenciados, bem como o seu propósito conceptual,
formal e processual.
i
ABSTRACT
ii
AGRADECIMENTOS
Alexandre Estrela, Ana Pereira, Fernando Fadigas, Sérgio Mah, José Luís Neto, José
Marques, José Sanches Ramos, Rui Gonçalves, Pedro Januário e Sónia Mota Ribeiro
pela sua contribuição directa ou indirecta na realização desta dissertação.
iii
ÍNDICE DE FIGURAS
Fig.1
Theo Van Doesbourg , Manifesto da Arte Concreta, Paris, 1930, (AAVV, 1990: p. 70).
Fig. 2
Theo Van Doesbourg, Composition Arithmetique I, 1930. Óleo s/tela, 101x101 cm. Colecção
Kunstmuseum Winterthur, Suiça. França, Paris (AAVV, 1990: p. 65).
Fig. 3
Issac Newton, desenho dos seus experimentos com prismas, retirado do seu caderno de anotações,
[Em linha], Londres, Reino, 1666. Disponivel em
<http://www.departments.bucknell.edu/history/carnegie/newton/refraction.html>, acedido em 2-5-
2012.
Fig. 4
Jules Antoine Lissajous, Etude optique des mouvements vibratoires, in Annales de Chimie et de
Physique, [Em linha], 1857. Disponível em <http://www.jnorman.com/cgi-bin/hss/38038>, acedido em
13-6-2012.
Fig. 5
Étienne Léopold Trouvelot, Electric effluvia on the surface and circumference of a coin, c.1888. Papel,
gelatina e prata, 22,5x17 cm. Colecção Musée des arts métiers, Conservatoire national des arts et
métiers, França, Paris (Keller: 2008: p.169, fig. 114).
Fig. 6
Von Félix Auerbach, Physik in Graphischen Darstellungen, 1912. Berlim, Alemanha, (Auerbach,
1912: pp.1 e 70)
Fig.7
Pierre Cordier, Photo-chemigramme 27/9/78 livrillisible d après La Bibliothèque de Babel de Jorge
Luis Borges” II, 1978. Quimigrama, papel gelatina e prata, 17,5x 11,3 cm, Bélgica, Bruxelas (Cordier,
2007: 142).
Fig. 8
Heinrich Heidersberger, Triennale, da série Rhythmogramm, 1956. Papel, gelatina e prata. Colecção
Museum fur Konkrete Kunst Ingolstadt, Alemanha, Wolfsburg (Heidersberger, 1997: 21).
Fig. 9
Heinrich Heidersberger, Rythmographen, 1961. Fotografia p/b. Colecção Museum fur Konkrete Kunst
Ingolstadt, Alemanha, Wolfsburg (Heidersberger, 1997: 13).
Fig. 10
Sonia Landy Sheridan, Tracing the Shadows of Time, [Em linha], Chicago, EUA, 1977. Tinta e caneta
s/papel, 81/2 x 11 in. Disponível em http://www.jstor.org/stable/1578621, acedido em 4-12-2009.
Fig. 11
August Strindberg, Celestographs, [Em linha], 1894. Estocolmo, Suécia. Colecção Royal Library,
Stockholm. Disponível em http://www.cabinetmagazine.org/issues/3/celesographs.php, acedido em 6-
5-2012.
Fig. 12
Sonia Landy Sheridan, Generative Systems, [Em linha], Chicago, EUA, 1979. Colecção Art Institute of
Chicago. Disponível em http://www.jstor.org/stable/1578602, acedido em 4-12-2009.
iv
Fig. 13
Gottfried Jager, Pinhole Structures, [Em linha], Bielefeld, Alemanha, 1986. Disponível em
http://www.jstor.org/stable/1578296, acedido em 7-6-2009.
Fig. 14
Floris Neusüss, S/título, 1967. Gelatina e prata sobre papel, fotograma, 104,5x 126cm. Colecção
Staatliche Museen Kassel, Alemanha, Kassel (Neusüss, 1997: p.39, fig.7 ).
Fig. 15
Wilhelm Rontgen, The bones of a hand with a ring on one finger, viewed through x-ray, 1895.
Reprodução fotográfica de radiografia, 18.1x 13 cm. Colecção Wellcome Library, London. Disponível
em <http://images.wellcome.ac.uk/indexplus/image/V0029523.html>, acedido em 30-9- 2012.
Fig. 16
Man Ray, Retour à la raison, 1923. Fotograma sobre película (detalhe), filme projectado, p/b, s/som,
3’, França, Paris (Elcott, 2008: 8).
Fig. 17
Sudário de Turim, [Em linha], c. 30 DC, Catedral de S. João Baptista, Torino, Itália. Pano de Linho:
430x110 cm. Disponível em <http://commons.wikimedia.org/wiki/File:Shroudofturin_rotated.jpg>,
acedido em 4-6-2011.
Fig. 18
Mandylion de Edessa, [Em linha], s/d, Capela privada do Papa, Vaticano, Itália. Disponível em
<http://en.wikipedia.org/wiki/Image_of_Edessa>, acedido em 29-9-2012.
Fig. 19
Henry Fox Talbot, Duas delicadas folhas de planta, [Em linha], 1839, Reino Unido. Desenho
fotogénico, papel salgado: 22.8 x 18.3 cm. Disponível em
<http://foxtalbot.dmu.ac.uk/resources/ferns.html>, acedido em 12-11-2011.
Fig. 20
Anna Atkins, Fucus Vesiculosus, [Em linha], 1843, Reino Unido. Impressão de Cianotípia, 26,4x20,6
cm. Colecção The Detroit Institute of Arts. Disponível em <http://www.dia.org/object-info/ca1ffac6-
c10f-487a-816e-f99707c925eb.aspx?position=9>, acedido em 6-10-2012.
Fig. 21
Sir John Herschel, The Honourable Mrs. Leicester Stanhope, [Em linha], 1836, Reino Unido.
Impressão de Cianotípia, Disponível em <http://www.utexas.edu/opa/blogs/culturalcompass/tag/sir-
john-herschel/>, acedido em 30-9-2012.
Fig. 22
Autor desconhecido, Silhueta de William Groth, [Em linha], c. 1802-10, EUA, Boston. Papel.
Disponível em <http://cool.conservation-us.org/coolaic/sg/bpg/annual/v18/bp18-07.html>, acedido em
3-10-2012.
Fig. 23
Dennis Oppenheim, Reading Position for Second Degree Burn, [Em linha], 1970, EUA, Jones Beach,
New York. Livro, pele, energia solar. Disponível em <http://www.dennis-oppenheim.com/early-
work/148>, acedido em 22-8-2012.
Fig. 24
Susan Derges, Starfield - Fountain, [Em linha], 2004, ilfochrome, prova única, 105 x 58cm. Disponível
em <http://www.paulkasmingallery.com/artists/susan-derges/2>, acedido em 10-10-2012.
Fig. 25
Thomas Ruff, ma.r.s.10, [Em linha], 2010, C-Print, Diasec, 256 x 186 cm. Disponível
em<http://www.mai36.com/thomas-ruff-selected-works/410-thomas-ruff-works-mars.html>, acedido
em 21-11-2012.
v
Fig. 26
Odilon Redon, L'oeil, comme un ballon bizarre se dirige vers l'Infini, [Em linha], 1882, França, Paris,
litografia, 25.9 x 19.6 cm. Disponível em
http://www.moma.org/collection/object.php?object_id=68055, acedido em
Fig. 27
Heinrich Keller, Mapa panorâmico da vista do cume do Monte Rigi, [Em linha], 1820, Suíça, gravura
colorida, 95x19cm. Disponível em <http://www.rigipano.ch/Seiten/Panorama.html>, acedido em 5-11-
2009.
