com
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www.civilizacaodoacucar.com.br
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Revisão
Norma Baracho
Projeto Gráfico
Gisela Abad
Assistente d e diagramação
Waleshka Vieira
Foto da capa
Hu mberto Medeiros
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SUMÁRIO GERAL
A Família Patriarcal
Fátima Qu intas - Personagens e Costumes | 69
Casa-Grand e, Capela e Senzala | 109
José Luiz Mota Menezes
Religiosidade - Fé, Festa & Cotidiano nas Terras do Açúcar | 125
Raul Lody
Açúcar no Tacho | 133
Maria Lectícia Monteiro Cavalcanti
A Memória Judaica no Mundo do Açúcar em Pernambuco | 145
Tânia Kaufman
A Moda como Representação Social | 159
Fátima Qu intas
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NOTA INTRODUTÓRIA
O presente livro
contextualização é resultado
do projeto de uma
turístico Roteiroextensa pesquisa,
Integrado com do
da Civilização foco na
Açúcar
– envolvendo os Estados da Paraíba, de Pernambuco, de Alagoas –, nascida
por solicitação do Sebrae, na tentativa de aprimorar “possíveis” conceitos ao
longo da sua implementação. Fazia-se essencial uma configuração da reali-
dad e p ara adequar os pressupostos teóricos à orientação dos ulteriores pro-
cedimentos. Duas razões demandavam tal iniciativa: a) a compreensão da
abordagem socioantropológica como estrutura de fundamentação do referido
projeto; b) a necessidade de acoplar maiores conhecimentos históricos e
conjunturais dos períodos colonial e pós-colonial, alicerces da nossa socieda-
de patriarcal.
Com este propósito foram realizados quatro grandes seminários sobre
temas relevantes: Cultura, Civilização, Patrimônio, Gastronomia, Religiosi-
dade, Moda e Presença Judaica em Pernambuco. Os textos ora publicados
refletem, portan to, a pesquisa e os d ebates emp reend idos. Houve a p reocu-
pação em atender a questionamentos enriquecedores, com o intuito de ela-
borar uma síntese fided igna das argu men tações proferidas.
Frise-se que o livro-coletivo não tem a preten são de esgotar o assunto.
Pelo contrário: o seu objetivo recai em conceitos que venham a subsidiar as
políticas de turismo direcionadas ao Roteiro Integrado da Civilização do Açúcar.
Na qu alidad e de Documento-base guarda as suas limitações e carece natural-
mente de acréscimos e desdobramentos – início de uma longa trajetória –,
em razão dos postulados da Ciência Social que, pela sua própria natureza,
reivindica flexibilização e, sobretudo, incursões em tempos viventes e não-
viventes. A intersecção da História com a Antropologia – ou vice-versa –
exige densos aprofundamentos, o que vem a sugerir renovadas abordagens
em torno do complexo canavieiro do massapê nordestino.
Fátima Quintas
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A CIVILIZAÇÃO AÇUCAREIRA
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Assim, nessa faixa litorânea, que se esten de da foz do Potenji até a Bahia
de Todos os Santos, desenvolveu-se a chamada Civilização do Açúcar, estu-
dada em p rofun didade pelo mestre Gilberto Freyre, em livros magistrais como
Casa-grande
ecológicas do senzala (4)
& avanço e Sobrados
dessa cultura eseriam
mucambos (5), enquanto
analisadas as implicações
em Nordeste (6).
A Civilização do Açúcar permitiu a formação de uma sociedade aristo-
crática, dominada por grandes e médios proprietários de terra, os sesmeiros,
que viviam em casas grand es, ricas e luxuosas, dispond o de uma imen sa quan-
tidade de serviçais, além de artífices especializados na fabricação do açúcar e d a
aguardente. Os serviçais, inicialmente indígenas nativos da América, foram em
seguida substituídos por escravos negros, trazidos da África. Os escravos for-
mavam d ois gru p os d istin tos, os que trabalhavam na agricultura, sujeitos à
submissão total,
gran de, gozan doedeosalguns
que eram destinados
favores aos Os
e regalias. serviços domésticos,
cronistas na casa-
coloniais que vive-
ram na área e conviveram com escravos e com senhores, dão um testemunho
de grande valor, dos hábitos e costum es da sociedade colonial e das tran sforma-
ções que ela foi sofrendo à proporção que o tempo passava; alguns cronistas
famosos como Antonil, fizeram uma análise profunda da sociedade da época.
Mas, se no século XVI, o açúcar de cana, usado como alimento, se
generalizara na Europa, o mesmo ocorreu no Brasil; por isso, à proporção
que o p ovoamento se expan dia através de áreas menos povoadas, sobretud o
no Sertão, expandia-se também a cultura da cana-de-açúcar, quer cultivada
em pequenas parcelas, quer, às vezes, pelos próprios agricultores livres –
pequ enos proprietários ou rend eiros – com a finalidade de p roduzir os tabletes
de açúcar, chamados em geral de “rap adura,” e a cachaça. Essas unidades de
prod ução eram os engenh os rapad ureiros que p erman eceram p rimitivos até
o século XX, movidos a tração animal, em geral bovinos. Enquanto isso, os
engen hos d o litoral evoluíram do engen ho movido a tração animal, os cha-
mad os engenh os de “bestas”, para os engen hos reais movidos a água, para
os engenhos a vap or, já n o século XIX, e, finalmen te, para as usinas de açúcar
de p equeno, médio e grande portes.
Os en genh os rapad ureiros tornaram-se famosos no Cariri cearense, na
Ibiapaba, no Brejo Paraibano, na serra d e Triunfo em Pernambuco e em áreas
úmidas dos sertões da Bahia, de Minas Gerais e de Goiás.
3. As grandes regiões açucareiras de Pernam buco e Alagoas, assim com o
da Bahia, no en tanto, vêm p erden do espaço e importân cia p ara outras regi-
ões açucareiras, como as situadas no Baixo Paraíba, Rio de Janeiro e, mais
recentemente, em terras situadas em Goiás, Mato Grosso, Mato Grosso do
Sul, Minas Gerais e São Paulo (7).
Nas áreas onde as condições climáticas, as técnicas de cultivo permiti-
rem e o mercado internacional estimular, os canaviais tendem a se estender,
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omarcada
barão depor
Cotegipe
ritos e ecostumes
o escritorimperiais,
Machadoapenas
de Assis. Também
Nilo na República,
Peçanha, ainda
que era mulato,
ascendeu à Presidência, embora muitos negros e mulatos tenham ocupado po-
sições de relevo e desfrutado de riquezas.
No en tanto a cultura brasileira é profun dam ente influen ciada pela cultu-
ra negra, sobretudo nos Estados onde a escravidão foi mais intensa, como na
Bahia, no Maranhão, em Pernambuco, no Rio de Janeiro, em Minas Gerais e em
São Paulo.
A influência do açúcar se fez sentir nos mais variados aspectos: na organi-
zação familiar, na arquitetura, na alimentação, na religião e na cultura.
Assim, em u ma sociedade latifundiária, monocultora e escravagista, como
salientou Gilberto Freyre, o proprietário de terras e de escravos tinha o domínio
absoluto sobre a família, tanto no sentido restrito, aquela formada por esposa e
descendentes, como no sentido amplo, reunindo também agregados e depen-
dentes. Poucas foram as matriarcas que resistiram às determinações dos mari-
dos e, após a morte destes, a dos filhos primogênitos, como D. Ana Paes, duran-
te o domínio holandês, no século XVII, ou D. Emerenciana da Costa Azevedo
do Engenho Barra, no século XIX. Ambas casaram três vezes.
A regra geral era o marido mandar e desmandar no seu clã, “casando e
batizand o”, mantend o a casa cheia de parentes pobres, de filhos, de n etos e de
agregados, vivendo muitas vezes uma vida dissoluta, emprenhando não só a
esposa como também comad res pobres e remediadas e escravas da senzala, so-
bretudo as novas e bonitas. Em geral consideravam-se brancos e nobres, embo-
ra, nos primeiros séculos, muitos tivessem sangue indígena – os descendentes
de Jerônimo de Albuquerque com a índia tabajara, que foi formalmente sua
primeira esposa – ou sangue negro, como um famoso capitão-mor de Bom
Jardim qu e espantou o cronista inglês Henry Koster ao en contrar u m mu lato
investido em um cargo tão importante (8).
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cidad
os de es e que
Artur foram de
Ramos, fortemente divulgadas
Câmara Cascudo e deemValdemar
trabalhosValente
d e Antropologia, como
e nos romances
famosos de Jorge Amado, que nos mead os do século XX foi um dos romancistas
mais lidos do Brasil.
Assim, a Civilização Açucareira tem importância tanto econômica como
social na vida e cultura brasileiras; sobretudo na região nordestina, como têm a
do Ou ro e a do Café no Sud este do Brasil.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
(1) NORMANO, F.J. Evolução econômica do Brasil. São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1939.
(2) ANDRADE, Manoel Correia de. A terra e o homem no nordeste. 7. ed.. São Paulo: Cortez Editora,
2005.
(3) FURTADO, Celso. Formação econômica do Brasil. Rio d e Janeiro: Fun do de Cultura, 1959.
(4) FREYRE, Gilberto. Casa-Grande & Senzala. 5. ed. São Paulo: Global, 2003.
(5) ______. Sobrados e mucambos. 15. ed. São Paulo: Global, 2003.
(6) ______. Nordeste. 7. ed. São Paulo: Global, 2004.
(7) ANDRADE, Manoel Correia de. Modernização e pobreza. São Paulo: Editora Un esp, 1986.
(8) KOSTER, Henry. Viagens ao nordeste do Brasil. São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1942.
(9) GOMES, Geraldo. Engenho e arquitetura. Fundação Gilberto Freyre: Recife, 1997.
(10) CASCUDO, Luís da Câmara. História da alimentação no Brasil. São Paulo: Global, 2003.
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CULTURA, PATRIMÔNIO
E CIVILIZAÇÃO
Fátima Quintas
antropóloga e ensaísta
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SUMÁRIO
Tradição e memória | 43
Região e regionalismo | 45
Bibliografia | 48
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Fátima Qu intas
EM TORNO DE UM POSSÍVEL
CONCEITO DE CULTURA
O termo cultura vem do latim cultura, ae, derivado d o verbo colligere, “lavou-
ra”, “cultivo dos campos”, “colheita”, ação ou maneira de cultivar a terra ou de
explorar produções naturais. Acrescente-se que é sinônimo de agricultura –
cultura agri, do latim ager , agri, camp o. Fun dar cultura era, pois, plantar u ma
determ inad a espécie ou selecionar o terreno para u m cultivo adequ ado. Por
conseguinte, a cultura representava o exercício da inteligência humana
direcionado ao tratamento dos plantios. A acepção primeira esteve ligada à
terra e à natureza, conforme o em prego ainda da semântica usu al: cultura d a
cana, cultura do algodão, cultura do café, etc. Depois, a idéia de colheita
assumiu dimensão mais ampla, agregando o sentido de conhecimentos adqui-
ridos. Mesmo n essa nova contextualização, percebe-se a fidelidade etimológica,
ao denotar u ma outra forma de colheita – a d o espólio social. Logo, a cultura
é a contribuição hu man a ao habitat ; aquilo que o h omem adicionou à natu re-
za. Em outras palavras: o modo de vida de um p ovo, a sua cosmovisão. Por sua
vez, a sociedad e é o agregado organ izado d e ind ivídu os que ad otam o mes-
mo modo de vida. Em resumo: um a sociedad e é comp osta de u m conjun to de
pessoas; o modo como se comportam essas pessoas é a cultura. A expressão,
“quanto mais distante da natureza, mais próximo da cultura”, destaca a in-
terferência do homem nas coisas da natureza, a pon to de distanciar a cultura
do seu núcleo-fonte.
Faço um parêntese: a palavra cultura relacionada à pessoa erudita pro-
vém d o germanismo kultur . Na Alemanha, por volta de 1793, o termo rece-
beu a significação de aperfeiçoamento do espírito humano ou de um povo.
Ironicamen te, justo n a Aleman ha, o marechal nazista Hermann Goering pro -
nunciou a melancólica frase: “quando ouço a palavra cultura pego no revól-
ver ”. A divulgação d o vocábulo foi de início u ma arma p olítica d e aliciamento
intelectual – kultur kampf , luta pela cultura. A rádio oficial de Berlim, duran-
te a Segunda Guerra Mundial, sobretudo entre 1942–45, repetia insistente-
mente o slogan : “Alemanha! Defensora d a Cultura!”. A propaganda p opula-
rizou-se. Ainda assim, a sua decodificação vincula-se à idéia do indivíduo
que congrega um maior número de conhecimentos adquiridos, aquele que ar-
mazenou um inventário intelectual digno de ser realçado. Do que se conclui
que o “imaginário coletivo” incorpora razões nem sempre desconhecidas
pela próp ria razão.
Uma das melhores definições de cultura – até hoje aceita e referenda-
da p elos estud iosos – foi prop osta p or Edward Tylor, em 1871, no século XIX:
“Um conjunto complexo que inclui conhecimento, crença, arte, moral, lei,
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Fátima Qu intas
aagregam-se
esses “blocos culturais” Universais
os chamados que se disseminam
da Culturacom características
. Observam-se duaspeculiares
apreciá-
veis convergências nessa universalidade:
a. a universalidade, enquanto critério presencial, emerge em qualquer
aglomerad o hu man o – cond ição sine qua non de sobrevivência, presença real
e subjetiva;
b. a universalidade, enquanto crivo de manifestações particulares –
universal x particular –, arreban ha os desejos de cada gente. Por exemplo: o
nascer, o falar, o alimentar-se, o morar, o dormir... o morrer são inerentes ao
ser humano, porém, os rituais simbólicos que circundam tais fenômenos
modificam-se de um lugar para outro. E são únicos nas suas expressões de
cultura.
***
Tentarei adaptar os enu nciados dos antrop ólogos Edward Tylor e Clark
Wissler em um quadro sinótico, a fim de obter resultados elucidativos quan-
to à universalidade da cultura, melhor dizendo, quanto aos tópicos culturais
aderentes a qualquer cultura, seja “primitiva” ou “civilizada”. Volto a
exemplificar: os ritos do nascimento sofrem variações de acordo com os
modelos culturais; há muitas línguas faladas entre países de fronteiras contí-
guas, às vezes, até mesmo dialetos dentro de um mesmo país; mora-se em
chalés, em casas com quintais, em sobrad os austeros, em ocas, em m ocambos
de palha; dorm e-se em red e, em cama, no chão; os ritos fun erários têm u m
largo espectro demonstrativo. Todo esse pluralismo de representação não
diminui o carisma da universalidade. Portanto, onde houver aglomerado
humano, hão de existir tais tópicos.
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Fátima Qu intas
O POTLACH E O KULA
Especificidades culturais da sociedade “primitiva”
Com
manoso apresentam-se
intuito de clarificar o quanto as
diversificadas, singularidades
escolho culturaisclássicas
duas cerimônias dos grupos hu-
– bem
distantes da construção mental do “civilizado” – referentes a sinais de p restígio
entre os povos “selvagens”. O Potlach é um festival institucionalizado, no qual
ocorre a destruição de bens pelo fogo: cobertores, canoas, folhas de cobre são
queimados pelos chefes rivais. Um dos chefes inicia a destruição, demonstran-
do o máximo de desprezo pela quantidade de bens destruídos, e, dessa forma,
açulando o rival a proceder dentro dos mesmos parâmetros, até que um deles
não tenha mais nada a oferecer. O excesso de desprend imen to se converte num
gesto de poder
se porque – destruir
se pode o que secontra-senso
reconstruir, tem significaaberrante
opulênciapara
em odemasia.
mundo Destrói-
em que
vivemos. E a intensidade do prestígio é proporcional ao tamanho do “incên-
dio”. Tal costume é descrito detalhadamente por Franz Boas, considerado o pai
da Antropologia americana, com a finalidade de evidenciar a luta pelo status
entre os Kwakiutl, índios da costa noroeste dos Estados Unidos.
Bron islaw Malinowski, antrop ólogo polonês (1884–1942), apresen ta o Kula,
sistema de trocas cerimoniais intergrupais e interinsulares de braceletes por co-
lares, ritual periódico dos trobriandeses, índios do Sudoeste da Melanésia (Ilhas
Trobriand), com o igual propósito de lograr prestígio – quem obtiver mais bra-
celetes ou colares será distinguido em superioridade.
Os costumes descritos mostram-se aparentemente exóticos para nós, os
ditos “civilizados”. Podem parecer estranhos à primeira vista; no entanto, quali-
ficam tendências comuns ao homem, qual seja, a ambição pelo poder. Entre “primi-
tivos” e “civilizados” os mecanismos diferem, porém os objetivos se igualam.
ORIGEM DA CULTURA
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ensejaram, ao longo do te
Arqueologicamen tempo,
falandum sistema
o, as formascultural mais
h um anas complexo.
partem do esqueleto do
Pithecanthropus erectus – cujo crânio e um fêmu r foram encontrados por Eugène
Dubois, em 1891, em Java –, passando pelo Sinanthropus pekinensis – encontrado
em Chucutien, ao sudoeste de Pequim, em 1921 –, até o Homem de Neandertal.
Esquema simplista e discutido: a ausência de descoberta de um esqueleto com-
pleto e a fragmentação de ossos – alguns, inclusive, calcinados –, deparados nas
escavações, provocam críticas e conclusões desencontradas. Faço questão de
pincelar aspectos físicos e culturais de um passado remoto para sublinhar a
complexa carpintaria da nossa construção biológico-cultural.
Como se chegar à aurora da História do Mundo? A indagação continua,
com algumas respostas pouco precisas.
EM TORNO DE UM POSSÍVEL
CONCEITO DE CIVILIZAÇÃO
Civilização vem do latim civis – cidadão, civilidade, civismo, civilização, cidade
– e diz respeito à cultura das cidades. Tal conceito, como todos os conceitos,
admite uma série de variações. Karl Marx lembra que a sede da civilização antiga
era a cidade, enquanto Aristóteles ao usar a expressão zoon politikon se referia ao
hom em habitante das cidades. O homem político correspond e ao que participa
da Ágora, ou seja, do d ebate no espaço público. Na Grécia, o espaço público – a
Ágora – configurava a polis e era responsável pela construção da cidadania. As
idéias de cidadania floresceram em diversos períodos históricos – na Grécia e na
Roma antigas, nos burgos da Europa medieval, nas cidades do Renascimento.
Mas a cidadania moderna, embora influenciada por essas concepções antigas,
possui um caráter próprio. Primeiro, a cidadania formal é hoje quase un iversal-
mente definida como a condição de membro de um Estado-Nação. Em segun-
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Fátima Qu intas
do lugar, tem se tornado cada vez mais significativa a cidadania substantiva, que subs-
creve a posse de um corpo de civis (leis), políticos e especialmente líderes sociais.
A civilização grega antiga foi controlada pela cidade, volta-se a falar na
pólo. de
polis As atividades
cidades damercantil
Mesopotâmia, anteriores
e cultural – por àexemplo,
Grécia, jáchegavam
utilizavama aincluir
urbe como
cam-
pos e plantações de tâm aras que eram cultivadas por emp resários urbanos den-
tro dos muros da cidade. A situação seria revertida na Idade Média, quando a
sede da propriedade fundiária coincidia com o locus do poder – o campo – e as
cidades existiam principalmente como mercado para a troca do excedente pro-
du zido pelos nobres em seus imen sos latifún dios.
A cidade ganhou força com a formação da burguesia, o burgos, embora
não se possa desprezar o caráter fundiário que a terra assumiu como poder
econômico
a distinguiraoentre
longo da História.
civilização comEsta proposição
base na cidade,levou o sociólogo
política Max
no sentido Weber
literal da
palavra, pois fun damentada na polis, e civilização econômica, no sentido literal
de oikos, ou família, fundamentada na economia de núcleos familiares amplos.
O Brasil se desenvolve por entre os contatos do homem econômico com o
homem político de Weber. Tal formatação induz ao modelo que Gilberto Freyre
caracterizou como RURBANO , ou seja, uma sociedad e entrelaçada de costumes
e hábitos tanto rurais quanto urbanos.
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macro. A dimensão
uma simples adição,civilizatória
sim de umengloba todos
cimento os segmentos,
unificador que lhemas não resulta
confere perfildee
singularidade. Em outras palavras: a civilização é maior que a soma de suas
partes porque constrói, na sua engenharia social, um jogo de xadrez bem encai-
xado, não obstante o diversificado volume das peças.
Todos os povos são parecidos e dessemelhantes, mesmo na coexistência
milenar. O espanhol é diferente do português; o alemão, do francês; o inglês, do
irlandês. E, no entanto, estão próximos geograficamente, sofrem influências entre
si e submetem-se a um a irradiação de costumes e hábitos em suas fronteiras. Por
mais que escoem as possibilidades de contato, vizinhança, miscigenação man-
têm distinções essenciais, intransponíveis, “insuscetíveis de exportação”. O co-
mum e o peculiar se aproximam e se afastam. Esse índice diferencial representa
a marca da individualidade do coletivo, o traço próprio de uma civilização. As
demarcações físicas não são apenas físicas; trazem uma paisagem psicológica
que as define enquanto rostos comunitários. A civilização não é transmissível.
Tentarei destrinchar melhor esse postulado.
O que se transmite é a cultura, ou melhor, os blocos culturais; propagam-se
através da divulgação, da migração, da difusão. Mas o rito de passagem, no
sentido literal da locução, não acontece den tro dos parâmetros de sua verdadei-
ra gênese. Com o deslocamento ocorre uma ressignificação dos elementos cul-
turais. O maracatu, o reisado, a capoeira terão nítidos ajustamentos se pratica-
dos por povos europ eus ou asiáticos. Qualquer imitação, da mais simples a mais
complexa, sofre o efeito da recriação. O mobiliário, a moda, os sistemas de lin-
guagem disseminam-se, comunicam-se de país a país, sem que neles se inclua a
civilização originária que os produziu. O espírito criador, que é a medula da
civilização, esse não vai além do contexto em que foi desenvolvido. Observa-se
um caráter inviolável no conceito de civilização. Há uma morfologia impregnada
que não se deixa macular por processos de d ifusão. “A cultura bizantina foi uma
das mais divulgadas e influenciadoras e a sua civilização a mais enquistada e
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Fátima Qu intas
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cando emconectad
culturais miúdos:osa em um determinad
Civilização o eixo
do Açúcar é umpossibilitador d e irradiações
complexo social com base. Tro-
na
cana, mas seguramente expandido por todos os lados e por todos os ângulos –
uma civilização que se quis horizontal, gorda, barroca, ancha de adereços, a
extrapolar o mandala paradigmático da casa-grande, da senzala, do engenho
propriamente dito, da capela... A lavoura da cana gestou uma sociedade rica em
alinh amen tos entrelaçados e en roscados num a teia híbrida e plural. A planta –
da família das gramíneas – não se isolou em si, apesar de sua tirania
monopolizante; projetou toda a orquestração das rel ações sociais do passado
colonial e pós-colonial.
cultura do Pordaefeito,
açúcar. A segun na Civilização
cabe A primeira. A Açúcar énão
doprimeira bemcabe
maior do que a
na segunda.
E a sua m orfologia aglutina fluências e confluências ún icas, a estampar um qua-
dro que fala de um contexto intran smissível na sua totalidad e.
PATRIMÔNIO
o sentimento de pertença
O que dá dignidade a uma pessoa é a segurança de pertencer a alguma genealogia
– tanto biológica quanto cultural. O mundo está carregado de símbolos que
fazem parte da nossa biografia individual e coletiva. O homem solto no univer-
so, sem história, sem tradição, sem origem cultural, é um homem desterrado
(Fátima Quintas).
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Fátima Qu intas
O FENÔMENO DA REMOTIZAÇÃO
O nascer biológico
promulga através demanda a ideologiaculturais
das circunstâncias da retrospecção.
que se A atitude remissiva
processam se
por entre
internalizações nem sempre conscientes. Quanto mais inconscientes as
intern alizações, maiores os efeitos de perm anência. Para tanto, a “cognição cul-
tural” – ato de conhecimento de costumes, hábitos, etc. – deve desprezar artifí-
cios de aprendizado e exaltar as naturais absorções. Todos os valores alheios à
nossa experiência pessoal trazem a conotação de efemeridade, porque a
internalização não se fez espontaneamente. A cognição, para ter autenticidade,
invoca, portanto, a legitimidade da remotização. O que não é nosso é alienígena,
isto é, está fora do tronco genético da cultura.
Ora, se a criança recebe temp os passados, presentes, futu ros, em mom en-
tos não fragmentados, a ela não lhe pode faltar a inserção de uma história já
construída – âncora da remotização. Digo em outras palavras: o sentido do que é
remoto oferece sustentação à biografia do homem como pilar inerente à narra-
tiva pessoal, que tem começo muito antes da d ata de n ascimen to. O qu e é remo-
to é anterior ao tempo social vivente, mas pertence ao tempo histórico de cada
um. Exemplificando: a remotização do brasileiro não é igual à remotização do
dinamarquês. Conseqüentemente, o fenômeno da remotização valida o sentimen-
to de pertença. É, pois, a introjeção de um remoto não-vivente que chancela o
mérito dos símbolos viventes. Em última análise: a remotização consolida a or-
dem da pertença.
