A personagem homossexual no luxuoso, ele revela como a figura do homossexual
cinema brasileiro. é construída na filmografia nacional. O seu universo de análise são filmes de longa metragem produzidos em nosso país desde a década de MORENO, Antônio. 1920. Muito corretamente, Moreno os entende Rio de Janeiro: FUNARTE/ EDUFF, 2001. tanto como produtores de imagens e verdades quanto como amálgamas de crenças vigentes em nossa sociedade. Em tais filmes, como ele afirma, pode-se encontrar “uma pintura em movimento do gay e da lésbica” (p. 25). Os debates recentes sobre identidade Para a realização do estudo, ele coletiva têm, entre outros temas, enfatizado os desenvolveu um modelo de análise fílmica que modos como os grupos minoritários são afetados o permitiu apreender a gestualidade e a por imagens veiculadas sobre eles nos diferentes narratividade recorrentes na construção meios de comunicação. Isso se deve ao dramática das diferentes películas examinadas, reconhecimento do fato de que as diferentes ao mesmo tempo em que possibilitou a instituições da mídia detêm uma enorme demarcação de “um conjunto de valores capacidade de criar verdades sobre coisas e conferidos ao sujeito analisado pela produção grupos sociais que circulam entre nós. Se é cinematográfica [o qual] delimita a sua verdade que, de um lado, tais instituições podem importância e participação quanto à sua colaborar para a estruturação de condições imagem, status e representatividade dentro da emancipatórias de grupos minoritários, de outro, sociedade em que vive” (p. 162). elas podem agir de forma deletéria, contribuindo Moreno identifica três fases da para a não-construção de identidades coletivas representação do homossexual no cinema politicamente fortalecidas. Tomando a mídia nacional. Na primeira fase, que vai da década televisiva como exemplo, Pierre Bourdieu examina de 1920 até o início da década de 1960, ele essa questão nos seguintes termos: “Os perigos sugere que o tema era um tabu de tal ordem inerentes ao uso ordinário da televisão devem- que os homossexuais mesmo quando presentes se ao fato de que a imagem tem a não eram vistos como tal. Comentando essa particularidade de poder produzir o que os questão ele afirma que “As referências ao críticos literários chamam o efeito real; ela pode homossexualismo, até então, eram poucas, a não fazer ver e fazer crer no que faz ver. Esse poder ser pela estética de alguns filmes, ou momentos de evocação tem efeitos de mobilização. Ela indiciais de sua presença (…) ou de maneira pode fazer existir idéias ou representações, mas muito velada (…) O tema era tão tabu que nem também grupos. As variedades, os incidentes ou mesmo se permitia ao público imaginar tal tipo os acidentes cotidianos podem estar carregados de comportamento. Era como se o de implicações políticas, éticas, etc. capazes de homossexualismo não existisse. Embora houvesse desencadear sentimentos fortes, freqüentemente a sociedade fingia não perceber. E o cinema negativos, como o racismo, a xenofobia, o medo- seguia a regra (…)” (p. 26). Nessa fase, além de ódio do estrangeiro, e a simples narração, o fato pouco explícita, a homossexualidade era todo o de relatar, to record, como repórter, implica tempo associada ao domínio do risível realçado sempre uma construção social da realidade por um toque efeminado nos trejeitos e vozes dos capaz de exercer efeitos sociais de mobilização personagens. Uma segunda fase, iniciada na (ou de desmobilização).”1 década de 1960, foi marcada por um número O campo dos estudos homossexuais no maior de películas abordando o assunto. Mesmo Brasil, apesar do seu desenvolvimento nos últimos assim, sugere Moreno, o crescimento não foi muito anos, ainda explorou muito pouco da reflexão significativo, já que a abertura de novas frentes apontada acima. Essa lacuna vem sendo de discussão no cinema brasileiro privilegiou lentamente preenchida por estudos como o de temas sociais e políticos mais amplos. Ao mesmo Antônio Moreno. Em trabalho de acabamento tempo, à exceção de uma abordagem mais
ESTUDOS FEMINISTAS 515 2/2002
