Santo Amaro, BA
Diego Pizarro
(Instituto Federal de Brasília)
Resumo
Composição somático-performativa que nasceu das potências e transbordamentos criativos
resultantes do encontro poético entre os autores e deles com as obras Juanita, de Tica Lemos,
e Cristal, do Coletivo A-feto. A partir desta prática como pesquisa, pautada na proposta de
Ciane Fernandes e de Brad Haseman, configurou-se um campo expandido composto
principalmente pelo cruzamento entre práticas somáticas, improvisação em dança e
transcendência. Rosalind Krauss, Joseph Beuys e Kurt Lewin nos inspiraram nesta expansão
híbrida, estética, poética e energética rumo ao desconhecido em nós.
T a
a m o
n a o r
s l r l i
b e h g t
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Trabalho apresentando no GT 3 – Diálogos interdisciplinares: práticas artísticas expandidas.
22 a 24 de março de 2017 – CECULT/UFRB
Santo Amaro, BA
o c v a e r
r a a r m a
d o e n
a s s s
r (e)
Chuva, enxurrada, águas que levam, limpam, encontro, chá, dilúvios internos,
lágrimas, sangue, linfa, escorre, pulsa, jorra.... mistura, sedimento, realidade, sonho.
As reflexões apresentadas neste trabalho tiveram origem com um grande Dilúvio. Dois
rios caudalosos se encontraram, juntos transbordaram e fertilizaram um extenso território,
fluindo em água corrente (ora turva, ora cristalina), em um movimento de corrosão de suas
margens. O movimento é de devir constante, entre territorialização e desterritorialização,
entre fuga e captura. A chuva de água viva que encheu seus leitos começou nas explorações
realizadas no Laboratório de Performance e na disciplina Formas de Espetáculo, ambas
atividades do Doutorado em Artes Cênicas do PPGAC/UFBA.
Dilúvios são cataclismas em potencial e remetem a destruição, temporal, abundância,
acúmulo, infinidade, torrente, enxurrada. Enquanto seus opostos seriam a escassez, a
privação, a insuficiência. Os movimentos entre o excesso e a falta são campos de expansão e
de velocidade. Quando dois (ou mais) rios decidem se abraçar e, juntos, provocar Dilúvio(s)
intermitentes, estão aceitando diversos desafios, porque expandem territórios de diferentes
categorias (visíveis e invisíveis) e lidam com as potências criadoras do encontro. Dançar a
pesquisa e realizar uma performance nutrida do fértil movimento de preenchimento e
esvaziamento, de transbordamento e estiagem, de expansão e condensação é mais que desejo,
é posicionamento artístico e acadêmico. Nesse sentido, decidimos abrir espaço para as
potências do encontro de nossos interesses, experiências e desejos criativos. Pois compartilhar
é um ato de generosidade e é aí que reside também a dor. A dor de afetar e ser afetado, de se
lançar no desconhecido, entre o dar e o receber, para aceitar tramar juntos possíveis fluxos
processuais.
Inicialmente motivados pela abordagem somático-performativa e pela pesquisa
performativa, de Ciane Fernandes (2014) e Brad Haseman (2015), respectivamente,
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Para visualizar um registro em vídeo da performance/instalação Cristal, vide:
<https://www.youtube.com/watch?v=fXKKDApL-98>.
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Registro na íntegra de Juanita apresentando em praça pública:
<https://www.youtube.com/watch?v=X2CU4oPe6-Q>. Registro do espetáculo na íntegra durante temporada no
Galpão do Folias, São Paulo, em Junho de 2015: <https://www.youtube.com/watch?v=sJMb8TMGBl0>.
Documentário completo Juanita (2016): <https://www.youtube.com/watch?v=_saBgV9H5-4>.
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Antropólogo e escritor de mais de 10 livros sobre experiências com práticas mágicas dos índios mexicanos
Yaqui que o levaram a tornar-se um feiticeiro, também conhecido como xamã. Seus dados biográficos são
nebulosos, visto que um dos princípios desta tradição é justamente não divulgar dados sobre si e sua história. Ele
afirmara que nasceu no interior de São Paulo em 1935, porém há pesquisas que afirmam que nasceu em
Cajamarca, no Perú, nove anos antes. O que é irrefutável é a sua contribuição para o conhecimento desta cultura
ancestral que foi, como todas da América Latina, preteridas em prol das imposições colonizadoras.
(CORNEILLE, 2012).
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prática como pesquisa, mas sem propósitos acadêmicos, assim como a maioria dos processos
de pesquisa artística em sua vocação performativa.