PATRIMÔNIO MATERIAL
a vida social das coisas
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fotografia,
empertigar-se, supostamente corriqueira,
o toque do penteado, remete a no
a brilhantina ilações diversas:
cabelo, o olhar otriste
jeitoacu-
de
sam sensações transmitidas de um tempo que parece findo, mas não o é; os
vestígios vão seguindo um destino cultural, de gerações a gerações.
Gilberto Freyre foi o primeiro antropólogo brasileiro a d edicar um interes-
se especial à Sociologia das Coisas: a apalpar a cultura material como algo meta-
tangível; a sentir as “nuances sensoriais” de uma longa mesa de jacarandá; a
absorver os sentimentos que tran sitaram den tro da casa-grand e. E afirmou , sem
tergiversar: “A história social da casa-grande é a h istória íntima d e quase todo
brasileiro. [...] Nas casas-grandes foi até h oje ond e melhor se exprimiu o caráter
brasileiro” (FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala. Rio de Janeiro/São Paulo:
Editora Record, 2000. p. 56).
O ânimo proustiano de Freyre – Marcel Proust (1871–1922) foi um roman-
cista francês que facultou às coisas um valor sentimen tal – robustece o seu dese-
jo de tocar nos objetos para deles extrair significados mais amplos. Não é sem
razão que n o seu livro Um engenheiro francês no Brasil, Gilberto inclui o diário de
Vauthier – engenheiro e arqu iteto qu e permaneceu n o Brasil entre 1840–1846 –
, assim como as suas cartas, datad as de 1840. Saliente-se que o d iário do francês
foi descoberto por Paulo Prado em alfarrabista parisiense e enviado como regalo
a Gilberto Freyre – tanto que o livro supracitado é oferecido à memória de Paulo
Prado. Os comentários do francês denotam uma acuidade extraordinária no
que se refere ao detalhismo da arquitetura urbana e d oméstica:
O que constitui uma cidade e lhe faz a beleza são as casas; portanto, nunca é
demais aproximá-las. Tal é ainda hoje a teoria dos brasileiros de antiga linha-
gem, para os quais o alargamento das ruas parece uma aberração. É ainda a
influência dessa idéia que explica a ausência completa de vegetação no centro das
cidades intertropicais. A vegetação significa o campo, e as árvores não são julgadas
dignas de se mesclarem às obras do homem. [...] Na arquitetura doméstica, os
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Fátima Qu intas
costumes são o espírito que engendra, a alma que dá forma à matéria (FREYRE,
Gilberto. Um engenheiro francês no Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio,
1960. vol. II, p. 802, 814-815).
Como deixar [...] de exprimir o meu espanto ao ver nas cartas de Vauthier, ainda
mais do que no seu diário, voltar-se o francês para as casas-grandes e os sobra-
dos de Pernambuco da primeira metade do século XIX, com o olhar de quem,
fixando-se por mais tempo no problema, acabaria talvez descobrindo aí os prin-
cipais pontos de referência para o estudo da nossa história social (FREYRE,
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Cada móvel com um sigilo, com uma cumplicidade, com um afeto quase
externo e dizível. Um aparador do século XIX guarda silenciosamente histórias
de várias gerações. E como são d iscretos no seu gesto confessional!
matrizAindispensável
representaçãopara
do que é táctil
o acervo daultrapassa a simples
História. Basta materialidade
pensar física –
nas escarradeiras,
nas conversadeiras, no urinol, na cama de solteirão,
nas nam oradeiras, no hábito de deixar um pou co de
comida no prato como sinal de boa educação, nos
lustres dos salões, nas cortinas pesadas a esconder o
ambiente, nos severos leitos nupciais... para ideali-
zar-se os interiores das moradas dos séculos XVII,
XVIII e XIX. As fachadas das casas exprimem teste-
munhos
citação devaliosos.
Freyre: Esclareço o tema com mais uma
Há casas cujas fachadas indicam todo o gênero de vida dos seus moradores. Os
mais íntimos pormenores, os gostos, os hábitos, as tendências. Mas não são
apenas as casas que falam e revelam a vida, o espírito e o gosto dos donos. Falam
também por sinais esses outros surdos-mudos que são os móveis (FREYRE,
Gilberto. Artigos de jornal. Recife: Edições Mozart, [s.d.]. p. 82).
PATRIMÔNIO NACIONAL
um breve histórico de suas políticas
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Fátima Qu intas
Em 1922,
, empreend o aarquiteto
eu um Lúciocidad
viagem pelas Costa,
esainda estudante
históricas – formou-se
de Minas, em 1924de–
com a intenção
realizar um estudo sobre os monumentos artísticos da região. Suas impressões
foram decisivas. Ao chegar a Diamantina, maravilhado, confessa que caiu “em
cheio no passado no seu sentido mais despojado, mais puro; um passado de
verdade, que eu ignorava, um passado que era novo em folha para mim. Foi
uma revelação”. ( Apud PUNTONI, Pedro. “A casa e a memória: Gilberto Freyre e
a noção de patrimônio histórico Nacional”. In: FALCÃO, Joaquim; ARAÚJO,
Rosa Maria Barboza de. [Orgs.]. O imperador das idéias. Rio de Janeiro: Fundação
Roberto Marinho/TopBooks, 2001. p. 27). Para Lúcio Costa, a arquitetura brasi-
leira colonial emblemava o qu e havia de m ais recôndito na formação do brasilei-
ro e, vê-la de perto, transportava-o para o sentimento de origem, o núcleo inici-
al responsável pela consubstanciação do espírito nacional. O desvanecimento
do menino arquiteto denunciava o sentimento de pertença necessário à elabora-
ção da personalidade individual e coletiva. E a epifania de Diamantina provo-
cou-lhe um forte insight :
Quem viaja pelo interior de Minas percorrendo suas velhas cidades, Sabará,
Ouro Preto, São João Del-Rei, Mariana e tantas mais, não pode deixar de ter a
impressão triste que tive, a pena infinita que se sente vendo completamente
esquecidos aqueles vestígios tão expressivos do passado, de um caráter tão mar-
cado, tão nosso. Vendo aquelas casas, aquelas igrejas, de surpresa em surpresa,
a gente como que se encontra, fica contente, feliz, e se lembra de cousas que a
gente nunca soube, mas que estavam lá dentro de nós. Não sei – Proust devia
explicar isso direito. (“O Aleijadinho e a arquitetura tradicional”, artigo pu-
blicado n a Edição Especial de O Jornal, em 1929).
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Para nós brasileiros, o que tem força de nos comover são justamente esses
sobradões pesados, essas frontarias barrocas, onde alguma coisa de nosso come-
çou a se fixar. A desgraça foi que esse fio de tradição se tivesse partido (BAN-
DEIRA, Manuel. Guia de Ouro Preto. Rio de Janeiro: Editora da Casa do
Estudante do Brasil, 1957. p. 43-45).
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Fátima Qu intas
Afinal desencantei a viagem a Cambuquira. Estou aqui desde o dia 15, e parece
que as águas estão me fazendo grande bem. [...] Anteontem fui numa excursão
a Campanha, cidadezinha morta que fica a uns ¾ de hora daqui. Faz agora
justamente 30 anos
1905, pois não senti que
entãocheguei lá carregado.
a delícia Verifiquei
que são aquelas que simples,
ruas tão era um tão
camelo em
modes-
tas, com os seus casarões quadrados, quase todos com bicos de telhado em forma
de asa de pombo. Há lá uma rua Direita (hoje tem nome de gente) que é um
encanto: tão genuinamente brasileira, tão boa, dando vontade de morrer nela
(Arquivo da Fundação Gilberto Freyre).
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linhas
períodogerais. A chamada
da gestão “fase heróica”
de Rodrigo M. F. dedoAndrade,
SPHAN oestende-se de 1936 a 1967,
grande incentivador das
políticas públicas direcionadas ao tema.
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Fátima Qu intas
Nordeste, do Sudeste
men to voltado e de outras
p ara a riqueza regiões,
do nosso deve-se
patrimôn io overnacular.
surgimentoSemde essa
um pensa-
dispo-
sição para inventariar a cultura material do Brasil, teria sido m uito difícil recapi-
tular os meandros por onde transitaram os nossos antepassados.
***
TRADIÇÃO E MEMÓRIA
Os nexos de um a consciência
de individualidade tributa àsvivente perdu ram
lembranças enquan toum
acumuladas há memória.
crédito deO valor
traço
intran sferível. Recordar pod e vir a ser um a leveza de fruição ou um peso trau-
mático do passado que vai e que vem num círculo vicioso. O escritor colombia-
no Gabriel García Márqu ez diz na epígrafe da sua autobiografia: “A vida não é a
que a gente viveu, e sim a que a gente recorda, e como recorda para contá-la”.
Desse contar ribomba a construção existencial de cada um. As biografias hu-
man as comp ortam vivências extraordinárias, ou seja, experiências p ara além
do que é plausível à observação ordinária. A elas outorga-se a consistência
ontológica, porque
habita a textura do aser.
au sência do não feito redu nd aria no nad a. Na mem ória
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lia, de um
de, ou seja,sistema
daquilodeque
parentesco,
é comum de
ao alianças
grupo. Oafetivas, enfim de
passado-vivente uma comuncon-
e não-vivente ida-
cebe pactos de pertença, de modo a ajustar o homem às suas referências psicoló-
gicas e culturais.
Tradição, do latim traditio, traditionis, derivado do verbo tradere, significa
entregar, transmitir, legar à geração seguinte. Embora o verbo se referisse, de
início, à transmissão de coisas triviais, ao termo acresceram-se as reservas
marcantes de um passado que repercute no presente e, presumivelmente, no
futuro. Logo, tradição é a transmissão oral de fatos, lendas, acontecimentos, de
idad e em idad e, de geração em geração através do fio cond utor d os testemunhos.
Aqui dois aspectos sobressaem: o da oralidade e o da transmissão. O da oralidade
reún e a concepção primeira, no sentido de veicular os costumes e hábitos que
incidiam no imaginário coletivo dos povos ágrafos. Tal versão perdu rou por lon-
go tempo e aind a perdu ra com bastante vigor ao acoplar os nichos de contam i-
nação de uma realidade para outra, isenta de registros escritos. Naturalmente
que a tradição vem sofrendo reelaborações e, na contemporaneidade, o signifi-
cado se alarga, abarcando escrituras reveladoras de passados. Entretanto, os
estudiosos mais ortodoxos aceitam a tradição apenas no seu viés de oralidade.
Na tradição escrita perder-se-iam os elementos de espontan eidad e e a força da
narrativa verbal, ou seja, a força do significante.
A transmissão se acasala à tradição numa simbiose perfeita. Não se pode
pensar uma sem a outra. Ambas se equivalem em grau e intensidade. Jamais
acontecerá tradição sem transmissão, embora nem toda transmissão seja tradi-
ção. Transmitir não é sinônimo de tradição; tradição é sinônimo de transmissão.
Por conseguinte, a etimologia da palavra tradição conserva a chama da
historicidade.
O hom em tem na trad ição o seu pon to de origem. E precisa não só recebê-
la como espólio de um passado não-vivente, como aceitá-la para se construir em
humanidade. A tradição diz do passado não-vivente, da memória ancestral, de
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Fátima Qu intas
um longe que parece não ser nosso, mas que o é, com todos os seus fluxos e
refluxos. Arredios aos resíduos desse legado, os continuísmos se romperiam,
desagregando a pirâmide psíquica. Um homem sem raízes é um hom em m orto
na sua integração
cultural . ao mundo – alado, solto, imbuído da síndrome de orfandade
Reavivo o princípio da pertença porque é deste sentimento que se sugam
os ajustes e os desajustes do Sujeito pensante. A sua ausência inflamará sérias
distorções, provocadas pela carência sociocultural. Os conluios formados pelos
grupos carimbam exatamente a necessidade dos selos coletivos: ligamentos cultu-
rais que se firmam para sancionar a homogeneidade do comp lexo sociológico.
Cumpre afiançar que o patrimônio, a memória, a tradição confluem em
um mesmo direcionamento, qual seja, o do sentimento de pertença. Sem ele, tor-
na-se complicado
demanda um mastro sedimentar
de valoreslaços identitários,
comuns uma converge
para os quais vez que aa pessoalidade
imprescindí-
vel sensação de pertencer a alguém ou a algo que assegure solidez existencial.
REGIÃO E REGIONALISMO
Os tópicos acima referenciados vão desaguar na idéia de região-regionalismo.
Por região, aqui se conceituam os vetores físicos e culturais delimitados pelo
espaço; por regionalismo, amplia-se o conceito a padrões atinentes a um grupo
cultural
portandoqueparapode estar
outros inserido
locais em um dadovalorativos
os pressupostos espaço ou que
deleotranscender, im-
balizam. Tomo
como exemplo as manifestações culturais congêneres em regiões diferentes.
Ressalte-se, contudo, que o regionalismo encrava-se dentro do processo
civilizatório mais amplo, isto é, dentro da Civilização onde os blocos culturais se
encaixam. Portanto, o regionalismo subjaz à Civilização e não extrapola, na sua
dimen são autêntica, os seus p ontilhad os.
O mun do globalizado, por incrível que pareça, tem recrudescido os prin-
cípios do regionalismo justamente porque abala o sentimento de pertença, trisca
as
nãoraízes, uniformiza
é pertencer a umarealidades.
região que Pertencer
tem n omeae um mundo anônimo
proximidad e. Há u mefosso
impessoal
enor-
me entre uma coisa e outra. O mundo representa a exterioridade maior, algo
superior à apreensão de cada um, aquilo que se esgueira para além das possibi-
lidad es do indivíduo. Igualar diferenças é anular identidades. Padronizar costum es
é dissolvê-los numa atmosfera de ninguém. Por essa razão, que leva a uma
outra, a da bu sca de origem, o regionalismo ten de a fortalecer os sinais pecu-
liares a um conjunto cultural: seus padrões distintivos. E antes do homem
diluir-se nos fantasmas da globalização, ele vem intentando realçar os
atavismos , o que quer dizer:
O regionalismo aderências
não aspode à origem.
ser compreendido em oposição ao
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etem-se
docesentão,
tradicionais
em vozdamais
região
de –conversa
inclusiveque
sorvete de Coração
de discurso, da Índia.doDiscu-
problemas Nor-
deste (FREYRE, Gilberto. Manifesto Regionalista. QUINTAS, Fátima
(Org.). 7. ed. Recife: Editora Massangana, 1996. p. 49).
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Fátima Qu intas
Talvez não haja região no Brasil que exceda o Nordeste em riqueza de tradi-
ções ilustres e em nitidez de caráter. [...] O Nordeste tem direito de conside-
rar-se uma região que já grandemente contribuiu para dar à cultura ou à
civilização brasileira autenticidade e originalidade e não apenas doçura ou
tempero. [...] Apenas nos últimos decênios é que o Nordeste vem perdendo a
tradição de criador ou recriador de valores para tornar-se uma população
quase parasitária ou uma terra apenas de relíquias: o paraíso brasileiro de
antiquários e de arqueólogos (FREYRE, Gilberto. Ibid., p. 52-53).
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Fátima Quintas
antropóloga e ensaísta
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SUMÁRIO
Origem da cana | 53
O m assapê | 56
A escravidão | 64
Bibliografia | 67
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Fátima Qu intas
ORIGEM DA CANA
Originária do Sudeste asiático (provavelmente da Índia), a cana-de-açúcar
alcançou a Pérsia e dali foi levada p elos conquistadores árabes à costa orien-
tal do Mediterrâneo (CASCUDO, Câmara. Sociologia do açúcar , 1971; FREYRE
Gilberto. Açúcar , 1987; ANDRADE, Manuel Correia de. Cinco séculos de coloni-
zação, 2004; GOMES, Geraldo. Engenho e arquitetura, 2006). Há, entretanto, os
que adm item ser a planta nativa do Pacífico, talvez da Papua, Nova Guiné, ond e
já era conh ecida há cerca de 12 mil anos (NUNES, Naidea Nunes. Palavras doces,
2003). Ao migrar pelo Mediterrâneo, os árabes levaram -na a Gênova, Veneza,
Sicília e ao sul da Espan ha; em Portu gal, a sua cultura teve início no Algarve,
ao tem po de D. João I (1385–1433), Mestre de Avis, no ano de 1404, posterior-
mente, transportada pelo Infante D. Henrique para a Ilha da Madeira, cen-
tro de grande irradiação do cobiçado produto. Bom lembrar que a Ilha da
Madeira, no século XV, foi a maior produtora de cana do mundo, cuja ascen-
dên cia vertiginosa correspon deu ao seu prop orcional declínio, então nos mea-
dos do século XVI, diante da efervescência do cultivo no Brasil. Acrescente-se
que foi dessa mesma Ilha da Madeira que a p lanta chegou até nós p elas mãos
dos colonizadores portugueses, nas p rimeiras décadas d o quinh entos.
Segundo o historiador F. A.Varnhagen ( História geral do Brasil antes da sua
separação e independência de Portugal, 1975), baseado em documentos relativos a
pagamentos de impostos à Alfândega de Lisboa do açúcar proveniente de
Pernambuco, datados de 1526, a cana-de-açúcar já havia sido introduzida no
Brasil antes da chegad a do seu primeiro don atário. E mais: no período da feitoria
de Cristóvão Jacques, teria sido cultivada “parcimoniosamente” em Itamaracá,
em 1516. Do que se infere que ela fez parte da paisagem pern ambucana desde o
início do século XVI. Oficialmente a sua introdução na Terra de Vera Cruz se
deu por meio de Martim Afonso de Souza, em São Vicente, no ano de 1532.
A CAPITANIA DE PERNAMBUCO
berço da civilização do açúcar
Vingan do a can a-de-açúcar na Ilha d a Madeira, os portugueses a cultiva-
ram em Cabo Verde, Açores e São Tomé, tentando potencializar um produto em
alta no mercado internacional. Afinal, o ouro branco, assim chamado o açúcar,
representava um a das melhores e m ais caras iguarias da Europa, bastante cobi-
çada pelos reis, desejosos de aumentar os seus impérios. Para tanto, fazia-se
necessário terra propícia à fertilização de uma gramínea poderosa no tocante à
comercialização e a lucrosbrancos
grãos brancos, brancos, avantajados. Os eolhos
e doces do mundo
fustigadores davoltavam-se para os
gula econômica.
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O hered
pitanias português
itáriasadquirira experiência
nos Açores, na Ilha dcolonizadora com
a Mad eira e em o sistema
Cabo Verde. de ca-
Resol-
veu transferir esse modelo para o Brasil. Assim, D. João III (1521–1557), Rei
de Portugal, entregou a Duarte Coelho a Carta Régia de Doação – em 10 de
março de 1534 –, concedendo-lhe o d ireito e u sufru to d e novas terras. “Ses-
senta léguas de terra... as quais começarão no Rio São Francisco (...) e acaba-
rão no rio que cerca em redondo toda Ilha de Itamaracá, ao qual ora nova-
men te ponh o o n ome de Rio Santa Cru z...” Dizend o d e outra forma, o terri-
tório da capitania de Pern ambuco estend ia-se de Itamaracá à foz do Rio São
Francisco, com as ilhas e as terras da margem esquerda, até a sua nascente,
na Serra da Canastra, no atual Estado de Minas Gerais.
As capitanias de Pern ambuco e de Itamaracá nasceram juntas, além de
limítrofes. Itamaracá foi uma capitania frustrada, como assevera Manuel
Correia de Andrade, apesar de possuir uma razoável delimitação territorial,
que se espalhava de Igaraçu até o Rio Grande do Norte. Pero Lopes de Sou-
za, o seu don atário – irmão de Martim Afonso d e Souza –, nun ca m orou n a
capitania, desenvolvendo uma administração assistemática, o que resultou
no fracasso de uma faixa de terra predisposta à semeadura. Por esse motivo,
Itamaracá esteve sob a jurisdição informal da capitania de Pernambuco du-
rante um século, tend o sido, por fim, legalmente anexada, em 1763, amp lian-
do o universo geográfico da região da cana.
O primeiro engenh o de açúcar de Pernambu co, o São Salvador , posteri-
ormente conhecido como Engenho Velho de Beberibe, foi edificado p or Jerôn imo
de Albuquerque, sob a invocação de nossa Senhora da Ajuda, em lugar hoje
denominado “Forno da Cal”. A Civilização do Açúcar iniciou-se realmente
com o donatário Duarte Coelho que, com habilidade administrativa, não
tard ou em solicitar ao Reino de Portugal a presença de mestres-de-açúcar da
ilha da Madeira, assim como a importação de mão-de-obra da África, além de
capital jud eu para levar a termo o seu emp reend imen to. A Capitania Duartina
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Fátima Qu intas
***
Du arte Coelho chegou ao Brasil, com projeto de moradia, a 9 de março de 1535,
em companhia da esposa, D. Brites de Albuquerque, do cunhado Jerônimo de
Albuquerque e de uma numerosa comitiva de pessoas, amigos, aventureiros,
nobres decadentes. Chamou sua capitania de “Nova Lusitânia” e ao pequeno
povoado que erigiu denominou de Igaraçu, uma corruptela do tupi Igara-Açu,
que quer dizer “barco grand e, canoa enorm e”, como os indígenas designavam
as grandes embarcações de Duarte Coelho. Em seguida, construiu uma Igreja
de Açãopara
direção de Graças
o sul ededicada
fundou aaos
vilasantos Cosme
de Olind e Dam
a (1537), ião. O donatário
consolidando, tomou
assim, a sedea
do govern o. Sacramen tava-se, dessa forma, a colonização do Brasil.
O nome Nova Lusitânia não se firmou, prevalecendo o vocábulo indí-
gena Pêra-Nhambu co, que quer d izer “furo do mar, ped ra furada, ou buraco
no mar”, em alusão à abertura nos extensos arrecifes naturais de pedra ali
existentes, por ond e entravam os navios no an coradou ro.
Uma única cultura parecia viável na exploração do massapê: a cana.
Portugal, como já foi dito, tinha experiência com a p lanta n a Ilha da Mad eira
e, logo, Duarte Coelho fez uso do cabedal de conh ecimentos. A mão-de-obra
seria trazida da África, cuja prática de trabalho escravo acontecia – negros
eram objeto de comércio por parte de árabes e de africanos arabizados.
Tomadas as devidas providências, a prosperidade da cana agigantou-se
em Pernambuco e provocou um a forte concentração econômica, outorgando à
capitania um vigoroso poder territorial. Os resultados favoráveis decorreram da
eficiente administração duartina, de grande valia para o processo colonizador.
O ouro branco destacava-se no mercado internacional com tal proemi-
nência que, na Europa, representou, segundo Paulo Prado, dote distintivo
entre os enxovais dos nobres casamentos. Se os lusitanos não encontraram
os metais preciosos da América espanhola – Astecas, Incas, Maias –, depara-
vam-se com uma realidade nova, indicativa de promissores lucros. Investir
na terra que “em tudo se plantando dá”, fazia-se urgente. A incansável dili-
gência de Duarte Coelho suscitou a proliferação de engenhos pelas várzeas
dos rios Capibaribe, Beberibe, Jaboatão, Una... E o percentual de fabrico se-
guiu em progressão geométrica.
A repercussão do açúcar da capitania de Pern ambuco no circuito inter-
nacional foi estrondosa. O crescimento dos engenhos fez-se célere,
correspondendo à seguinte ascensão: em 1570, 23 engenhos; em 1583, 66 en-
genhos; em 1608, 77 engenhos. Em 38 anos, um avanço substantivo. A alta
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fe, a nNão
ova capital,
se podem transbordava sensações
desprezar alguns d ulcíssimas.
elementos que contribuíram para que
Pernambu co se distingu isse como uma das primeiras e mais imp ortantes capita-
nias hereditárias do Brasil. Sua história é a história do Brasil. Impossível separar
uma da outra. Pernambuco foi o açúcar, com todos os benefícios e malefícios.
Dos períodos em que se costuma dividir a história econômica do Brasil – pau-
brasil, cana, gado, ouro, café, algodão, etc. – o da cana é sem dúvida o mais
expressivo. Por quê? Há razões que justificam tal enunciado. Cumpre apontá-
las, de forma didática, com o objetivo de destrinchar melhor a trilha vitoriosa:
a. pelas condições favoráveis do solo, o massapê;
b. pela grande extensão territorial ocupada pelas plantations, denomi-
nação inglesa utilizada para a lavoura da cana;
c. por sua cultura haver se prolongado durante quatro séculos ininterruptos.
Ainda hoje o plantio da cana acontece com safras bem significativas;
d. pela situação geográfica de Pernambuco – o ponto mais próximo da
Europa e da África.
