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Fund ação Gilberto Freyre Sebrae em Pernambuco


Presidente Presidente do Conselho Deliberativo
Sonia Maria Freyre Pimentel   Josias Silva de Albuquerque
Vice-Presidente Diretor Sup erinten den te
 Maria Cristina Suassuna de Mello Freyre  Murilo Roberto de Moraes Guerra
Sup erintenden te Geral Diretora Técnica
Gilberto Freyre Neto
Cecília Figueiredo Wanderley
Organizadora Diretor Administrativo Financeiro
Fátima Quintas Gilson Pereira Monteiro

Secretárias Sebrae n a Paraíba


Germana Kaercher  Presidente do Conselho Deliberativo
Eliane dos Santos Nóbrega   Antônio Gomes de Lima
Diretor Sup erinten den te
  Júlio Rafael Jardelino da Costa
Diretor Técnico
Marcas Pedro Aurélio Mendes Brito
FGF e 20 anos Diretor Administrativo Financeiro
 Luiz Alberto Gonçalves de Amorim
Sebrae em Alagoas
Presidente do Conselho Deliberativo
Wilton Malta de Almeida
Diretor Sup erinten den te
  Marcos Antônio da Rocha Vieira
Diretora Técnica
  Renata Fonseca de Gomes Pereira
Diretor Administrativo Financeiro
  José Roberval Cabral

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Revisão
 Norma Baracho

Projeto Gráfico
Gisela Abad 
Assistente d e diagramação
Waleshka Vieira

Foto da capa
Hu mberto Medeiros

QUINTAS, Fátima(Org.) . A civilização do açúcar.


Recife: Sebrae, Fundação Gilberto Freyre, 2007.
192 p. Il.

1. Açúcar - Brasil, Nordeste - História.


I. Título.

CDU 664.1 981(812/814)

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SUMÁRIO GERAL

Nota Introdu tória | 9


Apresen tação - A Civilização Açucareira | 13
Manuel Correia de Andrade
Cultura, Patrimôn io e Civilização | 21
Fátima Qu intas
Cana, Engen ho e Açúcar | 49
Fátima Qu intas

A Família Patriarcal
Fátima Qu intas - Personagens e Costumes | 69
Casa-Grand e, Capela e Senzala | 109
José Luiz Mota Menezes
Religiosidade - Fé, Festa & Cotidiano nas Terras do Açúcar | 125
Raul Lody
Açúcar no Tacho | 133
Maria Lectícia Monteiro Cavalcanti
A Memória Judaica no Mundo do Açúcar em Pernambuco | 145
Tânia Kaufman
A Moda como Representação Social | 159
Fátima Qu intas

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 À memória de Manuel Correia de Andrade,


geógrafo,
historiador,
ensaísta,
cujos estudos sobre
a terra, o homem e o Nordeste
constituem um marco
na interpretação da cultura brasileira.

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 A verdade é que no Brasil, ao contrário do que se


observa noutros países da América e da África de
recente colonização européia, a cultura primitiva –
tanto a ameríndia como a africana – não se vem
isolando em bolões duros, secos, indigestos,
inassimiláveis ao sistema social europeu.
Gilberto Freyre

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NOTA INTRODUTÓRIA

O presente livro
contextualização é resultado
do projeto de   uma
turístico Roteiroextensa pesquisa,
Integrado com do
da Civilização foco na
Açúcar 
– envolvendo os Estados da Paraíba, de Pernambuco, de Alagoas –, nascida
por solicitação do Sebrae, na tentativa de aprimorar “possíveis” conceitos ao
longo da sua implementação. Fazia-se essencial uma configuração da reali-
dad e p ara adequar os pressupostos teóricos à orientação dos ulteriores pro-
cedimentos. Duas razões demandavam tal iniciativa: a) a compreensão da
abordagem socioantropológica como estrutura de fundamentação do referido
projeto; b) a necessidade de acoplar maiores conhecimentos históricos e
conjunturais dos períodos colonial e pós-colonial, alicerces da nossa socieda-
de patriarcal.
Com este propósito foram realizados quatro grandes seminários sobre
temas relevantes: Cultura, Civilização, Patrimônio, Gastronomia, Religiosi-
dade, Moda e Presença Judaica em Pernambuco. Os textos ora publicados
refletem, portan to, a pesquisa e os d ebates emp reend idos. Houve a p reocu-
pação em atender a questionamentos enriquecedores, com o intuito de ela-
borar uma síntese fided igna das argu men tações proferidas.
Frise-se que o livro-coletivo não tem a preten são de esgotar o assunto.
Pelo contrário: o seu objetivo recai em conceitos que venham a subsidiar as
  políticas de turismo direcionadas ao   Roteiro Integrado da Civilização do Açúcar.
Na qu alidad e de  Documento-base guarda as suas limitações e carece natural-
mente de acréscimos e desdobramentos – início de uma longa trajetória –,
em razão dos postulados da Ciência Social que, pela sua própria natureza,
reivindica flexibilização e, sobretudo, incursões em tempos viventes e não-
viventes. A intersecção da História com a Antropologia – ou vice-versa –
exige densos aprofundamentos, o que vem a sugerir renovadas abordagens
em torno do complexo canavieiro do massapê nordestino.

Fátima Quintas

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A CIVILIZAÇÃO AÇUCAREIRA

Manuel Correia de Andrade


geógrafo, historiador e ensaísta

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Manu el Correia de And rade

1. Dos períodos em que se costumou dividir a história econômica brasileira –


pau-brasil, açúcar, gado, algodão, ouro, café, etc. –, o da cana-de-açúcar, inega-
velmente, é um dos mais importantes, por ter ocupado maior área territorial e
por haver se não
Na verdade, prolongado por cinco
é aprop riado séculos, ocada
se denominar maior
umperíodo de nossa de
desses períodos história.
ciclos,
de vez qu e eles não foram se sucedendo através de ép ocas determinad as, e sim,
com uma grande disponibilidade de espaço geográfico, se expandiram, con-
quistando novas áreas, à proporção que a demanda internacional estimulava
sua expansão. A denominação de ciclos, dada por Normano (1) para cada um
desses períodos, generalizou-se a tal ponto que, no caso da cana-de-açúcar, con-
sagrou-se no Nordeste, em face do uso da expressão, “ciclo da cana-de-açúcar,”
usada por José Lins do Rego, para denominar a coleção de livros que escreveu,

nos anos. Trinta e Quaren ta – Menino de engenho, Doidinho, Moleque Ricardo, Bangüê


e Usina
2. Na verdade, a cana-de-açúcar foi trazida para o Brasil, pelos coloniza-
dores portugueses, no início do século XVI; tendo a sua cultura se iniciado na
feitoria situada na costa de Itamaracá, já na segunda década da colonização,
pelo navegad or Cristóvão Jaques (2). Em seguida, com a política de povoamen-
to iniciada no governo de D. João III, numerosos donatários procuraram trazer
a gramínea das ilhas do Atlântico para cultivá-la no Brasil, dentre eles, Duarte
Coelho Pereira, de Pernambuco; Jorge d e Figueiredo Correia, de Ilhéus; Pero do
Campo Tourinho, de Porto Seguro; Vasco Coutinho, do Espírito Santo, e o p ró-
prio Martim Afonso de Souza, de São Vicente. As capitanias que se situavam
mais próximas de Portugal, em razão do menor custo do transporte, tiveram
produção mais expressiva nos primeiros tempos, segunda metade do século
XVI, como Pernam buco, então chamada de Nova Lusitânia, e a Bahia de Todos
os Santos, onde o governo português instalara o Primeiro Governo-Geral do
Brasil, em 1549. O açúcar produzido no Brasil ensejou a formação de empresas
artesanais de tran sformação da m atéria-prima e a implantação de gran des áreas
de plantios de cana, com o investimento d e capitais, em geral acum ulados por
  judeus na Europa Central. Daí admitir Celso Furtado que a “plantação”
canavieira, a  plantation dos ingleses teria sido o primeiro emp reend imen to capi-
talista em atividade agrícola (3).
Olinda, que nos fins do século XVI era a principal aglomeração urban a da
América, serviu de ponto de partida para o avanço dos canaviais: para o Sul até
Penedo, para o Norte até Goiana, então capitania de Itamaracá, e para as capita-
nias da Paraíba do Norte e d o Rio Grande. Já Salvador, que crescera como capital
de toda a Colônia, seria a responsável pelo desenvolvimento da cultura canavieira
no chamado Recôncavo Baiano, de ricos solos de massapé originários da de-
composição de rochas calcárias.

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Apresentação - A Civilização Açucareira

Assim, nessa faixa litorânea, que se esten de da foz do Potenji até a Bahia
de Todos os Santos, desenvolveu-se a chamada Civilização do Açúcar, estu-
dada em p rofun didade pelo mestre Gilberto Freyre, em livros magistrais como
Casa-grande
ecológicas do senzala (4)
& avanço e Sobrados
dessa cultura eseriam
mucambos (5), enquanto
analisadas as implicações
em  Nordeste (6).
A Civilização do Açúcar permitiu a formação de uma sociedade aristo-
crática, dominada por grandes e médios proprietários de terra, os sesmeiros,
que viviam em casas grand es, ricas e luxuosas, dispond o de uma imen sa quan-
tidade de serviçais, além de artífices especializados na fabricação do açúcar e d a
aguardente. Os serviçais, inicialmente indígenas nativos da América, foram em
seguida substituídos por escravos negros, trazidos da África. Os escravos for-
mavam d ois gru p os d istin tos, os que trabalhavam na agricultura, sujeitos à

submissão total,
gran de, gozan doedeosalguns
que eram destinados
favores aos Os
e regalias. serviços domésticos,
cronistas na casa-
coloniais que vive-
ram na área e conviveram com escravos e com senhores, dão um testemunho
de grande valor, dos hábitos e costum es da sociedade colonial e das tran sforma-
ções que ela foi sofrendo à proporção que o tempo passava; alguns cronistas
famosos como Antonil, fizeram uma análise profunda da sociedade da época.
Mas, se no século XVI, o açúcar de cana, usado como alimento, se
generalizara na Europa, o mesmo ocorreu no Brasil; por isso, à proporção
que o p ovoamento se expan dia através de áreas menos povoadas, sobretud o
no Sertão, expandia-se também a cultura da cana-de-açúcar, quer cultivada
em pequenas parcelas, quer, às vezes, pelos próprios agricultores livres –
pequ enos proprietários ou rend eiros – com a finalidade de p roduzir os tabletes
de açúcar, chamados em geral de “rap adura,” e a cachaça. Essas unidades de
prod ução eram os engenh os rapad ureiros que p erman eceram p rimitivos até
o século XX, movidos a tração animal, em geral bovinos. Enquanto isso, os
engen hos d o litoral evoluíram do engen ho movido a tração animal, os cha-
mad os engenh os de “bestas”, para os engen hos reais movidos a água, para
os engenhos a vap or, já n o século XIX, e, finalmen te, para as usinas de açúcar
de p equeno, médio e grande portes.
Os en genh os rapad ureiros tornaram-se famosos no Cariri cearense, na
Ibiapaba, no Brejo Paraibano, na serra d e Triunfo em Pernambuco e em áreas
úmidas dos sertões da Bahia, de Minas Gerais e de Goiás.
3. As grandes regiões açucareiras de Pernam buco e Alagoas, assim com o
da Bahia, no en tanto, vêm p erden do espaço e importân cia p ara outras regi-
ões açucareiras, como as situadas no Baixo Paraíba, Rio de Janeiro e, mais
recentemente, em terras situadas em Goiás, Mato Grosso, Mato Grosso do
Sul, Minas Gerais e São Paulo (7).
Nas áreas onde as condições climáticas, as técnicas de cultivo permiti-
rem e o mercado internacional estimular, os canaviais tendem a se estender,

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Manu el Correia de And rade

sobretud o em um país que d ispõe de grand e extensão de terras e de m ão-de-


obra barata e com gran de mobilidade.
4. A sociedade açucareira, porém, não apresenta grande mobilidade em
ascensão
diferençassocial,
sociaisasestão
várias classes estão
estruturadas combem
baseestruturadas e hierarquizadas
nas diferenças e as
raciais. Isto, ape-
sar de ter havido, desde o período colonial, uma grande miscigenação e de
haver no Brasil leis que incriminem o preconceito racial e, mais recentemente,
procurem favorecer a ascensão social de negros, mulatos e indígenas por meio
do acesso à educação. Mesmo assim, até hoje, no Brasil, só dois indígenas conse-
guiram obter títulos de doutorado em universidades federais.
No período Imperial, alguns negros e mulatos conseguiram ascender a
postos elevados no govern o e a desfrutar de prestígio na Corte, como Rebouças,

omarcada
barão depor
Cotegipe
ritos e ecostumes
o escritorimperiais,
Machadoapenas
de Assis. Também
Nilo na República,
Peçanha, ainda
que era mulato,
ascendeu à Presidência, embora muitos negros e mulatos tenham ocupado po-
sições de relevo e desfrutado de riquezas.
No en tanto a cultura brasileira é profun dam ente influen ciada pela cultu-
ra negra, sobretudo nos Estados onde a escravidão foi mais intensa, como na
Bahia, no Maranhão, em Pernambuco, no Rio de Janeiro, em Minas Gerais e em
São Paulo.
A influência do açúcar se fez sentir nos mais variados aspectos: na organi-
zação familiar, na arquitetura, na alimentação, na religião e na cultura.
Assim, em u ma sociedade latifundiária, monocultora e escravagista, como
salientou Gilberto Freyre, o proprietário de terras e de escravos tinha o domínio
absoluto sobre a família, tanto no sentido restrito, aquela formada por esposa e
descendentes, como no sentido amplo, reunindo também agregados e depen-
dentes. Poucas foram as matriarcas que resistiram às determinações dos mari-
dos e, após a morte destes, a dos filhos primogênitos, como D. Ana Paes, duran-
te o domínio holandês, no século XVII, ou D. Emerenciana da Costa Azevedo
do Engenho Barra, no século XIX. Ambas casaram três vezes.
A regra geral era o marido mandar e desmandar no seu clã, “casando e
batizand o”, mantend o a casa cheia de parentes pobres, de filhos, de n etos e de
agregados, vivendo muitas vezes uma vida dissoluta, emprenhando não só a
esposa como também comad res pobres e remediadas e escravas da senzala, so-
bretudo as novas e bonitas. Em geral consideravam-se brancos e nobres, embo-
ra, nos primeiros séculos, muitos tivessem sangue indígena – os descendentes
de Jerônimo de Albuquerque com a índia tabajara, que foi formalmente sua
primeira esposa – ou sangue negro, como um famoso capitão-mor de Bom
Jardim qu e espantou o cronista inglês Henry Koster ao en contrar u m mu lato
investido em um cargo tão importante (8).

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Apresentação - A Civilização Açucareira

Na realidad e, a nobreza brasileira n em sempre era branca e n obre, mas


em grande parte formada por judeus, os chamados cristãos-novos ou
marranos, por mouros com forte sangue árabe e por descendentes de outros
povos do Mediterrâneo,
Holanda, como os
oriundos da Europa Costa eCom
Central. os Cavalcanti,
um séculodedeorigem
Brasilitaliana, e os
e a fortuna
acumulada com a produção açucareira, formou-se uma casta, a chamada
“açucocracia” de que falava Tobias Barreto, representada por famílias tradicio-
nais, como os Cavalcanti – Rego Barros, os Albuquerque, os Wanderley, os Sou-
za Leão e os Carneiro da Cunha. Os Cavalcanti, por exemplo, tornaram-se im-
portantes a ponto de se afirmar que “quem viver em Pernambuco/ há de estar
desenganado/ ou há de ser Cavalcanti/ ou há de ser cavalgado”. Na Paraíba, em
pleno século XX, quando Epitácio Pessoa dominou a República, dizia-se que,

“quemOs não é Pessoanarram


cronistas é coisa”, ou atéemque
o fausto qu“quem não
e viviam os ésenhores
Coutinhodeé engenhos
coitado”. em
suas casas-grandes como a do Engenho Patrimônio no Recôncavo da Bahia, a
do Engenho Noruega na Mata Meridional pernambucana e a de Poço Compri-
do na Mata Setentrional deste mesmo Estado, além dos sobrados suntuosos que
construíram nas cidades, como o famoso “Sobrado Grande da Madalena” no
Recife (9), e numerosos outros constru ídos em cidades como João Pessoa (antiga
cidade da Paraíba), em Goiana, no Recife, em Maceió, em Penedo, em São Cris-
tóvão e nas cidades baianas de Salvador e Cachoeira.
Na organização familiar, apesar de dominar o casamento monogâmico, a
influência árabe era grande; a fidelidade conjugal não era respeitada pelo ho-
mem, podendo o chefe de família procriar em vários leitos a seu bel-prazer. Os
filhos mamelucos e mulatos eram numerosos, embora se procurasse impedir
que eles casassem com os filhos da linha chamada legítima; daí os casamentos
“arrumados” pelos pais para as filhas donzelas que deveriam casar virgens e
com pessoas escolhidas, geralmente primos. Com isso, impedia-se o casamento
com estranhos, preservando-se a fortuna e a cor da família. Essa preservação
tornava-se mais branda quand o o cand idato, embora mu lato, fosse rico ou tives-
se um título de doutor, formado em direito, medicina ou engenharia, como
ocorreu com Tobias Barreto e, certamente, com o barão de Cotegipe.
Na alimentação, a influência não européia foi muito grande, tanto com a
inclusão de alimentos indígenas, como a farinha de mandioca, ou “de pau”,
como com o uso de animais e de num erosas frutas da terra, a exemp lo do caju,
do sapoti, da goiaba, do araçá, etc., além de animais de caça – tatus, veados,
cotias, pacas, antas, etc. Também os alimentos produzidos com animais e plan-
tas da África, da Ásia e da O ceania, como as galinhas d’angola, os bodes, o sorgo,
chamado de “milho d’angola”, a manga, a jaca, a banana e o a fruta-pão se
 jun taram aos produtos europ eus, dand o à região açucareira um a culinária mu i-

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Manu el Correia de And rade

to rica e diferenciada. A culinária à base do milho e do feijão é típica de várias


regiões do Brasil, sobretud o do Nordeste (10).
Do ponto de vista religioso, não podemos deixar de salientar o grande
sincretismo queafricanos.
indígenas e dos existe entre o catolicismo
As pessoas, romano
sobretudo e as crenças
das classes religiosas
populares dos
e do meio
rural, temem entrar em uma mata, à noite, por causa da ação de seres que elas
temem que existam e que as persigam, como a caipora, o saci-pererê, o curupira,
tão divulgados na literatura infantil do grande Monteiro Lobato. As crenças
espíritas de origem africana na Bahia deram origem ao Candomblé e, em
Pernambuco, ao Xangô. Essas crenças dão origem a cultos que têm grande pe-
netração entre as pessoas humildes das capitais e de cidades do interior, mas que
são também respeitadas por pessoas ligadas às classes média e alta das grandes

cidad
os de es e que
Artur foram de
Ramos, fortemente divulgadas
Câmara Cascudo e deemValdemar
trabalhosValente
d e Antropologia, como
e nos romances
famosos de Jorge Amado, que nos mead os do século XX foi um dos romancistas
mais lidos do Brasil.
Assim, a Civilização Açucareira tem importância tanto econômica como
social na vida e cultura brasileiras; sobretudo na região nordestina, como têm a
do Ou ro e a do Café no Sud este do Brasil.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
(1) NORMANO, F.J. Evolução econômica do Brasil. São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1939.
(2) ANDRADE, Manoel Correia de. A terra e o homem no nordeste. 7. ed.. São Paulo: Cortez Editora,
2005.
(3) FURTADO, Celso. Formação econômica do Brasil. Rio d e Janeiro: Fun do de Cultura, 1959.
(4) FREYRE, Gilberto. Casa-Grande & Senzala. 5. ed. São Paulo: Global, 2003.
(5) ______. Sobrados e mucambos. 15. ed. São Paulo: Global, 2003.
(6) ______. Nordeste. 7. ed. São Paulo: Global, 2004.
(7) ANDRADE, Manoel Correia de. Modernização e pobreza. São Paulo: Editora Un esp, 1986.
(8) KOSTER, Henry. Viagens ao nordeste do Brasil. São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1942.
(9) GOMES, Geraldo. Engenho e arquitetura. Fundação Gilberto Freyre: Recife, 1997.
(10) CASCUDO, Luís da Câmara.  História da alimentação no Brasil. São Paulo: Global, 2003.

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CULTURA, PATRIMÔNIO

E CIVILIZAÇÃO
Fátima Quintas
antropóloga e ensaísta

 A lembrança é a matéria viva da cultura.


O esquecimento faz parte do desapego à tradição.
Fátima Quintas

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SUMÁRIO

Em torno d e um possível conceito de Cu ltura | 25


Quad ro sinótico d os Universais da Cu ltura | 28
O Potlach e o Kula: especificidades culturais da sociedade primitiva | 29
Origem da Cultura | 29

Em torno d e u m possível conceito d e Civilização | 30


A morfologia das Civilizações | 32

Patrimôn io: o sentimento d e pertença | 34


O fenômeno d a remotização | 35
Patrimônio material: a vida social das coisas | 35
Patrimônio n acional: um breve h istórico d e suas p olíticas | 38

Tradição e memória | 43

Região e regionalismo | 45

Bibliografia | 48

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Fátima Qu intas

EM TORNO DE UM POSSÍVEL
CONCEITO DE CULTURA
O termo cultura vem do latim cultura, ae, derivado d o verbo colligere, “lavou-
ra”, “cultivo dos campos”, “colheita”, ação ou maneira de cultivar a terra ou de
explorar produções naturais. Acrescente-se que é sinônimo de agricultura –
cultura agri, do latim ager , agri, camp o. Fun dar cultura era, pois, plantar u ma
determ inad a espécie ou selecionar o terreno para u m cultivo adequ ado. Por
conseguinte, a cultura representava o exercício da inteligência humana
direcionado ao tratamento dos plantios. A acepção primeira esteve ligada à
terra e à natureza, conforme o em prego ainda da semântica usu al: cultura d a
cana, cultura do algodão, cultura do café, etc. Depois, a idéia de colheita
assumiu dimensão mais ampla, agregando o sentido de conhecimentos adqui-
ridos. Mesmo n essa nova contextualização, percebe-se a fidelidade etimológica,
ao denotar u ma outra forma de colheita – a d o espólio social. Logo, a cultura
é a contribuição hu man a ao habitat ; aquilo que o h omem adicionou à natu re-
za. Em outras palavras: o modo de vida de um p ovo, a sua cosmovisão. Por sua
vez, a sociedad e é o agregado organ izado d e ind ivídu os que ad otam o mes-
mo modo de vida. Em resumo: um a sociedad e é comp osta de u m conjun to de
pessoas; o modo como se comportam essas pessoas é a cultura. A expressão,
“quanto mais distante da natureza, mais próximo da cultura”, destaca a in-
terferência do homem nas coisas da natureza, a pon to de distanciar a cultura
do seu núcleo-fonte.
Faço um parêntese: a palavra cultura relacionada à  pessoa erudita pro-
vém d o germanismo kultur . Na Alemanha, por volta de 1793, o termo rece-
beu a significação de aperfeiçoamento do espírito humano ou de um povo.
Ironicamen te, justo n a Aleman ha, o marechal nazista Hermann Goering pro -
nunciou a melancólica frase: “quando ouço a palavra cultura pego no revól-
ver ”. A divulgação d o vocábulo foi de início u ma arma p olítica d e aliciamento
intelectual – kultur kampf , luta pela cultura. A rádio oficial de Berlim, duran-
te a Segunda Guerra Mundial, sobretudo entre 1942–45, repetia insistente-
mente o slogan : “Alemanha! Defensora d a Cultura!”. A propaganda p opula-
rizou-se. Ainda assim, a sua decodificação vincula-se à idéia do indivíduo
que congrega um maior número de conhecimentos adquiridos, aquele que ar-
mazenou um inventário intelectual digno de ser realçado. Do que se conclui
que o “imaginário coletivo” incorpora razões nem sempre desconhecidas
pela próp ria razão.
Uma das melhores definições de cultura – até hoje aceita e referenda-
da p elos estud iosos – foi prop osta p or Edward Tylor, em 1871, no século XIX:
“Um conjunto complexo que inclui conhecimento, crença, arte, moral, lei,

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Cultura, Patrimônio e Civilização

costumes e quaisquer outras capacidades e hábitos adquiridos pelo homem


como m embro da sociedad e”. Ralph Linton (1893–1953) tam bém oferece um a
definição bastan te consistente: lato sensu , cultura significa a herança social e
total da H um
ça social. Emanidad e; strictocom
consonância sensua ,visão
significa determinada
de Linton, variante
cultura, como da
umheran-
todo,
comp õe-se de um grand e nú mero d e culturas, cada u ma caracterizand o um
certo grupo de indivíduos (cf. LINTON, Ralph. O homem, uma introdução à
antropologia. São Pau lo, 1943). As duas concepções citad as op õem -se distinti-
vamente: a de Tylor, descritiva, enum erativa, quase exaustiva n o seu esque-
ma seqüencial; a de Linton, mais generalista e, talvez, de melhor apreensão.
Há muitas outras definições de cultura – os antrop ólogos Alfred Kroeber
e Clyde Kluckhohn arrolam 164. Todas, entretanto, reconhecem alguns as-

pectos1.que lhe sãotoda


a cultura, comu ns:é aprendida. O ap rend izado correspon de ao traço
ela,
diferencial que a distingue da natureza, esta, a existir  per se, independente-
mente da vontade do homem. Ninguém nasce investido de cultura, mas há
um legado ancestral que é rep assado através da h istória de vida de cada u m.
Portanto, o ser cultural advém de u ma an cestralidade sociológica que Gilber-
to Freyre nom eia d e Sociologia genética;
2. as manifestações culturais são variáveis, mú ltiplas e diversificadas, o
que não implica em uma valoração de superioridade de uma cultura sobre
outra; sim de aprimoramento técnico de algum as. É de grande imp ortância
introduzir tal critério, de modo a evitar qualquer juízo de valor;
3. a cultura é ao mesmo tempo estável e mutável, operando em uma
dualidade que se assenta no dinamismo que lhe é próprio. A vibração dos
seus elemen tos faz parte do estímu lo d o gru po, inclinan do -se para m ais ou
para m enos, a depen der dos impu lsos do cotidiano. Ao lado d o dinam ismo,
há, todavia, um continuum estruturan te que evita o esgarçamen to do fio con-
dutor. O tecido social resiste a uma mutação dissolvente porque o pólo de
sustentação se defende das rupturas, embora não impeça o movimento de
mudança;
4. os processos culturais se desdobram em pensamentos, idéias, insti-
tuições e objetos materiais – a cultura material se relaciona d iretam ente com
o imaginário simbólico e cogn itivo. Embora a expressão “cultura m aterial” se
refira ao real/tangível, nela h abitam as circunvoluções do m undo simbólico e
fantasioso. Há, por efeito, uma cultura material e outra não-material. A cultu-
ra não-material responde sobretudo às dimensões de valor e subjetivação
comu nitárias. Mas nem um a n em outra coexistem isoladam ente;
5. a cultura revela-se como o instrumento por meio do qual o indiví-
duo se ajusta ao cenário local/total e ad quire meios de expressão criadora;

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Fátima Qu intas

6. a cultura contém o princípio da universalidade – onde há agrupamen-


to humano sua presença se instala. Na sua universalidade, prevalece uma
“adequação” ao tempo e ao espaço. As modulações são inúmeras:
especificidades
des enriqueceme as dessemelhan ças, semelhan
culturas, tornando-as ças e an
únicas, semalogias. As singularida-
minorar, contudo, a
perspectiva universal;
7. a cultura deriva de componentes biológicos, ambientais, psicológi-
cos e históricos;
8. a cultura é estruturada em blocos: a cultura d a arte, a cultura religio-
sa, a cultura da alimentação, etc. Importa entender essa fragmentação para
perceber a rede que se forma numa dada comunidade, tal qual uma tecela-
gem com novelos interconectados;

aagregam-se
esses “blocos culturais” Universais
os chamados que se disseminam
da Culturacom características
. Observam-se duaspeculiares
apreciá-
veis convergências nessa universalidade:
a. a universalidade, enquanto critério presencial, emerge em qualquer
aglomerad o hu man o – cond ição sine qua non de sobrevivência, presença real
e subjetiva;
b. a universalidade, enquanto crivo de manifestações particulares –
universal x particular –, arreban ha os desejos de cada gente. Por exemplo: o
nascer, o falar, o alimentar-se, o morar, o dormir... o morrer são inerentes ao
ser humano, porém, os rituais simbólicos que circundam tais fenômenos
modificam-se de um lugar para outro. E são únicos nas suas expressões de
cultura.

***

Tentarei adaptar  os enu nciados dos antrop ólogos Edward Tylor e Clark
Wissler em um quadro sinótico, a fim de obter resultados elucidativos quan-
to à universalidade da cultura, melhor dizendo, quanto aos tópicos culturais
aderentes a qualquer cultura, seja “primitiva” ou “civilizada”. Volto a
exemplificar: os ritos do nascimento sofrem variações de acordo com os
modelos culturais; há muitas línguas faladas entre países de fronteiras contí-
guas, às vezes, até mesmo dialetos dentro de um mesmo país; mora-se em
chalés, em casas com quintais, em sobrad os austeros, em ocas, em m ocambos
de palha; dorm e-se em red e, em cama, no chão; os ritos fun erários têm u m
largo espectro demonstrativo. Todo esse pluralismo de representação não
diminui o carisma da universalidade. Portanto, onde houver aglomerado
humano, hão de existir tais tópicos.

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Cultura, Patrimônio e Civilização

QUADRO SINÓTICO DOS UNIVERSAIS DA CULTURA

Os Universais da Cultura provêm de necessidades básicas que, por sua


vez, geram necessidades derivadas numa cadeia crescente e progressiva. As socie-
dad es “primitivas” possuem um a dinâm ica menos acelerada, o que provoca um
volum e menor d e necessidades derivadas, o mesmo n ão acontecendo nas soci-
edades contemporâneas ocidentais, estas infladas de estímulos exógenos e
capitalizantes de n ovas necessidades. A partir dos desejos satisfeitos, desenvol-
vem-se as chamadas necessidades psicoculturais, que vão além das categorias de-
rivadas, provocand o um forte ritmo d e desdobramentos e de incentivo às trans-
formações. Exemplifico: o abrigo é uma necessidade básica; a moradia já adicio-
na componentes a mais e, cumpridas essas etapas, a sociedade gera artifícios
prazerosos – rádio, televisão, luz indireta – que se sucedem numa aspiração
exceden te do h omem social. O mun do capitalista consagra um leque d e amplo
espectro na emulação das necessidades psicoculturais.

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Fátima Qu intas

O POTLACH  E O KULA
Especificidades culturais da sociedade “primitiva”

Com
manoso apresentam-se
intuito de clarificar o quanto as
diversificadas, singularidades
escolho culturaisclássicas
duas cerimônias dos grupos hu-
– bem
distantes da construção mental do “civilizado” – referentes a sinais de p restígio
entre os povos “selvagens”. O Potlach é um festival institucionalizado, no qual
ocorre a destruição de bens pelo fogo: cobertores, canoas, folhas de cobre são
queimados pelos chefes rivais. Um dos chefes inicia a destruição, demonstran-
do o máximo de desprezo pela quantidade de bens destruídos, e, dessa forma,
açulando o rival a proceder dentro dos mesmos parâmetros, até que um deles
não tenha mais nada a oferecer. O excesso de desprend imen to se converte num

gesto de poder
se porque – destruir
se pode o que secontra-senso
reconstruir, tem significaaberrante
opulênciapara
em odemasia.
mundo Destrói-
em que
vivemos. E a intensidade do prestígio é proporcional ao tamanho do “incên-
dio”. Tal costume é descrito detalhadamente por Franz Boas, considerado o pai
da Antropologia americana, com a finalidade de evidenciar a luta pelo status
entre os Kwakiutl, índios da costa noroeste dos Estados Unidos.
Bron islaw Malinowski, antrop ólogo polonês (1884–1942), apresen ta o Kula,
sistema de trocas cerimoniais intergrupais e interinsulares de braceletes por co-
lares, ritual periódico dos trobriandeses, índios do Sudoeste da Melanésia (Ilhas
Trobriand), com o igual propósito de lograr prestígio – quem obtiver mais bra-
celetes ou colares será distinguido em superioridade.
Os costumes descritos mostram-se aparentemente exóticos para nós, os
ditos “civilizados”. Podem parecer estranhos à primeira vista; no entanto, quali-
ficam tendências comuns ao homem, qual seja, a ambição pelo poder. Entre “primi-
tivos” e “civilizados” os mecanismos diferem, porém os objetivos se igualam.

ORIGEM DA CULTURA

Naturalmen te que n ão sei contar, repetind o Câmara Cascud o, como a primeira


cultura começou e nem tampouco quais os primeiros elementos que a compu-
seram. No en tanto, há ind ícios da imp ortância de algumas d escobertas: o fogo, o
uso dos metais, a roda para a História Social da Humanidade. Em razão desses
artefatos, outros foram se desenvolvendo no arcabouço daquilo que se chama
Cultura. No primeiro momento, objetos incipientes; hoje, sofisticados em
tecnologias.
Uma pergunta me instiga: Por que os primeiros homens escolheram a
atividad e da caça e da pesca como maneira de angariar alimen tos de substância
viva, imp licand o n o ato d a m orte de outro ser, para m anter a sua sobrevivên-
cia? A colheita de frutos p raticava-se de maneira embrionária e d ispersiva. A

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Cultura, Patrimônio e Civilização

agricultura, essa surgiu posteriormente e tem origem na prática da lavoura


doméstica, realizada pela mulher na cond ição de sedentária, logo de repassadora
dos valores da rotina. Assim, o nomadismo masculino – caça, pesca, guerra –
não facilitou a regulação
de contribuição cumulativadano
cultura; coube
arquivo à mulher,
cultural. portanto,
E pode-se a grande
eleger, de umaparcela
forma
absolutamente aleatória, que a cultura ordenada, repito, a cultura ordenada e não a
cultura per se, tem a sua consolidação no ato d a sistematização da agricultura – é
bom lembrar que cultura é sinônimo de agricultura (item 1). Vale igualmente
reprisar que o nomadismo não concorreu para a fixação da cultura, porque se
afastava dos fluxos regulares e ordenadores. A aventura se opõe à rotina, e dela,
a aventura, não se extraem preceitos disciplinadores de cultura. Convém alertar
que a sobrevivência, como ponto de partida, e a curiosidade racional e intuitiva

ensejaram, ao longo do te
Arqueologicamen tempo,
falandum sistema
o, as formascultural mais
h um anas complexo.
partem do esqueleto do
Pithecanthropus erectus – cujo crânio e um fêmu r foram encontrados por Eugène
Dubois, em 1891, em Java –, passando pelo Sinanthropus pekinensis – encontrado
em Chucutien, ao sudoeste de Pequim, em 1921 –, até o   Homem de Neandertal.
Esquema simplista e discutido: a ausência de descoberta de um esqueleto com-
pleto e a fragmentação de ossos – alguns, inclusive, calcinados –, deparados nas
escavações, provocam críticas e conclusões desencontradas. Faço questão de
pincelar aspectos físicos e culturais de um passado remoto para sublinhar a
complexa carpintaria da nossa construção biológico-cultural.
Como se chegar à aurora da História do Mundo? A indagação continua,
com algumas respostas pouco precisas.

EM TORNO DE UM POSSÍVEL
CONCEITO DE CIVILIZAÇÃO
Civilização vem do latim civis – cidadão, civilidade, civismo, civilização, cidade
– e diz respeito à cultura das cidades. Tal conceito, como todos os conceitos,
admite uma série de variações. Karl Marx lembra que a sede da civilização antiga
era a cidade, enquanto Aristóteles ao usar a expressão zoon politikon se referia ao
hom em habitante das cidades. O homem político correspond e ao que participa
da  Ágora, ou seja, do d ebate no espaço público. Na Grécia, o espaço público – a
 Ágora – configurava a  polis e era responsável pela construção da cidadania. As
idéias de cidadania floresceram em diversos períodos históricos – na Grécia e na
Roma antigas, nos burgos da Europa medieval, nas cidades do Renascimento.
Mas a cidadania moderna, embora influenciada por essas concepções antigas,
possui um caráter próprio. Primeiro, a cidadania  formal é hoje quase un iversal-
mente definida como a condição de membro de um Estado-Nação. Em segun-

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Fátima Qu intas

do lugar, tem se tornado cada vez mais significativa a cidadania substantiva, que subs-
creve a posse de um corpo de civis (leis), políticos e especialmente líderes sociais.
A civilização grega antiga foi controlada pela cidade, volta-se a falar na

pólo. de
 polis As atividades
cidades damercantil
Mesopotâmia, anteriores
e cultural – por àexemplo,
Grécia, jáchegavam
utilizavama aincluir
urbe como
cam-
pos e plantações de tâm aras que eram cultivadas por emp resários urbanos den-
tro dos muros da cidade. A situação seria revertida na Idade Média, quando a
sede da  propriedade fundiária coincidia com o locus do poder – o campo – e as
cidades existiam principalmente como mercado para a troca do excedente pro-
du zido pelos nobres em seus imen sos latifún dios.
A cidade ganhou força com a formação da burguesia, o burgos, embora
não se possa desprezar o caráter fundiário que a terra assumiu como poder

econômico
a distinguiraoentre
longo da História.
civilização comEsta proposição
base na cidade,levou o sociólogo
 política Max
no sentido Weber
literal da
palavra, pois fun damentada na  polis, e civilização econômica, no sentido literal
de oikos, ou família, fundamentada na economia de núcleos familiares amplos.
O Brasil se desenvolve por entre os contatos do homem econômico com o
homem político de Weber. Tal formatação induz ao modelo que Gilberto Freyre
caracterizou como  RURBANO , ou seja, uma sociedad e entrelaçada de costumes
e hábitos tanto rurais quanto urbanos.

  Nessa civilização regional predominantemente rural – e açucareira – já se fazia


notar uma complementação urbana, com Olinda e o Recife – o Recife como
 porto de mar, importantíssimo para a exportação do açúcar e para a importação
de valores europeus e africanos. (...) Se podem esses surtos de desenvolvimento
sociocultural brasileiro ser denominados civilizações é que não lhes faltaram
características urbanas de vivência e de convivência. Mas essas características,
sobre bases e sobre espaços principalmente rurais. De onde poderem ser consi-
derados exemplos de ajustamentos toscamente rurbanos. Ou antecipações de
toscos ajustamentos rurbanos (FREYRE, Gilberto. Rurbanização, que é?. Re-
cife: Ed. Massangana, 1982. p. 12).

Cumpre registrar que o conceito de civilização traz sempre a idéia de


Progresso, como uma aspiração evolutiva de princípio irreversível, “induzindo”
Oswald   Spengler  a apontar  A decadência do ocidente, em virtude do excesso de
tecnologias e de acentuadas materializações, em detrimento de uma cultura
mais espiritual e subjetiva.
Por ou tro lado, Freud, no seu livro O mal-estar da civilização, defend e a
tese de que a civilização resulta da repressão do desejo sexual de cada um,
isto é, da canalização da energia libidinal – então sublimada – para p rojetos
culturais.

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Cultura, Patrimônio e Civilização

Como se pode observar, o conceito de civilização sofre inúmeras


releituras, e está sujeito a grandes polêmicas, egressas da própria dificuldade
que todo conceito avoca a si mesmo.

A MORFOLOGIA DAS CIVILIZAÇÕES

Uma das principais características da cultura – conforme já foi assinalado – é a


sua estruturação em blocos, o que a pulveriza em núcleos de expressão. As partes,
todavia, não são autônomas; interconectadas em firmes ligamentos, bosquejam
a espinha dorsal da árvore germinadora. É preciso entender que o todo civilizador
é maior que a soma das partes culturais. Quando digo: cultura religiosa, cultura
da habitação ou cultura alimentar, remeto aos blocos culturais de um arranjo

macro. A dimensão
uma simples adição,civilizatória
sim de umengloba todos
cimento os segmentos,
unificador que lhemas não resulta
confere perfildee
singularidade. Em outras palavras: a civilização é maior que a soma de suas
partes porque constrói, na sua engenharia social, um jogo de xadrez bem encai-
xado, não obstante o diversificado volume das peças.
Todos os povos são parecidos e dessemelhantes, mesmo na coexistência
milenar. O espanhol é diferente do português; o alemão, do francês; o inglês, do
irlandês. E, no entanto, estão próximos geograficamente, sofrem influências entre
si e submetem-se a um a irradiação de costumes e hábitos em suas fronteiras. Por
mais que escoem as possibilidades de contato, vizinhança, miscigenação man-
têm distinções essenciais, intransponíveis, “insuscetíveis de exportação”. O co-
mum e o peculiar se aproximam e se afastam. Esse índice diferencial representa
a marca da individualidade do coletivo, o traço próprio de uma civilização. As
demarcações físicas não são apenas físicas; trazem uma paisagem psicológica
que as define enquanto rostos comunitários. A civilização não é transmissível.
Tentarei destrinchar melhor esse postulado.
O que se transmite é a cultura, ou melhor, os blocos culturais; propagam-se
através da divulgação, da migração, da difusão. Mas o rito de passagem, no
sentido literal da locução, não acontece den tro dos parâmetros de sua verdadei-
ra gênese. Com o deslocamento ocorre uma ressignificação dos elementos cul-
turais. O maracatu, o reisado, a capoeira terão nítidos ajustamentos se pratica-
dos por povos europ eus ou asiáticos. Qualquer imitação, da mais simples a mais
complexa, sofre o efeito da recriação. O mobiliário, a moda, os sistemas de lin-
guagem disseminam-se, comunicam-se de país a país, sem que neles se inclua a
civilização originária que os produziu. O espírito criador, que é a medula da
civilização, esse não vai além do contexto em que foi desenvolvido. Observa-se
um caráter inviolável no conceito de civilização. Há uma morfologia impregnada
que não se deixa macular por processos de d ifusão. “A cultura bizantina foi uma
das mais divulgadas e influenciadoras e a sua civilização a mais enquistada e

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Fátima Qu intas

hermética” (CASCUDO, Luís da Câmara. Civilização e cultura. São Paulo: Global


Editora, 2004. p. 46).
A essência da civilização é intransferível. Sua conservação no tempo
extrapola o imaginável.
perder os blocos Porfenece
culturais, vezes,ema meio
civilização entra
a novas em decadência,
composições, nunca,chega
contu-a
do, perd e a substância mater  da sua configuração. O tálamo persiste. As abstra-
ções de um ethos morto continuam a refluir no imaginário dos pósteros. Os
gregos modernos não são os gregos antigos, porém as emanações de uma civili-
zação que se excedeu em pen samento filosófico inscrevem a marca de um pas-
sado que tem cheiro de eternidade. E a Grécia contemp orânea vive da sua Anti-
guidade. Os gregos modernos carregam essa história civilizatória como lastro
estruturante. Recorro, mais uma vez, a Câmara Cascudo:

O Egito perdeu o idioma, a religião milenar, administração, dinamismo cultural


típico. Manteve superstições e métodos primários rurais. O clima mental é egíp-
cio em suas soluções psicológicas populares. Na mentalidade. Na literatura oral.
 Na defesa legítima do seu invisível e eterno patrimônio. Não é o egípcio turco,
árabe, romano, mas o egresso das trinta dinastias faraônicas o que sentimos
ainda (CASCUDO, Luís da Câmara. Idem, p. 47).

A continuidade morfológica da civilização atravessa o sentido material.


Os elementos invisíveis não acompanham a temporalidade. Petrificam-se em
subjetivações, transcende o apenas tangível, alongam-se em cronologias não
mensuráveis. A fisionomia de cada civilização possui morfologia própria. Tem
alma, nom e e matéria. Não se desfaz facilmente. Exorta o lacre da individualida-
de dentro de um inventário coletivo. Um artista, pianista ou pintor, recebe a
técnica para a execução de suas obras, mas o esplendor da execução é o que lhe
outorga o toque de genialidade: a intuição, a sensibilidade, a harmonia no lidar
com os elementos aprendidos.
A civilização se caracteriza por emissões psicológicas que desenham o es-
pírito nacional. As acepções de cultura dizem de conteúdo; a civilização, de
continente. Para o grande sociólogo Pitirim Sorokin, as civilizações podem desapa-
recer, mas elas expandem suas partículas como átomos que se libertam de um núcleo
catalisador para girar ao redor do imaginário coletivo. Os Maias, os Incas, os
Astecas – “civilizações mortas” – continuam a jorrar o caráter de seu ideário.
Gostaria de me deter na idéia de Spengler, quando anuncia a morte da
cultura em estado civilizatório. Com isso o au tor atribui a decadência ao mo-
men to em que a cultura se p ermite afogar nu ma realidad e sem essência, ou
seja, ao esgarçar-se em artefatos com pobreza simbólica. A Decadência do Oci-
dente de Spen gler atém-se à m elancolia de uma sociedade que se deixa engolfar
por traços indigentes em simbolismo. Sem a substância do espírito, sem a

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Cultura, Patrimônio e Civilização

alma d a cultura/civilização, sem o intangível do h umano, a sociedade galga-


ria o triste decesso criador.
Ao se adotar a legenda   A Civilização do Açúcar, recorre-se aos blocos

cando emconectad
culturais miúdos:osa em um determinad
Civilização o eixo
do Açúcar  é umpossibilitador d e irradiações
complexo social com base. Tro-
na
cana, mas seguramente expandido por todos os lados e por todos os ângulos –
uma civilização que se quis horizontal, gorda, barroca, ancha de adereços, a
extrapolar o mandala paradigmático da casa-grande, da senzala, do engenho
propriamente dito, da capela... A lavoura da cana gestou uma sociedade rica em
alinh amen tos entrelaçados e en roscados num a teia híbrida e plural. A planta –
da família das gramíneas – não se isolou em si, apesar de sua tirania
monopolizante; projetou toda a orquestração das rel ações sociais do passado

colonial e pós-colonial.
cultura do Pordaefeito,
açúcar. A segun na  Civilização
cabe  A primeira. A Açúcar  énão
doprimeira bemcabe
maior do que a
na segunda.
E a sua m orfologia aglutina fluências e confluências ún icas, a estampar um qua-
dro que fala de um contexto intran smissível na sua totalidad e.

PATRIMÔNIO
o sentimento de pertença
O que dá dignidade a uma pessoa é a segurança de pertencer a alguma genealogia
 – tanto biológica quanto cultural. O mundo está carregado de símbolos que
 fazem parte da nossa biografia individual e coletiva. O homem solto no univer-
so, sem história, sem tradição, sem origem cultural, é um homem desterrado
(Fátima Quintas).

O Patrimôn io representa um conjunto de bens materiais e imateriais que


compendiam a herança da humanidade. Nele reside um forte traço pessoal:
cada indivíduo recebe o seu legado num tempo e num espaço prescrito, sem
que essa pessoalidade venha a distorcer a índole ancestral e universal. O
Patrimônio reivindica o sentimento de pertença, ou seja, a dimensão de posse de
uma sucessão de realidades acasaladas ao contexto histórico. Sem essas marcas
impregnantes, a humanidade existiria no vácuo, desintegrada dos elos afetivos
e psicológicos. O real só se funda na memória e na idéia de  pertencimento. O
presente é conseqüência de uma memória transfigurada. Importante acentuar:
a única forma de se ter acesso à captação do presente advém da introspecção e
da busca das reminiscências pessoais. E o que mais  pertence ao ser humano se-
não a sua própria história? A lucidez do passado – tradição – legitima o senti-
mento de pertença, fortalecendo o espírito de identidade.

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Fátima Qu intas

Todo homem – hom em, no sentido de human idade – necessita aprofund ar


suas raízes para dilatar os laços de “propriedade” que lhe  pertencem . À medida
que a dominação de si mesmo acontece, isto é, que o legado se introjeta verda-
deiramente,
 pertence o calço
a nada nem apara a formação
ninguém levita da
porpersonalidade se fortifica.
entre uma existência Quem nãoe
desagregada
dissoluta. Do que se infere: o patrimônio é estruturante, porque a consciência do
sentimento de pertença garante a vértebra da identidade e do equilíbrio humano.
Em última instância: ter identidade é  pertencer  a um patrimônio inalienável – o
do espólio ancestral.

O FENÔMENO DA REMOTIZAÇÃO

O nascer biológico
promulga através demanda a ideologiaculturais
das circunstâncias da retrospecção.
que se A atitude remissiva
processam se
por entre
internalizações nem sempre conscientes. Quanto mais inconscientes as
intern alizações, maiores os efeitos de perm anência. Para tanto, a “cognição cul-
tural” – ato de conhecimento de costumes, hábitos, etc. – deve desprezar artifí-
cios de aprendizado e exaltar as naturais absorções. Todos os valores alheios à
nossa experiência pessoal trazem a conotação de efemeridade, porque a
internalização não se fez espontaneamente. A cognição, para ter autenticidade,
invoca, portanto, a legitimidade da remotização. O que não é nosso é alienígena,
isto é, está fora do tronco genético da cultura.
Ora, se a criança recebe temp os passados, presentes, futu ros, em mom en-
tos não fragmentados, a ela não lhe pode faltar a inserção de uma história já
construída – âncora da remotização. Digo em outras palavras: o sentido do que é
remoto oferece sustentação à biografia do homem como pilar inerente à narra-
tiva pessoal, que tem começo muito antes da d ata de n ascimen to. O qu e é remo-
to é anterior ao tempo social vivente, mas pertence ao tempo histórico de cada
um. Exemplificando: a remotização do brasileiro não é igual à remotização do
dinamarquês. Conseqüentemente, o   fenômeno da remotização valida o sentimen-
to de pertença. É, pois, a introjeção de um remoto não-vivente que chancela o
mérito dos símbolos viventes. Em última análise: a remotização consolida a or-
dem da  pertença.

PATRIMÔNIO MATERIAL
a vida social das coisas

A cultura material correspond e à forma aparen temente tangível de relação com


o mundo. Nenhum objeto tem somente um uso funcional, mas, sobretudo,
significação e representação para a época – história – e para o espaço – geogra-
fia. Não se deve pensar num artefato isoladamente; há que se entendê-lo no

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Cultura, Patrimônio e Civilização

simbolismo e n o subjetivismo qu e d ele se desprend em. O toucador n ão reve-


la apenas um móvel de mad eira, sucup ira ou am arelo vinh ático: nele rostos se
projetam, cabelos se penteiam, mãos se agitam na construção de uma imagem
feminina ou masculina.
da convivência A mod a,são
com o homem; o portar-se, o alimento
as relações sociaisnão
quecoexistem dissociados
dão pigmentação ao
subjetivismo das coisas. Os objetos oferecem um grande suporte à morfologia
das diferentes culturas. Spengler já dizia que a casa reflete a forma de ser de
quem a habita (cf. A decadência do ocidente. Rio de Janeiro: Zahar, 1964).
O vestuário designa um a das mais fortes expressões de cultura. O fraque,
o colete, os espartilhos, as saias longas e franzidas patenteiam “insígnias de pres-
tígio”, no qual o ócio se torna quase obrigatório. A cadeira de balanço e a rede
sugerem a imagem de lerdeza que a cultura patriarcal tanto preconizou. Uma

fotografia,
empertigar-se, supostamente corriqueira,
o toque do penteado, remete a no
a brilhantina ilações diversas:
cabelo, o olhar otriste
jeitoacu-
de
sam sensações transmitidas de um tempo que parece findo, mas não o é; os
vestígios vão seguindo um destino cultural, de gerações a gerações.
Gilberto Freyre foi o primeiro antropólogo brasileiro a d edicar um interes-
se especial à Sociologia das Coisas: a apalpar a cultura material como algo meta-
tangível; a sentir as “nuances sensoriais” de uma longa mesa de jacarandá; a
absorver os sentimentos que tran sitaram den tro da casa-grand e. E afirmou , sem
tergiversar: “A história social da casa-grande é a h istória íntima d e quase todo
brasileiro. [...] Nas casas-grandes foi até h oje ond e melhor se exprimiu o caráter
brasileiro” (FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala. Rio de Janeiro/São Paulo:
Editora Record, 2000. p. 56).
O ânimo proustiano de Freyre – Marcel Proust (1871–1922) foi um roman-
cista francês que facultou às coisas um valor sentimen tal – robustece o seu dese-
 jo de tocar nos objetos para deles extrair significados mais amplos. Não é sem
razão que n o seu livro Um engenheiro francês no Brasil, Gilberto inclui o diário de
Vauthier – engenheiro e arqu iteto qu e permaneceu n o Brasil entre 1840–1846 –
, assim como as suas cartas, datad as de 1840. Saliente-se que o d iário do francês
foi descoberto por Paulo Prado em alfarrabista parisiense e enviado como regalo
a Gilberto Freyre – tanto que o livro supracitado é oferecido à memória de Paulo
Prado. Os comentários do francês denotam uma acuidade extraordinária no
que se refere ao detalhismo da arquitetura urbana e d oméstica:

O que constitui uma cidade e lhe faz a beleza são as casas; portanto, nunca é 
demais aproximá-las. Tal é ainda hoje a teoria dos brasileiros de antiga linha-
gem, para os quais o alargamento das ruas parece uma aberração. É ainda a
influência dessa idéia que explica a ausência completa de vegetação no centro das
cidades intertropicais. A vegetação significa o campo, e as árvores não são julgadas
dignas de se mesclarem às obras do homem. [...] Na arquitetura doméstica, os

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Fátima Qu intas

costumes são o espírito que engendra, a alma que dá forma à matéria (FREYRE,
Gilberto. Um engenheiro francês no Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio,
1960. vol. II, p. 802, 814-815).