Fig. 28
Marco Breuer, S/título (Fuse), 1996. Papel queimado, gelatina e prata, prova única, 46 x 36 cm, EUA,
New York ( Breuer, 2007: 25).
Fig. 29
Mark Rothko, No. 10, [Em linha], 1950. EUA, New York, Óleo s/tela, 229.2 x 146.4 cm. Disponível
em: <http://www.nga.gov/feature/rothko/48.jpeg>, acedido em 14 -12 - 2012.
Fig. 30
Wolfgang Tillmans, Lighter III, 2006. C-print, prova única, 54x64 cm (Tillmans, 2008: 53).
Fig. 31
Lucio Fontana, Concetto Spaziale, Attese, [Em linha], 1963/63. Tinta de água sobre tela, 65,4x 54,6
cm, Colecção Privada. Disponível em: < http://www.speronewestwater.com/cgi-
bin/iowa/works/record.html?record=2804>, acedido em 2 - 1 – 2013.
Fig. 32
Mel Bochner, Surface Dis/Tension, 1968. Silhueta composta: papel, gelatina e prata, montada em
painel, 182,9 x 172,7 cm ( Bochner, 2002: fig. 22).
Fig. 33
Daniel Antunes Pinheiro, Mapa para um lugar algures [série de 16 imagens], gelatina e prata sobre
papéis baritados, fotogramas, provas únicas, 50x60 cm, 2011
Fig. 34
Daniel Antunes Pinheiro, S/Título II da série Mapa para um lugar algures, gelatina e prata sobre papel
baritado, fotograma, prova única, 50x60 cm, 2011
Fig. 35
Daniel Antunes Pinheiro, S/Título VIII da série Mapa para um lugar algures, gelatina e prata sobre
papel baritado, fotograma, prova única, 50x60 cm, 2011
Fig. 36
Daniel Antunes Pinheiro, S/Título XVI da série Mapa para um lugar algures, gelatina e prata sobre
papel baritado, fotograma, prova única, 50x60 cm, 2011
Fig. 37
Daniel Antunes Pinheiro, S/Título VI da série Mapa para um lugar algures, gelatina e prata sobre
papel baritado, fotograma, prova única, 50x60 cm, 2011
vi
ÍNDICE
Resumo/Palavras-chave i
Abstract/Keywords ii
Agradecimentos iii
Índice de Figuras iv
INTRODUÇÃO 1
CAP. II – O CONTACTO 24
CONCLUSÃO 63
BIBLIOGRAFIA 66
INTRODUÇÃO
A fotografia desde o seu início assentou na ideia de cópia, de poder fixar para
a posteriori elementos da realidade através de um dispositivo mecânico e óptico.
Funcionando como prova da veracidade dos factos, a sua ontologia foi fundada em
aspectos figurativos da realidade, e fez com que muitas experiências fotográficas de
pendor mais abstracto fossem postas à margem ou rotuladas apenas como
experimentais.
1
“Can an image exist that is not a medium? What would it look like?”
2
“Images of this kind explore the reality of the image using the means of the image. They are
photographs of photography. They do not render visible, they are visible, only-visible. They are not
media, they are objects.”
1
No seguimento destas afirmações, o que procuraremos afirmar nesta
dissertação é a importância da fotografia efectuada sem câmara ou lente, como forma
de contrapor não só o incessante fluxo de imagens digitais, como assegurando a
possibilidade da sobrevivência do medium enquanto processamento químico.
2
CAP. I - DA ARTE CONCRETA À FOTOGRAFIA
3
linguagem que nos engana, pois ela não existe senão no homem. Recuperando
Nietzche, na sua concepção de verdade:
Para Aristóteles, a existência real das coisas e dos objectos era indicada pelas
qualidades primárias e, se estas não existissem, era impossível existir o que quer que
fosse. Estamos, portanto, na ordem do tangível e do circunscrito. Nas suas palavras, a
característica fundamental destas qualidades primárias consistia no facto delas serem
permeáveis, isto é, de serem receptáculos de opostos, semelhantes a um íman que
tudo atrai. Mas nesta atracção, composta de diversas oposições e contradições a nível
do pensamento, o acto de discernir, era o que permitiria a criação de um movimento
dinâmico de interpenetração entre conceitos, que daí consubstanciassem a existência
do concreto.
Esta ideia de ciclo, de algo que parte de um ponto para voltar ao mesmo, é
sugerida por Hegel:
4
[...] o concreto é simples, e ao mesmo tempo diverso. Esta interna contradição, que é
precisamente o que provoca desenvolvimento, leva as diferenças à existência.
Mas, simultaneamente, a diferença é satisfeita no seu direito, que consiste em ser
reabsorvida, e portanto superada, uma vez que a sua verdade é só ser no uno
(Hegel,1952: 42).
[...] temos o Uno e um Outro, e ambos são o Uno no Outro junto de si mesmo e não
fora de si mesmo. Assim a ideia é, no seu conteúdo concreta em si; é concreta em si,
e então tem interesse em que o que é em si se torne por si (Hegel, 1952: 41).
5
1.2 - A Arte Concreta
Segundo Harold Osborne (1979: 167) o termo concreto surgiu no campo das
artes, primeiramente no Manifesto Realista de Gustav Courbet em 1861, onde a
palavra concreto remetia para uma arte baseada na veracidade, no realismo das coisas
existentes opondo-se à arte praticada nas academias, assente ainda em cânones
religiosos e históricos. Aqui o significado de concreto era realmente oposto ao que se
iria definir durante os anos trinta do século vinte, já que em oposição a uma arte
estritamente realista, o concreto seria definido como uma arte livre de qualquer
modelo ou referente exterior.
Fig. 1
Manifesto da Arte Concreta, Paris, 1930
Este grupo de autores, liderado por Doesbourg, procurava uma arte geométrica
racional, que partisse do universal para o particular que fosse totalmente formada e
criada pelo espírito antes da sua execução. Negligenciava o gesto ou o cunho
individual do artista e considerava um texto escrito à máquina mais claro e belo que
6
um escrito manualmente (1990: 74). Este elogio da máquina era transversal ao
conceito de universal que a ciência e a tecnologia afirmavam. Inspirados pela teoria
da relatividade de Einstein, pela 4ºdimensão e pelo positivismo matemático, as suas
composições eram compostas por objectos ou figuras simples representadas com
diferentes medidas e em tempos diferentes adoptando uma estratégia serial e
aritmética, numa alusão à verdade científica, à inexistência de um só espaço ilimitado.
Fig. 2
Theo Van Doesbourg, Arithmetic Composition, 1930
Afirmarem o seu género artístico com o termo concreto era uma maneira de se
distanciarem dos artistas surrealistas e nomeadamente do grupo abstraccionista Cercle
et Carré (movimento fundado um ano antes por Joachim Torres Garcia, em Paris),
que operava a partir da realidade de um modo redutivo, criando abstracções. Esta
distinção que os concretistas procuravam evidenciar era também um modo de se
insurgirem contra os críticos da altura, que não faziam a distinção entre o uso
semântico do termo abstracto e a produção abstracta não icónica, e por sinal concreta.
7
de todas as cores e que é sintomático da directriz científica adoptada pelos
concretistas: “Branco! Esta é cor espiritual dos nossos dias, atitude pura que orienta
todas as nossas acções. Nem cinza, nem branco marfim, mas branco puro.”4 (1990:
71)
Esta afirmação indicia o porquê de uma arte auto justificativa, pois era na
ciência que os concretistas encontravam respostas para a explicação dos fenómenos, e
usavam-na para legitimar empiricamente as suas obras. Negligenciando qualquer
significado para lá daquele em que a própria obra se inscrevia, as obras concretas
distanciavam-se dos fundamentos teosóficos e neo-platónicos6 que influenciavam
grande parte da abstracção daquele período, inaugurando uma arte baseada na
psicologia da forma (Gestalt) e no materialismo filosófico.