O MASSAPÊ
O massapê – terra que se agarra aos pés com “modos de garanhona” – é o
solo predominante da Zona da Mata, de aparên-
cia viscosa, oleosa, cor avermelhada (aluviais de
massapê e aluviais de barro vermelho) que, aliado
à cond ição climática – clima qu ente e úm ido com
duas estações bem pronunciadas durante o ano,
uma seca, outra chuvosa – oferece condições ex-
cepcionais para a semeadura da cana-de-açúcar.
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Sem essa argila especial, sem esse hú mus generoso, sem essa resistên-
cia de terra, a paisagem do Nordeste não teria se alterado tão decisivamente
no ru mo d e um latifún dio canavieiro ancho de dem and as sociais e hum anas.
A qualidade do solo tornou possível o avanço civilizador da cana. O que
chama a aten ção é o que essa gleba fascinante representou para a civilização
mod erna mais seden tária que o p ortugu ês fun dou nos trópicos: um a civili-
zação que escapou do extrativismo do pau-brasil, fixando-se numa região e
gestando uma sociedade singularíssima, no sentido material e sociocultural.
ENGENHO
a manufatura do açúcar
to
bo posterior,
animal; acolhia o plantio da cana. Até na morte a besta doou-se em adu-
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o s t iA
p odenominação h o , p oaplicava-se
s d e e n g e nbangüê r q u e o baa ntodos
güê
consubstanciava um ícone n o transporte da cana:
espécie de padiola de cipós trançados na qual se
levava o bagaço da cana ou os pães de açúcar para
a seca – a seca do açúcar . Os term os bangüê e engenho merecem u m parêntese.
O nome engenho refere-se à dimensão engenhosa que os mouros atilaram na
construção da moen da, pois se tratava d e um mecanismo habilidoso e astu-
to, cujo funcionamento dependia de uma engrenagem à base de encaixes.
Assim, bangüê
do: insígnia e engenho
da man ufaturaacabaram
do açúcar.sendo sinônimos da gravura do passa-
O complexo do engenho desmembrava-se em casa-grande, senzala,
engenho (também cham ado de fábrica) propriamen te dito e capela. A distribui-
ção dos “edifícios” dava-se em um terreno com ondulações pré-estabelecidas, a
perfilar uma ord em de interesse geopolítico. Assim, dividiam-se:
a. o engenho. Assentava-se na parte baixa, o que se justificava p ela maior
proximidade da água. Os rios foram de importância fundamental porque
atenderam à energia hidráulica demandada pela moenda, à constância do
umedecimento do terreno e à distribuição do produto além terra – escoa-
douro eficiente. Daí os engenhos terem se desenvolvido à beira dos rios e
deles dependerem, sobretudo dos rios menores, perenes, mais confiantes,
humildes e serviçais. Os rios grandes foram os rios dos bandeirantes.
Muito deve o Brasil agrário aos rios menores porém mais regulares: onde
eles docemente se prestaram a moer as canas, a alagar as várzeas, a enverdecer
os canaviais, a transportar o açúcar, a madeira e mais tarde o café, a servir
aos interesses e às necessidades de populações fixas, humanas e animais,
instaladas às suas margens; aí a grande lavoura floresceu, a agricultura
latifundiária prosperou, a pecuária alastrou-se (FREYRE, Gilberto. Casa-
grande & senzala, 1966, p. 98-99).
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escravos.
za, atraso Aos poucos,pela
provocado entretanto,
emp áfia as
dostécnicas infiltraram-se,
nutrientes mastopologia
do solo e pela com lerde-
do
terreno, com altos e baixos, pouco afeito ao recebimento de máquinas;
2. Plantio – A etapa mais simples da manufatura do açúcar. O barro
esteve sempre à espera da fertilização da semente salvadora;
3. Colheita – Tarefa p enosa. Trabalho lento. Aind a h oje se faz com facão
e foice. Exige do h omem um a en ergia vital incomum. Debaixo d o sol, a céu
aberto, do amanhecer ao anoitecer, o negro embrenhou-se no canavial, a
cortar a cana uma a uma, deixando-se alagar em suor não somente pelas
altas temperaturas com também pelo esforço desprendido em uma ocupa-
ção rude e primária. O eito significou um espaço representativo de força e
resistência – o trabalho manual no seu paroxismo. Tanto que a expressão
“cair no eito” denota o sentido pejorativo de quem não possui habilidades
para tarefas menos sacrificadas;
4. M oagem – Problema maior da p rodução do açúcar, isto é, aquele que
invocou inteligência, criatividade e p ermanente conservação. A roda d ’água,
utilizada com freqüência nos “bangüês” até o século XIX, sintetizou uma
brilhan te inven tividad e d a engen haria mecânica. Os moinhos de rod a d ’água
foram introd uzidos pelos mouros em Portugal e posteriormente levados para
a Ilha da Madeira. “A roda d’água, sempre na vertical, tinha o d iâmetro d e
aproximad amen te sete metros. Acoplada ao mesmo eixo d a rod a d ’água ha-
via uma outra roda menor, dentada, chamada
rodete, que transmitia o movimento a uma roda
maior, esta horizontal e com o m esmo d iâmetro da
roda d’água e que se chamava bolandeira. Assim,
enquanto o rodete girava três vezes a bolandeira gi-
rava u ma só. O eixo vertical da bolandeira, revesti-
do de um cilindro dentado e reforçado com aros
de ferro, transmitia o movimento a outros dois ci-
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ção da rodaSód’água
produtiva. d eu-se
n o século XIXmais assidu amen
as inovações naste, em virtud
técnicas da me oagem
da sua iriam
agilidad
sur-e
gir. A máquina a vapor referendou a grande “revolução” na feitura do açú-
car. Importada da Inglaterra, subtraiu esforços humanos em favor de uma
melhor qualidad e de trabalho. O primeiro engenh o a vapor em Pernambu co
reporta-se ao ano d e 1817, embora Haiti e Cuba, centros de gran de produção
açucareira, tenham-se locupletado de seus favores ainda no século XVIII;
5. Cozimento – O caldo extraído da moagem era acomodado no parol,
(o caldo frio), dando início ao cozimento. Várias tachas de cobre recebiam o
sumo d a cana, cada um a d elas aquecida em isolados fornos d e lenh a. A ino -
vação nessa etapa aconteceu igualmen te com u m século de atraso em relação
às Antilhas, quando da ad oção das fornalhas contínuas, ou seja, a dissemina-
ção de um ún ico fogo para várias bocas, através de um tún el que diminu ía
de d iâmetro até chegar a u ma cham iné, cujo cilind ro dep end ia do tam anh o
da fornalha. Tal invento denominou-se de trem jamaicano, por ter sido utili-
zado na Jamaica, outro centro de produção açucareira de reconhecimento
internacional;
6. Purga ou Purificação – Após o cozimento, despejava-se a calda em
recipientes com modelagem de cones. Colocadas invertidas em andaimes de
madeira, essas formas tinham um furo na base, orifício por onde escorria o
mel durante alguns dias. Bom lembrar que somente após a cristalização do
açúcar, o que acontecia entre 5 e 8 dias, os orifícios eram desarrolhados, de
modo a provocar quase um processo inverso de decantação, no qual o líqui-
do “sorvido” da sacarose caía em um porão, sendo de lá retirado pelo coco –
utensílio de longa vara com uma extremidade em molde de cuia, larga e
funda. Esse mel concentrad o seguia para a destilação com o fim de tran sfor-
mar-se em cachaça. A cachaça parece ter sido uma bebida nascida entre os
escravos: No início, a espu ma da primeira fervu ra d o caldo de cana, conside-
rada inútil, era abandonada em cochos, ao relento, para a alimentação dos
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par
caldoas grosso
imp urezas, costumava-se
depositado colocar
nos cones. um pouos
Decorridos co dias
de mnecessários,
assapê e d e os
água no
“cris-
tais” de sacarose apresen tavam -se pron tos para as etapas subseqüen tes. Após
a m aturação, ou seja, o condensamen to d o caldo, então solidificado em grãos,
o açúcar acomodava-se em 3 camadas: o mais branco, de m elhor qualidade, ocu-
pava a parte superior da forma, enquanto o mais escuro – o mascavo – assenta-
va-se n os espaços inferiores, sendo qu e, por último, repousava o cabucho, qua-
se preto, para u so animal. Os volumes, dep ois de retirados d as formas, cham a-
vam-se pães de açúcar .
Originariamente as formas de pães de açúcar foram de barro, o que
vem a explicar a presença d e olarias nos engenh os desde o século XVI. Com
o passar dos anos, despontaram as de m adeira e as de ferro. Os açucares de
cores e valores diferentes atraíam igualmente lucros diferentes.
A casa de p urgar n ormalmente era espaçosa porque lá o açúcar perm a-
necia por algun s dias – entre 5 e 8 –, enqu anto qu e na moen da e n a casa das
caldeiras a sua passagem fazia-se rápida. Costumava-se dizer que pela casa
de purgar conhecia-se a produtividade do engenho, tal era a sua importân-
cia no complexo açucareiro. Segund o João Correia de And rad e, prop rietário
do Engenho Jundiá, que me concedeu uma longa entrevista, a casa de pur-
gar costumava ser bem protegida, e até escura, como se o local necessitasse
de descanso e afagos extremad os para a boa geração do p rodu to;
7. Secagem ao Sol – Seguia-se a secagem ao relento, método natural,
artesanal e quase primitivo. O local da secagem recebia o n ome de bagaceira,
ou seja, a seca do açúcar que poderia ser a seca do bagaço ou dos referidos
pães. Assinale-se que o nome bagaceira adquiriu um conceito maior, repre-
sentativo da paisagem africana no en genh o;
8. Pesagem e embalagem – Depois de cuidadosamente pesado, era o
açúcar embalado em caixas de madeira, com a finalidade de serem transpor-
tadas e comercializadas. Tais caixas derivavam dos troncos das árvores da
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den sa e robusta floresta, o que d enu nciava um per verso desmatamen to. So-
mente no século XIX, surgiu o armazenamento em sacos de algodão.
A Mata Atlântica, ainda inviolada, viu-se devastada por vários motivos:
habitat do canavial,
do açúcar e para o lenha
fabricodedefornalhas, materialaltares,
portas, janelas, para aspú
caixas
lpitosdeearmazenamento
mobiliário... em
Portugal. Uma exportação que vingou sem clemência. A arribação de muita
madeira de lei acentuou-se após o terremoto de 1755, em Lisboa, quando hou ve
maciços embarques para a Europa de jacarandá, pau d’arco e sucupira
(ANDRADE, Manuel Correia de. Geografia de Pernambuco, 1974, p. 27).
Na luta aguerrida pelo açúcar, o desmatamento deu-se de maneira
agressiva, sem o menor respeito, como se a avidez da cana não permitisse
migalhas de p rudência, sôfrega na su a invasão, com receio de possíveis con-
tra-ataques, a usurpar
com a jactância o que não era seu. E a devastação florestal avançou
da intemperança.
O canavial desvirginou todo o mato grosso do modo mais cru: pela queima-
da. A fogo é que foram se abrindo no mato virgem os claros por onde se
estendeu o canavial civilizador mas ao mesmo tempo devastador (FREYRE,
Gilberto. Nordeste, 1985, p. 45).
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do século XX.
aristocracia Embora tenha
açucareira, o aparecimento de uma
firmado o seu papelburguesia,
social emdescendente
décadas passa-da
das, apresentand o contemp oraneamen te rasuras p or interferências outras,
hoje, o Estado de Pernambuco reage às oscilações de produtividade do açú-
car. Desde 1980, constata-se um surto renovador entre as usinas exportado-
ras. O cenário modifica-se em circunstâncias sociais, sem qu e a terra, contu -
do, venha a perder o seu brasão de fidalguia, ainda que a alternância dos
ciclos açucareiros tenha assinalado uma das fortes variantes no “desmonte”
– entre aspas naturalmente – da oligarquia das famílias patriarcais.
A ESCRAVIDÃO
Assim como o en genho não perdeu a sua força social, a escravidão igua la-se
na mesma intensidade, com uma diferença fundamental: a ela adere a
culpa de u ma sociedad e qu e almeja d eslembrar a m ácula histórica. Uma
p atologia social que traz o gosto amargo d e fel, tão distante d a doçura d e mel
do d ulcíssimo açúcar. Rima cru enta qu e exibe a fereza do sistema escravocrata.
passado
Julgados traumático.
em conjunto,A os brasileiros
escravidão foitêm o que
o seu os psiquiatras
grande trauma. Para chamam
muitosuma
cor menos branca foi, em certo tempo, lembrança de-
sagradável de situação social infeliz de pais ou avós ou
de episódio vergonhoso do passado pessoal ou de famí-
lia (FREYRE, Gilberto . Novo mundo nos trópicos,
1971, p. 124).
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SABOR E DOCE
do alimento à gastronomia
Tudo que se mostra agradável, prazeroso, instigante, é doce. Do adjetivo
latino dulcis e, tem sabor como o do mel ou o do açúcar. Dá água na boca e
instiga as sensações palatais. Por analogia, percorre um vocabulário amplo,
ao fustigar os sentidos e consolidar emoções de deleite – basta rememorar
algumas expressões: “Quem a boca do meu filho ad oça, a minha beija”; “lua-
de-mel”; chamar a bem-amada de “doce” é elogio. Dizer que alguém é um
“alfenim” equivale a d izer que é u ma p essoa frágil – o alfenim d errete-se em
contato com a saliva, lhano como a sua aparência.
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A satisfação de saborear um doce foi tão intensa que não se comia açú-
car nos engenh os na sexta-feira santa p or representar um prazer incompatí-
vel com a morte de Nosso Senhor Jesus Cristo.
fazemOparte
gosto
daderiva
nossa do cultural.
culinária. O Aprende-se a saborear
sabor se educa; por issoaqueles pratos
gostamos que
de uma
determ inad a receita e não de outra. Há todo u m ap arato estimu lativo para a
escolha do que se qu er comer. E este sabor dep end e d o jeito de p reparar o
alimento. Daí a importância em separar-se o alimento in natura do alimen to
cozinhado, regado a temperos, feito para açular o apetite. A gastronomia
resulta da cultura, ou seja, da combinação dos ingredientes e da forma do
cozinhamento. O antropólogo Levi-Strauss, no seu livro O cru e o cozido,
apresenta com clareza essa d up la função: o cru equivale ao estado d e nature-
za; o cozido,enquanto
tos cozidos, ao cultural. Exemplificando:
os africanos a casa-grande
apreciavam os assados.preferia os alimen-
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A FAMÍLIA PATRIARCAL
Personagens e Costumes
Fátima Quintas
antropóloga e ensaísta
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SUMÁRIO
Bibliografia | 106
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Fátima Qu intas
FAMÍLIA
Da origem lusitana à formação personalizada
A PLASTICIDADE DO PORTUGUÊS
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A Família Patriarcal
FAMÍLIA
a unidade colonizadora
A
seudimen
grau são histórica da na
de importância família p atriarcal
sociedade justifica
brasileira; fi-
gurou, no passado colonial, como a instituição de
maior peso. Aliás, contemporaneamente, ainda agre-
ga variáveis de sup erior valia.
A história do brasileiro não poderia ser
reconstituída ao largo da engrenagem familiar, uma
vez que uma e outra dialetizam-se na formação de
um núcleo de caráter doméstico. O Brasil antigo foi um Brasil essencialmente de
família.
tivo e o Nela se p rocessaram os outros brasis: o político, o monárquico, o federa-
republicano.
Um Brasil de pais, de mães, de filhos, de netos, de bisnetos, de escravos,
de noras, de genros, de tias, de tios, de comadres, de compadres... reverencia-
vam uma família extensa e cristocêntrica. Extensa, por incorporar membros aos
refúgios mais íntimos, os tradicionais agregados; cristocêntrica, por adotar o
cristianismo como força motriz da sua dinâmica. Um Brasil alimentado por re-
lações domésticas, cheio de filigranas e de rotinas. Um Brasil submerso na con-
vivência do casulo privado.
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Fátima Qu intas
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A Família Patriarcal
O portu guês plasmou-se ao contexto que emergia: gerou uma sociedad e pauta-
da
piosnoúnicos
monismo – concepção
–, com segundoimperativa,
uma agricultura a qual a realidade é constituída
monocultura, com umpor princí-
a concen-
tração de renda latifun diária, monoeconom ia, com um a regência isolada do pa-
triarca, monopoder, com uma sexualidade dirigida ao macho, monossexual, o
que a identifica como sociedade patriarcal, isto é, reveladora de convergências
para o patriarca. Do que se deduz que visões monistas e autoritárias fizeram
parte do cenário colonizador. Aristocrática – a terra como título nobiliárquico –
, excludente – a escravidão selando fortes marginalidades –, plena de exuberân-
cias – da cana ao esplendor das festas –, a sociedade patriarcal ergueu -se à som-
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Fátima Qu intas
(...) A vida dos aristocratas do açúcar foi lânguida, morosa. (...) Os dias se
sucediam iguais; a mesma modorra; a mesma vida de rede, banzeira, sensual. E
os homens e as mulheres, amarelos, de tanto viverem deitados dentro de casa e
de tanto 1966,
senzala, andarem de rede ou palanquim (FREYRE, Gilberto. Casa-grande &
p. 466-467).
A POPULAÇÃO NATIVA
A FÊMEA
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A Família Patriarcal
lando aromas
divinizado. Nãoafrodisíacos.
hesitou dianteE de
a mulher deixou-se
tanta novidad seduzir
e. O eu por esse
ropeu trazia homem
o progresso
com todas as incontáveis vantagens. A cunhã aquiesceu doando-se freneticamente.
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Fátima Qu intas
pelo homem branco – o oposto dos seus pares: índ ios nômades. Daí o espanto
das discrições acima textualizadas.
E para cá, ressalte-se, não desembarcou nenhuma elite portuguesa com
dotes de primorosa
de homens, educação.
vocações Nem
explícitas paraa erudita nemsobras
o erótico, a sexual. Ao contrário,
do banquete restos
ibérico. Se
não foram os degredados tão anunciados, historicamente falando – em decor-
rência das Ordenações Manuelinas (1521) –, foram h omens ambiciosos, capazes
de enfrentar duros obstáculos para atender aos ímpetos da intemperança.
Para a formidável tarefa de colonizar uma extensão como o Brasil, teve Portugal
de valer-se no século XVI do resto de homens que lhe deixara a aventura da
Índia. E não seria com esse sobejo de gente, quase toda miúda, em grande parte
plebéia e, além
fraca que do mais, moçárabe,
nos portugueses fidalgosisto
ou é,nos
comdoaNorte,
consciência
que sedeestabeleceria
raça ainda mais
na
América um domínio português exclusivamente branco ou rigorosamente euro-
peu (FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala, 1966, p.103).
O MACHO
Tanto a índia quanto o índio congregaram o capital básico que o colono encon-
trou em terras brasileiras, ou seja, as referências para o prazer e para o trabalho.
No prazer, a fêmea satisfez plenamente; no trabalho, o macho decepcionou.
Decepcionou por incompatibilidade cultural, por incapacidade de submeter-se
ao sistema do eito. Não resistiu; foi aniquilado pelas exigências técnicas e
emocionais da lavoura d a cana, a requerer um a saúd e física e m ental inigualável,
que só o africano, mais tarde, ostentaria.
Em estágio cultural nômade, os nossos indígenas estavam acostumados a
um ir e vir permanente: a caça, a pesca, a guerra. Os atos repetitivos da rotina
não lhes agradavam. Apen as o conviver com a natureza lhes renovava o apetite
de vida. Tais elementos dificultaram o português a fazer u so da m assa autóc-
tone. Sem as maravilhosas iguarias da Índia, restava a imensidão da terra a
ser explorada. A agricultura seria o germ e latente da colonização qu e se ini-
ciava. Não h avia ou tra alternativa. Levar a term o o trabalho d a lavoura re-
presen tava a saída possível. Assim foi feito. A princípio, com o índ io escravi-
zado, mas sem os resultados à altura d a ambição portugu esa.
E o reinol, melhor dizendo, o português, apelou para o africano.
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A Família Patriarcal
OS CORREDORES DA CASA-GRANDE
A RECLUSÃO DA PORTUGUESA
A bagaceira não poupou a vida da mulher. Fê-la um ser amorfo, sem vonta-
de, pron ta para agrad ar à paisagem d a cana, tão imp erativa nos seus quere-
res. Madrugadoramente aprendeu a portuguesa o caminho da sujeição por-
que assim a ordem social determinava. O m odelo patriarcal usou d e todos os
artifícios, contanto que essas mulheres introjetassem sentimentos de sujei-
ção e pacatez. E apressou-se em entronizá-las em retiros quase religiosos;
guardá-las para não serem vistas; reservá-las em ermos enigmáticos; cobri-
las com o véu da pudicícia. Assim garantia uma feição doméstica adequada
aos ditames do patriarcalismo.
E o retraimento começava pelos próprios aposentos. A disposição dos
cômodos mostrava uma arquitetura conventual, a recatar a mulher, ou me-
lhor, a marginalizá-la na vida cotidian a. Além d a reclusão física, sofreu a vigi-
lância d e argutos observadores: da m ucama, sempre ao seu lado; do m arido,
com olhos e ouvidos atentos para rep reend ê-la; do pai, a mensurar o tama-
nho da prole. Ao derredor, dedos em riste.
libertação. Mulheresdaacanhadas,
maridos conscientes porque
sua em páfia, assim
a viver n os evitavam desconfortos
seus claustros, para
sufocadas na
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Fátima Qu intas
pulos que
os brios donão
conhlhe foram poupados.
ecimento, Comhuma
conviveu com omensubserviência dependente,
s solitários porque reduzidasem
no
seu potencial reflexivo. Um ser de estufa, medularmente postiço.
A ratificar o estilo da casa-grande, a preocupação de resguardar os perso-
nagens ali viventes prevaleceu. A mulher talvez tenha sido o elemento mais
sacrificado. Não só foi envelopada em folhagens artificiais, como protegida da
ambiência externa.
Mas a essa mulher passiva, ante o marido, tocava a distinção de ser uma espécie
de objeto quase religiosamente ornamental dentro da cultura de que fazia parte,
especialmente como esposa e como mãe (FREYRE, Gilberto. Modos de homem
& modas de mulher, 2002, p. 42).
A casa compendiou o espaço que lhe confiaram e, assim mesmo, até certo
pon to: com parcimôn ia e prudên cia, sem exageros de individualidad e; a prestar
contas de seus atos, mínimos atos, como se a vida dela exigisse o máximo de
perfeição.
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A Família Patriarcal
Até certa idade, era idealizado em extremo. Identificado com os próprios anjos
do céu: andando nu em casa como um Menininho Deus. (FREYRE, Gilberto.
Sobrados e mucambos, 1981, p. 68).
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Havia uma hierarquia a ser respeitada: hom ens ditadores, mulheres sub-
missas, crianças esquecidas e abafadas. Ao invés de brincar, aprender o mais
rapidamente as regras adultizantes. Ciclos vitais interrompidos. Nada de trans-
gredir um processo que se quer vitorioso desde que montado na direção certa.
E vitórias não faltaram ao empório açucareiro, ainda que à custa d o sacrifício da
mulher e da na
entronizado criança. E por quevinda
“arrecadação” não admitir, do homem também, severamente
do massapê.
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A Família Patriarcal
A FESTA DE CASAMENTO
Casavam-se com maridos 10, 15, 20 anos m ais velhos, as portuguesinhas. Sisu-
dos, circun spectos, emp avonados de tan tos gáudios. Barbud os senh ores de en -
genho, bacharéis, médicos, oficiais ou, mais tarde, espertos negociantes... Bigo-
des lustrosos de brilhantina, gordos, arredondados em largas barrigas, suíças
enormes, grandes diamantes no peitilho da camisa, nos punhos e nos dedos...
Os bacharéis ostentavam rubi no dedo.
Aí vinha colhê-las verdes o casamento: aos treze e aos quinze anos. Não havia
tempo para explodirem em tão franzinos corpos de menina grandes paixões lúbricas.
(...) Abafadas sob as carícias de maridos (...) muitas vezes inteiramente desco-
nhecidos das noivas (FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala, 1966, p. 364).
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Fátima Qu intas
peças delicadas, bordados, pontos de cruz, renascenças, tarefas que exigem re-
quintes de devoção. A excelência dos trabalhos atingia níveis de tal detalham ento
que o enxoval era publicamente exposto aos convidados para ser apreciado em
valor e emmais
da forma beleza. Cum pria-se
prepotente assimtodos
possível, um dos objetivos dada
os “encantos” festa: o deEncantos
noiva. demonstrar,
que
se revestiam mais de dotes materiais que de outra coisa. E um bom dote não
deve ser escondido a sete chaves.
