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NOTAS SOBRE UMA NAO ENTIDADE
mais vé alcangar 0 sucesso no tipo mais vulgar da fic¢ao
cientifica.
Acredito que as historias fantdsticas oferecem um
campo digno dos melhores artistas literdrios, ainda que
seja um tanto limitado e reflita apenas uma pequena
parcela dos estados de espirito infinitamente comple-
xos do homem. A fic¢ao espectral deve ser realistica
e atmosférica — deve limitar a divergéncia da Natu-
reza ao meio sobrenatural escolhido e lembrar que a
ambientagao, a atmosfera e os fendmenos so mais im-
portantes para comunicar 0 que se pretende do que os
personagens e 0 enredo, A “revelagao” de um legitimo
conto fantdstico é apenas a violagao ou a transcendéncia
das leis césmicas estabelecidas — uma fuga da realidade
magante — e portanto os fendmenos, e nao as pessoas,
so os “herdis” naturais da historia. Acredito que os
horrores devam ser originais — e que 0 uso de mitos
¢ lendas comuns enfraquece a histéria. A fic¢ao hoje
publicada em revistas, por conta de uma irremediavel
tendéncia s perspectivas sentimentais ¢ ao estilo rapido
e alegre, bem como a enredos de “a¢ao’, nao tem ne-
nhum grande mérito. A melhor histdria fantastica de
todos tempos é provavelmente “The Willows’, de Alger-
non Blackwood.
NOTAS SOBRE FICCAO
INTERPLANETARIA’
A DESPEITO DA ATUAL enxurrada de historias que tra-
tam de outros mundos e universos, e de intrépidos vos
de um lado a outro do espaco sideral, provavelmente
nao seria exagero dizer que nio mais do que meia diizia
destas coisas, entre as quais se encontram os romances
de H.G. Wells, pode fazer a menor reivindicacao & serie-
dade artistica ou ao mérito literdrio. A insinceridade, 0
convencionalismo, o lugar-comum, a artificialidade, a
falsa emogio ea extravagancia pueril reinam triunfan-
tes nesse género saturado, e apenas os exemplares mais
raros podem fazer qualquer reivindicagao a um cardter
efetivamente adulto. O espetaculo desse vacuo persis-
tente levou muitos a perguntarem se, de fato, qualquer
exemplar de verdadeira literatura pode brotar a partir
desse tema.
O presente comentarista nao acredita que a ideia
de viagens espaciais e de outros mundos seja intrinse-
camente inadequada ao fazer literdrio. Pelo contrario:
if
Neste artigo, escrito em meados de 1934, Lovecraft defende
as possibilidades artisticas da ficgo cientifica e ao mesmo tempo
ataca os clichés deste género, que na época florescia em publicagées
como a Weird Tales e a Amazing Stories — esta tiltima a primeira
revista pulp integralmente dedicada a “cientificgio” que publicou A
cor que caiu do espaco em setembro de 1927. [N. do T}88 |
NOTAS SOBRE FICCAO INTERPLANETARIA
defende a opinido de que a vulgarizagio eo mau uso oni-
Presentes dessa ideia sejam resultado de um equivoco
amplamente difundido; um equivoco que abarca todos
0s departamentos do fantastico e da ficcao cientifica.
Essa falacia consiste em pensar que qualquer relato de
fendmenos impossiveis, improvaveis ou inconcebiveis
Possa ser apresentado como uma narrativa ordinaria
de agées objetivas ¢ emogées convencionais. Uma
apresentagao dessa estirpe muitas vezes “passa” pelos lei-
tores imaturos, mas jamais poderd se aproximar sequer
remotamente do mérito estético.
Eventos e condigées inconcebiveis formam uma
classe a parte de elementos narrativos e nao podem ser
apresentados de maneira convincente por meio de um
tratamento casual. Esses elementos tém a barreira da
inverossimilhanga a vencer — um efeito possivel apenas
mediante o emprego de um realismo meticuloso em to-
das as demais fases da historia, somado a um actimulo
de natureza atmosférica ou emocional da mais absoluta
sutileza, A énfase também precisa ser tratada da ma-
neira correta — sempre pairando sobre o prodigio da
anormalidade central em si. Cabe lemabrar que qualquer
Violagio daquilo que conhecemos como a lei natural
Por si s6, algo mais espantoso do que qualquer outro
evento ou sensagéo que possa afetar um ser humano.
Assim, em uma historia que trata de algo semelhante,
nao podemos nutrir a esperanga de criar qualquer sen-
mento de vida ou ilusao de realidade se tratamos 0
prodigio de maneira casual e atribuimos motivagées
corriqueiras aos personagens. Os personagens, embora
devam parecer naturais, precisam estar subordinados
H.P. LOVECRAFT
ao prodigio central em torno do qual se agrupam. O
verdadeiro “heréi” de um conto maravilhoso nao é ser
humano algum, mas apenas um conjunto de fendmenos,
Acima de qualquer outra coisa deve erguer-se a
monstruosidade grotesca e aterradora da contradi¢ao a
Natureza escolhida. Os personagens devem reagir como
pessoas de verdade reagiriam caso a confrontassem na
vida real, demonstrando o espanto avassalador que qual-
quer um naturalmente demonstraria, e nao as emocdes
ténues, déceis e passageiras prescritas por convengdes
popularescas baratas. Mesmo quando os personagens
esto acostumados ao prodigio, a sensagao de espanto,
deslumbre e estranheza que o leitor sentiria na presenga
deste fenémeno deve ser de alguma forma sugerida pelo
autor. Quando o relato de uma viagem maravilhosa é
apresentado sem uma paleta de emogdes condizentes,
nao percebemos nela sequer o menor grau de vividez.