É o próprio Freyre que reconhece em Vhautier sua sensibilidade para


com a arquitetura do século XIX em Pernambuco:

Como deixar [...] de exprimir o meu espanto ao ver nas cartas de Vauthier, ainda
mais do que no seu diário, voltar-se o francês para as casas-grandes e os sobra-
dos de Pernambuco da primeira metade do século XIX, com o olhar de quem,
  fixando-se por mais tempo no problema, acabaria talvez descobrindo aí os prin-
cipais pontos de referência para o estudo da nossa história social (FREYRE,

Gilberto. A casa brasileira. Rio de Janeiro: Grifo Edições, 1971. p. 82).


A importância concedida por Freyre à cultura material é reverenciada por
vários escritores, entre eles o historiador inglês Peter Burke que realça, no seu extra-
ordinário artigo  A cultura material na obra de Gilberto
Freyre, a antevisão do escritor pernambucano. Ao mes-
mo tempo, Burke analisa as possíveis fontes que in-
fluenciaram esse olhar visionário, citando alguns es-
tudiosos que antecederam a Freyre: Franz Boas com
seu rigor etnográfico e espírito descritivo; Oswald
Spengler e os enunciados sobre a casa; Thorstein
Veblen, famoso sociólogo que se ateve com precisão
ao valor das coisas; Walter Peter (1839–1894), escritor inglês que buscava compreen-
der como as pessoas viviam, o que elas eram realmente, e como elas se mostravam,
este último também bastante enfatizado por Maria Lúcia Pallares-Burke no seu
livro Gilberto Freyre: Um vitoriano dos trópicos (São Paulo: Ed. Unesp, 2005).
A cultura material tem, sem dú vida, um lugar expon encial na H istória das
Mentalidades. É símbolo. É complexo social. É reflexo de um contexto gerado
pelo hom em em um período h istórico e em um a região distinta. Gilberto Freyre,
ao se inclinar para a narrativa íntima do brasileiro, não poderia esquecer os
artefatos que cercaram a vida dos antepassados, como afirma Peter Burke no
artigo acima citado: “Não seria possível uma história da vida cotidiana sem as
evidências da cultura material, assim como a história da cultura material seria
ininteligível se esta não fosse colocada no contexto da vida cotidiana” (BURKE,
Peter. “A cultura m aterial na obra de Gilberto Freyre”. In: FALCÃO, Joaquim;
ARAÚJO, Rosa Maria Barboza de. [Orgs.]. O imperador das idéias. Rio de Ja-
neiro: Fundação Roberto Marinho/Topbooks, 2001. p. 68).
As coisas possuem vida. Não são inertes na sua concretude. O que faz
delas, coisas, dotadas de alma e matéria, é a sua interação com o homem.

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Cultura, Patrimônio e Civilização

Cada móvel com um sigilo, com uma cumplicidade, com um afeto quase
externo e dizível. Um aparador do século XIX guarda silenciosamente histórias
de várias gerações. E como são d iscretos no seu gesto confessional!

matrizAindispensável
representaçãopara
do que é táctil
o acervo daultrapassa a simples
História. Basta materialidade
pensar física –
nas escarradeiras,
nas conversadeiras, no urinol, na cama de solteirão,
nas nam oradeiras, no hábito de deixar um pou co de
comida no prato como sinal de boa educação, nos
lustres dos salões, nas cortinas pesadas a esconder o
ambiente, nos severos leitos nupciais... para ideali-
zar-se os interiores das moradas dos séculos XVII,
XVIII e XIX. As fachadas das casas exprimem teste-

munhos
citação devaliosos.
Freyre: Esclareço o tema com mais uma

 Há casas cujas fachadas indicam todo o gênero de vida dos seus moradores. Os
mais íntimos pormenores, os gostos, os hábitos, as tendências. Mas não são
apenas as casas que falam e revelam a vida, o espírito e o gosto dos donos. Falam
também por sinais esses outros surdos-mudos que são os móveis (FREYRE,
Gilberto.  Artigos de jornal. Recife: Edições Mozart, [s.d.]. p. 82).

PATRIMÔNIO NACIONAL
um breve histórico de suas políticas

A primeira iniciativa brasileira relacionada à proteção de monumentos históri-


cos data de meados do século XVIII, precisamente de 5 de abril de 1742. (cf.
LEMOS, Carlos A. C. O que é patrimônio histórico. São Paulo: Brasiliense, 1981). O
nobre português, D. André de Melo e Castro, Conde de Galveias, Vice-Rei do
Estado do Brasil, entre 1735 e 1749, ao tomar conhecimento das intenções do
governad or de Pernambuco, Luís Pereira Freire de And rade, enviou um a carta
de protesto pelo projeto que tran sformaria o Palácio das Duas Torres, construído
pelo Conde de Nassau, em quartel de tropas locais. O teor da carta dem onstrava
ind ignação no trato com a obra holand esa, esta, merecedora d a integridad e que
honra as construções públicas de natureza estética e artística.
O segundo registro remete a um século depois, quando o ministro do
Império, Conselheiro Luiz Pereira de Couto Ferraz, mais tarde Visconde do
Bom Retiro, ordenou aos Presidentes das Províncias que guardassem as cole-
ções epigráficas, assim como cuidassem d a reparação dos mon um entos, de m odo
a não dilapidar as inscrições neles gravadas – a epigrafia é a parte da paleontologia
que estuda as inscrições, isto é, a escrita antiga em matéria resistente (pedra,
metal, argila, etc.), incluindo sua decifração, datação e interpretação.

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Fátima Qu intas

Três décadas depois, o chefe da Seção de Man uscritos da Biblioteca Nacio-


nal, Alfredo do Vale Cabral, percorreu as províncias da Bahia, Alagoas,
Pernambuco e Paraíba, recolhendo a epigrafia dos monumentos da região (cf.
Proteção e revitalização
da Educação e Cultura,doSecretaria
patrimôniod ocultural do Brasil:
Patrimôn um a trajetória
io Histórico  , Ministério
e Artístico Nacional,
Fundação Nacional Pró-Memória, Brasília, 1980).
O Imperad or D. Pedro II semp re dem onstrou simpatia pelos estudos his-
tóricos, mas apesar dessa vocação “acadêmica” nenhuma providência foi toma-
da du rante o seu reinado para p roteger os monumentos nacionais.
Com o advento da Repú blica, alguns escritores, tais como, Araújo Viana e
Afonso Arinos, preocupados com a questão do patrimônio nacional, reivindica-
ram med idas efetivas, porém não obtiveram sucesso.

Em 1922,
, empreend o aarquiteto
eu um Lúciocidad
viagem pelas Costa,
esainda estudante
históricas – formou-se
de Minas, em 1924de–
com a intenção
realizar um estudo sobre os monumentos artísticos da região. Suas impressões
foram decisivas. Ao chegar a Diamantina, maravilhado, confessa que caiu “em
cheio no passado no seu sentido mais despojado, mais puro; um passado de
verdade, que eu ignorava, um passado que era novo em folha para mim. Foi
uma revelação”. ( Apud PUNTONI, Pedro. “A casa e a memória: Gilberto Freyre e
a noção de patrimônio histórico Nacional”. In: FALCÃO, Joaquim; ARAÚJO,
Rosa Maria Barboza de. [Orgs.]. O imperador das idéias. Rio de Janeiro: Fundação
Roberto Marinho/TopBooks, 2001. p. 27). Para Lúcio Costa, a arquitetura brasi-
leira colonial emblemava o qu e havia de m ais recôndito na formação do brasilei-
ro e, vê-la de perto, transportava-o para o sentimento de origem, o núcleo inici-
al responsável pela consubstanciação do espírito nacional. O desvanecimento
do menino arquiteto denunciava o sentimento de pertença necessário à elabora-
ção da personalidade individual e coletiva. E a epifania de Diamantina provo-
cou-lhe um forte insight :

Quem viaja pelo interior de Minas percorrendo suas velhas cidades, Sabará,
Ouro Preto, São João Del-Rei, Mariana e tantas mais, não pode deixar de ter a
impressão triste que tive, a pena infinita que se sente vendo completamente
esquecidos aqueles vestígios tão expressivos do passado, de um caráter tão mar-
cado, tão nosso. Vendo aquelas casas, aquelas igrejas, de surpresa em surpresa,
a gente como que se encontra, fica contente, feliz, e se lembra de cousas que a
gente nunca soube, mas que estavam lá dentro de nós. Não sei – Proust devia
explicar isso direito. (“O Aleijadinho e a arquitetura tradicional”, artigo pu-
blicado n a Edição Especial de O Jornal, em 1929).

Quando Manuel Bandeira escreve, em 1938, seu Guia de Ouro Preto


(informe-se que, em 1934, Gilberto Freyre publicou o primeiro Guia de cida-

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Cultura, Patrimônio e Civilização

de no Brasil, o Guia prático, histórico e sentimental da cidade do Recife, com


ilustrações de Luís Jardim, e em 1939, Olinda – 2º Guia prático, histórico e senti-
mental de cidade brasileira) partilha do sentimento comum ao seu grupo-geração
–casas
o d eproviam
fisgar dos
a arquitetura vernacular
fantasmas do passado.aAverdadeira história
vida dos que do Eu brasileiro.
lá moraram Dessas
dizia da vida dos
indivíduos que integram a Nação brasileira. O poeta Bandeira, assim se coloca:

Para nós brasileiros, o que tem força de nos comover são justamente esses
sobradões pesados, essas frontarias barrocas, onde alguma coisa de nosso come-
çou a se fixar. A desgraça foi que esse fio de tradição se tivesse partido (BAN-
DEIRA, Manuel. Guia de Ouro Preto. Rio de Janeiro: Editora da Casa do
Estudante do Brasil, 1957. p. 43-45).

Retorno à cronologia das políticas adotadas em defesa do patrimônio na-


cional. Em 1924, ocorre a h istórica viagem a Minas, capitaneada p elos modernis-
tas de São Paulo – Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Tarsila do Amaral,
acompanhados de d. Olívia Guedes Penteado, René Thiollier e Godofredo da
Silva Telles. Tal viagem simbolizou um marco na história do patrimônio brasilei-
ro e teve o propósito de levar o poeta francês, Blaise Cendrars, a conhecer as
cidades históricas mineiras. O esclarecedor artigo de Pedro Puntoni, já
referenciado, traz à tona inúmeras questões de grandeza incontestável. Alerta:

O fato dos nossos modernistas irem mostrar ao homem da vanguarda francesa


nossas velhas cidades, com seus casarões e igrejas carcomidas pelo tempo, não
 passa de aparente paradoxo. Antes de tudo, revela muito da necessidade de cons-
trução de uma identidade no bojo do movimento de atualização estética
(PUNTONI, Pedro. Op. cit., p. 83).

Provavelmen te Pun toni se refere à avidez inovadora da Seman a de Arte


Modern a, aconte cida em São Paulo, em 1922. É da máxima relevância frisar que
o autor não lhe subtrai o devido valor – o que é sabido e consabido por todos os
que cultuam uma vida intelectual. O que não se deve, entretanto, aqui realço
uma opinião pessoal – que fique bem clara, apenas opinião pessoal –, é procla-
mar unilateralmente uma convergência quase fatalista dos sopros lançados pela
Semana de Arte Moderna. Entre exaltações e extremismos, há um equilíbrio que
deve nortear a emoção mesmo daqueles que empunharam bandeiras
vanguardistas. O Brasil “transigiu” na pintura, na prosa, na poesia, enfim, na
arte e na escrita, mas “transigiu” basicamente na forma que, embora alavancada
pelos ecos modernistas, jamais deixou de imprimir o ex-libris da brasilidade. A
Semana d e Arte Modern a sintetizou um d ivisor d’águas: para uns, com fustigantes
criações; para outros, com derrotismos importados aleatoriamente.

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Fátima Qu intas

Não é demais repetir: Gilberto Freyre sempre se aliou à cultura material,


vista pelo ângulo arquitetônico e pelo aspecto interacional homem-artefato. Já
havia se impressionado com as p alavras de Lúcio Costa, publicadas em 1929, em
edição especial &
de Casa-grande desenzala
O Jornal , tanto quepara
. Aproveito as utilizou no Prefácio
transcrever parte daàcarta
primeira edição
de Manuel
Bandeira, escrita em 23 de março de 1935, de Cambuquira, Minas Gerais, na
qual se observa a troca de idéias entre os dois amigos, ambos susceptíveis aos
encantos dos casarões, dos telhados, das ruas antigas.

 Afinal desencantei a viagem a Cambuquira. Estou aqui desde o dia 15, e parece
que as águas estão me fazendo grande bem. [...] Anteontem fui numa excursão
a Campanha, cidadezinha morta que fica a uns ¾ de hora daqui. Faz agora

 justamente 30 anos
1905, pois não senti que
entãocheguei lá carregado.
a delícia Verifiquei
que são aquelas que simples,
ruas tão era um tão
camelo em
modes-
tas, com os seus casarões quadrados, quase todos com bicos de telhado em forma
de asa de pombo. Há lá uma rua Direita (hoje tem nome de gente) que é um
encanto: tão genuinamente brasileira, tão boa, dando vontade de morrer nela
(Arquivo da Fundação Gilberto Freyre).

O poeta e o ensaísta se comp lementavam, desde então, em claras aproxi-


mações. Freyre, ao antecipar os estudos de vida íntima na Antropologia, numa
época em que a abordagem positivista exortava os “dogmas” da metodologia
científica, lança novos olhares para o social, trazendo a lume discussões verda-
deiramente madrugadoras. Tanto que o primeiro estudo sobre a arquitetura
vernacular brasileira publicado pelo Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional, em 1937, tem a assinatura d e Freyre.
A mentalidade patrimonial começava a florescer d e maneira sistêmica. Já
não era possível frear os apelos de um grupo de intelectuais empenhados na
luta pela criação de um órgão ligado à defesa dos mon um entos nacionais. Cou-
be a Gustavo Capanema, ministro da Educação e Saúde (1934–45), transformar
a iniciativa em lei federal. São suas as palavras:

  Nos princípios de 1936, sendo Ministro da Educação, e às voltas que então já


andava com os nossos múltiplos assuntos culturais, lembrou-me mandar fazer 
o levantamento da obras de pintura, antigas e modernas, de valor excepcional,
existentes em poder dos particulares, na cidade do Rio de Janeiro. [...] Mas vi
que isso só, sendo embora coisa relevante, não teria o sentido compreensivo e
geral de um cometimento de tal natureza. [...] A idéia inicial, deste modo, se
transformava num programa maior que seria organizar um serviço nacio-
nal para a defesa do nosso extenso e valioso patrimônio. [...] Logo me ocor-
reu o caminho: Telefonei para o Mário de Andrade, então Diretor do Departa-

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Cultura, Patrimônio e Civilização

mento de Cultura da Prefeitura de São Paulo. Expus-lhe o problema e lhe pedi


que organizasse o projeto. (CAPANEMA, Gustavo. “Rodrigo: espelho de
critério”, In: A lição de Rodrigo. Recife: Amigos do DPHAN, 1969, p. 41).

Consigne-se, por dever de justiça, que Rodrigo Melo Franco de Andrade


exerceu um papel imprescindível na implantação desse programa, razão pela
qual, em 1936, foi nomeado diretor do recém-criado Serviço do Patrimônio His-
tórico e Artístico Nacional (SPHAN), ainda em fase d e experimentação, embora
aprovado pelo presidente da República, Getúlio Vargas. Finalmente, no dia 30
de novembro de 1937 foi promulgado o Decreto-lei nº 25, efetivando a institui-
ção em moldes oficiais. O projeto de Mário de Andrade recebeu algumas altera-
ções de Rodrigo M. F. de Andrade, não sendo afetado, entretanto, nas suas

linhas
períodogerais. A chamada
da gestão “fase heróica”
de Rodrigo M. F. dedoAndrade,
SPHAN oestende-se de 1936 a 1967,
grande incentivador das
políticas públicas direcionadas ao tema.

 Ainda em 1930, quando o único serviço de proteção do patrimônio se estruturava


no Museu Histórico Nacional, sob a direção de Gustavo Barroso, Rodrigo M. F.
de Andrade pensara em nomear Gilberto Freyre para a função. O que lhe impe-
diu foi a situação política do sociólogo, que se via, então, no exílio em Lisboa. [...]
Segundo Lauro Cavalcanti [no artigo “O cidadão moderno”, Revista Patrimônio
 Histórico e Artístico Nacional. Rio de Janeiro, 24; p. 114, 1996], quando o SPHAN 
  foi finalmente criado, ter-se-ia cogitado a nomeação do sociólogo para diretor 
(regional?), o que foi vetado por Agamenon Magalhães. Em uma carta de 14 de
 janeiro de 1938 endereçada a Capanema, o interventor recusou a indicação por 
esse “haver participado do movimento comunista de 1935” [sic] e se recusado,
em 1937, “a fazer uma preleção anticomunista, ordenada pelo reitor”
(PUNTONI, Pedro. Op. cit., p. 91-92)

Durante o “período heróico”, comandado por Rodrigo de M. F. de


Andrade, ocorreram 689 tombamentos, send o que 529 referentes à fase colonial,
confirmando a importância da arquitetura vernacular do oitocentos, como
arcabouço fun dan te da nossa iden tidad e. Não h á como h esitar: a cultura m ate-
rial representa a grand e dep ositária do espaço arquitetônico e social da mem ória
coletiva do brasileiro – “é um passado que se estuda tocando em nervos, um
passado que emenda com a vida de cada um”, adverte Gilberto Freyre ( Casa-
grande & senzala, p. 56).
A segun da etapa do SPHAN é chefiada por Renato Soeiro e vai de 1967 a
1979, devendo-se assinalar que, em 27 de julho de 1970, por Decreto, o Ministé-
rio da Educação e Cultura transforma a Diretoria do Patrimônio Histórico, Ar-

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Fátima Qu intas

tístico Nacional em Instituto, o IPHAN. Resumindo o caminho percorrido pelo


Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), elenco:
a. a sua criação, no dia 30 de novembro de 1937, Decreto-lei nº 25, com o
nome b.Serviço do Patrimônio
transformação Histórico(DPHAN),
em Diretoria e Artísticoem
Nacional (SPHAN);
2 de janeiro de 1946, pelo
Decreto-lei nº 8.534;
c. Finalmente Instituto (IPHAN), em 27 de julho d e 1970, por novo Decre-
to-lei nº 66.967, designação até hoje utilizada.
Há nom es que devem ser lembrados na luta pelo patrimôn io: o de Aluízio
Magalhães – idealizador do Centro Nacional de referência Cultural –, o de Pau-
lo Duarte, o de Mário Melo, o de Aníbal Fernandes, o de Airton Carvalho, entre
outros. À obstinação e à tenacidade de um grupo de intelectuais brasileiros do

Nordeste, do Sudeste
men to voltado e de outras
p ara a riqueza regiões,
do nosso deve-se
patrimôn io overnacular.
surgimentoSemde essa
um pensa-
dispo-
sição para inventariar a cultura material do Brasil, teria sido m uito difícil recapi-
tular os meandros por onde transitaram os nossos antepassados.

***

Preservar não é somente guardar o artefato, mas mantê-lo vivo na sua


contextualização. Os museus, por exemplo, requerem um tratamento de todo
especial, de mod o a escapar do isolamento e de um possível estatismo do objeto
exposto. A sociedade se mostra como uma tecelagem cuja urdidura se fabrica
em bases relacionais – fenômenos entrançados e interativos. A cultura material
faz parte dessa trama cheia d e ramificações. As genealogias objetivas e subjetivas
“nomeiam” as entrelinhas do fato social, não importando se egressas de
concretudes visíveis ou de subterfúgios implícitos à realidade em mira.

TRADIÇÃO E MEMÓRIA

Os nexos de um a consciência
de individualidade tributa àsvivente perdu ram
lembranças enquan toum
acumuladas há memória.
crédito deO valor
traço
intran sferível. Recordar pod e vir a ser um a leveza de fruição ou um peso trau-
mático do passado que vai e que vem num círculo vicioso. O escritor colombia-
no Gabriel García Márqu ez diz na epígrafe da sua autobiografia: “A vida não é a
que a gente viveu, e sim a que a gente recorda, e como recorda para contá-la”.
Desse contar ribomba a construção existencial de cada um. As biografias hu-
man as comp ortam vivências extraordinárias, ou seja, experiências p ara além
do que é plausível à observação ordinária. A elas outorga-se a consistência

ontológica, porque
habita a textura do aser.
au sência do não feito redu nd aria no nad a. Na mem ória

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Cultura, Patrimônio e Civilização

Somos tempos: passado, presente, futuro. O passado conserva a soli-


dez do acontecido – fundação do ciclo vital do indivíduo. Há um  passado-
vivente e um  passado não-vivente. O que quero dizer com isso: o  passado-vivente
resulta dasjáexperiências
ria, o que foi vivido emde sentido
on tem, pleno.
de umAo passado p articipan
distanciar-se da te da nossa histó-
presentificação, o
factual adentra em um tempo que se aloja na memória, resistindo, assim, às
várias “interrupções” e recriando-se no processo da transmutação. As lembran-
ças cabem nessa memória, mas já não são vivências, e sim recordações transfi-
guradas. Do  passado-vivente, a memória reelabora o experienciado através de
uma narrativa fantasmática. O   passado não-vivente é o que se desloca até a
ancestralidade – herança recebida de uma história da qual não participamos,
aind a que sujeito posteriori desta história, então incrustada dentro de uma famí-

lia, de um
de, ou seja,sistema
daquilodeque
parentesco,
é comum de
ao alianças
grupo. Oafetivas, enfim de
 passado-vivente uma comuncon-
e não-vivente ida-
cebe pactos de  pertença, de modo a ajustar o homem às suas referências psicoló-
gicas e culturais.
Tradição, do latim traditio, traditionis, derivado do verbo tradere, significa
entregar, transmitir, legar à geração seguinte. Embora o verbo se referisse, de
início, à transmissão de coisas triviais, ao termo acresceram-se as reservas
marcantes de um passado que repercute no presente e, presumivelmente, no
futuro. Logo, tradição é a transmissão oral de fatos, lendas, acontecimentos, de
idad e em idad e, de geração em geração através do fio cond utor d os testemunhos.
Aqui dois aspectos sobressaem: o da oralidade e o da transmissão. O da oralidade
reún e a concepção primeira, no sentido de veicular os costumes e hábitos que
incidiam no imaginário coletivo dos  povos ágrafos. Tal versão perdu rou por lon-
go tempo e aind a perdu ra com bastante vigor ao acoplar os nichos de contam i-
nação de uma realidade para outra, isenta de registros escritos. Naturalmente
que a tradição vem sofrendo reelaborações e, na contemporaneidade, o signifi-
cado se alarga, abarcando escrituras reveladoras de passados. Entretanto, os
estudiosos mais ortodoxos aceitam a tradição apenas no seu viés de oralidade.
Na tradição escrita perder-se-iam os elementos de espontan eidad e e a força da
narrativa verbal, ou seja, a força do significante.
A transmissão se acasala à tradição numa simbiose perfeita. Não se pode
pensar uma sem a outra. Ambas se equivalem em grau e intensidade. Jamais
acontecerá tradição sem transmissão, embora nem toda transmissão seja tradi-
ção. Transmitir não é sinônimo de tradição; tradição é sinônimo de transmissão.
Por conseguinte, a etimologia da palavra tradição conserva a chama da
historicidade.
O hom em tem na trad ição o seu pon to de origem. E precisa não só recebê-
la como espólio de um  passado não-vivente, como aceitá-la para se construir em
humanidade. A tradição diz do  passado não-vivente, da memória ancestral, de

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Fátima Qu intas

um longe que parece não ser nosso, mas que o é, com todos os seus fluxos e
refluxos. Arredios aos resíduos desse legado, os continuísmos se romperiam,
desagregando a pirâmide psíquica. Um homem sem raízes é um hom em m orto
na sua integração
cultural . ao mundo – alado, solto, imbuído da síndrome de orfandade
Reavivo o princípio da  pertença porque é deste sentimento que se sugam
os ajustes e os desajustes do Sujeito pensante. A sua ausência inflamará sérias
distorções, provocadas pela carência sociocultural. Os conluios formados pelos
grupos carimbam exatamente a necessidade dos selos coletivos: ligamentos cultu-
rais que se firmam para sancionar a homogeneidade do comp lexo sociológico.
Cumpre afiançar que o patrimônio, a memória, a tradição confluem em
um mesmo direcionamento, qual seja, o do sentimento de pertença. Sem ele, tor-

na-se complicado
demanda um mastro sedimentar
de valoreslaços identitários,
comuns uma converge
para os quais vez que aa pessoalidade
imprescindí-
vel sensação de  pertencer  a alguém ou a algo que assegure solidez existencial.

REGIÃO E REGIONALISMO
Os tópicos acima referenciados vão desaguar na idéia de região-regionalismo.
Por região, aqui se conceituam os vetores físicos e culturais delimitados pelo
espaço; por regionalismo, amplia-se o conceito a padrões atinentes a um grupo
cultural
portandoqueparapode estar
outros inserido
locais em um dadovalorativos
os pressupostos espaço ou que
deleotranscender, im-
balizam. Tomo
como exemplo as manifestações culturais congêneres em regiões diferentes.
Ressalte-se, contudo, que o regionalismo encrava-se dentro do processo
civilizatório mais amplo, isto é, dentro da Civilização onde os blocos culturais se
encaixam. Portanto, o regionalismo subjaz à Civilização e não extrapola, na sua
dimen são autêntica, os seus p ontilhad os.
O mun do globalizado, por incrível que pareça, tem recrudescido os prin-
cípios do regionalismo justamente porque abala o sentimento de pertença, trisca
as
nãoraízes, uniformiza
é pertencer a umarealidades.
região que Pertencer
tem n omeae um mundo anônimo
proximidad e. Há u mefosso
impessoal
enor-
me entre uma coisa e outra. O mundo representa a exterioridade maior, algo
superior à apreensão de cada um, aquilo que se esgueira para além das possibi-
lidad es do indivíduo.  Igualar diferenças é anular identidades. Padronizar costum es
é dissolvê-los numa atmosfera de ninguém. Por essa razão, que leva a uma
outra, a da bu sca de origem, o regionalismo ten de a fortalecer os sinais pecu-
liares a um conjunto cultural: seus padrões distintivos. E antes do homem
diluir-se nos fantasmas da globalização, ele vem intentando realçar os
atavismos , o que quer dizer:
O regionalismo   aderências
não aspode à origem.
ser compreendido em oposição ao

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Cultura, Patrimônio e Civilização

universalismo. Esse aspecto é de natureza primordial para um bom


discernimento do postulado. Um depende do outro para que se assentem
em estacas duradouras. Do contrário, prevaleceriam extremos inaceitáveis.
Da pequena A
indiscutível. aldeia
linhade
d e Tolstoi se desenhará
intersecção o mundo,
qu e cabe entre assertiva
a p arte e o tododeestabele-
caráter
cerá a primazia da unidade.
No Brasil, a primeira voz a levantar-se em favor d e uma visão regional
foi a de Gilberto Freyre, em 1923, quando cria informalmente o Centro
 Regionalista:

Toda terça-feira, um grupo apocalíptico de “Regionalistas” vem se reunindo


em casa do professor Odilon Nestor, em volta da mesa de chá com sequilhos

etem-se
docesentão,
tradicionais
em vozdamais
região
de –conversa
inclusiveque
sorvete de Coração
de discurso, da Índia.doDiscu-
problemas Nor-
deste (FREYRE, Gilberto. Manifesto Regionalista. QUINTAS, Fátima
(Org.). 7. ed. Recife: Editora Massangana, 1996. p. 49).

Ao voltar de viagem dos Estados Unidos e Europa – onde permaneceu


cinco anos –, exatamente em 1923, Freyre se estonteia com a devastação do Reci-
fe, sentindo-se agredido na sua p rópria cidade, ond e o traçado urbanístico mais
remoto desmantelava-se. O Recife começava a doer-lhe, como segredava
Unamuno em relação à Espanha. Reagindo à descaracterização causada por
uma falsa mod ernidade, realiza, em 1926, o primeiro Congresso Regionalista a seu
modo Modernista, mom ento no qual leu o seu m anifesto. Eis algun s fragmentos:

Pois de regiões é que o Brasil, sociologicamente, é feito, desde os seus primei-


ros dias. [...] Somos um conjunto de regiões antes de sermos uma coleção
arbitrária de “Estados”, uns grandes, outros pequenos. [...] Regionalmente é 
que deve o Brasil ser administrado. É claro que administrado sob uma só
bandeira e um só governo, pois regionalismo não que dizer separatismo. [...]
 Regionalmente deve ser estudada, sem sacrifício do sentido de sua unidade, a
cultura brasileira, do mesmo modo que a natureza; o homem da mesma
  forma que a paisagem (FREYRE, Gilberto. Ibid., p. 50, 51).

Com o igual propósito de conclamar a gênese do p ovo, Freyre já orga-


nizara, em 1925, o  Livro do nordeste, comemorativo do centenário do Jornal
 Diario de Pernambuco, livro esse que foge dos parâmetros esperados e trans-
forma-se em u m verd adeiro hino ao ethos nordestino. Mais um a vez o escri-
tor pernambucano encorpa o sentido de brasilidade, evocando o passado
arquitetônico vernacular em todos os seus matizes: materiais e subjetivos.

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Fátima Qu intas

O respeito ao regionalismo engrand ece a imagem d o Nordeste: da sua


cultura, da sua fecundidade, do seu pluralismo. Ter consciência dos frutos
que desabrocharam d a história do m assapê equivale a enaltecer as tradições,
opartir
patrimônio, a memória,
da monocultura enfim, Nunca
açucareira. o complexo civilizatório
é demais esmiuçarquea edificação
se difundiuso-a
cial do triângulo rural – casa-grande, incluindo a senzala, engenho/fábrica e
capela – para alcançar um ethos que se espraiou, com as devidas adequ ações,
por todo o território brasileiro. Não tem o afirmar qu e as fazendas de café, de
cacau, de gado adotaram o mesmo modelo patriarcal das construções
vernaculares do massapê canavieiro. Mesmo os que enriqueceram com o
ciclo da mineração desejaram alongar-se n os referenciais do sistema agricul-
tor. O brasão da agricultura se impôs verdadeiramente no Brasil dos nossos

bisavôs – o escudaso imagético


Reacendo lá Gilberto
palavras de estava, noFreyre
moduspara
vivendi do senhor
tonificar p atriarca.
o pensamento
que almejo repassar:

Talvez não haja região no Brasil que exceda o Nordeste em riqueza de tradi-
ções ilustres e em nitidez de caráter. [...] O Nordeste tem direito de conside-
rar-se uma região que já grandemente contribuiu para dar à cultura ou à
civilização brasileira autenticidade e originalidade e não apenas doçura ou
tempero. [...] Apenas nos últimos decênios é que o Nordeste vem perdendo a
tradição de criador ou recriador de valores para tornar-se uma população
quase parasitária ou uma terra apenas de relíquias: o paraíso brasileiro de
antiquários e de arqueólogos (FREYRE, Gilberto. Ibid., p. 52-53).

Concluindo esse primeiro tema, gostaria de enfatizar que a


internalização dos princípios do regionalismo resulta no calço estruturante
da personalidad e psíquica e cultural do homem , sem a qual não se concebe o
desenvolvimento, nele, homem, indivíduo ou coletivo, do espírito de identi-
dade e de caráter nacional. A estima pela cultura nasce do au toconhecimento,
e para se galgar a condição de  persona, faz-se iminente a descoberta de si
através de um olhar de alto-alcance que venha a penetrar no   fenômeno da
remotização – o que é remoto, o que é longínquo, o que é ancestral. São os
longes que consubstanciam o ser e o estar no presente. Os rasgos d e criatividade
alimentam-se do passado. Só o processo da aquisição prescinde dele. Dos
antep assados emanam a nossa história, a nossa comp reensão do un iverso e,
conseqüentemente, os nossos  pertencimentos.

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Cultura, Patrimônio e Civilização

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CANA, ENGENHO E AÇÚCAR

Fátima Quintas
antropóloga e ensaísta

 A cana-de-açúcar é de todas as plantas domesticadas


 pelo Homem a que mais implicações teve na História
da Humanidade. (...) A chegada ao Atlântico, no
século XV, provocou o maior fenômeno migratório
que foi a escravatura de milhões de africanos.
Alberto Vieira

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SUMÁRIO

Origem da cana | 53

A Capitania de Pernam buco: berço da civilização do açúcar  | 53

O m assapê | 56

Engenh o: a man ufatura d o açúcar | 57

A escravidão | 64

Sabor e d oce: do alimento à gastronomia | 65

Bibliografia | 67

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Fátima Qu intas

ORIGEM DA CANA
Originária do Sudeste asiático (provavelmente da Índia), a cana-de-açúcar
alcançou a Pérsia e dali foi levada p elos conquistadores árabes à costa orien-
tal do Mediterrâneo (CASCUDO, Câmara. Sociologia do açúcar , 1971; FREYRE
Gilberto.  Açúcar , 1987; ANDRADE, Manuel Correia de. Cinco séculos de coloni-
 zação, 2004; GOMES, Geraldo. Engenho e arquitetura, 2006). Há, entretanto, os
que adm item ser a planta nativa do Pacífico, talvez da Papua, Nova Guiné, ond e
 já era conh ecida há cerca de 12 mil anos (NUNES, Naidea Nunes. Palavras doces,
2003). Ao migrar pelo Mediterrâneo, os árabes levaram -na a Gênova, Veneza,
Sicília e ao sul da Espan ha; em Portu gal, a sua cultura teve início no Algarve,
ao tem po de D. João I (1385–1433), Mestre de Avis, no ano de 1404, posterior-
mente, transportada pelo Infante D. Henrique para a Ilha da Madeira, cen-
tro de grande irradiação do cobiçado produto. Bom lembrar que a Ilha da
Madeira, no século XV, foi a maior produtora de cana do mundo, cuja ascen-
dên cia vertiginosa correspon deu ao seu prop orcional declínio, então nos mea-
dos do século XVI, diante da efervescência do cultivo no Brasil. Acrescente-se
que foi dessa mesma Ilha da Madeira que a p lanta chegou até nós p elas mãos
dos colonizadores portugueses, nas p rimeiras décadas d o quinh entos.
Segundo o historiador F. A.Varnhagen ( História geral do Brasil antes da sua
separação e independência de Portugal, 1975), baseado em documentos relativos a
pagamentos de impostos à Alfândega de Lisboa do açúcar proveniente de
Pernambuco, datados de 1526, a cana-de-açúcar já havia sido introduzida no
Brasil antes da chegad a do seu primeiro don atário. E mais: no período da feitoria
de Cristóvão Jacques, teria sido cultivada “parcimoniosamente” em Itamaracá,
em 1516. Do que se infere que ela fez parte da paisagem pern ambucana desde o
início do século XVI. Oficialmente a sua introdução na Terra de Vera Cruz se
deu por meio de Martim Afonso de Souza, em São Vicente, no ano de 1532.

A CAPITANIA DE PERNAMBUCO
berço da civilização do açúcar 
Vingan do a can a-de-açúcar na Ilha d a Madeira, os portugueses a cultiva-
ram em Cabo Verde, Açores e São Tomé, tentando potencializar um produto em
alta no mercado internacional. Afinal, o ouro branco, assim chamado o açúcar,
representava um a das melhores e m ais caras iguarias da Europa, bastante cobi-
çada pelos reis, desejosos de aumentar os seus impérios. Para tanto, fazia-se
necessário terra propícia à fertilização de uma gramínea poderosa no tocante à
comercialização e a lucrosbrancos
grãos brancos, brancos, avantajados. Os eolhos
e doces do mundo
fustigadores davoltavam-se para os
gula econômica.

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Cana, Engenho e Açúcar

Com a decepção da descoberta do Brasil, em 1500, Portugal, desolado,


quase abandonou a empreitada da colonização. Gilberto Freyre tece a feliz
metáfora: O   “Brasil foi uma carta de paus puxada num jogo de trunfo em
ouro.
à Índ iaUm
dedVasco
esapon
datamento
Gama” para o imperialismo
(Casa-grande qu, e2000,
& senzala se iniciara com a Durante
p. 263-264). viagem
as três primeiras décadas do século XVI, não houve por parte d o Reino lusi-
tano u m olhar d e efetiva fixação nas terras trop icais. O Brasil tinha p ouco a
oferecer quanto a atividades extrativistas e exigia deslocamentos humanos
duradouros para o cultivo de uma terra com imensa extensão territorial. A
população portuguesa, à época do descobrimento, correspondia a 1 milhão
de h abitantes e suas conquistas já se espalhavam pela África, Índ ia e até Ex-
tremo Oriente. Uma pergunta se impunha: O que fazer?

O hered
pitanias português
itáriasadquirira experiência
nos Açores, na Ilha dcolonizadora com
a Mad eira e em o sistema
Cabo Verde. de ca-
Resol-
veu transferir esse modelo para o Brasil. Assim, D. João III (1521–1557), Rei
de Portugal, entregou a Duarte Coelho a Carta Régia de Doação – em 10 de
março de 1534 –, concedendo-lhe o d ireito e u sufru to d e novas terras. “Ses-
senta léguas de terra... as quais começarão no Rio São Francisco (...) e acaba-
rão no rio que cerca em redondo toda Ilha de Itamaracá, ao qual ora nova-
men te ponh o o n ome de Rio Santa Cru z...” Dizend o d e outra forma, o terri-
tório da capitania de Pern ambuco estend ia-se de Itamaracá à foz do Rio São
Francisco, com as ilhas e as terras da margem esquerda, até a sua nascente,
na Serra da Canastra, no atual Estado de Minas Gerais.
As capitanias de Pern ambuco e de Itamaracá nasceram juntas, além de
limítrofes. Itamaracá foi uma capitania frustrada, como assevera Manuel
Correia de Andrade, apesar de possuir uma razoável delimitação territorial,
que se espalhava de Igaraçu até o Rio Grande do Norte. Pero Lopes de Sou-
za, o seu don atário – irmão de Martim Afonso d e Souza –, nun ca m orou n a
capitania, desenvolvendo uma administração assistemática, o que resultou
no fracasso de uma faixa de terra predisposta à semeadura. Por esse motivo,
Itamaracá esteve sob a jurisdição informal da capitania de Pernambuco du-
rante um século, tend o sido, por fim, legalmente anexada, em 1763, amp lian-
do o universo geográfico da região da cana.
O primeiro engenh o de açúcar de Pernambu co, o São Salvador , posteri-
ormente conhecido como Engenho Velho de Beberibe, foi edificado p or Jerôn imo
de Albuquerque, sob a invocação de nossa Senhora da Ajuda, em lugar hoje
denominado “Forno da Cal”. A Civilização do Açúcar iniciou-se realmente
com o donatário Duarte Coelho que, com habilidade administrativa, não
tard ou em solicitar ao Reino de Portugal a presença de mestres-de-açúcar da
ilha da Madeira, assim como a importação de mão-de-obra da África, além de
capital jud eu para levar a termo o seu emp reend imen to. A Capitania Duartina

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Fátima Qu intas

se desenvolveu à larga, abençoada por um solo especial, uma terra puxando


para a cor de sangue, ora arroxeada, ora quase avermelhada, o massapê.

***
Du arte Coelho chegou ao Brasil, com projeto de moradia, a 9 de março de 1535,
em companhia da esposa, D. Brites de Albuquerque, do cunhado Jerônimo de
Albuquerque e de uma numerosa comitiva de pessoas, amigos, aventureiros,
nobres decadentes. Chamou sua capitania de “Nova Lusitânia” e ao pequeno
povoado que erigiu denominou de Igaraçu, uma corruptela do tupi Igara-Açu,
que quer dizer “barco grand e, canoa enorm e”, como os indígenas designavam
as grandes embarcações de Duarte Coelho. Em seguida, construiu uma Igreja

de Açãopara
direção de Graças
o sul ededicada
fundou aaos
vilasantos Cosme
de Olind e Dam
a (1537), ião. O donatário
consolidando, tomou
assim, a sedea
do govern o. Sacramen tava-se, dessa forma, a colonização do Brasil.
O nome Nova Lusitânia não se firmou, prevalecendo o vocábulo indí-
gena Pêra-Nhambu co, que quer d izer “furo do mar, ped ra furada, ou buraco
no mar”, em alusão à abertura nos extensos arrecifes naturais de pedra ali
existentes, por ond e entravam os navios no an coradou ro.
Uma única cultura parecia viável na exploração do massapê: a cana.
Portugal, como já foi dito, tinha experiência com a p lanta n a Ilha da Mad eira
e, logo, Duarte Coelho fez uso do cabedal de conh ecimentos. A mão-de-obra
seria trazida da África, cuja prática de trabalho escravo acontecia – negros
eram objeto de comércio por parte de árabes e de africanos arabizados.
Tomadas as devidas providências, a prosperidade da cana agigantou-se
em Pernambuco e provocou um a forte concentração econômica, outorgando à
capitania um vigoroso poder territorial. Os resultados favoráveis decorreram da
eficiente administração duartina, de grande valia para o processo colonizador.
O ouro branco destacava-se no mercado internacional com tal proemi-
nência que, na Europa, representou, segundo Paulo Prado, dote distintivo
entre os enxovais dos nobres casamentos. Se os lusitanos não encontraram
os metais preciosos da América espanhola – Astecas, Incas, Maias –, depara-
vam-se com uma realidade nova, indicativa de promissores lucros. Investir
na terra que “em tudo se plantando dá”, fazia-se urgente. A incansável dili-
gência de Duarte Coelho suscitou a proliferação de engenhos pelas várzeas
dos rios Capibaribe, Beberibe, Jaboatão, Una... E o percentual de fabrico se-
guiu em progressão geométrica.
A repercussão do açúcar da capitania de Pern ambuco no circuito inter-
nacional foi estrondosa. O crescimento dos engenhos fez-se célere,
correspondendo à seguinte ascensão: em 1570, 23 engenhos; em 1583, 66 en-
genhos; em 1608, 77 engenhos. Em 38 anos, um avanço substantivo. A alta

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Cana, Engenho e Açúcar

produção, o solo favorável das terras n ordestinas brasileiras, a especiaria em


alta, geraram a cobiça de ou tros países. As atenções voltavam -se para o gran-
de porto comercial do Recife, olhos gulosos de desejo mercantil. Tanto e
tanto,
não as que o açúcar
pedras representou
preciosas a senhapossa
como a alguns aliciadora da Ainvasão
parecer. criaçãoholandesa
da Compa-e
nhia das Índias Ocidentais (1623) fortalecia o ímpeto, cada vez maior, de le-
var aos Países Baixos considerável quantidade do “melaço” para as suas sô-
fregas e rentáveis refinarias. Só em Amsterdam quantificavam-se 26. Os h o-
landeses permaneceram 24 anos em Pernambuco, fomentando um desen-
volvimento urbanístico e artístico de reconhecido valor. Mostraram-se ex-
cepcionais apreciadores da SACCHARUM OFFICINARUM. As frutas crista-
lizadas os enlouqueceram , acepipes preferidos dos n órdicos de H aia. O Reci-

fe, a nNão
ova capital,
se podem transbordava sensações
desprezar alguns d ulcíssimas.
elementos que contribuíram para que
Pernambu co se distingu isse como uma das primeiras e mais imp ortantes capita-
nias hereditárias do Brasil. Sua história é a história do Brasil. Impossível separar
uma da outra. Pernambuco foi o açúcar, com todos os benefícios e malefícios.
Dos períodos em que se costuma dividir a história econômica do Brasil – pau-
brasil, cana, gado, ouro, café, algodão, etc. – o da cana é sem dúvida o mais
expressivo. Por quê? Há razões que justificam tal enunciado. Cumpre apontá-
las, de forma didática, com o objetivo de destrinchar melhor a trilha vitoriosa:
a. pelas condições favoráveis do solo, o massapê;
b. pela grande extensão territorial ocupada pelas  plantations, denomi-
nação inglesa utilizada para a lavoura da cana;
c. por sua cultura haver se prolongado durante quatro séculos ininterruptos.
Ainda hoje o plantio da cana acontece com safras bem significativas;
d. pela situação geográfica de Pernambuco – o ponto mais próximo da
Europa e da África.

O MASSAPÊ
O massapê – terra que se agarra aos pés com “modos de garanhona” – é o
solo predominante da Zona da Mata, de aparên-
cia viscosa, oleosa, cor avermelhada (aluviais de
massapê e aluviais de barro vermelho) que, aliado
à cond ição climática – clima qu ente e úm ido com
duas estações bem pronunciadas durante o ano,
uma seca, outra chuvosa – oferece condições ex-
cepcionais para a semeadura da cana-de-açúcar.

Assim se pronuncia Freyre:

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Fátima Qu intas

  Há quatro séculos que o massapê do Nordeste puxa para dentro de si as


 pontas de cana, os pés dos homens, as patas dos bois, as rodas vagarosas dos
carros, as raízes das mangueiras e das jaqueiras, os alicerces das casas e das
igrejas, deixando-se
civilização agrária dospenetrar como
portugueses nenhumaGilberto
(FREYRE, outra terra dos trópicos
. Nordeste, 1985, p.pela
6).

Sem essa argila especial, sem esse hú mus generoso, sem essa resistên-
cia de terra, a paisagem do Nordeste não teria se alterado tão decisivamente
no ru mo d e um latifún dio canavieiro ancho de dem and as sociais e hum anas.
A qualidade do solo tornou possível o avanço civilizador da cana. O que
chama a aten ção é o que essa gleba fascinante representou para a civilização
mod erna mais seden tária que o p ortugu ês fun dou nos trópicos: um a civili-
zação que escapou do extrativismo do pau-brasil, fixando-se numa região e
gestando uma sociedade singularíssima, no sentido material e sociocultural.

ENGENHO
a manufatura do açúcar 

Havia três tipos d e engen hos:


a. os
acelerar reais, movidos
a produção a água,uma
e oferecer os preferidos d os senh ores de engen ho p or
maior rentabilidade;
b. os trapiches, aqueles que utilizavam a tração animal. O boi, pachor-
rento, porém dotado de grande força, suportou a ciranda das almanjarras.
Documentos bibliográficos e iconográficos do período holandês registram a
presença de bois para m ovimen tar a m oend a dos engenh os de açúcar. Porém
éguas, as célebres bestas, velozes e obstinadas foram as prediletas. Trabalha-
vam incessantemente, repetindo a circularidade de uma moenda artesanal.
O movimento ensejava uma penosa dedicação. Pelo excesso de esforço, rit-
mo
um aacelerado
freqüência e indesejada,
continuado,oasque
éguas morrimo com
ocasionou apa-
recimento do cemitério das bestas – a besta morta.
Na verdade, tal imagem fixou-se no imaginário
popular e provém do sentimento de respeito ao
trabalho do animal, um reconh ecimen to român ti-
co, uma vez que não existia concretamente um
cemitério, e sim um local onde se enterravam as
bestas, de ord inário, um a várzea que, em momen -

to
bo posterior,
animal; acolhia o plantio da cana. Até na morte a besta doou-se em adu-

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Cana, Engenho e Açúcar

c. os a vapor, surgidos no século XIX, em de-


corrência da modernização da técnica.

o s t iA
p odenominação h o , p oaplicava-se
s d e e n g e nbangüê r q u e o baa ntodos
güê
consubstanciava um ícone n o transporte da cana:
espécie de padiola de cipós trançados na qual se
levava o bagaço da cana ou os pães de açúcar para
a seca – a seca do açúcar . Os term os bangüê e engenho merecem u m parêntese.
O nome engenho refere-se à dimensão engenhosa que os mouros atilaram na
construção da moen da, pois se tratava d e um mecanismo habilidoso e astu-
to, cujo funcionamento dependia de uma engrenagem à base de encaixes.

Assim, bangüê
do: insígnia e engenho
da man ufaturaacabaram
do açúcar.sendo sinônimos da gravura do passa-
O complexo do engenho desmembrava-se em casa-grande, senzala,
engenho (também cham ado de fábrica) propriamen te dito e capela. A distribui-
ção dos “edifícios” dava-se em um terreno com ondulações pré-estabelecidas, a
perfilar uma ord em de interesse geopolítico. Assim, dividiam-se:
a. o engenho. Assentava-se na parte baixa, o que se justificava p ela maior
proximidade da água. Os rios foram de importância fundamental porque
atenderam à energia hidráulica demandada pela moenda, à constância do
umedecimento do terreno e à distribuição do produto além terra – escoa-
douro eficiente. Daí os engenhos terem se desenvolvido à beira dos rios e
deles dependerem, sobretudo dos rios menores, perenes, mais confiantes,
humildes e serviçais. Os rios grandes foram os rios dos bandeirantes.

Muito deve o Brasil agrário aos rios menores porém mais regulares: onde
eles docemente se prestaram a moer as canas, a alagar as várzeas, a enverdecer 
os canaviais, a transportar o açúcar, a madeira e mais tarde o café, a servir 
aos interesses e às necessidades de populações fixas, humanas e animais,
instaladas às suas margens; aí a grande lavoura floresceu, a agricultura
latifundiária prosperou, a pecuária alastrou-se (FREYRE, Gilberto. Casa-
grande & senzala, 1966, p. 98-99).

b. a casa-grande. No patamar intermediário, local ideal para a eficiente


vigilância do patriarca sobre a dura e sistemática labuta do açúcar;
c. a capela. Ao cimo, pela sacralidade que dela emanava. Igualmente
para se resguardar dos possíveis ataques dos índios;
d . a senzala. Um pouco afastada do engenho, em terreno de similar
latitude, à vista do senhor “aristocrata”.