4
“Blanc! Voilà la couleur spirituelle de nous jours, l’attitude bien nette qui dirige toutes nos actions.
Ni gris, ni blanc d’ivoire, mais blanc pur”.
5
“ Le tableu doit être entièrement construct avec dês éléments purement plastiques, c est-à-dire plans
et coulers. Un élément pictural n a pás d autre signification que “lui-même” en conséquence le tableau
n a pás d autre signification que “lui-même”.
6
A abstracção Neoplasticista preconizada por Piet Mondrian era influenciada pela teosofia defendida
por Helena Blavatsky.
7
Durante os anos trinta do séc.XX houve uma série de organizações internacionais de artistas
abstractos que se formaram em Paris: Cercle et Carré, Arte Concreta, Abstraction-Création, Unismo.
8
dialéctica arte e ciência, que proliferará pelos anos seguintes, em diferentes escolas,
nomeadamente em Ulm na Alemanha e em Chicago.
O que ligou estes autores foi, não só o seu interesse pedagógico pela luz
enquanto matéria pura e criativa, como a procura de uma partilha interdisciplinar
entre arte e ciência movida pelo progresso e pelas descobertas científicas e que, no
caso artístico, culminou no manifesto da Arte Concreta ou também designada arte de
síntese (Read: 1990), que se desenvolveu por diferentes latitudes geográficas,
manifestando-se pelo conceptualismo e pelo minimalismo dos anos setenta.
Em 1665, Issac Newton, num quarto escuro fez incidir a luz vinda do exterior
de uma janela através de um pequeno orifício sobre um prisma, dividindo a luz
9
branca, no espectro visível de sete cores.8 Num segundo momento, ocultou a luz de
cinco cores e fez atravessar por um segundo prisma uma só cor/luz, dividindo-a
novamente, analisando-a e chegando à conclusão que poderia decompor por exemplo
a cor vermelha em ínfimos tons monocromáticos de vermelho, consoante o maior
número de prismas que utilizasse para filtrar essa luz/cor.
Fig. 3
Issac Newton, desenho dos seus experimentos com prismas, retirado do seu caderno de anotações,
1666
8
Note-se que Newton forçou a existência de sete cores de maneira a corresponderem a uma pesquisa
que ele próprio procurava, de associar as cores a uma escala musical de sete notas, mas que
empiricamente são apenas seis, as cores fundamentais que compõem o espectro visível.
10
Fig. 4
Jules Antoine Lissajous, Annales de Chimie et de Physique, 1857
Fig. 5
Étienne Léopold Trouvelot, Electric effluvia on the surface and circumference of a coin, c.1888.
11
Fig. 6
Von Félix Auerbach, Physik in Graphischen Darstellungen, 1912
“Uma vez que a obra de arte tem que funcionar como todo concluso, que nela deve
ser reproduzida de maneira imediatamente sensível a concreticidade da realidade
objectiva, devem nela ser apresentadas todas aquelas determinações que, em seu
conjunto e em sua unidade, fazem objectivamente o concreto concreto”
(Lukács in Bense, 1975: 168).
12
paralelamente à história instituída. E neste território, por vezes a fronteira que separa
o concreto do abstracto em termos fotográficos não é óbvia, dado que muitas das
técnicas ou das estratégicas usadas pelos fotógrafos englobam por vezes, estes dois
conceitos. Jager esclarece:
A abstracção procede de uma forma redutora. Ela começa a partir de uma situação
complexa e vai deixando de fora cada vez mais elementos não essenciais, passando
para elementos essenciais, para o conhecimento "puro". A concreção procede de uma
forma indutiva. Ela começa a partir do "zero", com uma ideia ou um elemento, que é
ligado a outros por meio de regras, a fim de criar uma nova situação complexa ou um
novo sistema9 (Gottfried Jager, 2005:19).
9
“Abstraction proceeds in a reductive manner. It starts out from a complex situation and, by
increasingly leaving out non-essential elements, moves on towards essential elements, to “pure”
knowledge. Concretion proceeds in an inductive manner. It begins at “zero”, with an idea or an
element, which it links with others by rules, in order to create a new complex situation or a new
system”.
13
associações visíveis predeterminadas pelo real. E neste enquadramento poderemos
referir que existem então dois tipos de imagens abstractas: as que são produzidas ou
criadas, partindo de uma ideia, e por isso concretas, e as que mantêm uma relação de
mimetismo, através da captação óptica do infimamente pequeno ou grande da
realidade, e neste caso, aqui, tudo se resume a uma escolha de lentes. Nesta dicotomia
entre produção e reprodução Moholy-Nagy10 sugere:
10
“Dado que la producción – criación productiva – ante todo está al servicio de la constituición
humana, debemos intentar que los aparatos – medios – que hasta hoy solo han sido empleados con
fines de reproducción se apliquen también con fines productivos”.
14
do revelador, bem como alterar o tempo necessário em cada um deles, numa lógica de
interpenetração química, processual e de acaso.
Fig. 7
Pierre Cordier, Photo-chemigram 28/9/78 II, 17x 11 cm
11
“With machines, the machine is the constant and man is the variable: the machine is surrounded by
men which may be substituted one for another. With apparatus there is an intricate co-relation of
functions: the apparatus does what man wants it to do, but man can only want the apparatus to do what
it can do”.
15
Heinrich Heidersberger desenvolveu em 1955 imagens nas quais apenas usava
luz sobre o suporte fotográfico, os luminogramas. Auxiliado por dispositivos
construídos propositadamente e em constante aperfeiçoamento, criou a série
Rhythmogramme. Eram imagens produzidas através de um jogo de pêndulos e
espelhos que documentavam o movimento da luz no seu percurso dinâmico
submetido a diferentes oscilações e reflexos. O uso criativo do dispositivo é
indissociável das imagens de Heidersberger, a redução do processo produtivo
tradicional, possibilitado pela experimentação, é característica essencial das imagens
concretas.
Fig. 8
Heinrich Heidersberger, Triennale, da série Rhythmogramm, 1956
Fig. 9
Heinrich Heidersberger, Rythmographen, Wolfsburg, 1961
16
Pierre Schaeffer, numa entrevista (1972) em que explica a sua música concreta,
faz referência ao conceito grego de acousmatics, usado por Pitágoras, que consistia no
estudo dos sons e dos ruídos dos quais se desconhecesse a fonte ou origem. Pitágoras
usava este conceito enquanto estratégia na leccionação das aulas, com o objectivo dos
seus alunos nunca o verem, centrando a atenção nas suas palavras. Schaeffer usa este
exemplo em relação ao som, para explicar que a visão provoca a distracção do
espectador no acto de ouvir um som ou assistir a um concerto, já que a visão fazia
com que o espectador se centrasse mais no virtuosismo técnico de um músico do que
propriamente no som que ele tocava.
Pegando neste exemplo e no seu interesse pela natureza dos sons puros, tal
como eles nos chegam, sem notações ou convenções musicais, na fotografia concreta
poderemos relacionar o conceito de acousmatics com a produção de imagens que
prescindem da sua captação óptica, (cameraless), prescindindo do auxílio de lentes e
do consequente compromisso com a realidade enquanto referente. Este compromisso
não quer dizer que se esteja afastado da realidade, muito pelo contrário, é no centro
dela, que as imagens sem óptica se inserem.
Estamos tão condicionados pela sintaxe da câmara que não nos damos conta de que
funcionamos apenas com metade do alfabeto...(...) Todas essas imagens foram
produzidas basicamente de igual forma, com uma lente e uma câmara. O que quero
dizer é que existem muitas, muitas outras maneiras de produzir uma imagem
fotográfica e imagino que muitas delas estão todavia por explorar 12 (Fuss in Vicente,
2004: p. 40).