No temos a ilusio aterradora de que o fendmeno pu-
desse de fato ter ocorrido; apenas sentimos que alguém
proferiu algumas palavras extravagantes. Em geral, de-
vemos esquecer todas as convengdes estabelecidas pelos
borra-tintas que escrevem historias baratas e tentar fa-
zer da nossa histéria um relato fidedigno da vida, a nio
ser no que diz respeito ao prodigio escolhido, Devemos
trabalhar como se estivéssemos armando uma farsa e
tentando fazer com que a nossa mentira extravagante
se passasse por uma verdade literal,
A atmosfera, € nao a acao, é o que deve ser culti-
vado no conto maravilhoso, Néo podemos realcar os
acontecimentos puros, uma vez que a extravagiiicia so-
brenatural desses eventos torna-os vazios e absurdos
| 89NOTAS SOBRE FICCAO INTERPLANETARIA
demais quando sio exibidos com excessivo destaque.
Esses eventos, mesmo quando teoricamente possiveis
‘0u concebiveis no futuro, néo apresentam nenhuma
contraparte ou base na vida real e na experiéncia hu-
mana, € portanto nao podem jamais servir de fundagio
a.um conto adulto, Tudo 0 que um conto maravilhoso
almeja é pintar, de maneira séria, o retrato convincente
de um determinado sentimento humano. No momento
em que tenta fazer qualquer outra coisa, conto torna-
se barato, pueril e irrelevante. Logo, um autor fantastico
deve perceber que a énfase diz respeito a insinuacio
sutil — a pistas e pinceladas discretas relativas a deta-
Ihes associativos que expressem diferentes tonalidades
de sentimento e componham a vaga ilusao da estranha
realidade do elemento irreal — e nao a listas indcuas de
acontecimentos fantasticos sem nenhuma substancia ou
relevancia senéo como nuvens de cor e simbolismo, Um
conto adulto sério deve ser fiel a um certo aspecto da
vida. Uma vez que os contos maravilhosos nao podem
ser figis aos acontecimentos da vida, precisam deslocar
a énfase para algo a que possam ser figis; ou seja, a certos
estados melancélicos ou inquietos do espirito humano,
onde buscam tecer didfanas rotas de fuga para que pos-
samos escapar & amarga tirania do tempo, do espaco e
das leis naturais.
Ecomo esses principios gerais da ficgao maravilhosa
adulta devem ser aplicados ao conto interplanetério em
particular? Quanto a possibilidade de aplicagio, nio
temos diivida alguma; os fatores importantes sio, como
em outros casos, a sensagio de espanto adequada, as
emogées adequadas dos personagens, o realismo na
HP. LOVECRAFT
ambientagio e nos incidentes suplementares, 0 cuidado
na escolha dos detalhes significativos e a remtincia crite-
sa a0s personagens artificiais e batidos e a situagdes
€ eventos convencionais e estiipidos que de um s6 golpe
destroem a vitalidade da histéria ao apresenté-la como
produto de uma mecanica trivial em massa. E uma ver-
dade irénica que nenhuma histéria artistica desse tipo
— escrita com honestidade, sinceridade e sem lugares-
comuns — teria chances de ser aceita pelos editores
Profissionais da vulgar escola pulp. Essa constatacao,
no entanto, nao ha de influenciar o artista determinado
a criar algo maduro e de valor. Antes escrever de ma-
neira honesta sem nenhuma remuneragao do que criar
bijuterias sem nenhum valor e ser pago. Talvez algum
dia as convengdes dos editores baratos abandonem essa
flagrante ¢ absurda rigidez antiartistica,
Os acontecimentos de uma histéria interplanetaria
— salvo as que envolvem a mais pura fantasia poética
— desenvolvem-se melhor no presente, ou em um pas-
sado oculto ou pré-historico. O futuro é um perfodo
bastante complicado, uma vez. que ¢ impossivel escapar
do grotesco e do absurdo ao retratar a vida futura; a0
mesmo tempo, a familiaridade dos personagens com
0s prodigios retratados sempre ocasiona uma imensa
perda emocional. Os personagens de um conto sio,
€m esséncia, projecdes de nés mesmos; e a no ser que
Possam compartilhar da nossa propria ignorancia e do
Rosso proprio espanto diante do que ocorre, surgem
defeitos inevitaveis. Nao que as narrativas ambientadas
no futuro nao possam ser artisticas; porém é mais dificil
tornd-las convincentes,
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