***

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Fátima Qu intas

O processo da m anu fatura d o açúcar seguia etapas seqüenciadas:

1. Preparo da terra – O massapê, dotado d e um a viscosidad e agregadora,


representou a terra ideal para
outra ao desenvolvimento o p lantio
artesanal dadasua
cana. Prestou-se
lavoura, quasecomo n enh um a
que repelindo
qualquer tipo d e tecnologia. Gleba mais materna que p aterna, hosped ou com
generosidade o sêmen salvador. O açúcar nela vicejou com independência e
auto -suficiência. A enxada, apenas a enxada na mão do hom em, sum arizou o
instru men tal precípu o. Até o século XIX não hou ve m ud anças no tam anh o
dessa terra tão receptiva ao aconchego do vasto canavial. O visgo arenoso de
um barro vermelho ofereceu resistência ao uso do arado puxado por bois. A
argila pegajosa optou – tiranicamente, não se pode negar – pelos pés dos

escravos.
za, atraso Aos poucos,pela
provocado entretanto,
emp áfia as
dostécnicas infiltraram-se,
nutrientes mastopologia
do solo e pela com lerde-
do
terreno, com altos e baixos, pouco afeito ao recebimento de máquinas;
2. Plantio – A etapa mais simples da manufatura do açúcar. O barro
esteve sempre à espera da fertilização da semente salvadora;
3. Colheita – Tarefa p enosa. Trabalho lento. Aind a h oje se faz com facão
e foice. Exige do h omem um a en ergia vital incomum. Debaixo d o sol, a céu
aberto, do amanhecer ao anoitecer, o negro embrenhou-se no canavial, a
cortar a cana uma a uma, deixando-se alagar em suor não somente pelas
altas temperaturas com também pelo esforço desprendido em uma ocupa-
ção rude e primária. O eito significou um espaço representativo de força e
resistência – o trabalho manual no seu paroxismo. Tanto que a expressão
“cair no eito” denota o sentido pejorativo de quem não possui habilidades
para tarefas menos sacrificadas;
4. M oagem – Problema maior da p rodução do açúcar, isto é, aquele que
invocou inteligência, criatividade e p ermanente conservação. A roda d ’água,
utilizada com freqüência nos “bangüês” até o século XIX, sintetizou uma
brilhan te inven tividad e d a engen haria mecânica. Os moinhos de rod a d ’água
foram introd uzidos pelos mouros em Portugal e posteriormente levados para
a Ilha da Madeira. “A roda d’água, sempre na vertical, tinha o d iâmetro d e
aproximad amen te sete metros. Acoplada ao mesmo eixo d a rod a d ’água ha-
via uma outra roda menor, dentada, chamada
rodete, que transmitia o movimento a uma roda
maior, esta horizontal e com o m esmo d iâmetro da
roda d’água e que se chamava bolandeira. Assim,
enquanto o rodete girava três vezes a bolandeira gi-
rava u ma só. O eixo vertical da bolandeira, revesti-
do de um cilindro dentado e reforçado com aros
de ferro, transmitia o movimento a outros dois ci-

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Cana, Engenho e Açúcar

lindros paralelos, um de cada lado, igualmente dentados e reforçados. Entre


esses cilind ros é que passava a cana. Por três séculos, esse engen ho manteve-
se sem significativas alterações, mas considerando-se a sua complexidade,
pod
pidase-se
as imaginar
operaçõesosdecuidad os que(GOMES,
moagem” inspirava Geraldo.
p ara que Engenho
não fossem interrom -,
& arquitetura
1998, p. 14-15).
A primeira modificação na técnica de moagem deu-se em relação aos
tambores que esmagavam a cana. Inicialmente verticais; posteriormente ho-
rizontais. As moendas horizontais resultaram num avanço porque facilita-
vam o encaixe da cana e d iminu íam os perigos de aciden tes, embora n ão os
eliminassem.
Repito: alguns engenhos recorreram à tração animal, porém a utiliza-

ção da rodaSód’água
produtiva. d eu-se
n o século XIXmais assidu amen
as inovações naste, em virtud
técnicas da me oagem
da sua iriam
agilidad
sur-e
gir. A máquina a vapor referendou a grande “revolução” na feitura do açú-
car. Importada da Inglaterra, subtraiu esforços humanos em favor de uma
melhor qualidad e de trabalho. O primeiro engenh o a vapor em Pernambu co
reporta-se ao ano d e 1817, embora Haiti e Cuba, centros de gran de produção
açucareira, tenham-se locupletado de seus favores ainda no século XVIII;
5. Cozimento – O caldo extraído da moagem era acomodado no  parol,
(o caldo frio), dando início ao cozimento. Várias tachas de cobre recebiam o
sumo d a cana, cada um a d elas aquecida em isolados fornos d e lenh a. A ino -
vação nessa etapa aconteceu igualmen te com u m século de atraso em relação
às Antilhas, quando da ad oção das fornalhas contínuas, ou seja, a dissemina-
ção de um ún ico fogo para várias bocas, através de um tún el que diminu ía
de d iâmetro até chegar a u ma cham iné, cujo cilind ro dep end ia do tam anh o
da fornalha. Tal invento denominou-se de trem jamaicano, por ter sido utili-
zado na Jamaica, outro centro de produção açucareira de reconhecimento
internacional;
6. Purga ou Purificação – Após o cozimento, despejava-se a calda em
recipientes com modelagem de cones. Colocadas invertidas em andaimes de
madeira, essas formas tinham um furo na base, orifício por onde escorria o
mel durante alguns dias. Bom lembrar que somente após a cristalização do
açúcar, o que acontecia entre 5 e 8 dias, os orifícios eram desarrolhados, de
modo a provocar quase um processo inverso de decantação, no qual o líqui-
do “sorvido” da sacarose caía em um porão, sendo de lá retirado pelo coco –
utensílio de longa vara com uma extremidade em molde de cuia, larga e
funda. Esse mel concentrad o seguia para a destilação com o fim de tran sfor-
mar-se em cachaça. A cachaça parece ter sido uma bebida nascida entre os
escravos: No início, a espu ma da primeira fervu ra d o caldo de cana, conside-
rada inútil, era abandonada em cochos, ao relento, para a alimentação dos

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Fátima Qu intas

animais. Esse mosto, ao receber os efeitos do sol, fermentava com facilidade.


Os escravos, talvez por necessidade de ingerir algo exótico, ou por simples
acaso, passaram a ap reciar o seu sabor. Converteu-se então em u ma bebida a
que
biu ochamavam de “água-ardente”.
seu consumo e a sua fabricaçãoO por
Reino proi-
conside-
rar os efeitos nocivos ao rendimento do trabalho.
O fabrico, entretanto, aum entou e, para surpresa de
todos, ascendeu à condição de símbolo de resistên-
cia ao domínio português – bebida de patriotas,
nativista (cf. CAVALCANTI, Maria Lectícia.  Açúcar 
no tacho, 2006).
Volto à purificação. Com o objetivo de chu-

par
caldoas grosso
imp urezas, costumava-se
depositado colocar
nos cones. um pouos
Decorridos co dias
de mnecessários,
assapê e d e os
água no
“cris-
tais” de sacarose apresen tavam -se pron tos para as etapas subseqüen tes. Após
a m aturação, ou seja, o condensamen to d o caldo, então solidificado em grãos,
o açúcar acomodava-se em 3 camadas: o mais branco, de m elhor qualidade, ocu-
pava a parte superior da forma, enquanto o mais escuro – o mascavo – assenta-
va-se n os espaços inferiores, sendo qu e, por último, repousava o cabucho, qua-
se preto, para u so animal. Os volumes, dep ois de retirados d as formas, cham a-
vam-se  pães de açúcar .
Originariamente as formas de pães de açúcar foram de barro, o que
vem a explicar a presença d e olarias nos engenh os desde o século XVI. Com
o passar dos anos, despontaram as de m adeira e as de ferro. Os açucares de
cores e valores diferentes atraíam igualmente lucros diferentes.
A casa de p urgar n ormalmente era espaçosa porque lá o açúcar perm a-
necia por algun s dias – entre 5 e 8 –, enqu anto qu e na moen da e n a casa das
caldeiras a sua passagem fazia-se rápida. Costumava-se dizer que pela casa
de purgar conhecia-se a produtividade do engenho, tal era a sua importân-
cia no complexo açucareiro. Segund o João Correia de And rad e, prop rietário
do Engenho Jundiá, que me concedeu uma longa entrevista, a casa de pur-
gar costumava ser bem protegida, e até escura, como se o local necessitasse
de descanso e afagos extremad os para a boa geração do p rodu to;
7. Secagem ao Sol – Seguia-se a secagem ao relento, método natural,
artesanal e quase primitivo. O local da secagem recebia o n ome de bagaceira,
ou seja, a seca do açúcar  que poderia ser a seca do bagaço ou dos referidos
pães. Assinale-se que o nome bagaceira adquiriu um conceito maior, repre-
sentativo da paisagem africana no en genh o;
8. Pesagem e embalagem – Depois de cuidadosamente pesado, era o
açúcar embalado em caixas de madeira, com a finalidade de serem transpor-
tadas e comercializadas. Tais caixas derivavam dos troncos das árvores da

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Cana, Engenho e Açúcar

den sa e robusta floresta, o que d enu nciava um per verso desmatamen to. So-
mente no século XIX, surgiu o armazenamento em sacos de algodão.
A Mata Atlântica, ainda inviolada, viu-se devastada por vários motivos:
habitat do canavial,
do açúcar e para o lenha
fabricodedefornalhas, materialaltares,
portas, janelas, para aspú
caixas
lpitosdeearmazenamento
mobiliário... em
Portugal. Uma exportação que vingou sem clemência. A arribação de muita
madeira de lei acentuou-se após o terremoto de 1755, em Lisboa, quando hou ve
maciços embarques para a Europa de jacarandá, pau d’arco e sucupira
(ANDRADE, Manuel Correia de. Geografia de Pernambuco, 1974, p. 27).
Na luta aguerrida pelo açúcar, o desmatamento deu-se de maneira
agressiva, sem o menor respeito, como se a avidez da cana não permitisse
migalhas de p rudência, sôfrega na su a invasão, com receio de possíveis con-

tra-ataques, a usurpar
com a jactância o que não era seu. E a devastação florestal avançou
da intemperança.

O canavial desvirginou todo o mato grosso do modo mais cru: pela queima-
da. A fogo é que foram se abrindo no mato virgem os claros por onde se
estendeu o canavial civilizador mas ao mesmo tempo devastador  (FREYRE,
Gilberto. Nordeste, 1985, p. 45).

Os tran sportes preferidos p elos senh ores de en genh o foram o fluvial e


o marítimo. Fluvial até a costa. Marítimo até o ponto de destino. De tal ma-
neira os rios tiveram imp ortân cia na vida d a bagaceira que se respon sabiliza-
ram pela localização dos engenhos ao longo de três séculos. A partir da im-
plantação das estradas de ferro (segund a metade do século XIX), construídas
pelos ingleses, a paisagem veio a modificar-se. Na verd ade, os ingleses possi-
bilitaram a interiorização d os engenh os ao introd uzir um novo m eio d e trans-
porte. A maioria dos rios, em Pernambuco, encontra-se na Zona da Mata, e
os engen hos, por sua vez, localizavam-se n a Mata Úm ida, isto é, na Mata Sul,
onde o massapê floresce com a galhard ia dos tirân icos imperad ores. Irman a-
dos ao rio, outros fatores “condicionaram” o desenvolvimento do bangüê: a
proximidade da Mata e a distância dos índios. Ambos interligaram-se aos
princípios seletivos da propriedade do senhor de engenho.
O atraso ocorrido nas inovações técnicas na região de Pernambuco é
fato incontestável. Durante três séculos, do XVI ao XVIII, as mudanças ocor-
ridas foram p oucas. Provavelmen te o m assapê, com generosidad e d e nutri-
entes, associado às condições climáticas e à regularidade pluviométrica, retar-
dou os avanços agrícolas. O arado, por exemplo, aqui chegou com um século de
retardo (já implantad o nas Antilhas), porqu e o barro vermelho, úm ido e vis-
coso, opunha-lhe resistência. Por outro lado, a topografia do terreno, com
aclives e declives, também empurrou o trator para terras mais planas.

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Fátima Qu intas

Houve um imobilismo técnico em Pernambuco. As regiões das Anti-


lhas e do Caribe mostraram-se precoces nas mudanças; quiçá porque o solo
não fosse tão fértil. É o caso d a Jamaica, que teve d e conviver com u ma terra
pobre, vitimada
os grandes por fortes ventos
melhoramentos e por constantes
em Pernambuco vêm tormentas.
a acontecerAssim sendo,
somente no
século XIX. Entre eles, distingo:
a. utilização sistemática d a irrigação, drenagem e ad ubos animais;
b. mudan ça d e m atéria-prima na feitura dos p ães de açúcar; fabricados
inicialmen te de barro, passam a ser de m adeira, de ferro ou de estanh o;
c. caixas d e m adeira para a comercialização são substituídas p or sacos
de tecido, poupando assim a agressão à Mata Atlântica;
d. aparecimento da chaminé na casa das caldeiras. Antes, a fumaça

esvaía-se pelas precárias


e. implantação frestas
do trem das telhas;
jamaicano – fornalha contínua – em substitui-
ção às fornalhas “individuais”;
f. utilização do bagaço da cana como combustível, desprezando-se a
lenha da madeira retirada da Mata Atlântica;
g. inversão da posição das moendas, de vertical para horizontal;
h. substituição d a cana crioula pela cana caiana, mais sumaren ta e rica
em concentração de açúcar.
Tais melhoramentos vão culminar com o aparecimento da máquina a
vapor (as primeiras, importadas da Inglaterra) que, apesar de ter sido
introd uzida em 1817, ganh ou realmen te maior consistência a p artir de 1870.
Por incrível que possa parecer, ainda no século XX, com a ascensão das usi-
nas e da industrialização, Pernambuco conviveu com engenhos moendo a
roda d’água. “No recenseamento efetuado em 1920 para todo o Nordeste,
encontram-se 5.370 engen hos movidos a an imais, 1.609 a vap or e 444 a águ a.
O elevado n úm ero de engen hos na região é explicável pelo fato de que m ui-
tos deles eram p equen os, espalhad os pelo Sertão e dedicados à p rodu ção da
rapadu ra” ( Apud  GOMES, Geraldo. Engenho e arquitetura, 2006, p. 39).
Em um panorama geral, sem entrar em minúcias de detalhes quase
sempre necessárias ao entendimento dos fenômenos, o Ciclo do Açúcar no
Nordeste brasileiro esboçou um gráfico inicial de grande prosperidade. Nos
séculos XVI e XVII, Pern ambuco foi o m aior representan te m undial do pro-
duto. No século XVIII, a d escoberta d o ouro n as Minas Gerais suscitou um a
migração interna de escravos, desarrumando os núcleos da produção
canavieira. Mesmo o enriquecimento na mineração não d irimiu a cobiça pela
terra. Esta, sim, trazia a h egemonia de qu e tan to cobiçava o colonizador. Os
que se favoreceram com o Ciclo da Mineração não d eixaram d e lado o apeti-
te pela agricultura porque dela man avam os possíveis títulos de nobreza. Em
paralelo à efervescência d o ou ro, o H aiti, então colônia fran cesa, conquistou

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Cana, Engenho e Açúcar

o posto, no século XVIII, de maior p rodu tor do mu nd o, o que vem a engros-


sar ainda mais a crise interna no Brasil. Com a Revolução dos Escravos ocor-
rida em 1791, no Haiti, dissolveu-se por lá a estrutura canavieira, impulsio-
nando Cuba ae assumir
Cuba soube, o papel adesituação
bem, aproveitar maior produtora mundial do
pós-revolucionária, ao século XIX.
importar do
Haiti escravos, mão-de-obra e p rocessos técnicos adotados para o p lantio. A
concorrência do Caribe e das Antilhas, junto com o Ciclo do Ouro, abalou,
sem d úvida, a “bonan ça” açucareira de Pern ambuco, levand o-o a um declínio
que vai reflorescer no século XIX, com menos vigor em razão do Ciclo do
Café. O surgimento da usina, no final do século XIX, sustentou o poder
canavieiro por alguns anos, mas não o “perpetuou” em Pernambuco – a
excelsa capitania da sacarose – para além dos primórd ios da segun da metade

do século XX.
aristocracia Embora tenha
açucareira, o aparecimento de uma
firmado o seu papelburguesia,
social emdescendente
décadas passa-da
das, apresentand o contemp oraneamen te rasuras p or interferências outras,
hoje, o Estado de Pernambuco reage às oscilações de produtividade do açú-
car. Desde 1980, constata-se um surto renovador entre as usinas exportado-
ras. O cenário modifica-se em circunstâncias sociais, sem qu e a terra, contu -
do, venha a perder o seu brasão de fidalguia, ainda que a alternância dos
ciclos açucareiros tenha assinalado uma das fortes variantes no “desmonte”
– entre aspas naturalmente – da oligarquia das famílias patriarcais.

A ESCRAVIDÃO
Assim como o en genho não perdeu a sua força social, a escravidão igua la-se
na mesma intensidade, com uma diferença fundamental: a ela adere a
culpa de u ma sociedad e qu e almeja d eslembrar a m ácula histórica. Uma
p atologia social que traz o gosto amargo d e  fel, tão distante d a doçura d e mel
do d ulcíssimo açúcar. Rima cru enta qu e exibe a fereza do sistema escravocrata.

   passado
Julgados traumático.
em conjunto,A os brasileiros
escravidão foitêm o que
o seu os psiquiatras
grande trauma. Para chamam
muitosuma
cor menos branca foi, em certo tempo, lembrança de-
sagradável de situação social infeliz de pais ou avós ou
de episódio vergonhoso do passado pessoal ou de famí-
lia (FREYRE, Gilberto . Novo mundo nos trópicos,
1971, p. 124).

O negro patenteou a representação do trabalho, da d ureza d e um a

atividade que reivindicou


apen as o vigor orgânico, m energia física
as igualmen te eo vigor
psicológica.
men tal Não
para lhe
sup bastava
ortar as

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Fátima Qu intas

p éssimas con d ições d e trabalho e as inú meras horas desprendidas no esfor-


ço repetitivo e monóton o. A paisagem da bagaceira revelava-se de tal man ei-
ra insólita que o trabalho d a manufatura d o açúcar avocou a si a qualificação
do
antedeplorável, do tirânico,
de um a escravidão qu edo bestial.
não nasceuOnportuguês
o Brasil, jáafirmou-se indolente
conhecida pelo di-
lusitano
desde 1448, quan do da imp ortação de m il escravos para serviços dom ésticos
– registre-se que, em 1551, Lisboa contabilizava um número equivalente a
mais de 9 mil escravos –, não n asceu a escravidão no Brasil, por certo, porém
aqui se estend eu por quase quatro séculos.
O desprezo pelo trabalho manual na socie-
dade brasileira decorre seguram ente d a escravidão,
um trabalho com rótulos de indignidade, portan-

to, nãoe merecedor


negro de reverências.
o seu empenho O açúcar
expressou-se foi o
com tama-
nho esmero que freou a revolução técnica na agri-
cultura em Pernambuco. Mais um paradoxo da Ci-
vilização do Açúcar. E por quê? Porque o negro
respon sabilizava-se pelo volume e otimização de tarefas passíveis de serem subs-
tituídas pela máquina. Postulado esdrú xulo tanto quan to verdadeiro, como to-
das as ambigüidades que evoluíram na sociedade brasileira.
O eito reclamou o negro, uma vez que o índio não se adaptou ao ritmo da lide
agrícola. Bom lembrar que o indígena era nômade, vivia da caça, da pesca, da
guerra; logo, de atividades da aventura, pouco convivendo com a partitura do
cotidiano – a agricultura, essa surgiu com a mulher e decorreu das tímidas cul-
turas de sobrevivência. Sem a aptidão física nem psicológica do autóctone para o
cultivo da cana, restava um outro tipo de escravidão: a africana. E o Brasil entregou
ao negro o processo civilizatório. Um débito que acusa o lado doloroso da cultura.

SABOR E DOCE

do alimento à gastronomia
Tudo que se mostra agradável, prazeroso, instigante, é doce. Do adjetivo
latino dulcis e, tem sabor como o do mel ou o do açúcar. Dá água na boca e
instiga as sensações palatais. Por analogia, percorre um vocabulário amplo,
ao fustigar os sentidos e consolidar emoções de deleite – basta rememorar
algumas expressões: “Quem a boca do meu filho ad oça, a minha beija”; “lua-
de-mel”; chamar a bem-amada de “doce” é elogio. Dizer que alguém é um
“alfenim” equivale a d izer que é u ma p essoa frágil – o alfenim d errete-se em
contato com a saliva, lhano como a sua aparência.

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Cana, Engenho e Açúcar

A satisfação de saborear um doce foi tão intensa que não se comia açú-
car nos engenh os na sexta-feira santa p or representar um prazer incompatí-
vel com a morte de Nosso Senhor Jesus Cristo.

fazemOparte
gosto
daderiva
nossa do cultural.
culinária. O Aprende-se a saborear
sabor se educa; por issoaqueles pratos
gostamos que
de uma
determ inad a receita e não de outra. Há todo u m ap arato estimu lativo para a
escolha do que se qu er comer. E este sabor dep end e d o jeito de p reparar o
alimento. Daí a importância em separar-se o alimento in natura do alimen to
cozinhado, regado a temperos, feito para açular o apetite. A gastronomia
resulta da cultura, ou seja, da combinação dos ingredientes e da forma do
cozinhamento. O antropólogo Levi-Strauss, no seu livro O cru e o cozido,
apresenta com clareza essa d up la função: o cru equivale ao estado d e nature-

za; o cozido,enquanto
tos cozidos, ao cultural. Exemplificando:
os africanos a casa-grande
apreciavam os assados.preferia os alimen-

 Na cozinha da casa-grande fervia-se mais do que se assava. Fervia-se fritan-


do com manteiga inglesa, azeite doce de Portugal, banha de porco mineiro,
óleo de dendê, de Angola, Congo e Guiné. A “constante” do passado canavieiro
era o caldo das carnes cozidas (CASCUDO, Câmara. Sociologia do açúcar,
1971, p. 173).

Torna-se relevante entender tal conceituação, de modo a desvendar o


processo da culinária que vai do natural à gastronomia; do que a natureza
oferece ao que o homem reelabora; do que se refere ao alimento  per se ao
alimento transformado em acepipes pantagruélicos. Enfim, dos nutrientes
virgens à comensalidade refinada.
Tudo indica que o sabor doce é oriental. Excessivamente doce.
Dulcíssimo. Os mouros o disseminaram pelo mundo afora. Impressionante
o consum o de mel no Oriente. As carnes salgadas servidas com doce – costu-
me que julgamos saxônico – são de origem moura. Mulheres gordas, barro-
cas, as árabes, fartas de lambu zar-se no m elaço. E o doce pern ambucano é o
mais doce dos doces. Sobressai, inclusive, entre as outras regiões do Brasil.
Doce para ninguém botar defeito; tanto que o açúcar usado nos doces de
fruta canibalizam o sabor d a fruta, esta imolada p ela arrogância d a glicose.
Os nossos índios e os africanos que para cá vieram – da África O ciden-
tal – não conheciam o açúcar. Usavam mel na preparação das receitas. E
cabem também aos árabes, desde tempos remotos, a difusão do mel pela
Europ a e o m odo d e como usá-lo na preparação de bolos e doces. Os mostei-
ros portugueses aprimoraram-se como produtores de mel, hábeis apiculto-
res. Os frades engend raram sobremesas e velas de mel.

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Fátima Qu intas

À Europa o açúcar chegou, oficialmente, no


século XV, embora já se tenha notícias de sua pre-
sença nos séculos XIII e XIV. Foi utilizado inicial-
mente
gestivo,como remédio
diurético. – calmante,
Na verd cicatrizante,
ade, os começos deramdi--
se pelos laboratórios dos boticários. (cf.
CAVALCANTI, Maria Lectícia.  Açúcar no tacho, p.
3, 2006).
Pern ambuco é o açúcar. O massapê. A cana. Na Zona da Mata abrolhou
a Civilização do Açúcar, por entre o vasto latifúndio de uma planta que se
quis única, absoluta, autoritária.

BIBLIOGRAFIA
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A FAMÍLIA PATRIARCAL

Personagens e Costumes

Fátima Quintas
antropóloga e ensaísta

O senhor de engenho não foi


apenas um ser econôm ico , mas uma
entidade social com dotes vitalícios de
imagem e de poder.
Fátima Quintas

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SUMÁRIO

Família: da origem lusitana à formação personalizada | 73


A plasticidade d o português | 73
Família: a unidade colonizadora | 74
Uma sociedad e mon ista | 76
Tédio e ócio em um Brasil de genitalidade | 76
A popu lação nativa | 88
A fêmea | 77
O macho | 79
Os corredores da casa-grand e | 80
A reclusão da p ortuguesa | 80
O rito de p assagem da Primeira Comunh ão | 82
A festa de casamen to | 84
O círculo da end ogamia | 86
Decadên cia da sinh á-don a | 88
Ecos da africanidade | 90
A imagem d a mãe-preta | 90
A prostituição doméstica | 91
A culinária e a negra | 94
A influência deletéria d a sífilis | 99
A religião d o sexo | 101

Bibliografia | 106

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Fátima Qu intas

FAMÍLIA
 Da origem lusitana à formação personalizada
A PLASTICIDADE DO PORTUGUÊS

O caráter cosmopolita do português – uma mistura de raças e culturas –


assegurava-lhe uma boa capacidade de adaptação, transformando-o, antes
de tudo, num desbravador de caminhos, um plástico em sua maleabilidade
cultural. Do cosmopolitismo assomou a flexibilidade psicológica que facilitou o
ajustamento, esse quase eclético, a emendar-se da terra à gente da terra. A
“ind efinição” étnica lhe trou xera grandes vantagens que, somadas ao tempera-
mento latino, fez do português um arauto da aventura. As adversidades do
trópico não chegaram a ser uma barreira de difícil enfrentamento, o que teria
sido obstáculo intransponível para o inglês, reservado no seu “purismo” étnico.
Várias razões contribuíram para que o processo de estabilização ocorresse em
aparente harmonia. Em primeiro lugar, Portugal detinha características
bicontinentais, influenciado pela cultura européia e africana. Configurava-se,
em alguns mom entos, mais África que Europa. Essa bicontinentalidade, analisa-
da à luz do processo de acomodação de um povo, produziu conseqüências
relevantes: protegeu o p otencial adaptativo do reinol ao tempo em que alargou
os horizontes culturais, ao evitar a formação de uma personalidade social ensi-
mesmada em sectarismos e ortodoxias.
Além dessa plástica cultural instigadora de mentalidades mais transigen-
tes, o português guardava a plástica religiosa. Duas religiões o envolviam – o
cristianismo e o islamismo. Fortes na sua expressão ritualística, deixaram marcas
profundas no espírito místico do lusitano.
Bicontinentalidade, plástica cultural e du alismo religioso dizem do portu-
guês como um elemento propício aos desdobramentos geográficos e à
aclimatação, superando em proporções significativas a reclusão étnica de ou-
tros povos. O eurocentrismo atenuava-se na mescla ibérica. Há ainda que se
considerar a importante, a imp ortantíssima influên cia moura. Não somente n a
religião ela se embrenhou, como também n os costum es, nos hábitos, na arquite-
tura, nas normas sociais e, sobretudo, no aprendizado de técnicas agrícolas.
Aliás, de técnicas especialmente tropicais. Não fora essa predominância, o por-
tuguês estaria inapto a assumir o mundo brasileiro nordestino.

Sem a experiência moura, o colonizador teria provavelmente fracassado nes-


sa tarefa formidável. Teria fracassado, impotente para corresponder a condi-
ções tão fora de sua experiência propriamente européia (FREYRE Gilberto.
Casa-grande & senzala, 1966, p. 229).

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A Família Patriarcal

FAMÍLIA
a unidade colonizadora

A
seudimen
grau são histórica da na
de importância família p atriarcal
sociedade justifica
brasileira; fi-
gurou, no passado colonial, como a instituição de
maior peso. Aliás, contemporaneamente, ainda agre-
ga variáveis de sup erior valia.
A história do brasileiro não poderia ser
reconstituída ao largo da engrenagem familiar, uma
vez que uma e outra dialetizam-se na formação de
um núcleo de caráter doméstico. O Brasil antigo foi um Brasil essencialmente de

família.
tivo e o Nela se p rocessaram os outros brasis: o político, o monárquico, o federa-
republicano.
Um Brasil de pais, de mães, de filhos, de netos, de bisnetos, de escravos,
de noras, de genros, de tias, de tios, de comadres, de compadres... reverencia-
vam uma  família extensa e cristocêntrica. Extensa, por incorporar membros aos
refúgios mais íntimos, os tradicionais agregados; cristocêntrica, por adotar o
cristianismo como força motriz da sua dinâmica. Um Brasil alimentado por re-
lações domésticas, cheio de filigranas e de rotinas. Um Brasil submerso na con-
vivência do casulo privado.

E nenhuma história mais natural do homem – ou de uma sociedade – que a de


sua vida de família; e esta, em termos crus, é a história do seu sexo. O sexo do
indivíduo não apenas biológico mas social. (...) da raiz dos seus cabelos, sensível
ao cafuné ou ao trinco voluptuoso por mão de mulata em cabeça de ioiô ou de
iaiá, às pontas dos dedos dos pés aristocráticos, por sua vez vibráteis às comi-
chões provocadas pela extração, às vezes doce como uma carícia sexual, de bi-
chos aí encravados (FREYRE, Gilberto. Vida, forma e cor. 1962, p.114).

Tudo leva a crer que o caráter exacerbado da fundação familiar no passa-


do patriarcal é proporcional à ausência do Estado na empreitada da coloniza-
ção. A maximização do esteio familiar em muito decorreu do deslocamento do
público para o p rivado. Tendo sido tarefa de particulares, tornou-se mais fácil a
sua viabilização através de batalhas individualizadas e distantes da burocracia
impessoal. É bom que se enfatize que o processo colonizador não foi obra do
Estado nem tampouco de nenhuma companhia de comércio, e sim de pessoas
isoladas que se aventuravam em terras longínqu as e inóspitas. Afinal os trópicos
significavam um território desconhecido, onde tudo poderia acontecer. E acon-
teceu.

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Fátima Qu intas

O Estado, afastando-se do controle sobre o indivíduo, concorreu direta-


mente para o  familismo da sociedad e p atriarcal, propiciand o uma ambientação
mais doméstica, erigida em bases de parentesco, consangüinidade, afinidades e
relações de dependência.
Parecem tão indubitáveis os nexos convergentes do p rivatismo d oméstico
que a estrutu ra da casa-grand e, com o seu alto poder de aderência social, cano-
nizou as diversas faces do patriarcalismo. Exemplifico: os nascimentos, os
batizados, a Primeira Comunhão, o casamento, os partos, a morte, e até o cemi-
tério, compuseram o cenário do doméstico. Nada esteve fora do seu alcance.
Dentro da concavidad e de família tudo desfilou.
O lastro doméstico, portanto, arregimen tou o domínio de forma fun dan te.
Nem m esmo a Igreja, que surge como um a flâmula de alta, altíssima ingerência,

pôde lhe fazer


brepujar-se frente. Disputou,
em vantagens. No finaldisputou, disputou...
das contas, perdeu a Mas não Assim,
batalha. conseguiu so-
o priva-
do revelou-se único na auto-suficiência e no “governo” régio. Uma família
acasalada ao massapê, hierática na condição de senhora nobre e fidalga.
Os seus aspectos econômicos, sociais e organizacionais sobrepujaram os
possíveis elementos competitivos. Do que se conclui que a família albergou a
un idad e produ tiva máxima, a célula mestra do ap arelho colonial. Lastreada na
dimensão extensa e cristocêntrica, no patriarcalismo polígamo, e na trilogia ét-
nica, constituiu-se substantivamente plural. O domínio de todas as instâncias
disseminou-se através de sua morfologia, nervo polarizador de ânimos diversi-
ficados e do poder unitário e múltiplo. O que quero dizer com isso: a família
reuniu todas as ramificações da sociedade; nela preponderou uma ação
centrípeta, capaz de albergar os mais variados problemas.
A soberania da casa-grand e transcendeu os limites do dom éstico, sem sair
do doméstico, ao ensejar um cenário autocrático e oligárquico, onde o
 paterfamilias atraiu para si um arrogante monopólio. Autocrático por ser repre-
sentado por uma única pessoa; oligárquico por ser o poder dominado por uma
classe ou grupo de famílias. Em suma: o  paterfamilias referenciou o sinal distin-
tivo do cerco privado. Os nossos bisavôs prezaram a união de todas as confluên -
cias personificadas no absolutismo familiar. A célula mater  concentrou o ponto
angu lar das gentes que habitaram os engenhos de outrora. Tud o se resum ia às
circunstâncias privadas, ponto alto e mais que exponencial de suas vidas.
A casa-grande consignou a estrutura clássica – clássica no sentido socioló-
gico – da en genharia de família; perdurou por quatro séculos, chegan do até os
nossos dias, não enquanto edifício arquitetônico, mas enquanto figuração
emblemática da história colonizadora. Tentarei percorrer os seus desvãos: es-
conderijos, aposentos, alpendres, de modo a pintar um quadro capaz de dar
visibilidade aos segredos que por lá deambularam. E o que se passou nessa casa-
grande?

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A Família Patriarcal

UMA SOCIEDADE MONISTA

O portu guês plasmou-se ao contexto que emergia: gerou uma sociedad e pauta-
da
piosnoúnicos
monismo – concepção
–, com segundoimperativa,
uma agricultura a qual a realidade é constituída
monocultura, com umpor princí-
a concen-
tração de renda latifun diária, monoeconom ia, com um a regência isolada do pa-
triarca, monopoder, com uma sexualidade dirigida ao macho, monossexual, o
que a identifica como sociedade patriarcal, isto é, reveladora de convergências
para o patriarca. Do que se deduz que visões monistas e autoritárias fizeram
parte do cenário colonizador. Aristocrática – a terra como título nobiliárquico –
, excludente – a escravidão selando fortes marginalidades –, plena de exuberân-
cias – da cana ao esplendor das festas –, a sociedade patriarcal ergueu -se à som-

bra e ao sol dos pilares do açúcar.


TÉDIO E ÓCIO EM UM BRASIL DE GENITALIDADE

O cotidiano doméstico sexualizou-se por entre as etnias que o formaram. Sob


formas diferentes: umas moderadamente, outras exacerbadamente. O por-
tuguês, um lúbrico por excelência, emprenhou à brava. Para cá veio uma
massa de machos dispostos a cum prir a tarefa do p ovoamen to. Cum priram-
na com vontade e com garra. Ciosos, que o eram, de sua virilidade, cerca-
ram -se d e estímu los genitais, os mais extravagan tes. Nesse aspecto, os lusita-
nos comportaram-se com magnitude.
O regime robusteceu o ócio que, quando bem conduzido, é o melhor
celeiro de criatividade, a lerdeza, a preguiça e, conseqüentemente, o erotismo.
Qu anto maior o nú mero de horas vagas dos senhores, maior o nú mero de es-
cravos e tanto maiores o erotismo e a depravação. Uma relação de causalidade
entre o pod er econôm ico e o d esadoro sexual. O ócio atingiu tal monta que se
chegou a associá-lo ao açúcar no sangue. Engano. O açúcar responsabilizou-se
apen as ind iretamente pela prom iscuidad e moral e sexual. No fun do, a sua inter-
ferência concentrou-se no monopólio da cana, na repulsa à policultura e no
apelo à escravidão, todos geradores de m odelos deformantes.
O ócio aliou-se à genitalidade p ara desenhar as matrizes dominad oras do
mundo colonial; foi o grande cúmplice das fantasias eróticas, da permissividade
sexual e da imaginação da libido. A ele se atribui a maior dose do tempero sexual
que o português conservou. Devotado ao nada fazer, o patriarca ia levando a
vida com o objetivo de enriquecer em meio a uma rotina monótona, flanando
de um lado para o outro, à disposição da própria criatividad e e à d isposição dos
arroubos penianos. A inação gera necessidades sexuais provenientes dos vazios
psicológicos. O pórtico da casa-grande cheirava ao prazer da carne e à canseira
de hom ens indolentes que deliravam ao vigor dos sonh os da concupiscência.

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Fátima Qu intas

(...) A vida dos aristocratas do açúcar foi lânguida, morosa. (...) Os dias se
sucediam iguais; a mesma modorra; a mesma vida de rede, banzeira, sensual. E 
os homens e as mulheres, amarelos, de tanto viverem deitados dentro de casa e
de tanto 1966,
senzala, andarem de rede ou palanquim (FREYRE, Gilberto. Casa-grande &
p. 466-467).

A rede – de origem am erínd ia – resum ia o escud o da preguiça dentro d o


molusco patriarcal. Interessante assinalar que os índios dela fizeram um uso
benéfico. Entretanto, portugueses e portuguesas apropriaram-se de maneira
escandalosa do seu lado negativo, ou melhor, transformaram-na em objeto de
moleza e de lascívia. A tão decantada rede acomodou a inatividade do patriarca.
Rede que aconchegava o corpo encharcado da astenia do tédio. Rede confor-

tando o cansaço do cansaço inútil. Rede reservatório de insuperáveis inoperâncias.


Ociosa, mas alagada de preocupações sexuais, a vida do senhor de engenho tor-
nou-se uma vida de rede. Rede parada, com o senhor descansando, dormindo,
cochilando. Rede andando, com o senhor em viagem ou a passeio debaixo de
tapetes ou cortinas. Rede rangendo, com o senhor copulando dentro dela. Da
rede não precisava de afastar-se o aristocrata para dar suas ordens aos negros;
mandar escrever suas cartas pelo caixeiro ou pelo capelão; jogar gamão com
algum parente ou compadre. De rede viajavam quase todos – sem ânimo para
montar a cavalo: deixando-se tirar de dentro de casa como geléia por uma colher 
(FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala, 1966, p. 466).

Em cada aposento da casa-grande, a sexualidade expressou-se. Cedo se


desenvolveu na penumbra do vácuo. Esteve presente em quase todos os mo-
men tos da vida cotidiana: no quarto d e dormir, nos marquesões da sala de jan-
tar, na sonolenta rede que exercia uma sedução especial...
A família patriarcal consolidou-se numa paisagem sensual, polarizada en tre
o relaxamento e as sensações libidinosas. A pasmaceira e o sêmen invadiram o
doméstico. Adultos perdidos no “atoleiro da carne” e na inércia do corpo. Pre-
guiçosos, mas reprod utores infalíveis, orgu lharam-se da viril aristocracia. O Brasil
colonizador particularizou-se por intensas modorras e por “teimosas” sexualidades.

A POPULAÇÃO NATIVA
A FÊMEA

Dona de um corpo rijo em musculatura, sem as terríveis estrias, as


deforman tes celulites ou qu aisquer outras m azelas que o d esgaste do m un do

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A Família Patriarcal

contemporân eo imprime ao feminino, a mulher indígena sorriu alegre para o colo-


nizador. Anestesiada como uma criança diante do brinquedo recebido. O mundo
derramava-se aos seus pés; ela, vigorosa na capacidade de entregar-se inteira, cabelos
molhados, pele bronzeada
Alumbrou-se pelodiante
a cunhã sol causticante,
do colonopronta para a oferenda
recém-chegado, do de
pleno prazer.
afeta-
ção nos seus trajes europeus: roupas indevidas, adereços modernizantes, porte de
ocidental. Dele brotavam o desconhecido, o fantástico, o misterioso, o que por trás da
cortina pode acontecer de enigmático. Mais ainda: os “cosméticos” sofisticados,
com saibos de civilização, alguma coisa fantástica, sem tradução imediata. De
longe, de caminhadas adversas, falando língua diferente, com a tez branca e os
cabelos pretos, enfeitiçava a gentia, ansiosa por experienciar as carícias européias.
Tudo lhe era excitante no litoral brasileiro. Do cheiro da pele ao perfume ativo, exa-

lando aromas
divinizado. Nãoafrodisíacos.
hesitou dianteE de
a mulher deixou-se
tanta novidad seduzir
e. O eu por esse
ropeu trazia homem
o progresso
com todas as incontáveis vantagens. A cunhã aquiesceu doando-se freneticamente.

O ambiente em que começou a vida brasileira foi de quase intoxicação sexual.


O europeu saltava em terra escorregando em índia nua; os próprios padres da
Companhia precisavam descer com cuidado, senão atolavam o pé em carne.
 Muitos clérigos, dos outros, deixaram-se contaminar pela devassidão. As mu-
lheres eram as primeiras a se entregarem aos brancos, as mais ardentes indo
esfregar-se nas pernas desses que supunham deuses. Davam-se ao europeu por 
um pente ou um caco de espelho (FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala,
1966, p. 103, o grifo é meu)

A própria distância cultural serviu de bússola para o fascínio. Os rituais,


os mimos sofisticados e as “bugigangas” imp ortadas pontu aram cham amen tos
irresistíveis. A cerimôn ia exibia o êxito completo. A índia vivenciou-a sem restri-
ções, como presas passivas, à mercê do exercício absoluto do encanto – hom ens-
deu ses. Para aquém e para além dos mares, o lusitano espraiava-se na proeza do
hedonismo, ele, um franco atirador, acostumado a beijar donzelas portuguesas.
Paulo Prado, ensaísta do livro  Retrato do Brasil, espantou-se diante das
primeiras impressões que os cronistas nos deixaram sobre a moral sexual entre o
gentio. Impressões de pasmo e de horror. O mesmo acontece com Gabriel Soa-
res de Souza em relação aos Tup inam bás: são desregrados e não há pecado de
luxúria que não cometam. O padre Nóbrega também se alarma com o elevado
número de mulheres que os portugueses têm e com a facilidade com que as
abandonam. As descrições falam de uma moral lassa, desmedida, em face dos
desejos sexuais. Para se compreender o complexo indígena, torna-se necessário
desprender-se dos princípios ocidentais. As idéias de fidelidade e de sexualida-
de afastam-se dos parâmetros por nós concebidos. A cunhã sentiu-se atraída

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Fátima Qu intas

pelo homem branco – o oposto dos seus pares: índ ios nômades. Daí o espanto
das discrições acima textualizadas.
E para cá, ressalte-se, não desembarcou nenhuma elite portuguesa com
dotes de primorosa
de homens, educação.
vocações Nem
explícitas paraa erudita nemsobras
o erótico, a sexual. Ao contrário,
do banquete restos
ibérico. Se
não foram os degredados tão anunciados, historicamente falando – em decor-
rência das Ordenações Manuelinas (1521) –, foram h omens ambiciosos, capazes
de enfrentar duros obstáculos para atender aos ímpetos da intemperança.

Para a formidável tarefa de colonizar uma extensão como o Brasil, teve Portugal
de valer-se no século XVI do resto de homens que lhe deixara a aventura da
 Índia. E não seria com esse sobejo de gente, quase toda miúda, em grande parte

  plebéia e, além
fraca que do mais, moçárabe,
nos portugueses fidalgosisto
ou é,nos
comdoaNorte,
consciência
que sedeestabeleceria
raça ainda mais
na
  América um domínio português exclusivamente branco ou rigorosamente euro-
 peu (FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala, 1966, p.103).

E alumbrou-se a cunhã. Quem sabe, o caminho mais próximo da sua


condenação.

O MACHO

Tanto a índia quanto o índio congregaram o capital básico que o colono encon-
trou em terras brasileiras, ou seja, as referências para o prazer e para o trabalho.
No prazer, a fêmea satisfez plenamente; no trabalho, o macho decepcionou.
Decepcionou por incompatibilidade cultural, por incapacidade de submeter-se
ao sistema do eito. Não resistiu; foi aniquilado pelas exigências técnicas e
emocionais da lavoura d a cana, a requerer um a saúd e física e m ental inigualável,
que só o africano, mais tarde, ostentaria.
Em estágio cultural nômade, os nossos indígenas estavam acostumados a
um ir e vir permanente: a caça, a pesca, a guerra. Os atos repetitivos da rotina
não lhes agradavam. Apen as o conviver com a natureza lhes renovava o apetite
de vida. Tais elementos dificultaram o português a fazer u so da m assa autóc-
tone. Sem as maravilhosas iguarias da Índia, restava a imensidão da terra a
ser explorada. A agricultura seria o germ e latente da colonização qu e se ini-
ciava. Não h avia ou tra alternativa. Levar a term o o trabalho d a lavoura re-
presen tava a saída possível. Assim foi feito. A princípio, com o índ io escravi-
zado, mas sem os resultados à altura d a ambição portugu esa.
E o reinol, melhor dizendo, o português, apelou para o africano.

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A Família Patriarcal

OS CORREDORES DA CASA-GRANDE
A RECLUSÃO DA PORTUGUESA

A bagaceira não poupou a vida da mulher. Fê-la um ser amorfo, sem vonta-
de, pron ta para agrad ar à paisagem d a cana, tão imp erativa nos seus quere-
res. Madrugadoramente aprendeu a portuguesa o caminho da sujeição por-
que assim a ordem social determinava. O m odelo patriarcal usou d e todos os
artifícios, contanto que essas mulheres introjetassem sentimentos de sujei-
ção e pacatez. E apressou-se em entronizá-las em retiros quase religiosos;
guardá-las para não serem vistas; reservá-las em ermos enigmáticos; cobri-
las com o véu da pudicícia. Assim garantia uma feição doméstica adequada
aos ditames do patriarcalismo.
E o retraimento começava pelos próprios aposentos. A disposição dos
cômodos mostrava uma arquitetura conventual, a recatar a mulher, ou me-
lhor, a marginalizá-la na vida cotidian a. Além d a reclusão física, sofreu a vigi-
lância d e argutos observadores: da m ucama, sempre ao seu lado; do m arido,
com olhos e ouvidos atentos para rep reend ê-la; do pai, a mensurar o tama-
nho da prole. Ao derredor, dedos em riste.

O isolamento árabe em que viviam as antigas sinhás-donas, principalmen-


te nas casas-grandes
mente de engenho,
escravas passivas. tendo
(...) Basta por companhia
recordarmos o fatoquase que durante
de que, exclusiva-o
dia, a moça ou menina branca estava sempre sob as vistas de pessoa mais
velha ou da mucama de confiança. Vigilância que se aguçava durante à noite.
  À dormida das meninas e moças reservava-se, nas casas-grandes, a alcova,
ou camarinha, bem no centro da casa, rodeada de quartos de pessoas mais
velhas. Mais uma prisão que aposento de gente livre. Espécie de quarto de
doente grave que precisasse da vigília de todos (FREYRE, Gilberto. Casa-
grande & senzala, 1966 , p. 363-364).

O “isolamento árabe” de que fala Freyre alongava-se na discrição de


sequer expressar-se diante d os questionam entos do m arido. Sua voz não de-
veria ser ouvida entre conversas de homem, a não ser para pedir vestido
novo ou rezar pelos filhos. Às vezes cantar modinhas para afugentar a
pasmaceira d a casa-grand e. A med ida do retraimen to deveria correspon der
à intensidad e da polidez feminina.
Guardadas em fortalezas babilônicas, a mansidão m uçulmana exortava
modelos a seguir – verdadeiros cativeiros que deveriam abafar os arrufos de

libertação. Mulheresdaacanhadas,
maridos conscientes porque
sua em páfia, assim
a viver n os evitavam desconfortos
seus claustros, para
sufocadas na

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Fátima Qu intas

solidão de quem não pode se pronunciar nem tampouco alimentar enleios


para além dos muros, dos grossos muros de suas alcovas.
A prisão física indicava outras prisões: a social, a cultural, a política. O
que se queria
tantes, ou peloeramenos
que essa mu lher estivesse
distanciada alheia
dos trâmites queaosa acontecimentos impor-
cana reivindicava. Em
casa, sob os olhos vigilantes que a orbitavam ela se viu cerceada nos apelos
pessoais.
O excesso de mordomia agigantava os níveis de cobrança. Ela, a mulher,
raramente se sentia à vontade, ora acudindo a um, ora acudindo a outros, e
esquecend o-se de acud ir a si mesma. Sem bu scar um apren dizado educacional
compatível à sua posição de esposa de patriarca, falhou na relação a dois. A
reclusão fabricou u m quad ro de timidez e d e acídia diante d o volum e de escrú-

pulos que
os brios donão
conhlhe foram poupados.
ecimento, Comhuma
conviveu com omensubserviência dependente,
s solitários porque reduzidasem
no
seu potencial reflexivo. Um ser de estufa, medularmente postiço.
A ratificar o estilo da casa-grande, a preocupação de resguardar os perso-
nagens ali viventes prevaleceu. A mulher talvez tenha sido o elemento mais
sacrificado. Não só foi envelopada em folhagens artificiais, como protegida da
ambiência externa.

 Mas a essa mulher passiva, ante o marido, tocava a distinção de ser uma espécie
de objeto quase religiosamente ornamental dentro da cultura de que fazia parte,
especialmente como esposa e como mãe (FREYRE, Gilberto.  Modos de homem
& modas de mulher, 2002, p. 42).

A casa compendiou o espaço que lhe confiaram e, assim mesmo, até certo
pon to: com parcimôn ia e prudên cia, sem exageros de individualidad e; a prestar
contas de seus atos, mínimos atos, como se a vida dela exigisse o máximo de
perfeição.

  Mas através de toda a época patriarcal – época de mulheres franzinas o dia


inteiro dentro de casa, cosendo, embalando-se na rede, tomando o ponto dos
doces, gritando para as mulecas, brincando com os periquitos, espiando os ho-
mens estranhos pela frincha das portas, (...) parindo, morrendo de parto
(FREYRE, Gilberto. Sobrados e mucambos, 1981, p. 94-95).

Clausuras femininas eclodiram d esse ambiente de cárcere. As visitas, quan-


do aconteciam, eram das comadres e dos padres. Das comadres que vinham
conversar sobre assuntos prosaicos ou queixar-se de doença ou de falta de di-
nh eiro; do padre, para aferir o grau de religiosidade ou recomen dar n ovos ap ri-
moramentos – a perfeição em primeiro lugar. Exemplo de comportamento.

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A Família Patriarcal

Cópia fidedigna de Maria, a Virgem Santíssima. O culto à Virgem Maria, no


Brasil, foi exageradamente praticado. Talvez com a finalidade de neutralizar o
autoritarismo da casa-grande, assim como apaziguar as contradições que o
patriarcalismo exaltou.
(...) A devoção católica pela Virgem Maria, glorificada como Rainha – Regina –
 , em nenhuma outra região do mundo parece se ter tornado tão forte como no
 Brasil. Resultado, talvez da extrema idealização da mulher aristocrática e mes-
mo da mulher negra – através do simbolismo da Mãe Preta – como componen-
tes básicos e vitais do complexo de vida familiar nas plantações. Complexo de-
senvolvido durante os dias da escravidão (FREYRE, Gilberto. Novo mundo nos
trópicos, 1971, p.177).

E de quantas Marias constituíram-se as casas-grandes?

O RITO DE PASSAGEM DA PRIMEIRA COMUNHÃO

O circuito patriarcal produziu ritos de passagem bruscos, repentinos. Não se


preocupou com as cronologias, tampouco com elaborações psicológicas conve-
nientes. A cana exigiu u m amad urecimen to precoce em nom e da sua prosperi-
dade. Que homens e mulheres se tornassem adultos o mais rápido possível.
Sem ajustamentos. Do dia para a noite. Não havia tempo para delongas. Aliás, a
categoria infantil não foi valorizada. As crianças eram suportadas enquanto
anjinhos de cachos nos cabelos, beicinhos de bebê, rostos gorduchos e risonhos
de qu em n ão sabe de n ada, pequeninas, aind a capazes de suavizar o mau-hu-
mor dos mais velhos. Até aí, acarinharam-nas com d oses de ternura. Idolatradas
em nichos beatificados, confundiam-se com as imagens dos santos.

 Até certa idade, era idealizado em extremo. Identificado com os próprios anjos
do céu: andando nu em casa como um Menininho Deus. (FREYRE, Gilberto.
Sobrados e mucambos, 1981, p. 68).

Mas esperem . Não se contentem com taman ha benevolência. Logo mais a


inversão de papéis acontecerá. Pois é. Depois alongavam -se, essas mesmas ado -
ráveis criancinh as, em ind esejados meninos e a etapa subseqüen te emergia de
pronto. Transformavam-se em artificiais adolescentes, hirtos e endurecidos na
falsa condição de adultozinho. Até os 6 ou 7 anos, bem-vindos. A partir daí,
rechaçados e, até mesmo, ostensivamente repelidos.

O tornar-se “maduro” assumiu ares de imperativo categórico, porque o


canavial não perm itia deslizes de infância. Portanto, os ritos de passagem foram

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Fátima Qu intas

praticados com um rigor inigualável. Rigor e precocidade. Por conseguinte, a


criança pouco se entendeu com a meninice. Foi órfã da sua pu erilidade. A impa-
ciência de um crescimen to fora de hora encarregou-se de arrancar-lhe dos bra-
ços
paraascolonizar
bonecas terras
de pano
tãofeitas
vastaspelas
e os negras. Afinal,virgens
úteros ainda o Brasil precisavapor
clamavam defecun-
gente
dação. Crianças por pouco tempo.

Havia uma hierarquia a ser respeitada: hom ens ditadores, mulheres sub-
missas, crianças esquecidas e abafadas. Ao invés de brincar, aprender o mais
rapidamente as regras adultizantes. Ciclos vitais interrompidos. Nada de trans-
gredir um processo que se quer vitorioso desde que montado na direção certa.
E vitórias não faltaram ao empório açucareiro, ainda que à custa d o sacrifício da

mulher e da na
entronizado criança. E por quevinda
“arrecadação” não admitir, do homem também, severamente
do massapê.

 Desde os tempos primeiros, a família brasileira teve como sustentáculo uma


tripeça imutável: pai soturno, mulher submissa, filhos aterrados. (PRADO,
Paulo.  Retrato do Brasil, 1962, p.106).

Sob o verde do canavial, dogmas espalhavam-se, alguns culturais, ou-


tros cristãos. A trama sociológica demandava para a mulher estados de can-
didez e para as crianças “constrangimentos” infantis. Cedo, as crianças de-
veriam começar a rezar porque os pecados não tinham idade. A sociedade
patriarcal exortou precocidades em todos os ângulos, inclusive no arquite-
tar pecados antes do tempo. E antes do tempo absolvê-los. Para tanto, fazia-
se necessário injetar doses d e santidad e.

 Meninas de doze, treze, quatorze anos. “Santas imaculadas”. “Pálidas madonas”.


“Marias do Céu”. “Marias da Graça”. “Maria das Dores”. “Marias da Glória”.
E eram de fato umas Nossas Senhoras (FREYRE, Gilberto. Casa-grande &
senzala, 1966, p. 369).