A festa do casamento p ontificava u m fato aguard ado com arquejos de
gozo. Durava en tre 6 e 7 dias. Às vezes, para m aximizar a emoção, simulava-
se a captura da noiva pelo noivo. Regras de etiqueta, convenientes à celebra-
ção do conluio mais espalhafatoso do patriarcalismo. Momento, inclusive,
em que as evidências deveriam ser expostas a fim de evitar susp eitas ind evidas.
O reconhecimento
pois, social
a hora d e queimar os do status familiar
cartuchos estava
na sau dação em jogo.
à vitória Era chegada,
do açúcar. Ind íci-
os econômicos, indícios sociais, indícios pessoais. Alardear sinais de sólidas
prosperidades ap ontava o d esregramento desses banquetes. Escravos, bens,
riquezas. Quanto maior a ostentação, maior o grau de riqueza. Um Potlach
com todas as letras. O império da casa-grande media-se muitas vezes pela
extravagância d as solenidad es, que funcionavam como termôm etros ind ica-
dores de prestígio do senhor de engenho. Não se poupavam esforços no
sentido de levar às “últimas conseqüências” os detalhes da cerimônia e,
adjetivamen te, ind icar o dem onstrativo d o fausto.
O casamento era um dos fatos mais espaventosos em nossa vida patriarcal. (...)
Preparava-se com esmero a “cama dos noivos” – fronhas, colchas, lençóis, tudo
bordado a capricho em geral por mãos de freiras; e exposto no dia do casamento aos
olhos dos convidados. Matavam-se bois, porcos, perus. Faziam-se bolos, doces e
pudins de todas as qualidades. Os convivas eram em tal número que nos enge-
nhos era preciso levantar barracões para acomodá-los. Danças européias na
casa-grande. Samba africano no terreiro. Negros alforriados em sinal de regozi-
jo. Outros dados à noiva de presente ou de dote: “tantos pretos” “tantos muleques”,
uma “cabrinha” (FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala, 1966, p. 374).
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A Família Patriarcal
ção (QUEIROZ,
ca brasileira Maria
e outros Isaura1976,
ensaios, Pereira de. O mandonismo local na vida políti-
p. 194).
CÍRCULO DA ENDOGAMIA
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Fátima Qu intas
ticas,
nos. Oraramente legalizou
que equivale a dizer:osserebentos
o reinol que
não provieram dos encontros
acatou o arianismo étnico clandesti-
– segura-
mente não o fez –, acatou o “arianismo familiar”, evitando a inserção de filhos
bastardos no mosaico parental. Do legítimo leito nupcial nasceram, sim, os fi-
lhos descendentes diretos da linhagem européia.
A endogamia escudou as uniões oficiais envoltas em regras “proselitistas”,
enqu anto as cland estinidad es acobertaram-se de razões mais prazerosas do que
de raciocínios cartesianos. Hospedou a casa-grande os dois tipos de amplexos
sexuais, sendo os primeiros aqueles legitimados e ordenadores do esteio famili-
ar; os demais, olhados de soslaio, por transgredirem as instruções prescritas. Os
contatos episódicos, não outorgados pela sociedade privada, rolaram como ra-
mificações de uma árvore de tronco sólido.
Viúvos precocemente, os portugueses adotavam uma sucessão
end ogâmica: casavam com as irmãs solteiras da esposa, com primas ou paren -
tes próximos. Ratificavam, assim, a circularidade do eixo doméstico para o
qual nunca arrefeceram os recursos intrafamiliares. Um sistema com ten-
dências a castas e à en tronização d e uniões fechadas. A família end ogâmica e
cristocêntrica cresceu à sombra de uma privacidade excessiva.
A paren tela consolidou-se em claustros e revigorou a coesão da família.
Uma aderência decantada em prosa e verso. Basta salientar a convivência com
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A Família Patriarcal
ganh aram
mentar a forma d e Tanto
a lembrança. fantasmas, assombrações
que os queguardavam-se
seus retratos se p resentificavam para ali-
no santuário,
bem à m ostra, misturados às imagens dos santos, com direito à mesma luz votiva
de lamparina de azeite e às mesmas flores devotas, indulgentes. E as tranças dos
cabelos das senhoras falecidas e os cachos dos meninos com igual sorte
complementavam o adorno do orago das saudades. Um culto doméstico com
semelhan ças aos dos an tigos gregos e roman os.
Abaixo dos santos e acima dos vivos ficavam, na hierarquia patriarcal, os mor-
tos, governando e vigiando o mais possível a vida dos filhos, netos, bisnetos
(FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala, 1966, p. XXXVII).
DECADÊNCIA DA SINHÁ-DONA
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Fátima Qu intas
grave senhora.antes
amadurecidas Os daguerreótipos da épocasenhoras
de tempo em senhoras: trazem até nós tristonhas
tristes, figuras de(FREYRE,
meninotas
Gilberto. Vida social no Brasil nos meados do século XIX, 1977, p. 86).
O homem conservou melhor o corpo, uma vez que a rotina imp un ha-lhe
alguns deveres. Andou a cavalo, percorreu o canavial em esporádicas dili-
gências, levou u ma vida mais próxima da natu reza. Não por livre vontad e;
antes, pelas obrigações que o eito lhe demandavam. A pálida musculatura
manteve-se mais rija – nada de formas exemplares – e, lembrem-se, a sua
relação com o corpo d eu-se com ruidosa intimidade, porque os amores clan-
destinos ofertaram-lhe momentos de extraordinária vibração.
À guisa da submissão mu çulmana, a mu lher submergiu em u m completo
sedentarismo. Passeava de rede para poupar energia. O desmazelo vencia o
regozijo de viver. Naturalmente que a negligência derivava de diversos fatores,
un s e outros em constante intersecção. A auto-anulação aparentava-se ao desâ-
nimo e, juntos, migraram p ara o desabamento existencial. Até mesmo à Igreja a
lusitana ia refestelada em redes. Imagine-se a inércia que se apoderava desse
corpo! Somente mais tarde, tal ostentação – a de chegar em recinto religioso em
cômodas redes amparadas por escravas – foi proibida pelo caráter desditoso
que a cena denunciava. Outrossim, o esbanjar escravos submissos, carregando
em palanquins senh oras ind olentes, acusava um péssimo exemplo para um cris-
tianismo que d everia apregoar preceitos men os desiguais.
Aos vinte e cin co an os, m ulheres velhas n o qu into ou oitavo p arto.
Arruinadas, como se tivessem sessenta. O feminino definhou em “frívo-
los” circunlóquios. Autoflagelou-se em estados de apatia. Tombou cedo
numa visível pusilanimidade. Feneceu: e o fenecimento é o princípio do
fim. Precocemen te a p ortugu esa disse ad eus à infância, aos verdes an os,
à beleza. Murchou em imagens melancólicas. Acenou lenços brancos de
desped ida sensual.
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A Família Patriarcal
Pena que tão cedo se desfolhassem essas entrefechadas rosas. Que tão cedo mur-
chasse sua estranha beleza. Que seu encanto só durasse mesmo até os quinze
anos. Idade em que já eram sinhás-donas; senhoras casadas. Algumas até mães
(FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala, 1966, p. 373).
ECOS DA AFRICANIDADE
A IMAGEM DA MÃE-PRETA
(...) Negra ou mulata. Peitos de mulheres sãs, rijas, cor das melhores terras
agrícolas da colônia. Mulheres cor de massapê e de terra roxa. Negras e mulatas
que além do leite mais farto apresentavam-se satisfazendo outras condições, das
muitas exigidas pelos higienistas portugueses do tempo de D. João V. Dentes
alvos e inteiros (FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala, 1966, p. 386).
O mãe
afeto da quinhão não se restringiu
portuguesa, somente
quase arruinada ao leite.
pelos A mãe-preta
excessos substituiu
do clima, ela, que nãoo
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Fátima Qu intas
ção sexual
contato com–negras!
quantosComo
portugueses só conseguiram
se a atração atingir retom
física da fase ulterior o êxtase
assesexual no
a direção
da men inice. Será que não retoma? É sabido que a primeira infância representa
o alicerce do edifício psicológico. O lusitano cobiçou a negra com olhos gulosos.
O en contro entre as raças deu-se desde o “instinto” do seio materno – “instinto”
primitivo – aos instintos de adulto, expressivos e determinados.
Amam entados por negras, acariciados p or negras, aconchegados por ne-
gras, meninos portugueses criaram dependências decorrentes das pulsões do
aleitamento. Qu ase todos os brasileiros do período colonial e pós-colonial foram
educados por negra. A sua ascendência fez-se direta em vários momentos. Um
olhar de troca em constante reciprocidade. Um mimetismo que bosquejou as
linhas do rosto do mundo português em estreita sintonia com o mundo
brasileiramente africano.
A PROSTITUIÇÃO DOMÉSTICA
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A Família Patriarcal
O que a negra da senzala fez foi facilitar a depravação com a sua docilidade de
escrava;
dem. (...) abrindo as pernas
O que houve ao primeiro
no Brasil (...) foi desejo do sinhô-moço.
a degradação das raçasDesejo, não:pelo
atrasadas or-
domínio da adiantada (FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala, 1966, p.
397-398, 463).
É absurdo responsabilizar-se o negro pelo que não foi obra sua nem do índio,
mas do sistema social e econômico em que funcionaram passiva e mecanica-
mente. Não há escravidão sem depravação sexual. É da essência mesma do
regime. Em primeiro lugar, o próprio interesse econômico favorece a deprava-
ção, criando nos proprietários de homens imoderado desejo de possuir o maior nú-
mero possível de crias (FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala, 1966, p. 341).
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Fátima Qu intas
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A Família Patriarcal
A imoralidade
xões com princípio e foi
fim,decorrente
os meios ae justificarem
não causal. Resultado de A
os objetivos. detestáveis cone-
prostituição da
casa-grande consignou a prostituição do patriarcalismo, a prostituição da
monocultura, a prostituição do servilismo que se engalonaram sob a maquila-
gem da escravidão.
E se há hábito que faça o monge, esse é o do escravo.
A CULINÁRIA E A NEGRA
O espaçoemoções
binando adstrito com
à cozinh a da casa-grand
temperos, e agrup
sentimentos comou o encontro
receitas de raças,
culinárias, com-
saudades
com cheiro e gosto de condimentos. Nesse desvão, aparentemente resguarda-
do, desfilaram as enormes proezas da convivência doméstica. Oráculo de con-
fissões, de fuxicos, de troca de sigilos. Zona de confraternização. Locus de inter-
câmbio. Na “sagrada” cozinha, a conversa mole, os mexericos, o disse-me-disse
alçaram a moldura da intimidade. Entre o preparo de um prato e de outro,
muitas histórias foram verbalizadas.
Tanto quanto o confessionário, o suposto esconderijo do fabrico das
guloseimas sum arizou o grosso caud al por ond e escoaram conversações em
tom introspectivo, sonhos recônditos, mistérios femininos. Debaixo do manto
da solidão, a larga e tosca mesa da cozinh a agasalhou os pu dores d e mulhe-
res acanh adas – lugar de especial atrativo para o transbordamen to de dize-
res porven tura perigosos ou pecaminosos. Com a devida reserva, a p alavra
ali soada e ressoada exerceu importante função libertadora. Pretas velhas,
mu camas, sinh azinh as, sinh ás-donas, nh onh ôs coabitaram os mom entos de
relaxamento que o forno e o fogão possibilitavam. Entre receitas, o rastro
dos ap etites, seja qu al for a etiologia – palatal ou sexual –, deixou-se singrar
em discursos reprimidos.
Pamonha, milho assado, pão-de-ló, arroz-doce, alfenins, alféloa empare-
lharam -se à mesa da casa-grand e em uma d emon stração de hibridismo de pala-
dares. As negras, exímias cozinheiras, redondas de tanto comerem, esmeravam-
se no prep aro de “acepipes” para o regalo do men ino, da sinh á ou d o patriarca.
Imensos pan elões comp un ham a paisagem da comensalidad e patriarcal. Passa-
va-se o dia a beliscar e a provar pratos temperados ao saibo preferido da próxi-
ma refeição ou à blandícia da donzela enfraquecida – a necessitar de cuidados
especiais. Do café da manhã à ceia noturna, o dedo decisivo da negra. Do sim-
ples caldo de pintainho à gord urosa feijoada. Da mesa repleta de convidados ao
almoço trivial. A qualquer hora, a chaminé fluind o o olor d as esp eciarias.
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A Família Patriarcal
nos pimenta, do
gastronomia, retemperou a culinária.
sentido mais Durante
figurado ao sentidoséculos, afiançou o relevo da
mais biológico.
Não se pode falar em culinária nacional sem remeter ao mastro balizador
da desembestada glicose. A arte do doce espargiu-se do Nordeste para o Brasil
afora. A sua expressão – sociológica, econômica, sentimental – advém da família
patriarcal, extensa, cristocêntrica, horizontal, a repousar na imensidão de um
monopólio canavieiro. A escravidão propiciou o culto da hipérbole da sacarose.
Na gangorra do açúcar não se mediram estímulos para acirrar o
degustativo. A escrava revelou-se única na produção do doce. As intermináveis
receitas reivindicavam o exercício da persistência, longas tardes à beira do fo-
gão, a vigiar as panelas em que se preparavam caldas em ponto de visgo. Por-
ções estrambóticas entornaram quilos de açúcar, de rapadura, de mel – o mel de
abelha indígena que, segundo José de Alencar, morava nos lábios de Iracema.
Ovos e mais ovos esbanjavam dos tachos, esfumando o creme, que se transfor-
maria em refinados postres. Exigiu-se o máximo de perseverança para levar a
termo os “preciosismos” da doçaria. A constância da africana acentuou-se na
realização das fórmulas prescritas.
Somente a pasmaceira da casa-grande permitia operacionalizar o fabrico
de d oces complicadíssimos. Tempo. Horas. Pacatez. Os vagares d o p atriarcalismo,
algun s foram preen chidos com a carpintaria do doce. O comp lexo da cana, com
as suas derivações, jamais teria se validado, com tamanha efervescência, não
fossem a quantidade de escravas, o tédio das horas mornas e intermináveis, a
lerdeza do badalar do relógio, os minutos por consumir, o longo intervalo do
nada... Cedo começava o preparo. Receitas demoradas, demoradíssimas, só
explicadas pelo excesso de ócio. Sinhás-donas gulosas e adictas de glicídios à
espera do gozo alimentar. Houve, no Brasil, uma maçonaria do doce, isto é, um
poder coeso de mulheres sobre o sigilo da feitura dos bolos de família. O cader-
no de receitas – período em que as mulheres já escreviam – foi repassado de
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Fátima Qu intas
Exalte-se
conjugação a tipologia das
do supinamente frutas, essas
melífluo. dulcíssimas,
O paladar a aliarem-se
ajustou-se, à cana
por efeito, na
ao que
vinha de fora – de Portugal e da África. O endógeno e o exógeno acasalaram-se.
Tudo contribuiu para que, na Nova Lusitânia, as receitas com base na blandícia
proliferassem. De Portugal, sobretudo dos mouros, chega-nos uma herança sin-
gularmente açucarada.
A representação do doce no Nordeste se dá com tamanh a veemência que
aponta p ara a formulação de uma Sociologia do Doce, eivada de traços de confei-
taria, pastelaria e estética de sobremesa, o que leva a implicações socioculturais
da maior relevância. A ritualística açucareira invocou refinamentos sensoriais.
O regime escravista possibilitou a arte da sobremesa através d o exercício
da paciência bíblica. Os caprichos foram completos. Nada se rejeitou para anular a
acidez da casa-grande, e o açúcar vinha a calhar, preenchendo os vazios que se alas-
travam nos seus corredores. Em torno do doce brotou uma doutrina quase mitológi-
ca. O doce exigiu finas devoções. A liturgia reivindicou o máximo de reverência.
O doce nordestino, com a sua origem nos bangü ês – “um dos rituais mais
sérios da antiga vida de família das casas-grandes e dos sobrados” – detém uma
história sentimental. Não é um rebuçado qualquer. É uma sacarose que as nos-
sas bisavós comeram; logo, um regalo que carrega ancestralidade. Quando se
reproduz uma receita antiga, há de ressaltar-se a ternura e o carinho que a en-
volveram, encerrando um bem-querer de todo especial, prolongamento de ou-
tros bem qu ereres que se perderam a meio do caminh o. Haverá melhor iguaria
que aquela receita da vovó?
Os pratos ou tabuleiros nos quais se acomodavam as guloseimas eram
enfeitados de modo a alucinar os olhos. As negras recortadoras aperfeiçoa-
ram-se em detalhes e mais detalhes: ritmos inventivos, inspirações fantásti-
cas, visando a embelezar a oferenda do produto. E o princípio da gula é
antes de mais nada plástico, com acentos pictóricos. O olhar antecipa o olfato
na “fermentação” do apetite. A estética do orn amentar aprimorou o espetáculo
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A Família Patriarcal
do paladar que não se conformou com a simples degustação. Foi mais além,
alongando-se na “poesia óptica”.
E a arte fez-se também no açúcar e por meio do açúcar. Os tabuleiros
ficaram famosos pela delicadeza
negras especializaram-se do rendilhado
no preparo não somente e pela coreografia
do doce, lúdica. As
mas também do
arranjo que o complementaria. Com papel azul ou encarnado enfeitaram-no e re-
cortaram-no em corações, passarinhos, peixes, galinhas. Neles abrolhavam uma arte
com sugestões fálicas, totêmicas e barrocas. Negras, algumas forras, iam vendê-los na
rua, exibindo seus dotes, tanto físicos como culinários. As célebres “Mães Ben-
tas” ilustram as nuances de u m cenário du al em glutonaria e plasticidade.
Com a desafricanização da mesa nas primeiras décadas do século XIX, o
brasileiro perdeu o hábito de vegetais e verduras, tão do agrado do negro. Tor-
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Fátima Qu intas
A sífilis fez sempre o que quis no Brasil patriarcal. Matou, cegou, deformou à
vontade. Fez abortar mulheres. Levou anjinhos para o céu. Uma serpente criada
dentro de casa sem ninguém fazer caso de seu veneno. (FREYRE, Gilberto .
Casa-grande & senzala,1966, p. 343).
De todas as influências sociais talvez a sífilis tenha sido depois da má nutri-
ção, a mais deformadora da plástica e a mais depauperadora da energia eco-
nômica do mestiço brasileiro. (FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala,
1966, p. 51).
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A Família Patriarcal
na
do intimidade d a família
engenho. Meninos portuguesa
brancos, e de lá de
os nhonhôs, se entranh ou porjá entre
12, 13 anos, os recantos
exibiam sobran-
ceiros a marca da sífilis, confundida com o emblema de virilidade. Desde os
tenros anos, aos meninos dóceis, mais inclinados a empinar papagaio que a
outra coisa, cobravam-lhes o exercício da sexualidade. Cedo sifilizaram-se em
nome de uma petulante falocracia. O distintivo sifilítico, por incrível que pare-
ça, arrogou-se de insolências de macho. Sifilítico, mas m acho, ninguém poderia
questionar a pronta e eficiente varon ia. O corpo denu nciava a mancha do falo.
Ferida de guerra, a sífilis sacralizou muitos heróis, dentro de casa, na perigosa
dimensão do que é familiar – a familiaridade quebra a perspectiva do intenso,
anulando as proporções e amortecendo os riscos. O que é familiar é próximo, não
causa receio. Pequeninos em idade, mas protagonistas de façanhas de adulto.
Negrinhas virgens, as mais apetitosas, constituíam o alvo dos meninos
sifilíticos. Dizia-se até que nada melhor do que uma negrinha virgem para a
cura da doença. Sórdida lenda que se teceu em tempos coloniais. Como se o
excesso de saúde da africana pudesse neutralizar o despautério do lues. Cruel
argumento que vem somente a ratificar o abuso do corpo da negra.
Negras tantas vezes entregues virgens, ainda mulecas de doze e treze anos, a
rapazes brancos já podres da sífilis das cidades (FREYRE, Gilberto. Casa-gran-
de & senzala, 1966, p. 341).
É claro que, sifilizadas – muitas vezes ainda impúberes – pelos brancos seus
senhores, as escravas tornaram-se, por sua vez, depois de mulheres feitas, gran-
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des transmissoras de doenças venéreas entre brancos e pretos. O que explica ter
se alagado de gonorréia e de sífilis a nossa sociedade do tempo da escravidão
(FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala, 1966, p. 342).
Lamentável
Sifilizou-se antes. dizer: o Brasil doméstica
A prostituição não se civilizou dianteàde
deu cancha tantas
livre intempéries.
revoada de uma
enfermidade imp lacável, que a n ingu ém p oup ou, nem mesmo aos recém-nasci-
dos, esses contaminados pelo leite materno. Como se pode inferir, o efeito che-
gou a gentes que não praticaram sexo. A ama-de-leite contagiou-se com o m eni-
no no peito ou vice-versa. Verificou-se, portanto, a ingerência pela via da
amamentação, ocasionando prejuízos irreversíveis.
A RELIGIÃO DO SEXO
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A Família Patriarcal
Menino
imagem Jesus,
de umaaomulher
quotidiano
prenhe;do São
bangüê: Nossa
Gonçalo do Senhora
Amarante doaÓdesdobrar-se
adorada na
para atender aos rogos das mulheres que tanto o arreliavam com promessas e
fricções; São João Batista, moço bonito, namorador, solto entre as moças que lhe
dirigiam pilhérias. A diversidade do hagiológio católico em m uito ajudou a ale-
goria da festa sexual.
Até mesmo os azulejos – de influência moura – transformaram-se em ta-
petes decorativos nas capelas, nos claustros, nas residências. E os desenhos,
então assexuados, adquiriram, na arte cristã, formas afrodisíacas, quase obsce-
nas. Mais uma ingerência muçulmana à qual se adicionaram pinceladas eróti-
cas. Nas sacristias e interiores das igrejas, as grandes paredes cobriram-se de
azulejos com cenas de p lástica sexual.
Brancos, negros, índios pacificavam-se no mutirão da religião. O catolicis-
mo pontuou a peça fundamental de família na obra colonizadora. O cimento da
união. O lastro propulsor de proles desvairadas. Só uma barreira mostrava-se
intransponível no Brasil colonial: a da heresia. Essa era vista com repúdio, des-
prezo, rejeição. Tudo se aceitava, menos a mancha do ateu, a obliqüidade do
ímpio e sua frigidez estéril que empurra almas à cond enação. O Brasil precisava
ser um Brasil de santos ou, pelo menos, de guardiões da fé. Assim foi.
Exageradamente defensor dos valores cristãos e jesuíticos.
Católicos, sim. Hereges, nunca. A obra de cristianização referendou
um processo seletivo, vivenciado com bravura pelo Brasil de nossos ante-
passados. Qu e chegassem machos e fêmeas em graça. Desinfetados d a p este
da heresia. Pelo batismo, estariam prontos para o ofício da “governância”,
isto é, para o ofício de administrar os seus corpos em permanente erupção
de d esejo. A orgia da carne d isse da celebração d o p atriarcalismo. A religião
chegou a abençoar com o sinal-da-cruz os “devassos” de moralidade sexual.
Pais-nossos e ave-marias rezavam-se ao compasso da cerimônia do amor e
das fustigantes sandices da paixão.
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fizessem
trocarem parte daOs
idéias. família,
santoscom presença corpórea
deambulavam dentro definida, a responderem
de casa lembrando ea
íntimos
convidados.
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A Família Patriarcal
Quando se perdia dedal, uma tesoura, uma moedinha, Santo Antônio que desse
conta do objeto perdido. Nunca deixou de haver no patriarcalismo brasileiro,
ainda mais que no português, perfeita intimidade com os santos. O Menino
Jesus só faltava engatinhar com os meninos da casa; lambuzar-se na geléia de
araçá ou goiaba; brincar com os muleques. (...) Com Santo Antônio chega a
haver sem-cerimônias obscenas. E com a imagem de São Gonçalo jogava-se
peteca em festas de igreja dos tempos coloniais (FREYRE, Gilberto. Casa-gran-
de & senzala, 1966, p. XXXVII, 246-247).
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(...) O Catolicismo foi o elemento mais vigoroso nesse conjunto, mas ele mesmo
é, sob Livro
son. certosdefinitivo
aspectos,naaqui
vidanointelectual
Brasil, “superstição católica”
do Brasil, 1985, (MARTINS, Wil-
p. 273).
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A Família Patriarcal
as suas,Doestão
negro, todos nós
presentes aprendemos
como insígnias um pouco.que
culturais Reminiscências
ultrapassarãoreligiosas,
o tempo,
alongando-se na unidade brasileira, qual refrão de velhos contrastes coloniais.
E o cristianismo sensual e lírico resultou de uma partitura em três tempos.
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Fátima Qu intas
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CASA-GRANDE,
CAPELA E SENZALA
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Ao
porlado
si dádaohabitação, de traçado
tom e classe igual aque
das pessoas tantas
nelaoutras,
viviam.instala-se
Depois,arodeando
capela, quepelo
só
Norte e pelo Sul o terreiro, lá está a teoria completa de abrigos para as diversas
coisas e operações.