12
“Estamos tan condicionados por la sintaxis de la cámara que no nos damos cuenta de que
funcionamos sólo com mitad del alfabeto... [...] Todas esas imágenes han sido producidas básicamente
de igual forma, con una lente y una cámara. Lo que quiero decir es que existem muchas, muchas otras
maneras de producir una imagen fotográfica y me imagino que muchas de ellas están todavia por
explorar".
17
num determinado espaço e tempo captados pelo fotógrafo para o interior de uma
câmara. Ao permitir a ideia de reflexo da realidade enquanto matriz e a sua
consequente reprodução massiva sobre diferentes suportes, o dispositivo óptico
contaminou os discursos em torno da fotografia sobre a forma de padrões semióticos
de interpretação, baseados em signos, símbolos e índices que a cultura se apressou a
legitimar.
Tal facto fez com que as imagens produzidas sem óptica ou câmara se situassem
durante muito tempo fora de uma prática textual e discursiva, pondo em causa a
validade destas serem ou não serem fotografia, como nos alerta Peter P. Blank (1990).
Quando a fotografia é usada sem câmara, como fotograma, como escrita de luz (...) são
suficientes para criar uma linguagem lumínica - desprovida de significado objectual - capaz de
suscitar uma experiência óptica imediata13 ( Nagy, 1993: 134).
13
“Cuando la fotografia se emplea sin cámara, como fotograma, como escritura de luz (...) son
suficientes para la creación de un lenguaje lumínico – desprovisto de significación objectual- capaz de
suscitar una experiencia óptica inmediata”.
18
Neste sentido, as imagens produzidas sem câmara ou lente têm uma grande
componente experimental porque ao porem em causa normas pré-estabelecidas
inventando novas possibilidades fora do alcance das fotografias que se baseiam em
dispositivos ópticos, instauram um novo modo de produção de imagens. Elas não
existem a priori, têm que ser criadas, e o que pode potenciar o encadear de uma pura
linguagem fotográfica é a luz, trabalhada a partir de bases experimentais próximas do
método científico. Como sugere Umberto Eco: “[...] o método experimental reside no
facto de, no momento em que se pergunta o que é um fenómeno, o cientista decidiu
deixar de acreditar em tudo o que até aí sabia sobre ele, e recomeçar tudo do princípio
[...]” (Eco, 2000: 229).
Nesta lógica de procurar conhecer as leis da física que operavam sobre a luz,
Sónia Landy Sheridan (1990), docente na Escola de Chicago em meados dos anos
setenta, num dos seus exercícios como docente, propunha aos alunos que escolhessem
um objecto e que desenhassem, ou melhor, contornassem a sombra que o circuito do
sol imprimia ao longo do dia sobre esse objecto. Eram desenhos contínuos realizados
de 15 em 15 minutos e que de uma forma simples e pedagógica tentava despertar o
interesse dos seus alunos para a importância da luz e do seu ciclo físico.
Fig.10
Sonia Landy Sheridan, Tracing the Shadows of Time, caneta e tinta, 81/2 x 11 in, 1977
19
designou por impressões por luminância directa, que correspondiam ao conjunto de
fotografias efectuadas directamente ao sol e às estrelas, em que o objecto impresso
correspondia à própria fonte de irradiação de energia e não a um reflexo da mesma.
Fig. 11
August Strindberg, Celestographs, 1894.
20
procedimentos, isto é, os dados contidos num programa eram passíveis de ser
alterados pela intuição e pela vontade expressa do autor, que aliás permitia manter
uma certa característica do trabalho manual e do livre arbítrio humano.
Generative Systems foi um programa académico que surgiu pela mão de Sónia
Landy Sheridan em 1970 no Art Institute of Chicago, a 2ª Bauhaus. O curso tinha
como objectivo unir artistas, cientistas e técnicos de empresas de fabricação de
máquinas tecnológicas em torno de uma nova abordagem de produção artística que
respondesse às mudanças tecnológicas e comunicacionais que se verificavam no seio
da sociedade. O aparecimento de várias máquinas electrónicas de processamento e
cópia expandia a produção de imagens e consequentemente a sua transmissão e
divulgação; eram as modernas máquinas fotocopiadoras Xerox ou os primeiros
computadores, que permitiram uma nova releitura sobre as disciplinas da fotografia,
gravura entre outras, e no impacto que a tecnologia teria no seu desenvolvimento
futuro.
Os novos apparatus estavam ao serviço dos alunos mas estes não se deveriam
ficar pelo que era novo, sendo encorajados a redescobrir os antigos processos, era
suposto que cada aluno fosse capaz de construir as suas máquinas ou ferramentas de
trabalho conforme o projecto ou o objectivo a que se propunham. Muitos deles
procuravam máquinas obsoletas, de modo a transformá-las numa nova máquina apta a
ter novas funcionalidades, até mesmo com funções diferentes daquelas para as quais
tinham sido produzidas. Arte, ciência e tecnologia era um triângulo de
experimentação e de descoberta de sistemas, que pode ser descrito como os
primórdios da Arte Multimédia enquanto área científica, como Sónia Landy Sheridan
(1990: 179) defendia: “Processo e produto são dois componentes de um sistema – o
processo criativo”15. Investigar fontes de energia, desde as mais elementares, como os
14
“Ian: "What do you have?”, Sonia: "A systems." Ian: "What kind of systems?" Sonia: "Well, we
generate ideas and images." Ian: "Then you are a 'Generative Systems'".
15
“Process and product are two components of one system-the creative process”.
21
ciclos naturais até às mais complexas, apoiadas pela tecnologia, é demonstrado pelo
seguinte diagrama que expressa a interactividade da natureza e as suas possibilidades
enquanto Generative Systems:
Fig. 12
Sonia Landy Sheridan, Generative Systems, Art Institute of Chicago, 1979
22
Fig. 13
Gottfried Jager, Pinhole Structures, 1986
23
CAP. II - O CONTACTO
Quando dois pedaços de madeira seca foram parar pela primeira vez às mãos de um
selvagem, mercê de que indicação da experiência poderia ele imaginar que eles iriam
inflamar-se por meio de uma fricção rápida e prolongada? (Schlegel in Bachelard,
1989: 29).
O domínio do fogo por parte do homem primitivo bem como o acto sexual na
perpetuação da espécie ressoam como imagens arquétipo de um contacto primordial.
Característica que proporcionou a humanização e nos distinguiu das outras espécies.
A conquista do fogo desde muito cedo envolveu uma série de ritos e manifestações
arcaicas a ele associados, como forma de celebrar uma divindade inatingível mas
natural. Nenhum outro elemento teve tanto destaque na evolução humana, “ é a ideia
da vida que, projectada no Cosmos, o “sexualiza” ” (Eliade, 1987: 29).
Substituamos o domínio do fogo pelo domínio da luz, a fotografia.
24
A fotografia representa a junção de três sistemas, um de natureza óptica que
permite a formação da imagem, outro de natureza química que permite a sua
impressão e consequente fixação e, por último, a dimensão física que faz da luz a sua
essência primordial.
Na fotografia, o fotograma surge como o acto fotográfico que suprime o uso
da câmara, cameraless, extingue tudo o que se relacione com o uso de lentes, com a
óptica em si, reflectindo um descompromisso com a evolução histórica vinda da
camera obscura, no dispositivo de resgate de imagens externas através de um orifício,
mas que constrói a sua base de sustentação na prática laboratorial química, no facto
dos sais de prata serem sensíveis à luz e, consequentemente, poderem ser fixados,
perpetuando a longevidade de uma imagem.