Prematu ramen te as crianças tornavam-se homens e mu lheres. Deixavam


as espontaneidades para adotar obrigações dissociadas da idade mental e bioló-
gica. E o começo dava-se na liturgia da Primeira Comunhão, mediante a qual
asseguravam o caminho da virtuose, convictas do crédito de meninas beatifica-
das, então prontas para catar as ordens dos adultos.

 Muito cedo, no Brasil de nossas avós e bisavós, as meninas se arredondavam em


senhoras. Aos nove ou dez anos estavam moças. Faziam então a primeira co-
munhão. E era um grande dia, o de vestir a meninazinha o vestido comprido

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A Família Patriarcal

de comungante, todo de cassa e guarnecido de folhos, o corpete franzido, a


 faixa de fita azul caindo atrás, em pontas largas, a bolsa esmoleira de tafetá, o
véu de filó, os sapatos de cetim, as luvas de pelica, o livrinho de missa encaderna-
do
ção,em madrepérola
1968, – tudo branco ou azul (FREYRE, Gilberto. Região e tradi-
p. 160-161).

A solenidade da Primeira Comu nh ão imp un ha o m aior respeito. O esme-


ro subscrevia a ordem social. Momento de grande importância no volteio
patriarcalista. A benção da ad ultização. A preparação para o casamen to. Primei-
ro, o batismo; depois, a Primeira Comunhão; por fim, o Matrimônio.
Mesmo sem saber ler, essas meninas carregavam o livrinho de missa com
a máxima satisfação. A vida na fé. Felizes por se saberem capazes de ajudar a

família que delas


ponsabilidade aguardava condutas irretocáveis. O degrau iniciatório da res-
confirmava-se.
E a partir do d ia da Primeira Comunh ão, já se sentia mulher, o que quer
dizer: habilitada para o casamento. Iniciava-se a angústia pela procura do mari-
do. E os jogos de sedu ção aumentavam e aumentavam, procurando escapar d e
algum inesperado infortúnio.
Debaixo de rígidos ritos de passagem, a sociedade patriarcal fixou etapas
no ciclo de vida de homens e de mulheres. Não fez por menos. Atribuiu-lhes
papéis irrefutáveis. Pouco importavam as rupturas biológicas; valia a pena aplau-
dir seus critérios de precocidade.

A FESTA DE CASAMENTO

Casavam-se com maridos 10, 15, 20 anos m ais velhos, as portuguesinhas. Sisu-
dos, circun spectos, emp avonados de tan tos gáudios. Barbud os senh ores de en -
genho, bacharéis, médicos, oficiais ou, mais tarde, espertos negociantes... Bigo-
des lustrosos de brilhantina, gordos, arredondados em largas barrigas, suíças
enormes, grandes diamantes no peitilho da camisa, nos punhos e nos dedos...
Os bacharéis ostentavam rubi no dedo.

 Aí vinha colhê-las verdes o casamento: aos treze e aos quinze anos. Não havia
tempo para explodirem em tão franzinos corpos de menina grandes paixões lúbricas.
(...) Abafadas sob as carícias de maridos (...) muitas vezes inteiramente desco-
nhecidos das noivas (FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala, 1966, p. 364).

Vestia-se a rigor a menina-moça no grande dia do casamento. De branco


e com adereços de pureza. Trajo especial, cintura adelgaçada, saias redondas,
longas, um figurino previamente desenhado. O enxoval, confeccionado por frei-
ras, assinalava o capricho típico das religiosas, únicas na feitura artesanal de

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Fátima Qu intas

peças delicadas, bordados, pontos de cruz, renascenças, tarefas que exigem re-
quintes de devoção. A excelência dos trabalhos atingia níveis de tal detalham ento
que o enxoval era publicamente exposto aos convidados para ser apreciado em
valor e emmais
da forma beleza. Cum pria-se
prepotente assimtodos
possível, um dos objetivos dada
os “encantos” festa: o deEncantos
noiva. demonstrar,
que
se revestiam mais de dotes materiais que de outra coisa. E um bom dote não
deve ser escondido a sete chaves.
A festa do casamento p ontificava u m fato aguard ado com arquejos de
gozo. Durava en tre 6 e 7 dias. Às vezes, para m aximizar a emoção, simulava-
se a captura da noiva pelo noivo. Regras de etiqueta, convenientes à celebra-
ção do conluio mais espalhafatoso do patriarcalismo. Momento, inclusive,
em que as evidências deveriam ser expostas a fim de evitar susp eitas ind evidas.

O reconhecimento
pois, social
a hora d e queimar os do status familiar
cartuchos estava
na sau dação em jogo.
à vitória Era chegada,
do açúcar. Ind íci-
os econômicos, indícios sociais, indícios pessoais. Alardear sinais de sólidas
prosperidades ap ontava o d esregramento desses banquetes. Escravos, bens,
riquezas. Quanto maior a ostentação, maior o grau de riqueza. Um Potlach
com todas as letras. O império da casa-grande media-se muitas vezes pela
extravagância d as solenidad es, que funcionavam como termôm etros ind ica-
dores de prestígio do senhor de engenho. Não se poupavam esforços no
sentido de levar às “últimas conseqüências” os detalhes da cerimônia e,
adjetivamen te, ind icar o dem onstrativo d o fausto.

O casamento era um dos fatos mais espaventosos em nossa vida patriarcal. (...)
Preparava-se com esmero a “cama dos noivos” – fronhas, colchas, lençóis, tudo
bordado a capricho em geral por mãos de freiras; e exposto no dia do casamento aos
olhos dos convidados. Matavam-se bois, porcos, perus. Faziam-se bolos, doces e
 pudins de todas as qualidades. Os convivas eram em tal número que nos enge-
nhos era preciso levantar barracões para acomodá-los. Danças européias na
casa-grande. Samba africano no terreiro. Negros alforriados em sinal de regozi-
 jo. Outros dados à noiva de presente ou de dote: “tantos pretos” “tantos muleques”,
uma “cabrinha” (FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala, 1966, p. 374).

A exibição d a carta de alforria de algun s pou cos escravos, revelava u m


aparato esbanjador, uma vez que o senhor do engenho, ao emancipá-los,
estava com isso metralhando o seu poder de fogo. Prescindir de velhos es-
cravos equivalia a jogar dinheiro fora, indicativo de excesso de riqueza, e
repito, demonstrativo das iguais exibições perdulárias dos índios Kwakiutl,
no ritual do Potlach. Outros seriam comp rados, mas a felicidad e do momen -
to invocava verdadeiras “aberrações” econômicas. A ocasião permitia
“espern ear ” a magn ificência e o luxo. “Legitimar ” a liberdad e dos escravos,

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A Família Patriarcal

por exemp lo – mão-de-obra ind ispensável à labuta do eito –, denotava u ma


maneira efetiva de manifestar desprezo em relação ao que poderia ser
readquirido sem o menor desequilíbrio econômico. Compras de novos escra-
vos aconteciam
de delírios no próprio “duelo” do casamento. Um duelo claro, claríssimo,
orçamentários.
Iguarias de todo tipo faziam d a mesa do banqu ete uma oferend a de qua-
lidade inigualável. Explodia a Festa-Mãe, em exibições pantagruélicas, a reivin-
dicar insondáveis exageros.
Nad a faltava. Nem as man dingas fetichistas para o amor dar certo.

 A família brasileira tem sido através do tempo o instrumento disciplinador por 


excelência, produzindo e conservando a ordem social numa sociedade em forma-

ção (QUEIROZ,
ca brasileira Maria
e outros Isaura1976,
ensaios, Pereira de. O mandonismo local na vida políti-
p. 194).

O h omem colonizador contraiu matrimôn io mu itas vezes devido à m orte


das esposas. Na segunda, terceira ou quarta núpcias, o casamento já se con-
vertia em rotina. Para a mu lher, não: uma experiência diversa das anteriores.
O receio da noite nupcial estampava-se: uma noite tão desejada quanto
repelida pelo imaginário sexológico feminino. A vida a dois. A alcova. A so-
lidão d o qu arto d e d orm ir. E tantas obrigações!!!
Cerrada a imponente cortina da festa do casamento, o medo alonga-
va-se em caráter definitivo. Principalmente o medo do marido: um estra-
nh o, agora dono d e sua carne, de seu pálido p razer e de sua vontade.
A festa, a grand e festa, ficava ap enas na lembrança recondicionad a em
saudade.

CÍRCULO DA ENDOGAMIA

A cadeia matrimonial dos tempos de outrora referendou-se em lastros


parentais – uma circularidade interna que fortalecia a ampliação dos bens, a
fixidez do status, a conservação de uma aristocracia oligárquica. Em última
instância, priorizava o enqu istamento d os bens.
Maria Graham, cronista inglesa, encantou-se com a vida de família no
Brasil, mas notou a inconveniência de os casamentos efetuarem-se entre pa-
ren tes, principalmen te tios com sobrinhas. Um excesso de zelo tão forte com
pessoas do mesmo sangue que a ela pareceu o espírito de clã dos escoceses.
Nesse capítulo, o Brasil pontificou, ao arregimentar elos para que o
domínio econômico-consangüíneo não fosse abalado. Famílias fechadas em
focos étnicos, culturais e mercadológicos.

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Fátima Qu intas

O casamento era questão de grande importância; os pais escolhiam cuidadosa-


mente as alianças ou para reforçar os laços de parentesco e resguardar a propri-
edade de mãos estranhas (...) ou para aumentar poder e prestígio, indo se
unir a outras
Pereira de. O famílias de (...)
mandonismo localnomeada
na vida fortuna (QUEIROZ,
política brasileira Mariaensaios,
e outros Isaura
1976, p. 45).

A casa-grande preservou-se sob todos os ângulos. O casamento entre fa-


mílias foi por ela estimulado, de modo a agigantar o caráter endogâmico das
relações conjugais, isto é, relações dentro da mesma linha de consangüinidade.
O privatismo da família patriarcal incentivou o mais possível o seu fechamento
em sólidos pactos.

(...) Casamentos, tão freqüentes no Brasil desde o primeiro século da coloniza-


ção, de tio com sobrinha; de primo com prima. Casamentos cujo fim era eviden-
temente impedir a dispersão dos bens e conservar a limpeza do sangue de origem
nobre ou ilustre. (...) Indivíduos que, casando-se, apertavam os laços de solidari-
edade de família em torno do patriarca. Era esse o fim dos casamentos de tios
com sobrinhas (FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala ,1966, p. 366-367).

O português, embora voltado para intercursos sexuais com mu lheres exó-

ticas,
nos. Oraramente legalizou
que equivale a dizer:osserebentos
o reinol que
não provieram dos encontros
acatou o arianismo étnico clandesti-
– segura-
mente não o fez –, acatou o “arianismo familiar”, evitando a inserção de filhos
bastardos no mosaico parental. Do legítimo leito nupcial nasceram, sim, os fi-
lhos descendentes diretos da linhagem européia.
A endogamia escudou as uniões oficiais envoltas em regras “proselitistas”,
enqu anto as cland estinidad es acobertaram-se de razões mais prazerosas do que
de raciocínios cartesianos. Hospedou a casa-grande os dois tipos de amplexos
sexuais, sendo os primeiros aqueles legitimados e ordenadores do esteio famili-
ar; os demais, olhados de soslaio, por transgredirem as instruções prescritas. Os
contatos episódicos, não outorgados pela sociedade privada, rolaram como ra-
mificações de uma árvore de tronco sólido.
Viúvos precocemente, os portugueses adotavam uma sucessão
end ogâmica: casavam com as irmãs solteiras da esposa, com primas ou paren -
tes próximos. Ratificavam, assim, a circularidade do eixo doméstico para o
qual nunca arrefeceram os recursos intrafamiliares. Um sistema com ten-
dências a castas e à en tronização d e uniões fechadas. A família end ogâmica e
cristocêntrica cresceu à sombra de uma privacidade excessiva.
A paren tela consolidou-se em claustros e revigorou a coesão da família.
Uma aderência decantada em prosa e verso. Basta salientar a convivência com

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A Família Patriarcal

os mortos, muito significativa na defesa de uma circunferência amparada em


vínculos de consangüinidade. Os mortos, enterrados na capela do engenho –
que representava uma puxada da casa-grande –, perpetuavam-se na memória
familiar,
coabitand incorrendo numa presença
o o m esmo espaço dos vivos,menos etérea
ou p orque os que
vivosmaterializada. Mortos
perderam o prestígio
ou porqu e os mortos contabilizavam brasões den otativos, ou aind a, porque os
mortos canibalizavam posições sociais que começavam a ruir. A convivência
mais com os mortos do que com os vivos estreitava-se.
Os mortos sedimentavam a coesão e gravavam sua ingerência com p ode-
res maiores do que os dos vivos. Ainda hoje, muitas famílias sobrevivem à luz d e
imagens fisicamente mortas, mas sociologicamente vivas. Os mortos arrebatam
a vida d os vivos. Na família patriarcal, a interação deu-se tão forte que os mortos

ganh aram
mentar a forma d e Tanto
a lembrança. fantasmas, assombrações
que os queguardavam-se
seus retratos se p resentificavam para ali-
no santuário,
bem à m ostra, misturados às imagens dos santos, com direito à mesma luz votiva
de lamparina de azeite e às mesmas flores devotas, indulgentes. E as tranças dos
cabelos das senhoras falecidas e os cachos dos meninos com igual sorte
complementavam o adorno do orago das saudades. Um culto doméstico com
semelhan ças aos dos an tigos gregos e roman os.

 Abaixo dos santos e acima dos vivos ficavam, na hierarquia patriarcal, os mor-
tos, governando e vigiando o mais possível a vida dos filhos, netos, bisnetos
(FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala, 1966, p. XXXVII).

O especial procedimento endogâmico cerziu arestas com a finalidade de


apaziguar possíveis desacertos. O patriarcalismo teve no sistema cilíndrico de paren-
tesco  um aliado portentoso para enfrentar os reveses do cotidiano. Embora incon-
gruências e ambivalências destaquem-se na fotografia da realidade doméstica,
impossível aplacar o fenômeno do fechamento grupal da família, que procurou, de
todas as m aneiras, assentar as vigas mestras da era colonial e pós-colonial.
Com o aprimorar dos esquemas endogâmicos, as uniões matrimoniais
entre portugueses estavam conferendadas; e inscrito e subscrito o perfil centrípeto
da casa-grande. Em conseqüência, assegurada a chama da coesão familial. O
engenho, com habilidade, asilou um encontro de gentes que em muito ajudou
a selar o elo da pirâmide hierárquica.

DECADÊNCIA DA SINHÁ-DONA

As precocidades levam ao envelhecimento antes do tempo – relação de causa e


efeito. O sistema patriarcal excedeu-se em precocidades. E as sinhás-donas, de
súbito, transformavam-se em senhoras. Amadurecidas em estufas. Frutos que

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Fátima Qu intas

feneciam ao susto dos ritos de passagem. Num piscar de olhos, velhas.


O afear-se correspondia ao fluxo do desleixo. Mulheres engordando.
Consumidas em corpos abandonados. Com dezoito anos, matronas, pesadas,
largadas à não-sorte.
com a p ortuguesa. Aossevinte
Cedo anos,nessas
fez tarde a ruína. A sociedade
jovens. Qu and ode
tudantanho foicome-
o deveria cruel
çar, o ocaso emergia exuberante a u surp ar-lhes as últimas forças. Após os vinte
anos, a derrocada instalava-se em um corpo exaurido por indébitas invasões.
Adquiriam papadas. Tornavam-se másculas, assumiam ares de homem. Per-
diam a feminilidad e.

  As mulheres amadureciam cedo. Os anos de infância raras vezes estouvada


eram curtos. Aos quatorze ou quinze anos, a menina vestia-se já como uma

grave senhora.antes
amadurecidas Os daguerreótipos da épocasenhoras
de tempo em senhoras: trazem até nós tristonhas
tristes, figuras de(FREYRE,
meninotas
Gilberto. Vida social no Brasil nos meados do século XIX, 1977, p. 86).

O homem conservou melhor o corpo, uma vez que a rotina imp un ha-lhe
alguns deveres. Andou a cavalo, percorreu o canavial em esporádicas dili-
gências, levou u ma vida mais próxima da natu reza. Não por livre vontad e;
antes, pelas obrigações que o eito lhe demandavam. A pálida musculatura
manteve-se mais rija – nada de formas exemplares – e, lembrem-se, a sua
relação com o corpo d eu-se com ruidosa intimidade, porque os amores clan-
destinos ofertaram-lhe momentos de extraordinária vibração.
À guisa da submissão mu çulmana, a mu lher submergiu em u m completo
sedentarismo. Passeava de rede para poupar energia. O desmazelo vencia o
regozijo de viver. Naturalmente que a negligência derivava de diversos fatores,
un s e outros em constante intersecção. A auto-anulação aparentava-se ao desâ-
nimo e, juntos, migraram p ara o desabamento existencial. Até mesmo à Igreja a
lusitana ia refestelada em redes. Imagine-se a inércia que se apoderava desse
corpo! Somente mais tarde, tal ostentação – a de chegar em recinto religioso em
cômodas redes amparadas por escravas – foi proibida pelo caráter desditoso
que a cena denunciava. Outrossim, o esbanjar escravos submissos, carregando
em palanquins senh oras ind olentes, acusava um péssimo exemplo para um cris-
tianismo que d everia apregoar preceitos men os desiguais.
Aos vinte e cin co an os, m ulheres velhas n o qu into ou oitavo p arto.
Arruinadas, como se tivessem sessenta. O feminino definhou em “frívo-
los” circunlóquios. Autoflagelou-se em estados de apatia. Tombou cedo
numa visível pusilanimidade. Feneceu: e o fenecimento é o princípio do
fim. Precocemen te a p ortugu esa disse ad eus à infância, aos verdes an os,
à beleza. Murchou em imagens melancólicas. Acenou lenços brancos de
desped ida sensual.

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A Família Patriarcal

Pena que tão cedo se desfolhassem essas entrefechadas rosas. Que tão cedo mur-
chasse sua estranha beleza. Que seu encanto só durasse mesmo até os quinze
anos. Idade em que já eram sinhás-donas; senhoras casadas. Algumas até mães
(FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala, 1966, p. 373).
ECOS DA AFRICANIDADE
A IMAGEM DA MÃE-PRETA

As mães-pretas despontavam no picadeiro familiar patriarcal como as verdadeiras


mães-de-criação. Quase onipotentes em relação às frágeis portuguesas, ocuparam
posições destacadas na estrutura da família, quer pela sua importância como ele-
mento de vitalidade,
ordenação, no sentidoquer pela contribuição
“ritualístico”, ao doméstico.
do espaço Apoderaram-se
privado. Ordenação essa queda
interferiu largamente na teia afetiva. Gordas, pachorrentas, embalavam bebês,
acariciando-os como filhos seus. O exercício da maternagem acabou por lhes incutir
prerrogativas de muito bom alvitre para o patriarcalismo. Quando alforriadas, per-
maneceram no seu papel regulador, os meninos tomavam-lhes a bênção, os escravos
tratavam-nas de senhora, os boleeiros andavam com elas de carro. Nos dias de festa,
comandavam a cerimônia, dando ordens e aparentando senhoras bem-nascidas.
Imbuíram-se de tal maneira da posição de mãe “postiça” que defend eram
ardorosamente os ímpetos
grande sem a africana da criançada.
a distribuir O que
promessas deteria sido daSem
felicidade? infância na casa-
as narrativas
noturnas que ninavam meninos e meninas? Sem as histórias de bicho ou de
monstros com cara de gente? Sem o seu espírito também infantil?
A compleição orgânica representou o fator decisivo no impulso da africa-
na à amamentação dos recém-nascidos. A harmonia física carreou o estímulo
mais contu nd ente na história da mãe-preta – peitos rijos, den tes brancos, saúd e
a vender. Não lhe faltaram vantagens. Ademais, acrescidos aos fatores biológi-
cos, reunia melhores condições de higiene, pois se identificava, por motivos
óbvios, com osindispensável.
rais, elegeu-a ruídos da tropicalidade.
Dos seios daA negra,
união dos trunfos,
rebentou orgânicos
o leite e cultu-
da vida.

(...) Negra ou mulata. Peitos de mulheres sãs, rijas, cor das melhores terras
agrícolas da colônia. Mulheres cor de massapê e de terra roxa. Negras e mulatas
que além do leite mais farto apresentavam-se satisfazendo outras condições, das
muitas exigidas pelos higienistas portugueses do tempo de D. João V. Dentes
alvos e inteiros (FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala, 1966, p. 386).

O mãe
afeto da quinhão não se restringiu
portuguesa, somente
quase arruinada ao leite.
pelos A mãe-preta
excessos substituiu
do clima, ela, que nãoo

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Fátima Qu intas

conhecia os destros caminhos de um Brasil ambicioso em contrastes e em desa-


fios; que não sabia como comportar-se diante de um trópico escaldante e, me-
nos ainda, diante de tradições, costumes e hábitos estranhos. Tudo lhe era des-
conhecido.
biológicas daEmaternidad
não lhe permitiram
e. A negraadaptar-se;
correspondlogo, invocaram-lhe
eu às lacunas deixadasaspela
exigências
branca.
Abraçou, mimou, deu carinho. Nada melhor que um bom dengo para sarar as
feridas do cotidiano. Dengo para o m enino. Dengo para a gente grand e. Dengo
para adultos sacrificados pelo desassossego do massapê.
A sua influência foi tanta que chegou a levar alguns estudiosos a argu-
men tos de n atureza p sicológica – o ato de mam ar, send o de extrema imp ortân-
cia na formação da criança, geraria conseqüências imediatas na construção dos
desejos. Desejos que se perpetraram no futuro, oriundos de raízes de significa-

ção sexual
contato com–negras!
quantosComo
portugueses só conseguiram
se a atração atingir retom
física da fase ulterior o êxtase
assesexual no
a direção
da men inice. Será que não retoma? É sabido que a primeira infância representa
o alicerce do edifício psicológico. O lusitano cobiçou a negra com olhos gulosos.
O en contro entre as raças deu-se desde o “instinto” do seio materno – “instinto”
primitivo – aos instintos de adulto, expressivos e determinados.
Amam entados por negras, acariciados p or negras, aconchegados por ne-
gras, meninos portugueses criaram dependências decorrentes das pulsões do
aleitamento. Qu ase todos os brasileiros do período colonial e pós-colonial foram
educados por negra. A sua ascendência fez-se direta em vários momentos. Um
olhar de troca em constante reciprocidade. Um mimetismo que bosquejou as
linhas do rosto do mundo português em estreita sintonia com o mundo
brasileiramente africano.

A PROSTITUIÇÃO DOMÉSTICA

Terra [o Brasil] de todos os vícios e de todos os crimes. Segundo o próprio teste-


munho dos escritores portugueses contemporâneos, a imoralidade dos primei-
ros colonos era espantosa, e excedia toda medida (PRADO, Paulo. Retrato do
 Brasil, 1962, p. 27).

Sem a glória econômica de tempos outros, Portugal não temeu alarde-


ar a glória fálica. A nobreza perdida reclamava um drama não resolvido –
país ferido na honra de navegador insup erável. A Escola de Sagres conheceu
o brilho d a excelência marítima, mas Portugal declinava no seu esplendor náu-
tico. O Brasil bem que poderia transformar-se na Terra Prometida, pelo menos
na esperança perdida. E a glória fálica apontava como uma paisagem m essiânica.
A escravidão favorecia excessos sexuais. Para tanto, bastava usufruir das
vantagens que o sistema oferecia. Não precisou de muito o portu guês para lan-

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A Família Patriarcal

çar-se ao êxtase do sexo. A sensualidade da negra encimou o patriarca em visões


paradisíacas. Era tudo o que ele queria. Dos contactos clandestinos, nem sem-
pre houve ternura. Ou quase sempre não houve. A volúpia da carne foi mais
forte queapelos
maioria, qualquer outro
apenas sentimento.porCasos
epidérmicos parteocorreram de amor.
do colonizador. Raros. Na
Entretanto sua
foram
as negras acusadas de desvirtuarem os dignos valores da casa-grande, canali-
zando-os para caminhos pouco louváveis, como o de terem sido a principal
mentora das fantasias do senhor de engenho. Também recebeu acusações de
musa iniciatória do menino – esse geralmente conduzido pela mucama às coisas
do am or.

O que a negra da senzala fez foi facilitar a depravação com a sua docilidade de

escrava;
dem. (...) abrindo as pernas
O que houve ao primeiro
no Brasil (...) foi desejo do sinhô-moço.
a degradação das raçasDesejo, não:pelo
atrasadas or-
domínio da adiantada (FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala, 1966, p.
397-398, 463).

Não há escravidão sem prostituição – uma verdadeira sentença para a


dialética patriarcal. A relação de dominação provoca blocos ditatoriais de inten -
sa periculosidade para a moral sexual. Impulsiona distorções. Açula inconsis-
tências e impropriedades. Os limites apóiam-se em autoritarismos arbitrários e
danificam o equilíbrio das relações interpessoais.

É absurdo responsabilizar-se o negro pelo que não foi obra sua nem do índio,
mas do sistema social e econômico em que funcionaram passiva e mecanica-
mente. Não há escravidão sem depravação sexual. É da essência mesma do
regime. Em primeiro lugar, o próprio interesse econômico favorece a deprava-
ção, criando nos proprietários de homens imoderado desejo de possuir o maior nú-
mero possível de crias (FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala, 1966, p. 341).

Se Joaquim Nabuco extraiu de um manifesto escravocrata de fazendeiros


palavras como “a parte m ais produtiva da p ropriedade escrava é o ventre cria-
dor”, não há como hesitar diante da premissa de Freyre – “é da essência do
regime escravista a depravação sexual”. Logo, não foi a negra que optou pela
prostituição, e sim os contextos absolutistas que a estimularam a aceitar a
permissividade como um caminho de ingênua libertação. Sério equívoco que
confundiu frios diagnósticos.
Qualquer estrutura de dominação instiga efeitos deletérios. A escravidão
revelou-se ímpar nessa hedionda cadeia. A promiscuidade emergiu categóri-
ca, enfática e decisiva. A poligamia ilegítima, p orém socialmen te aceita, alas-
trou-se como norma a ser seguida, uma vez que do uso sexual de várias

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Fátima Qu intas

mulheres surgiriam múltiplos ventres geradores. Em nenhum momento, a


poligamia doméstica colonial sofreu ataques. Ao contrário, recebeu pródigos
elogios. Sinônimo de diversidade de encontros carnais, bailou nos salões da
aristocracia lusitana.
 A posse da terra gerou a propriedade sobre os homens e a utilização dos domina-
dos ao bel-prazer e aos caprichos dos poderosos (ANDRADE, Manuel Correia
de. O escravo negro e a intimidade da casa-grande, 1995, p. 103).

O sistema “deletério” da escravidão selou a forte fagulha do passa-


do colonial. Atraiu p ara si tantos defeitos e tão poucas virtudes que fabricou um
quadro com pinturas dissonantes. É indispensável entender que o negro ou a

negra escravizados separam-se do negro ou da negra visualizados sob o prisma


da etnicidade.

Sempre que consideramos a influência do negro sobre a vida íntima do


brasileiro, é a ação do escravo, e não a do negro per se, que apreciamos.
(...) Parece às vezes influência de raça o que é influência pura e simples
do escravo: do sistema social da escravidão. Da capacidade imensa desse
sistema para rebaixar moralmente senhores e escravos (FREYRE, Gil-
berto. Casa-grande & senzala, 1966, p. 339).

Se a prostituição da casa-grande viu na negra a cúmplice insuspeita, as


virtudes da senhora branca, decantadas e homenageadas, arrimam-se, em par-
te, nos deslizes da escrava fêmea. Pecando umas e santificando outras, os
dualismos sedimentavam-se. Os erros tornavam-se mais explícitos enquanto os
acertos assomavam proporções significativas. A portuguesa no cetro da
sacralidad e; a negra, no d a profanidad e. Op ostos que se agigantavam na m edi-
da da perfeição ou da devassidão consen tida.
O amor precoce da mucama com os filhos do patriarca nem sem-
pre foi analisado com condescendência. Uma moral contraditória que
estimulou o menino à depravação e ao desregramento no uso do corpo
da negra, ao tempo em que a acusou de promiscuidade por acicatar o
pequeno adolescente aos “subornos” da carne. Esse jogo sádico trouxe
uma mística confusa à ideologia da casa-grande, se não confusa, pelo
m en os un ilateral e tend en ciosa: esqueceu qu e, antes d a cor, a africana se
subm eteu ao caos da escravidão.

  Diz-se geralmente que a negra corrompeu a vida sexual da sociedade


brasileira, iniciando precocemente no amor físico os filhos-família. Mas
essa corrupção não foi pela negra que se realizou, mas pela escrava. Onde

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A Família Patriarcal

não se realizou através da africana, realizou-se através da escrava índia


(FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala, 1966, p. 340).

A imoralidade
xões com princípio e foi
fim,decorrente
os meios ae justificarem
não causal. Resultado de A
os objetivos. detestáveis cone-
prostituição da
casa-grande consignou a prostituição do patriarcalismo, a prostituição da
monocultura, a prostituição do servilismo que se engalonaram sob a maquila-
gem da escravidão.
E se há hábito que faça o monge, esse é o do escravo.

A CULINÁRIA E A NEGRA

O espaçoemoções
binando adstrito com
à cozinh a da casa-grand
temperos, e agrup
sentimentos comou o encontro
receitas de raças,
culinárias, com-
saudades
com cheiro e gosto de condimentos. Nesse desvão, aparentemente resguarda-
do, desfilaram as enormes proezas da convivência doméstica. Oráculo de con-
fissões, de fuxicos, de troca de sigilos. Zona de confraternização.  Locus de inter-
câmbio. Na “sagrada” cozinha, a conversa mole, os mexericos, o disse-me-disse
alçaram a moldura da intimidade. Entre o preparo de um prato e de outro,
muitas histórias foram verbalizadas.
Tanto quanto o confessionário, o suposto esconderijo do fabrico das
guloseimas sum arizou o grosso caud al por ond e escoaram conversações em
tom introspectivo, sonhos recônditos, mistérios femininos. Debaixo do manto
da solidão, a larga e tosca mesa da cozinh a agasalhou os pu dores d e mulhe-
res acanh adas – lugar de especial atrativo para o transbordamen to de dize-
res porven tura perigosos ou pecaminosos. Com a devida reserva, a p alavra
ali soada e ressoada exerceu importante função libertadora. Pretas velhas,
mu camas, sinh azinh as, sinh ás-donas, nh onh ôs coabitaram os mom entos de
relaxamento que o forno e o fogão possibilitavam. Entre receitas, o rastro
dos ap etites, seja qu al for a etiologia – palatal ou sexual –, deixou-se singrar
em discursos reprimidos.
Pamonha, milho assado, pão-de-ló, arroz-doce, alfenins, alféloa empare-
lharam -se à mesa da casa-grand e em uma d emon stração de hibridismo de pala-
dares. As negras, exímias cozinheiras, redondas de tanto comerem, esmeravam-
se no prep aro de “acepipes” para o regalo do men ino, da sinh á ou d o patriarca.
Imensos pan elões comp un ham a paisagem da comensalidad e patriarcal. Passa-
va-se o dia a beliscar e a provar pratos temperados ao saibo preferido da próxi-
ma refeição ou à blandícia da donzela enfraquecida – a necessitar de cuidados
especiais. Do café da manhã à ceia noturna, o dedo decisivo da negra. Do sim-
ples caldo de pintainho à gord urosa feijoada. Da mesa repleta de convidados ao
almoço trivial. A qualquer hora, a chaminé fluind o o olor d as esp eciarias.

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[O negro ensinou] o brasileiro a explorar todas as possibilidades das papilas da


língua, bem como os nervos do faro, com a sua magia culinária (RIBEIRO,
Darcy. Ensaios insólitos, 1979, p. 94).

Os serviços da cozinha tiveram um prévio escalonamento. As pretalhonas, as


escolhidas, instigaram o paladar com vocação de tecelã. Mas houve negros incapazes
de servir no eito, com tendências a maricas, que foram inigualáveis no preparo de
quitutes. Homens efeminados a d esejarem man ifestar os seus pend ores no espa-
ço dedicado à mulher, o da cozinha. Talvez até para provar a capacidade de
executar tarefas de tradição não masculina, capricharam em sutilezas, agudamente
“primorosas” no que tange à expressão de uma gastronomia sofisticada.
Desse modo, a culinária brasileira africanizava-se, capitalizando a inspira-

ção exótica dos seusdos


tas orgulhavam-se acepipes.
pratos Exuberante e ind iscreta.
que elas próprias GordasNovidades
elaboravam. e alegres, as pre-a
a tod
hora. Temperos excêntricos vindos de uma África não menos excêntrica. A van-
tagem aconteceu na adequ ação a um regime tropicalmen te correto. Uma d ieta
que se adaptava ao calor excessivo de regiões quentes e úmidas. Ao mesmo
tempo, refeições buriladas em pimentas e molhos, o que sugeria incoerências
para um clima de altas temperaturas. O clima, com certeza, não determinou,
mas concorreu para a extroversão gastronômica. O Nordeste aceitou de bom
grado as ambrosias de uma etnia que injetou atavismos ao erud ito modo de ser
de um Ocidente civilizado. A mistura deu certo.
Criou-se um sincretismo culinário, de sabores vivos e, alguns, até berran-
tes. Introduzido com a cautela dos “invasores”, o menu ajudou a atenuar dissi-
dências e a acalmar arestas. Na culinária, manifestou a negra títulos professorais.
Senhora de densos “refogados”, atraiu para si atenções que se anelavam em
“armadilhas” capazes de nublar a faísca da portuguesa. Exerceu com uma certa
maledicência o d esafio da mesa. Há que se render vênia a essa emu lação. Quem
duvidará da sua competência na arte de cozinhar?

(...) Mocotós, vatapás, mingaus, pamonhas, canjicas, acaçás, abarás, arroz-de-


coco, feijão-de-coco, angus, pão-de-ló-de-arroz, pão-de-ló-de-milho, rolote de cana,
queimados, isto é, rebuçados etc. (...) É nossa opinião que no preparo do próprio
arroz-doce, tradicionalmente português, não há como o de rua, ralo, vendido
 pelas negras em tigelas gordas donde o guloso pode sorvê-lo sem precisar de
colher. Como não há tapioca molhada como a do tabuleiro, vendida à manei-
ra africana, em folha de bananeira (FREYRE, Gilberto. Casa-grande & sen-
 zala, 1966, p. 490-491).

Africano também é o acarajé, prato precioso na Bahia: feito com feijão


fradinh o ralado na ped ra; como temp ero leva cebola e sal; a massa é aquecida

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A Família Patriarcal

em frigideira de barro on de se derrama um bocado de azeite-de-cheiro. Além


das receitas genuínas, a africana sobressaiu-se no apuro dos doces lusitanos
à terra do pau-brasil. E atenuando asperezas, ajeitando ali e acolá, os ingredien-
tes foram dosados
Dentre com africanos
os pratos o toque doqueamse
álgama cultural.
impuseram à mesa patriarcal e firma-
ram-se até com uma certa arrogância, distinguem-se o caruru e o vatapá. Os
eleitos. Os mais apreciados. Os que se fixaram quase genuinamente. Sem reto-
ques significativos. Puros e absolutamente distintos.
Por muito tempo a mesa do engenho foi africana. O paladar girou em
torno das circunvoluções da negra, que habilmente articulou doses “marotas”
de condimentos. Arte, acima de tudo arte, subscreveu a mescla dos influxos, ao
incorporar especiarias e ao retirar as possíveis indisposições. Com mais ou me-

nos pimenta, do
gastronomia, retemperou a culinária.
sentido mais Durante
figurado ao sentidoséculos, afiançou o relevo da
mais biológico.
Não se pode falar em culinária nacional sem remeter ao mastro balizador
da desembestada glicose. A arte do doce espargiu-se do Nordeste para o Brasil
afora. A sua expressão – sociológica, econômica, sentimental – advém da família
patriarcal, extensa, cristocêntrica, horizontal, a repousar na imensidão de um
monopólio canavieiro. A escravidão propiciou o culto da hipérbole da sacarose.
Na gangorra do açúcar não se mediram estímulos para acirrar o
degustativo. A escrava revelou-se única na produção do doce. As intermináveis
receitas reivindicavam o exercício da persistência, longas tardes à beira do fo-
gão, a vigiar as panelas em que se preparavam caldas em ponto de visgo. Por-
ções estrambóticas entornaram quilos de açúcar, de rapadura, de mel – o mel de
abelha indígena que, segundo José de Alencar, morava nos lábios de Iracema.
Ovos e mais ovos esbanjavam dos tachos, esfumando o creme, que se transfor-
maria em refinados postres. Exigiu-se o máximo de perseverança para levar a
termo os “preciosismos” da doçaria. A constância da africana acentuou-se na
realização das fórmulas prescritas.
Somente a pasmaceira da casa-grande permitia operacionalizar o fabrico
de d oces complicadíssimos. Tempo. Horas. Pacatez. Os vagares d o p atriarcalismo,
algun s foram preen chidos com a carpintaria do doce. O comp lexo da cana, com
as suas derivações, jamais teria se validado, com tamanha efervescência, não
fossem a quantidade de escravas, o tédio das horas mornas e intermináveis, a
lerdeza do badalar do relógio, os minutos por consumir, o longo intervalo do
nada... Cedo começava o preparo. Receitas demoradas, demoradíssimas, só
explicadas pelo excesso de ócio. Sinhás-donas gulosas e adictas de glicídios à
espera do gozo alimentar. Houve, no Brasil, uma maçonaria do doce, isto é, um
poder coeso de mulheres sobre o sigilo da feitura dos bolos de família. O cader-
no de receitas – período em que as mulheres já escreviam – foi repassado de

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Fátima Qu intas

geração em geração, mediante um inventário sentimental. Não se banalizou a


ementa gastronômica em mãos à toa. Prevaleceu uma intencional escolha na
descendência dos bolos e doces de família – a doçaria patriarcal recebeu a filha-
sobrinha eleita,
história do açúcaraquela quefortes
guarda garantisse
veios adediscrição do claustro
privacidade. da glutonaria.
De enigmas A
de família.
De endogamia também culinária.
O doce e a escravidão “afinaram-se” em prolongados passadios. Um e
outro estiveram tão juntos que parece difícil elidi-los. A paisagem acoroçoou o
desenvolvimento de deliciosas guloseimas, em razão da matéria-prima abun-
dante. A cana, o massapê, a escravidão. Subtraindo um desses elementos, certa-
mente a doçaria não teria alcançado o paroxismo d a culinária brasileira dos tem-
pos de antanho.

Exalte-se
conjugação a tipologia das
do supinamente frutas, essas
melífluo. dulcíssimas,
O paladar a aliarem-se
ajustou-se, à cana
por efeito, na
ao que
vinha de fora – de Portugal e da África. O endógeno e o exógeno acasalaram-se.
Tudo contribuiu para que, na Nova Lusitânia, as receitas com base na blandícia
proliferassem. De Portugal, sobretudo dos mouros, chega-nos uma herança sin-
gularmente açucarada.
A representação do doce no Nordeste se dá com tamanh a veemência que
aponta p ara a formulação de uma Sociologia do Doce, eivada de traços de confei-
taria, pastelaria e estética de sobremesa, o que leva a implicações socioculturais
da maior relevância. A ritualística açucareira invocou refinamentos sensoriais.
O regime escravista possibilitou a arte da sobremesa através d o exercício
da paciência bíblica. Os caprichos foram completos. Nada se rejeitou para anular a
acidez da casa-grande, e o açúcar vinha a calhar, preenchendo os vazios que se alas-
travam nos seus corredores. Em torno do doce brotou uma doutrina quase mitológi-
ca. O doce exigiu finas devoções. A liturgia reivindicou o máximo de reverência.
O doce nordestino, com a sua origem nos bangü ês – “um dos rituais mais
sérios da antiga vida de família das casas-grandes e dos sobrados” – detém uma
história sentimental. Não é um rebuçado qualquer. É uma sacarose que as nos-
sas bisavós comeram; logo, um regalo que carrega ancestralidade. Quando se
reproduz uma receita antiga, há de ressaltar-se a ternura e o carinho que a en-
volveram, encerrando um bem-querer de todo especial, prolongamento de ou-
tros bem qu ereres que se perderam a meio do caminh o. Haverá melhor iguaria
que aquela receita da vovó?
Os pratos ou tabuleiros nos quais se acomodavam as guloseimas eram
enfeitados de modo a alucinar os olhos. As negras recortadoras aperfeiçoa-
ram-se em detalhes e mais detalhes: ritmos inventivos, inspirações fantásti-
cas, visando a embelezar a oferenda do produto. E o princípio da gula é
antes de mais nada plástico, com acentos pictóricos. O olhar antecipa o olfato
na “fermentação” do apetite. A estética do orn amentar aprimorou o espetáculo

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A Família Patriarcal

do paladar que não se conformou com a simples degustação. Foi mais além,
alongando-se na “poesia óptica”.
E a arte fez-se também no açúcar e por meio do açúcar. Os tabuleiros
ficaram famosos pela delicadeza
negras especializaram-se do rendilhado
no preparo não somente e pela coreografia
do doce, lúdica. As
mas também do
arranjo que o complementaria. Com papel azul ou encarnado enfeitaram-no e re-
cortaram-no em corações, passarinhos, peixes, galinhas. Neles abrolhavam uma arte
com sugestões fálicas, totêmicas e barrocas. Negras, algumas forras, iam vendê-los na
rua, exibindo seus dotes, tanto físicos como culinários. As célebres “Mães Ben-
tas” ilustram as nuances de u m cenário du al em glutonaria e plasticidade.
Com a desafricanização da mesa nas primeiras décadas do século XIX, o
brasileiro perdeu o hábito de vegetais e verduras, tão do agrado do negro. Tor-

nou -se abstêmio


dominaram de vegetais.
o beiju de tapiocaO ao
pãoalmoço
surgiu e,como a gran adefarofa.
ao jantar, novidade. Antes
Ainda: pre-
o pirão
escaldado ou a massa de farinha de mandioca espalhada no caldo do peixe ou
de carne. O feijão representou o prato do cotidiano – feijoada com carne salga-
da, cabeça de porco, lingüiça, muito tempero africano. Após a Independência, a
cozin h a brasileira sofreu a influ ên cia d ireta da fran cesa. Na verd ad e, nesse
período, o Brasil aderiu a galicismos de toda ordem.
O gelo foi introduzido em 1834, trazido pela primeira vez ao Brasil por um
navio americano, o Madagascar . A sua chegada avultou em sucesso, pois os “no-
vos” brasileiros eram grandes bebedores de água em virtude do calor tropical,
do excesso da pimenta e da quase libidinal ingestão do açúcar – a pimenta, já
antiga conhecida dos índios, reforçaram-na os negros e os portugueses, esses
com a pimenta do Reino. Com a introdução do gelo, as frutas brasileiras que já
eram utilizadas como d oces e geléias, tornaram -se sorvetes e gelados. O sorvete
trouxe uma importante revolução: desbancou a sobremesa patriarcal normal-
men te quen te ou ao natu ral. Também fun cionou como u m traço de dissolução
dos serões em volta dos chás fumegantes com sequilhos, bolo de goma, queijo
do sertão e pão torrado na hora. O sorvete provocou mud anças de h ábitos me-
recedoras de realce: nos idos de 1840, as moças elegantes do Rio de Janeiro iam
à Capela Imperial não somente ouvir música como deliciar-se com sorvete – o
chamado doce gelado.
O processo de desafricanização, todavia, não se operou de forma radical.
Veio aos poucos, mas não subtraiu o paladar silvestre do continente negro; na
verdade, expandiu-o, atenuado por novas combinações, embora algumas de-
notem a originalidade na feitura – o caso do caruru e do vatapá. Outras sofre-
ram alterações. A maioria perdurou afinada numa simbiose eletiva: indígena,
portuguesa, africana – o triângulo brasileiro da antropologia da alimentação.
Diante dos purismos da europeização, a alimentação original dos africa-
nos sofreu algumas emendas para que o resultado ocorresse sem conflitos. De

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Fátima Qu intas

sorte que a exuberância alimentar da culinária negra recebeu retoques


acomodatícios. Uma certa parcimônia não lhe caía mal ante o exotismo dos
sabores. Cumpre ressaltar esse aspecto extravagante por envolver a
emocionalidade
quase sem polimen de to;
umem
povo que puro;
estado não hesitou
em pazem doar
com seus
a sua valoresruidosa.
n atureza comensaisOs
quitutes excederam-se em pigmentações degustativas. Um roteiro, o afro-brasi-
leiro, com enorm e vocação para os transbordamen tos.
Não há cozinha mais explícita que a africana, como não há canção de
ninar mais embaladora que a da mesma africana. A negra dominou e foi
percuciente no passado de nossas bisavós. Polifônica. Polissêmica. Polivalente. A
sua influên cia destacou-se não somente nos qu itutes e nos arran jos das traves-
sas, como na abundân cia e n a diversidad e da mesa brasileira, cuja variedad e de

timbres confere-lhe um caráter peculiar, extralusitano e marcadamente atávico.


A INFLUÊNCIA DELETÉRIA DA SÍFILIS

  A sífilis fez sempre o que quis no Brasil patriarcal. Matou, cegou, deformou à
vontade. Fez abortar mulheres. Levou anjinhos para o céu. Uma serpente criada
dentro de casa sem ninguém fazer caso de seu veneno. (FREYRE, Gilberto .
Casa-grande & senzala,1966, p. 343).

sexual.OABrasil, na sua enxurrada


sífilis campeou pelasem
abertamente, carne, padeceu
a menor de um como
cerimônia, mal deumaordem
alia-
da às alcovas clandestinas. E não só as cland estinas. Ao mais legítimo leito nu pcial.
Contaminados ou contaminadas, homens e mulheres difundiram o lues.
Por dever de justiça, impõe-se recorrer à história, demonstrando que, antes
do portu guês, europeus em visita ao Brasil já propalaram a doença. Entrem entes,
com a vinda em massa de lusitanos pela instalação colonizadora, a patogenia
alastrou-se à semelhança de uma praga, a espargir nefastas conseqüências, tan-
to sociais quanto genéticas. Um flagelo que alterou a plástica do brasileiro e
arrecadou respostas drásticas para o desenvolvimento biológico de um povo
em formação.

 De todas as influências sociais talvez a sífilis tenha sido depois da má nutri-
ção, a mais deformadora da plástica e a mais depauperadora da energia eco-
nômica do mestiço brasileiro. (FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala,
1966, p. 51).

O português procurou culpabilizar o africano pela ação patogênica da sífilis.


Na verdade, ele, oo africano,
involuntariedade foi sem
mal de lues, o principal receptor, contraindo
sequer conhecer com absoluta
os vieses danificantes de

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A Família Patriarcal

seus efeitos. Na condição de escravo infestado, recebeu a disgenia do “civilizador ”.


Data do princípio do século XVI a grossa difusão da sífilis no Brasil. Da
chegada dos portugueses, os grandes contaminadores. Os franceses foram, contu-
do,
rica.osRegistre-se
primeiros a jorrarem a doença
que, já no mesmoentre os autóctones
século, duran
o Brasil era te as visitas
considerado à Amé-
o país da
sífilis por excelência. Não é difícil imaginar o quão galopan te se deu a sua propa-
gação! A França viveu a temida peste sifilítica no século XVI, o que leva a inferir a
origem da doença. Os franceses verteram o mal para o resto d a Europ a, contami-
nan do corpos sadios e difun dind o o que deveria ter sido erradicado rapidam en-
te. As condições da medicina – ainda em atraso significativo – não possibilitaram um
combate eficaz, razão pela qual a doença ganhou terreno sem um antídoto à altura.
Da casa-grande, a sífilis invadiu a senzala, o massapê, o canavial... Nasceu

na
do intimidade d a família
engenho. Meninos portuguesa
brancos, e de lá de
os nhonhôs, se entranh ou porjá entre
12, 13 anos, os recantos
exibiam sobran-
ceiros a marca da sífilis, confundida com o emblema de virilidade. Desde os
tenros anos, aos meninos dóceis, mais inclinados a empinar papagaio que a
outra coisa, cobravam-lhes o exercício da sexualidade. Cedo sifilizaram-se em
nome de uma petulante falocracia. O distintivo sifilítico, por incrível que pare-
ça, arrogou-se de insolências de macho. Sifilítico, mas m acho, ninguém poderia
questionar a pronta e eficiente varon ia. O corpo denu nciava a mancha do falo.
Ferida de guerra, a sífilis sacralizou muitos heróis, dentro de casa, na perigosa
dimensão do que é familiar – a familiaridade quebra a perspectiva do intenso,
anulando as proporções e amortecendo os riscos. O que é familiar é próximo, não
causa receio. Pequeninos em idade, mas protagonistas de façanhas de adulto.
Negrinhas virgens, as mais apetitosas, constituíam o alvo dos meninos
sifilíticos. Dizia-se até que nada melhor do que uma negrinha virgem para a
cura da doença. Sórdida lenda que se teceu em tempos coloniais. Como se o
excesso de saúde da africana pudesse neutralizar o despautério do lues. Cruel
argumento que vem somente a ratificar o abuso do corpo da negra.

 Negras tantas vezes entregues virgens, ainda mulecas de doze e treze anos, a
rapazes brancos já podres da sífilis das cidades (FREYRE, Gilberto. Casa-gran-
de & senzala, 1966, p. 341).

Numa sociedade onde os intercursos lúbricos foram vistos como sinôni-


mo de exuberância, nada m ais natu ral que as d oenças sexualmente transmissíveis
– as DSTs – se propagassem à larga, sobretudo quando não avultavam meios
para preveni-las, men os aind a p ara curá-las.

É claro que, sifilizadas – muitas vezes ainda impúberes – pelos brancos seus
senhores, as escravas tornaram-se, por sua vez, depois de mulheres feitas, gran-

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des transmissoras de doenças venéreas entre brancos e pretos. O que explica ter 
se alagado de gonorréia e de sífilis a nossa sociedade do tempo da escravidão
(FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala, 1966, p. 342).

O elixir e as garrafadas – com estampas estranham ente devotas, de ima-


gens do Men ino Deus, cercado de anjinhos, a aconselhar o elixir tal – tiveram a
função de chamar a atenção para a doença, mas não alcançaram a plenitude da
cura. A casa-grande ensaiou várias tentativas, algumas homeopáticas, que não
surtiram os efeitos almejados; serviram apen as como d enú ncia de um mal que
inu nd ava o sangue imoderad amen te. A política sexual fora sempre a de cultuar
a licenciosidade em níveis elevados, o que ocasionou a veiculação da sífilis em
um campo aberto à ação devastadora.

Lamentável
Sifilizou-se antes. dizer: o Brasil doméstica
A prostituição não se civilizou dianteàde
deu cancha tantas
livre intempéries.
revoada de uma
enfermidade imp lacável, que a n ingu ém p oup ou, nem mesmo aos recém-nasci-
dos, esses contaminados pelo leite materno. Como se pode inferir, o efeito che-
gou a gentes que não praticaram sexo. A ama-de-leite contagiou-se com o m eni-
no no peito ou vice-versa. Verificou-se, portanto, a ingerência pela via da
amamentação, ocasionando prejuízos irreversíveis.

Costuma dizer-se que a civilização e a sifilização andam juntas: o Brasil, entre-


tanto, parece ter-se sifilizado antes de h aver civilizado (FREYRE, Gilberto.
Casa-grande & senzala,1966, p. 51, o grifo é meu).

O Brasil, ainda no século XIX, quantificava uma grande massa de sifilíti-


cos. A erradicação da doença foi lenta e gradual. Os higienistas demonstraram
preocupação com o evoluir de um grave mal. Por ignorância ou por deficit  cien-
tífico, a sífilis perdurou durante muito tempo e impregnou a população brasilei-
ra de uma moléstia inspiradora de inquietantes astenias sociais.