Assim, despidos de quaisquer interesses em proceder com uma análise comparativa,
ou de reafirmar dicotomias que já não fazem mais sentido há tempos, compreendemos que
somática e improvisação não estão somente no contexto temático de nossa pesquisa, mas
também em seu âmbito metodológico. Se considerarmos as normas um tanto quanto rígidas
que envolvem historicamente a pesquisa acadêmica, seja artística ou não, podemos classificar
tal abordagem, então, como radical. É também radical apresentar uma performance que se
basta como resultado de uma pesquisa, procedimento defendido com veemência por Haseman
(2015). É no mínimo curioso pensar que, em termos de pesquisa acadêmica, a radicalidade se
instaura quando os modos de apresentação variam do papel plano para o espaço
tridimensional. Igualmente, a mesma ideia de radicalidade se instaura quando o resultado de
um processo artístico (que não a literatura) se dá exclusivamente em forma de texto escrito.
No campo da dança experimental, esta discutida com frequência por André Lepecki (2016), o
corpo do dançarino tende, inclusive, a sair de cena, a fim de dar voz a discursos específicos
sobre dança, performance e singularidade contemporâneas.
Em Cristal e em Juanita nos deparamos com a presença de modos de apresentação e
pesquisa que se complexificam na medida em que agrupam profissionais de diferentes áreas
de interesse e, também, quando expandem seus campos espaciais, energéticos, poéticos e
estéticos, contaminando-se de diferentes linguagens, disciplinas e suportes. Assim, para
continuar nosso diálogo dançado, cabe nos demorar um instante sobre a ideia de campo
expandido.
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O termo expanded field foi traduzido no Brasil como “campo ampliado”, dando título ao texto de Krauss, “A
Escultura no Campo Ampliado” (1984). Contudo, devido ao uso corrente nos meios especializados (campo
expandido, cena expandida, experiência expandida), utilizaremos aqui “campo expandido”.
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oriental, parece um convite para a transcendência. Apesar de sugerir este movimento, o autor
conclui que os tipos de exercícios realizados por alguns artistas da performance, como o
silêncio e outros tipos de privações estariam um pouco distantes do propósito de “uma
verdadeira transformação ontológica.” “Trata-se mais de produzir estados intensificados de
percepção a partir de dispositivos criados „experimentalmente‟, que podem proporcionar
momentos sutis de relação e comunicação.”
Acreditamos que é primeiramente na relação e no encontro que o campo se expande,
especialmente a partir das experimentações que surgem daí. Nas práticas meditativas e no
profundo conhecimento de si promovidos pelas práticas somáticas (que não se dá sem as
afetações em relação ao outro e ao ambiente), a noção de campo (especialmente energético e
por isso relacional) é fundamental. Kurt Lewin (1936), em sua teoria de campo, aponta
aspectos contundentes sobre este conceito. A partir do campo eletromagnético da física, e da
teoria da Gestalt, ele nomeia o campo comportamental humano como espaço vital ou espaço
vital psicológico. Este se configura como um conjunto de fatores que interagem entre si,
formando um campo de forças internas e externas ao sujeito que vão direcionar seu
comportamento num dado momento. Descrever essas forças e como elas se relacionam é
fundamental para a compreensão do ato humano, no nosso caso a criação artística. Todo
campo é único, diz respeito à trama de interações daquele comportamento, daquela
(inter)subjetividade, naquele momento. Quando escolhemos o conceito de campo expandido
para nossa composição, escolhemos entrar em contato com o nosso espaço vital e do nosso
encontro a fim de compreender o campo enquanto totalidade, com sua complexidade e
hibridismo que aí se instala. Do contrário, não seriam dilúvio(s) e sim gotas de chuva esparsas
e desconexas.
Assim, o esgarçamento e a expansão entre disciplinas artísticas nos conduzem a rever
o próprio conceito de arte para abarcar as heterogeneidades e hibridismos das “obras
expandidas”. O artista Joseph Beuys, por exemplo, nos convida a perceber que toda criação
humana pode ser olhada numa perspectiva artística. Ele rompe com as fronteiras da arte,
corrói suas margens e a faz brotar em cada e todo fazer criativo. Defende a arte como “ciência
da liberdade”, um veículo de diálogo, de encontro fértil, instigando a transformação e reflexão
sobre a relação do ser humano consigo e com o mundo. (BEUYS, 2012).
As práticas somáticas, ao serem apropriadas por projetos estéticos em dança,
promoveram uma expansão do campo artístico, especialmente da dança. Os dois projetos
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artísticos discutidos aqui neste texto inspiram a inclusão do transcendental como forma de
campo expandido. Ambos ativam qualidades de presença específicas, seja no xamanismo de
Castañeda (Juanita), ou na conectividade energética direcionada entre os performers (Juanita
e Cristal) e nos rituais de preparação para entrar em cena (Cristal).