Apesar disso, não transparece a menor ostentação, antes, pelo contrário, tudo se
mede pelosmarcadamente
e objetos cânones de vida sóbria e digna, que se prolongam em gestos, hábitos
rústicos.”
(In: Arquitectura Popular em Portugal, SNA, 19611)
v. 1961. Arquitectura
2 VVAA, p. 40 e seguPopular
intes. em Portugal. Lisboa: Edição do Sindicato Nacional dos Arquitetos,
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conjunto
No antes
Brasil descrito.
vão-se multiplicar as capelas rurais e elas passam a existir indife-
rentemente das dimen sões e posses do proprietário. Qu ase todo engenho tinh a
sua capela ou um oratório doméstico de bom porte. Trata-se de uma necessida-
de de proteção dos santos que está acima da situação de cada senhor de enge-
nh o, seja senh or de grand e ou p equena propriedade rural.
Diante de tal premissa, assim como em Portugal temos de considerar a
capela do engenho e aquelas que se ed ificam nas p ovoações que se organizam
nas proximidades daqueles e que em alguns casos podem se transformar em
igrejas paroquiais vinculadas às freguesias.
Quer a capela rural ou a ou tra situad a na p ovoação não parecem ser dife-
rentes na arquitetura senão naquilo que deriva do poder e do orgulho do se-
nh or do engenho no sentido de aformosear mais sua casa de Deus. A vida rú s-
tica desprovida de luxos é marcante na maioria das propriedades rurais, no
entanto os grandes proprietários, contrariando o modelo de vida existente no
Norte ou Sul de Portugal, passam a viver com mais requinte. Na maioria dos
casos o melhor da ornamentação será destinado à casa de Deus, mas alguns
senhores se dão ao direito de bem tratar a d ecoração intern a da casa-grand e, sua
moradia, se bem que com maior intensidade isso ocorra já no século XVIII e
seguinte.
Havia propriedades somente de plantio de cana, onde o senhor não pos-
suía recurso para construir o engenho e as que instalavam engenhos eram de
mós de pedra, ou de paus movidos por meio de bestas, almanjarras, ou por
força de uma roda de água. Tecnologias mecânicas conhecidas e empregadas
desde muitos tempos em Portugal.
Com fim de estabelecer um a melhor forma d e apreensão do assun to, divi-
diremos a questão segund o os tipos de edificações que comp un ham o conjunto
de produção do açúcar. Não deixaremos de lado os mobiliários das casas-gran-
des e das capelas.
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Nem todos os senh ores de terras doadas para plantar e moer eram dotados de
meios para construir um engenho. Este era de alto custo e exigia mão-de-obra
especial, além d a aquisição de metais para os tachos. Assim existiam proprieda-
des somente de plantio outras que moíam uma vez que dotadas de moita e
maqu inaria necessária a todas as etapas d a produ ção.
2
3 Arquitectura
“cabe, pois, Popular em Portugal
referir aqui . Lisboa:
um aspecto não Edição do Sindicato
men cionad o e qu e éNfun
acional dos Arquitetos,
dam ental para a comp2 reensão
v. 1961.
do fato: como ressalta da análise mais circunstanciada da planta, semelhante às outras casas, as
varand as são p rincipalmen te corredores qu e ligam a entrada d a casa com qu alquer quarto ou sala
e serão tanto mais compridas quanto mais dependências existirem alinhadas e convenha servir.
Apoiadas em pilares isolados; retraídas ou projetadas suspensas, de traves lançadas desde o
interior e de lajes de pedra engastada na parede; abertas ou entaipadas, recolheram-se exemplos
interessantes que nos mostram a relativa semelhança de soluções dispersas, numa faixa que se
pode referenciar por locais ou p ovoados como N espereira, ao Sul do Douro, em terras de Cinfães;
Celorico d e Basto. Ao longo d a estrada que daqui segue para Vieira do Minh o, Monção e Meru fe.”.
Arquitectura Popular em Portugal, 1961, op. cit. p. 84.
4
Vários exemplos existem na referida publicação do Sindicato e algumas das casas estão
reproduzidas no presente texto.
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A presença
pelo clima, dasomen
não seria varanda, também
te à frente uma necessidade no Brasil imposta
da edificação,
em um bom número de casos ela faz a volta ao
redor d o nú cleo central onde estão os dem ais am-
bientes de viver. Quando a casa era térrea, a va-
randa corria à volta e a cozinha situava-se quer
fora do corpo ou na parte posterior da moradia.
Em Portugal, assim também no Brasil, aque-
las edificações em qualquer período de tempo fo-
ram edificadas em taipa, alvenaria de p edra ou em alvenaria de tijolos. Quan do
em p edra, vai requerer o u so de canteis e a obra lavrada terá ares de erud i-
ção. Sendo em taipa, no Nordeste, com freqüência a simplicidade da cons-
trução pode conduzir a uma composição de linhas sóbrias, mas em certos
casos não é a arquitetura da casa desprovida de erudição. Uma sobriedade
resultante do sistema construtivo, mas que não deixa à margem excelentes
prop orções quanto ao d esenho, qual a Casa-Grand e do Engen ho Poço Com-
prido, em Vicência, Pernambuco. Nas pinturas do artista Frans Post, vindo
com o Governador João Maurício de Nassau (1637–1644), podem-se ver tais
tipos eruditos ou simples no trato da arquitetura rural5.
Um grande inventário dessas casas rurais já existe em estudo publica-
do e realizado p or um arquiteto na qu alidad e de Tese de Doutoramento em
São Paulo. Posteriorm ente a tese referida foi condensada e ed itada p ela Fun-
dação Gilberto Freyre.
5
No quad ro Casa de Plantação com Torre (nú mero 15), reproduzida no Livro sobre Frans Post de
Joaquim de Sousa-Leão (Livraria Kosmo, Rio de Janeiro, 1973), a casa de taipa assenta em pilares
de tijolos. Na pintura Engen ho (nú mero 17), temos um exemp lar erud ito com dois torreões
ladeando um terraço em arcadas sobre um and ar térreo muito fechad o, talvez um a arrecadação.
Outros exemplares são apresentados pelo autor, mas não fogem muito a tais modelos.
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O SÉCULO XIX
AS CAPELAS RURAIS
Em Portugal capelas ru rais estão presentes junto às casas dos lavradores desde o
mais recuad o tempo, segund o a data da fund ação de cada p ropriedade, as quais
estão sempre integradas. Assim, suas características arquitetônicas acompanha-
ram segund o aquele tempo o gosto dominan te no lugar, sejam elas eruditas ou
edificações simples.
6
As Casas-Grandes da Bahia ostentam maior luxo que as de Pernambuco. No entanto nesta
Capitania se pode assinalar a Casa-Grande e capela do Engenho Poço Comprido e a capela do
Engenho Bonito como exemplares de excelente qualidade artística.
7
Grande nú mero d e Boas Casas-Grandes d e Pern ambu co é exemp lar do século XIX. Algumas são
frutos de remodelações nessa centúria ou construções novas que substituíram antigas. Podemos
citar entre elas: a Casa-Grande do Engenho Morenos, em Jaboatão; do Engenho Monjope, em
Igaraçu; do Engenho Gaipió, em Ipojuca; do Engenho Preferência, em Escada; do Novo da
Conceição, no Cabo; do Engenho Mattas, no Cabo; do Engenho, depois usina Pumaty, em Joa-
quim Nabuco; do Engenho da Madalena, no Recife e do Engenho São João, adquirida, pois em
estrutura metálica, importada da Bélgica.
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gosto artístico
Maneirismo 1 que o antecedeu na Europa, ora cham ado d e Protobarroco ou de
. Depois da Independên cia, as capelas reconstruídas ou construídas
se vincularão aos estilos que sucederam ao Barroco.
Parece-nos, diante dos exemp lares ainda existentes, que a capela ru ral acom-
pan hou a mod a das urbanas. Apesar de destinad as ao culto pelo Senh or e assim
domésticas, a capela rural recebeu a gente do engenho a seu redor segundo a
imp ortância que ela adquiriu no lugar. Com a extinção dos engenhos, algum as
delas foram transformadas em paroquiais, e no Recife e seus arredores, com o
desaparecimen to dos engenhos, se farão matrizes de freguesias.
Quanto ao estilo dessas capelas, não se pode esquecer a filiação delas ao
gosto lusitano presente nas capelas rurais ibéricas. Para entender o gosto pre-
sente nessas capelas, também entra no jogo a memória dos senh ores e a origem
de cada um, e tal situação pode influir na arquitetura dessas edificações. A se
saber que a arqu itetura será diferenciada no resultado, seja ela do N orte ao Sul
de Portugal, e também se acredita que tal situação pode ter caracterizado as
capelas edificadas no Brasil na zona açucareira. Assim, não se deve analisar de
uma maneira geral o que ocorreu, e sim verificar cada situação segundo tais
parâmetros, o que ainda não se fez devidamente 9.
Seguindo aquele caminho natu ral do correr do tempo, verifica-se que as
capelas dos dois primeiros séculos seguem as diretrizes do gosto pelo
Protobarroco, com pred omínio da simplicidad e nas suas linh as, mesmo quand o
seguem os Tratados de Arquitetura, onde em algum as d elas a esse tratam ento
sóbrio do exterior se contrapõe, quando as condições assim o permitem,
um a m aior riqueza n o interior, esta rep resentada através do retábulo princi-
8
Não se pode esquecer a classificação de Kubler em Estilo Chão (Plan Style), grande parte da
produção arquitetônica portuguesa dos séculos XVI e seguinte.
9
Os estudos no Brasil tendem a gen eralizações e deste modo ao esquecimen to de tais situa ções
singu lares e decorrentes de particularidad es que se torn am importantes.
117
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pal ou nos demais quando tal ocorre. Nos retábulos a imaginária acolhe a
mesm a lingu agem e d á a nota divina ao culto seguindo a d evoção da gente.
Cada um daqueles estilos artísticos antes citados tem linguagem pró-
pria e características
e essencialmente o daque direcionaram
capela. Em termos o gosto do construtorartísticas,
de características da casa-grande
anda-
mos, da sobriedad e de u ma linguagem mais atenta às formas da arquitetura,
para u m m aior dom ínio da escultura d ecorativa. De um modo Apolíneo, no
ver d e Gilberto Freyre, ao d e Dionísio.
As capelas mais antigas, pertencentes a engenhos dos dois primeiros
séculos, não chegaram ao nosso tempo todas elas 10. As que temos hoje são
produtos que sofreram intervenções salvo raros exemplares. No entanto,
graças às pinturas do paisagista Frans Post, artista já referido, se conhecem
exemp
próximaslares,
dasa m aioria n ão iden
casas-grandes e tificados,
ora são dede uma
capelas rurais. São
arquitetura elas situad
erudita, as
outras
vezes construídas em taipa de mão e mu ito simp les. Os d ois tipos têm plano
redu zido a u ma sala, a nave, que se interliga por u m arco cruzeiro à capela-
mor. Dois espaços interligados com uma sacristia anexa ora do lado direito
ou esquerdo. De um mod o geral, ausência d e sineiras em construção isolada
ou colada ao corpo d a capela. Algum as adotam sineiras sobre a fachad a late-
ral ou n a frontal. Um elemento d e interesse em algum as capelas representa-
das é um alpen dre à frente d a contrafação principal. Esse alpend re, às vezes
cham ado copiar, é um espaço aberto e bem afim com a galilé da igreja cristã.
No caso das capelas constru ídas à luz d os Tratados d e Arquitetura a comp o-
sição é cuidad a, e a se crer ten ham existido eram exemp lares de grand e bele-
za 11.
A decoração interior dessas capelas teria retábulos de boa feitura. A
tomar como referência a descrição do Reverendo Joan Baers de Olinda, elas
10
A capela do Engenho Velho, na Bahia, ún ica peça que resta d e um a casa-grand e construída no
século XVII, seguiu o modelo das capelas de corpo com planta-baixa ao quadrado e elevação de
mesma altura que o lado dessa figura geométrica, tendo uma cúpula, em meia esfera, assente
sobre pendentes esféricos. Solução de arquitetura muito semelhante à da capela-mor da igreja
dos franciscanos do conven to d o Recife (1608), onde as fontes d essa comp osição são as capelas do
litoral da Estremadura em Portugal. A capela do Engenho Velho também recebeu, qual a do
Recife, revestimento azulejar. Uma capela também de grande interesse é a da casa dos Garcia
D’Ávila em Tatuapera, na Bahia. Esta tem p lanta h exagonal e cúpula em barrete d e clérigo.
11
As pinturas de Frans Post não se realizaram todas no Brasil. Somente um pequeno número ele
pintou no Brasil. A maioria realizou a partir de um possível caderno de modelos e as situou em
paisagens fictícias, porém tiradas de desenhos ao natural e montadas aleatoriamente. Assim tais
construções, quer sejam casas-grand es ou capelas, são representações ou n ão d e edificações reais.
Acreditamos que o sejam, mas a dúvida ainda persiste à luz de uma documentação onde o
exemplar não mais existe. Uma capela com copiar que aind a existe é a capela de Nossa Senhora do
Socorro, em Santa Rita, Paraíba.
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seriam adorn adas com belos retábulos dourados e com a imaginária adquirida
em Portugal ou feita no Brasil.
CAPELAS DA XVII
DO SÉCULO SEGUNDA METADE
E SEGUINTES
12
Senhores de engenhos e comerciantes bem-sucedidos eram irmãos da Ordem III de São
Francisco do Recife nesse momento vivido por Pernambuco e o Recife.
119
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ru ral em tese. Na Bah ia, isto n o fin al do sécu lo XVIII e n o século seguin-
te, algum as casas p od em ser iden tificad as com p alácios p ortu gu eses, m as
são casos raros. O mesm o se pod e d izer d a capela.
MOBILIÁRIO E IMAGINÁRIA
desejado
interior dapela gente e os
casa-grande seumóveis
tempo.desse
Ainda em Pernambuco
tempo de mudanças.engenhos guardam noo
Assim destacaríamos
Engenho Giapió, o Morenos, o Novo da Conceição e finalmente o Engenho Mattas.
O mobiliário aí encontrado é de gosto Eclético e foram fabricados no Recife, a exem-
plo, os de Julião Berangèr, ou adquiridos na Europa através de Catálogos dos fabri-
cantes. Pode-se encontrar nesses engenhos, isolada, alguma peça mais antiga, esca-
pada da sanha de modernidade, porém a maioria dos móveis é de tal momento de
importações em larga escala desde o Velho Mundo. Os jornais atestam tal situação
em informações diárias.
Qu anto à capela, esta também, no seu interior, acomp anh ará tais mudan-
ças artísticas. Aquelas onde as talhas eram de feitio notáveis perm aneceram sem
alterações. Outras, cuja simplicidade do altar exigia renovação, passaram a ser deco-
radas com retábulos de alvenaria e estuques decorativos de relativo bom gosto.
A imaginária de todas essas capelas de engenho era de grand e valor. Qua-
se tudo se desviou d e lugar e p arou n a mão de antiquários ou colecionad ores. A
decadência ou desaparecimen to dos engenh os levou a tal dispersão13. Peças exis-
13
Com o surgimento no século XIX dos engenhos centrais, depois das usinas, fontes de maior
capacidade produtiva do açúcar e que refletiam um capitalismo concentrador, onde o poder
restava nas mãos de pou cos, ao qual se somou um a prod ução mecanizada p elo desenvolvimento
das máquinas a vapor, se terá de considerar no sistema então existente, havia a necessidade de
mais cana p ara moen da. A forma d e resolver tal problema foi se adquirir ou arrendar engen hos
à volta. Eles passaram a ser apen as lugares de plantio. Quand o tal aconteceu nessas propriedades
rurais, desmontou-se aquele modelo consagrado. As Casas-Grandes deixaram de abrigar os seus
antigos senhores e as capelas serviram para outra gente ou deixaram de ter usuários. A decadên-
cia de tais construções foi inevitável. Por outro lado, com a libertação dos escravos, nem toda a
senzala se manteve com os seus moradores. Na maioria dos casos os velhos engenhos passaram
a ser coisas do p assado e dependen tes de u ma cultura representativa dos temp os decorren tes e
relacionados com os novos senhores rurais, os usineiros. Estes talvez não integrados ao que
eram p ara aqueles antigos senh ores os engen hos. A morte d o engen ho foi também a d e um a
cultura a ele interligada. Passou tudo a ser páginas viradas e esquecidas de álbuns de família.
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tem, mas elas nem sempre estão onde deveriam ser alvos de d evoção. São peças
de decoração de casas urbanas. A rica variedade dos santos representados e a
notável execução levam as autorias para bons santeiros de Pernambuco ou de
Portugal. Muitas
proprietário. vezes
Assim estãoo assinalados
engenho associou
vários seu
delesnome ao santo
em mapas de devoção
holandeses do
do sé-
culo XVII da Capitania de Pernambuco e demais desenhadas pelo cartógrafo
J.Vingboons em c.1665.
AS SENZALAS
terraço, cuja
ral, corria cobertadeera
à frente sustentada
dois pequ enosp or colun asinterligados
cômodos de alvenaria,emdeseqü
um ência.
modo São
ge-
longas construções que em alguns casos, qual no Engenho Monjope, em
Igaraçu, formavam simetricamente o terreiro à frente da casa-grande e da
capela. Nesses dois cômodos, em princípio, vivia uma família. Era coberto o
grand e corpo com um telhad o em duas águas que vinh a do terraço aos fun -
dos da parte mais longa. Poucas variantes existiam desse modelo consagra-
do. Singu larmen te o Governad or N assau fez u so dessa forma de abrigar fa-
mílias de colonos p obres em algum as quad ras da Cidad e Maurícia, a se acre-
ditar ser verdadeira representação da realidade a pintu ra de Frans Poste exis-
tente em Potsdam , na Aleman ha.
121
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difícil seria a proximidade do m ar que tam bém p oderia ser útil ao transporte
do açúcar. Preferiu-se como forma inicial e imediata a primeira solução. As-
sim as datas de terras doadas ficavam junto aos rios existentes próximos a
Olinda e ao portodedos
Ela era resultado arrecifes. A cuja
sistematização teia base
começou
lógicaa era
se organizar
bem fiel à lentamente.
nova razão,
esta talvez resultante de um mundo mercantil nascente.
CONCLUSÕES
O conjunto fabril, os engenhos numa designação genérica, eram verdadeiros
complexos em termos de números de ed ificações e, entre elas, as Casas-Grandes
constituíam obras-primas de arquitetura rural sobre as quais um escritor che-
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nh
do or de engenho
século em Pernambuco
XIX, numa nos primeiros
de suas viagens anos
nos informa
sobre a quantidade de doces e bolos que lhe foi ofe-
recida após uma refeição, dita ligeira! O prazer da
sobremesa passou a ser o de toda a hora e a perdição de quem n ão deseja engor-
dar. Desde finais da Idade Média, os cremes de leite, frutas secas no mel, por
confiture, reinavam no dessert ; levantar, desservir, o derradeiro serviço sobre a
mesa, hora amável e leve da despedida gentil. Não apenas os mais diversos
doces seriam subprodutos da cana-de-açúcar, outro é a aguardente. A aguar-
dente, destilada da garapa ou do mel, possui no Brasil projeção econômica e
presença na Cultura Popular como outro líquido da mesma origem em qual-
quer paragem d o Mund o. Ou tro produto aind a hoje de grande predileção é a
rapadura. A rapadura teria vindo das Ilhas espanholas.
Outro aspecto de interesse na p rodu ção do açúcar era a festa da Botada, o
engenho passava a ser um pátio de feira. Os escritores sobre tal momento da
prod ução escreveram belas páginas.
Nos engenhos a capela tinha função de grande interesse. As missas e as
festas das padroeiras dessas capelas traziam mu ita gente d o redor para o terreiro
da casa-grande, onde os festejos eram variados. Depois esses foram deslocados
para os povoad os com êxito. O Pastoril, auto do N atal e vivido com intensidade.
As capelas o lugar onde na riqueza das talhas estava espelhado o pedido de
perdão do d ominador em termos do males causados aos dominados. Que todos
rezem uma Ave-Maria e um Padre-Nosso para esse pecador, assim dizia a inscri-
ção de uma sepultura magistral. Ricas capelas, ornamentadas pelos melhores
artistas constituem um dos melhores atrativo dessa civilização do açúcar.
Será que tudo se desmanchou no ar?
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RELIGIOSIDADE
FÉ, FESTA & COTIDIANO
NAS TERRAS DO AÇÚCAR
Raul Lody
antropólogo, museólogo e ensaísta
Navegar é preciso
Crer, também é preciso
Raul Lody – paráfrase de Fernando Pessoa
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Raul Lody
Crer é re-ligar, juntar, trazer, unir, fazer com que o homem consiga entender por que
nasce, por que morre, por que encontra nos símbolos mais ancestrais e fundamentais
seus sentimentos de pertença, de singularidade, de alteridade.
homem. É necessário
É necessáriojustificar a criação
criar mitos, deuses,do mundo,
santos, do
orixás,
seres diferenciados das relações físicas, carnais, essenci-
ais, como buscar abrigo, comida, afeto, lúdica, jogos,
regras e hierarquias para sistematizar papéis sociais, lu-
gares de homens, mulheres e crianças.
Trazer o amplo conceito de religião, aqui melhor
situado na compreensão de religiosidades, é trazer prin-
cipalmente a história, a sociedade, a cultura nos seus mais dinâmicos processos de
trocas, de permanências,
tados nos cotidianos, node transformações,
tempo das festas, de
naspatrimônios, de acervos
casas, nas ruas, experimen-
nos templos, nos
santuários, nos terreiros.
Assim, olhar para as manifestações da religiosidade de maneira generosa e não
preconceituosa é um dos papéis da ação turística, dando valor, reconhecendo e res-
peitando a diferença e o direito a essa diferença.
A FÉ A PARTIR DO AÇÚCAR
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Atlântica, gerando
tema tão bem processos
tratado de profundas
por Gilberto Freyre emtransformações
Nordeste, livronoemmeio
que,ambiente;
pela pri-
meira vez em língua portuguesa, se publica o conceito e a palavra ecologia.
Ecologia e cultura formam um dos mais importantes eixos da obra de
Gilberto para interpretar o n ordestino, especialmen te o pern ambu cano, se-
gundo suas teorias de uma ciência por ele chamada de tropicologia.
Os vários estilos de ocupar as terras do açúcar são assentad os na fé, nas
religiões, criando devoções interpretadas na crença multicultural em santos,
orixás, no Deus do olhar judaico, nos mitos indígenas, em Alá; e, mais, por
convivências e conivências decorrentes d os contatos com os h olandeses (sé-
culo XVII), no calvinismo; ou em muitos outros sistemas religiosos, por in-
termédio dos imigrantes do Oriente, libaneses, por exemplo.
A fé agrega e compõe identidades – no caso da saga do açúcar, dos
engenhos às cidades, constata-se um rico patrimônio partilhado e vivenciado
por milhões de n ordestinos, de brasileiros de ou tras regiões e de estran geiros
que estão no Nordeste.
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Raul Lody
14
Santos em madeira e barro são fortes expressões do artesanato tradicional de Pernambuco,
Paraíba e Alagoas, reunind o centenas de hom ens e m ulheres que se d edicam a trabalhar tem as
religiosos que afirmam iden tidad es portu guesas, aquelas imp lantadas quan do do longo processo
do plantio da cana-de-açúcar e da fabricação de açúcar. Assim, santos da fé de além-mar são
rememorizados no trabalho familiar, de comunidades que se distinguem com a produção de
imagens de Santo Antônio, São João, São Francisco, São Sebastião, Nossa Senhora do Carmo,
Santa Luzia, Santo Amaro, Sant’Ana, São José, entre outros.
As comu nidades de Goiana e de Tracunhaém , em Pernam buco, são reconh ecidas pelos santos
feitos de barro, e a de Ibimirim pelos santos feitos de madeira.
Ainda pintores, gravadores, fotógrafos e outros artistas têm na vasta imaginária católica seus
temas preferenciais para interpretar e trazer estéticas que aproximam e justificam o sagrado do
homem.
15
Exemplos magníficos da arquitetura sacra católica são visíveis nas igrejas, nos claustros dos
conventos, nas capelas dos engenhos, nos altares internos de algumas casas patriarcais, aproxi-
mando sempre o santo, a devoção ao caráter e à fé de uma família, de um estilo próprio de crer
constru ído n o p rocesso mu lticultural da civilização d o açúcar.