A RELIGIÃO DO SEXO

O catolicismo brasileiro vestiu-se de túnicas líricas. Resultou de encontros


ecléticos, quase holísticos. Portu gal, já p or si, eviden ciava um misticismo car-
regado de “hiperestesias”, talvez até despersonalizado nas múltiplas raízes: ro-
manas, mouras, judias, bárbaras, pagãs, cristãs... Do islamismo advieram inú-
meras influências que embrandeceram o quadro religioso em vigor. A seu jeito,
esculpiu a mentalidade do português ou fê-la conviver com outras formas de
conhecimento religioso, aumentando a percepção para além de si mesmo.
Religião com cheiro de carne. O cristianismo ren deu-se a ou tros prin-
cípios para apaziguar a fúria civilizatória. E apaziguou muito bem. Com

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esbanjadores acenos. Com artifícios meticulosos. Com focos exagerados de


lubricidade. A rotina entremeou-se de apelos sexuais que animaram a festa da
carne, religiosamente permitida, o que já lhe conferia ganhos adicionais – rega-
los divinos,
Santosabençoados
de carne epela
comliturgia
o mesmo da fé.
sensualismo de homens desejosos de
copular. A religião reacendeu a pulsão já inflamada pela libido portuguesa. Sob
o arrimo da Igreja, o sexo tornou -se leve e solenemente ou torgado p or mãos que
não eram humanas. Mãos sacrossantas com o poder de amortecer o maior dos
defeitos. Machos e fêmeas desfrutaram o êxtase de uma sexualidade acaricia-
da por Deus. Que mais se poderia almejar para que o desejo se realizasse
com a plena anuência dos “imortais”? O corpo fez-se enlouquecidamente
cobiçado na tríade das etnias. Basta citar as alusões aos Santos, à Virgem, ao

Menino
imagem Jesus,
de umaaomulher
quotidiano
prenhe;do São
bangüê: Nossa
Gonçalo do Senhora
Amarante doaÓdesdobrar-se
adorada na
para atender aos rogos das mulheres que tanto o arreliavam com promessas e
fricções; São João Batista, moço bonito, namorador, solto entre as moças que lhe
dirigiam pilhérias. A diversidade do hagiológio católico em m uito ajudou a ale-
goria da festa sexual.
Até mesmo os azulejos – de influência moura – transformaram-se em ta-
petes decorativos nas capelas, nos claustros, nas residências. E os desenhos,
então assexuados, adquiriram, na arte cristã, formas afrodisíacas, quase obsce-
nas. Mais uma ingerência muçulmana à qual se adicionaram pinceladas eróti-
cas. Nas sacristias e interiores das igrejas, as grandes paredes cobriram-se de
azulejos com cenas de p lástica sexual.
Brancos, negros, índios pacificavam-se no mutirão da religião. O catolicis-
mo pontuou a peça fundamental de família na obra colonizadora. O cimento da
união. O lastro propulsor de proles desvairadas. Só uma barreira mostrava-se
intransponível no Brasil colonial: a da heresia. Essa era vista com repúdio, des-
prezo, rejeição. Tudo se aceitava, menos a mancha do ateu, a obliqüidade do
ímpio e sua frigidez estéril que empurra almas à cond enação. O Brasil precisava
ser um Brasil de santos ou, pelo menos, de guardiões da fé. Assim foi.
Exageradamente defensor dos valores cristãos e jesuíticos.
Católicos, sim. Hereges, nunca. A obra de cristianização referendou
um processo seletivo, vivenciado com bravura pelo Brasil de nossos ante-
passados. Qu e chegassem machos e fêmeas em graça. Desinfetados d a p este
da heresia. Pelo batismo, estariam prontos para o ofício da “governância”,
isto é, para o ofício de administrar os seus corpos em permanente erupção
de d esejo. A orgia da carne d isse da celebração d o p atriarcalismo. A religião
chegou a abençoar com o sinal-da-cruz os “devassos” de moralidade sexual.
Pais-nossos e ave-marias rezavam-se ao compasso da cerimônia do amor e
das fustigantes sandices da paixão.

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No Brasil, a catedral ou a igreja, com a sua estrondosa arquitetura barroca,


seria substituída pela hu milde capela d o engen ho – pálida na engen haria d e
pedra e cal, porém excelsa na simbologia de um poder ú nico. O clericalismo
não
deu floresceu apesarded engenho;
para a capela os esforçosesta,
dos ptão
adres da Comp
pequena, anh ia.eArusticamente
simples catedral p er-
constru ída; aquela, erigida em alicerces e em d imen sões artísticas inigualáveis.
Mas a soberania “plástica” não foi suficiente para defrontar-se com o impé-
rio dos oligopólios açucareiros.
Os aposentos do engenho sediavam um a procissão permanen te. And ava-
se de rosários na mão, relicários, santinhos, águas-bentas, um aparato quase
bélico para agradar aos dois senhores: o da terra e o d o céu. Orava-se pela ma-
nhã, à hora das refeições, à noite. Conversava-se com os santos, como se eles

fizessem
trocarem parte daOs
idéias. família,
santoscom presença corpórea
deambulavam dentro definida, a responderem
de casa lembrando ea
íntimos
convidados.

Foi esse cristianismo doméstico, lírico e festivo, de santos compadres, de santas


comadres dos homens, de Nossas Senhoras madrinhas dos meninos, que criou
nos negros as primeiras ligações espirituais, morais e estéticas com a família e
com a cultura brasileira (FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala, 1966, p.
380).

Essa fusão de deidades – umas fetichistas, outras católicas – induziu a


equalizações desejáveis à medida que o negro encaixou a herança religiosa afri-
cana à realidad e, não menos religiosa, europ éia. Emergiu u m quad ro de justa-
posição, bem ao gosto dos atavismos de cada raça. As aderências proliferaram,
penetrando no imaginário coletivo do povo brasileiro, que h oje defend e suas
ondulações místicas entre flexibilizações de todo louváveis.
Uma vida de rezas. Um cotidiano cheio de superstições e de convic-
ções religiosas. Nas cadeiras de balanço, as nossas bisavós mu ito ped iram ao
Menino Jesus: saúde para os netos, casamento para a sinhá, prosperidade
para a cana... Do santuário à cozinha, a ebulição da fé. Porém, uma fé
ecumênica, que não se restringia às normas exclusivas do catolicismo. Pre-
sunçosa de fetiches, de atavismos, de misturas sadias que concorriam para o
bem-estar familiar. A idéia de Deus corporificada. Santos carnais. Com senti-
men to e com cheiro de gente, o que lhes conferiam dividen dos extraordinários
mediante fortes laços de solidariedade.
Um Deus presente e partícipe de um a vida n em semp re cativa de opulên-
cia. Um Deus que chora, que ama, que ri, que aplaude os bons e condena os
mau s. Um Deus imediatista num mu nd o secular; logo, com sentenças bem d e-
finidas para a desarmonia do universo.

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A Família Patriarcal

 Dessa intimidade entre o sagrado e o profano deriva a mescla humanizada,


indecomponível que transforma nosso catolicismo numa crença sem mística
especulativa e sem ascética, antes idílico e sensual (MOUTINHO, José Geral-
do Nogueira. O sentimento religioso em Casa-grande & senzala, 1985, p. 101).
Rezava-se a Santo Antôn io para arrumar casamento; a Nossa Senh ora do
Bom Parto para auxiliar a hora do nascimento; às Nossas Senhoras e aos Santos
para colaborarem nas decisões mais comp licadas do dia-a-dia. Uma relação am iga,
com trocas de confiabilidade.
Na ocasião da botada – primeiro dia da moagem d a cana –, lá se postava
o pad re para assegurar o sucesso do eito. Nada se fazia sem sacralizar o profano.
O mu nd o, sabia-se, estava cheio de maus-olhad os. Com Deus como patrono, o

trabalho firmava garantias preliminares em base de futu ras prosperidad es.


O sacerdote primeiro dizia missa; depois dirigiam-se todos para o engenho, os bran-
cos debaixo de chapéus de sol, lentos, solenes, senhoras gordas, de mantilha. Os ne-
gros contentes, já pensando em seus batuques à noite. Os muleques dando vivas e
soltando foguetes (FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala, 1966, p. 471).

As etapas religiosas cumpridas, assim o engenho penhorava safras


alvissareiras. A ordem divina guiaria a ordem do melaço e, em decorrência, a da
economia. Orações, muitas. Uma casa-grand e inund ada de preces. Não só ora-
vam mulheres brancas. As negras, sobretudo. Eram tão rezadoras, as negras,
que passavam o dia cantarolando músicas “sacras”, recitando credos e versos
moralistas. Sílvio Romero afirma ter-se tornado religioso diante d o exemplo de
sua escrava Antônia, a mais devota mulher que conheceu. Passava o dia a rezar
e a benzer-se, rogando a Nosso Senh or permissão para tu do.

Quando se perdia dedal, uma tesoura, uma moedinha, Santo Antônio que desse
conta do objeto perdido. Nunca deixou de haver no patriarcalismo brasileiro,
ainda mais que no português, perfeita intimidade com os santos. O Menino
 Jesus só faltava engatinhar com os meninos da casa; lambuzar-se na geléia de
araçá ou goiaba; brincar com os muleques. (...) Com Santo Antônio chega a
haver sem-cerimônias obscenas. E com a imagem de São Gonçalo jogava-se
 peteca em festas de igreja dos tempos coloniais (FREYRE, Gilberto. Casa-gran-
de & senzala, 1966, p. XXXVII, 246-247).

A intimidade entre o devoto e o santo consagrou a flexibilidade do


cristianismo colonial. Uma interação que se quis acondicionada em pousos
familiares, o divino a ocupar relações próximas, de rara afinidade com o huma-
no. Este quadro simbiótico agregou o singular feitio da mística do passado.

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Fátima Qu intas

Assim a hegemonia religiosa, comum ao cristianismo clássico, perdeu


terreno no contato com a africanidade. Ao amaciar a religião, lançando toques
de mundanidade, o negro retirou-lhe o ar de punição, ressignificando-a em
veios mais complacentes
O Brasil e, sobremaneira,
desenvolveu-se maisbenéfica
sob a miragem altruístas.do catolicismo plural e
esbanjadoramente repositório de crenças alienígenas. A potencialidade em acei-
tar e em conviver com o “exógeno”, à orla da Bíblia lusitana, ofertou-lhe um
amplo caleidoscópio, verdad eiro oráculo de “gêneses” possíveis. Sem discrimi-
nações, aceitou as variadas influências, unificando-as em balizas de polifonia e
polissemia.

(...) O Catolicismo foi o elemento mais vigoroso nesse conjunto, mas ele mesmo

é, sob Livro
son. certosdefinitivo
aspectos,naaqui
vidanointelectual
Brasil, “superstição católica”
do Brasil, 1985, (MARTINS, Wil-
p. 273).

Sensualidade não faltou ao Catolicismo colonial. A religião chegou a con-


descender com a profusão de intercursos genitais. Os pad res, a quem se atribuía
a virtude do celibato, não conseguiram controlar-se diante de tamanha
permissividade. Tanto que, em nome da moral religiosa, houve iniciativas de
preservar, sem o sucesso esperado, a condição de abstinência sexual dos sacer-
dotes, sugerindo-se a moradia do capelão fora da casa-grande. E, ainda: com
escrava velha para servi-lo, dotada de poucos atributos físicos. Evitar-se-iam,
dessa maneira, as numerosas tentações. Pelo menos, o clero deveria corresponder
aos princípios louvados pela Igreja, entre os quais, o mais pudorosamente de-
fendido, o da sublimação sexual. Que os leigos se afogassem n o prazer orgástico.
Os padres, não. Tudo leva a crer, contudo, que a libido superou o presbítero,
estimulou o desejo e anu lou os supremos dogmas católicos. Mas tentativas ocor-
reram. Se não lograram os resultados perseguidos, colaboraram para tranqüili-
zar a consciência dos mais austeros padres da Companhia de Jesus, esses, uns
donzelões convictos.
Do ateu ao religioso, o brasileiro traz den tro de si uma colméia de amuletos.
As sup erstições integram o seu imaginário com uma gama vastíssima de lances
mágicos. E ai do brasileiro que não respeite os seus babalorixás, o seu Deus, os
seus santos protetores! Um tanto à mercê dos suspiros lendários, elabora a pró-
pria mitologia, marcada pelo improviso e pela versatilidade.
Quermesses, festas de igreja, sorteios, rifas sincronizavam o cunho alegre
e telúrico da secularização do cristianismo que se desenvolveu sob o crivo das
oblações jesuíticas. Uma laicização qu e alfinetava a sexualidade, enquanto esta-
belecia adereços eróticos na dinâmica patriarcal. Basta recorrer a ainda usual
denominação dos doces, hoje populares, porém, anteriormente, confecciona-
dos em conventos peritos na técnica de estímulos seráficos e não menos

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A Família Patriarcal

fesceninos: sonhos, olhos-de-sogra, babas-de-moça, suspiros, manjar-dos-deu-


ses, nuvens-de-coco, barriga-de-freira, bolo-de-beata, bolo en gorda m arido, bolo
divindade, espera-marido, come-e-cala, bolinhos do amor, esquecidos, melin-
dres, paciência, beijos-de-freira,
ra, capela-de-freira, abraços,
fatias-de-freira, caladinhos,
toucinho d o céu, saudades,
cabelos datriunfos-de-frei-
Virgem, papo-
de-anjo, celestes, queijinhos de hóstia, conselheiros, velhotes, orelhas de abad e,
galhofas, lérias, casadinhos, viúvas, jesuítas, arrufadas, sopapos, desmandadas...
Nomes sensuais outorgaram à ação degustativa fermentos instigantes e
aliciadores da prática do amor. Um surto de fascínio alimentar e libidinal
para p icar os desvãos da casa-grande nas coisas do sexo. A negra p rovou ser
excelente n esse cond imen to. Exerceu um a função prep ond erante n a exegese
do cristianismo lírico.

as suas,Doestão
negro, todos nós
presentes aprendemos
como insígnias um pouco.que
culturais Reminiscências
ultrapassarãoreligiosas,
o tempo,
alongando-se na unidade brasileira, qual refrão de velhos contrastes coloniais.
E o cristianismo sensual e lírico resultou de uma partitura em três tempos.

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CASA-GRANDE,
CAPELA E SENZALA

José Luiz Mota Menezes


arquiteto, urbanista e historiador 

 A casa-grande, completada pela


senzala, representa todo um sistema
econômico, social e político:
de produção (a monocultura latifundiária);
de trabalho (a escravidão);
de transporte (o carro de boi,
o bangüê, a rede, o cavalo);
de religião (o catolicismo de família,
com capelas subordinado ao pater 
 família, culto dos mortos, etc.).
Gilberto Freyre

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José Luiz Mota Menezes

UMA OBSERVAÇÃO PERTINENTE


Quando se deseja escrever sobre o tema Engenho de Açúcar se vive uma grande
dificuldade e isso talvez se explique diante do que disseram sobre esse assunto muitos
e bons pesquisadores. Sendo a existência dos engenhos e os resultados deles obtidos
logo no primeiro século da colonização a explicação mais justa de uma auto-
sustentabilidade da Capitania de Duarte Coelho e ainda por se tratar de um sistema
de produção de grande interesse, em face de sua organização ter sido realizada nos
moldes referidos no Brasil, essencialmente no primeiro século e nas mais antigas
capitanias, a questão de imediato despertou o interesse daqueles pesquisadores inte-
grantes das mais diversas ciências. Assim, é possível que no presente texto se informe
alguma coisa de novo ou em nada ele contribua para a questão. Mesmo assim nos
gratificaPora possibilidade de debruçar
vasto reduziremos o tema sobre o tema otevendo
principalmen com nossos
aos engenhos olhos.
de Pernambuco
das Capitanias ao Norte, excluindo em parte a da Bahia diante de sua maior
complexidade. É possível que o aquilo dito sobre Pernambuco possa se aplicar
aos engen hos da Bahia, mas não nos aventuramos a tanto.

A CASA DE LAVRADOR NO MINHO – PORTUGAL

“Como resultante das dominantes geográficas locais, e da prolongada evolução


da sociedade
sição rural
às demais minhota,
formas o povoamento
de ocupação humanadisseminado
do território,caracteriza-se,
pela fixação doemlavra-
opo-
dor e da sua família junto às terras que trabalha.

Tendo em conta o intenso retalhado do solo, o tecido rural apresenta-se-nos


salpicado de propriedades de todo o tamanho, a que os serpenteados caminhos
vicinais dão à necessária coesão. À margem destes, mas cravados no seu próprio
agro, despontam as casas de lavrador, que se constituem como organismos
unifamiliares e auto-suficientes, composta pela moradia e as construções ane-
 xas, erguidas consoantes as necessidades.”
“Quando o proprietário rico, e também lavrador, ainda vive nas suas terras, em
que a falha dos campos domina e enforma o seu caráter, a casa de lavrador, como
um prolongamento direto da vida do agro, amplia-se e as instalações tomam as
 proporções que as necessidades exigem. E, embora o tamanho aumente, o esque-
ma mantém-se igual ao da casa do remediado, e os objetos, animais e pessoas
albergam-se, na mesma, lado a lado”.

  A modificação sofrida resume-se, portanto, à magnitude das dimensões.

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Casa-Grande, Capela e Senzala

Para melhor exemplificar apresenta-se a Casa de Calvelho, em Creixomil, cujas


características notáveis nos servem à maravilha.

 Ao
 porlado
si dádaohabitação, de traçado
tom e classe igual aque
das pessoas tantas
nelaoutras,
viviam.instala-se
Depois,arodeando
capela, quepelo

 Norte e pelo Sul o terreiro, lá está a teoria completa de abrigos para as diversas
coisas e operações.

 Atente-se na sua vastidão e nas dimensões de párea coberta, e verificar-se-á que


estamos em presença duma grande casa de lavrador fidalgo.

 Apesar disso, não transparece a menor ostentação, antes, pelo contrário, tudo se

mede pelosmarcadamente
e objetos cânones de vida sóbria e digna, que se prolongam em gestos, hábitos
rústicos.”
(In:   Arquitectura Popular em Portugal, SNA, 19611)

A ORGANIZAÇÃO DA UNIDADE PRODUTORA


DE AÇÚCAR NO BRASIL

Quando, no século XVI, a exemplo em Pernambuco se organizam as primeiras


unidades de produção de açúcar no Brasil, com emprego de engenhos para
esmagar a cana e os demais componentes da fábrica, além da moradia do se-
nhor, dos escravos e a capela, tudo se constituiu em uma experiência pratica-
mente nova para os lusitanos, apesar das instalações existentes na Ilha da Ma-
deira. O novo consistiu na organização do território e na montagem de um
sistema que garantisse pouca improvisação. Isso no que se refere entre outras
coisas ao uso do rio como elemento auxiliar do transporte do produ zido desde
os armazéns, passos, de guarda do açúcar, e segura instalação da moenda, quan-
do se tratava de uso da roda d’água.
Para m aterializar tal sistema d e p rodu ção, considerand o aquela ap ropria-
ção do espaço, onde se situaria a plantação, o lavrador parece ter feito uso de sua
memória e experiência vivenciada por ele na Península Ibérica, embora relacionada
com outro tipo de produção, por exemplo, a do vinho. Desse modo, no conjunto
que vai tomando forma nos primeiros assentamentos relacionados com a produção
do açúcar ele não vai dispensar, considerando a dimensão do empreendimento, o
que em Portugal seria a sua moradia antes descrita. Isto é, teria que dotar a proprieda-
de rural no Brasil de uma casa, onde quais fossem as suas dimensões estas não afeta-
riam o modo de distribuição interna dos cômodos e a presença daquela varanda

v. 1961. Arquitectura
2 VVAA, p. 40 e seguPopular
intes. em Portugal. Lisboa: Edição do Sindicato Nacional dos Arquitetos,

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José Luiz Mota Menezes

voltada para a plantação. Nos mesmos termos ele


não dispensaria a existência da capela, colada ou iso-
lada da casa. Uma situação que nos parece natural
ao
em se considerar
relação às vilasoe relativo isolamento
povoações. O núm erodobem
conjunto
maior
de empregados e escravos o conduziria à constru-
ção de casas para trabalhadores livres e habitações
coletivas, a senzala, esta por conta do nú mero razoável de famílias negras. Natu-
ralmente a diferença do sistema adotado em Portugal para o do Brasil estaria na
matéria-prima produzida, ou seja, o açúcar e a máquina (o engenho propria-
men te dito, a moenda) de obtenção do caldo, os equipamentos de cozimen to e
de cura qu e requerem espaços diferentes e não existentes naturalmen te naquele

conjunto
No antes
Brasil descrito.
vão-se multiplicar as capelas rurais e elas passam a existir indife-
rentemente das dimen sões e posses do proprietário. Qu ase todo engenho tinh a
sua capela ou um oratório doméstico de bom porte. Trata-se de uma necessida-
de de proteção dos santos que está acima da situação de cada senhor de enge-
nh o, seja senh or de grand e ou p equena propriedade rural.
Diante de tal premissa, assim como em Portugal temos de considerar a
capela do engenho e aquelas que se ed ificam nas p ovoações que se organizam
nas proximidades daqueles e que em alguns casos podem se transformar em
igrejas paroquiais vinculadas às freguesias.
Quer a capela rural ou a ou tra situad a na p ovoação não parecem ser dife-
rentes na arquitetura senão naquilo que deriva do poder e do orgulho do se-
nh or do engenho no sentido de aformosear mais sua casa de Deus. A vida rú s-
tica desprovida de luxos é marcante na maioria das propriedades rurais, no
entanto os grandes proprietários, contrariando o modelo de vida existente no
Norte ou Sul de Portugal, passam a viver com mais requinte. Na maioria dos
casos o melhor da ornamentação será destinado à casa de Deus, mas alguns
senhores se dão ao direito de bem tratar a d ecoração intern a da casa-grand e, sua
moradia, se bem que com maior intensidade isso ocorra já no século XVIII e
seguinte.
Havia propriedades somente de plantio de cana, onde o senhor não pos-
suía recurso para construir o engenho e as que instalavam engenhos eram de
mós de pedra, ou de paus movidos por meio de bestas, almanjarras, ou por
força de uma roda de água. Tecnologias mecânicas conhecidas e empregadas
desde muitos tempos em Portugal.
Com fim de estabelecer um a melhor forma d e apreensão do assun to, divi-
diremos a questão segund o os tipos de edificações que comp un ham o conjunto
de produção do açúcar. Não deixaremos de lado os mobiliários das casas-gran-
des e das capelas.

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Casa-Grande, Capela e Senzala

Em cada um dos tipos estudados procuraremos localizar se possível os


prováveis modelos em Portugal. Também se adotará um sentido cronológico e
relacionado com o gosto arquitetônico vigente.

A CASA DE MORADIA DO SENHOR DO ENGENHO


OU DE APENAS PLANTAÇÃO DE CANA-DE-AÇÚCAR

Nem todos os senh ores de terras doadas para plantar e moer eram dotados de
meios para construir um engenho. Este era de alto custo e exigia mão-de-obra
especial, além d a aquisição de metais para os tachos. Assim existiam proprieda-
des somente de plantio outras que moíam uma vez que dotadas de moita e
maqu inaria necessária a todas as etapas d a produ ção.

AS PRIMEIRAS CASAS – SÉCULOS XVI E XVII

Percorrendo um inventário, realizado em Portugal pelo Sindicato Nacional dos


Arquitetos 2, já referido, encontramos algum as casas que muito nos ajudam para
uma melhor análise do tipo construtivo da casa de um lavrador de cana-de-
açúcar no Brasil. Elas estão situadas no  Minho e nas  Beiras. A maior parte delas
na região primeira.
A aparência externa dessas moradias tem como elemento de destaque a
varanda correndo por quase toda uma das fachadas. Desta varanda, situada na
maioria dos exemplos no pavimento superior, tem-se acesso aos cômodos (ou casas)
de usos diversos: sala, alcovas, cozinha e sala do oratório, a das rezas. As alcovas são
escuras ou abertas à luz se situadas na extremidade da varanda. Para tal varanda se
tem acesso por escada quer ao ar livre outras vezes com proteção de um telhado. A
varanda se abre geralmente para uma ampla paisagem3. Em alguns casos a cozinha
fica no pavimento inferior e, para acesso a ela, existe escada própria assim como para
a adega4. Em casas desse tipo, menores, o gado no inverno se abriga no térreo.

2
3  Arquitectura
“cabe, pois, Popular em Portugal
referir aqui . Lisboa:
um aspecto não Edição do Sindicato
men cionad o e qu e éNfun
acional dos Arquitetos,
dam ental para a comp2 reensão
v. 1961.
do fato: como ressalta da análise mais circunstanciada da planta, semelhante às outras casas, as
varand as são p rincipalmen te corredores qu e ligam a entrada d a casa com qu alquer quarto ou sala
e serão tanto mais compridas quanto mais dependências existirem alinhadas e convenha servir.
Apoiadas em pilares isolados; retraídas ou projetadas suspensas, de traves lançadas desde o
interior e de lajes de pedra engastada na parede; abertas ou entaipadas, recolheram-se exemplos
interessantes que nos mostram a relativa semelhança de soluções dispersas, numa faixa que se
pode referenciar por locais ou p ovoados como N espereira, ao Sul do Douro, em terras de Cinfães;
Celorico d e Basto. Ao longo d a estrada que daqui segue para Vieira do Minh o, Monção e Meru fe.”.
 Arquitectura Popular em Portugal, 1961, op. cit. p. 84.
4
Vários exemplos existem na referida publicação do Sindicato e algumas das casas estão
reproduzidas no presente texto.

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José Luiz Mota Menezes

Para saber de que forma foram construídas as mais antigas casas-grandes,


assim chamada as dos engenhos no Brasil, diante de não nos ter chegado
exemplares íntegros aos nossos dias, temos que nos valer do representado
nas pinturas dovinculados
arquitetônicos século XVII deaorigem
quer holandesa.deElas
uma arquitetura teortêm seus com
erudita, partidos
uso
de arcadas, pilastras, capitéis, base, tudo regido p or comp osições de arqu ite-
tura qu e segue o determ inad o nos Tratados ou n as anotações dos engenh ei-
ros militares ou mestres-de-obras. Elas se apresentam nas pinturas de duas
formas: simples, em taipa de mão sobre pilares de tijolos, ou rebuscadas e
fiéis a tais Tratad os ou anotações. Mas, em ambas, tudo faz crer qu e a d ispo-
sição dos cômodos interiores de um modo geral se filia àquela das casas do
Minho, em Portugal.

A presença
pelo clima, dasomen
não seria varanda, também
te à frente uma necessidade no Brasil imposta
da edificação,
em um bom número de casos ela faz a volta ao
redor d o nú cleo central onde estão os dem ais am-
bientes de viver. Quando a casa era térrea, a va-
randa corria à volta e a cozinha situava-se quer
fora do corpo ou na parte posterior da moradia.
Em Portugal, assim também no Brasil, aque-
las edificações em qualquer período de tempo fo-
ram edificadas em taipa, alvenaria de p edra ou em alvenaria de tijolos. Quan do
em p edra, vai requerer o u so de canteis e a obra lavrada terá ares de erud i-
ção. Sendo em taipa, no Nordeste, com freqüência a simplicidade da cons-
trução pode conduzir a uma composição de linhas sóbrias, mas em certos
casos não é a arquitetura da casa desprovida de erudição. Uma sobriedade
resultante do sistema construtivo, mas que não deixa à margem excelentes
prop orções quanto ao d esenho, qual a Casa-Grand e do Engen ho Poço Com-
prido, em Vicência, Pernambuco. Nas pinturas do artista Frans Post, vindo
com o Governador João Maurício de Nassau (1637–1644), podem-se ver tais
tipos eruditos ou simples no trato da arquitetura rural5.
Um grande inventário dessas casas rurais já existe em estudo publica-
do e realizado p or um arquiteto na qu alidad e de Tese de Doutoramento em
São Paulo. Posteriorm ente a tese referida foi condensada e ed itada p ela Fun-
dação Gilberto Freyre.

5
No quad ro Casa de Plantação com Torre (nú mero 15), reproduzida no Livro sobre Frans Post de
Joaquim de Sousa-Leão (Livraria Kosmo, Rio de Janeiro, 1973), a casa de taipa assenta em pilares
de tijolos. Na pintura Engen ho (nú mero 17), temos um exemp lar erud ito com dois torreões
ladeando um terraço em arcadas sobre um and ar térreo muito fechad o, talvez um a arrecadação.
Outros exemplares são apresentados pelo autor, mas não fogem muito a tais modelos.

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Casa-Grande, Capela e Senzala

A CASA-GRANDE NO SÉCULO XVIII

Nos séculos XVIII, ao dominar em Portugal o Barroco também nas constru-


ções rurais,
teor mais as casas-grandes
rebuscado. de em
Exemplares engenho seguirão
Pernambuco aquele gosto
6 demonstram quando
essas de
novida-
des do Reino em termos de gosto e tal ocorrerá, como veremos com mesma
modernidade nas capelas.
No entanto essas edificações sempre manterão um tratamento que está
mais vinculado às características do “estilo” Chão (Plain Style) do que as do
Barroco, inclusive no que refere ao uso da superfície curva e de um espaço
interior de acordo com as idéias de Borromini. Em algumas casas, raras, pintu-
ras nos forros lembram esse gosto artístico.

O SÉCULO XIX

No século seguinte, onde predominam o Neoclássico e o Ecletismo, revestem-se


desses “estilos” as casas rurais de Pernambuco 7.
Nesse século XIX em termos de elementos de modenatura e modulação a
casa-grande do engenho seguiu o m esmo tipo de composição da residên cia urba-
na, guardadas aquelas características de organização dos ambientes típica do mo-
delo rural. O seguir as diretrizes dos estilos em voga denota o interesse do senh or
de não ficar em situação inferior ao outro seu vizinho que reformou ou cons-
truiu n ova casa aos moldes dessa ou daquela modernidade. Pernambuco detém
belos exemplares, todos mobiliados segun do o que a casa exigia naquele século.

AS CAPELAS RURAIS

Em Portugal capelas ru rais estão presentes junto às casas dos lavradores desde o
mais recuad o tempo, segund o a data da fund ação de cada p ropriedade, as quais
estão sempre integradas. Assim, suas características arquitetônicas acompanha-
ram segund o aquele tempo o gosto dominan te no lugar, sejam elas eruditas ou
edificações simples.
6
As Casas-Grandes da Bahia ostentam maior luxo que as de Pernambuco. No entanto nesta
Capitania se pode assinalar a Casa-Grande e capela do Engenho Poço Comprido e a capela do
Engenho Bonito como exemplares de excelente qualidade artística.
7
Grande nú mero d e Boas Casas-Grandes d e Pern ambu co é exemp lar do século XIX. Algumas são
frutos de remodelações nessa centúria ou construções novas que substituíram antigas. Podemos
citar entre elas: a Casa-Grande do Engenho Morenos, em Jaboatão; do Engenho Monjope, em
Igaraçu; do Engenho Gaipió, em Ipojuca; do Engenho Preferência, em Escada; do Novo da
Conceição, no Cabo; do Engenho Mattas, no Cabo; do Engenho, depois usina Pumaty, em Joa-
quim Nabuco; do Engenho da Madalena, no Recife e do Engenho São João, adquirida, pois em
estrutura metálica, importada da Bélgica.

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José Luiz Mota Menezes

No Brasil dois fatores se associam na questão da arquitetura daquelas ca-


pelas: os recursos disponíveis do proprietário e o gosto presente entre os mes-
tres-de-obras, em grande maioria seus projetistas e executantes. Em qualquer
das situações
las, diante da no conjuntoproteção
necessária da fábrica a atenção
divina maioràsserá
em lugares voltada
vezes para
hostis. as cape-
A distância
entre as propriedades, na m aioria das vezes define a dimensão da capela e sua
imp ortância para a gente ao red or.
Quanto às características arquitetônicas e artísticas da capela, pode-se d i-
zer que elas seguiram com o desenrolar do tempo os modelos que podem se
associar do Maneirismo8 ao Neoclássico, onde inclusive os últimos exemplares
serão vinculados ao Ecletismo. No Brasil, o longo tem po de duração da Colônia
(1500–1822) se inclui no tempo do Barroco e em ap enas nu ma pequena parte do

gosto artístico
Maneirismo 1 que o antecedeu na Europa, ora cham ado d e Protobarroco ou de
. Depois da Independên cia, as capelas reconstruídas ou construídas
se vincularão aos estilos que sucederam ao Barroco.
Parece-nos, diante dos exemp lares ainda existentes, que a capela ru ral acom-
pan hou a mod a das urbanas. Apesar de destinad as ao culto pelo Senh or e assim
domésticas, a capela rural recebeu a gente do engenho a seu redor segundo a
imp ortância que ela adquiriu no lugar. Com a extinção dos engenhos, algum as
delas foram transformadas em paroquiais, e no Recife e seus arredores, com o
desaparecimen to dos engenhos, se farão matrizes de freguesias.
Quanto ao estilo dessas capelas, não se pode esquecer a filiação delas ao
gosto lusitano presente nas capelas rurais ibéricas. Para entender o gosto pre-
sente nessas capelas, também entra no jogo a memória dos senh ores e a origem
de cada um, e tal situação pode influir na arquitetura dessas edificações. A se
saber que a arqu itetura será diferenciada no resultado, seja ela do N orte ao Sul
de Portugal, e também se acredita que tal situação pode ter caracterizado as
capelas edificadas no Brasil na zona açucareira. Assim, não se deve analisar de
uma maneira geral o que ocorreu, e sim verificar cada situação segundo tais
parâmetros, o que ainda não se fez devidamente 9.
Seguindo aquele caminho natu ral do correr do tempo, verifica-se que as
capelas dos dois primeiros séculos seguem as diretrizes do gosto pelo
Protobarroco, com pred omínio da simplicidad e nas suas linh as, mesmo quand o
seguem os Tratados de Arquitetura, onde em algum as d elas a esse tratam ento
sóbrio do exterior se contrapõe, quando as condições assim o permitem,
um a m aior riqueza n o interior, esta rep resentada através do retábulo princi-

8
Não se pode esquecer a classificação de Kubler em Estilo Chão (Plan Style), grande parte da
produção arquitetônica portuguesa dos séculos XVI e seguinte.
9
Os estudos no Brasil tendem a gen eralizações e deste modo ao esquecimen to de tais situa ções
singu lares e decorrentes de particularidad es que se torn am importantes.

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Casa-Grande, Capela e Senzala

pal ou nos demais quando tal ocorre. Nos retábulos a imaginária acolhe a
mesm a lingu agem e d á a nota divina ao culto seguindo a d evoção da gente.
Cada um daqueles estilos artísticos antes citados tem linguagem pró-
pria e características
e essencialmente o daque direcionaram
capela. Em termos o gosto do construtorartísticas,
de características da casa-grande
anda-
mos, da sobriedad e de u ma linguagem mais atenta às formas da arquitetura,
para u m m aior dom ínio da escultura d ecorativa. De um modo Apolíneo, no
ver d e Gilberto Freyre, ao d e Dionísio.
As capelas mais antigas, pertencentes a engenhos dos dois primeiros
séculos, não chegaram ao nosso tempo todas elas 10. As que temos hoje são
produtos que sofreram intervenções salvo raros exemplares. No entanto,
graças às pinturas do paisagista Frans Post, artista já referido, se conhecem

exemp
próximaslares,
dasa m aioria n ão iden
casas-grandes e tificados,
ora são dede uma
capelas rurais. São
arquitetura elas situad
erudita, as
outras
vezes construídas em taipa de mão e mu ito simp les. Os d ois tipos têm plano
redu zido a u ma sala, a nave, que se interliga por u m arco cruzeiro à capela-
mor. Dois espaços interligados com uma sacristia anexa ora do lado direito
ou esquerdo. De um mod o geral, ausência d e sineiras em construção isolada
ou colada ao corpo d a capela. Algum as adotam sineiras sobre a fachad a late-
ral ou n a frontal. Um elemento d e interesse em algum as capelas representa-
das é um alpen dre à frente d a contrafação principal. Esse alpend re, às vezes
cham ado copiar, é um espaço aberto e bem afim com a galilé da igreja cristã.
No caso das capelas constru ídas à luz d os Tratados d e Arquitetura a comp o-
sição é cuidad a, e a se crer ten ham existido eram exemp lares de grand e bele-
za 11.
A decoração interior dessas capelas teria retábulos de boa feitura. A
tomar como referência a descrição do Reverendo Joan Baers de Olinda, elas

10
A capela do Engenho Velho, na Bahia, ún ica peça que resta d e um a casa-grand e construída no
século XVII, seguiu o modelo das capelas de corpo com planta-baixa ao quadrado e elevação de
mesma altura que o lado dessa figura geométrica, tendo uma cúpula, em meia esfera, assente
sobre pendentes esféricos. Solução de arquitetura muito semelhante à da capela-mor da igreja
dos franciscanos do conven to d o Recife (1608), onde as fontes d essa comp osição são as capelas do
litoral da Estremadura em Portugal. A capela do Engenho Velho também recebeu, qual a do
Recife, revestimento azulejar. Uma capela também de grande interesse é a da casa dos Garcia
D’Ávila em Tatuapera, na Bahia. Esta tem p lanta h exagonal e cúpula em barrete d e clérigo.
11
As pinturas de Frans Post não se realizaram todas no Brasil. Somente um pequeno número ele
pintou no Brasil. A maioria realizou a partir de um possível caderno de modelos e as situou em
paisagens fictícias, porém tiradas de desenhos ao natural e montadas aleatoriamente. Assim tais
construções, quer sejam casas-grand es ou capelas, são representações ou n ão d e edificações reais.
Acreditamos que o sejam, mas a dúvida ainda persiste à luz de uma documentação onde o
exemplar não mais existe. Uma capela com copiar que aind a existe é a capela de Nossa Senhora do
Socorro, em Santa Rita, Paraíba.

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José Luiz Mota Menezes

seriam adorn adas com belos retábulos dourados e com a imaginária adquirida
em Portugal ou feita no Brasil.

CAPELAS DA XVII
DO SÉCULO SEGUNDA METADE
E SEGUINTES

Com a derrota holandesa em 1654, apesar de se passar a conviver com uma


economia difícil em face do desmonte de grande número de engenhos, a
febre d e agradecimen tos a Deus motivou novas construções ou amp liações das
antigas. Nos engenhos, quando refeitos, a casa-grande deve ter passado por
reformas para adap tar-se ao novo gosto e assim também a capela.
Não existe documentação capaz de fixar com exatidão quantos engenhos

tomaram tais iniciativas,


onde se reformularam mas tendo,
tantas por exemp
edificações lo, opelo
religiosas, que ocorreu
menos asnacapelas
área urbana,
foram
remod eladas segundo o gosto do Barroco então surgindo como modernidades no
pan orama artístico de Pernambu co da segunda metade do século XVII.
Uma m ud ança de gosto no trato interior dessas capelas pode ter d erivado
da introd ução da talha dourad a no Recife, revestind o todo o espaço interior da
conhecida Capela Dourada. Os retábulos que entalhados e dourados emprega-
vam colunas torsas surgem no século XVII em Pernambuco. No entanto,
o maior exemplar, estonteante, foi a referida capela dos III de São Francisco 12.
Toda essa mudança de gosto foi lenta e somente está identificada com o século
XVIII por conta d e uma necessidad e didática. Ocorreu tal mud ança na verdade
de modo contínuo e defasado segundo cada situação.
Assim, as capelas rurais de en genhos vão sentir no século XVIII transfor-
mações não somente no seu aspecto interior, onde a talha dourada segue as
diretrizes do Barroco D. João V, mas nos exteriores, que se acomodam aos dita-
mes de uma composição que p erde a sobriedad e do estilo Chão se revestind o de
curvas e contracurvas nos seus ricos frontões e ond e os pórticos em pedra lavra-
da acompanhavam o gosto lúdico do Barroco. Um dos exemplares mais interes-
santes desse período é a capela do Engenho Bonito de rico lavor interior.
Interessante passou a ser o contraste que se instalou entre o tratamento
arquitetônico da casa-grande e da capela. Essa em um “estilo” que revela uma
sobriedade quase que arcaizante apesar de algum luxo interior, representado
este pelo mobiliário e uso cada vez maior de serviços em porcelana, quer adqui-
rida em Portugal, nesse momento na sua maioria, ou depois na França e In-
glaterra. A casa-grande cresceu, mas não criou nenhuma relação, senão
em p ou cos casos, com os palácios urba n os desd e qu e ela seria um p alácio

12
Senhores de engenhos e comerciantes bem-sucedidos eram irmãos da Ordem III de São
Francisco do Recife nesse momento vivido por Pernambuco e o Recife.

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Casa-Grande, Capela e Senzala

ru ral em tese. Na Bah ia, isto n o fin al do sécu lo XVIII e n o século seguin-
te, algum as casas p od em ser iden tificad as com p alácios p ortu gu eses, m as
são casos raros. O mesm o se pod e d izer d a capela.

MOBILIÁRIO E IMAGINÁRIA

Em princípio as casas-grandes e as capelas teriam sido decoradas com móveis cujas


características os filiam aos modelos conhecidos e sóbrios de Portugal. Cadeiras de
couro lavrado e mesa de discos e bolachas. Bancos de madeira. Rústicos ou ornamen-
tados ainda se encontram nem sempre nos lugares de origem, mas em museus. Nas
casas mais antigas, o mobiliário teria acompanhado a moda dos usuários e no século
XIXse renovou toda a mais antiga mobília por ser antiquada e não representar o luxo

desejado
interior dapela gente e os
casa-grande seumóveis
tempo.desse
Ainda em Pernambuco
tempo de mudanças.engenhos guardam noo
Assim destacaríamos
Engenho Giapió, o Morenos, o Novo da Conceição e finalmente o Engenho Mattas.
O mobiliário aí encontrado é de gosto Eclético e foram fabricados no Recife, a exem-
plo, os de Julião Berangèr, ou adquiridos na Europa através de Catálogos dos fabri-
cantes. Pode-se encontrar nesses engenhos, isolada, alguma peça mais antiga, esca-
pada da sanha de modernidade, porém a maioria dos móveis é de tal momento de
importações em larga escala desde o Velho Mundo. Os jornais atestam tal situação
em informações diárias.
Qu anto à capela, esta também, no seu interior, acomp anh ará tais mudan-
ças artísticas. Aquelas onde as talhas eram de feitio notáveis perm aneceram sem
alterações. Outras, cuja simplicidade do altar exigia renovação, passaram a ser deco-
radas com retábulos de alvenaria e estuques decorativos de relativo bom gosto.
A imaginária de todas essas capelas de engenho era de grand e valor. Qua-
se tudo se desviou d e lugar e p arou n a mão de antiquários ou colecionad ores. A
decadência ou desaparecimen to dos engenh os levou a tal dispersão13. Peças exis-

13
Com o surgimento no século XIX dos engenhos centrais, depois das usinas, fontes de maior
capacidade produtiva do açúcar e que refletiam um capitalismo concentrador, onde o poder
restava nas mãos de pou cos, ao qual se somou um a prod ução mecanizada p elo desenvolvimento
das máquinas a vapor, se terá de considerar no sistema então existente, havia a necessidade de
mais cana p ara moen da. A forma d e resolver tal problema foi se adquirir ou arrendar engen hos
à volta. Eles passaram a ser apen as lugares de plantio. Quand o tal aconteceu nessas propriedades
rurais, desmontou-se aquele modelo consagrado. As Casas-Grandes deixaram de abrigar os seus
antigos senhores e as capelas serviram para outra gente ou deixaram de ter usuários. A decadên-
cia de tais construções foi inevitável. Por outro lado, com a libertação dos escravos, nem toda a
senzala se manteve com os seus moradores. Na maioria dos casos os velhos engenhos passaram
a ser coisas do p assado e dependen tes de u ma cultura representativa dos temp os decorren tes e
relacionados com os novos senhores rurais, os usineiros. Estes talvez não integrados ao que
eram p ara aqueles antigos senh ores os engen hos. A morte d o engen ho foi também a d e um a
cultura a ele interligada. Passou tudo a ser páginas viradas e esquecidas de álbuns de família.

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José Luiz Mota Menezes

tem, mas elas nem sempre estão onde deveriam ser alvos de d evoção. São peças
de decoração de casas urbanas. A rica variedade dos santos representados e a
notável execução levam as autorias para bons santeiros de Pernambuco ou de
Portugal. Muitas
proprietário. vezes
Assim estãoo assinalados
engenho associou
vários seu
delesnome ao santo
em mapas de devoção
holandeses do
do sé-
culo XVII da Capitania de Pernambuco e demais desenhadas pelo cartógrafo
J.Vingboons em c.1665.

AS SENZALAS

A grand e quantidad e de escravos cond icionou o aparecimen to de u m tipo cons-


trutivo de certo modo igual em todos os engenhos: as senzalas. Um grande

terraço, cuja
ral, corria cobertadeera
à frente sustentada
dois pequ enosp or colun asinterligados
cômodos de alvenaria,emdeseqü
um ência.
modo São
ge-
longas construções que em alguns casos, qual no Engenho Monjope, em
Igaraçu, formavam simetricamente o terreiro à frente da casa-grande e da
capela. Nesses dois cômodos, em princípio, vivia uma família. Era coberto o
grand e corpo com um telhad o em duas águas que vinh a do terraço aos fun -
dos da parte mais longa. Poucas variantes existiam desse modelo consagra-
do. Singu larmen te o Governad or N assau fez u so dessa forma de abrigar fa-
mílias de colonos p obres em algum as quad ras da Cidad e Maurícia, a se acre-
ditar ser verdadeira representação da realidade a pintu ra de Frans Poste exis-
tente em Potsdam , na Aleman ha.

PALAVRAS FINAIS SOBRE A APROPRIAÇÃO DO ESPAÇO PARA A


INSTALAÇÃO DOS ENGENHOS

Algumas palavras finais se devem permitir à questão da apropriação do es-


paço para a instalação dos engenhos e a relação entre eles. Com se disse a
mem ória da form a de prod ução do vinho levou a se conceder, ao saber o que
podia produzir cada interessado, parcelas de terra na forma de sesmarias
para nelas se fundar a plantação e construir as demais partes necessárias à
produção do açúcar.
Um ou tro problema a que se deve ficar atento é o d o escoamen to para
o porto de em barque d o produ zido. Não era logo possível, diante d a confi-
guração geográfica dos lugares, quer em Pernambuco como em outras par-
tes, se construir logo pontes sobre rios e dar continuidade aos caminhos que
seguiriam com o açúcar prod uzido para o porto. A solução foi usar a navega-
ção pelos rios. Isso condicionou a localização das doações nas proximidades
de um rio e que seguisse na direção daquele porto. Outra maneira, mais

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Casa-Grande, Capela e Senzala

difícil seria a proximidade do m ar que tam bém p oderia ser útil ao transporte
do açúcar. Preferiu-se como forma inicial e imediata a primeira solução. As-
sim as datas de terras doadas ficavam junto aos rios existentes próximos a
Olinda e ao portodedos
Ela era resultado arrecifes. A cuja
sistematização teia base
começou
lógicaa era
se organizar
bem fiel à lentamente.
nova razão,
esta talvez resultante de um mundo mercantil nascente.

O DESENVOLVIMENTO DA GRANDE TEIA


Finalmente a fórmula instalada vencera. Apaziguados os índios, afastados do
litoral (ou dizimados) ao fim do século XVI, a boa produção dos engenhos per-
mitiu em Pernambuco que Olinda pudesse ser comparada com “uma Lisboa
Pequena”, por desse
seu autor fala um jesuíta. Nos  Diálogos
novo Paraíso, das Grandezas
malgrado do Brasil, com
os males decorrentes dasorgulho,
feras e
doen ças. Restava ampliar a produ ção para além d a sede da capitania quer para
o Norte, até o limite legal da doação, e para o Sul, enquanto houvesse terra
capaz da plantação. O modelo seguido foi o mesmo embora os rios fossem
diferentes. E nos vales desses rios se instalaram lugares de p rodução. Para o
Sul, com datas de terras maiores por conta de nova gente que, sabendo da
vitória dos primeiros, vinh a com m ais capital. Assim foi com João Pais Barreto
o qual ocup ou larga porção de terra ao red or d o Cabo de Santo Agostinh o,
até
maponde a vista
as que livros, lembrando
alcançava
ilustram holand eses frase
sobre tão conhecida.
o p eríodo Ao ação
d e ocup examinar os
do Nor-
deste, pode-se verificar a certa localização desses lugares de produção tudo
segundo aquela teia dos caminhos e com a presença dos rios navegáveis se-
guindo para p ortos instalados ao longo da costa da capitania. Uma organiza-
ção que talvez tenh a sido fruto d o acaso, mas que se duvida o seja.
O Estado d as Alagoas, antes parte de Pern ambuco, não teve situação dife-
renciada quanto ao sistema de localização da produção do açúcar. O que é de
interesse na antiga Comarca é a presença de d uas lagoas que por sua vez gera-
ram
porteum
quetipo d e relacionam
então ento
foi vinculado comde
à Vila os Santa
engenhos
Mariaà volta com respeito
Madalena n a Lagoaaodo
trans-
Sul,
ou seja, a Alagoas ad Austrum dos h oland eses. Outro lugar importan te foi o do
entorno ao Rio de São Miguel mais para o Sul da Capitania.

CONCLUSÕES
O conjunto fabril, os engenhos numa designação genérica, eram verdadeiros
complexos em termos de números de ed ificações e, entre elas, as Casas-Grandes
constituíam obras-primas de arquitetura rural sobre as quais um escritor che-

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José Luiz Mota Menezes

gou a rotular com propriedade de “Escuriais” do


Nordeste, tendo como referência o grande palácio
filipino espanhol. Ainda hoje as que permanecem
de pé são atrações à parte daqueles antigos cami-
nhos.
O açúcar não é um prod uto isolado. Dele sur-
gem subprodutos e ele forma hábitos e modifica cos-
tumes. Câmara Cascudo, quando fala da anatomia
do açúcar, destacou a imp ortância dos doces e bolos
nas sobremesas e a variedade desses diante da in-
venção das sinhazinhas e das doceiras quer nas ci-
dades ou no meio rural. Henry Koster, inglês e se-

nh
do or de engenho
século em Pernambuco
XIX, numa nos primeiros
de suas viagens anos
nos informa
sobre a quantidade de doces e bolos que lhe foi ofe-
recida após uma refeição, dita ligeira! O prazer da
sobremesa passou a ser o de toda a hora e a perdição de quem n ão deseja engor-
dar. Desde finais da Idade Média, os cremes de leite, frutas secas no mel, por
confiture, reinavam no dessert ; levantar, desservir, o derradeiro serviço sobre a
mesa, hora amável e leve da despedida gentil. Não apenas os mais diversos
doces seriam subprodutos da cana-de-açúcar, outro é a aguardente. A aguar-
dente, destilada da garapa ou do mel, possui no Brasil projeção econômica e
presença na Cultura Popular como outro líquido da mesma origem em qual-
quer paragem d o Mund o. Ou tro produto aind a hoje de grande predileção é a
rapadura. A rapadura teria vindo das Ilhas espanholas.
Outro aspecto de interesse na p rodu ção do açúcar era a festa da Botada, o
engenho passava a ser um pátio de feira. Os escritores sobre tal momento da
prod ução escreveram belas páginas.
Nos engenhos a capela tinha função de grande interesse. As missas e as
festas das padroeiras dessas capelas traziam mu ita gente d o redor para o terreiro
da casa-grande, onde os festejos eram variados. Depois esses foram deslocados
para os povoad os com êxito. O Pastoril, auto do N atal e vivido com intensidade.
As capelas o lugar onde na riqueza das talhas estava espelhado o pedido de
perdão do d ominador em termos do males causados aos dominados. Que todos
rezem uma Ave-Maria e um Padre-Nosso para esse pecador, assim dizia a inscri-
ção de uma sepultura magistral. Ricas capelas, ornamentadas pelos melhores
artistas constituem um dos melhores atrativo dessa civilização do açúcar.
Será que tudo se desmanchou no ar?

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RELIGIOSIDADE
FÉ, FESTA & COTIDIANO
NAS TERRAS DO AÇÚCAR

Raul Lody
antropólogo, museólogo e ensaísta

 Navegar é preciso
Crer, também é preciso
Raul Lody – paráfrase de Fernando Pessoa

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Raul Lody

Crer é re-ligar, juntar, trazer, unir, fazer com que o homem consiga entender por que
nasce, por que morre, por que encontra nos símbolos mais ancestrais e fundamentais
seus sentimentos de pertença, de singularidade, de alteridade.

homem. É necessário
É necessáriojustificar a criação
criar mitos, deuses,do mundo,
santos, do
orixás,
seres diferenciados das relações físicas, carnais, essenci-
ais, como buscar abrigo, comida, afeto, lúdica, jogos,
regras e hierarquias para sistematizar papéis sociais, lu-
gares de homens, mulheres e crianças.
Trazer o amplo conceito de religião, aqui melhor
situado na compreensão de religiosidades, é trazer prin-
cipalmente a história, a sociedade, a cultura nos seus mais dinâmicos processos de
trocas, de permanências,
tados nos cotidianos, node transformações,
tempo das festas, de
naspatrimônios, de acervos
casas, nas ruas, experimen-
nos templos, nos
santuários, nos terreiros.
Assim, olhar para as manifestações da religiosidade de maneira generosa e não
preconceituosa é um dos papéis da ação turística, dando valor, reconhecendo e res-
peitando a diferença e o direito a essa diferença.