Margens metodológicas
Brad Haseman (2015) afirma que a pesquisa performativa surge de uma necessidade
de criar uma metodologia sensível que possibilite aos pesquisadores guiados pela prática
(artística, mídia e design) um reconhecimento desta como área de produção de conhecimento.
Como o nosso corpo foi e é impactado por essas obras (Cristal e Juanita)? Quais
movimentos elas no convidam a fazer? A cada encontro dançante nós transbordávamos de
informações, referências e imagens. Após os dilúvios, seguíamos percebendo, dançando e
escrevendo as reverberações que sucediam e as sementes que eram lançadas. Assim, esta
pesquisa foi semeada, sempre precedida de uma meditação Theta Healing6. Assumimos
claramente uma postura quanto à sensação sobre a seguinte pergunta: “Vamos secar/fixar na
diferença ou vamos transbordar na singularidade do encontro?” E nesse movimento
encontramos a potência expandida entre a somática e a improvisação em dança.
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Meditação elaborada por Vianna Stibal (2016) que intenciona alcançar a frequência theta de ondas cerebrais, na
qual experimenta-se um estado de profundo relaxamento, acesso a memórias subconscientes e inspirações
criativas.
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“Coligados em águas perfumadas num grande mar branco de nuvens, sem saber ao
certo como fazer, mas na certeza de um encontro a ser criado coletivamente e compartilhado
em cena.” (FERNANDES et al, 2017, p. 1) Aqui é explicitada a imprevisibilidade do que vai
acontecer, apesar da temática comum, Cristal se estrutura na performance e improvisação de
cada artista pesquisador(a) conectado(a) com seus interesses de pesquisa e com o coletivo.
Para encontrar é preciso conectar, e nós fomos arrebatados pelas sincronicidades do
encontro que entrelaçaram dois colegas que nunca tinham trabalhado juntos, nossas pesquisas
e as obras que cada um escolheu sem saber a do outro. Essas conexões nos levaram para
lugares inusitados, entre a confiança e a abertura para a potência do encontro.
A conectividade aparece como um pilar de Cristal, vinculando o processo de criação
performativa, o processo somático e também no seu caráter auto-poiético (FERNANDES et
al., 2017). As autoras adotam este conceito conforme Maturana e Varela (1995) o definem,
como habilidade dos organismos vivos de se produzirem e se organizarem, pois guardam uma
autonomia, apesar de dependerem do meio para viverem. Esta habilidade aparece também em
um dos princípios fundantes da pesquisa somático-performativa: processos e estudos têm
constituição viva e integrada – soma. Fernandes (2015) argumenta que as artes cênicas, seu
ensino, suas pesquisas e estudos são, assim como o soma, processos vivos, dinâmicos e
pulsantes que se autorregulam. Perceber como a prática como pesquisa vai se configurando, a
sua coerência interna, é fundamental para reconhecer o desvelar de sua poética, posto que é
uma obra-pesquisa artística.
Experimentar esta forma de pesquisar em Dilúvio(s) como artistas-pesquisadores e em
Cristal como participantes-expectadores alargou o nosso olhar para a complexidade que se
instaura ao propor essa mudança de paradigma que não separa a teoria da prática e nem
coloca a teoria como mais importante. Dar conta essa complexidade significa sustentar que as
propostas teóricas, escritas ou apresentadas (como na performesa Cristal) de fato sejam
guiadas pela prática e que esta prática realmente ocupe o espaço-tempo central na pesquisa,
para não deslizar em incongruências poéticas e epistemológicas.
Cristal convida seus participantes-expectadores a, literalmente, entrarem na
performance -imersão e na performesa para saborearem, interferirem e colaborarem com a
obra a partir de dentro dela. Já no Dilúvio(s) o convite se inicia ao levá-los a estados de
transcendência através da meditação Theta Healing, convocando para uma experiência
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expandida no encontro com a obra. É um compartilhar entre sujeitos, sem hierarquias, nem
fronteiras fixas como nos ensina Rancière (2012).