Indiciador de toda uma génese fotográfica por permitir fixar uma imagem
permanentemente, a versatilidade plástica e química do fotograma permite a
experimentação, o atentar contra o medium, possibilitando criar imagens não
alcançáveis se limitado apenas pelo sistema óptico. Por isso designamo-lo como o
acto fotográfico que mais perto está do real, isto é, proporciona a prova directa, mas
também o que mais tende para a abstracção, para lá da realidade discernível.
Sendo uma tradução literal de sombras e luz, entre um referente e uma
superfície fotossensível, o fotograma vive das sombras que o efectivam como
imagem, assim como a nossa própria sombra também nos personaliza. É a escala de
um para um, é o corpo e o seu duplo. Floris Neusüss nas suas séries de fotogramas de
grande formato, explora a relação da escala humana directamente sobre o suporte
fotossensível. Muitas vezes as suas imagens são invertidas, as sombras aparecem a
negro sobre um fundo claro devido ao autor usar papel auto-reversível, que permite
produzir imagens directamente em positivo.
25
Fig. 14
Floris Neusüss, S/título, gelatina e prata sobre papel, fotograma, Kassel, 1967.
26
Fig. 15
Wilhelm Rontgen, The bones of a hand with a ring on one finger, viewed through x-ray, 1895.
Um índice é um signo que remete ao objecto que ele denota, pois é realmente
afectado por esse objecto. [...] Na medida em que o índice é afectado pelo objecto,
tem necessariamente alguma qualidade em comum com o objecto, e é em relação às
qualidades que pode ter em comum com o objecto, que ele remete a esse objecto
(Peirce in Schaeffer, 1996: 51).
27
Man Ray num fragmento da peça fílmica Retour à la raison de 1923, usou o
processo de inscrição de fotogramas directamente sobre a película, dispensando o uso
da câmara de filmar ou da canónica divisão de frames. Trabalhou directamente a
matéria, manualmente, criando um efeito de paralaxe híbrido entre a estaticidade dos
objectos impressos e o seu consequente movimento quando projectado. O
distanciamento entre o espectador e a obra encurta-se, na medida em que é um
original bruto apresentado de forma directa. “Atirei alfinetes e tachas ao acaso; em
seguida, acendi a luz branca por um segundo ou dois, como fizera para os meus
Rayogramas16” (Ray in Elcott, 2008: 8).
Fig. 16
Man Ray, Retour à la raison, fotograma sobre película, 1923.
16
“I threw pins and thumbtacks at random; then turned on the white light for a second or two, as I had
done for my still Rayographs".
17
“the molding of death masks, for example, which likewise involves a certain automatic process. One
might consider photography,in this sense as a molding, the taking of an impression, by the
manipulation of light”.
28
presença verdadeira do defunto, por contacto directo, e não como manifestação
simbólica ou fictícia da sua presença. “A imago assegura uma presença do defunto na
Terra após o seu funeral, presença verdadeira que nada tem a ver com a presença-
ausência de imagens que apenas seriam semelhantes” (Dupont in Maia, 2009: 37).
Com o devir da fotografia, e com o consequente mecanismo de reprodução, a
relação de causalidade directa passaria a ser de um para múltiplos. Mas o que
interessa ressaltar aqui, mais do que com a fotografia, é a sua similitude ao fotograma.
A Fotografia tem algo a ver com a ressurreição: não se poderá dizer dela o que
diziam os Bizantinos da imagem de Cristo de que está impregnado o Sudário
de Turim, ou seja, que ela não é feita pela mão do homem, acheiropoetós?
(Barthes, 2009: 93).
Fig. 17
Sudário de Turim, in Catedral de S. João Baptista, Torino, Itália, 430x110cm, c. 30 DC.
29
Existem inúmeros estudos18 e especulações em torno da imagem do Sudário
de Turim, alguns deles demonstrando que a imagem não é originalmente captada a
partir do corpo de Cristo, mas uma segunda cópia, derivada de um possível original.
Para além de ser uma relíquia do mundo sagrado ocidental, esta imagem
apresenta simultaneamente características de um ícone, pois é reveladora da presença
do corpo de Cristo sobre um pano de linho, constituindo uma prova da sua existência,
diferindo no entanto das tradicionais relíquias dos santos, que geralmente são
representados por um conjunto de ossos, símbolos da sua passagem terrena; a matéria
dá lugar à representação de uma marca impressa, aproximando-se de um valor de
ícone. A função dos ícones, no facto de estes serem produzidos para serem colocados
na iconóstase, no ponto médio sagrado das igrejas ortodoxas do mundo oriental,
mediando o processo de comunicação entre o mundo sensorial e o mundo espiritual
(Caprettini:1973: 34), é enfatizado pela característica de os ícones serem
originalmente acheiropoietos, ou seja, produzidos sem o auxílio de mãos humanas.
18
Sobre este assunto ver: Meacham et al (1983) The Authentication of the Turin Shroud: An Issue in
Archaeological Epistemology.
30
Fig. 18
Mandylion de Edessa, in Capela privada do Papa, Vaticano, Itália, s/d.
Numa outra lenda (Sobral, 1986: 10), aquando da sua caminhada final até à
cruz, Jesus terá sido abordado por uma mulher, Verónica, que por compaixão, terá
secado o rosto de Jesus com um pano, e nesse pano terá ficado a marca da sua face,
posteriormente conhecido como “o véu de Verónica”.
Este conjunto de imagens acheiropoietos, ao serem únicas, e produzidas por
elas mesmas, descendem directamente da divindade em si. Margaret Kenna19 elucida-
nos sobre a sua função:
Esta criação sem intervenção humana surgiu pela primeira vez nas primeiras
imagens fotográficas permanentes, a partir do momento em que Henry Fox Talbot em
Janeiro de 1834 demonstrou a arte dos seus “desenhos fotogénicos”. Estas imagens
iniciais da história da fotografia, surgidas em plena revolução positivista no campo
19
“Because the mandylion was believed to be the imprint of Christ's face, painted icons based on it or
on earlier icons of it have the validity of copies of an authentic original. As with Christ, so with the
saints-copies cannot stray far from the original without breaking the link with the prototype and thus
losing their authenticity. In other words, an icon is not just a picture, not simply a copy or a reminder of
an original. By representing that original in a particular way it maintains a connection with it, as a
translation does with the original text”.
31
das ciências, assentavam na impressão directa por contacto de espécies botânicas
sobre um papel fotossensível à luz. Johann Heinrich Schulze, físico alemão, já em
1727, havia demonstrado a fotossensibilidade do nitrato de prata que escurecia devido
à acção da luz ao invés do calor.
20
“For the first time, between the originating object and its reproduction there intervenes only the
instrumentality of a nonliving agent. For the first time an image of the world is formed auto-matically,
without the creative intervention of man”.
32
de marcas impressas de folhas naturais, que num primeiro momento não pretendiam
simbolizar ou significar algo estético ou artístico, mas sim inventariar ou catalogar
espécies vegetais.
Fig. 19
Henry Fox Talbot, Two delicate plant fronds, desenho fotogénico, 22.8 x 18.3 cm, 1839.
Inicialmente Talbot, nos seus diários, como sugere Pedro Miguel Frade,
designou estas imagens fotogénicas, de skiagráficas (1992:72) ou seja, de grafias
(escritas) de sombras. Já na antiguidade clássica, Platão em a República ressalvava
este aspecto:
33
Sir John Herschel, em 1842, patenteou a cianotipia, um processo fotográfico
por contacto, semelhante ao de Talbot, que resultava na impressão de imagens em
tons azuis Prússia, mais tarde designadas por blue prints. A cianotipia não
comportava sais de prata, pois a descoberta da fotossensibilidade de certos
componentes férreos à acção da luz, como o ferricianeto de potássio em conjunto com
o citrato de ferro de Amónio21, revelaram a Herschel a possibilidade de produzir
imagens sem câmara, em negativo, directamente expostas ao sol por contacto.