A FÉ A PARTIR DO AÇÚCAR

Sem dúvida, a Civilização


e de representações do eAçúcar
espaciais no Nordeste traz estilos próprios de ocupações
simbólicas.
No século XVI, o então chamado ouro branco, o açúcar, inicialmente rara espe-
ciaria só comparada em valor comercial ao grama do ouro, é a grande abertura do
encontro de povos, de continentes, de sociedades de várias partes do mundo.
Esse processo tão rico e dinâmico do açúcar funda no Brasil um sistema de
relações fortemente associado ao regime escravista.
A partir do século XVI, estendendo-se até o XIX, por período de 350 anos,
estima-se a chegada no Brasil de mais de quatro milhões de homens e mulheres na
condição escrava.
Vindos de diferentes localidades do continente africano e de culturas diversas,
foram os então escravos co-formadores do Brasil colônia, como aponta Gilberto Freyre
em Casa-grande & senzala.
Aliás, as relações entre a Península Ibérica – Portugal e Espanha – com a África,
 já há muito se haviam estabelecido com os povos do Magreb, na muçulmana África
do Norte, atuando decisivamente na formação e na construção de uma civilização
euro-africana.
É ainda Gilberto Freyre quem aponta para uma forte biafricanidade que une o

Norte, o Ocidente, as regiões austral e oriental do continente africano, unindo os

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Religiosidade – Fé, Festa & Cotidiano nas Terras do Açúcar

muçulmanos e o longo tráfico de escravos, dando ao Nordeste, às terras do


açúcar, um a d ecisiva ação m atricial e formadora d o brasileiro.
A escravidão africana foi muito estimulada pelo Vaticano (séculos XV,
XVI, XVII), enquanto
sem conhecer uma Deus
o verdadeiro ação. cristã de dar alma àqueles seres que viviam
Certamente os interesses comerciais dominavam e configuravam os ver-
dadeiros motivos para esse tráfico exercido por Portugal no continente africano.
Destaca-se que no Brasil à época do d escobrimen to (para m uitos histo-
riadores, invasão) havia milhões de indígenas organizados em centenas de grupos
étnicos e culturais, com os quais entrou em confronto o europeu   faminto de
açúcar , iniciando o longo processo de dizimação desses povos nativos. Isso é
acompanhado pela implantação da monocultura da cana-de-açúcar na Mata

Atlântica, gerando
tema tão bem processos
tratado de profundas
por Gilberto Freyre emtransformações
 Nordeste, livronoemmeio
que,ambiente;
pela pri-
meira vez em língua portuguesa, se publica o conceito e a palavra ecologia.
Ecologia e cultura formam um dos mais importantes eixos da obra de
Gilberto para interpretar o n ordestino, especialmen te o pern ambu cano, se-
gundo suas teorias de uma ciência por ele chamada de tropicologia.
Os vários estilos de ocupar as terras do açúcar são assentad os na fé, nas
religiões, criando devoções interpretadas na crença multicultural em santos,
orixás, no Deus do olhar judaico, nos mitos indígenas, em Alá; e, mais, por
convivências e conivências decorrentes d os contatos com os h olandeses (sé-
culo XVII), no calvinismo; ou em muitos outros sistemas religiosos, por in-
termédio dos imigrantes do Oriente, libaneses, por exemplo.
A fé agrega e compõe identidades – no caso da saga do açúcar, dos
engenhos às cidades, constata-se um rico patrimônio partilhado e vivenciado
por milhões de n ordestinos, de brasileiros de ou tras regiões e de estran geiros
que estão no Nordeste.

A FÉ NOS ALTARES, NOS PEJIS, NOS TEMPLOS,


NAS ALDEIAS, NA CASA E NA RUA

A Civilização do Açúcar formou e fortaleceu uma religiosidade doméstica, da


casa, da casa-grande, da senzala, ampliando-se para os sobrados, os mocambos,
as casas das cidades, estabelecendo intimidade com os santos, trazendo-os para
o cotidiano, como membros da família, como bem situa Gilberto Freyre em Casa-
grande & senzala, relatando cenas de crianças convivendo com o Menino-Deus,
tão próximo, que certamente também brincava e comia doce de araçá.
Os altares dos interiores das casas, das capelas dos engenhos, das igrejas, alta-
res múltiplos com imagens de santos da devoção portuguesa, como Santo Antônio,
Sant’Ana, São Francisco, Nossa Senhora do Carmo – além de presépios, também arte

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Raul Lody

sacra; no seu conjunto alegórico do nascimento


do Menino-Deus marcando o Natal –, são dos
mais significativos elementos da religiosidade
14,15
nas terras do açúcar
No Natal as festas .religiosas se estendem da
casa à rua.
Pastoris, bois, reisados, guerreiros, cheganças, nau-
catarineta, marujada, coco-de-roda; trazendo música, dança, teatro medieval adap-
tado e reinventado nos canaviais, nos engenhos, nas praças e nos adros das igrejas.
Ainda no Natal nordestino, mesas fartas, barrocamente opulentas, reunindo
frutas secas próprias do inverno europeu em pleno verão tropical e emblematizadas
por rabanadas suculentas ao leite, ao coco, ao vinho do Porto, ungidas de canela,

açúcar,Asim, muito açúcar.


fé continuada na boca, no corpo, e que se expande no tempo das fogueiras,
de louvar os santos de junho, Santo Antônio, São João e São Pedro. É tempo do milho
maduro, da safra, que é plantada no dia de São José (março) e colhida no São João,
santo que é lembrado no fogo, símbolo mais antigo que o cristianismo, relembran do
cultos agrários milenares que unem o sol e a purificação da terra. Também o
fogo sagrado das fogueiras inclui-se nas festas religiosas afrodescendentes dos

14
Santos em madeira e barro são fortes expressões do artesanato tradicional de Pernambuco,
Paraíba e Alagoas, reunind o centenas de hom ens e m ulheres que se d edicam a trabalhar tem as
religiosos que afirmam iden tidad es portu guesas, aquelas imp lantadas quan do do longo processo
do plantio da cana-de-açúcar e da fabricação de açúcar. Assim, santos da fé de além-mar são
rememorizados no trabalho familiar, de comunidades que se distinguem com a produção de
imagens de Santo Antônio, São João, São Francisco, São Sebastião, Nossa Senhora do Carmo,
Santa Luzia, Santo Amaro, Sant’Ana, São José, entre outros.
As comu nidades de Goiana e de Tracunhaém , em Pernam buco, são reconh ecidas pelos santos
feitos de barro, e a de Ibimirim pelos santos feitos de madeira.
Ainda pintores, gravadores, fotógrafos e outros artistas têm na vasta imaginária católica seus
temas preferenciais para interpretar e trazer estéticas que aproximam e justificam o sagrado do
homem.
15
Exemplos magníficos da arquitetura sacra católica são visíveis nas igrejas, nos claustros dos
conventos, nas capelas dos engenhos, nos altares internos de algumas casas patriarcais, aproxi-
mando sempre o santo, a devoção ao caráter e à fé de uma família, de um estilo próprio de crer
constru ído n o p rocesso mu lticultural da civilização d o açúcar.
Altares e retábulos entalhad os em madeira de lei, matéria-prima abun dante d a Mata Atlântica;
recobertos de folhas de ouro. Arcos romanos, colunas salomônicas, todos repletos de volutas,
cachos de uvas, pássaros e outros motivos decorativos confirman do nosso barroco tardio do final
do século XVIII estendendo-se ao XIX. Ainda alguns ambientes em barroco rococó convivendo
com o n eoclássico das fachadas, das colun as, dos altares, trazendo novos usos dos estilos dórico,
 jônico e coríntio. Azulejos bicromáticos – azul e branco –, expressiva cantaria, pedra trabalhada,
 jun tos oferecem um a arte d evotada a Deus. Igrejas do Recife, Goiana, Igaraçu, O lind a, Pernambu co;
igrejas em João Pessoa, Paraíba; igrejas em Penedo, Alagoas, são testemunhos vivos da opulência
comercial do açúcar no Nordeste brasileiro

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Religiosidade – Fé, Festa & Cotidiano nas Terras do Açúcar

terreiros, homenageando o orixá Xangô, que é Obá, rei, senhor da justiça e


do fogo para os Iorubá (África Ocidental).
Junho é um ciclo festivo especialmente nordestino. Fogueiras domés-
ticas diante dao
se integram asespetáculo
casas, comidas à base
d as quad d e mconjun
rilhas, ilho: canjica,
to d e dpamonha,
anças cujobolos que
imaginá-
rio europeu é adaptado ao sentimento sertanejo, telúrico, da Civilização do
 Açúcar 16.
Outro ciclo de expressiva religiosidade tradicional e popular é o da
Semana Santa, precedido, porém, pela  festa da carne, o carnaval, que se in-
clui, assim, no amplo imaginário do sagrado.
Nas ruas encontram-se as expressões afrodescendentes dos maracatus
de baque-virado ou maracatus de nação, urbanas e características da cidade do

Recife, ou os
originários dasmuitos grupos
áreas dos de maracatus
canaviais de da
na zona baque solto
mata. ou maracatus
Esses vêm,
maracatusrurais
das irman dad es religiosas de hom ens negros e pard os, reun ind o grande qu an-
tidad e de escravos e libertos nas igrejas dedicadas a Nossa Senhora d o Rosá-
rio, São Benedito, Santa Ifigênia, Santo Elesbão, entre outros. Reunindo-os
para relembrar os reinados do Congo, base dos maracatus e de inúmeras
outras m anifestações, como cambind as, pretinh as do congo na Paraíba e as
taieiras de Alagoas.
Cabe, nos maracatus d e Pern ambu co, destaque para as calungas, bone-
cas feitas de madeira e que representam os orixás Iansã, Oxum e Xangô,
fazendo uma extensão no carnaval da religiosidade dos antigos e tradicio-
nais terreiros, como o Obá Ogun té Seita Africana Obá Om im – popularmen -
te conhecido como o Sítio ou Sítio de Pai Adão, no Recife.
Em âmbito afrodescendente o sagrado é amplo e convive de maneira
interativa com as festas, a do carnaval incluída.
Contudo os muitos terreiros que estão nas terras do açúcar têm prin-
cípios ecológicos fortemente fundamentados nas próprias tradições de po-
vos africanos, respeitand o e valorizand o a natu reza 17.
16
Só comparáveis às escolas de sam ba do Rio de Janeiro em variedad e e espetacularização são as
centen as de quad rilhas jun inas, fenôm enos d e m assa, organizadas em associações, agregand o
outros ritmos regionais e tradicionais, como o baião, o coco, o forró, resultando em dinâmicas
coreografias e indum entárias criativas e revitalizadoras do imaginário nord estino, aind a que com
base nu m conjunto de danças francesas do século XIX.
17
Árvores monumentais marcam os espaços afrodescendentes nos terreiros e em outros locais,
traduzindo maneiras de se relacionar com a natureza, manifestando sensibilidade ecológica e
inclusão no sagrado do verd e das plantas, das águas dos rios e do mar, dos animais e, conseqüen -
temente, do homem.
Destaca-se o terreiro Obá Ogu nté Seita Africana Obá Omim, preservand o centenária gameleira,
árvore sagrada dessa comu nidad e reconhecida como patrimônio cultural d e Pernambuco, rece-
bendo tombamento no ano de 1983.

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Raul Lody

A religiosidade afrodescendente é orientadora de hierarquias, conheci-


mentos sobre etnobotânica e línguas, como Iorubá, Kikongo, Kimbundo, Fon, Ewe,
entre muitos outros saberes patrimoniais.

SemanaEm meiorepleta
Santa, às festas
de emanifestações
aos ciclos religiosos docomo
públicas, Nordeste, retomemos
procissões a anunciada
teatralizadas, cor-
tejos que relembram a fé medieval, profundamente alegórica; além de celebrações
nas casas, mantendo o costume de uma culinária à base de coco: arroz de coco, feijão
de coco, bredo ao coco, bacalhau ao coco, mungunzá, entre outras delícias de ver e
de comer18.
O sábado de Aleluia culmina um ciclo, anunciando a reabertura dos terreiros,
geralmente com festas dedicadas a Ogum, orixá guerreiro, sendo interpretado no
processo do sincretismo como São Jorge, um dos santos mais populares, juntamente
19, 20, 21.

com S. Cosme e S. Damião, Santa Bárbara, entre outros da plural fé afrocatólica


18
Marcadas pela teatralização da fé da Idad e Média na Europa, vêem-se nas procissões da Semana
Santa nas capitais da civilização do açúcar, perm anên cias de u ma estética que comove multidões
por um conjun to de andores, santos, alfaias em prata, band eiras, cenas públicas que ainda expres-
sam as interpretações misturadas do barroco nordestino com a fluente fé afrodescendente das
Irmandades de Homens Negros e Pardos, formadas por africanos e crioulos e hoje por seis
herd eiros, man tenedores d essas memórias nascidas n o açúcar e preservados n a fé pop ular.
As cenas d e devoção nas ru as, os trajetos dos cortejos, un em-se aos cenários das cidades e de
suas populações, sendo exemplos os mais comoventes de fé interpretada pelo homem regional,
pelo nordestino.
19
Os muitos terreiros afrodescendentes são abertos ao público no período das festas, seguindo
calendários de base católica, conforme as datas consagradas aos santos e suas relações de
sincretismo com os orixás. Por exemplo: São Jorge, Ogum, 25 de abril; São João, Xangô, 24 de
 junh o; Nossa Senh ora do Carmo, Oxum, 16 de julho; Nossa Senhora da Con ceição, Iemanjá, 8 de
dezembro; Nossa Senhora Sant’Ana, Nana, 26 de julho.
Geralmente as festas são rituais coletivos em que música, dança, comida, indumentárias e
objetos especiais marcam e caracterizam cada celebração, preservando estética sagrada de pro-
funda interação com o barroco.
As muitas festas da Igreja agregam formas ritualizadas em torno dos espaços sagrados, por
meio de comida e música e principalmente cortejos processionais na terra, no mar e nos rios.
Assim, unem-se os patrimônios arquitetônicos de capelas, santuários, igrejas e demais monu-
mentos cristãos às manifestações populares por meio de teatro de rua, danças, entre outras
expressões de devoção aos santos.
20
As comemorações familiares nos terreiros e nas ruas em louvor aos santos gêmeos em 27 de
setembro são d evoções de catolicismo popu lar e de sincretismo com os Ibejis, gêmeos sacralizados
pelos Iorubá, presentes na mitologia dos terreiros de Xangô em Pernambuco e Alagoas. São
verdadeiros cultos da fertilidade, identificados nas celebrações de oferecimento de doces de
diferentes tipos, indo do nego bom aos bolos mais elaborados. É, sem dúvida, a culminância do
açúcar na fé popu lar do N ordeste.
21
O mês d e dezembro marca o calend ário d as festas no mar, homenageand o Iemanjá, orixá d o rio
Ogum (Nigéria) que no Brasil é a don a do mar; também conh ecida como rainh a do mar, sereia do
mar, Dand alun da, entre outros n omes freqüentes na religiosidad e afrodescend ente.
Justamente a partir de 8 de dezembro, dia consagrado a Nossa Senhora da Conceição, os

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Religiosidade – Fé, Festa & Cotidiano nas Terras do Açúcar

O imaginário de santos nas casas, nos altares de estabelecimentos comerciais,


nos carros, nas roupas, em uma moda  fashion sacra, juntamente com outras repre-
sentações materiais como os ex-votos – objetos que atestam o milagre do santo –
,africanas,
expressa tecnologias e estéticas
determinando soluçõesda oficialidade
visuais que da Igreja com asessa
testemunham fortes matrizes
mistura de
povos, etnias e culturas tão m arcadas e próp rias das terras do açúcar . 22,23

Os diálogos etnoculturais da região tocam formas expressivas e antigas


tradições dos povos indígenas, que nas suas aldeias preservam estruturas de
saber religioso, destacando-se o toré  – ritual de contato com os antepassados,
retomando memórias e assim marcando identidades.
Em contextos afrocatólicos vê-se o mito do caboclo enquanto ancestral
nativo, senhor das matas, figura emblematizada também em muitos terreiros,

convivendo com os orixás


cos e mu lticulturais e outras divindades
que representam criadas
as heranças desses encontros
patrimoniais da saga dinâmi-
do açú-
car, do homem nordestino.

muitos terreiros do Nordeste realizam rituais públicos nas praias, com o oferecimento da  panela
 – uma panela de barro, comidas, perfumes, fitas e muitas flores lançados ao mar. No litoral do
Recife, destacam-se as praias do Pina, Boa Viagem; em João Pessoa, as praias de Manaíra e Cabo
Branco, e, em Maceió, as praias d a Pajuçara, Ponta Verd e, como principais locais das festas públicas.
Ainda no mês de dezembro, as festas do Ano Novo, também nas praias, integram-se às
manifestações de religiosidade afrodescendente.
22
Ex-votos – manifestações especialmente visuais e que retratam o milagre, a ação divina na vida do
homem. No Nordeste, especialmente nas terras do açúcar, vê-se ampla produção de objetos ex-
votivos, especialmente entalhados na madeira, de forma e estética fortemente afrodescendente. Luís
Saia, que acompanhou Mário de Andrade nas suas missões de pesquisas na região, destaca o traço
africano, herd eiro da estatuária e das máscaras da África Ocidental presentes nas soluções estéticas de
cabeças e outras partes do corpo humano, exemplos das memórias e das criações do Nordeste. Além
das esculturas de madeira, há outras, de barro e de diferentes materiais, com os chamados riscos de
milagres – pinturas, desenhos – dos quais é excelente exemp lo o conjunto de três pinturas sobre tábuas,
retratando as ações divinas de S. Cosme e S. Damião, protegendo a população de Igaraçu; acervo do
museu-pinacoteca do Convento de Santo Antônio, naquela cidade de Pernambuco.
Os ex-votos são formas artísticas da religiosidade nordestina apresentando-se, geralmente,
em conjuntos de centenas de objetos, vistos em igrejas, capelas, santuários de estradas e outros
locais que marcam devoção a diferentes santos, profetas, mitos criados na região, como Padre
Cícero, entre outros.
As técnicas empregadas no entalhe são as mesmas realizadas para a feitura de bonecos do
mamulengo, expressão do teatro d e man ipu lação da região.
23
O amplo e variado conjunto de objetos que fazem a cultura material dos terreiros de Xangô, de
Jurema e de outras expressões da religiosidade afrodescendente e afro-indígena pode ser visto e
comercializado em barracas no interior do Mercado São José, no Recife – ervas, instrum entos musicais
de percussão, destacand o-se o adjá, sineta d e metal de uso litúrgico nos terreiros, fios-de-contas (colares)
e demais peças da joalheria ritual, além de amplo conjunto de modelagem em gesso policromado.
É sem dúvida um importante acervo de arte de base etnocultural de matriz africana, além das
presenças ind ígena e católica, todas reveladoras de estilos e manifestações próprias das terras do açúcar .

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AÇÚCAR NO TACHO

Maria Lectícia Monteiro Cavalcanti


 pesquisadora gastronômica

 Numa velha receita de doce ou bolo


há uma vida, uma constância, uma capacidade
de vir vencendo o tempo sem vir 
transigindo com as modas.
Gilberto Freyre ( Açúcar )

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Maria Lectícia Monteiro Cavalcanti

Impossível esquecer o cheiro do doce quase no ponto, incensando a casa


com arom as de banana, caju, coco, goiaba, como a avisar que vinh a che-
gando a hora de raspar o tacho. Esse tacho era de cobre pesado, herança
portuguesa, duas alças, largo quase três palmos
grandes, ardendo sobre velhos fogões de lenha.
Tudo sob o olhar vigilante de velhas pretas que,
com experiência e sem pressa, cuidavam para que
não passasse do ponto. A doçaria nordestina foi
se formando assim, aos poucos, nesse ambiente
de gostos e fumaças, fino equ ilíbrio en tre as cozi-
nh as portugu esa, ind ígena e africana. Na m edida
certa e com m uita harm onia. Aproveitand o imagem d e Ronald d e Carvalho,
nossa própria alma foi nascendo também assim – “da saudade portuguesa
adoçada pela sensibilidade ibérica, da inquietação índia e do travo do senti-
men to resignad o d os africanos”.
Mas esse açúcar, tão essencial para o preparo dos doces, nem sempre
existiu por aqui. Que na cultura indígena, antes do colonizador português,
doce era o m el de abelha. Tomad o puro, apen as como gu lodice. Ou em bebi-
das fermen tadas, prep aradas d e muitos jeitos. Às vezes apen as combinan do
mel e água. “Com mel pode-se preparar licor, sem levá-lo ao fogo, apenas
misturando -o com águ a da fonte e d eixand o-o ao relento”, observou Johan
Nieuhof (  Memorável viagem marítima e terrestre ao Brasil, 1682). Outras ve-
zes, misturavam aquele mel a raízes e frutas. Com mandioca faziam aipij,
caracu, caxiri, cauim (de todas, a mais conhecida), paiauru , tikira; com bata-
ta-doce, ietici; com milho, abatií, aluá e aruá; com pacova, pacobi; com ana-
nás, nanai; com caju, acaijba; com jenipapo, ianipapa. Para as crônicas da
época, eram bebidas d eliciosas no sabor, mas rep ugn antes n a p reparação. É
que as raízes e frutas desse prep aro, primeiro m astigadas, acabavam d epois
cuspidas em jarras de barro, já misturadas com saliva, para dar início à fer-
mentação. “As mulheres é qu e fazem a bebida. Tomam as raízes de m andioca
que fervem em grand es potes. As moças sentam -se ao p é e m astigam essas
raízes”, assim descreveu Hans Staden (Viagens e aventuras no Brasil, 1554) o
preparo do cauim. Índias moças, segundo Gândavo (  História da província de
Santa Cruz a que vulgarmente chamamos de Brasil , 1576). Ou velhas, segundo
Marcgrave (  História natural do Brasil, 1648). Tanto faz. Steinen (Entre os povos
nativos do Brasil Central, 1884) se referia a essas bebidas como “ponche de
ptialina”. Só lembrando, a palavra “ponche” tem raiz no Indostão (atual
Índia), onde “pânch” significava “cinco”, o número dos ingredientes que
entrava em sua composição – açúcar, aguardente, canela, chá, limão. De lá
vieram para a Inglaterra (“punch”), França (“ponche”) e ganharam o mun-
do. Cada tribo fazia sua p rópria bebida. Nas festas iam os da terra em pere-

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Açúcar no Tacho

grinação, de um a oca a outra, bebend o tud o que lhes fosse servido. Durante
a noite inteira cantavam e dançavam entre fogueiras. Até a exaustão. “Be-
bem sem comer e comem sem beber”, escreveu Câmara Cascudo ( História
da alimentação
bebidas no Brasil, trouxe
que o português 1983). com
Depois
ele, passou a concorrer
para o Brasil colôniacom asfermen-
– um poucas
tado (vinho), um destilado (bagaceira) e sangria (mistura de vinho, água,
açúcar e rodelas de limão). Para os nossos índios, essas bebidas, vindas de
tão longe, eram “cauim-tatá” (bebidas de fogo).
Negros da África Oriental e Mediterrânea conheciam bem o açúcar –
prod uzido com canas plantad as nessa região por árabes, que as trouxeram
da Índia. Mas não os escravos que por aqui chegaram, todos vindos d a Áfri-
ca Ocidental (Angola, Guiné, Gana). Também eles usavam mel na prepara-

ção de suas
quando receitas.
já havia A canano
começado, só Brasil,
se popularizou,
o ciclo daali, a partir doForam
escravatura. séculoaqueles
XVI –
árabes, bom lembrar, que desd e mu ito antes difun diram o mel pela Europa,
ensinando como usá-lo na preparação de bolos e doces. Em Portugal as col-
méias tão importantes eram que, por segurança, acabavam cultivadas sem-
pre p erto d as casas. Havia “meleiros” – que retiravam o favo das colméias; e
“apicultores” – que viviam de vender o m el. No reinad o de D. João III, tanto
prestígio tinh am que até imp ostos pod iam ser pagos com ele.
Os mosteiros se tornaram, por essa época, grandes produtores desse
mel – usad o en tão, especialmen te, para p reparar sobremesas e fabricar ve-
las. Havia neles fartura de tud o, em razão d as heran ças deixadas p or famílias
ricas ou por pecadores interessados na redenção de suas almas. Como D.
Maria Francisca Isabel, filha do rei D. Pedro II – o português, claro. Que o
Pedro II brasileiro, filho de D. Pedro I (que em Portugal era Pedro IV), não
foi nunca rei na terra em que morreria velho e triste. Conta-se que essa
princesa chegou a pagar a fortu na de 1.200.000 réis por 12.000 missas a serem
celebradas após sua morte. Dada tanta opulência, ou pela origem nobre de
freiras edu cadas no requinte da corte, nesses mosteiros se faziam banqu etes
que em nada lembravam o rigor próprio das regras monásticas. Foi assim,
especialmen te d o reinad o d e Dom Afonso IV, “O Bravo ” (início do século
XIV), até o fim da Inqu isição. Em decreto de 19 de d ezem bro d e 1834, ainda
no reinado de Dom Miguel I, “O Absoluto”, o ministro Joaquim Augusto
Aguiar aboliu as ord ens religiosas e confiscou seu s patrimôn ios. Além d e ter
ratificado a expulsão d os jesuítas, de 3 de setembro d e 1759, e a extinção da
Ord em, em 21 de julho d e 1773; passand o a ser por isso conhecido como “o
Mata-Frades”.
A nós chegaram receitas de bolos e doces que, em Portugal, continua-
vam send o feitas com mel d e abelha. Como o bolo d e m el e o folhad o com
mel. Ou como o alfenim, pelo povo mais conhecido como alfeninho – do

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Maria Lectícia Monteiro Cavalcanti

árabe “al-fenie”, que significa “cor branca”. Diz-se também, em corruptela,


de pessoa delicada e melindrosa. Trata-se de massa seca e muito alva, feita
com mel (depois, tam bém com açúcar), farinha e clara d e ovo. Ao chegar n o
ponto,
santos. éNas
moldada
mesas em diferentes
portu guesas eraformatos
servido –em
reproduzindo
ban dejas de animais, flores ea
prata, somente
nobres e pessoas de posses. Mas, em Pernambuco, foi sempre doce popular.
Cum prind o aind a falar d o alféloa (ou alfelô ou alfeloa), do árabe “al-halaua”,
que chegou a Portu gal com a invasão m oura n o século VIII. Por considerá-la
privilégio de mulheres e crianças, proibiu D. Manuel I, “o Venturoso”, fosse
vendida por homens. Sob pena de prisão e açoite. Em Pernambuco passa-
mos a fazê-lo também com mel de engen ho (ou açúcar). O m el vai ao fogo
até ficar em ponto firme – send o a p asta então esfriada aos pou cos, enqu an-

to se puxa
acabou com as mãos
conhecido comoaté embranquecer. Por conta desse jeito de p rep arar,
“puxa-puxa”.
À Europ a o açúcar ch egou , oficialmen te, só n o século XV. Por m ãos
mouras. Transportado em caravanas terrestres que vinham da Ásia para os
portos d e Veneza e Gênova, daí seguind o pelo resto do continen te. Mas há
registros esporád icos da presença desse açúcar bem antes d isso, em d ispen-
sas nobres – como as do palácio de D. Dinis I (1279–1325). A princípio, era
usado apenas como remédio – calmante, cicatrizante, digestivo, diurético.
“Entrou no mundo pelo laboratório dos boticários”, disse Brillat Savarin (“A
Fisiologia do Gosto”), em fins do século XVIII, quando afinal se tornou
gastrônomo – depois de ser Juiz de Direito e fugir da Revolução Francesa,
sobrevivendo na Suíça de ensinar francês e violino. Diferente no aspecto de
como o conhecemos hoje, esse açúcar tinha então a forma de cristais gran-
des, irregulares, perfumados, com essências de violeta e limão. Para os por-
tugueses, seria “sal índico” – pela semelhan ça de seu s grãos com o sal mari-
nh o e pela origem d o lugar em que p rimeiro foi produ zido o açúcar, a Índia.
Também conhecido como “açúcar-cande” (ou “Cândi”) – o nome vemo do
sânscrito “khanda”, que os árabes converteram em “qándi”. Naqueles boti-
cários passaram a ser vendidos aind a o “shu rba”, um xarope escuro d e apa-
rência viscosa; e um açúcar em ponto de bala, aromatizado com ervas, co-
nhecido como “bolas de sal doce”.
Aos pou cos, passou o açúcar a ser usad o também p ara conservar fru-
tas por mais tempo. E acabou tomando o lugar do mel, na elaboração das
receitas dos conventos – jun to com a gema d e ovo que ali era entregue pelas
vinícolas. Que do ovo, à época, se usava apenas as claras – para purificar
vinhos e engomar roupas. Açúcar e gema passaram a ser base de todas as
sobremesas. Sendo usad o, aind a, na fabricação de vinhos de m issa e de lico-
res. Com esse açúcar, chegou à Península Ibérica, também trazidos pelos
árabes, outros ingredientes qu e começaram a fazer parte d as receitas de bo -

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Açúcar no Tacho

los e doces – amêndoas e cardamomo (Java), canela e anis (Ceilão), cravo e


gen gibre (Moluas), figos (Turqu ia), noz-moscada (Ban da), passas (de Málaga),
tâmaras (Síria), damasco, nozes, avelãs, pistache (Índia). Mas o açúcar, na-
quele
fonte dtemp o, continu
e riqueza qu aseava send
igual aooouro”,
privilégio d e bem
escreveu pou cos.
Gilberto Nele( Açúcar 
Freyre “estava um a
, 1939).
Em 1440, uma arroba (15 quilos) de açúcar valia 18,3 gramas desse metal.
Produzir açúcar passou a ser sonho de reis. Uma tarefa difícil, na Europa,
por exigir solo rico, úmido e, o que quase não havia por lá, especialmente
quente. Com o domínio das técnicas de produzir, cumpria buscar terras
mais amplas. Navegar era preciso. O Brasil estava pronto para ser descober-
to.
Duran te m uito temp o, acreditou-se que a cana-de-açúcar teria chega-

do nestadeterra,
Afonso a que
Souza, na primeiro
capitaniachamaram Vera Cruz,
de São Vicente. em recentemente
Só mais 1532. Com Martim
vindo
a p úblico registro d a alfând ega d e Lisboa, ind icand o p agamen to d e d ireitos
sobre o açúcar já produzido em Pernambuco desde 1526. Mas o primeiro
engenho oficialmente reconhecido em Pernambuco foi o de Jerônimo de
Albuquerque, instalado no mesmo ano que aqui chegou (1535) – acompa-
nh and o seu cun had o, o donatário da capitania Duarte Coelho Pereira. Era o
“São Salvador”, depois conhecido como “Engenho Velho de Beberibe”. Fi-
cava bem p erto da cidad e de Olind a, em lugar h oje conh ecido como “Forn o
da Cal”. Por ser generosa essa terra, e como em se plantando tud o nela d ava
mesm o, engen hos foram toman do o lugar d a Mata Atlântica nas várzeas dos
rios – Beberibe, Capibaribe, Jaboatão, Una. Dado se prestarem esses rios,
magnificamente, “a moer canas, a alagar as várzeas, a enverd ecer os canavi-
ais, a transportar o açúcar”, descreveu Gilberto Freyre ( Casa-grande & senza-
la, 1933). Depois se espalhou por todo o Nordeste. E assim, como nas pala-
vras de João Cabral de Melo Neto, tud o foi se transform and o “nu m mar sem
navios” formado “pelo anônimo canavial” (O vento no canavial).
Com os engen hos vieram casas-grand es que na arquitetura, por conta
do nosso clima quen te, não foram cópias perfeitas das casas portu guesas do
além-mar. Para diminuir o calor, faziam cozinhas afastadas das salas e dos
quartos – fora d e casa, debaixo d e u m pu xado. Em seu interior havia uten sí-
lios das três culturas que nos formaram. Dos portugueses herdamos
alguidares, almofariz, caldeirões, chaminés “francesas”, fogões, fumeiros,
potes, tachos de cobre; além de objetos de cozinha como formas de bolo em
formatos diversos – coração, estrela, meia-lua, pássaro; mais enfeites e re-
cortes de p apel para adorn ar band ejas (de estanho e p rata). Dos índ ios “jirau”
(mesa feita com varas de madeira usada para preparação e armazenamento
de alimentos), panelas de barro, pilão, “trempe” (tripé de pedra onde se
apoiavam, no fogo, as panelas), urupema; mais cabaça e cuia, por Gabriel

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Maria Lectícia Monteiro Cavalcanti

Soares de Souza (Tratado descritivo do Brasil, 1587) cham adas “porcelana d os


índ ios”. Dos africanos colher de pau , gamelas de m adeira (para preparação
dos alimentos), quengo (metade d a casca d ura do coco, com cabo de mad ei-
ra, usado como
sofisticado que oconcha), ralador
dos índios. Masde
nãococo, tanque,
apenas tigelasseemisturavam
utensílios um pilão mais
na-
quele ambiente. Havia lá sobretu do ingred ientes, hábitos, receitas e técnicas
dessas três culturas. Devemos isso ao colonizador português, aberto a novas
experiências, a novos sabores; e pron tos semp re a substituir, sem preconcei-
to, produtos de suas receitas originais pelos do Novo Mundo. Também foi
assim por razões utilitárias, que as senhoras de engenho não participavam
diretamen te d o trabalho dom éstico. Limitavam-se a d eterminar o que queri-
am comer. Ficand o o preparo d os pratos por con-

ta dasPernambuco
escravas. chegou a ser, nos séculos XVI
e XVII, o maior produtor mundial de açúcar. Por
conta d e tanta riqueza, foi se forman do aqui um a
aristocracia qu e Tobias Barreto (1839–1889) chama-
va de “açucarocracia”. Padre Fernão Cardim ( Tra-
tado da terra e da gente do Brasil , 1625) descreveu o
fausto desses engen hos d ecorados com “móveis de jacarand á ou vinh ático,
louça da Índia, baixelas e talheres de prata, lençóis de linho franceses com
monograma, brasões em cima de portais ... a casa cheia”. Dos seus donos,
disse apenas que “parecem uns condes e gastam muito”. Por conta dessa
opulência, foi surgindo, no Nordeste, uma das mais importantes doçarias
do mundo. Com receitas passadas oralmente de mãe para filha – por não
saberem escrever as mu lheres d a época ou p ara escond er seus segredos cu-
linários. Açúcar branco era privilégio das casas-grandes. Com ele se faziam
bolos e sobretudo comp otas, geléias, doces secos e cristalizados – conserva-
dos, por m eses, em p otes de barro verm elho ou em caixas rústicas de mad ei-
ra. Raramen te frutas frescas eram servidas ao natu ral – por temor dos seus
efeitos, na saúde. Às senzalas eram destinadas essas frutas e também caldo,
melaço e açúcar mascavo – de cor escura e cheio de p edras. Esses ingred ien-
tes eram pelos escravos misturados à farinha, de mandioca ou de milho,
formand o um a pasta mu ito apreciada – por seu gosto primitivo e pelo forte
cheiro de álcool. Acrescentando águ a fria a essa pasta, faziam “jacuba” – por
gerações, base d a prim eira refeição do dia. Essa p asta acrescid aca
escravosmais finos.. Também rapadura – “tijolos que podem ser de 5 a 6
polegadas, bastante grossos, com cor, gosto e cheiro mais ou menos do açú-
car queimado”, descreveu Auguste de Saint-Hilaire ( Viagem às nascentes do
rio São Francisco e pela província de Goyaz , 1847). Uma rapadura que, ainda
hoje, é feita do mesmo jeito – com caldo da cana bem fervido e bem batido,

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Açúcar no Tacho

dep ois colocado em moldes d e madeira até que esfriem; após o que, tiradas
das formas, são embrulhadas em papel simples ou palha de bananeira.
Nessas senzalas nasceu também nossa cachaça. A espuma d a p rimeira
fervura d o caldo
em cochos, da cana,
ao relento, parapor n ão ter à ép
alimentação dosocaanimais.
outra serventia, era por
Esse mosto, colocada
conta
do clima quente, fermentava com facilidade. E pouco a pouco, meio por
acaso, começaram os escravos a apreciar suas qualidades. Converteu-se em
bebida, para eles estranha, a qu e chamavam “água ard ente”. O Reino tentou
proibir, primeiro, o consumo; depois, sua própria fabricação. Que a concor-
rência diminuía o uso da “bagaceira” (e o volume dos tributos daí decorren-
tes). Em vão. Nessa briga ten do os nativistas apoio, inclusive, de comercian-
tes que usavam cachaça (e também fumo) como moeda na compra e venda

de
çãoescravos. Acabou
portuguesa. elevada
Bebida à cond içãoNadeRevolução
de patriotas. símbolo dePernambucana,
resistência à d omina-
como
em Can ud os, brind ar com vinh os (especialmente p ortugu eses) ou ou tra be-
bida importada significava alinhar-se aos colonizadores.
Uma parte importan te dessa doçaria está intacta, aind a hoje, fiel a suas
raízes portuguesas. Continuamos fazendo o mesmo pão-de-ló à moda do
Convento dos Amarantes. Bolo-de-bacia, com receita anotada no mais anti-
go livro de culinária de Portugal (  A arte de cozinha, 1680), de Domingos
Rodrigues – cozinheiro de D. Pedro II (o de Portugal, já vimos). Pena que
por aqui não tenham chegado toucinho-do-céu, pastel de Santa Clara, cre-
me-da-abadessa, barriga-de-freira, mimos-de-freira, sonhos-de-freira, nu vens,
morcelas de Arouca e bolinhos de Amor, Ciúm es, Esquecidos, Paciência, Raiva
e Tern ura. Bolo-de-noiva é ad aptação do “panis farreu s” rom ano – comp ar-
tilhado, pelos casais, como símbolo da vida em comum que se iniciava com
a “confarreatio”. No Brasil, esses bolos de casamento têm preparos diferen-
ciados. Os d o Sul usam massa branca e recheios variados. Em nad a lembran-
do aqueles de Pernambuco, feitos com massa escura à base de ameixas, pas-
sas, vinho e frutas cristalizadas – tradição britânica que chegou a bem pou-
cos lugares do Brasil. Tudo coberto com pasta de amêndoa e, depois, tam-
bém com glacê branco. Sendo, por fim, decorado com flores em relevo, fei-
tas de goma e açúcar – um hábito que n os veio d a Ilha da Madeira. Esse bolo
também está presente em outras festas importan tes – aniversário, batizado,
primeira comunhão, noivado e Natal.
Em nosso ambiente foram tam bém nascendo variações desses doces e
bolos a partir de ingredientes novos – amendoim, castanha de caju, coco,
frutas trop icais, man dioca, milho –, adicionad os às velhas receitas de Portu-
gal, até então feitas com amêndoas, canela, cravo, gengibre, noz-moscada,
pinh ões. Usamos também claras e gem as dos ovos d e galinha. Nossos índ ios
não conheciam esse animal, trazido por Cabral quando por aqui passou a

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Maria Lectícia Monteiro Cavalcanti

caminh o d e Calicute. Seus ovos p referidos continu aram send o os d e jacaré


e de tartaruga. Algumas receitas sofreram adaptações. Ao manjar branco
(criado no Convento de Santa Maria das Celas, em Guimarães), e também
ao
Vilabeijo (originalmente
do Conde), denominado
acrescentamos leite beijo-de-freira, criado
de coco. No pastel no Convento
de nata trocamosdea
massa folhada por outra um pouco mais simples, preservando quase inte-
gralmen te o recheio (aqui usand o leite, em lugar d e n ata). O arroz doce com
desenhos de canela, criado no Convento de Guimarães, foi abrasileirado
com o acréscimo d o leite d e coco. Aos filhoses jun -
tamos uma calda – algumas vezes feita com açú-
car, outras com mel de engenho. O quindim do
reino ganh ou coco, cravo e canela; o n ome se man -

teve,
às menacrescido de complemento
inas e m oças em homenagem
que os saboreavam – quindim
“de Iaiá”. No colchão-de-noiva, substituímos o
recheio de amêndoa por creme de goiaba, enro-
lando a massa em finas camadas, daí surgindo nosso bolo-de-rolo – em
Pernambuco, com uma delicadeza no fazer que o distingue do rocambole
carioca e de variações dos outros Estados nordestinos.
Mas um ped aço importan te dessa doçaria, cum pre registrar, é autenti-
camente daqui. Veio do desejo de fazer coisas com nossos gostos. Assim
nasceram doces e compotas de todas as frutas da terra – abacaxi, araçá, ba-
nana, caju, caram bola, coco, goiaba, jaca, laranja-da-terra, m anga, mangaba.
Além d a cocada, claro – branca, queimad a, de colher, de cortar, por Gilberto
Freyre considerad a “o m ais brasileiro d os d oces”. Para acomp anhar, queijos
muitos – coalho, do reino (assim se chamando por vir de Portugal) ou do
sertão. Nasceram também biscoitos e bolos variados – de batata-doce,
macaxeira, milho, pé-de-moleque. Em alguns casos, concebidos para home-
nagear m ovimen tos sociais – 13 de Maio, Cabano, Dom Pedro II, Guararap es,
Legalista, Republicano, Santos Dumont. Ou pessoas – Dr. Constân cio, Dona
Dondon, Dr. Gerôncio, Luiz Felipe, Tia Sinhá. Ou, ainda, famílias que os
criaram – Assis Brasil, Cavalcanti. Sem esquecer o Souza Leão, ato exemplar
de rebeldia gastronômica – em que ingredientes europeus foram substituí-
dos p or sabores nord estinos: trigo, pela m assa d e m and ioca; man teiga fran-
cesa “Le Pelletier ”, por aqu ela feita de leite do p róprio engen ho. É receita d e
Dona Rita de Cássia Souza Leão Cavalcanti, casada com o coronel Agosti-
nho Bezerra da Silva Cavalcanti, senhor do engenho São Bartolomeu (em
Muribeca).
Nasceu também a misteriosa “Cartola”, que tem como ingredientes
banan a, queijo d o sertão, açúcar e canela. Sem que se saiba o en genh o onde
foi pela primeira vez produzida, nem quem a inventou. O nome se deve

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Açúcar no Tacho

provavelmente à cor escura dada pela canela, e o formato alto do queijo


sobre a banana, que lembra (remotamente) aquele tipo de chapéu que se
usava na época. Nasceram também beijus ensinados por índios, feitos com
massa de m surgiram
desse jeito, and ioca esprem idadeque
tapiocas toddoenom
tipo –inavam “tipioka”.
en roladas Da massa
n a m anteiga, feita
rechea-
das com coco ralado, com queijo d e coalho. E, melhor exemp lo dessa misci-
genação, a tapioca de coco – mais conhecida como “ensopada”, que usa
mandioca (da culinária indígena), sal e açúcar (da portuguesa) e leite de
coco (da africana). Cumprindo lembrar, também, sabores que marcam nos-
sas festas: filhós, no Carnaval; bolos, tortas e ovos de chocolate, na Páscoa;
bolo de frutas, pastel doce, passas recheadas, fatia parida (ou “de parida”),
no Natal. Além de receitas do São João, sempre com muito milho. Esse mi-

lho, no começo
próprio Gabriel da colonização,
Soares de Souzaera alimento
( Tratado apenasdodeBrasil
Descritivo animal e escravo.
, 1599) O
confirma
que “portugueses plantam o milho para mantença de cavalos, galinha, ca-
bra, ovelha, porco e também dos negros da Guiné”. A partir desse milho
farto nas senzalas, juntando leite de coco e açúcar, foram nascendo angu,
canjica, mungunzá, pamonha. E, também, um cuscuz muito melhor que
aquele conhecido por portugueses e africanos – por lá feito com farinha de
sorgo, farinh a d e arroz e até farinh a d e trigo.
A doçaria nordestina é resultado dessa mistura. “Com as comidas in-
dígenas e negras iam circuland o as am ostras da d oçaria p ortugu esa”, disse
Câmara Cascudo (  A cozinha africana no Brasil, 1964). Inclusive doces de rua,
de tabuleiro, bombons e confeitos, decorados com papel recortado – muito
mais bonitos que aqueles aprendidos com as senhoras portuguesas. Uma
culinária, no fundo, feita a partir de experiências de ou tros povos; mas, tam-
bém, moldando essas experiências a nossos jeitos de ser. Uma culinária que
resultou ú nica. Criativa, como n ossa gente. Altiva, como n osso espírito. For-
te, como nossa história. Generosa, como nossa alma.

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A MEMÓ RIA JUDAICA NO MUNDO DO


AÇÚCAR EM PERNAMBUCO
Tânia Kaufman
historiadora e ensaísta

Permanências, rupturas ou continuidade?


Como fica a memória histórico-cultural
judaica em Pernambuco, quando a mais
natural das fronteiras do tempo – os
séculos – perde seus limites em favor 
de um retorno à História?
Tânia Kaufman

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PRIMEIRAS PALAVRAS
 passado judaico presente em Pernambuco

Neste ensaio apresenta-se um panorama da Memória Judaica no Mundo do Açúcar


em Pernambuco com vistas à elaboração de uma relação de engenhos pertencentes a
cristãos-novos e judeus, reunidos por município com seus respectivos históricos.
Não é novidade que há uma importante permeabilidade entre a história
da Civilização do Açúcar no Nordeste do Brasil e a memória histórico-cultural
dos judeus e cristão-novos que ap ortaram com os primeiros colonos portugue-
ses, a partir de 1500. Depois, por volta de 1630, os judeus portugueses de Ams-
terdã
leiro: chegaram com asobretudo,
dedicavam-se, ocupação aos
holand esa. Espalharam-se
negócios do açúcar, quepelo Nordeste
ainda hoje é brasi-
umas
das principais riquezas daquela parte do Brasil.
Com o fim d o domínio holand ês e a retomada de Pernambuco pelos por-
tugueses, em 1654, pelas mesmas razões de intolerância com qu e seus an cestrais
haviam sido expulsos da Península Ibérica, uma nova “passagem” conduz um
dos grupos de refugiados para Nova  Amsterdam , mais tarde, Nova Iorque. Des-
ta vez, na bagagem eles levaram, além d as singularidades do judaísmo, também
o conceito de “cidadania”, apreendido e aprendido no curto espaço do tempo

de Maurício de Nassau
Trezentos no período
e cinqüenta d o Brasiltenta-se
anos depois, Holand ês.
compreender como se deu a relação da cultura ju-
daica com a estrutura da economia açucareira, bási-
ca na formação do Brasil. Sabe-se que foi significati-
vo o nú mero de engenh os que tiveram o controle de
cristãos-novos e judeus. E que também, as sinago-
gas, enqu anto fun cionavam cland estinam ente, esta-
vam espalhadas pelas ruas da vila do Recife e seus
arredores, mas de preferência eram erguidas nos
engenhos.
Embora os vínculos religiosos e
sociocomunitários daquela população estivessem
desfeitos, a teia cultural mostra-se, até hoje, resis-
tente e un ifica os sobreviventes através de novos per-
sonagens que emergem da clandestinidade, auto-
identificando-se como descend entes dos antigos cris-
tãos-novos. É possível haver uma relação com costumes e tradições de uma
cultura e de um a língu a herd ada d os jud eus espanhóis. No Nordeste do Brasil,

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A Memória Judaica no Mundo do Açúcar em Pernambuco

não é difícil perceber que foram gradativamente se incorporando como parte


do patrimônio material e imaterial brasileiro.
O conceito de nossa pesquisa foi “olhar” a cultura judaica como uma teia
de múltiplosporque
tivamente, fios; nenhum, tecido
são ligados porsozinho, nemherdados
elementos qualquerdedeles,
uma cortado defini-
ancestralidade
nacional, religiosa e cultural. Também porque, ethos e costumes judaicos são
antigos e esclarecedores para os cotidianos contemporâneos.
Para este ensaio, tomamos como referência o caminho trilhado por José
Alexandre Ribemboim – Senhores de engenho judeus – e Fábio Arruda, autor da
 Relação dos engenhos coloniais da capitania de Pernambuco. Estamos investindo
nu m inven tário, por mu nicípio e época, dos engenhos que pertenceram a cris-
tãos-novos e judeus sefardim, assim como, as d iferentes categorias ocup acionais

em queSão também atuaram


importantes na dinâmica
sobretudo da produção
os suportes do açúcar.
dos estudos de Gilberto Freyre,
Anita Novinsky, Elias Lipiner, Oliveira Lima e José Antônio Gonsalves de Mello,
pois revelam os passos de uma inten sa vida jud aica nos subterrâneos da socie-
dade colonial. Os estudos genealógicos de Fábio Arruda permitem refazer os
laços familiares que uniam as propriedades açucareiras.
Foi no comércio do açúcar que se destacaram, através de red es comerciais
constituídas muitas vezes por laços familiares, partindo de carregadores de açú-
car na colônia, consignatários em Portugal e agentes comerciais no norte da Europa.
Existe também uma bibliografia à margem do mercado editor, constituído por escri-
tos particulares, como forma de registrar as histórias antigas de cada família.
Se por um lado foi imp ortante o papel do judeu n a economia canavieira;
por outro, a economia canavieira foi importante para a fixação do cristão-novo
e como esse sucesso foi determinante para que aqueles personagens fizessem
destas terras tropicais seu novo lar.
Hoje, na visita a alguns engenhos, fica o sentimento de “ouvir” os ecos
dos passos das pessoas que ali viveram seus cotidianos e suas práticas religiosas,
na inquietação de um suceder de dias que oscilava entre a hostilidade ou o
afrouxamento da vigilância. Por isso, valorizamos as denunciações registradas
na obra Primeira visitação às partes do Brasil. Denunciações e confissões de
Pernambuco. 1593-1595, cujo conteúdo representa historicamente os fatos políti-
co-religiosos que regulavam a vida da América Portuguesa. As práticas
 judaizantes denunciadas eram realizadas no espaço privado do lar, dos enge-
nh os e da vila, ond e viviam os denun ciados.
Contudo, é preciso avançar com as pesquisas que podem consolidar e
expandir, quantitativa e qu alitativamen te, as informações sobre a distribuição de
um a popu lação jud aica na estrutu ra econôm ica e social do mun do do açúcar.
Estão previstas algumas limitações relativas à historicidade desse fenôme-
no. Observa-se que, na m aioria dos autores citados, o tema das relações entre os

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Tânia Kaufman

  judeus e a economia agroexportadora da colônia revela contradições, que po-


dem ser atribuídas à escassez de documentação já estudada. Há também os
casos em qu e apenas um dos cônjuges era jud aizante e, nem sempre, o cônjuge
cristão-velho
casamentos entre sabiacônjuges
da origem judaica do outro.
cristãos-novos, Por outro
era freqüente lado, de
a troca nosnomes
casos em
de
cada lugar para ond e se deslocavam por conta dos interesses dos n egócios.
Outro fator de limitação para estudos dessa natureza aponta para a
extensividade e diversidade de funções também exercidas por judeus, ligadas à
produção do açúcar. Eles atuaram como técnicos, mercadores, carregadores de açú-
car, feitores, lavradores, implicando freqüentemente numa mobilidade espacial.
Diante do exposto e por ser consistente uma memória cultural judaica,
atávica ou silenciada, visível nos modos de viver de parcelas da população do

Nordeste do Brasil,
desse contexto, é queemaoconsideração
levamos reunirmos asa informações sobre
necessidade de o lastro
dividir de vida
em etapas as
pesquisas sobre o assunto.
Como lembra o genealogista Fábio Arruda, é preciso analisar as famílias
colaterais e seus casamentos; delimitar os acontecimentos correspondentes a
cada homônimo tais como: cargo/atividade que ocupou, lugarejo onde viveu,
quem são os filhos, esposa, etc.; considerar a temporalidade dos dados pessoais
dos principais personagens enfocados; aliar os estudos de Genealogia e Demografia
Histórica para cotejo das informações levantadas. Também é requerida uma revisão
na bibliografia para contextualização na historiografia brasileira e judaica.
Com a identificação dos personagens de origem judaica na história da
Civilização do Açúcar, parte-se p ara a construção do Roteiro Judaico d os Enge-
nhos em Pernambuco consolidando o projeto  Novos Produtos, Novas Trilhas: Os
  Judeus no Mundo do Açúcar em Pernambuco.