Altares e retábulos entalhad os em madeira de lei, matéria-prima abun dante d a Mata Atlântica;
recobertos de folhas de ouro. Arcos romanos, colunas salomônicas, todos repletos de volutas,
cachos de uvas, pássaros e outros motivos decorativos confirman do nosso barroco tardio do final
do século XVIII estendendo-se ao XIX. Ainda alguns ambientes em barroco rococó convivendo
com o n eoclássico das fachadas, das colun as, dos altares, trazendo novos usos dos estilos dórico,
jônico e coríntio. Azulejos bicromáticos – azul e branco –, expressiva cantaria, pedra trabalhada,
jun tos oferecem um a arte d evotada a Deus. Igrejas do Recife, Goiana, Igaraçu, O lind a, Pernambu co;
igrejas em João Pessoa, Paraíba; igrejas em Penedo, Alagoas, são testemunhos vivos da opulência
comercial do açúcar no Nordeste brasileiro
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Recife, ou os
originários dasmuitos grupos
áreas dos de maracatus
canaviais de da
na zona baque solto
mata. ou maracatus
Esses vêm,
maracatusrurais
das irman dad es religiosas de hom ens negros e pard os, reun ind o grande qu an-
tidad e de escravos e libertos nas igrejas dedicadas a Nossa Senhora d o Rosá-
rio, São Benedito, Santa Ifigênia, Santo Elesbão, entre outros. Reunindo-os
para relembrar os reinados do Congo, base dos maracatus e de inúmeras
outras m anifestações, como cambind as, pretinh as do congo na Paraíba e as
taieiras de Alagoas.
Cabe, nos maracatus d e Pern ambu co, destaque para as calungas, bone-
cas feitas de madeira e que representam os orixás Iansã, Oxum e Xangô,
fazendo uma extensão no carnaval da religiosidade dos antigos e tradicio-
nais terreiros, como o Obá Ogun té Seita Africana Obá Om im – popularmen -
te conhecido como o Sítio ou Sítio de Pai Adão, no Recife.
Em âmbito afrodescendente o sagrado é amplo e convive de maneira
interativa com as festas, a do carnaval incluída.
Contudo os muitos terreiros que estão nas terras do açúcar têm prin-
cípios ecológicos fortemente fundamentados nas próprias tradições de po-
vos africanos, respeitand o e valorizand o a natu reza 17.
16
Só comparáveis às escolas de sam ba do Rio de Janeiro em variedad e e espetacularização são as
centen as de quad rilhas jun inas, fenôm enos d e m assa, organizadas em associações, agregand o
outros ritmos regionais e tradicionais, como o baião, o coco, o forró, resultando em dinâmicas
coreografias e indum entárias criativas e revitalizadoras do imaginário nord estino, aind a que com
base nu m conjunto de danças francesas do século XIX.
17
Árvores monumentais marcam os espaços afrodescendentes nos terreiros e em outros locais,
traduzindo maneiras de se relacionar com a natureza, manifestando sensibilidade ecológica e
inclusão no sagrado do verd e das plantas, das águas dos rios e do mar, dos animais e, conseqüen -
temente, do homem.
Destaca-se o terreiro Obá Ogu nté Seita Africana Obá Omim, preservand o centenária gameleira,
árvore sagrada dessa comu nidad e reconhecida como patrimônio cultural d e Pernambuco, rece-
bendo tombamento no ano de 1983.
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Raul Lody
SemanaEm meiorepleta
Santa, às festas
de emanifestações
aos ciclos religiosos docomo
públicas, Nordeste, retomemos
procissões a anunciada
teatralizadas, cor-
tejos que relembram a fé medieval, profundamente alegórica; além de celebrações
nas casas, mantendo o costume de uma culinária à base de coco: arroz de coco, feijão
de coco, bredo ao coco, bacalhau ao coco, mungunzá, entre outras delícias de ver e
de comer18.
O sábado de Aleluia culmina um ciclo, anunciando a reabertura dos terreiros,
geralmente com festas dedicadas a Ogum, orixá guerreiro, sendo interpretado no
processo do sincretismo como São Jorge, um dos santos mais populares, juntamente
19, 20, 21.
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muitos terreiros do Nordeste realizam rituais públicos nas praias, com o oferecimento da panela
– uma panela de barro, comidas, perfumes, fitas e muitas flores lançados ao mar. No litoral do
Recife, destacam-se as praias do Pina, Boa Viagem; em João Pessoa, as praias de Manaíra e Cabo
Branco, e, em Maceió, as praias d a Pajuçara, Ponta Verd e, como principais locais das festas públicas.
Ainda no mês de dezembro, as festas do Ano Novo, também nas praias, integram-se às
manifestações de religiosidade afrodescendente.
22
Ex-votos – manifestações especialmente visuais e que retratam o milagre, a ação divina na vida do
homem. No Nordeste, especialmente nas terras do açúcar, vê-se ampla produção de objetos ex-
votivos, especialmente entalhados na madeira, de forma e estética fortemente afrodescendente. Luís
Saia, que acompanhou Mário de Andrade nas suas missões de pesquisas na região, destaca o traço
africano, herd eiro da estatuária e das máscaras da África Ocidental presentes nas soluções estéticas de
cabeças e outras partes do corpo humano, exemplos das memórias e das criações do Nordeste. Além
das esculturas de madeira, há outras, de barro e de diferentes materiais, com os chamados riscos de
milagres – pinturas, desenhos – dos quais é excelente exemp lo o conjunto de três pinturas sobre tábuas,
retratando as ações divinas de S. Cosme e S. Damião, protegendo a população de Igaraçu; acervo do
museu-pinacoteca do Convento de Santo Antônio, naquela cidade de Pernambuco.
Os ex-votos são formas artísticas da religiosidade nordestina apresentando-se, geralmente,
em conjuntos de centenas de objetos, vistos em igrejas, capelas, santuários de estradas e outros
locais que marcam devoção a diferentes santos, profetas, mitos criados na região, como Padre
Cícero, entre outros.
As técnicas empregadas no entalhe são as mesmas realizadas para a feitura de bonecos do
mamulengo, expressão do teatro d e man ipu lação da região.
23
O amplo e variado conjunto de objetos que fazem a cultura material dos terreiros de Xangô, de
Jurema e de outras expressões da religiosidade afrodescendente e afro-indígena pode ser visto e
comercializado em barracas no interior do Mercado São José, no Recife – ervas, instrum entos musicais
de percussão, destacand o-se o adjá, sineta d e metal de uso litúrgico nos terreiros, fios-de-contas (colares)
e demais peças da joalheria ritual, além de amplo conjunto de modelagem em gesso policromado.
É sem dúvida um importante acervo de arte de base etnocultural de matriz africana, além das
presenças ind ígena e católica, todas reveladoras de estilos e manifestações próprias das terras do açúcar .
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AÇÚCAR NO TACHO
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Açúcar no Tacho
grinação, de um a oca a outra, bebend o tud o que lhes fosse servido. Durante
a noite inteira cantavam e dançavam entre fogueiras. Até a exaustão. “Be-
bem sem comer e comem sem beber”, escreveu Câmara Cascudo ( História
da alimentação
bebidas no Brasil, trouxe
que o português 1983). com
Depois
ele, passou a concorrer
para o Brasil colôniacom asfermen-
– um poucas
tado (vinho), um destilado (bagaceira) e sangria (mistura de vinho, água,
açúcar e rodelas de limão). Para os nossos índios, essas bebidas, vindas de
tão longe, eram “cauim-tatá” (bebidas de fogo).
Negros da África Oriental e Mediterrânea conheciam bem o açúcar –
prod uzido com canas plantad as nessa região por árabes, que as trouxeram
da Índia. Mas não os escravos que por aqui chegaram, todos vindos d a Áfri-
ca Ocidental (Angola, Guiné, Gana). Também eles usavam mel na prepara-
ção de suas
quando receitas.
já havia A canano
começado, só Brasil,
se popularizou,
o ciclo daali, a partir doForam
escravatura. séculoaqueles
XVI –
árabes, bom lembrar, que desd e mu ito antes difun diram o mel pela Europa,
ensinando como usá-lo na preparação de bolos e doces. Em Portugal as col-
méias tão importantes eram que, por segurança, acabavam cultivadas sem-
pre p erto d as casas. Havia “meleiros” – que retiravam o favo das colméias; e
“apicultores” – que viviam de vender o m el. No reinad o de D. João III, tanto
prestígio tinh am que até imp ostos pod iam ser pagos com ele.
Os mosteiros se tornaram, por essa época, grandes produtores desse
mel – usad o en tão, especialmen te, para p reparar sobremesas e fabricar ve-
las. Havia neles fartura de tud o, em razão d as heran ças deixadas p or famílias
ricas ou por pecadores interessados na redenção de suas almas. Como D.
Maria Francisca Isabel, filha do rei D. Pedro II – o português, claro. Que o
Pedro II brasileiro, filho de D. Pedro I (que em Portugal era Pedro IV), não
foi nunca rei na terra em que morreria velho e triste. Conta-se que essa
princesa chegou a pagar a fortu na de 1.200.000 réis por 12.000 missas a serem
celebradas após sua morte. Dada tanta opulência, ou pela origem nobre de
freiras edu cadas no requinte da corte, nesses mosteiros se faziam banqu etes
que em nada lembravam o rigor próprio das regras monásticas. Foi assim,
especialmen te d o reinad o d e Dom Afonso IV, “O Bravo ” (início do século
XIV), até o fim da Inqu isição. Em decreto de 19 de d ezem bro d e 1834, ainda
no reinado de Dom Miguel I, “O Absoluto”, o ministro Joaquim Augusto
Aguiar aboliu as ord ens religiosas e confiscou seu s patrimôn ios. Além d e ter
ratificado a expulsão d os jesuítas, de 3 de setembro d e 1759, e a extinção da
Ord em, em 21 de julho d e 1773; passand o a ser por isso conhecido como “o
Mata-Frades”.
A nós chegaram receitas de bolos e doces que, em Portugal, continua-
vam send o feitas com mel d e abelha. Como o bolo d e m el e o folhad o com
mel. Ou como o alfenim, pelo povo mais conhecido como alfeninho – do
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to se puxa
acabou com as mãos
conhecido comoaté embranquecer. Por conta desse jeito de p rep arar,
“puxa-puxa”.
À Europ a o açúcar ch egou , oficialmen te, só n o século XV. Por m ãos
mouras. Transportado em caravanas terrestres que vinham da Ásia para os
portos d e Veneza e Gênova, daí seguind o pelo resto do continen te. Mas há
registros esporád icos da presença desse açúcar bem antes d isso, em d ispen-
sas nobres – como as do palácio de D. Dinis I (1279–1325). A princípio, era
usado apenas como remédio – calmante, cicatrizante, digestivo, diurético.
“Entrou no mundo pelo laboratório dos boticários”, disse Brillat Savarin (“A
Fisiologia do Gosto”), em fins do século XVIII, quando afinal se tornou
gastrônomo – depois de ser Juiz de Direito e fugir da Revolução Francesa,
sobrevivendo na Suíça de ensinar francês e violino. Diferente no aspecto de
como o conhecemos hoje, esse açúcar tinha então a forma de cristais gran-
des, irregulares, perfumados, com essências de violeta e limão. Para os por-
tugueses, seria “sal índico” – pela semelhan ça de seu s grãos com o sal mari-
nh o e pela origem d o lugar em que p rimeiro foi produ zido o açúcar, a Índia.
Também conhecido como “açúcar-cande” (ou “Cândi”) – o nome vemo do
sânscrito “khanda”, que os árabes converteram em “qándi”. Naqueles boti-
cários passaram a ser vendidos aind a o “shu rba”, um xarope escuro d e apa-
rência viscosa; e um açúcar em ponto de bala, aromatizado com ervas, co-
nhecido como “bolas de sal doce”.
Aos pou cos, passou o açúcar a ser usad o também p ara conservar fru-
tas por mais tempo. E acabou tomando o lugar do mel, na elaboração das
receitas dos conventos – jun to com a gema d e ovo que ali era entregue pelas
vinícolas. Que do ovo, à época, se usava apenas as claras – para purificar
vinhos e engomar roupas. Açúcar e gema passaram a ser base de todas as
sobremesas. Sendo usad o, aind a, na fabricação de vinhos de m issa e de lico-
res. Com esse açúcar, chegou à Península Ibérica, também trazidos pelos
árabes, outros ingredientes qu e começaram a fazer parte d as receitas de bo -
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Açúcar no Tacho
do nestadeterra,
Afonso a que
Souza, na primeiro
capitaniachamaram Vera Cruz,
de São Vicente. em recentemente
Só mais 1532. Com Martim
vindo
a p úblico registro d a alfând ega d e Lisboa, ind icand o p agamen to d e d ireitos
sobre o açúcar já produzido em Pernambuco desde 1526. Mas o primeiro
engenho oficialmente reconhecido em Pernambuco foi o de Jerônimo de
Albuquerque, instalado no mesmo ano que aqui chegou (1535) – acompa-
nh and o seu cun had o, o donatário da capitania Duarte Coelho Pereira. Era o
“São Salvador”, depois conhecido como “Engenho Velho de Beberibe”. Fi-
cava bem p erto da cidad e de Olind a, em lugar h oje conh ecido como “Forn o
da Cal”. Por ser generosa essa terra, e como em se plantando tud o nela d ava
mesm o, engen hos foram toman do o lugar d a Mata Atlântica nas várzeas dos
rios – Beberibe, Capibaribe, Jaboatão, Una. Dado se prestarem esses rios,
magnificamente, “a moer canas, a alagar as várzeas, a enverd ecer os canavi-
ais, a transportar o açúcar”, descreveu Gilberto Freyre ( Casa-grande & senza-
la, 1933). Depois se espalhou por todo o Nordeste. E assim, como nas pala-
vras de João Cabral de Melo Neto, tud o foi se transform and o “nu m mar sem
navios” formado “pelo anônimo canavial” (O vento no canavial).
Com os engen hos vieram casas-grand es que na arquitetura, por conta
do nosso clima quen te, não foram cópias perfeitas das casas portu guesas do
além-mar. Para diminuir o calor, faziam cozinhas afastadas das salas e dos
quartos – fora d e casa, debaixo d e u m pu xado. Em seu interior havia uten sí-
lios das três culturas que nos formaram. Dos portugueses herdamos
alguidares, almofariz, caldeirões, chaminés “francesas”, fogões, fumeiros,
potes, tachos de cobre; além de objetos de cozinha como formas de bolo em
formatos diversos – coração, estrela, meia-lua, pássaro; mais enfeites e re-
cortes de p apel para adorn ar band ejas (de estanho e p rata). Dos índ ios “jirau”
(mesa feita com varas de madeira usada para preparação e armazenamento
de alimentos), panelas de barro, pilão, “trempe” (tripé de pedra onde se
apoiavam, no fogo, as panelas), urupema; mais cabaça e cuia, por Gabriel
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ta dasPernambuco
escravas. chegou a ser, nos séculos XVI
e XVII, o maior produtor mundial de açúcar. Por
conta d e tanta riqueza, foi se forman do aqui um a
aristocracia qu e Tobias Barreto (1839–1889) chama-
va de “açucarocracia”. Padre Fernão Cardim ( Tra-
tado da terra e da gente do Brasil , 1625) descreveu o
fausto desses engen hos d ecorados com “móveis de jacarand á ou vinh ático,
louça da Índia, baixelas e talheres de prata, lençóis de linho franceses com
monograma, brasões em cima de portais ... a casa cheia”. Dos seus donos,
disse apenas que “parecem uns condes e gastam muito”. Por conta dessa
opulência, foi surgindo, no Nordeste, uma das mais importantes doçarias
do mundo. Com receitas passadas oralmente de mãe para filha – por não
saberem escrever as mu lheres d a época ou p ara escond er seus segredos cu-
linários. Açúcar branco era privilégio das casas-grandes. Com ele se faziam
bolos e sobretudo comp otas, geléias, doces secos e cristalizados – conserva-
dos, por m eses, em p otes de barro verm elho ou em caixas rústicas de mad ei-
ra. Raramen te frutas frescas eram servidas ao natu ral – por temor dos seus
efeitos, na saúde. Às senzalas eram destinadas essas frutas e também caldo,
melaço e açúcar mascavo – de cor escura e cheio de p edras. Esses ingred ien-
tes eram pelos escravos misturados à farinha, de mandioca ou de milho,
formand o um a pasta mu ito apreciada – por seu gosto primitivo e pelo forte
cheiro de álcool. Acrescentando águ a fria a essa pasta, faziam “jacuba” – por
gerações, base d a prim eira refeição do dia. Essa p asta acrescid aca
escravosmais finos.. Também rapadura – “tijolos que podem ser de 5 a 6
polegadas, bastante grossos, com cor, gosto e cheiro mais ou menos do açú-
car queimado”, descreveu Auguste de Saint-Hilaire ( Viagem às nascentes do
rio São Francisco e pela província de Goyaz , 1847). Uma rapadura que, ainda
hoje, é feita do mesmo jeito – com caldo da cana bem fervido e bem batido,
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Açúcar no Tacho
dep ois colocado em moldes d e madeira até que esfriem; após o que, tiradas
das formas, são embrulhadas em papel simples ou palha de bananeira.
Nessas senzalas nasceu também nossa cachaça. A espuma d a p rimeira
fervura d o caldo
em cochos, da cana,
ao relento, parapor n ão ter à ép
alimentação dosocaanimais.
outra serventia, era por
Esse mosto, colocada
conta
do clima quente, fermentava com facilidade. E pouco a pouco, meio por
acaso, começaram os escravos a apreciar suas qualidades. Converteu-se em
bebida, para eles estranha, a qu e chamavam “água ard ente”. O Reino tentou
proibir, primeiro, o consumo; depois, sua própria fabricação. Que a concor-
rência diminuía o uso da “bagaceira” (e o volume dos tributos daí decorren-
tes). Em vão. Nessa briga ten do os nativistas apoio, inclusive, de comercian-
tes que usavam cachaça (e também fumo) como moeda na compra e venda
de
çãoescravos. Acabou
portuguesa. elevada
Bebida à cond içãoNadeRevolução
de patriotas. símbolo dePernambucana,
resistência à d omina-
como
em Can ud os, brind ar com vinh os (especialmente p ortugu eses) ou ou tra be-
bida importada significava alinhar-se aos colonizadores.
Uma parte importan te dessa doçaria está intacta, aind a hoje, fiel a suas
raízes portuguesas. Continuamos fazendo o mesmo pão-de-ló à moda do
Convento dos Amarantes. Bolo-de-bacia, com receita anotada no mais anti-
go livro de culinária de Portugal ( A arte de cozinha, 1680), de Domingos
Rodrigues – cozinheiro de D. Pedro II (o de Portugal, já vimos). Pena que
por aqui não tenham chegado toucinho-do-céu, pastel de Santa Clara, cre-
me-da-abadessa, barriga-de-freira, mimos-de-freira, sonhos-de-freira, nu vens,
morcelas de Arouca e bolinhos de Amor, Ciúm es, Esquecidos, Paciência, Raiva
e Tern ura. Bolo-de-noiva é ad aptação do “panis farreu s” rom ano – comp ar-
tilhado, pelos casais, como símbolo da vida em comum que se iniciava com
a “confarreatio”. No Brasil, esses bolos de casamento têm preparos diferen-
ciados. Os d o Sul usam massa branca e recheios variados. Em nad a lembran-
do aqueles de Pernambuco, feitos com massa escura à base de ameixas, pas-
sas, vinho e frutas cristalizadas – tradição britânica que chegou a bem pou-
cos lugares do Brasil. Tudo coberto com pasta de amêndoa e, depois, tam-
bém com glacê branco. Sendo, por fim, decorado com flores em relevo, fei-
tas de goma e açúcar – um hábito que n os veio d a Ilha da Madeira. Esse bolo
também está presente em outras festas importan tes – aniversário, batizado,
primeira comunhão, noivado e Natal.
Em nosso ambiente foram tam bém nascendo variações desses doces e
bolos a partir de ingredientes novos – amendoim, castanha de caju, coco,
frutas trop icais, man dioca, milho –, adicionad os às velhas receitas de Portu-
gal, até então feitas com amêndoas, canela, cravo, gengibre, noz-moscada,
pinh ões. Usamos também claras e gem as dos ovos d e galinha. Nossos índ ios
não conheciam esse animal, trazido por Cabral quando por aqui passou a
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teve,
às menacrescido de complemento
inas e m oças em homenagem
que os saboreavam – quindim
“de Iaiá”. No colchão-de-noiva, substituímos o
recheio de amêndoa por creme de goiaba, enro-
lando a massa em finas camadas, daí surgindo nosso bolo-de-rolo – em
Pernambuco, com uma delicadeza no fazer que o distingue do rocambole
carioca e de variações dos outros Estados nordestinos.
Mas um ped aço importan te dessa doçaria, cum pre registrar, é autenti-
camente daqui. Veio do desejo de fazer coisas com nossos gostos. Assim
nasceram doces e compotas de todas as frutas da terra – abacaxi, araçá, ba-
nana, caju, caram bola, coco, goiaba, jaca, laranja-da-terra, m anga, mangaba.
Além d a cocada, claro – branca, queimad a, de colher, de cortar, por Gilberto
Freyre considerad a “o m ais brasileiro d os d oces”. Para acomp anhar, queijos
muitos – coalho, do reino (assim se chamando por vir de Portugal) ou do
sertão. Nasceram também biscoitos e bolos variados – de batata-doce,
macaxeira, milho, pé-de-moleque. Em alguns casos, concebidos para home-
nagear m ovimen tos sociais – 13 de Maio, Cabano, Dom Pedro II, Guararap es,
Legalista, Republicano, Santos Dumont. Ou pessoas – Dr. Constân cio, Dona
Dondon, Dr. Gerôncio, Luiz Felipe, Tia Sinhá. Ou, ainda, famílias que os
criaram – Assis Brasil, Cavalcanti. Sem esquecer o Souza Leão, ato exemplar
de rebeldia gastronômica – em que ingredientes europeus foram substituí-
dos p or sabores nord estinos: trigo, pela m assa d e m and ioca; man teiga fran-
cesa “Le Pelletier ”, por aqu ela feita de leite do p róprio engen ho. É receita d e
Dona Rita de Cássia Souza Leão Cavalcanti, casada com o coronel Agosti-
nho Bezerra da Silva Cavalcanti, senhor do engenho São Bartolomeu (em
Muribeca).
Nasceu também a misteriosa “Cartola”, que tem como ingredientes
banan a, queijo d o sertão, açúcar e canela. Sem que se saiba o en genh o onde
foi pela primeira vez produzida, nem quem a inventou. O nome se deve
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Açúcar no Tacho
lho, no começo
próprio Gabriel da colonização,
Soares de Souzaera alimento
( Tratado apenasdodeBrasil
Descritivo animal e escravo.
, 1599) O
confirma
que “portugueses plantam o milho para mantença de cavalos, galinha, ca-
bra, ovelha, porco e também dos negros da Guiné”. A partir desse milho
farto nas senzalas, juntando leite de coco e açúcar, foram nascendo angu,
canjica, mungunzá, pamonha. E, também, um cuscuz muito melhor que
aquele conhecido por portugueses e africanos – por lá feito com farinha de
sorgo, farinh a d e arroz e até farinh a d e trigo.
A doçaria nordestina é resultado dessa mistura. “Com as comidas in-
dígenas e negras iam circuland o as am ostras da d oçaria p ortugu esa”, disse
Câmara Cascudo ( A cozinha africana no Brasil, 1964). Inclusive doces de rua,
de tabuleiro, bombons e confeitos, decorados com papel recortado – muito
mais bonitos que aqueles aprendidos com as senhoras portuguesas. Uma
culinária, no fundo, feita a partir de experiências de ou tros povos; mas, tam-
bém, moldando essas experiências a nossos jeitos de ser. Uma culinária que
resultou ú nica. Criativa, como n ossa gente. Altiva, como n osso espírito. For-
te, como nossa história. Generosa, como nossa alma.
BIBLIOGRAFIA BÁSICA
BELLUZO, Rosa; HECK, Marina. Doces sabores. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
BRANDÃO, Ambrosio Fernandes; MELLO, José Antônio Gonsalves de. (Orgs.). Diálogos das
grandezas do Brasil. 3. ed. Recife: Fundaj/Ed. Massangana, 1997.
CASCUDO, Luís da Câmara. A cozinha africana no Brasil. Luanda: Museu de Angola, Imprensa
Nacional de Angola, 1964.
______. Dicionário do folclore brasileiro. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1988.
______. História da alimentação no Brasil. Vol. I e II, São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1983.
______. Prelúdio da cachaça. Brasília: Editora Adicel, 1999.
FREYRE, Gilberto. Açúcar . 3. ed. Recife: Editora Massangana, 1987.
______. Casa-grande & senzala. Rio de Janeiro: Editora Record, 1994.
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PRIMEIRAS PALAVRAS
passado judaico presente em Pernambuco
de Maurício de Nassau
Trezentos no período
e cinqüenta d o Brasiltenta-se
anos depois, Holand ês.
compreender como se deu a relação da cultura ju-
daica com a estrutura da economia açucareira, bási-
ca na formação do Brasil. Sabe-se que foi significati-
vo o nú mero de engenh os que tiveram o controle de
cristãos-novos e judeus. E que também, as sinago-
gas, enqu anto fun cionavam cland estinam ente, esta-
vam espalhadas pelas ruas da vila do Recife e seus
arredores, mas de preferência eram erguidas nos
engenhos.