explícita, não se assistiu nesse momento a exacerbadamente agressivos, cruéis e mudanças relevantes na caracterização da oligofrênicos. O contexto da existência desses homossexua-lidade predominante na primeira personagens é o de intrigas, traições e vinganças, fase. Já na década de 1970, início da terceira cujo tom é marcado pela própria denominação fase, ocorre uma explosão de filmes que traziam da protagonista – Rainha Diaba – e de um dos a questão da homossexualidade em seu bojo. É seus principais ajudantes – Coisa Ruim. O enredo ali que, dando continuidade às tendências das obviamente não poderia conduzir a um fim fases anteriores, se consolida “um modelo de menos sombrio: a Rainha Diaba tem o seu personagem homossexual que vai preponderar pescoço cortado por uma navalha. Minutos nas produções desta e das décadas seguintes, depois, durante a ‘celebração’ da sua morte, chegando a estender este modelo para diversos vários marginais são envenenados e, enquanto meios, como a televisão, através do gestual, e o seus corpos se amontoam, ela ressurge ainda rádio, através do modelo de voz” (p. 74). com vida para atirar na última sobrevivente e Da análise de filmes de diferentes períodos, assim, matando e morrendo, concluir o seu Moreno conclui que a tendência majoritária é a reinado. de que os homossexuais sejam apresentados Paralelamente a essa tendência, Moreno como indivíduos doentes e patogênicos em cujas também identifica uma representação, biografias se encontram associações com o minoritária, da homossexualidade marcada por crime, a prostituição e o vício. Paralelamente, eles uma abordagem mais humanista da questão, a são, de forma jocosa, apresentados como qual identifica o gay como “um ser que tem direito indivíduos portadores de uma gestualidade de escolha sexual” (p. 291). Um dos exemplos que excessiva e adeptos do uso de vestuários ele aponta dessa orientação é O menino e o extravagantes, assim ratificando a sua condição vento (Carlos Hugo Christensen, 1966). Nesse filme, de palhaço e objeto de cachota. Outrossim, o o contexto social no qual a homossexualidade é tipo ideal do homossexual apresentado – com apresentada contrasta diretamente com o grande freqüência um travesti – possui baixo nível ambiente de violência no qual se desenvolve A de escolaridade, mora em habitações Rainha Diaba. O homossexual protagonista é um degradadas e é subempregado. Do ponto de engenheiro bem-sucedido financeiramente, vista emocional os homossexuais são interpretado sem traços efeminados ou vestuário apresentados como traiçoeiros, falsos, vingativos extravagante, “de forma natural”, de acordo com e violentos. Não é surpreendente, assim, que o a classificação de Moreno. O filme trata da fim deles nos filmes analisados seja relação do protagonista com um garoto que, predominantemente marcado por tragédia, após despir-se e abraçá-lo, desaparece no alto mortes violentas, depressão, suicídio e miséria. de uma montanha. O engenheiro, acusado do Como o próprio Moreno exemplifica, “em A lira desaparecimento do menino, é levado a do delírio, Otoniel termina no hospital após ser julgamento e ali descreve de forma poética a incendiado; a Marlene [um travesti] de Amor natureza da sua relação com ele. Por toda a bandido se joga no pátio interno do edifício trama o engenheiro é descrito como “ingênuo, malfalado, se suicidando; a Geni [um travesti] de puro, [alguém que] não aceita compactuar com Ópera do malandro é assassinada friamente, e tramóias, pois acredita em sua inocência e que com asco, por Tigrão; ou ainda são torturadas, vai ser compreendido e absolvido” (p.194). apanham ou morrem das mais diversas formas, Durante o seu depoimento ele nega qualquer tipo como em O anjo nasceu, Navalha na carne, O de contato (homo)sexual, enfatizando que a sua casamento, A casa assassinada ou em O beijo relação com o garoto se dava pela beleza do da mulher aranha, e não se realizam como vento que ele representava e invocava. Ao final, pessoa” (p. 283). em um clima fantástico, uma enorme ventania Um exemplo lapidar desse tipo de descrição toma conta do tribunal. Os objetos caem, as encontra-se no filme intitulado A Rainha Diaba pessoas fogem. Sozinho no salão, o engenheiro (Antônio Carlos Fontoura, 1974) analisado por acha então a camisa do menino. “Ele a apanha. Moreno em seu livro. Nele, a personagem Fica com ela entre as mãos, numa atitude de principal, Diaba, vivida pelo ator Milton querer acariciá-la e ao mesmo tempo não, assim Gonçalves, chefia uma gang de homossexuais como alguém que de repente descobre algo envolvidos com o tráfico de drogas. Na história muito intenso sobre si mesmo” (p. 202). Esse os gays são ao mesmo tempo afeminados, momento, na análise de Moreno, representa a