A MEMÓRIA JUDAICA NO MUNDO DO AÇÚCAR


Da “Espanha das três culturas”, onde conviviam muçulmanos, cristãos e
 jud eu s d esd e o século
político-religiosa, XIII, alternando
os judeus épocas
sefardim foram dede
alvo maior
umaou menordem
nova or intran sigência
social, po-
lítica, econômica, cultural e geográfica. Deixaram Portugal, desde o final do sé-
culo XV, à procura de outro d estino para d riblar a rede inqu isitorial, já mais
regulamentada e enraizada em toda a Península Ibérica no final do século XV.
Entre outros rumos, dirigiram-se ao Brasil, primeiro como conversos ou
cripto-judeus e depois, com os holandeses, vieram os “judeus portugueses de
Amsterdam” ou judeus sefardim. Os primeiros incorporaram-se aos planos de
Portugal para povoamento e expansão geográfica do Reino, inclusive na forma-
ção dosdoprimeiros
gócios açúcar. núcleos de engenhos, e os últimos vieram atraídos pelos ne-

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A Memória Judaica no Mundo do Açúcar em Pernambuco

Partimos do pressuposto de que a integração dos judeus no Nordeste do


Brasil, predominantemente nas diferentes funções da economia açucareira, foi
suficientemente forte para produzir um processo de interculturalidade com
base na polissemia
dos vértices das manifestações
dessa polissemia culturaisjudaicas
expõe as práticas e religiosas da população.
clandestinas Um
e a reserva
mental do judaísmo, profundamente enraizado nos cotidianos dos engenhos.
Aos olhos de quem percorre as trilhas de velhos engenhos localizados
nas antigas freguesias e atuais municípios da Mata Norte, Mata Sul, Grande
Recife, Olinda, Camaragibe, São Lourenço da Mata e também no sertão de
Pern ambuco, Paraíba e Alagoas, abre-se um passado conquistado ao tempo e
preservado na memória coletiva da população, silenciada atavicamente em
nom e de deu ses estranhos.

PASSAGEM
 Novo destino

Para contar esta história, é preciso iniciar p or u m breve olhar sobre a m atriz
dos acontecimentos que traçaram o perfil dos primeiros atos para efetivar a
ocup ação das terras recém descobertas. Só então p oderem os entend er a h e-
rança judaica subjacente ao patrimônio histórico e cultural brasileiro com
sua base na econom ia açucareira. Houve u m elo de continu idad e no p ropó-
sito de engajamento dos judeus em todos os ciclos econômicos colonizado-
res. Todos tiveram os mesmos fatores atrativos: as “passagens”, as diásporas,
as migrações compulsórias.
Os p lanos d e Portugal para o p ovoamento e a expansão geográfica no
Novo Mundo, em muito favoreceram a participação judaica nos desloca-
mentos para o Brasil. Primeiro, foi o arrendamento das novas terras a um
consórcio de mercad ores cristãos-novos já em 1502. Afirm a-se que mu itos
desses mercadores, por serem de origem judaica, viam os projetos coloniza-
dores de Portugal como possibilidades de negócios e como lugar de refúgio
para a população ameaçada diante das pressões inquisitoriais.
Depois, em 1504, a política de doação de terras, costeiras e insulares,
atraiu Fernão de Noronha, rico cristão-novo, radicado em Portugal. Datam
dessa época os primeiros núcleos populacionais de europeus, para não dizer,
de cristãos-novos, estabelecidos na colônia como resultado dos acordos dos
consórcios. Segundo Wiznitzer 24 existem documentos que confirm am ter sido

24

WIZNITZER,
Livraria PioneiraArn old. OsEditora
Editora, judeus da
no Brasil colonial. de
Universidade Trad ução
São d e O1966.
Paulo, lívia Krähenbüh l. São Paulo:

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Tânia Kaufman

esse o início do vínculo histórico dos judeus com os projetos colonizadores


que evoluíram para a implantação da estrutura agrária na produção do açúcar.
Diante d a d ificuldad e de recrutamen to e d o desinteresse pela oferta d e
terras
cedidasdepor
p essoas do Reino
Portugal portu guês as
para estabelecer n ão é d e estranhar
relações as efacilidades
comerciais con-
arrendamento
da colônia a mercadores e consórcio de cristãos-novos.
Celso Furtado 25, analisand o os fund amentos sociais da expansão lusita-
na, lembra qu e, entre os cand idatos às capitanias brasileiras no início do pro-
 jeto, não se contou com as classesricas do Reino.

PRIMEIROS MORADORES
E COLONOS CRISTÃOS-NOVOS NO BRASIL
Fran cisco Antônio Dória26, analisand o a estrutura social da oligarquia agrária no
Brasil, lembra que, em 1530, a população portuguesa era estimada em 1.200.000
indivíduos, período em que se inicia a exploração e colonização sistemática do
Brasil. Destes, 20% eram judeus ou cristãos-novos, alguns procedentes de Castela
e da Andaluzia, expu lsos em 1492 pelos reis católicos, mas os dem ais eram n asci-
dos ou residentes na região lusitana da Península Ibérica.
Considerando esse percentual, é possível afirmar que foi bastante signifi-
cativo o contingente que se deslocou para o Brasil em busca de “passaporte”
para a vida. O principal fator de atração e integração na vida colonial do Brasil
português e do Brasil holandês foram, sem dúvida, as atividades ligadas à cultu-
ra açucareira, pred ominante na época como principal demand a de n egócios do
mercado europeu.
Como se sabe, entre os cinco primeiros engenhos d a Capitania erguidos
com a chegada de Duarte Coelho, o primeiro donatário de Pernambuco em
1535, um deles teve como sócios importantes figuras do cripto-judaísmo do
Brasil quinhentista: Diogo Fernandes e sua esposa Branca Dias, além de Pedro
Álvares Madeira, o provável técnico de produção de especulada procedência da
Ilha de Madeira, então o maior centro produtor de açúcar no Atlântico.
Estas figuras se encaixariam na discussão apresentada por Arnold
Wiznitzer ao citar O liveira Lima n o comen tário sobre os feitores treinados e
os trabalhad ores qualificados trazidos por Duarte Coelho, d a Mad eira e de
S. Tomé para o Brasil – eram “pela maior parte judeus, que constituíam o

25
FURTADO, Celso. Economia colonial no Brasil nos séculos XVI e XVII . São Paulo: Ed. Hucitec e
Associação Brasileira de Pesquisadores em História Econômica.
26
DÓRIA, Francisco Antônio. Os herdeiros do poder . 2. ed. revista e ampliada. Rio de Janeiro:
Editora Revan Ltda., 1994.

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A Memória Judaica no Mundo do Açúcar em Pernambuco

melhor elemento econômico do tempo, e lucravam com fugir à fúria religi-


osa que grassava na Península”.
O sociólogo brasileiro Gilberto Freyre também afirma que “a mecânica
 judaica da indústria
to, ele deixa do açúcar
de mencionar tevehistórico
o fato de ser importada pelo muitos
de que eram Brasil”.em
Entretan-
todo o
Brasil os jud eus senh ores de en genh o.
Desde o século XVI, instalaram-se principalmente em Pernambuco, na
Paraíba e nas Alagoas, e daqui se espalhando para outras regiões do país. São
muitos os dad os materiais e muitas são as histórias que alimentam o imaginário
nordestino imp regnado d a cultura sefardi na região.
Segundo Wiznitzer, no ano de 1639 havia 166 engenhos no Brasil holan-
dês, dos quais 120 estavam funcionando. Dos 166 engenhos, 60% pertenciam a

luso-brasileiros,
brasileiros seriam32% aos holandeses
d e origem judaica,eque
6% viviam
a judeus. Sem dúvida, alguns
clandestinamente dos
o jud luso-
aísmo.
Muitos mercadores judeus atuavam simultaneamente como senhores de
engenho, e também possuíam criação de gado no sertão. Estavam sempre em
mobilidade entre as diferentes propriedades e também por conta das ligações
com os negócios do açúcar na Europa.
Aparen temen te não se enraizavam nas suas terras conforme comenta José
Antônio Gonsalves de Mello citando relações de 1609 e 1623 que revelam a
descontinuidade na posse dos engenhos na mesma pessoa, em parentes ou em
descendentes seus. Tanto essa mobilidade como a questão das várias identida-
des assumidas pu blicamen te pelos jud eus p ode ser explicada pelas circunstân-
cias que envolviam os familiares que per maneceram em Portugal. Muitas vezes,
na metrópole, eles estavam respon dend o a processos de denú ncias e era preciso
mu dar no Brasil. Desse modo, a sistematização de uma relação de propriedades
merece uma busca acurada.

PARTICIPAÇÃO NA PRODUÇÃO AÇUCAREIRA


O manuscrito intitulado “Os livros das saídas das urcas do Porto do Reci-
fe, 1595–1605”27 relativo aos an os de 1596 a 1605 confirm a a importância d a par-
ticipação dos h omens de negócio cristãos-novos nas exportações do açúcar. Pe-
los totais recolhidos desse manuscrito, o exportador de maior volume do açúcar
naquele período foi o cristão-novo Du arte Ximenes: 5.375 arrobas ou 80.625 qui-
los. Manuel Nunes de Matos, também cristão-novo, foi o segundo maior expor-
tador segundo a mesma fonte, que indica: 4.662 arrobas ou 69.930 quilos. Filho
de Gonçalo Nunes do Porto, era casado no Reino com Ana de Milão, filha de
27
MELLO, J. A. Gonsalves de. In:   Revista do Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico
Pernambucano. Vol. LVIII, Recife, 1993.

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Tânia Kaufman

Henrique Dias Milão e Guiomar Gomes, cunhado de Manuel Cardoso Milão,


Gomes Rodrigues Milão Paulo de Milão e Antônio Dias d e Milão.
Todos fizeram sua aprendizagem comercial em Olinda – e todos eles
eram
Olind acristãos-novos. Irmão
tam bém exportava de Manuel
açúcar para osera João Nunes
mesmos de Matos,
consignatários do que de
irmão.
Das filhas de Branca Dias e Diogo Fern andes, casadas com senh ores de
engen hos cristãos-velhos – Holand a, Leitão, Barbalho, Alpoim, Costa Favella
(Arruda), etc., dos filhos de Diogo Soares da Cunha e Catarina de
Albuquerque e Manoel Leitão... casados com Leitão Arnoso/Vieira de Mello;
dos filhos de Miguel Álvares de Paiva e Beatris Mendes (de Leão); dos filhos
da Família Soeiro, entre outros, saem grande parte dos Senhores de Enge-
nho de Pernambuco.

MEMÓRIAS E LEMBRANÇAS
Devemos atentar que a história de uma nação, de uma cidade, de uma região
não é registrada apenas pelo patrimônio material. Ela está também no acervo
imaterial, que expressa as relações entre o espaço concreto e os acontecimentos
do passado. Encontram os a história viva dos vestígios daqueles tempos nos rela-
tos de muitas famílias espalhadas em toda a região.
Eles evocam o uso de objetos e de artefatos de culto ou de uso doméstico,
de costumes
induzidos e de ritos,
os judeus, desvendando
por séculos a formação
de censura do sincretismo
e de perseguição. a que com
Confrontadas foram
as
denúncias registradas, é possível perceber como se desenrolaram os seus cotidianos:

...esteve em casa do ditto Balthesar Leitão hum delles foi sabbado dia de trabalho
no qual sabbado sendo dia de trabalho vio que Ines Fernandes cristaã nova molher 
do ditto Baltnesar Leitão se vestio de festa com huã saya de tafeta azul e jubão de
olanda lavado e toucado na cabeça lavado e em todo o ditto dia de sabbado sendo de
trabalho guardou e não trabalho, por que nos mais dias da semana a vio estar com huã
saia de pano fiando
( Denunciações: 106)e no ditto sabbado não tomou roqa nem fez outro serviço algum...

Foi feito um levantamento no  Livro das Denunciações28 sobre as principais


práticas denunciadas. É interessante observar que a “celebração do shabat” teve
a maior incidência (25%), seguindo-se “descrença em santos e imagens católi-
cas” (16,7%); “blasfêmia da fé e ritos católicos” (10,7%), “negação de Jesus como
Deus” (10,7%); “fazer esnoga e festas judaicas” (9,5%); “cerimônias judaicas de
morte e sepultamento” (9,5%); “descrédito na autoridade católica” (4,8%); “as-
28
SERBIM, Aleksandra. Dissertação de mestrado em Antropologia, 2003.

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A Memória Judaica no Mundo do Açúcar em Pernambuco

sumir ou ter fama de judeus” (4,8%); “costumes alimentares judaicos” (4,8%);


“possuir a torah em casa” (3,6%); “possuir literatura hebraica” (2,4%).
É comum descobrir gestos que são repetidos mecanicamente dentro dos coti-
dianos
que umde algumas
fato famílias
desperta espalhadas,
para uma possíveltanto na área judaica.
ascendência rural como
Sãona área urbana,
pessoas até
que desco-
brem que mesmo pertencendo a outras denominações religiosas, surpreendem-se
“enterrando” seus mortos de forma diferente, seguindo algumas restrições em hábi-
tos alimentares, invocando sempre o Deus de Israel e outras manifestações.

...a minha família, lá em V., não trabalhava no sábado. Tinha gente que ainda
dizia que éramos comunistas. Tinha um costume na minha família de reunir,
várias vezes por ano os familiares que viviam nos arredores de V. Havia uma

valorização
reuniões erammuito grande
na mata, da família.ElaMinha
escondidos. mãecontava
também até contava,
que as que antes,e as
orações
músicas tinham um sotaque diferente. Contavam-se muitas parábolas de Israel.
(I.S.F. mais ou menos 40 anos na data da entrevista).

Muitos lembram as histórias contadas nas reuniões íntimas sobre um cos-


tume de reunir periodicamente os familiares para um jantar. O chefe da família
ficava do lado de fora da casa, esperando o surgimento da primeira estrela no céu. Só
então, tinha início a refeição. Como se sabe, o dia no calendário judaico começa
com o surgimento da primeira estrela e termina n o dia seguinte à m esma hora.
As celebrações judaicas começam semp re n o entardecer. Essa mem ória está rela-
cionada à “reserva m ental” utilizada p elos cristãos-novos como forma de driblar
a vigilância inquisitorial e a dos vizinhos, para manter ativa, pelo menos, o que era
tradição no judaísmo. Esse padrão de resistência incluía artifícios de substituição
mental de figuras cristãs por outra judaica. Assim relata Lipiner (1999, p. 214):

...os cristãos-novos assistiam o novo culto nas igrejas, murmurando para si


 frases e expressões restritivas. Deveriam pronunciar mentalmente tais fórmulas,
sem que se proferissem palavras com os lábios... No Brasil, durante a Visitação do
Santo Ofício em Pernambuco, o Visitador, no dia 15 de Dezembro de 1594, registrou
uma denúncia contra o cirurgião cristão-novo Fernão Soeiro que “à missa, quando o
sacerdote alçava a Deus, alçando a hóstia sagrada” foi visto estar de joelhos e batendo
nos peitos para dissimular, mas pronunciando “eu creio no que creio”...

Daniel Breda29, analisado quantitativamente a presença judaica no mun-


do do açúcar em Pernambuco, lembra: na ép oca, nem todos estariam registrados

29
Daniel Breda é mestrando na UFRN e pesquisador do AHJPE.
30
MELLO, José Antôn io Gonsalves d e. Gente da Nação: cristãos-novos e judeu s em Pern ambu co

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Tânia Kaufman

seja como declarantes ou como denun ciados. José Antônio Gonsalves de Melo30,
a partir de diversas fontes, estima uma população de 7.000 moradores brancos
em 1584. Consideran do o mesmo total para 1593, quando se iniciou a Visitação
do Santo O fício
tãos-novos, em910
isto é, Pern ambuco, dos 7.000 morad ores brancos 14% seriam cris-
pessoas.
Breda entende a cautela de José Antônio, primeiro porque considera os
cristãos-novos 14% da população porque esta é a percentagem de cristãos-novos
declarantes, isto é, que compareceram à presença do Inquisidor para confessar-se ou
fazer denúncia. Em Pernambuco foram 38 cristãos-novos declarantes. O fato é que
somente o número d e den un ciados cristãos-novos supera em m uito esta marca
e portanto o número total de nomes cristãos-novos registrados no livro é superior ao
de cristãos-velhos, o que acabaria nos dando uma estatística de que a maior parte da

população
Outrobranca de Pernambuco
problema citado pelo em 1593 seria
pesquisador é adeimprecisão
cristãos-novos.
na quantidade d e
engenhos existentes na segun da metade d o século XVI em d iante. Buscando em
Gente da nação (Mello Recife, 1990, p. 8), a respeito de cristãos-novos senhores d e
engenho e a respeito do total de engenhos, ele encontra que no início do século
seguinte esse número aumentou, como se pode comprovar pelas relações dos
engenhos existentes em Pernambuco e Itamaracá em 1609 e 1623.
Dessas relações recolhemos (por ordem alfabética):

Em Pernambuco o número de engenhos passou de 23 em 1570


(Gând avo) para 66 em 1583 ([Padre Fernão] Cardim) e para 77 em 1608 (Cam-
pos Moreno): em trinta e oito anos o número mais que triplicou.
Assim, José Antôn io indica, da segunda m etad e do século XVI até 1623,
20 senhores de engenho cristãos-novos em Pernambuco.
José Alexandre Rimbemboim em Senhores de engenho judeus em
Pernambuco colonial 1542-1654 (5. ed. Recife, 2000), acrescenta a esta lista 12
nomes: Abraham Izhack Ferreira, Antônio Barbalho Pinto, Briolanja Fern andes,
Carlos Francisco Drago, Cristóvão Paes D’Altero, Diogo Soares, Duarte de

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A Memória Judaica no Mundo do Açúcar em Pernambuco

Sá, Felipe Diniz do Porto, James Lopes da Costa [Jacob Tirado], João Luiz
Henriques, Leonardo Ferreira, Simão Soeiro e Simão Vaz.
Além d isso, recolhemos das Denunciações... (Recife, 1984) o nome de Nuno
Alvares, citado
[Rodrigues], comoCordeiro,
Estevão senhor deEstevão
engenho, além deFrancisco
Rodrigues, André Pinto, Diogo
Mendes, Roiz
Francis-
co Mend es da Costa, Francisco Pardo, Gaspar Rodrigues, Jacome Lopes, João d a
Rosa, João Diaz o Felpudo, Jorge Thomaz Pinto, Manoel de Andrade e Simão
Fernandes, citados os 13 como lavradores de cana.
Extraímos das Denunciações e confissões (Recife, 1984) uma lista de 35 merca-
dores cristãos-novos:

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PALAVRAS FINAIS
Ao final deste ensaio, retornamos à indagação inicial para apresentar os re-
sultados p reliminares de nossa reflexão visando à integração dessas informa-
ções ao projeto maior que destaca a Civilização do Açúcar:

Permanências, rupturas ou continuidade? Como fica a memória histórico-


cultural judaica em Pernambuco, quando a mais natural das fronteiras do
tempo - os séculos – perde seus limites em favor de um retorno à História?

Mais de três séculos se passaram após o “silenciamento” dos judeus


em Pernambuco. Todavia, ficaram os fragmentos recolhidos entre historia-
dores, narradores, escritores e também no imaginário da pop ulação que, agora,
permitem devolver à história o papel dos cristãos-novos, dos cripto-judeus,
dos jud eus sefardim e ashkenazim na composição do patrimônio histórico e
cultural brasileiro.
Aliando-se as atividades diretamen te ligadas à prod ução de açúcar nos
engenhos, deve-se também considerar que foi no comércio do açúcar que se
destacaram os cristãos-novos nos séculos XVI-XVII da História de
Pernambuco. Não é de se estranhar que os judeus vindos de Portugal, tão
bem adaptados às atividades comerciais na Europa, viessem para o Brasil
com o intuito de exercer também atividades urban as. É, de fato, muito sup e-
rior o n úmero d e cristãos-novos cujas atividad es estão ligadas aos ofícios da
economia açucareira,d rural
que exclusivamente e urbana, mas principalmente ao comércio quase
o açúcar.
Há aind a m uito para estud ar, ensinar e contar. Na tentativa d e alinh ar
a cultura judaica aos estudos sobre a cultura de outras etnias que também
“ficaram” em Pernambuco é que se vem investindo em abordagens não
dogmáticas sobre o judaísmo no Brasil. A Memória Judaica no Mundo do
Açúcar é uma dessas vertentes. O apoio de pesquisadores atraídos pela
temática – Fábio Arruda, Leonor Medeiros, Branca Dias, Daniel Breda – ga-
rante um a p rogressiva am pliação d esse conhecimen to.
Também a p alavra “passagem” foi referida an teriormente. Ela está sen-

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A Memória Judaica no Mundo do Açúcar em Pernambuco

do lembrada como síntese da vida do povo judeu: a vida como passagem,


itinerário, sucessão de chegadas e partidas. Passagens que são caminhos,
pon tes entre os hom ens e entre m un dos distantes, iden tificados quan do p as-
samos a visitar
tato com os interstícios
um imaginário de oudatrora
cultura n ordestina.
sobre tradições,Nela,
costumentram os em con-
es e padrões de
comportamento judaico trazido de longe.
Agora, com a história “pedindo passagem” tenta-se confirmar que o
papel dos judeus na CIVILIZAÇÃO DO AÇÚCAR foi mais consistente do
que ficou registrad o n a h istoriografia clássica brasileira e n os estud os antro-
pológicos que se dedicaram ao fenôm eno d a interculturalidad e n o Nord este
do Brasil.

BIBLIOGRAFIA
ARRUDA, Fábio.  Relação dos engenhos coloniais da capitania de Pernambuco. Levantamento
genealógico e histórico. Alagoas, 2005.
FURTADO, Celso. Economia colonial no Brasil nos séculos XVI e XVII . São Paulo. Ed. Hucitec e
Associação Brasileira de Pesquisadores em História Econômica
DÓRIA, Francisco Antônio. Os herdeiros do poder . 2. ed. revista e ampliada. Rio de Janeiro:
Editora Revan Ltda., 1994.
FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala. Rio de Janeiro: Editora Record, 1997.
KAUFMAN, Tânia Neumann. Passos perdidos, história recuperada: a presença judaica em
Pernambuco. Recife: Editora Bagaço, 2000.
MELLO, Evaldo Cabral de. Rubro veio: o imaginário da restauração pernambucana. Rio de Janeiro:
Topbooks Editora, 1997.
MELLO, José Antônio Gonsalves de. Tempo dos flamengos. Recife: Editora Massangan a, 1987.
______. Gente da nação. Recife: Editora Massangana, 1989.
Revista do Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano. Vol. LVIII. Recife.
1993.
RIBEMBOIM, José Alexandre. Senhores de engenho judeus em Pernambuco colonial. 1542-1654 . 20
Comunicação e Editora, 1998.
WIZNITZER, Arnold. Os judeus no Brasil colonial. São Paulo: Livraria Pioneira Editora, 1960.
Primeira Visitação do Santo Ofício às Partes do Brasil; Denunciações e Confissões de Pernambuco 1593-
1595. Prefácio de José Antônio Gonsalves de Mello. Recife: Fundarpe. Diretoria de Assuntos
Culturais, 1984. (Coleção Pernambucana, 2ª. Fase, 14)

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A MODA COMO

REPRESENTAÇÃO SOCIAL
Fátima Quintas
antropóloga e ensaísta

 A moda parece ter uma função


antropológica bem definida, que se
deve a sua ambigüidade (...) Une
 fantasticamente o inteligível – sem
o qual os homens não poderiam
viver – e o imprevisível
ligado ao mito do viver.
Roland Barthes

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SUMÁRIO
A força social da mod a | 163

A ind um entária no mun do p atriarcal | 169


Modas de sinhazinh a, sinhá-don a e senh ores portu gueses | 169
Moda de mulher negra | 180

A mod a no Brasil | 187

Bibliografia | 190

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Fátima Qu intas

A FORÇA SOCIAL DA MODA


Georg Simm el, sociólogo alemão, nascido em Berlim em 1851, é considerad o
um dos maiores intérpretes do tema em foco. Segundo a sua visão, a moda
constitui um sistema de coesão e coerção social que permite conciliar dialeticamente
a postura d o ind ivídu o no grupo e a sua relativa ind epen dên cia, resultante d es-
se entrosamento estético. Algumas características por ele apontadas se desta-
cam: a da imitação e a da distinção. Imita-se para criar alianças e ao mesmo tempo
para distinguir-se nas alianças. O processo de imitação estimula o de superação e
o de aspirar ao topo de uma recriação do que antes foi pura cópia-imitação. A
moda subseqüentemente detém uma dimensão paradoxal – a de selar pactos
coletivos e, a partir da consistência dos pactos, galgar patamares individuais de
expressão exterior.
ampla difusão e o seuSimmel a define como– rito
rápido envelhecimento um sistema de contrastes
de alta mutação entre
–, o que a sua
p ermite
ao sujeito social apoderar-se do direito de ser infiel à mod a. A rotatividade sazo-
nal do estilo acata a síndrome da traição. Com isso, o sociólogo alemão reforça o
poder coesivo da moda, mesmo em face da célere circularidade estilística: ora
de um jeito, ora de outro. Mas semp re colada a um corpo d esejante d e exposi-
ções públicas. Trocando em miúdos: a moda age como força coercitiva e coesiva
e faculta ao indivíduo a possibilidade de distinguir -se dentro do gru po, mesmo
traindo as tendências dos figurinos de épocas anteriores.

ral, queGeorg
oscilaSimmel
entre o vai além:
perten ceroutorga ao vestir-se
a um espaço pú blicoo efenômeno
o reveren de
ciartensão cultu-
um conjun-
to de regras estéticas, inconstantes enquanto moda e enquanto exposição estéti-
ca. Com vistas a reconhecer-se nesse grupo, cada um traz a lume demarcações
pessoais através do narcisismo individual. A estruturação das grandes cidades
contemporâneas rende vênias ao narcisismo coletivo, por multiplicar os âmbi-
tos de convergência dos agregados, esses, sensíveis
ao culto da “reciclagem do corpo”. Fica claro que a
moda consigna uma das expressões mais contun-
dentes do sentimento
rimba níveis de adesãode pertença , isto é: o trajo
a um determinado ca-
grupo
ou a vários grup os, um a vez que h á grup os princi-
pais e secundários. Pela forma de vestir as pessoas
se alojam em núcleos diferenciados. A aparência ex-
terna ind ividu al sinaliza o p ertencimen to comun itá-
rio: o cabelo, os adereços, o perfume, o porte, a
ind um entária dizem d e símbolos de ligação que so-
mente reforçam a noção de pertencimento, noção

indispensável à construção de personalidades indi-


viduais e coletivas.

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A Moda como Representação Social

A análise simmeliana exalta o narcisismo como fonte d e vitalidade neces-


sária à existência, cujo clímax é alcançado com a expressividade da moda. O
respeito e o embelezamento de si mesmo tornam-se condição sine qua non de
ajustamento individual
o que significa, ou seja,e social. Um corpo
a ostentação vestido é um exterior.
da performance corpo social
E a que realiza
sociedade
reivindica aparências vistosas, a beirar sentimentos de virtuose e perfeição,
pessoas bonitas, bem arrumadas, talhadas à semelhança dos “deuses”. Não é
à-toa que atores e atrizes são objeto de adm iração, especialmen te no tocante à
imagem. Aqui um a pergu nta m erece destaque: até que ponto os grup os sociais
perseguem ícones condizentes com os valores em vigor? Quando falo em ícones,
remeto à idéia do visual – do que é visível – como figuração de um desejo ali-
mentado e retroalimentado pelo “mercado” das trocas sociológicas. Simmel,

autor do século
dido como XIX, é absolutamente
introspecção atual na concepção
individual e extroversão deuma
coletiva de narcisismo, enten-
sociedade que
celebra a valoração do ego, a um temp o, e a valoração da massa a outro temp o.
E não poderia ser de outra forma. A anu lação do eu seria a an ulação do nós. Os
campos sociais nutrem-se da imperiosa permuta do individuo com o grupo.
Um e outro se irmanam na formação do mundo, do micro ao macro.
Em 1931, Edward Sapir, lingüista e antropólogo americano de origem
lituan a, incursiona no estudo da moda e estabelece concepções de m oda, gosto
e costume. O gosto seria uma tendência pautada na sedimentação de valores
artísticos, enquanto que a moda veicularia autonomias comprometidas com a
economia de mercado. Tento explicar: existe uma au tonomia d e estilos – talvez
pela sua própria arbitrariedade –, não existe, entretanto, uma autonomia de
decisões sociológicas. O estilo muda a seu bel-prazer, a sociedade segue-o ou
dele se afasta, o que pode acarretar em uma marginalização dos grupos diver-
gentes. Na verd ade, a sociedad e é um continuum com evidentes compromissos
históricos e antropológicos. Não há como apartar-se dos grilhões que gravitam a
sua esfera, até certo ponto fechada nos circuitos coercitivos e coesivos. Quanto
ao costume, esse mostra-se relativamente estável, com durabilidade mais exten-
sa e men os precária que a moda. O costume corresponde ao ato de vestir-se; a
mod a, ao fluxo desse vestir-se, a depender das estações, da oferta, da d eman da,
da instabilidade do desejo. Desejo no sentido de falta, daquilo que não se tem,
de um sujeito sempre em busca de alguma coisa: no caso, de uma nova roupa,
de um novo adereço, de uma nova aparência. Um sujeito insatisfeito, em per-
manente falta, buscando, buscando, buscando...
A infidelidade às silhuetas serve de calço à frenética permuta e à traição ao
mundo das exterioridades. Traição que se materializa na ordem do que é objeti-
vo, não do que é subjetivo. Esclareço: a traição à moda se dá de maneira incon-
seqüente, sem remorsos e sem culpas, uma traição à margem d o sentimento, de
natureza apenas funcional, ao largo de possíveis arrependimentos. A avidez

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Fátima Qu intas

mutativa não perm ite o mínimo de reflexão. Ela, a mod a, chega para assenhoriar-
se dos corpos sociais e raramente não o consegue. Domina por um período, mas
reinventa-se com autoridade inconteste, sem pedir licença a ninguém. A cada
reinvenção, insere beleza
decantados como aportespadrão.
adicionais
Sãoaos modelos antigos,
as variâncias em algum
que atualizam osmomento
estilos e
provocam o d esprezo pelas passarelas ultrapassadas para enaltecer o manequim
do presente. A moda, pois, resume-se no agora, não obstante o seu efetivo ro-
deio. Dela se esperam renovações iminentes que incitem as pessoas a confiar na
sua exigüidade. Talvez represente o efêmero desejável. É a nova estação que se
aproxima, recriando modelos e estilos; desprezando o que antes parecia aceitá-
vel; ditando outras normas estilísticas sem d ó nem piedade. O m un do da mod a
glorifica a traição com o enlevo de quem espera a primavera, o verão, o inverno,

ofigurinos
outono. emPordia.
entreUmestações, a sociedade
mecanismo capitalista
de parciais envaidece-se
rupturas claras. de ter os seus
O trajo em alta retrata a indumentária sincrônica dominante. Equivale,
assim, ao  fato social total enunciado pelo sociólogo Marcel Mauss. E o que é um
fato social total? Um fenômeno que congrega u m leque de representações capa-
zes de traduzir os elemen tos fun dam entais da sociedad e. Imbuído de seus ma-
tizes, o observador estará apto a compreender o intricado da rede sociológica.
Nele, fato social total, reside uma convergência de atitudes, hábitos e costumes
reveladores da lingu agem sociocultural dom inan te. Quand o falo em lingu agem,
faço-o com o intuito de atribuir ao social as estruturas classificatórias –
taxionômicas – de uma possível realidade. Possível por d emonstrar fatos regula-
res, sistemáticos, repetitivos naquele instante em que é alvo de perscrutação.
Importa realçar que a sincronia da m oda se associa à sua circularidade, jamais à
perspectiva histórica, rica em episódios altercados e em significações sucessivas.
O sincrônico equivale ao corte temporal, momentâneo, presentificado; o
diacrônico ressalta a retrospecção dos fatos, isto é, a leitura histórica.
A aparência do sujeito social reproduz as variações que orbitam o sistema
comu nitário. A sociedad e presta mu ita atenção no vestir-se porque dele depen -
de uma série de tópicos que definem as classes e outras categorias responsáveis
pela tessitura social. Vestir-se de acordo com os parâmetros esperados indica, no
mínimo, um equilíbrio de exterioridad es. O ind ivídu o que se amolda às conjun-
turas reais é um ind ivídu o que se integra aos costum es editados pela comu nida-
de. Sem exageros de adaptação. Igualmente sem exageros de inadaptações. Um
ou outro denuncia versões tanto divergentes quanto convergentes e consolida
nichos de acomodação ou de contestação; logo, faz parte do xadrez social.
A moda possui uma natureza circular  e espiralada; prende-se a uma mu-
dança periódica de estilo, como já se falou. Vai e volta; circula, mas no seu giro
não retorna com as mesmas feições. Daí a concepção espiral. Nunca inteiramen -
te igual, porém com uma topologia em aclive ou em declive. E obedece a regras que

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A Moda como Representação Social

são veiculadas através de figurinos consoantes à época


vivida. A sua volúpia rotativa invoca ajustamentos con-
tínuos: acentua o poder coercitivo, ao confirmar modos
edores.
modas que devem
Nesse sentido,balizar
a roupaa trajetória
é temporaldose circunstan-
seus segui-
cial; oscila de acordo com as nuances que simboli-
zam os cosméticos de u ma superficialidad e aceita e
deferida pelo sociológico.
Estar na moda é estar no topo da h ierarquia
da indumentária, é creditar ao coletivo a capaci-
dade de discernir entre o belo e o feio. Entre o uso
e o gosto. O gosto de que Sapir menciona. O belo

consubstan cia azível.


o feio, a de spre estética
Mascobiçada,
o que é enqu
feio eano toq uqu
e ée
belo em se tratand o d e somas, conjun tos, jogos
pessoais? Tanto no homem como na mulher, as
vestes gozam de atributos especiais, equivalentes a
uma engenharia de privilégios ou de restrições: podem ser sinal de  prestígio,
como sinal de estigma. Uma roupa desleixada, suja, rasgada constitui um estig-
ma de classe. Um paletó bem talhado em um corpo perfumado assegura dotes
de prestígio. Quan do se quer agradar a alguém ou a algum a instituição, recorre-
se ao velho truque da boa aparência. A sociedade escalona padrões de
exterioridades e não há como fugir do cerco da indumentária. Nem no amor,
nem nos negócios. Ou se procuram exterioridad es de prestígio ou de estigma. A
marca negativa quase sempre é alheia ao desejo de cada um. Resulta de uma
estratificação social na qual as camadas se debatem entre si, nem sempre com
respostas positivas. Tal dualidade imprime caráter identificatório, como alguns
“fetiches” de dominação. A moda é, pois, conotativa e denotativa. Conotativa
porque comu nica a imagem imed iata e denotativa porque, dessa comu nicação,
deriva uma seqüência de simbolizações e desdobramentos que se d eslocam do
visual para o não-visual, do palpável para o que há de subliminar na forma
projetada. A aparên cia tem valor de signo n a med ida em que sedimenta outros
signos e outras simbologias. Não estanca em si; dela desprendem-se ilimitadas
ressonâncias. Ao lado de uma rotatividade sazonal, cunha juízos sociológicos.
Pela roupa conhece-se sociologicamente o don o da rou pa, razão pela qual
o vestuário catalisa legend as valorativas. A sociedade capitalista explora ao m á-
ximo a circularidade d a mod a em pad rões intermitentes – renovados em perío-
dos simétricos, o que evidentemente encarece e onera o trajar. O preço da ele-
gância é alto. Mas vale a pena persegui-lo, uma vez que garante o reconheci-
mento pelo grupo, outorgando-lhe a fiança social. Uma mulher bem posta de-
clara-se uma mulher respeitada. Um homem bem posto sugere um homem

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Fátima Qu intas

prestigiado. A Sociologia da Moda impõe deveres a machos e fêmeas. Que eles


sejam cumpridos, visando a aceitação de seus corpos sociais.
A moda também acusa escolhas de sedução que vão do homem para a
mu
mú lher, da mulher
tua, tend p aramoaximizam
ências que homem . Há
ou ominimizam
desejo masculino e o feminino,
a interação dos sexos.atração
A rou-
pa utilizada tem finalidades p róprias, dad o que ela integra um a circunferência
dinâm ica em que os pólos de gênero se aproximam ou se afastam. O imperativo
cultural do consenso prevalece, apoiado num sistema normativo tão arbitrário
quanto homologado pelo coletivo. Assim, a mulher veste-se para seduzir o ho-
mem , para chamar a atenção da sociedad e e para se distinguir das outras mulhe-
res. Como afirma Simmel, para distinguir-se e liderar o grupo a que p ertence, ao
assumir a posição de mais formosa, de mais esbelta, de mais charmosa. E o

homem
emulaçãoigualmente
da beleza veste-se paraclaras
faz-se com adequar-se ao status
evidências que lhedoé trajo.
no manejo atribuído.
Que A
a
aparência indica um escudo de respeito social, ninguém duvida.

 Assim, moda , como uso, hábito ou estilo geralmente aceito, variável no tempo
e resultante de determinado gosto, idéia, capricho, ou das influências do meio.
Uso passageiro que regula a forma de vestir, calçar, pentear etc. Arte e técnica de
vestuário. Fenômeno social ou cultural, mais ou menos coercitivo, que consiste
na mudança periódica de estilo, e cuja vitalidade provém da necessidade de con-
quistar ou manter, por algum tempo, determinada posição social (FREYRE,
Gilberto. Modos de homem & modas de mulher, 2002, p. 17).

O nexo coercitivo da moda é polarizador, porque inclui ou exclui indiví-


du os na aren a social. Por efeito, infun de um du plo sentido – o de exclusão ou o
de inclusão. O indivíduo na moda – quer homem ou mulher – insere-se no
contexto da atualidade. Fora dela, exclui-se e resvala para hiatos desfocados. A
função coercitiva e a função coesiva possuem mão e contram ão no “trânsito” da
estética da roupa.
O assunto é palpitante: expressão social e estética, complemento de bele-
za, de elegância, de prazer. De prazer porque garante a posição social e pode
ensejar mobilidade vertical positiva, ou seja, ascensão na escala do prestígio.
Uma dialética em constante alerta, sem abrir brechas para fortuitos relaxamen-
tos. Por algum tempo a mod a esteve mais ligada ao feminino, talvez pela própria
concepção de feminilidade, afeita aos pressupostos da delicadeza e da finura.
Mulher frágil. Mulher dócil. Mulher bela. Do homem esperavam-se outros
predicados: virilidade, coragem, valentia, insígnias que não condiziam com a
“frivolidad e” do vestuário. Contemporaneamente o complexo da indum entária
estendeu -se ao homem em um a visível exacerbação do corpo e do trajo. O p ara-
mento sempre se aliou à projeção social, tanto que, o já citado Edward Sapir,

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A Moda como Representação Social

entendia que as mulheres mais inclinadas à adoção da moda são as menos jo-
vens para as quais novos estilos podem beneficiar o inexorável envelhecimento.
Julián Marías, outro grande estud ioso do tem a, afirma que a mod a se alicerça na
inovação. Mais
do contrário nãoainda:
seria na
tranruptura. E confirma-se
smissível. p elo reconh
Só é tran smissível aquiloecimento
que tem social,
apro-
vação do grupo ou de p arte dele. Portanto, a sua viabilidad e dep end eria da
aceitação d os que estão submetidos ou não à ad esão das sugestões apon ta-
das. E interp ela o pensador espanh ol no seu notável trabalho acerca da m u-
lher no século XX: O qu e verdad eiramen te interessa ao hom em e à m ulher?
A reposta aponta na direção da vivência recíproca dos dois sexos, cada um
com uma experiência distinta, com uma perspectiva histórica situada em
mod os de vida dessemelhan tes. Histórias pau tadas, as de m achos e fêmeas,

em culturas
Sabe-semilenarmente construídas.
que com o processo da globalização, visões simplificadoras vêm
ganhando terreno através de elementos uniformizantes ou unissexualizantes.
Entretanto, repetindo Julián Marías, a força psicológica de cada sexo tende a
firmar-se por meio de diferenciações que balizam a moda, bipolarizando apa-
rências femininas e masculinas. O qu e quero dizer com isso: ainda que o merca-
do aproxime a maneira de vestir de ambos os sexos, haverá um sentimento de
iden tidade sexual e existencial que preponderará sobre a tentativa de padroni-
zação. Modos bissexuais perdurarão com a finalidad e de aumen tar os encantos
entre os sexos.
Do que se pode inferir que a m oda contrap õe os sexos; acentua as diferen-
ças; feminiliza a mulher e masculiniza o homem. Constrói “esculturas” de refe-
rência. É mister que para cada sexo haja atrativos específicos que sirvam de
traços distintivos. Em suma, uma das funções da moda é embelezar para con-
quistar não somente degraus sociais, mas igualmente a ambos os sexos mediante
saudáveis descobertas. Cores, tecidos, talhes deságuam em estilos que se ajus-
tam a ap etites diversificados. Homem e mu lher expõem mod elos de roup a que
louvam feminilidade e virilidade. De um lado, os caracteres da fêmea; do outro,
os caracteres do macho. Ambos guarnecidos do invólucro da beleza.
O trajo permeia a vida privada e a pública. Veste-se em casa de maneira
informal e, na rua, de maneira formal. Porém, o paramentar é uma presença
incontestável no ser humano habitante das sociedades ditas civilizadas. Quanto
mais se cobre o corpo, maior o prestígio social. O homem nu grava o estigma da
barbárie. Os escravos andavam d espidos e sequer tinham o direito de ad ornar-
se com dignidade. Vivenciavam a humilhação dos desprovidos de vestes. A
civilização prescreve o vestuário como manto diferenciador. As monarquias tra-
dicionais, por exemplo, excediam-se em roupas, longas roupas, majestáticas,
ostensivas, únicas na sua representação de reis e rainhas, de príncipes e prince-
sas, de cortesãos e áulicos.

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Fátima Qu intas

O certo é que a indum entária atravessa as fronteiras do privado e penetra


o p úblico, sua desembocadura preferencial, confraternizando os espaços num “es-
piral cênico”. Se o âmbito privado se acomoda à rotina, a esfera pública reclama
dimensões
propala na mais eficazes.
exibição O status
pública, palco do vestir começa
de maiores necessariamente
apreciações. na casa
Dessa maneira, e se
granjeia
emblemas bipolares que acabam por verter na en cruzilhada d a p osição social. Po-
sição essa que já traz embutida a sexualidade do indivíduo num trajo formalmente
reconhecido pelo desenho do tempo e do espaço, seja no privado ou no público.

  De fato o problema das vestes, como o da vida sexual, participa da área


 privada e da pública: projeta-se daquela sobre esta e reflui desta para aquela,
como em um movimento pendular. A tradição corresponde a uma distinção

entre traje de ecasa


mais formais, que eo traje de rua,“informalismo”
professado distinção que se
de acentua nos ainda
nossos dias contextos
não
conseguiu extinguir de todo. Um pedaço de pano pode alterar o “efeito” da
 figura humana, e nas civilizações mais conhecidas a dignidade social sempre
corresponde a um tanto mais de tecido ou de adornos sobre o personagem
(SALDANHA, Nelson. O jardim e a praça, 1993, p. 33).

A imagem do que sou socialmen te advém de uma imagem p rodu zida. O


cabelo penteado de uma certa forma, a roupa discreta ou extravagante, os tons

berrantes ou Do
comunitária. neutros
mais dos tecidosaotipificam
romântico modos do
mais racional; de mais
inserção na hierarquia
agressivo ao mais
tímido; do mais aristocrático ao mais popular. As gradações corresponderão à
intenção do  postar-se. A rede sociológica é elaborada em razão das relações
interpessoais. Portanto, convém privilegiar construções culturais sob a hélice
estetizante, de mod o a obter-se o efeito desejado: o de consignar pertencimentos
grupais e o de ratificar posições hegemônicas.

A INDUMENTÁRIA NO MUNDO PATRIARCAL


MODA DE SINHAZINHA, SINHÁ-DONA
E SENHORES PORTUGUESES

A preguiça e a letargia dominaram as lentas horas da portuguesa, como já foi


analisado; mas faz-se necessário repetir para contextualizar a vestimenta da
mu lher branca. Envolta na aura de colonizadora, pouco teve o que fazer, a não
ser dar orden s às mucamas e tagarelar conversa mole na cozinh a. A mod orra era
tanta que se distend eu por sobre os mais variados filamen tos. O vestuário, por
exemplo, respon deu a essa desastrosa indolência. E, diga-se que o ócio, quando

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A Moda como Representação Social

bem administrado, é um excelente aliciador de criatividade; não o foi, entretan -


to, no engenho do passado. Talvez pelo exagero da dose.
Mulheres ansiosas à espera do casamento ou do filho para nascer. As pri-
meiras, angustiadas
parir, parir... Ambas,diante da incerteza
amarfanhadas do advir;
por um as outras,
cotidiano abúlico.exauridas de parir,
As sinhás-donas,
decepcionadas com um matrimônio sem amor: quase contratos econômicos,
com a finalidade de abonar a prosperidade da cana através de enlaces
endogâmicos. Tristes. Um filho atrás do outro. O corpo se deformando, os seios
em desleixo, a pele ressequida pelo morm aço tropical. Mulheres às avessas, a se
entregarem à inércia de condu tas relapsas.
Os cronistas da época falam que as sinhás-donas, em casa, vestiam-se de
cabeção e chinelo, arrastando os pés, como se arrastassem o peso de uma

vida
parammal vivida.
entar-se, Sem avirmínima
deixaram expressão
à tona as dedores
p langentes zelo pou de cuidado
sicológicas. no
Mulhe-
res aban donadas. Qu ase sujas. Perdidas na gordu ra, na obesidad e, no colesterol
alto – proveniente das dosagens desequilibradas dos lipídios, da gula pelo açú-
car, enfim, da alimentação mal balanceada. Sem o élan e o  frisson da juventude
que ainda latejava em suas veias.
A mulher européia, diga-se a portuguesa, arruinou-se através de uma
nadificação chan celada, e obteve dividen dos desfavoráveis à sua p ersonalidad e.
A negação surgiu como um meio contu nd ente d e destruição. Ignoran do a esté-
tica do vestir, confinou-se à lassidão de uma malemolência prejudicial ao desen-
volvimento. Na esfera privada, ond e as frustrações poderiam evolar sem med o
de censura, a população feminina branca man ifestou a anulação de si mesma. O
desleixo com a vestimenta remetia a atitudes de acídia e, conseqüentemente, a
fracassos individuais. Diante da insipidez sexual, e conhecedora das clandesti-
nidades do “companheiro” – a mulata foi sua permanente rival –, aceitou
agigantar o cerco da displicência. Cabisbaixa, por entre os corredores frios, lon-
gos, nostálgicos, anuiu a um estágio próximo à flagelação. Não se pode incriminá-
la por esta reação de constrangimento. O espaço privado hospedou graves pa-
radoxos e resumiu o refúgio de um viver mal construído. O pior de tudo era
que, no palco patriarcal, o doméstico prevaleceu; do que se conclui que preva-
leceram as insatisfações femininas.
Se em casa, entre as paredes do solar do engenho, o relaxamen to prep on-
derava, na rua, entretanto, a pompa reinava. E com ares babilônicos. Uma figu-
ração um tanto exótica, no mínimo estranha. Enfeitavam-se, as mulheres, em
demasia. Adereços, jóias, braceletes. Uma verd adeira querm esse de variedade e
riqueza. Porém, um luxo mal combinado. Sem a lucidez necessária. De tudo
faziam para se travestir de d ondocas. Uma coisa é certa: nossas bisavós arrum a-
vam-se exclusivamente para sair, como se tivessem vergonha de sua própria
imagem dentro de casa. Ou de sua silenciosa humilhação social.

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Fátima Qu intas

 Na missa, vestidas de preto, cheias de saias de baixo e com um véu ou man-
tilha por cima do rosto; só deixando de fora os olhos – os grandes olhos
tristonhos. Dentro de casa, na intimidade do marido e das mucamas, mulhe-
res relapsas.
de fora. MariaCabeção
Grahampicado
quase de
nãorenda. Chinelo
conheceu sem meias.
no teatro Os peitos
as senhoras queàsvira
vezes
de
manhã dentro de casa – tamanha a disparidade entre o trajo caseiro e o de
cerimônia (FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala, 1966, p. 373).

A cor escura predominou entre as silhuetas patriarcais, fiéis adeptas


do estilo europeu, sobretudo no século XIX quando se deu a chegada da
Corte para o Brasil, em 1808, e a abertura dos portos às Nações européias –
particularmente ao comércio britânico. Com o advento do Império, o Brasil

perdeu o seu parisiense.


cia da moda relativo isolamento,
O relativoacatando quase
isolamento anestesiadamente
a que a influên-
me refiro remete a uma
Ibéria aind a sem o gosto de Europ a – mais África que Europa –, sem a aceitação,
contudo, de tal ambigüidade, abraçand o e repassando o quan to pod ia os fidal-
gos preceitos europeizantes. Os anún cios de jornais mostram a chegada de cos-
tureiras francesas, estilistas, de tecidos inapropriados, de toda uma sorte de va-
riações em torno dos referenciais de beleza da cidade das luzes, Paris.

Em 1857, anúncio no Diario de Pernambuco tornava evidente o que vinha sen-


do, há anos, a europeização de trajo e de calçado no Brasil, através não só da
importação de artigos europeus como de chegadas, ao nosso país de, além de
artistas, artesãos. No referido anúncio, informa-se terem acabado de chegar de
Paris um Sr. Blanchin, “optimo official de sapateiro, e Madame Blanchin, perita
engomadeira de roupa fina...” Ofereciam seus préstimos “por se acharem com todos
os aparelhos necessários para as suas artes. Evidente requintes novos para o Brasil,
sendo de presumir dos sapatos que já fossem de aparências discretas” (FREYRE,
Gilberto. Modos de homem & modas de mulher, 2002, p. 119-120).

A reeuropeização da moda vingou com facilidade. E a vestimenta da por-


tuguesa aprimorou-se em critérios antiecológicos, tanto nas cores quanto nos
modelos exageradamente abafados e pesados. D. Pedro II e a Imperatriz mostra-
vam-se fiéis representantes dos trajos escuros. Ele, de sobrecasaca preta e de
cartola também preta, ela, de vestidos tristonhamente escuros, a revelar a pre-
dominância de “gravidad e” e de “solenidade” que caracterizaram o Brasil patri-
arcal e escravocrata do longo reinad o do segundo Pedro. Se da Monarqu ia ema-
navam austeros visuais, segui-los dizia de um bom receituário na etiqueta da
elegância. Afinal, as referências aristocráticas ditavam as normas da boa postu-
ra. E o Brasil esteve semp re na esteira da aristocracia, mesmo ao imp acto do seu
declínio. Por ela lutou até os últimos estertores.

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A Moda como Representação Social

 A moda brasileira de mulher foi, assim, por algum tempo, uma moda vinda da
França, sem nenhuma preocupação, da parte dos franceses, de sua adaptação a
um Brasil, diferente no clima, da França. Uma moda imposta à mulher brasilei-
ra
se,edesabrasileirando-se
à qual essa, quando de
e, gentes mais altas, dassofrendo
até, torturando-se, cidades principais,
no corpo, teve de adaptar-
martirizando-se
(FREYRE, Gilberto. Modos de homem & modas de mulher, 2002, p. 106).

Importavam -se da Fran ça enxovais inteiros de casamen tos e batizados.


O Brasil parecia n ão reagir a esse imp erialismo exógeno. As modas de cores
de vestidos, de enfeites de chapéus, de espartilhos,
de penteados, foram seguidas passivamente, sem o
menor gesto de resistência. Impostas e tiranicamen-

te obedecidas apor
correspondiam adultos
climas e crianças.
temperados Modas
e frios, longeque
da
tropicalidade do nosso país. A ditadura francesa alonga-
va-se dos perfumes às loções, do ruge aos vestidos, de bai-
le ou de dias comuns, dos sapatos às meias de seda, dos
espartilhos às roupas íntimas... E luvas. Imaginem lu-
vas em um ambiente absolutam ente arredio a tais ade-
reços! Na  Belle Époque não se permitia que uma brasi-
leira saísse sem as suas respeitosas luvas. Existiam modis-
tas exclusivas de luvas e chapéus. Não chapéus leves e
apropriados ao sol, mas modelos tipicamente parisienses.
O pince-nez ostentou um dos toques estéticos mais
franceses adotados no Brasil. Homens e mu lheres d ele fizeram uso com o pro-
pósito d e culminar a esbelteza. Nesse Brasil miloitocentista d e fim d e século, o
 pince-nez era completado por jóias: trancelim, camafeu, anéis, brincos, broches,
pulseiras... E dentes de ouro como insígnia de fartura econômica. Joaquim
Nabuco, por exemplo, homem reconhecidamente belo e airoso, foi acusado por
seus adversários do uso de pulseira, alfaia pouco apreciada pelos homens machistas
da época. Afirme-se que rara era a esposa de brasileiro rico do fim do século XIX e do
começo do XX que não andasse sobrecarregada de jóias e perfumada da cabeça aos
pés. E quanto às jóias de mulher, a preferência se dava pelos anéis de brilhante,
brilhantes grandes chamando a atenção, broches cheios de brilhante, grandes
também, cordão de ouro com medalha e crucifixo de brilhantes. Havia uma
clara predileção por essas pedras, embora o rubi e a esmeralda ocupassem espa-
ços de distinção. E nessas jóias a cruz referendou o símbolo mais em voga. O
catolicismo abençoou a cultura brasileira em seus mais variados aspectos.
Gilberto Freyre, na sua argúcia em pesquisar anúncios de jornais, anota
mais um relativo às caracterizações de cores para a indumentária feminina, co-
res no mais alto grito de Paris:

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Fátima Qu intas

Para vestidos de passeio, à escolha, cores como “cinzento rato, toupeira, castanho não
muito escuro... resedá, musgo, beige carregado, tijolo, violeta”; para “toilettes de
visita e cerimônia: campagne heliotrópio, cinzento pérola, beige claro, groselha, azul
Sèvres  , verde
de baile, e teatro: mordoré
soiréeesmeralda,  , rubi
rosa desde escuro,
o tom maisvioleta
suave de
atéParma”; para “toilettes
ao mais ecarregado, azul
celeste, verde água, branco, amarelo canário, marfim, creme, rubi, gris  , verde muito
claro, gema de ovo, palha e pêssego” (FREYRE, Gilberto. Modos de homem & modas
de mulher, 2002, p. 141).