Herschel inicialmente interessou-se por copiar gravuras, numa dinâmica negativo -
positivo, mas rapidamente se apercebeu que havia uma perda de qualidade no
positivo, dada a espessura do papel que a luz tinha que atravessar.
Fig. 20
Sir John Herschel, The Honourable Mrs. Leicester Stanhope, Cianotípia, 1836.
21
A adição deste químico acelerava o processo, permitindo que as imagens não tivessem que ser
dispostas a longos tempos de exposição.
34
Fig. 21
Anna Atkins, Fucus Vesiculosus, Cianotípia, 26,4x20,6cm, 1843.
Fig. 22
Autor desconhecido, silhueta de William Groth, c. 1802-10.
35
[...]Também utilizando a terra, o oleiro Butades de Sícion foi o primeiro a descobrir a
arte de modelar retratos em argila; isto passou-se em Corinto devendo a sua invenção
à sua filha, que se tinha enamorado de um jovem (quae capta amore iuuenis); estando
este de partida para o estrangeiro, ela circunscreveu (circumscripsit) com uma linha a
sombra do seu rosto projectada na parede pela luz de uma lanterna (lucernam); o seu
pai aplicou argila sobre o esboço, fazendo um relevo que pôs a endurecer ao fogo
com o resto das suas cerâmicas, depois de o ter secado; esta obra, diz-se, foi
conservada no Nymphaeum até à época do saque de Corinto por Múmio.
Fig. 23
Dennis Oppenheim, Reading Position for Second Degree Burn, 1970.
36
imensidão nocturna. Dispondo o papel fotográfico directamente no fundo de rios ou
riachos capta a simplicidade da natureza de forma directa à luz nocturna,
demonstrando muitas das vezes particularidades que escapam à visão humana,
alterando a noção de paisagem sob a forma de provas únicas.
Fig. 24
Susan Derges, Starfield - Fountain, ilfochrome, prova única, 105 x 58cm, 2004.
37
CAP. III – O MAPEAMENTO DO SUBLIME
Fazendo-o girar, lhe conferiu a forma redonda, a forma esférica, na qual a distância
do centro a todos os pontos da periferia é sempre a mesma, a mais perfeita de todas
as formas e a mais semelhante a si mesma (Platão, 2003: 71).
38
O mapa geográfico ou político permitiu ao homem testar-se e alcançar limites
que até à data desconhecia. Para lá de representar colectivamente o conhecimento e a
visualização da totalidade do globo, o mapa permitiu instaurar um acontecimento no
sujeito, de ele próprio poder conhecer os seus limites e até mesmo quebrá-los; eis o
mapeamento do sublime.
Thomas Ruff (2011), num dos seus últimos projectos fotográficos, aborda esta
mesma questão. Procedeu à representação virtual de paisagens aéreas do planeta
Marte. Partindo de imagens de satélite captadas pelo projecto da NASA: Mars
39
Reconnaissance Orbiter, Ruff tentou criar uma visão utópica de como seria no futuro
o campo visual dos passageiros ou tripulantes de um avião que sobrevoasse a
superfície de Marte.
Fig. 25
Thomas Ruff, ma.r.s.10, c-print, Diasec, 256 x 186 cm, 2010.
Esta tradução de uma imagem vertical para uma oblíqua operada por Ruff,
representa uma inversão relativamente à génese da cartografia enquanto disciplina da
geografia, pois desde o primeiro mapa conhecido22 até ao surgimento da fotografia
aérea em pleno séc. XX, o desenvolvimento de mapas pautou-se pela procura de uma
verticalidade que eliminasse ao máximo a visão oblíqua, permitindo a planificação
total da esfera terrestre, que só em meados do séc. XIX, com a introdução de isolinhas
(linhas que unem pontos com a mesma altura), potenciaram o mapa como imagem
representativa da objectividade e do rigor científico que faltou em séculos anteriores.
22
A primeira representação conhecida de um mapa data do séc. VI AC, do Império Babilónico; nele o
mundo é representado sob a forma de um círculo esculpido em pedra. Antes de pertencer ao domínio
da geografia, o mapa nasce da arte, com especial importância para a linha, na demarcação do território
terrestre face ao mar (Cartwright, Gartner & Lehn, 2009: 156).
40
Até esta data, muitos mapas23 eram uma utopia veiculando apenas visões artísticas de
cariz simbólico.
Não serão estas imagens utópicas e semelhantes às cartas náuticas dos antigos
marinheiros, daqueles que enfrentavam um oceano desconhecido à procura de um
lugar algures?
23
A adopção de princípios de representação rigorosa herdadas da Antiguidade Grega, nomeadamente a
partir da difusão do livro Geografia de Ptolomeu, permitiu eliminar gradualmente o ponto de vista
oblíquo da representação da Terra (herdado do período medieval) substituindo-o por uma imagem que
se aproximasse de uma visão vertical, planificada, através de um conjunto de referências e unidades
métricas como a latitude e a longitude, e que fez da grelha, uma importante estrutura paralelamente à
perspectiva. Geografia de Ptolomeu não continha dados correctos relativamente à circunferência da
Terra, o que fez com que, muitos seguidores durante a idade Média e mesmo no Renascimento
representassem mapas de um modo incorrecto (Cartwright, Gartner & Lehn, 2009: 159).
24
“[...] a symbol of the political aspirations and demands of the bourgeoisie on the Continent”.
41
viagens e de mudanças, expressas por exemplo, pela conquista do Novo Mundo, a
América.
Fig. 26
Odilon Redon, L'oeil, comme un ballon bizarre se dirige vers l'Infini, litografia, 1882
25
Na Grécia antiga, Eratóstenes de Alexandria determinou a circunferência da Terra usando unidades
astronómicas. Os seus cálculos são muito similares às medidas actuais do Globo (Cartwright, Gartner
& Lehn, 2009: 159).
42
representável que é expresso pela ideia de sublime. Como sugeriu Kant em a Crítica
da Faculdade do Juízo:
o que se deve denominar-se sublime não é o objecto, mas sim a disposição do espírito
através de uma certa representação que ocupa a faculdade de juízo reflexiva. (...)
somente pelo facto de poder também pensá-lo prova uma faculdade do ânimo que
ultrapassa todo o padrão de medida dos sentidos (1992: 145).
Fig. 27
Heinrich Keller, Mapa panorâmico da vista do cume do Monte Rigi, Suíça, gravura colorida, 95x19cm,
1820.
43
Sonhamos com viagens através do cosmos; mas não é o cosmos em nós? Nós não
sabemos as profundezas da nossa alma. O trajecto secreto leva para o interior.
Eternidade com os seus mundos de passado e futuro, existe tanto em nós mesmos ou
não26 (Novalis in Hartley, 1994: 140).
Fig. 28
Marco Breuer, S/título (Fuse), papel tonificado, gelatina e prata, 46 x 36 cm, 1996
26
“We dream of journeys throught the cosmos; but is the cosmos not in us? We do not know the
depths of our soul. The secret path leads inwards. Eternity, with its worlds of past and future, exists
either within ourselves or not at all”.
27
Termo usado por Harold Rosenberg (1952) para descrever estas pinturas, disponível em The
American Action Painters.
44
para a exaltação, para a preocupação com a o nosso relacionamento com as emoções
absolutas28”. As grandes telas dos expressionistas abstractos eram receptáculos de
pulsões, diálogos entre o ser individual, o pintor, e as efemérides do mundo,
produzindo um espaço na pintura como um acontecimento performativo dominado
pelo gesto e a matéria. Esta forma de diálogo é também operada por Breuer na
produção das suas imagens fotográficas.