Juanita, de Tica Lemos, é um projeto que claramente embaça barreiras entre vida e
arte, dança e literatura, realidade, ilusão e magia. No decorrer de sua longa pesquisa, ela
afirma que encontrou a possibilidade de forjar novas formas de fazer dança, em especial
movida pela literatura. Profundamente influenciada por práticas somáticas, Body-Mind
Centering® e Ideokinesis®, Aikido e improvisação como linguagem, Tica debruçou-se sobre
a obra de Castañeda. Ela afirma que “ele conseguiu traduzir o ponto de inflexão onde a
história se encontra com a magia”. Tica aponta que encontrou na obra de Castañeda “um
glossário abissal de movimentos corporais” (JUANITA, 2016). Nela, os personagens
principais são o grande xamã Don Juan (daí o nome da obra Juanita) e o próprio Castañeda.
teatralidade própria dos espaços. Outro exemplo, mais próximo geograficamente de nós, é o
projeto Poética de um Andarilho (2003/2004), da mineira Dudude Herrmann, em que ela se
propõe a dançar durante um ano em praça pública no que ela chamou de “prática de
sensibilidades no espaço de fora”7.
Quando Tica deseja colocar o corpo físico em outras possibilidades, é possível
vislumbrar em sua prática que uma das potências encontradas por ela nesse sentido é a
somática (sem desconsiderar suas intrínsecas relações com a sabedoria oriental). A anatomia
experiencial das práticas somáticas convida para a transcendência entre corpos. Não somente
entre corpos de diferentes pessoas, mas entre diferentes dimensões de corpos: corpo físico,
corpo mental, corpo espiritual, corpo energético. Assim como uma das desenhistas que
atuaram no projeto Juanita nos informa, “A energia e a troca humana são a matéria prima do
trabalho”. (JUANITA, 2016).
A poética do Dilúvio(s) se revela em diálogos de energias, de corpos, de imagens e de
olhares que dilatam o tempo e chovem em emoções. Ela nos trouxe a certeza de querer ir além
de nós mesmos em direção ao desconhecido, pois aí, na tempestade e depois dela, nos
(re)conhecemos com mais profundidade, multicores refratadas nos somas molhados. A
escultura social de Beuys enfatiza como modelamos as nossas criações e que esta plasticidade
ganha mais vida quando aquecida pelo calor interpessoal ou pela substância do amor.
(HARLAN, 2010).
Desaguando em devires
7
Vide: <http://www.dudude.com.br/>.
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de propor práticas artísticas e de pesquisa que expandam a experiência para além da dimensão
“recognitiva, utilitária e meramente funcional” (p. 71), pois a arte como dispositivo político
nos instiga a inventar – potencial humano de se transformar e diferir de si mesmo. Além
disso, as pesquisas artísticas na academia e fora dela parecem aos poucos começar a tecer
novos rumos, novos encontros, novas possibilidades, expandido-se.
Os dilúvios são cíclicos e tendem a retornar para que, a partir do caos e da destruição,
surjam novas configurações (im)possíveis.
Referências
ARLANDER, Annette. A Terra Fumegante. Art Researh Journal, Rio Grande do Norte, v.
3, n. 1, p. 142-157, jan./jun. 2016.
BEUYS, Joseph. Entrevista “What is art?”. In: HARLAN, Volker. What is art?
Conversation with Joseph Beuys. Forest Row: Clairview, 2004.
CORNEILLE, Andrés García. Carlos Castaneda: drogas, brujeria y poder personal. Buenos
Aires: Ediciones Lea, 2012. (Livro eletrônico)
DIÉGUEZ, Ileana. Um teatro sem teatro: a teatralidade como campo expandido. Sala Preta,
São Paulo, v. 14, n. 1, p. 125-9, 2014.
JUANITA. Concepção e direção do projeto: Tica Lemos. Direção vídeo: Catarina Assef e
Cecília Engels. Produção: Iramaia Gongora, Juliana Osmondes, Natália Reis e Gaia Ki.
Documentário, 42'52". São Paulo: Tica Lemos, 2016. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=_saBgV9H5-4>. Acesso em: 20 de janeiro de 2017.
KRAUSS, Rosalind. Sculpture in the expanded Field. October, vol. 8, spring, p. 30-44, 1979.
LEPECKI, André. Singularities: dance in the age of performance. New York: Routledge,
2016.
LEWIN, Kurt. Principles of Topological Psychology. New York: McGraw – Hill Book
Company, 1936.
MONTEIRO, Gabriela Lírio Gurgel Monteiro. A Cena Expandida: alguns pressupostos para o
teatro do século XXI. Art Researh Journal, Rio Grande do Norte, v. 3, n. 1, p. 37-49,
jan./jun. 2016.
QUILICI, Cassiano. O campo expandido: arte como ato filosófico. Sala Preta, São Paulo, v.
14, n. 2, p. 12-21, 2014.
RANCIÈRE, Jacques. O espectador emancipado. São Paulo: WMF; Martins Fontes, 2012.
STIBAL, Vianna. Theta Healing: uma das mais poderosas técnicas de cura energética do
mundo. São Paulo: Madras, 2016.