Os espartilhos e as an quinh as den otavam u m enorm e sacrifício para a


mulher. O espartilho acarretou males para a sua saúde, ao prender os pul-
mões e trazer um imenso desconforto aos apelos da mobilidade. Cinturas
finas em sinhazinhas já depau perad as ou em corpos arredond ados das sinh ás-
donas, arredias às linhas perfeitas da anatomia desejada. Mulheres que se
lambuzavam de açúcar em caldeirões apetitosos e que se levavam pela gula
diante d e um bolo irresistível ou de um doce, a d ar água na boca. O m artírio
desses corpos em espartilhos desumanos açulava a veia da competição entre
os prod utores. Como, por exemp lo: na tentativa de substituir o colete docloresse
surgiu o colete devant droit  com uma excelente propaganda – garantia uma
“comodidade inexcedível”, recomen dado, inclusive, por higienistas brasileiros.
O devant droit, asseguravam os vendedores, era rigorosamente científico. Quem
poderia comprovar
condenação explícitasemelhante afirmação?
d os cientistas Aliás, o mito
mais esclarecidos. Asdo espartilhoeram
anquinhas recebeu
incô-a
modas, porém não chegavam a acarretar danos à saúde.
A morte no Brasil patriarcal cercou-se de rituais solenes e necessários ao
mu nd o sociológico. Morria-se a toda hora, de parto, de d oenças banais, de pro-
saicas infecções. Crianças recém-nascidas subiam ao céu como an jinhos inocen-
tes. Mães desesperadas, sem ao menos abraçar os filhos no colo, beijá-los,
amamentá-los, amá-los vivos. E a morte ceifava o primeiro, o segundo, o tercei-
ro... A medicina não alcançara ainda meios para curar doenças rotineiras, quase
familiares e inexpressivas.
para demonstrar Diante
o sofrimento, mas de tantas
a elas perdas,onão
se juntava bastavam
ritual do luto,as
queexéquias
incluía
estilos de trajo. Luto fechado, tratando-se de pai ou mãe, avó ou avô, esposa ou
esposo, filho ou filha. Luto fechad o por um ano, sem tran sgressões porventura
dissociadas da dor do adeus: vestido preto, chapéu preto, sapatos pretos... O
luto aliviado se traduzia em vestidos pretos salpicados de branco ou vestidos
roxos; daí nun ca faltar vestidos roxos no guard a-roup a feminino dos engenh os
de outrora.
O luto fechado incluía, ortodoxamente, a moda do chamado chorão para
as
do viúvas,
luto. Aque consistia
roupa num
preta se véu escuro
impunha que escond
também ia oAté
em casa. rosto durante osubmete-
as crianças período

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A Moda como Representação Social

ram-se a essa rigidez. Os homens também, esses com maiores liberdades por-
que, em se tratando da perda da esposa, casavam-se com uma certa rapidez.
Guardavam, assim, um luto ameno. As viúvas, ah, as viúvas!, isolavam-se do
mundo
vezes o real, a entristecer-se
uso do e a lamentar
preto estendia-se o malfadado
aos escravos destino
domésticos, do cônjuge.
considerados Às
mem-
bros sociológicos de uma família brasileiramente patriarcal.
As modistas em voga esmeravam-se em confeccionar vestidos elegantes
de luto. A homenagem do trajo fúnebre patenteou uma aguda demonstração
nos temp os dos nossos antepassados por motivos sociológicos de coesão famili-
ar e de tributo a entes queridos que partiam tão cedo. Para tanto, uma moda
especialíssima: a dos vestidos requintadamente de luto. E depois, requintada-
mente de lutos aliviados, com relevos brancos ou p almas “bordadas a prata”.

Um
adeusluxo
era que se incorporou
eterno. à morte.
Não só: cumpre Aliás,
salientar quesobretudo na morte,
a sociedade porque
patriarcal fez deo
seus mortos ícones inabaláveis, a adentrarem a vida cotidiana com mais vigor
que os próprios vivos. Os mortos comandaram a cena de outrora porque o
prestígio de muitos ultrapassava o “crédito social” dos que ficavam. Render-
lhes láureas era uma forma de conservar um status em perigo. E nada melhor
para manter h ierarquias que veemen tes saud ações ao mund o celestial. De lá, da
esfera inabitada por matéria corpórea, manavam as ordens do cotidiano e, con-
seqüentemente, as ordens da estabilidade hegemônica.
A mulher portuguesa “mesclou” duas vidas. Dois comp ortamentos. Duas
atitud es. A de casa, submersa n a indolência; a da rua, resplendend o formosura.
Maria Graham não se eximiu de revelar o seu espanto em não reconhecer as
mu lheres n os espetáculos públicos, taman ha a diferença entre o estar em casa e
o estar na rua. Adornavam-se não para os maridos, mas para outras mulheres por-
que, na verdade, não ousavam fazê-lo para h omens estranh os, o que d enotava
a ansiedade de demonstrar em público elevados níveis de afortunamento.
Na roupa, projetava-se a situação econômica, que se queria próspera no
ranking do latifún dio monocultor. Enfeitadas d a p orta da rua para fora: nos
teatros, nas festas religiosas, nas praças pú blicas e, ordinariamen te, nos cos-
tumeiros rituais da Igreja.
Somente os olhos não podiam mentir. Denunciavam a cor da tristeza.
O íntimo. O interior. O que ninguém vê. Enganar as exterioridades, muito
fácil. Cobrir-se de preto ou de rosedá, conforme a ocasião, mais fácil ainda.
Embrulhar-se em mantilhas, em véus, em lenços, como representação de
hum ildade e recato, fazia parte do espetáculo. Isolar-se na n obreza dos para-
mentos, um artifício muito utilizado. O que não se podia esconder, aí sim,
não se podia esconder mesmo, era o olhar melancólico. Este presidiu a vida
da mu lher portu guesa. Em todas as idad es, em todos os espaços, em todos os
temp os p atriarcais.

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Fátima Qu intas

Na Igreja, a mise-en-scène esperada. Um certo retraimento. No teatro,


outra performance, porque ali o exibicionismo deveria assumir feições re-
tumbantes. O corpo parecia pouco para expor o “mercado persa” de jóias,
brincos,
externas pulseiras, colares...
de ilusionismo. O exagero
O que de aparatos
se passava significava
no interior de cada manifestações
uma somente
os espelhos conhecidos seriam capazes de delatar. E deles a m emória históri-
ca pouco preservou. Os esconderijos encarregaram-se de embaçar os pade-
cimentos, subtraindo algumas lamentações que apenas escamoteavam lágri-
mas, jamais as eliminavam .
O excesso de alfaias oferecia um espetáculo desagradável. A mulher, ao
tentar embonecar-se com exóticos aportes, acabava por enfear-se. Sedas, velu-
dos, rendas, chapéus, enfeites variados reuniam o instrumental das portugue-

sas em apresentações públicas.


(...) As sinhás-moças, vestidas de ricas saias de cetim, camisas de cambraia
  finíssima, cobertas de jóias de ouro, cordões, pulseiras, colares, braceletes e
balagandãs (PRADO Paulo. Retrato do Brasil, 1962, p.117).

Não h á como emp almar o gosto colonizador: a portuguesa escand alizou a


estética com uma mistura de arranjos que a caricaturou em esboços de espan to.
Para alcançar a comenda da aristocracia, a mulher enformou-se em confusos
param entos, um verdad eiro picadeiro circense que a afastou dos p rincípios bá-
sicos da arte do bem vestir.

(...) A julgar por Mrs. Kindersley, que não era nenhuma parisiense, nossas avós
trajavam-se que nem macacas: saia de chita, camisa de flores bordadas, corpete
de veludo, faixa. Por cima desse horror de indumentária, muito ouro, muitos
colares, braceletes, pentes (FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala, 1966,
p. 370).

A cronista extasiou-se com a variedade de ornatos que as mulheres


carregavam ao mesmo tem po. Falta d e senso estético, de h arm onia de cores,
de equilíbrio de estilos – uma bizarria. Necessidade por vezes de simular
opulências nem sempre condizentes com o entorno açucareiro. Exposição
que p atenteou um grande m arco na sociedad e do p assado, tão depen den te
de anuências sociais.
Disfarçar a tristeza ou qualquer ou tro sentimen to que pusesse em xe-
que a coesão familiar foi a ord em do dia no m un do patriarcal. Nada d e exibir
sinais que viessem a acusar baixas econôm icas. Isso, jamais. A indumentária
evidenciava um escudo protetor para corpos pouco amados. Brasão que

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A Moda como Representação Social

realçava a altivez de uma família pautada em condecorações latifundiárias e


escravocratas. Homenagens e homenagens à sombra do açúcar, o mais exigente
em d itadu ras ostensivas. A roup a estrondava como uma aliada importante que
servia de ornamentação
do engenho – instrumenalegórica a uma
to pod eroso rua tão estreitamente
na coreografia teatral. Queligada à cancela
os fingimentos
nublassem os possíveis esboços de d eclínio canavieiro.
O estilo de vestir da portuguesa explorou excessivamente requintes de
complementos: rendas, babados, bicos. E na cabeça, o chapéu trabalhado com
plumas, bem ao modo d a Belle Époque – no p róximo capítulo, discorrerei sobre o
tema com mais detalhes. Para o retrato de família, uma aparência ideal: todos
bem postos, roup as adequadas, chap éus d e aba larga, saias armad as, espartilhos
adelgaçando o corpo, ternos escuros, coletes abotoados, sapatos finos, bengalas

no gritoA da moda...
mulher ibérica não se acanhava das suas formas arredondadas,
protuberâncias visíveis, um pendor para o Barroco, não somente no excesso
de adornos como também na anatomia de um corpo ancho de curvas e volu-
mes. Interessante observar que, quand o sinh azinh as, apresentavam -se pálidas,
comendo caldinh os de pintainhos, quase anêmicas, a deixar restos de alimen to
no prato para não parecer famintas ou gulosas. Trancafiadas em camarinhas,
recatadas e longe do sol, das luzes, dos holofotes que porventura a espiassem
em pormenores. Sempre debaixo das sombras, amarfanhadas na insipidez de
uma juventude condenada à perfeição. Santas. Seráficas. Virgens de vida. Um
tipo de beleza doentio, com ares de anjo, corpos franzinos a sugerirem levita-
ções. Após o casamen to – com a garantia de maridos para fecundá-las e sustentá-
las –, as mu lheres engordavam, adquiriam pap adas, assumiam jeito de matron as.
Ancas largas, acentuadamente largas. Bom lembrar que Portugal, em decorrência
da arabização, idealizou a mulher de sangue mourisco através do mito da “moura
encantada”. Uma m oura en cantad a que se avantajava em quad ris amplos e on-
dulantes. E não foi difícil obtê-los debaixo do manto da preguiça e da lerdeza.
Não é insignificante o vocábulo cadeiras ser sinônimo de ancas em portu-
guês. O brasileiro ainda nos dias atuais dá muita importância à região glútea. O
termo cadeiras caiu inclusive no uso popular com múltiplas recorrências a esse
aspecto sensual. Basta reavivar a expressão mulher descadeirada olhada como
deficiente de corpo, ou mulher de quartos caídos. Recorde-se que D. Ana Rosa
Falcão, a célebre mad rinh a de Joaquim N abuco, por ele tão m aternalmen te ama-
da, era uma mulher bastante corpulenta.
O homem patriarcal igualmente cobriu-se de modos especiais: o do cha-
ruto e o do rapé, por exemplo. O charuto o embevecia, após o almoço ou jantar,
com licor para acomp anh ar as tragadas ou mesmo para molhar o fum o no líqui-
do aromático. E o rapé? Este foi um modo p redom inan temente masculino. Ra-
pés guardados por homens em requintadas bocetas – sinônimo de caixa em

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Fátima Qu intas

Portugal; denominativo que no Brasil tornou-se posteriormente obsceno. Rapé


fabricado na Bahia, famosa pelo seu fumo, ou vindo diretamente de Lisboa.
Algum as mu lheres patriarcais, até mesmo baronesas, usaram charu tos na emu-
lação comembarões
metidos empertigados.
botinas liturgicamenBarões comQu
te pretas. chapéus,
anto ao cartolas soleníssimas,
rapé, não. pés
A este, só ho-
mens aderiram. Talvez por não se conformarem apenas com o gozo sexual, care-
cend o de sensações de orgasmos outros – o espirro.
A letargia estendeu -se ao homem; não o poup ou. Nem pod eria deixar de
ser assim. Ainda que, vez por outra, saísse a cavalo nas suas incursões pelos
canaviais, o seu corpo n ão se modelou em espátula de H ércules. Quan do adu l-
tos, casados, com filhos, homens barrigudos, pouco musculosos, longe, bem
longe de belezas de macho. E na m oda, o m asculino também refletiu a desastra-

da
gouinação. Freyre demonstrou,
a ser “feminino”, taman ha com originalidade
a manifestação ímpar, que
de apuros esse homem
de vaidad che-
e. Cuidava-
se em d emasia ou descansava em d emasia: mãos delicadas, pés aman had os com
assiduidade, cabelos com brilhantina, bigodes lustrosos, barbas talhad as, enfim,
tratos exagerados que lhe conferiam um perfil mais feminino que masculino. A
lassidão em que vivia não lhe possibilitava uma musculatura desenvolvida. A
lerdeza, a languidez, a inércia triangulizavam um a bandeira favorável à anato-
mia debilitada. Quan do jovens, corpos franzinos, que se moldavam à imagem
de mulher. A pele macia misturava-se a características de sexo frágil. As diferen-
ças entre homem e mulher, no período patriarcal, subscreveram hiatos mais
sociológicos que biológicos. O reforço às desigualdades culturais serviu para
cristalizar as idealizações de fragilidad e e de virilidade. Mas a essência anatôm ica
do hom em mostrou-se debilitada, em conseqüência de sua inap etência às ativi-
dades físicas. As regalias sociológicas responsabilizaram-se, outrossim, em
masculinizá-lo através de um machismo autoritário e implacável. O certo é que
a “feminilidade adquirida”, nos idos da bagaceira – salvo nas sinhazinhas –,
pou co foi detectada. O mu nd o sociocultural hau riu excelentes aromas de arro-
gância nesse homem, homem até debaixo d’água.

(...) O homem, no Brasil rural patriarcal, foi a mulher a cavalo. Quase o mes-
mo ser franzino que a mulher, debilitado quase tanto quanto ela pela inércia e
 pela vida lânguida, porém em situação privilegiada de dominar e de mandar alto
(FREYRE, Gilberto. Sobrados e mucambos, 1981, p. 101).

Do que se observa que o tálamo sociológico, com os seus melindres de


santuário intocado, alvitra construções simbólicas a bel-prazer, com uma inde-
pendência quase patógena. Manda e d esmanda na engrenagem n ormativa. Foi
assim no passado e ainda o é no presente. E há de ser nos futuros próximos e
longínquos. Vestidos a caráter, é verdade, porém entregues aos cafunés das

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A Moda como Representação Social

mu camas em red es que os acolhiam em aconchegos quase uterinos. Outro modo


de homem: o cafuné. E coligado à concupiscência de um afago não de todo
desinteressado. Afago com cheiro de lascívia.

calçasAs mucas,
bran dande
çasinfluên
na indcia
uminglesa.
entária Depois,
masculina começaram
o terno p erd e op or baixo:
colete empelas
bora
não altere a sua terminologia triádica. As casacas – que se derreavam até os
 joelhos – diminuíram e foram obtendo contornos mais leves. De um modo
geral, as alterações no trajo masculino são men os ousad as do qu e as do femi-
nino. Este ponto merece questionamentos. Pelo menos deixo uma indaga-
ção: Por quê?
Pode parecer estranho, mas uma moda feminina muito corrente nos
séculos XVIII e XIX era a do ban ho d e rio. O exotismo não estava n os banhos

de rio, mas nPois


Capibaribe. a manessas
eira como
jovensasdeliciavam-se
sinh azinhas seinteiramente
lançavam n as águas
nuas comdoces do
banhos
astuciosos e aguardados. Em começos do século XX o hábito ainda reinava:
Manuel Bandeira a ele se referiu quando poetizou a bela recordação da
sinh azinh a nu a – “um dia eu vi uma m oça nu inh a no ban ho/ fiquei parado
o coração batendo/ Ela se riu/ Foi o meu primeiro alumbramento”. E
Tolennare, cronista francês, também se contaminou com a surpresa bem-
vind a, um a sinh azinh a nu inh a em ban ho n o rio, no arrabalde d a Madalena.
De olhos arregalados, alegrou-se com a espontaneidade! Um novo
alumbramento.
Quando os banhos de mar passaram a substituir os de rio – inicialmente
como prescrição médica, indicativo à cura de certas doenças –, os primeiros
trajos seguiram a linh a vitoriana: nem decotes, nem pern as à mostra, dado que
os calções das mulheres iam até os tornozelos. Roupas incômodas que não per-
mitiam a liberdade do corpo em águas tão maravilhosas. As mulheres se satisfa-
ziam com um lazer pela metade. O rio aind a evocava a saud ade de um a entrega
total aos gozos de u ma distração recheada de tagarelices e conversas moles. Ah,
os rios! Famosos pelo seu chamamento à sensualidade.
Cabelos longos, mãos bem tratadas, pés cuidadosamente calçados, esses
os traços diferenciadores de classe. Emblema de respeito. Escudo de prestígio.
Marca de nobreza. Mãos, pés e cabeça, um trinômio bem significativo na confi-
guração das extremidades. Mãos delicadas, mãos que não trabalhavam. Pés de-
licados, pés que se escondiam do massapê, calçados com sapatos, por vezes
pouco confortáveis, para formatarem a delicadeza artificial do ethos da época –
pés pequenos, mimosos, pueris.
Cabelos compridos requerem cuidados especiais, um demonstrativo de
ócio a ensejar penteados laboriosos, subseqüentemente, de horas vagas, para
não dizer: de longas, longuíssimas horas vagas. O cabelo, tanto na mulher como no
homem, referendava um privilégio somente digno das camadas aristocráticas.

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Fátima Qu intas

(...) A ostentação de cabeleira e de pé bem tratado e bem calçado foi, no Brasil


 patriarcal, ostentação mais de raça branca ou de classe alta – ou pelo menos de
classe livre – do que de belo sexo. Mas não desprezemos o fato de que foi também
ostentação de sexo
agradar o outro: belo, ornamental,
o forte. como que nascido
Física e economicamente principalmente
forte (FREYRE, para
Gilberto.
Sobrados e mucambos, 1981, p. 100).

Exercera tamanha significação a arte do cabelo, dos pés tratados e de mãos


delicadas que suas exibições tornaram-se proibitivas à mulher negra, sempre de
cabelo curto ou pano na cabeça, pés e mãos desgastados pelo eito ou p ela lide da
casa. O cabelo, ao natural, guardava um toque de liberdade, uma variável
conotativa para a interpretação sociológica. O penteado teve uma representa-

ção hierárquica
Formas tão fortealfaiadas
elaboradíssimas, que seuscom
estilos extravagantes
pentes, atingiramgrandes
coques volumosos, o esquisito.
tran-
ças. Facho d iferenciador, a beirar o caricatural. Os próprios nomes indicavam o
viés pejorativo: tapa-missa, trepa-muleque... A cabeça sinalizou um ponto de
distinção. Cobri-la traduzia-se em perda de autonomia: um manto humilhante
com estereótipos de inferioridade e posições excludentes. Assim, mãos delga-
das, pele fina, compleição suave, estilo de cabelo denunciavam o repouso, a
desídia, a folga, só permitidos à senhora de engenh o.
A moda ajudava a exaltar conceitos impregnados no imaginário coletivo.
O homem de barba, o homem sem barba, a mulher de cabelo comprido, a de
cabelo curto arrematavam os ideais do grupo dominante. A barba tanto signifi-
cou na pirâmide patriarcal, que um galã de teatro – já no final do Segundo
Reinado – foi estrondosamente vaiado quando apareceu no palco sem barba
nem bigode. A força de quem determina os padrões normativos infere
conceptualizações de gênero e de classe, definidas em polimentos selecionados
como referenciais de legitimidade. O indivíduo, homem ou mulher, precisa
chancelar a sua identidade e a sua cidadania para enaltecê-las segundo a lógica
da sociedad e na qual se insere.
A mulher portuguesa obedeceu a caprichos que provieram não somente
do gosto masculino como do concerto patriarcal, um e outro a destilarem for-
mas de indumentária. Vestir adequadamente, para diferenciar status e aumen-
tar as distâncias sociais. No fim do século XIX, o francês Max Leclerc, em suas
 Lettres du Brésil (1890) registrava a p ouca presença das senh oras nas ruas, isto já
durante a República brasileira. Mulheres em casa, a serviço de seus maridos.
A aparência fortalece as desigualdades e robustece o fosso entre ricos e
pobres. Seguindo os princípios da ostentação, a mulher branca fazia uso de
recursos estéticos com o objetivo de dividir classes e reforçar a sanfona da
hegemonia. Sentia-se gratificada sob a capa do desejo dos que a olhavam.
Porventura seus maridos?

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A Moda como Representação Social

A indumentária acompanhou a escala social. Muitas jóias, muitos enfei-


tes, muita arrogância. A figuração agigantou o poder da cana. E não houve
poder mais histriônico que o do m assapê. Com roupas extravagan tes, adorn os
não menosgrotescos,
burlescos, extravagantes, cabelos
até ridículos compridos,
–, mãos penteados
bem tratadas, exageradosem–
pés recolhidos
formatos civilizatórias, a portu guesa creden ciou-se, à base de pura superfici-
alidade, em senhora faustosamente paramentada.

MODA DE MULHER NEGRA

Os idos patriarcais editaram figurinos ao comp asso dos padrões de conduta de


classe. Há uma sinergia entre a vida e o poder, a orquestrar as partituras em

realce. A beleza da nítidas


com diferenciações indumentária da mulher
de direitos esteve
e deveres paracircunscrita à casa-grande,
cada “fratria” – os princí-
pios da arte a serviço da elite. A normatização do social privilegiou uma minoria
que se animou sob a égide das excelsas referências. Os insulados, na base da
pirâmide, que tratassem de respeitá-las porque sociologicamente inferiores.
O açúcar deu forma à casa-grande ou a casa-grande prescreveu as
regras do torneio doméstico? Um confronto que nem sempre interagiu so-
bre pressup ostos lógicos e subseqüen tes. Inclino-me a acreditar qu e o açúcar
tiranizou a casa-grande, levando a reboque o escravismo que se fecundou
em terras submersas na cana e exploradas pela ascendência que qualquer
monopólio impinge. O social possui os seus cosméticos; esses são inevitáveis
na fixação de pólos que se atraem e se repelem ao mesmo tempo. Existem o
pólo ditador e o pólo receptor. Ambos se laçam com vistas a recrudescer as
diferenças. No patriarcalismo, essas diferenças foram berrantes e espelharam
funções opositivas. Se houve classes sociais, houve necessariamente pólos
eqüidistantes. Ratificá-los e endurecê-los fazia parte da política discriminatória.
Nada melhor que o vestuário para oferecer visibilidade aos contrários e para
exacerbar o que deve ser acentuado: as aparências. E o que mais se desejava
senão o fortalecimento das elites e o enfraquecimento dos segmentos subordi-
nad os? A mod a serviu, e mu ito, para m over os tombadilhos do pod er.
O vestir  marca a posição social de cada um – pode sinalizar um ato de
despojamento ou um ato de grave ostentação. Indica, sem eufemismo, uma
pirâmide em cascata. Com diáfana clareza. Veste-se aquilo que agrad a os olhos,
com apoio, evidentemente, no aceite dos outros, e respeita-se uma expectativa
da qual não se deve fugir. O trajo tem uma força significativa incomum. Até
mesmo as cores determinam os estamentos sociais. Cores neutras, pouco defini-
das n ão agradam às mu lheres d e baixa-rend a. Entre as destituídas de mais-valia
econômica, observa-se um privilegiar das tonalidades firmes e exuberantes, de
modo a consensualizar , um gosto marcado, avesso a estranhas especulações intelec-

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Fátima Qu intas

tuais. Vale sugerir um aprofundamento nessa análise, apoiada na simbologia das


cores e na sua ad equação à ped agogia do oprimido. Merece um estudo à parte.
No período dos bangüês, as diferenças agudizaram-se e marcaram, com manifestas
exibições, classe e etnia. Ainda hoje apontam modelos sociológicos bem delineados,
mas sem a rigidez de outrora; ao contrário: com consistentes entrosamentos. No passado,
o fosso existiu e deu-se com claríssimas atitudes hierárquicas. Sob o prisma da fidalguia,
imperou a influência das modas francesa e inglesa, que desfilavam largamente na Europa.
Absorveu a portuguesa os estilos importados que a honravam no “último grito” da
elegância. Os insumos exteriores da beleza arquearam o referencial da civilização vitoriosa.

Em O Carapuceiro (Recife, 1843), dizia o Padre Lopes Gama que (...) “As
nossas sinhasinhas e yayás já não querem ser tratadas senão por  demoiselles,
mademoiselles e madames. Nos trajes, nos usos, nas modas, nas manei-
ras, só se approva o que é francez; de sorte que não temos uma usança, uma
 prática, uma coisa por onde se possa dizer: isto é próprio do Brasil” (FREYRE,
Gilberto. Sobrados e mucambos, 1981, p. 102).

Apesar da observação do p adre Lopes Gam a, válida p ara o século XIX,


com as devidas ressalvas, como ele próprio as expressou, a portuguesa exa-
gerou na aparência – séculos XVI, XVII, XVIII, XIX e começo de XX, quando
as viagens à Europa eram pouco freqüentes ou quase impossíveis –, enfei-
tand o-se dem ais, como já se alud iu no capítulo anterior. E na ânsia de p ro-
du zir ad ornos p ara se distingu ir aristocraticamente, quase sem perceber os
limites do ridículo, provocou o desenvolvimen to da arte d a renda e d o bico,
objetivando valorizar a exuberância dos vestidos. Ainda: da arte da pluma
para encantar os chapéus, o que veio a originar o aparecimento das unida-
des produtivas domésticas do país. Por conseguinte, tal arte se processou,
até o século XIX, dentro de casa, e teve grande repercussão na linguagem
estética da m oda em virtud e da su a delicadeza d e detalhes.
O fato é que a compulsividade da lusitana em fazer-se bela contribuiu
para a fabricação das mimosas rendas nordestinas, plenamente cobiçadas
pelos estrangeiros, que se alumbravam com o feitiço e a artesanalidade do
produ to. Tanto assim que, em temp os atuais, com o avan ço d a ind ustrializa-
ção e o acesso a tecnologias de p onta, tais trabalhos equ ivalem a excêntricos
preciosismos, conseqüên cia d a d isponibilidad e d e u ma mão-de-obra barata,
hereditariamente especializada. Com paciência evangélica, a execução de
peças delicadíssimas chama a atenção pela sua natureza exclusivista. A arte
da ren da e d o bico é artesanal, escapan do aos cham amen tos da maqu inaria
avançada de produção em série. Impossível fabricar os desenhos de uma
dúctil renascença sem o apuro de mãos francamente esmeradas.

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A Moda como Representação Social

 A mulher patriarcal no Brasil – principalmente a do sobrado –, embora andasse


dentro de casa de cabeção e chinelo sem meia, esmerava-se nos vestidos de apa-
recer aos homens na igreja e nas festas, destacando-se então, tanto do outro sexo
como
enfeite,das
de mulheres de outra
ornamentação, classe e de
de babado, derenda,
outra de
raça, pelo de
pluma, excesso
fita, deououro
exagero
fino, de
de
 jóias, de anel nos dedos, de bichas nas orelhas (FREYRE, Gilberto. Sobrados e
mucambos, 1981, p. 98-99).

Sem os requintes de paramentos da portuguesa – bicos, rendas, penas,


plumas –, as escravas vestiam-se de acordo com sua posição social. Como se não
bastassem as etiquetas de um jugo arbitrário, sucediam-lhes outras, essas de
origem estilística. À parte, visualizadas em estéticas distintas, aceitavam o impé-

rio absoluto
gosto das ou
africano, arianas
seja, ealheios
cobriam-se com pan
às normas da os, quaseocidental.
beleza semp re estampados ao
A competição
entre portuguesas e negras deveria ser evitada a qualquer custo. Na qualidade
de subalternas, o ostracismo impunha-se-lhes como uma luva, um imperativo
exterior qu e gotejava do regime escravista. Não foi à-toa a discriminação. A rou-
pa sempre serviu de instrumento de validade de poder e de estigma de exclu-
são. Plugadas pelos lustros da ordem vigente, as mulheres lusitanas respalda-
vam-se mais uma vez em critérios distintivos.
Sob o crivo da escravidão, a negra não escapou das modulações
inferiorizantes d o trajar. Paramentava-se com roupas “desden hosas”, isto é, com
roupas indicadoras da situação de subalternidade. Usava turbantes ou lenços
na cabeça, porque tais adereços referendavam estereótipos estigmatizantes.
Cobrindo a cabeça, ela cobria a liberdade e respondia à expectativa social: a de
enquadrá-la na real postura de sujeição. Ao menor lampejo de desobediência, a
norma editada falava mais alto. O ocultar a cabeça tinha um significado impor-
tante, por predispor o rótulo representativo de pessoas sem prestígio. Cabelos
comp ridos e bem hidratados para as portu guesas. Reservavam-se o direito, como
senhoras de patriarca, de alardear belos pen teados, contanto que prevalecesse o
destaque da fidalguia – os cabelos eram repuxados para trás em exagerados
coques e conferiam ao rosto um a moldura nem sempre em belezadora, mas su-
postamente requintada. Todos os esforços valiam a pena na tentativa de fortale-
cer o culto à estereotipia feminina e à divisão de classes sociais.
Um preceito a mais sobrelevava a liturgia da submissão africana: escon-
der os cabelos debaixo de lenços ou turbantes... Requisito que acusava o status
inferior de cada uma. As mu latas, na saudável ambição de ascend erem e de se
confundirem com os figurinos da branca, reagiram a este sinal de expurgo soci-
al. E já se sentiam libertas, quando se independentizavam da cabeça coberta:
uma mancha agregadora de sintomas de humilhação. Ainda hoje, do cobrir a
cabeça latejam interpretações do passado. Na zona rural do Nordeste brasileiro,

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Fátima Qu intas

é muito comu m o hábito de usar lenços nos cabelos, a evocar chapéus proteto-
res, expressão de pudor e de recato, principalmente entre camponesas que se
retraem à medíocre situação de marginalidade. Ademais, há o estereótipo nega-
tivo do chamado
preconceitos. ruim,seque
cabelonão
O p ixaim agregou du
enquadrava narante
escalamuito tempo
do belo um enxame
e deveria de
ser escon-
dido ou alisado para alçar os parâmetros estéticos perseguidos pela sociedade
aristocrática ou burguesa. Quem tivesse o seu cabelo “brigado com Deus” –
expressão típica de desdém –, que tratasse de reabilitá-lo; do contrário, estaria
expondo-se ao ridículo ou, pelo menos, infringindo os moldes já legitimados.
Hodiernamente, os conceitos foram-se modificando com a explosão da
ideologia negra. As nominações pejorativas persistem, ainda que mitigadas pe-
las correntes defensoras do naturalismo e da beleza espontânea. Registra-se na

culturaParece
brasileira
que um enaltecimento
no cabelo ou, pelodos valores
menos, africanos,
na cabeça, etnicamente
leia-se negróides.
no alto, sedimenta-
se a graduação do poder. Basta recordar as Monarquias com os seus símbolos
bem patentes: coroa, cetro, bastão. Mas coroa em primeiro lugar. Os toques
elitizantes começam pela cabeça, como prêmio ou galardão d e recompensa. Gló-
ria, honra, distinção; cimo, cume, topo. A exuberância de uma bela cabeleira, ou
o excesso de demonstração de vestuário indicava categorias nítidas de classe.
Exibicionismo ou retraimento.
A própria Igreja Católica recomendou, durante muito tempo, o uso do
véu para expressar humildade no louvor a Deus. De cabeça coberta, as fiéis
solidarizavam-se num a atitude de respeito ao divino. Um sinal de pud or, como
se a cabeça coberta explicitasse o reconhecimento público da reverência. O véu
teve até pouco tempo sua representatividade, e ninguém entrava na igreja de
cabeça descoberta. Ninguém, não; diga-se, mulheres; porque dos homens não
se lhes exigia tal costume. Antes, retiravam o chapéu e ainda o retiram ao pene-
trarem em recintos fechados e, sobretudo, sagrados.
Note-se que as freiras escondem o cabelo com mantos exageradamente
largos, padrão opressor, objetivando a ocultação de madeixas porventura pre-
sunçosas e mundanas. Os padres não carecem de tal privação. Tudo leva a crer
que a cond ição de gênero masculina acarreta, na religião católica, algumas rega-
lias. Estão, todavia, a ocorrer reformulações nos fundamentos da Igreja, miran-
do torná-los mais equânimes. Pela sua natu reza hum anitária, a religião tend e a
destruir preconceitos, o que implica no anulamento dos bolsões discriminatórios
de gênero. Na acepção moderna, o véu caiu de uso e a própria comunhão é
ofertada pela mulher, embora a consagração da hóstia ainda lhe seja vetada.
Resistem algumas prerrogativas hierárquicas que beneficiam o homem, como a
celebração da missa e outras cerimônias análogas. À mulher, falta-lhe ocupar
espaços mais destacados na liturgia da religião cristã. Conquistas aconteceram e
merecem registro no contexto histórico, porém a paridad e ainda não se efetivou.

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A Moda como Representação Social

A exibição das “madeixas” particularizava modelos estéticos metaforizados


em púlpitos de exaltação. Revelavam características superlativas que não se des-
locavam para as negras, escravizadas e sujeitas a um a mobilidade social bastante
precária.
de beleza,Ologo,
poder entroniza ratifica
enaltecê-lo, concepções
juízosrefinadas, arroga-se
pré-concebidos. No per se de categorias
momento em que
a sociedade reconhece e acumplicia a formação de castas institucionalizadas,
tudo que vier a fortalecer os lastros de au toridad e será aceito com regozijo. E os
rótulos se firmavam: à mulher branca, cabelos compridos e escovados; à mulher
negra, cabelos curtos, estigmatizados e encobertos.
Havia exceções. Algumas negras conseguiam vestir-se no mais puro
requinte do trajo africano, à custa, todavia, dos aman tes que lhes pagavam as
despesas do luxo. Representavam um a pequ ena m inoria que tirava proveito

de
daduma
e. Emsituação especial,
todo caso, na qual
valiam-se de usabiam barganhar
m instrum ento d e oinferioridad
preço da clandestini-
e – a pecha
de concubinas – para converter os vezos discriminatórios em lucros que
explicitassem os matizes estéticos. Usavam o escudo da ilegitimidade como
uma fração, embora diminuta, de vantagem pessoal. Malgrado a postura
desconfortável, usufruíram de alguns ganhos que, no frigir dos ovos, apenas
arrematavam a empáfia do senhor patriarca. O importante é que não aderiram
à moda européia. Arrancavam de dentro do peito os atavismos sufocados e
transmitiam os enlevos da terra dos seus ascendentes – a arte africana. Este
aspecto tradu z a força da cultura d e origem.

(...) Amantes de ricos negociantes portugueses e por eles vestidas de seda e


cetim. Cobertas de quimbembeques. De jóias e cordões de ouro. Figas da Guiné 
contra o mau-olhado. Objetos de culto fálico. Fieiras de miçangas. Colares de
búzio. Argolões de ouro atravessados nas orelhas (FREYRE, Gilberto. Casa-
grande & senzala, 1966, p. 337-338).

Essas negras-rainhas souberam desfilar garbosamente o ar de fidalguia


que apregoavam. O requinte no trajar chamava a atenção e apontava para o
grau de versatilidade de que tanto se mun iram. Distingu iram-se pela liberdade
conquistada – a preços altos, naturalmente. A graça do talhe e o ritmo do andar
compendiavam a elegância de quem não perde o porte de majestade.
Mãos e pés, cuidad osamente tratados, insinuavam inatividade: recusa a
trabalhos manuais pesados, negação de esforços físicos, demonstração de nada
fazer e de nada produzir – pré-requisitos de segmentos privilegiados. Por fim,
revelação de superioridade de classe. Quem mais poderia cultivar o repouso
senão a mulher branca e o patriarca? Para esses, o tempo resumia-se em mais
um instrumento de brincadeira. Foram exímios na arte de driblá-lo, sobretudo o
hom em qu e se dava ao luxo de d ormitar em imensas horas de “folga”.

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Fátima Qu intas

Impossível para as negras ou para as mucamas e, menos ainda, para as


trabalhad oras agrícolas, conservarem a higiene perfeita dos pés e das mãos, elas
que eram verdad eiras burras-de-carga, quer na casa-grand e, a cuidar dos afaze-
res domésticos, quer
contabilizavam no eito,
as mais a lavrar,
valiosas a plantar,de
ferramentas a extrair a colheita...
trabalho. Como tal, Pésnão
e mãos
lhes
restavam sobras de tempo para dedicação a esses cuidados. Pele grossa, calos
nas mãos, pés mal tratados calcinavam a labuta diária, labuta que sequer possi-
bilitava momentos de asseio pessoal.
Assim, a negra não pôd e cultuar o corpo: não fez uso de cosméticos repa-
radores, tampouco acudiu às “cicatrizes” temporais. Espelhou-se diafanamente,
em estado puro, longe da sofisticada pintura dos reparadores estéticos. Sem
consagrar-se aos princípios da “encenação pessoal”, envelheceu a céu aberto,

desconh ecend
ganadores. Há odeosseretoques
admitir de
quebeleza, tão aplaudidos
os recursos da estéticaeagem
tão generosamen te en-
com uma eficácia
indiscutível. Cabelos em mise-en-plis , vestidos de bom corte, mãos e pés tratados
dão à aparência lances mágicos, quase de ilusionismo. Hoje em d ia, costuma-se
dizer que n ão há mu lheres feias; há, sim, mulheres mal prod uzidas. Um postu-
lado qu e não ind uz a contestações.
Do espartilho aos estranhos penteados, a artificialidade da aparência se
fez tônica de representação de elite. Os adereços denunciaram claros separatis-
mos. O costume de roupas inadequadas – à maneira européia – determinou
mais uma distorção do ethos patriarcal. E o que se referiu à moda de cabelo
seguiu parâmetros semelhantes.
As negras e os negros forros fizeram uso de belas cabeleiras, talvez para
desafiar o preconceito de cabeças cobertas em africanas submetidas ao regime
da escravidão. O esmero nos penteados revela a altivez de uma liberdade que
não se queria contestada. E os sinais exteriores começavam pela cabeça; todo o
esforço de exibi-la ao ar da faceirice seria pouco na neutralização de rejeitáveis
estrabismos.

Quanto aos cabelos, repita-se que os negros forros, os caboclos e os mulatos


livres se esmeravam quase tanto quanto os brancos em trazê-los bem penteados
e luzindo de óleo de coco, os homens caprichando quase tanto no penteado quan-
to as mulheres (FREYRE, Gilberto. Sobrados e mucambos, 1981, p. 101).

Negros de brilhantina, com cabelos assentados à semelhança do senhor


de engenho; imp ortando o jeito emp ertigado d e fazer jus à sua alforria. Adota-
ram posturas de reis. E foram reis, com certeza, nas suas Nações africanas.
As criadas de dentro da casa-grande recebiam um trato particularizado,
quer pela questão do asseio pessoal – afinal iam cuidar dos meninos e meninas
portuguesas –, quer pela natureza da família patriarcal sociologicamente exten-

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A Moda como Representação Social

sa, orgulhosa de seus agregados, não obstante ocuparem posições de parentes


pobres, tal qual as mirradas ramificações de uma árvore crescida em tronco
sólido e germinador. Uma ressalva: as amas-de-leite, como a famosa Mônica,
retratada duas vezes
ção de escrava. em desconfortável
No seu épocas diferentes, indicam
vestido as “sinuosidades”
de tafetá não esconde adatimidez
condi-
do olhar, tampouco a tensão das mãos nas duas fotografias. A primeira, ainda
 jovem, com uma criança a derrear a cabeça sobre o seu ombro em uma atitu-
de de afeto bastante tangível; a segunda, com uma adolescente em igual ati-
tude de carinho, uma Mônica envelhecida, cabelos brancos, corpo decaído,
magra, a acusar o declínio físico. As duas fotografias, comparadas, denotam
a posição social por ela ocupada – o mesmo vestido de tafetá em datas dife-
rentes e distanciadas cronologicamente, com o acréscimo apenas de u m xale,

possivelmente para aquecer


leite, representadas seu corpo
p or Mônica, já debilitado.
parecem Essas
ter possuído negras,
a sua roup aamas-de-
d e gala,
única p or toda a vida: para os dias de festa e para a pose da fotografia. O retrato
da velha ama-de-leite constitui uma peça histórica da máxima valia, porque a
imagem pode camuflar uma mirada desprevenida, jamais um olhar atento,
perscrutador. A lup a não engana.
Às negras proibia-se também o uso de jóias e de tetéias com finalidades
análogas, de m arcarem distâncias sociais. Mais uma fronteira a assinalar afasta-
mentos e exclusões. Enquanto as brancas se atopetavam de ouros e finas bijute-
rias, a ponto de sugerirem apelidos pejorativos de macacas – tal a injunção de
braceletes, cordões, fitas, pratas –, às negras lhes eram interditados aparatos que
porventura pudessem ferir a faísca da sua oponente. À beleza associavam-se o
pod er e o m and o, devendo-se evitar possíveis man ifestações de equanimidade.
De modo geral, obedecendo ao rigor das angulações de classe, a moda da
mulher negra era simples, porém colorida e alegre, a refletir o temperamento
extrovertido da raça. Normalmente, usava “Panos da Costa” com listras verme-
lhas, vestidos de matames, babados brancos e lenço na cabeça. Quantas vezes
ela teve que despir as vestes de malês para enfrentar a europeização da
indumentária! Uma desafricanização que não conseguiu anular a sua
performance. Conservaram-se muitos dos seus traços: a abundância de baba-
dos, a riqueza coreográfica, a escala cromática, o jogo de tons, alguns berrantes,
as estampas florais, a cenografia lúdica das saias.
A mod a narra a sociedad e no espaço e no temp o. Um potente instrumen -
to de an álise socioantropológica. Os daguerreótipos e retratos do p assado expla-
nam as oscilações no paramentar-se mediante minúcias enriquecedoras do cai-
xilho temporal: tetéias, xales, diadem as, sapatos, chapéus, babados, rendas, ves-
tidos longos, turbantes, babados, saias coloridas... Pela roupa identifica-se o ho-
mem no seu traçado sociológico. Um e outro estão relacionados com o mito da
beleza introjetado na vida ocidental.

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Fátima Qu intas

Na moldura da bagaceira, a mulher simbolizou o objeto de procriação,


bibelô de carne, ser abafado pelo “totem” do macho. Mas se queria uma mulher
no rigor da moda. Sinhazinha pálida, lhana, com o heroísmo das santas e a
fragilidade de corpos
futuro previsto – esposainfantis.
e mãe,Perfeitas,
que Deusvirtuosas.
a livrasseA de
aguardar pela saga Sinhá-
ficar solteirona. de um
dona barroca, plena de curvas, seios volumosos, um conjunto de ostentações
que propu gnavam param entos de beleza. O objeto desejado deveria atender às
solicitações de quem o deseja. Se não atendesse satisfatoriamente, merecia ser
escanteado e trocado p or outro em melhores cond ições. Qu antas e quan tas ve-
zes a mulher branca foi relegada diante do fascínio da negra? A escolha partia
sempre do homem, que a ambas manipulava com o peito inflado de gozo.
A roupa, o jeito de trajar, o porte, uma época. Estilos de cabelo, penteados,

cortes,
rodad as,vestidos bem talhados
cores berrantes ou neuou
trasnão, roupas
somam desleixadas
-se ao ou elegantes,
clipe instantâneo saias
d a fotogra-
fia. E revelam a síntese do modo de estar  de uma gente. Modos e modas, de
homens e de mulheres. No caso, de mulheres negras. Moda ou antimoda?
A proibição de jóias, a cabeça coberta, as mãos e os pés mal tratados, s
vestidos descuidad os resum iam o tom da submissão da ind um entária feminina
negra. A roup a externou os labirintos de uma sociedad e acimen tada em tirâni-
cas “castas”. Para a africana patenteou um estigma a mais na escala da dominação.

A MODA NO BRASIL
Os ciclos de vida da mod a brasileira têm acompanhado as variações dos centros
internacionais, com bastante veemência no eixo francês, como aludido nos itens
precedentes. O Brasil recebeu influência direta francesa por adotar uma filoso-
fia pedagógica europeizante, voltada com vigor para os valores intelectuais fran-
ceses. E na moda não foi diferente. Se Paris representava o cânone da elegância
da mulher ocidental, não é de admirar o culto às suas Casas de Alta-Costura. O
contrário é que seria de estranhar. Durante os séculos XIX e meados do XX as
repercussões
Apesar da
do moda
clima francesa
tropical, são insofismáveis.
as temperaturas quentes não foram suficientes,
nos “mastros” colonial, imperial e republicano – pelo menos até 1960 –, para
gerar um tipo en dógeno de vestuário. A abertura dos portos às Nações européi-
as, em 1808, quan do da chegad a de D. João VI à Terra do pau-brasil, vem forta-
lecer ligações européias, antes menos impregnantes em razão dos ecos mais
direcionados à tradição portuguesa, ou melhor, à Península Ibérica. Assim, o
período colonial se ateve aos modelos lusitanos que não deixavam de ser igual-
men te europeu s, porém primord ialmen te ibéricos. Com o Império, as ingerên-

cias se ampliaram e, no caso da moda, adquiriram a verve parisiense. Ademais,

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A Moda como Representação Social

o Brasil aderiu à d outrina comtista – Augusto Comte (1798–1857), pensador fran-


cês e sistematizador do positivismo –, a ponto de formular uma República em
figurinos positivistas, bem endossados pela legenda da bandeira nacional: Or-
dem e A mulher. seguiu à risca o que a França a orientou no tocante à moda. O
Progresso
hom em p autou a sua indum entária sob o signo d a Inglaterra, capital do refina-
mento masculino. Perfumes, cosméticos, penteados, adereços tiveram o lacre
de Paris ou Lond res e também da Itália em temp os mais recentes. Anú ncios de
 jornais transcritos por Gilberto Freyre revelam o afrancesamento e o anglicismo
na moda dos brasileiros:

13 de abril de 1861: “enfeites de cabeça para senhoras de bom gosto”, tanto pretos

como de Alindas
 francês. 25 docores.
mesmoEram última
abril, moda
a loja de Paris.
recifense de Haviam chegado
Burle Júnior por vapor 
anunciava ter 
recebido pelo “último vapor de Havre... borzeguins de Meliés todos de bezer-
ro e de cordovão”. Novidade francesa. [...] O escuro em paletós e casacas
  para homens caracterizaria também casimiras inglesas, admitindo-se, po-
rém, calças de cores, sem que se voltasse, neste particular, a casacas de cores
dos dias coloniais (FREYRE, Gilberto. Modos de homem & modas de mulher,
2002, p. 121-122).

O século XX, o século das mudanças no vestuário, a começar pela libertação


dos espartilhos, das anquinhas e de outras medidas similares, ainda permite florescer,
e muito, a moda europeizante. Nas suas últimas quatro décadas, contudo, detecta-se
uma forte mutação nas tendências brasileiras, ao se adicionar elementos ecológi-
cos de grande sustentação na indumentária feminina e masculina. Os trópicos se
impõem, o clima quente reivindica uma roupa apropriada, mulheres e homens
são afetados diretamente pela ambiência de um espaço abaixo da linh a do Equa-
dor. Bom frisar que tais transformações germinaram em momentos paralelos ao
movimento hippie, esse com o seu apelo à formação de uma ideologia de
contracultura. Tempos de contestação. Tempos de redefinições. Tempos de in-
subordinação. Respeito às minorias e abaixo os preconceitos. O filme  Hair , de
1968, provocou ruídos relevantes, abalando estruturas consolidadas. Os reflexos che-
garam ao vestuário, que se modificou a bem de uma adequação lugar-clima.
Adstrito a uma submissão eurocêntrica, o Brasil ao final do século XX
superou o passado opressor para incorporar uma firme identidad e, o que vem a
desconstruir os paradigmas emblemáticos até então cortejados. Com isso, as
nu ances africanas se mostram em evidência, espargindo uma leitura afro-negra
bem acentuad a. O conotativo da moda contemp orânea brasileira advém de u ma
mistura de culturas e de classes, com fronteiras tênues ou acentuadas. A africa-
na, ao longo do temp o – a história faz-se com tempo e m uito tempo –, embora

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Fátima Qu intas

subjugada às normas impostas, conseguiu estabelecer um fluxo e um refluxo de


cores e de estilos que vão d esaguar no tipo brasileiríssimo de vestir. Atualmente,
ressalta-se a malha estética com “bilros” de africanidade, a ocupar espaço na
sociedade
com ênfasenacional. A formad
nas etnias moda emorasalta
dorendeu-se à complexidade das diferenças,
ethos brasileiro.

O que hoje se apresenta como um tipo nacionalmente brasileiro de sociedade


e de cultura tanto resulta do que se pode considerar, nesse conjunto, sua
 predominante feição civilizada avançada como sua sobrevivente primitividade:
um complexo sociocultural antropológico nada insignificante quando assim
misto. Para tal concorreu grandemente o afronegro (FREYRE, Gilberto.
 Modos de homem & modas de mulher, 2002, p. 88).

A combinação de “civilidade” e “primitividade” embeleza a plástica d a


aparên cia à luz d e excelentes cintilações que cativam olhares internacionais.
A mescla ensejou invejáveis derivativos, enfatizando as particularidades de
um Brasil incorporado às origens. O primitivo induz ao simples e ao
despojamento; o civilizado invoca a fidalguia dos salões aristocráticos. De
um e de outro, depreende-se a composição esteticamente aplaudida pelos
mais aficionados figurinistas ocidentais.
Naturalmente, a síntese deu-se com o passar dos séculos, quando a
cultura africana se embrenhou na sociedade brasileira de maneira mais fir-
me. A revolução no vestuário se inicia com uma reelaboração de todo estru-
tural: explodem as cores vívidas, as estampas, os berloques em contas de
plantas e de frutos, extravagantes, ousados... enfim, a miscigenação cultural
se dá entre m odos e mod as de h omens e m ulheres. O trópico rebenta com a
força do sol e da luminosidade, o vestir ganha a prevalência d as temp eratu-
ras qu entes, tecidos leves, finos, decotes exagerados, vestidos d e alça, biquí-
nis do tipo fio den tal... Os estilistas brasileiros alcançam as p assarelas eu ro-
péias com au tenticidade e orgu lho, o grito de ind epen dên cia no trajo espouca
em realismo e em mistura étn ica.
Ainda que o mundo globalizado repouse em uma ideologização com
nítida propensão a padrões massificadores, os traços culturais brasileiros
emergem com p ropósitos deliberados. E a mod a apon ta para u ma d as maio-
res mutações no campo da identidade nacional. Corajosa, intrépida, e por
que n ão dizer?, um tanto p etulante por tardia na sua d emon stração estética.
Não h á como reverter u m processo que se quer vitorioso em tod os os senti-
dos. Os corpos biológicos se adaptam aos corpos sociais e culturais numa
simbiose alegórica e astuciosamente singular. O Brasil define a sua
indumentária em bases multirraciais, em estilos transnacionais e em mistu-
ras saud avelmente tropicais.

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A Moda como Representação Social

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