Fig. 29
Mark Rothko, No. 10,. Óleo s/tela, 229.2 x 146.4 cm, 1950
28
“We are reasserting man's natural desire for the exalted, for a concern with our relationship to the
absolute emotions”.
45
porque são trabalhos que fazem do uso da luz, da sua essência. Tillmans é um
fotógrafo instável, as suas diversas séries percorrem diferentes estilos nunca se
fixando em categorias pré-estabelecidas. Em Lighter, o autor recolhe-se também ele
ao espaço físico do laboratório fotográfico trabalhando directamente sobre a luz e a
cor na fotografia. As suas imagens invadem-nos através de manchas de cor brilhantes
criadas por acidente ou acaso usando apenas luz e processamento químico. A
particularidade desta série reside no facto do autor proceder a um conjunto de dobras
e vincos directamente sobre o papel fotográfico, expandindo a dimensão plana da
imagem para um território próximo da escultura ou do objecto. Ao efectuar estes
actos há uma presença efectiva do autor que é revelada sob a superfície, lembrando os
gestos de Lucio Fontana com objectos cortantes sobre tela, no seu Concetto spaziale.
Fig. 30 Fig. 31
Wolfgang Tillmans, Lighter III, 2006 Lucio Fontana, Concetto Spaziale, Attese, 1963/63
A Pintura Derradeira deveria ser uma pintura em que já nada haveria de não -
essencial, nada de discricionário ou arbitrário, já nada teria de exterior, sensitivo ou
material. Essa Pintura Derradeira seria uma pintura pura, que na sua essência – ou
arquétipo, ideia – seria idêntica a toda e qualquer pintura; seria simultaneamente
todas as pinturas e nenhuma pintura, [...]
46
As obras de Breuer e a série de Tillmans congregam na totalidade o que faz
com que uma fotografia seja fotografia29 e não outro medium. São mapas de luz que
na evolução do termo sublime poderão coincidir com a descrição do termo
sublimação na química - a transformação de um estado sólido para o gasoso sem
passar pelo líquido.
29
Convidamos o leitor a consultar as afirmações proferidas nos capítulos anteriores sobre o concreto e
o contacto.
30
“I'm always aware that is a miracle, a photo-chemical miracle. To me it seems like gift to have this
technology at my disposal. [...] I won't lose that feeling [...]”.
47
sublime é então “sobre a relação entre desordem e ordem e da interrupção de
coordenadas estáveis de tempo e espaço31” (Morley, 2010:12).
Indo ao encontro desta síntese proferida por Morley sobre o sublime, Mel
Bochner desenvolveu uma série de trabalhos nos quais convoca mapas e
simultaneamente questiona o conceito de parergon de Derrida. Bochner opera por
fases: começa por fotografar uma grelha quadrangular com coordenadas iguais de
ambos os lados a partir de um ponto de vista elevado, oblíquo a 45º em relação ao
plano. O resultado é uma grelha representada em perspectiva onde as linhas
concorrem para um ponto de fuga imaginário. Na fase seguinte, o autor separa a
matéria da imagem do seu suporte, isto é, a gelatina contendo os sais de prata, do
papel, descartando o suporte e o parergon que a limita a priori, nomeando-as por fim
como silhuetas. Depois de seca, a imagem irregular, sem suporte, é refotografada e
apresentada em contexto expositivo na forma planificada.
Fig. 32
Mel Bochner, Surface Dis/Tension, 1968
31 “[...] about
the relationship between desorder and order, and the disruption of the stable coordinates
of time and space”.
48
Se a grelha é um emblema do Modernismo, como Rosalind Krauss propôs - formal,
abstracto, repetitivo, plano, ordenando, literal - um símbolo da preocupação
Modernista com forma e estilo, então talvez o mapa deva servir como um emblema
preliminar do Pós-Modernismo. Indicando territórios para além da superfície da obra
e de superfícies exteriores à arte32 ( Levin in Watson: 2009: 296).
32
“If the grid is an emblem of Modernism, as Rosalind Krauss has proposed – formal, abstract,
repetitive, flattening, ordering, literal – a symbol of the Modernist preocupation with form and style,
then perhaps the map should serve as a preliminary emblem of Postmodernism. Indicating territories
beyond the surface of the artwork and surfaces outside of art”.
49
CAP. IV - MAPA PARA UM LUGAR ALGURES
Mapa para um lugar algures é uma série de trabalhos que privilegiou o uso do
papel fotográfico, em ambiente fotoquímico, como gerador da própria obra.
Apresenta-se, portanto, simultaneamente como matéria e suporte, e na nossa
demonstração será simbolizado pelo elemento terra, a mater, e que, por ser uma obra
que nasce e convive a partir de uma relação material com o suporte, podemos também
caracterizar como objectual.
50
mantermos uma ligação com as folhas de papel fotográfico que contêm prata, um
metal precioso, há não só uma consciência de sobrevivência da especificidade do
medium, no que ele tem de mais vernacular, como só faz sentido que assim fosse,
dada a natureza específica dos trabalhos apresentados e propostos, como também a
manutenção de um certo sentido de aura, no que ela tem de único e de irrepetível.
Lidamos por isso com matérias preciosas (metais), em que tem que haver uma
disciplina e uma proximidade no seu trato, são entidades vivas, epidérmicas, que
apenas vivem sob ambiente controlado, e neste caso o laboratório fotoquímico não se
afasta muito da dinâmica existente num laboratório científico.
Esta cisão perante o mundo digital das imagens binárias, bem como perante os
métodos de produção artística contemporânea, assente também eles na mobilidade
permanente de produtores artísticos e obras, que dispensam a existência de um atelier
fixo, ocorre sobre a forma de uma perspectiva crítica, tentando romper com o
totalitarismo e com a normalização que o advento do digital3334imprimiu, e que tornou
a relação com a materialidade fotográfica algo distante e asséptica. Como sugere
Regis Durand:
As imagens numéricas dão a sensação de não terem nenhuma relação com as coisas,
já que parecem delas possuir um número infinito e arbitrário. Com todas as operações
e transferências tornam-se tecnicamente possíveis, parecem anular-se, em suspensão
num vazio. A imagem numérica não tem limite nem qualquer razão orgânica. É
potencialmente monstruosa, paroxistica. É literalmente, sem limite (Durand in Séren,
2002: 30).
33
Sobre esta problemática, da sobrevivência do medium fotoquímico face ao digital, destacamos o
catálogo da exposição Film de Tacita Dean na Tate Modern em Londres, que aborda esta questão de
uma maneira universal, tendo convidado um vasto leque de autores das diversas áreas artísticas a
contribuírem com uma série de textos que abordassem este mesmo tema. Numa das intervenções o
fotógrafo Mitch Epstein declara: “O meu maior medo é que, como um meio descartado e
marginalizado corporativamente, o analógico não será mais essencial para a educação visual. Muitos
jovens não saberão a diferença entre a mão e um botão, eles só vão conhecer o botão, e o seu uso da
tecnologia será limitado pela sua ignorância do trabalho manual. Eles não vão perceber as qualidades
da fotografia óptica porque os seus olhos só vão conhecer imagem digital”33 ( Epstein in Cullinam,
2011: 67).
34
“My greatest fear is that as a discarded médium and corporate outcast, analogue will no longer be
essential to visual education. Many young people will not know the difference between hand and
button, they will only know the button; and their use of technology will constricted by their ignorance
of handwork. They will not perceive the qualities of optical photography because their eyes will only
know digital imagery”.
51
I II III IV
V VI VII VIII
IX X XI XII
Fig. 33
Mapa para um lugar algures [ série de 16 imagens], gelatina e prata sobre papel baritado, fotogramas,
provas únicas, 50x60 cm, 2011
52
1.2 - Descrição da série
O uso deste formato, pela sua escala e dimensão, evidencia uma relação de
compromisso indirecto para com o género do retrato, mas aqui ao invés do plano da
imagem obedecer a uma lógica de retratar alguém, esse alguém é a própria fotografia
retratada, não havendo qualquer rosto a reconhecer, apenas um turbilhão de formas
entre sombra e luz que vão do branco ao negro perfazendo uma escala de cinzentos
total.