ANO 10 516 2º SEMESTRE 2002
culminância de um processo de utilização de modelos estereotipados nos filmes autoconhecimento que levou o engenheiro a analisados. Assim fazendo, produtores e diretores reconhecer, estupefato, sua homossexualidade. evitam confrontos culturais com um público Diz ele, ainda sobre o engenheiro: “ [É] Como se pouco desejoso em ver o ‘outro-homossexual’ sob [ele] visse na camisa o vento e o menino, a luzes que não aquelas da extravagância e do materialização da natureza, que não se pode ridículo. O efeito substantivo mais negativo desse matar: sua paixão homossexual, o vento que ele processo obviamente recai sobre o homossexual amou e se tornou menino, que é agora somente que, diz o autor, fica então envolto em “uma uma sensação, não existe mais. Mas este mesmo couraça de invisibilidade que mascara, esconde vento trouxe até ele a camisa que foi do menino, e não ‘descobre a personagem’. Ela, e todo o para lembrá-lo de que esta sensação em relação discurso que a envolve, param no tempo e no ao vento/menino é agora um sentimento que faz espaço. Como uma personagem, sua entrada parte dele, faz parte da sua natureza” (p. 204). em cena já denota todas as suas implicações e Moreno vê em filmes como esse uma abordagem o público já sabe como vai-se comportar e agir” mais abrangente das relações homoeróticas e (p. 285). uma oportunidade de se problematizar a No que pesem essas qualidades, o livro discriminação social contra a homossexualidade. apresenta fragilidades teórico-metodológicas Contudo, como ele mesmo salienta, essa é uma que roubaram do autor a possibilidade de abordagem minoritária, quase residual, que só desenvolver uma análise mais sofisticada do seu com grandes dificuldades pode se erigir como objeto. Uma primeira dessas fragilidades é, um discurso contrário à caracterização exceto pela indicação superficial do surgimento predominante da homossexualidade no cinema do movimento gay e das limitações políticas e brasileiro. culturais postas pela ditadura militar, a ausência O trabalho de Moreno apresenta, além do de uma contextualização mínima do conjunto de ineditismo, uma série de características positivas. filmes analisados. Isso deixa o leitor com a Uma delas é o resgate de uma dimensão da impressão de que o aumento da quantidade de memória da subcultura gay brasileira dentro de filmes e os tratamentos que dão à um período de tempo bastante amplo (1923– homossexualidade são criações autônomas de 1994). Isso assume uma importância ainda maior produtores e diretores, descoladas de processos ao se pensar nas dificuldades que tal resgate culturais em curso na sociedade brasileira dos impõe quando se trata de grupos margi- últimos 70 anos. nalizados. Tais dificuldades se devem, em Uma outra fragilidade diz respeito à não- particular nos estudos sobre as minorias sexuais, utilização por Moreno da literatura mais recente ao alto nível de privatização de suas práticas do campo dos estudos de gênero, em particular sócio-sexuais e à enorme escassez de registros aquela afeta ao homoerotismo. Não que todas que permitam uma melhor caracterização dos as pesquisas sobre o universo gay tenham que seus cotidianos ontem e hoje. se servir dessa orientação. Mas isso teria, Um outro aspecto relevante do livro refere- possivelmente, feito com que ele evitasse o uso se ao fato de que Moreno coloca a inadequado de categorias e o uso de categorias representação da homossexualidade no fecundo inadequadas (como a já suficientemente campo de indagações sobre nossas dificuldades criticada ‘homossexualismo’), assim como o teria de lidar com a diferença e as tendências ajudado a suplantar análises superficiais de presentes em nosso meio de ridicularizar, encobrir temas relevantes – como as dinâmicas de ou simplesmente eliminar os diferentes ‘outros’ formação dos gêneros e a sexualidade (ver p. étnico-raciais (negros, indígenas, etc.), 32) –, as quais muitas vezes são tomadas em um geográficos (o africano, estrangeiros, orientais, registro intelectual próximo do senso comum. Teria etc.), geracionais (idosos e crianças) e de gênero também o ajudado a não atribuir um caráter de (travestis, mulheres, transgêneros, etc.) que excepcionalidade à presença de homossexuais criamos e recriamos todo o tempo. Ainda que no mundo público brasileiro nos anos 1950, pois não desenvolva extensamente esse argumento, se encontra bem documentado hoje que a Moreno salienta que é na construção e nas circulação (e reconhecimento dessa circulação) dificuldades de se lidar com a otherness da deles nos grandes centros urbanos foi uma homossexualidade que residem as bases constante por todo o século XX e antes.2 psicossociais responsáveis pela reiterada Ainda no campo teórico-metodológico, era