Embora os vínculos religiosos e
sociocomunitários daquela população estivessem
desfeitos, a teia cultural mostra-se, até hoje, resis-
tente e un ifica os sobreviventes através de novos per-
sonagens que emergem da clandestinidade, auto-
identificando-se como descend entes dos antigos cris-
tãos-novos. É possível haver uma relação com costumes e tradições de uma
cultura e de um a língu a herd ada d os jud eus espanhóis. No Nordeste do Brasil,
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Tânia Kaufman
Nordeste do Brasil,
desse contexto, é queemaoconsideração
levamos reunirmos asa informações sobre
necessidade de o lastro
dividir de vida
em etapas as
pesquisas sobre o assunto.
Como lembra o genealogista Fábio Arruda, é preciso analisar as famílias
colaterais e seus casamentos; delimitar os acontecimentos correspondentes a
cada homônimo tais como: cargo/atividade que ocupou, lugarejo onde viveu,
quem são os filhos, esposa, etc.; considerar a temporalidade dos dados pessoais
dos principais personagens enfocados; aliar os estudos de Genealogia e Demografia
Histórica para cotejo das informações levantadas. Também é requerida uma revisão
na bibliografia para contextualização na historiografia brasileira e judaica.
Com a identificação dos personagens de origem judaica na história da
Civilização do Açúcar, parte-se p ara a construção do Roteiro Judaico d os Enge-
nhos em Pernambuco consolidando o projeto Novos Produtos, Novas Trilhas: Os
Judeus no Mundo do Açúcar em Pernambuco.
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PASSAGEM
Novo destino
Para contar esta história, é preciso iniciar p or u m breve olhar sobre a m atriz
dos acontecimentos que traçaram o perfil dos primeiros atos para efetivar a
ocup ação das terras recém descobertas. Só então p oderem os entend er a h e-
rança judaica subjacente ao patrimônio histórico e cultural brasileiro com
sua base na econom ia açucareira. Houve u m elo de continu idad e no p ropó-
sito de engajamento dos judeus em todos os ciclos econômicos colonizado-
res. Todos tiveram os mesmos fatores atrativos: as “passagens”, as diásporas,
as migrações compulsórias.
Os p lanos d e Portugal para o p ovoamento e a expansão geográfica no
Novo Mundo, em muito favoreceram a participação judaica nos desloca-
mentos para o Brasil. Primeiro, foi o arrendamento das novas terras a um
consórcio de mercad ores cristãos-novos já em 1502. Afirm a-se que mu itos
desses mercadores, por serem de origem judaica, viam os projetos coloniza-
dores de Portugal como possibilidades de negócios e como lugar de refúgio
para a população ameaçada diante das pressões inquisitoriais.
Depois, em 1504, a política de doação de terras, costeiras e insulares,
atraiu Fernão de Noronha, rico cristão-novo, radicado em Portugal. Datam
dessa época os primeiros núcleos populacionais de europeus, para não dizer,
de cristãos-novos, estabelecidos na colônia como resultado dos acordos dos
consórcios. Segundo Wiznitzer 24 existem documentos que confirm am ter sido
24
WIZNITZER,
Livraria PioneiraArn old. OsEditora
Editora, judeus da
no Brasil colonial. de
Universidade Trad ução
São d e O1966.
Paulo, lívia Krähenbüh l. São Paulo:
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Tânia Kaufman
PRIMEIROS MORADORES
E COLONOS CRISTÃOS-NOVOS NO BRASIL
Fran cisco Antônio Dória26, analisand o a estrutura social da oligarquia agrária no
Brasil, lembra que, em 1530, a população portuguesa era estimada em 1.200.000
indivíduos, período em que se inicia a exploração e colonização sistemática do
Brasil. Destes, 20% eram judeus ou cristãos-novos, alguns procedentes de Castela
e da Andaluzia, expu lsos em 1492 pelos reis católicos, mas os dem ais eram n asci-
dos ou residentes na região lusitana da Península Ibérica.
Considerando esse percentual, é possível afirmar que foi bastante signifi-
cativo o contingente que se deslocou para o Brasil em busca de “passaporte”
para a vida. O principal fator de atração e integração na vida colonial do Brasil
português e do Brasil holandês foram, sem dúvida, as atividades ligadas à cultu-
ra açucareira, pred ominante na época como principal demand a de n egócios do
mercado europeu.
Como se sabe, entre os cinco primeiros engenhos d a Capitania erguidos
com a chegada de Duarte Coelho, o primeiro donatário de Pernambuco em
1535, um deles teve como sócios importantes figuras do cripto-judaísmo do
Brasil quinhentista: Diogo Fernandes e sua esposa Branca Dias, além de Pedro
Álvares Madeira, o provável técnico de produção de especulada procedência da
Ilha de Madeira, então o maior centro produtor de açúcar no Atlântico.
Estas figuras se encaixariam na discussão apresentada por Arnold
Wiznitzer ao citar O liveira Lima n o comen tário sobre os feitores treinados e
os trabalhad ores qualificados trazidos por Duarte Coelho, d a Mad eira e de
S. Tomé para o Brasil – eram “pela maior parte judeus, que constituíam o
25
FURTADO, Celso. Economia colonial no Brasil nos séculos XVI e XVII . São Paulo: Ed. Hucitec e
Associação Brasileira de Pesquisadores em História Econômica.
26
DÓRIA, Francisco Antônio. Os herdeiros do poder . 2. ed. revista e ampliada. Rio de Janeiro:
Editora Revan Ltda., 1994.
151
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luso-brasileiros,
brasileiros seriam32% aos holandeses
d e origem judaica,eque
6% viviam
a judeus. Sem dúvida, alguns
clandestinamente dos
o jud luso-
aísmo.
Muitos mercadores judeus atuavam simultaneamente como senhores de
engenho, e também possuíam criação de gado no sertão. Estavam sempre em
mobilidade entre as diferentes propriedades e também por conta das ligações
com os negócios do açúcar na Europa.
Aparen temen te não se enraizavam nas suas terras conforme comenta José
Antônio Gonsalves de Mello citando relações de 1609 e 1623 que revelam a
descontinuidade na posse dos engenhos na mesma pessoa, em parentes ou em
descendentes seus. Tanto essa mobilidade como a questão das várias identida-
des assumidas pu blicamen te pelos jud eus p ode ser explicada pelas circunstân-
cias que envolviam os familiares que per maneceram em Portugal. Muitas vezes,
na metrópole, eles estavam respon dend o a processos de denú ncias e era preciso
mu dar no Brasil. Desse modo, a sistematização de uma relação de propriedades
merece uma busca acurada.
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Tânia Kaufman
MEMÓRIAS E LEMBRANÇAS
Devemos atentar que a história de uma nação, de uma cidade, de uma região
não é registrada apenas pelo patrimônio material. Ela está também no acervo
imaterial, que expressa as relações entre o espaço concreto e os acontecimentos
do passado. Encontram os a história viva dos vestígios daqueles tempos nos rela-
tos de muitas famílias espalhadas em toda a região.
Eles evocam o uso de objetos e de artefatos de culto ou de uso doméstico,
de costumes
induzidos e de ritos,
os judeus, desvendando
por séculos a formação
de censura do sincretismo
e de perseguição. a que com
Confrontadas foram
as
denúncias registradas, é possível perceber como se desenrolaram os seus cotidianos:
...esteve em casa do ditto Balthesar Leitão hum delles foi sabbado dia de trabalho
no qual sabbado sendo dia de trabalho vio que Ines Fernandes cristaã nova molher
do ditto Baltnesar Leitão se vestio de festa com huã saya de tafeta azul e jubão de
olanda lavado e toucado na cabeça lavado e em todo o ditto dia de sabbado sendo de
trabalho guardou e não trabalho, por que nos mais dias da semana a vio estar com huã
saia de pano fiando
( Denunciações: 106)e no ditto sabbado não tomou roqa nem fez outro serviço algum...
153
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...a minha família, lá em V., não trabalhava no sábado. Tinha gente que ainda
dizia que éramos comunistas. Tinha um costume na minha família de reunir,
várias vezes por ano os familiares que viviam nos arredores de V. Havia uma
valorização
reuniões erammuito grande
na mata, da família.ElaMinha
escondidos. mãecontava
também até contava,
que as que antes,e as
orações
músicas tinham um sotaque diferente. Contavam-se muitas parábolas de Israel.
(I.S.F. mais ou menos 40 anos na data da entrevista).
29
Daniel Breda é mestrando na UFRN e pesquisador do AHJPE.
30
MELLO, José Antôn io Gonsalves d e. Gente da Nação: cristãos-novos e judeu s em Pern ambu co
154
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Tânia Kaufman
seja como declarantes ou como denun ciados. José Antônio Gonsalves de Melo30,
a partir de diversas fontes, estima uma população de 7.000 moradores brancos
em 1584. Consideran do o mesmo total para 1593, quando se iniciou a Visitação
do Santo O fício
tãos-novos, em910
isto é, Pern ambuco, dos 7.000 morad ores brancos 14% seriam cris-
pessoas.
Breda entende a cautela de José Antônio, primeiro porque considera os
cristãos-novos 14% da população porque esta é a percentagem de cristãos-novos
declarantes, isto é, que compareceram à presença do Inquisidor para confessar-se ou
fazer denúncia. Em Pernambuco foram 38 cristãos-novos declarantes. O fato é que
somente o número d e den un ciados cristãos-novos supera em m uito esta marca
e portanto o número total de nomes cristãos-novos registrados no livro é superior ao
de cristãos-velhos, o que acabaria nos dando uma estatística de que a maior parte da
população
Outrobranca de Pernambuco
problema citado pelo em 1593 seria
pesquisador é adeimprecisão
cristãos-novos.
na quantidade d e
engenhos existentes na segun da metade d o século XVI em d iante. Buscando em
Gente da nação (Mello Recife, 1990, p. 8), a respeito de cristãos-novos senhores d e
engenho e a respeito do total de engenhos, ele encontra que no início do século
seguinte esse número aumentou, como se pode comprovar pelas relações dos
engenhos existentes em Pernambuco e Itamaracá em 1609 e 1623.
Dessas relações recolhemos (por ordem alfabética):
155
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Sá, Felipe Diniz do Porto, James Lopes da Costa [Jacob Tirado], João Luiz
Henriques, Leonardo Ferreira, Simão Soeiro e Simão Vaz.
Além d isso, recolhemos das Denunciações... (Recife, 1984) o nome de Nuno
Alvares, citado
[Rodrigues], comoCordeiro,
Estevão senhor deEstevão
engenho, além deFrancisco
Rodrigues, André Pinto, Diogo
Mendes, Roiz
Francis-
co Mend es da Costa, Francisco Pardo, Gaspar Rodrigues, Jacome Lopes, João d a
Rosa, João Diaz o Felpudo, Jorge Thomaz Pinto, Manoel de Andrade e Simão
Fernandes, citados os 13 como lavradores de cana.
Extraímos das Denunciações e confissões (Recife, 1984) uma lista de 35 merca-
dores cristãos-novos:
156
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Tânia Kaufman
PALAVRAS FINAIS
Ao final deste ensaio, retornamos à indagação inicial para apresentar os re-
sultados p reliminares de nossa reflexão visando à integração dessas informa-
ções ao projeto maior que destaca a Civilização do Açúcar:
157
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158
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A MODA COMO
REPRESENTAÇÃO SOCIAL
Fátima Quintas
antropóloga e ensaísta
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SUMÁRIO
A força social da mod a | 163
Bibliografia | 190
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Fátima Qu intas
ral, queGeorg
oscilaSimmel
entre o vai além:
perten ceroutorga ao vestir-se
a um espaço pú blicoo efenômeno
o reveren de
ciartensão cultu-
um conjun-
to de regras estéticas, inconstantes enquanto moda e enquanto exposição estéti-
ca. Com vistas a reconhecer-se nesse grupo, cada um traz a lume demarcações
pessoais através do narcisismo individual. A estruturação das grandes cidades
contemporâneas rende vênias ao narcisismo coletivo, por multiplicar os âmbi-
tos de convergência dos agregados, esses, sensíveis
ao culto da “reciclagem do corpo”. Fica claro que a
moda consigna uma das expressões mais contun-
dentes do sentimento
rimba níveis de adesãode pertença , isto é: o trajo
a um determinado ca-
grupo
ou a vários grup os, um a vez que h á grup os princi-
pais e secundários. Pela forma de vestir as pessoas
se alojam em núcleos diferenciados. A aparência ex-
terna ind ividu al sinaliza o p ertencimen to comun itá-
rio: o cabelo, os adereços, o perfume, o porte, a
ind um entária dizem d e símbolos de ligação que so-
mente reforçam a noção de pertencimento, noção
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autor do século
dido como XIX, é absolutamente
introspecção atual na concepção
individual e extroversão deuma
coletiva de narcisismo, enten-
sociedade que
celebra a valoração do ego, a um temp o, e a valoração da massa a outro temp o.
E não poderia ser de outra forma. A anu lação do eu seria a an ulação do nós. Os
campos sociais nutrem-se da imperiosa permuta do individuo com o grupo.
Um e outro se irmanam na formação do mundo, do micro ao macro.
Em 1931, Edward Sapir, lingüista e antropólogo americano de origem
lituan a, incursiona no estudo da moda e estabelece concepções de m oda, gosto
e costume. O gosto seria uma tendência pautada na sedimentação de valores
artísticos, enquanto que a moda veicularia autonomias comprometidas com a
economia de mercado. Tento explicar: existe uma au tonomia d e estilos – talvez
pela sua própria arbitrariedade –, não existe, entretanto, uma autonomia de
decisões sociológicas. O estilo muda a seu bel-prazer, a sociedade segue-o ou
dele se afasta, o que pode acarretar em uma marginalização dos grupos diver-
gentes. Na verd ade, a sociedad e é um continuum com evidentes compromissos
históricos e antropológicos. Não há como apartar-se dos grilhões que gravitam a
sua esfera, até certo ponto fechada nos circuitos coercitivos e coesivos. Quanto
ao costume, esse mostra-se relativamente estável, com durabilidade mais exten-
sa e men os precária que a moda. O costume corresponde ao ato de vestir-se; a
mod a, ao fluxo desse vestir-se, a depender das estações, da oferta, da d eman da,
da instabilidade do desejo. Desejo no sentido de falta, daquilo que não se tem,
de um sujeito sempre em busca de alguma coisa: no caso, de uma nova roupa,
de um novo adereço, de uma nova aparência. Um sujeito insatisfeito, em per-
manente falta, buscando, buscando, buscando...
A infidelidade às silhuetas serve de calço à frenética permuta e à traição ao
mundo das exterioridades. Traição que se materializa na ordem do que é objeti-
vo, não do que é subjetivo. Esclareço: a traição à moda se dá de maneira incon-
seqüente, sem remorsos e sem culpas, uma traição à margem d o sentimento, de
natureza apenas funcional, ao largo de possíveis arrependimentos. A avidez
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Fátima Qu intas
mutativa não perm ite o mínimo de reflexão. Ela, a mod a, chega para assenhoriar-
se dos corpos sociais e raramente não o consegue. Domina por um período, mas
reinventa-se com autoridade inconteste, sem pedir licença a ninguém. A cada
reinvenção, insere beleza
decantados como aportespadrão.
adicionais
Sãoaos modelos antigos,
as variâncias em algum
que atualizam osmomento
estilos e
provocam o d esprezo pelas passarelas ultrapassadas para enaltecer o manequim
do presente. A moda, pois, resume-se no agora, não obstante o seu efetivo ro-
deio. Dela se esperam renovações iminentes que incitem as pessoas a confiar na
sua exigüidade. Talvez represente o efêmero desejável. É a nova estação que se
aproxima, recriando modelos e estilos; desprezando o que antes parecia aceitá-
vel; ditando outras normas estilísticas sem d ó nem piedade. O m un do da mod a
glorifica a traição com o enlevo de quem espera a primavera, o verão, o inverno,
ofigurinos
outono. emPordia.
entreUmestações, a sociedade
mecanismo capitalista
de parciais envaidece-se
rupturas claras. de ter os seus
O trajo em alta retrata a indumentária sincrônica dominante. Equivale,
assim, ao fato social total enunciado pelo sociólogo Marcel Mauss. E o que é um
fato social total? Um fenômeno que congrega u m leque de representações capa-
zes de traduzir os elemen tos fun dam entais da sociedad e. Imbuído de seus ma-
tizes, o observador estará apto a compreender o intricado da rede sociológica.
Nele, fato social total, reside uma convergência de atitudes, hábitos e costumes
reveladores da lingu agem sociocultural dom inan te. Quand o falo em lingu agem,
faço-o com o intuito de atribuir ao social as estruturas classificatórias –
taxionômicas – de uma possível realidade. Possível por d emonstrar fatos regula-
res, sistemáticos, repetitivos naquele instante em que é alvo de perscrutação.
Importa realçar que a sincronia da m oda se associa à sua circularidade, jamais à
perspectiva histórica, rica em episódios altercados e em significações sucessivas.
O sincrônico equivale ao corte temporal, momentâneo, presentificado; o
diacrônico ressalta a retrospecção dos fatos, isto é, a leitura histórica.
A aparência do sujeito social reproduz as variações que orbitam o sistema
comu nitário. A sociedad e presta mu ita atenção no vestir-se porque dele depen -
de uma série de tópicos que definem as classes e outras categorias responsáveis
pela tessitura social. Vestir-se de acordo com os parâmetros esperados indica, no
mínimo, um equilíbrio de exterioridad es. O ind ivídu o que se amolda às conjun-
turas reais é um ind ivídu o que se integra aos costum es editados pela comu nida-
de. Sem exageros de adaptação. Igualmente sem exageros de inadaptações. Um
ou outro denuncia versões tanto divergentes quanto convergentes e consolida
nichos de acomodação ou de contestação; logo, faz parte do xadrez social.
A moda possui uma natureza circular e espiralada; prende-se a uma mu-
dança periódica de estilo, como já se falou. Vai e volta; circula, mas no seu giro
não retorna com as mesmas feições. Daí a concepção espiral. Nunca inteiramen -
te igual, porém com uma topologia em aclive ou em declive. E obedece a regras que
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Fátima Qu intas
homem
emulaçãoigualmente
da beleza veste-se paraclaras
faz-se com adequar-se ao status
evidências que lhedoé trajo.
no manejo atribuído.
Que A
a
aparência indica um escudo de respeito social, ninguém duvida.
Assim, moda , como uso, hábito ou estilo geralmente aceito, variável no tempo
e resultante de determinado gosto, idéia, capricho, ou das influências do meio.
Uso passageiro que regula a forma de vestir, calçar, pentear etc. Arte e técnica de
vestuário. Fenômeno social ou cultural, mais ou menos coercitivo, que consiste
na mudança periódica de estilo, e cuja vitalidade provém da necessidade de con-
quistar ou manter, por algum tempo, determinada posição social (FREYRE,
Gilberto. Modos de homem & modas de mulher, 2002, p. 17).
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entendia que as mulheres mais inclinadas à adoção da moda são as menos jo-
vens para as quais novos estilos podem beneficiar o inexorável envelhecimento.
Julián Marías, outro grande estud ioso do tem a, afirma que a mod a se alicerça na
inovação. Mais
do contrário nãoainda:
seria na
tranruptura. E confirma-se
smissível. p elo reconh
Só é tran smissível aquiloecimento
que tem social,
apro-
vação do grupo ou de p arte dele. Portanto, a sua viabilidad e dep end eria da
aceitação d os que estão submetidos ou não à ad esão das sugestões apon ta-
das. E interp ela o pensador espanh ol no seu notável trabalho acerca da m u-
lher no século XX: O qu e verdad eiramen te interessa ao hom em e à m ulher?
A reposta aponta na direção da vivência recíproca dos dois sexos, cada um
com uma experiência distinta, com uma perspectiva histórica situada em
mod os de vida dessemelhan tes. Histórias pau tadas, as de m achos e fêmeas,
em culturas
Sabe-semilenarmente construídas.
que com o processo da globalização, visões simplificadoras vêm
ganhando terreno através de elementos uniformizantes ou unissexualizantes.
Entretanto, repetindo Julián Marías, a força psicológica de cada sexo tende a
firmar-se por meio de diferenciações que balizam a moda, bipolarizando apa-
rências femininas e masculinas. O qu e quero dizer com isso: ainda que o merca-
do aproxime a maneira de vestir de ambos os sexos, haverá um sentimento de
iden tidade sexual e existencial que preponderará sobre a tentativa de padroni-
zação. Modos bissexuais perdurarão com a finalidad e de aumen tar os encantos
entre os sexos.
Do que se pode inferir que a m oda contrap õe os sexos; acentua as diferen-
ças; feminiliza a mulher e masculiniza o homem. Constrói “esculturas” de refe-
rência. É mister que para cada sexo haja atrativos específicos que sirvam de
traços distintivos. Em suma, uma das funções da moda é embelezar para con-
quistar não somente degraus sociais, mas igualmente a ambos os sexos mediante
saudáveis descobertas. Cores, tecidos, talhes deságuam em estilos que se ajus-
tam a ap etites diversificados. Homem e mu lher expõem mod elos de roup a que
louvam feminilidade e virilidade. De um lado, os caracteres da fêmea; do outro,
os caracteres do macho. Ambos guarnecidos do invólucro da beleza.
O trajo permeia a vida privada e a pública. Veste-se em casa de maneira
informal e, na rua, de maneira formal. Porém, o paramentar é uma presença
incontestável no ser humano habitante das sociedades ditas civilizadas. Quanto
mais se cobre o corpo, maior o prestígio social. O homem nu grava o estigma da
barbárie. Os escravos andavam d espidos e sequer tinham o direito de ad ornar-
se com dignidade. Vivenciavam a humilhação dos desprovidos de vestes. A
civilização prescreve o vestuário como manto diferenciador. As monarquias tra-
dicionais, por exemplo, excediam-se em roupas, longas roupas, majestáticas,
ostensivas, únicas na sua representação de reis e rainhas, de príncipes e prince-
sas, de cortesãos e áulicos.
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Fátima Qu intas
berrantes ou Do
comunitária. neutros
mais dos tecidosaotipificam
romântico modos do
mais racional; de mais
inserção na hierarquia
agressivo ao mais
tímido; do mais aristocrático ao mais popular. As gradações corresponderão à
intenção do postar-se. A rede sociológica é elaborada em razão das relações
interpessoais. Portanto, convém privilegiar construções culturais sob a hélice
estetizante, de mod o a obter-se o efeito desejado: o de consignar pertencimentos
grupais e o de ratificar posições hegemônicas.
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vida
parammal vivida.
entar-se, Sem avirmínima
deixaram expressão
à tona as dedores
p langentes zelo pou de cuidado
sicológicas. no
Mulhe-
res aban donadas. Qu ase sujas. Perdidas na gordu ra, na obesidad e, no colesterol
alto – proveniente das dosagens desequilibradas dos lipídios, da gula pelo açú-
car, enfim, da alimentação mal balanceada. Sem o élan e o frisson da juventude
que ainda latejava em suas veias.
A mulher européia, diga-se a portuguesa, arruinou-se através de uma
nadificação chan celada, e obteve dividen dos desfavoráveis à sua p ersonalidad e.
A negação surgiu como um meio contu nd ente d e destruição. Ignoran do a esté-
tica do vestir, confinou-se à lassidão de uma malemolência prejudicial ao desen-
volvimento. Na esfera privada, ond e as frustrações poderiam evolar sem med o
de censura, a população feminina branca man ifestou a anulação de si mesma. O
desleixo com a vestimenta remetia a atitudes de acídia e, conseqüentemente, a
fracassos individuais. Diante da insipidez sexual, e conhecedora das clandesti-
nidades do “companheiro” – a mulata foi sua permanente rival –, aceitou
agigantar o cerco da displicência. Cabisbaixa, por entre os corredores frios, lon-
gos, nostálgicos, anuiu a um estágio próximo à flagelação. Não se pode incriminá-
la por esta reação de constrangimento. O espaço privado hospedou graves pa-
radoxos e resumiu o refúgio de um viver mal construído. O pior de tudo era
que, no palco patriarcal, o doméstico prevaleceu; do que se conclui que preva-
leceram as insatisfações femininas.
Se em casa, entre as paredes do solar do engenho, o relaxamen to prep on-
derava, na rua, entretanto, a pompa reinava. E com ares babilônicos. Uma figu-
ração um tanto exótica, no mínimo estranha. Enfeitavam-se, as mulheres, em
demasia. Adereços, jóias, braceletes. Uma verd adeira querm esse de variedade e
riqueza. Porém, um luxo mal combinado. Sem a lucidez necessária. De tudo
faziam para se travestir de d ondocas. Uma coisa é certa: nossas bisavós arrum a-
vam-se exclusivamente para sair, como se tivessem vergonha de sua própria
imagem dentro de casa. Ou de sua silenciosa humilhação social.