53
1.3 – Processo
54
A segunda fase, a filtração/separação, é a fase onde era importante eliminar o
mais possível os vestígios de água da superfície do papel, diminuindo o risco de
haver, numa fase final, pequenas gotas de água que inviabilizassem toda a operação.
Esta fase permitia posteriormente acelerar o processo de secagem. Depois de retirada
a folha da água, esta era escorrida com o auxílio de um rodo em movimentos
verticais, e as passagens necessárias para que visualmente não restassem quaisquer
resíduos de água.
Nas primeiras experiências, esta fase não era efectuada, só depois de errar e
verificar que havia sempre algumas gotas de água que não eram totalmente secas é
que me apercebi da necessidade de criar esta fase específica no processo de trabalho.
55
Na quinta e última etapa, a ressurreição, a folha depois de seca era ainda posta
à prova uma última vez, com um secador de cabelo, de forma a deter alguma
segurança na tentativa de secar todas as gotas de água que ainda se mantivessem e que
não tivessem sido secas no secador de papel de fibra. Posto isto, a folha de papel era
disposta na vertical diante o ampliador fotográfico, de maneira a que a fonte de luz,
vinda da vertical, se expusesse de forma rasante em relação ao plano do papel. O
ampliador era disposto à altura máxima e accionado para uma exposição à luz durante
três segundos, com o diafragma fechado a f 8, de modo a que, depois de processada
quimicamente, surgisse na folha uma escala rica de tons intermédios entre o branco e
o negro, e se assemelhasse a uma paisagem aérea, marcas de uma cartografia.
1.4 - Análise
Mapa para um lugar algures é uma obra que se tornou visível, isto é concreta,
na medida em que não descende de nenhum modelo, não representa uma redução
abstracta de algo visível, tornou-se ela mesma visível pela sua própria essência e
materialidade. Ao não descender de nenhuma matriz, mas de uma construção, tornada
objecto, ela não medeia nada, não é um medium mas um objecto em si, ele próprio.
O carácter objectual que percorre esta série, tem reminiscências minimalistas, até pelo
facto de as descrever como objectos para além de fotografias, como na importância
que o espaço adquire, no posicionamento físico do espectador face às obras.
56
A noção de objecto convoca para si aspectos pictóricos vindos da pintura e espaciais,
vindos da escultura, e encontramo-los unidos num todo, na argumentação de Donald
Judd no seu texto Specific Objects35 de 1966:
A utilização de três dimensões é uma alternativa óbvia. Se abre para qualquer coisa.
[...] É claramente um plano de uma ou duas polegadas na frente de outro plano, a
parede, e paralelo a ele. A relação entre os dois planos é específico, é uma forma.
Tudo [...] no plano da pintura deve ser disposto lateralmente (Judd, 1965: 181;182).
Não vemos onde foi, nem quando, apenas sabemos que um autor a executou.
Esta acção sobre a matéria personalizou-se, são as marcas do autor que se perpetuam
sobre o suporte, muito embora numa primeira leitura a pudéssemos interpretar como
um apagamento do próprio autor, pois não nos são dadas referências ou semelhanças
que nos guiem o olhar: somos jogados ao acaso e ao acidente de formas aleatórias que
35
“the use of three dimensions is an obvious alternative. It opens to anything [...] It is clearly a plane
one or two inches in front of another plane, the wall, and parallel to it. The relationship of the two
planes is specific; it is a form. Everything [...] in the plane of the painting must be arranged laterally".
57
se aproximam de vestígios fósseis de um acto performativo. E aqui, deixamos o
minimalismo da folha branca, tal como nos é dada, e entramos no conteúdo da
organicidade das formas, numa possível interpretação pós-minimalista.
Fig. 34
S/Título II da série Mapa para um lugar algures, gelatina e prata sobre papel baritado, fotograma,
prova única, 50x60 cm, 2011
36
“Peggy Phelan defines a “performance” as a unique and spontaneous event in the present tense that
cannot be repeated or adequately captured on film or vídeo.[...] “Performativity”, in contrast, signals an
awareness of the way the present gesture is always an iteration or repetition of preceding acts”.
58
Esta relação directa do uso do movimento do corpo para com o suporte,
percorreu a maior parte das obras do expressionismo abstracto, em que a marca do
individualismo do autor, a sua pulsação e o seu ritmo próprio para com as
efemeridades do mundo era transportada para a tela, numa atitude romântica latente.
Também podemos percepcionar este facto neste conjunto de obras sobre papel
fotográfico.
Fig. 35
S/Título VIII da série Mapa para um lugar algures, gelatina e prata sobre papel baritado, fotograma,
prova única, 50x60 cm, 2011
Neste sentido, ao usar apenas a luz como definidora de todo o trabalho, numa
fronteira ténue entre o fotograma e o luminograma, assume-se o conceito de concreto
na sua totalidade, até pelo facto de prescindir do uso da câmara para a criação das
imagens. Elas funcionam como provas de uma acção do autor sobre a matéria, ao
invés da fotografia tradicional, no seu compromisso clássico, de ser uma cópia
fidedigna da realidade, de algo que lhe é externo e que é resgatado para o perpetuar.
59
Todos os elementos da série se apresentam sob a forma de negativos, são provas
únicas que mantêm uma relação directa com a acção efectivada sobre o suporte. Ao
serem únicas, estas imagens aproximam-se da pintura, do desenho ou da escultura:
não é a câmara que reproduz uma imagem, mas o autor que a produz.
Fig. 36
S/Título XVI da série Mapa para um lugar algures, gelatina e prata sobre papel baritado, fotograma,
prova única, 50x60 cm, 2011
60
Afirmamos que o ícone é subliminar, porque é nas entrelinhas que ele se
manifesta e se apresenta, até pelo próprio facto de usarmos folhas da papel fotográfico
tradicionais que contêm em si prata e que fazem parte da história do medium
fotográfico. Há uma recordação arqueológica que é revivificada, tomada como
presente para a contemporaneidade fotográfica.
61
Fig. 37
S/Título VI da série Mapa para um lugar algures, gelatina e prata sobre papel baritado, fotograma,
prova única, 50x60 cm, 2011
62
CONCLUSÃO
63
convocaram a fotografia e a Arte Concreta assim como a ciência, de forma a mostrar
a estreita relação entre elas, bem como as sinergias que daí advieram, tendo sempre
presente o domínio da luz sobre a matéria fotográfica. Lembremo-nos dos pêndulos
fotográficos de Heinrich Heidersberger, do estudo de Jules Antoine Lissajous sobre a
visualização do som ou os quimigramas de Pierre Cordier, a luz tomada de forma
directa sem intermediários.
64
que também exploram os conceitos anteriores de concreto e contacto, mas que aqui
procurámos pôr em relação com as temáticas vindas do expressionismo abstracto,
com a personalização directa da matéria, enquanto forma de transcendência, não só
dos autores como do próprio medium fotográfico. O conceito de mapa não só agrega
os conceitos discutidos anteriormente, como faz a analogia com a componente prática.
O resultado da série apresentada é não só um mapa no sentido de ser uma perspectiva
aérea, que faz do suporte a sua mater e o seu lugar fotográfico, como também, dado o
facto de ter sido produzida por contacto directo, pelas mãos do autor sobre a matéria e
o resultado ser apenas revelado pelo concreto da luz, permitindo-nos afirmar que a
componente prática foi ao encontro da investigação teórica que a susteve e que
procurámos responder ao longo desta dissertação.
65
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