ESTUDOS FEMINISTAS 517 2/2002
de se esperar uma análise mais rica de temas homossexual brasileira e que, portanto, também como a manipulação da gestualidade, do têm direito a serem apresentadas e vocabulário e do vestuário. Mesmo que nos filmes representadas. Até porque, ontem e hoje, aqui e analisados esses elementos sejam de fato alhures, são justamente os tipos mais ‘desviantes’ exacerbados e conduzam à construção de que normalmente assumem a linha de frente nos personagens homossexuais estereotipados, não enfrentamentos mais duros pelos direitos gays. se pode esquecer que o uso do escracho e do Nesse domínio a argumentação de Moreno deboche também é uma das formas que as aproxima-se bastante de um discurso que, ao minorias detêm de se fazerem ver e de criticarem buscar desconstruir uma imagem negativa fixada, uma ordem vigente para elas indesejada. Tal uso sugere um novo ‘modelo’ de homossexual talvez também pudesse ser lido, sem embargo (despido de trejeitos, profissional, ‘sexualmente da existência de preconceito e discriminação, responsável’, etc.) ajustado à organização de como uma das poucas alternativas disponíveis gênero que hoje conhecemos.3 A nosso ver talvez aos diretores para que pudessem dar voz a figuras fosse uma causa mais justa advogar por espaço homossexuais. Isso não é examinado pelo autor. para que todos – gays efeminados e masculinos, Uma aproximação com os estudos de Mikhail desviantes e adaptados aos padrões sociais Bakthin, por exemplo, teria levado o autor a olhar predominantes – fossem igualmente para essas questões de um patamar representados. diferenciado. Tivesse servido-se desses estudos, 1 teria ainda examinado o “poder que o cinema BOURDIEU, Pierre. Sobre a televisão. Rio de Janeiro: exerce sobre o pensamento das pessoas” (p. 36) Jorge Zahar, 1997. p. 28. 2 de forma mais circular e elástica, lembrando que Sobre tal circulação ver: GREEN, James. Além do caranaval: a homossexualidade masculina no Brasil do as audiências reconstroem significados e século XX. São Paulo: UNESP, 2000; e MOTT, Luiz. atribuem sentidos diferentes aos discursos e Homossexuais da Bahia: dicionário biográfico. Salvador: imagens que lhes são apresentados. Editora Grupo Gay da Bahia, 1999. Mas talvez o grande problema do livro 3 Para uma análise, a partir da experiência americana, esteja situado na forma como é criticada a das implicações políticas e culturais – em especial a representação do homossexual no cinema. Ao exclusão – contidas nos esforços de certos setores do opor-se à exposição de tipos afeminados e movimento gay em recriar a figura do “bom marginais, o autor não visualiza que esses não homossexual”, ver GÓIS, J. B. H. “A conservadorização são somente criações de diretores e autores nem do discurso anti-AIDS nos Estados Unidos”. Revista Serviço Social e Sociedade, n. 58,1998. produtos de um olhar preconceituoso da nossa sociedade. São figuras reais que, com suas crises e histórias dramáticas, habitam a cultura JOÃO BÔSCO HORA GÓIS Universidade Federal Fluminense
Feministas interrogam os estudos de religião
Feminism and Religion, an capítulos. É apresentado pela autora como um estudo “cross-cultural”, característica inerente à Introduction. disciplina Estudos de Religião, não se limitando às religiões ou às teologias cristãs e pós-cristãs, GROSS, Rita. nem ao feminismo ocidental. Gross propõe-se a realizar, com essa obra, duas tarefas, que Boston, Beacon Press, 1996. 279 p. considera cruciais aos estudos de feminismo e religião: oferecer informações sobre os papéis religiosos das mulheres e identificar a perspectiva feminista em cada uma das religiões estudadas. A autora dessa obra é professora de Filosofia Sua abordagem é, ao mesmo tempo, descritiva e Estudos Religiosos na Universidade de Wisconsin- e normativa. A autora pretende mostrar o que Eau Claire, nos Estados Unidos. O livro Feminism acontece quando métodos feministas são and Religion, an Introduction organiza-se em seis aplicados aos dados de pesquisas sobre religiões