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Fátima Qu intas
Na missa, vestidas de preto, cheias de saias de baixo e com um véu ou man-
tilha por cima do rosto; só deixando de fora os olhos – os grandes olhos
tristonhos. Dentro de casa, na intimidade do marido e das mucamas, mulhe-
res relapsas.
de fora. MariaCabeção
Grahampicado
quase de
nãorenda. Chinelo
conheceu sem meias.
no teatro Os peitos
as senhoras queàsvira
vezes
de
manhã dentro de casa – tamanha a disparidade entre o trajo caseiro e o de
cerimônia (FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala, 1966, p. 373).
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A moda brasileira de mulher foi, assim, por algum tempo, uma moda vinda da
França, sem nenhuma preocupação, da parte dos franceses, de sua adaptação a
um Brasil, diferente no clima, da França. Uma moda imposta à mulher brasilei-
ra
se,edesabrasileirando-se
à qual essa, quando de
e, gentes mais altas, dassofrendo
até, torturando-se, cidades principais,
no corpo, teve de adaptar-
martirizando-se
(FREYRE, Gilberto. Modos de homem & modas de mulher, 2002, p. 106).
te obedecidas apor
correspondiam adultos
climas e crianças.
temperados Modas
e frios, longeque
da
tropicalidade do nosso país. A ditadura francesa alonga-
va-se dos perfumes às loções, do ruge aos vestidos, de bai-
le ou de dias comuns, dos sapatos às meias de seda, dos
espartilhos às roupas íntimas... E luvas. Imaginem lu-
vas em um ambiente absolutam ente arredio a tais ade-
reços! Na Belle Époque não se permitia que uma brasi-
leira saísse sem as suas respeitosas luvas. Existiam modis-
tas exclusivas de luvas e chapéus. Não chapéus leves e
apropriados ao sol, mas modelos tipicamente parisienses.
O pince-nez ostentou um dos toques estéticos mais
franceses adotados no Brasil. Homens e mu lheres d ele fizeram uso com o pro-
pósito d e culminar a esbelteza. Nesse Brasil miloitocentista d e fim d e século, o
pince-nez era completado por jóias: trancelim, camafeu, anéis, brincos, broches,
pulseiras... E dentes de ouro como insígnia de fartura econômica. Joaquim
Nabuco, por exemplo, homem reconhecidamente belo e airoso, foi acusado por
seus adversários do uso de pulseira, alfaia pouco apreciada pelos homens machistas
da época. Afirme-se que rara era a esposa de brasileiro rico do fim do século XIX e do
começo do XX que não andasse sobrecarregada de jóias e perfumada da cabeça aos
pés. E quanto às jóias de mulher, a preferência se dava pelos anéis de brilhante,
brilhantes grandes chamando a atenção, broches cheios de brilhante, grandes
também, cordão de ouro com medalha e crucifixo de brilhantes. Havia uma
clara predileção por essas pedras, embora o rubi e a esmeralda ocupassem espa-
ços de distinção. E nessas jóias a cruz referendou o símbolo mais em voga. O
catolicismo abençoou a cultura brasileira em seus mais variados aspectos.
Gilberto Freyre, na sua argúcia em pesquisar anúncios de jornais, anota
mais um relativo às caracterizações de cores para a indumentária feminina, co-
res no mais alto grito de Paris:
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Fátima Qu intas
Para vestidos de passeio, à escolha, cores como “cinzento rato, toupeira, castanho não
muito escuro... resedá, musgo, beige carregado, tijolo, violeta”; para “toilettes de
visita e cerimônia: campagne heliotrópio, cinzento pérola, beige claro, groselha, azul
Sèvres , verde
de baile, e teatro: mordoré
soiréeesmeralda, , rubi
rosa desde escuro,
o tom maisvioleta
suave de
atéParma”; para “toilettes
ao mais ecarregado, azul
celeste, verde água, branco, amarelo canário, marfim, creme, rubi, gris , verde muito
claro, gema de ovo, palha e pêssego” (FREYRE, Gilberto. Modos de homem & modas
de mulher, 2002, p. 141).
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ram-se a essa rigidez. Os homens também, esses com maiores liberdades por-
que, em se tratando da perda da esposa, casavam-se com uma certa rapidez.
Guardavam, assim, um luto ameno. As viúvas, ah, as viúvas!, isolavam-se do
mundo
vezes o real, a entristecer-se
uso do e a lamentar
preto estendia-se o malfadado
aos escravos destino
domésticos, do cônjuge.
considerados Às
mem-
bros sociológicos de uma família brasileiramente patriarcal.
As modistas em voga esmeravam-se em confeccionar vestidos elegantes
de luto. A homenagem do trajo fúnebre patenteou uma aguda demonstração
nos temp os dos nossos antepassados por motivos sociológicos de coesão famili-
ar e de tributo a entes queridos que partiam tão cedo. Para tanto, uma moda
especialíssima: a dos vestidos requintadamente de luto. E depois, requintada-
mente de lutos aliviados, com relevos brancos ou p almas “bordadas a prata”.
Um
adeusluxo
era que se incorporou
eterno. à morte.
Não só: cumpre Aliás,
salientar quesobretudo na morte,
a sociedade porque
patriarcal fez deo
seus mortos ícones inabaláveis, a adentrarem a vida cotidiana com mais vigor
que os próprios vivos. Os mortos comandaram a cena de outrora porque o
prestígio de muitos ultrapassava o “crédito social” dos que ficavam. Render-
lhes láureas era uma forma de conservar um status em perigo. E nada melhor
para manter h ierarquias que veemen tes saud ações ao mund o celestial. De lá, da
esfera inabitada por matéria corpórea, manavam as ordens do cotidiano e, con-
seqüentemente, as ordens da estabilidade hegemônica.
A mulher portuguesa “mesclou” duas vidas. Dois comp ortamentos. Duas
atitud es. A de casa, submersa n a indolência; a da rua, resplendend o formosura.
Maria Graham não se eximiu de revelar o seu espanto em não reconhecer as
mu lheres n os espetáculos públicos, taman ha a diferença entre o estar em casa e
o estar na rua. Adornavam-se não para os maridos, mas para outras mulheres por-
que, na verdade, não ousavam fazê-lo para h omens estranh os, o que d enotava
a ansiedade de demonstrar em público elevados níveis de afortunamento.
Na roupa, projetava-se a situação econômica, que se queria próspera no
ranking do latifún dio monocultor. Enfeitadas d a p orta da rua para fora: nos
teatros, nas festas religiosas, nas praças pú blicas e, ordinariamen te, nos cos-
tumeiros rituais da Igreja.
Somente os olhos não podiam mentir. Denunciavam a cor da tristeza.
O íntimo. O interior. O que ninguém vê. Enganar as exterioridades, muito
fácil. Cobrir-se de preto ou de rosedá, conforme a ocasião, mais fácil ainda.
Embrulhar-se em mantilhas, em véus, em lenços, como representação de
hum ildade e recato, fazia parte do espetáculo. Isolar-se na n obreza dos para-
mentos, um artifício muito utilizado. O que não se podia esconder, aí sim,
não se podia esconder mesmo, era o olhar melancólico. Este presidiu a vida
da mu lher portu guesa. Em todas as idad es, em todos os espaços, em todos os
temp os p atriarcais.
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(...) A julgar por Mrs. Kindersley, que não era nenhuma parisiense, nossas avós
trajavam-se que nem macacas: saia de chita, camisa de flores bordadas, corpete
de veludo, faixa. Por cima desse horror de indumentária, muito ouro, muitos
colares, braceletes, pentes (FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala, 1966,
p. 370).
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no gritoA da moda...
mulher ibérica não se acanhava das suas formas arredondadas,
protuberâncias visíveis, um pendor para o Barroco, não somente no excesso
de adornos como também na anatomia de um corpo ancho de curvas e volu-
mes. Interessante observar que, quand o sinh azinh as, apresentavam -se pálidas,
comendo caldinh os de pintainhos, quase anêmicas, a deixar restos de alimen to
no prato para não parecer famintas ou gulosas. Trancafiadas em camarinhas,
recatadas e longe do sol, das luzes, dos holofotes que porventura a espiassem
em pormenores. Sempre debaixo das sombras, amarfanhadas na insipidez de
uma juventude condenada à perfeição. Santas. Seráficas. Virgens de vida. Um
tipo de beleza doentio, com ares de anjo, corpos franzinos a sugerirem levita-
ções. Após o casamen to – com a garantia de maridos para fecundá-las e sustentá-
las –, as mu lheres engordavam, adquiriam pap adas, assumiam jeito de matron as.
Ancas largas, acentuadamente largas. Bom lembrar que Portugal, em decorrência
da arabização, idealizou a mulher de sangue mourisco através do mito da “moura
encantada”. Uma m oura en cantad a que se avantajava em quad ris amplos e on-
dulantes. E não foi difícil obtê-los debaixo do manto da preguiça e da lerdeza.
Não é insignificante o vocábulo cadeiras ser sinônimo de ancas em portu-
guês. O brasileiro ainda nos dias atuais dá muita importância à região glútea. O
termo cadeiras caiu inclusive no uso popular com múltiplas recorrências a esse
aspecto sensual. Basta reavivar a expressão mulher descadeirada olhada como
deficiente de corpo, ou mulher de quartos caídos. Recorde-se que D. Ana Rosa
Falcão, a célebre mad rinh a de Joaquim N abuco, por ele tão m aternalmen te ama-
da, era uma mulher bastante corpulenta.
O homem patriarcal igualmente cobriu-se de modos especiais: o do cha-
ruto e o do rapé, por exemplo. O charuto o embevecia, após o almoço ou jantar,
com licor para acomp anh ar as tragadas ou mesmo para molhar o fum o no líqui-
do aromático. E o rapé? Este foi um modo p redom inan temente masculino. Ra-
pés guardados por homens em requintadas bocetas – sinônimo de caixa em
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da
gouinação. Freyre demonstrou,
a ser “feminino”, taman ha com originalidade
a manifestação ímpar, que
de apuros esse homem
de vaidad che-
e. Cuidava-
se em d emasia ou descansava em d emasia: mãos delicadas, pés aman had os com
assiduidade, cabelos com brilhantina, bigodes lustrosos, barbas talhad as, enfim,
tratos exagerados que lhe conferiam um perfil mais feminino que masculino. A
lassidão em que vivia não lhe possibilitava uma musculatura desenvolvida. A
lerdeza, a languidez, a inércia triangulizavam um a bandeira favorável à anato-
mia debilitada. Quan do jovens, corpos franzinos, que se moldavam à imagem
de mulher. A pele macia misturava-se a características de sexo frágil. As diferen-
ças entre homem e mulher, no período patriarcal, subscreveram hiatos mais
sociológicos que biológicos. O reforço às desigualdades culturais serviu para
cristalizar as idealizações de fragilidad e e de virilidade. Mas a essência anatôm ica
do hom em mostrou-se debilitada, em conseqüência de sua inap etência às ativi-
dades físicas. As regalias sociológicas responsabilizaram-se, outrossim, em
masculinizá-lo através de um machismo autoritário e implacável. O certo é que
a “feminilidade adquirida”, nos idos da bagaceira – salvo nas sinhazinhas –,
pou co foi detectada. O mu nd o sociocultural hau riu excelentes aromas de arro-
gância nesse homem, homem até debaixo d’água.
(...) O homem, no Brasil rural patriarcal, foi a mulher a cavalo. Quase o mes-
mo ser franzino que a mulher, debilitado quase tanto quanto ela pela inércia e
pela vida lânguida, porém em situação privilegiada de dominar e de mandar alto
(FREYRE, Gilberto. Sobrados e mucambos, 1981, p. 101).
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calçasAs mucas,
bran dande
çasinfluên
na indcia
uminglesa.
entária Depois,
masculina começaram
o terno p erd e op or baixo:
colete empelas
bora
não altere a sua terminologia triádica. As casacas – que se derreavam até os
joelhos – diminuíram e foram obtendo contornos mais leves. De um modo
geral, as alterações no trajo masculino são men os ousad as do qu e as do femi-
nino. Este ponto merece questionamentos. Pelo menos deixo uma indaga-
ção: Por quê?
Pode parecer estranho, mas uma moda feminina muito corrente nos
séculos XVIII e XIX era a do ban ho d e rio. O exotismo não estava n os banhos
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ção hierárquica
Formas tão fortealfaiadas
elaboradíssimas, que seuscom
estilos extravagantes
pentes, atingiramgrandes
coques volumosos, o esquisito.
tran-
ças. Facho d iferenciador, a beirar o caricatural. Os próprios nomes indicavam o
viés pejorativo: tapa-missa, trepa-muleque... A cabeça sinalizou um ponto de
distinção. Cobri-la traduzia-se em perda de autonomia: um manto humilhante
com estereótipos de inferioridade e posições excludentes. Assim, mãos delga-
das, pele fina, compleição suave, estilo de cabelo denunciavam o repouso, a
desídia, a folga, só permitidos à senhora de engenh o.
A moda ajudava a exaltar conceitos impregnados no imaginário coletivo.
O homem de barba, o homem sem barba, a mulher de cabelo comprido, a de
cabelo curto arrematavam os ideais do grupo dominante. A barba tanto signifi-
cou na pirâmide patriarcal, que um galã de teatro – já no final do Segundo
Reinado – foi estrondosamente vaiado quando apareceu no palco sem barba
nem bigode. A força de quem determina os padrões normativos infere
conceptualizações de gênero e de classe, definidas em polimentos selecionados
como referenciais de legitimidade. O indivíduo, homem ou mulher, precisa
chancelar a sua identidade e a sua cidadania para enaltecê-las segundo a lógica
da sociedad e na qual se insere.
A mulher portuguesa obedeceu a caprichos que provieram não somente
do gosto masculino como do concerto patriarcal, um e outro a destilarem for-
mas de indumentária. Vestir adequadamente, para diferenciar status e aumen-
tar as distâncias sociais. No fim do século XIX, o francês Max Leclerc, em suas
Lettres du Brésil (1890) registrava a p ouca presença das senh oras nas ruas, isto já
durante a República brasileira. Mulheres em casa, a serviço de seus maridos.
A aparência fortalece as desigualdades e robustece o fosso entre ricos e
pobres. Seguindo os princípios da ostentação, a mulher branca fazia uso de
recursos estéticos com o objetivo de dividir classes e reforçar a sanfona da
hegemonia. Sentia-se gratificada sob a capa do desejo dos que a olhavam.
Porventura seus maridos?
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Em O Carapuceiro (Recife, 1843), dizia o Padre Lopes Gama que (...) “As
nossas sinhasinhas e yayás já não querem ser tratadas senão por demoiselles,
mademoiselles e madames. Nos trajes, nos usos, nas modas, nas manei-
ras, só se approva o que é francez; de sorte que não temos uma usança, uma
prática, uma coisa por onde se possa dizer: isto é próprio do Brasil” (FREYRE,
Gilberto. Sobrados e mucambos, 1981, p. 102).
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rio absoluto
gosto das ou
africano, arianas
seja, ealheios
cobriam-se com pan
às normas da os, quaseocidental.
beleza semp re estampados ao
A competição
entre portuguesas e negras deveria ser evitada a qualquer custo. Na qualidade
de subalternas, o ostracismo impunha-se-lhes como uma luva, um imperativo
exterior qu e gotejava do regime escravista. Não foi à-toa a discriminação. A rou-
pa sempre serviu de instrumento de validade de poder e de estigma de exclu-
são. Plugadas pelos lustros da ordem vigente, as mulheres lusitanas respalda-
vam-se mais uma vez em critérios distintivos.
Sob o crivo da escravidão, a negra não escapou das modulações
inferiorizantes d o trajar. Paramentava-se com roupas “desden hosas”, isto é, com
roupas indicadoras da situação de subalternidade. Usava turbantes ou lenços
na cabeça, porque tais adereços referendavam estereótipos estigmatizantes.
Cobrindo a cabeça, ela cobria a liberdade e respondia à expectativa social: a de
enquadrá-la na real postura de sujeição. Ao menor lampejo de desobediência, a
norma editada falava mais alto. O ocultar a cabeça tinha um significado impor-
tante, por predispor o rótulo representativo de pessoas sem prestígio. Cabelos
comp ridos e bem hidratados para as portu guesas. Reservavam-se o direito, como
senhoras de patriarca, de alardear belos pen teados, contanto que prevalecesse o
destaque da fidalguia – os cabelos eram repuxados para trás em exagerados
coques e conferiam ao rosto um a moldura nem sempre em belezadora, mas su-
postamente requintada. Todos os esforços valiam a pena na tentativa de fortale-
cer o culto à estereotipia feminina e à divisão de classes sociais.
Um preceito a mais sobrelevava a liturgia da submissão africana: escon-
der os cabelos debaixo de lenços ou turbantes... Requisito que acusava o status
inferior de cada uma. As mu latas, na saudável ambição de ascend erem e de se
confundirem com os figurinos da branca, reagiram a este sinal de expurgo soci-
al. E já se sentiam libertas, quando se independentizavam da cabeça coberta:
uma mancha agregadora de sintomas de humilhação. Ainda hoje, do cobrir a
cabeça latejam interpretações do passado. Na zona rural do Nordeste brasileiro,
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é muito comu m o hábito de usar lenços nos cabelos, a evocar chapéus proteto-
res, expressão de pudor e de recato, principalmente entre camponesas que se
retraem à medíocre situação de marginalidade. Ademais, há o estereótipo nega-
tivo do chamado
preconceitos. ruim,seque
cabelonão
O p ixaim agregou du
enquadrava narante
escalamuito tempo
do belo um enxame
e deveria de
ser escon-
dido ou alisado para alçar os parâmetros estéticos perseguidos pela sociedade
aristocrática ou burguesa. Quem tivesse o seu cabelo “brigado com Deus” –
expressão típica de desdém –, que tratasse de reabilitá-lo; do contrário, estaria
expondo-se ao ridículo ou, pelo menos, infringindo os moldes já legitimados.
Hodiernamente, os conceitos foram-se modificando com a explosão da
ideologia negra. As nominações pejorativas persistem, ainda que mitigadas pe-
las correntes defensoras do naturalismo e da beleza espontânea. Registra-se na
culturaParece
brasileira
que um enaltecimento
no cabelo ou, pelodos valores
menos, africanos,
na cabeça, etnicamente
leia-se negróides.
no alto, sedimenta-
se a graduação do poder. Basta recordar as Monarquias com os seus símbolos
bem patentes: coroa, cetro, bastão. Mas coroa em primeiro lugar. Os toques
elitizantes começam pela cabeça, como prêmio ou galardão d e recompensa. Gló-
ria, honra, distinção; cimo, cume, topo. A exuberância de uma bela cabeleira, ou
o excesso de demonstração de vestuário indicava categorias nítidas de classe.
Exibicionismo ou retraimento.
A própria Igreja Católica recomendou, durante muito tempo, o uso do
véu para expressar humildade no louvor a Deus. De cabeça coberta, as fiéis
solidarizavam-se num a atitude de respeito ao divino. Um sinal de pud or, como
se a cabeça coberta explicitasse o reconhecimento público da reverência. O véu
teve até pouco tempo sua representatividade, e ninguém entrava na igreja de
cabeça descoberta. Ninguém, não; diga-se, mulheres; porque dos homens não
se lhes exigia tal costume. Antes, retiravam o chapéu e ainda o retiram ao pene-
trarem em recintos fechados e, sobretudo, sagrados.
Note-se que as freiras escondem o cabelo com mantos exageradamente
largos, padrão opressor, objetivando a ocultação de madeixas porventura pre-
sunçosas e mundanas. Os padres não carecem de tal privação. Tudo leva a crer
que a cond ição de gênero masculina acarreta, na religião católica, algumas rega-
lias. Estão, todavia, a ocorrer reformulações nos fundamentos da Igreja, miran-
do torná-los mais equânimes. Pela sua natu reza hum anitária, a religião tend e a
destruir preconceitos, o que implica no anulamento dos bolsões discriminatórios
de gênero. Na acepção moderna, o véu caiu de uso e a própria comunhão é
ofertada pela mulher, embora a consagração da hóstia ainda lhe seja vetada.
Resistem algumas prerrogativas hierárquicas que beneficiam o homem, como a
celebração da missa e outras cerimônias análogas. À mulher, falta-lhe ocupar
espaços mais destacados na liturgia da religião cristã. Conquistas aconteceram e
merecem registro no contexto histórico, porém a paridad e ainda não se efetivou.
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de
daduma
e. Emsituação especial,
todo caso, na qual
valiam-se de usabiam barganhar
m instrum ento d e oinferioridad
preço da clandestini-
e – a pecha
de concubinas – para converter os vezos discriminatórios em lucros que
explicitassem os matizes estéticos. Usavam o escudo da ilegitimidade como
uma fração, embora diminuta, de vantagem pessoal. Malgrado a postura
desconfortável, usufruíram de alguns ganhos que, no frigir dos ovos, apenas
arrematavam a empáfia do senhor patriarca. O importante é que não aderiram
à moda européia. Arrancavam de dentro do peito os atavismos sufocados e
transmitiam os enlevos da terra dos seus ascendentes – a arte africana. Este
aspecto tradu z a força da cultura d e origem.
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desconh ecend
ganadores. Há odeosseretoques
admitir de
quebeleza, tão aplaudidos
os recursos da estéticaeagem
tão generosamen te en-
com uma eficácia
indiscutível. Cabelos em mise-en-plis , vestidos de bom corte, mãos e pés tratados
dão à aparência lances mágicos, quase de ilusionismo. Hoje em d ia, costuma-se
dizer que n ão há mu lheres feias; há, sim, mulheres mal prod uzidas. Um postu-
lado qu e não ind uz a contestações.
Do espartilho aos estranhos penteados, a artificialidade da aparência se
fez tônica de representação de elite. Os adereços denunciaram claros separatis-
mos. O costume de roupas inadequadas – à maneira européia – determinou
mais uma distorção do ethos patriarcal. E o que se referiu à moda de cabelo
seguiu parâmetros semelhantes.
As negras e os negros forros fizeram uso de belas cabeleiras, talvez para
desafiar o preconceito de cabeças cobertas em africanas submetidas ao regime
da escravidão. O esmero nos penteados revela a altivez de uma liberdade que
não se queria contestada. E os sinais exteriores começavam pela cabeça; todo o
esforço de exibi-la ao ar da faceirice seria pouco na neutralização de rejeitáveis
estrabismos.
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cortes,
rodad as,vestidos bem talhados
cores berrantes ou neuou
trasnão, roupas
somam desleixadas
-se ao ou elegantes,
clipe instantâneo saias
d a fotogra-
fia. E revelam a síntese do modo de estar de uma gente. Modos e modas, de
homens e de mulheres. No caso, de mulheres negras. Moda ou antimoda?
A proibição de jóias, a cabeça coberta, as mãos e os pés mal tratados, s
vestidos descuidad os resum iam o tom da submissão da ind um entária feminina
negra. A roup a externou os labirintos de uma sociedad e acimen tada em tirâni-
cas “castas”. Para a africana patenteou um estigma a mais na escala da dominação.
A MODA NO BRASIL
Os ciclos de vida da mod a brasileira têm acompanhado as variações dos centros
internacionais, com bastante veemência no eixo francês, como aludido nos itens
precedentes. O Brasil recebeu influência direta francesa por adotar uma filoso-
fia pedagógica europeizante, voltada com vigor para os valores intelectuais fran-
ceses. E na moda não foi diferente. Se Paris representava o cânone da elegância
da mulher ocidental, não é de admirar o culto às suas Casas de Alta-Costura. O
contrário é que seria de estranhar. Durante os séculos XIX e meados do XX as
repercussões
Apesar da
do moda
clima francesa
tropical, são insofismáveis.
as temperaturas quentes não foram suficientes,
nos “mastros” colonial, imperial e republicano – pelo menos até 1960 –, para
gerar um tipo en dógeno de vestuário. A abertura dos portos às Nações européi-
as, em 1808, quan do da chegad a de D. João VI à Terra do pau-brasil, vem forta-
lecer ligações européias, antes menos impregnantes em razão dos ecos mais
direcionados à tradição portuguesa, ou melhor, à Península Ibérica. Assim, o
período colonial se ateve aos modelos lusitanos que não deixavam de ser igual-
men te europeu s, porém primord ialmen te ibéricos. Com o Império, as ingerên-
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13 de abril de 1861: “enfeites de cabeça para senhoras de bom gosto”, tanto pretos
como de Alindas
francês. 25 docores.
mesmoEram última
abril, moda
a loja de Paris.
recifense de Haviam chegado
Burle Júnior por vapor
anunciava ter
recebido pelo “último vapor de Havre... borzeguins de Meliés todos de bezer-
ro e de cordovão”. Novidade francesa. [...] O escuro em paletós e casacas
para homens caracterizaria também casimiras inglesas, admitindo-se, po-
rém, calças de cores, sem que se voltasse, neste particular, a casacas de cores
dos dias coloniais (FREYRE, Gilberto. Modos de homem & modas de mulher,
2002, p. 121-122).
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