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Autor: Cleaver, Eldridge

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Título: A lma no ex ílio : Autobiogratia

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O SI N rJ Ml 'NTO E A CONI:;CJt.NCTA

O negro norte-americano está em marcha.


Não aceita mais a posição humilhante de ci-
dadão de segunda classe, cujas prerrogativas
constitucionais têm de ser formalmente garan-
tidas por legislação adicional (como o demons-
-tra o caso da " integração" nas escolas, lugares
. públicos, estabelecimentos comerciais, etc.),
embora a realidade do dia-a-dia, sobretudo nos
estados sulistas, a desrespeite de modo aberto
ou contorne de maneira solerte.
Essa campanha em defesa de seus direitos
humanos não se processa de modo uniforme,
coordenadamente, jã que as táticas de luta co-
brem uma vasta gama que vai da resistência
passiva à luta armada. Há os negros que
marcham com Deus, pela Família, recorrendo
à Bíblia, às leis e aos sentimentos dos bran-
cos, esperando poder convencê-los à prática de
uma convivência em que nenhum homem seja
diminuído ou preterido em virtude de sua côr.
Martin Luther King foi o apóstolo dêsse
sonho, dessa "revolução não-violenta". Seu
credo, definido em inúmeros discursos, tinha
forte sabor messiânico: "Sonho que um dia,
nas colinas vermelhas da Geórgia, os filhos
de antigos escravos e os fil hos de proprietários
de escravos poderão sentar-se à mesa da fra-
ternidade. Sonho que um di a o próprio Es-
tado do Mississippi - que hoje se vê sufocado
pela opressão - será transformado num oásis
de liberdade e justiça. Sonho que meus qua-
tro netinhos viverão um dia num país onde
bâo serão julgados pela côr de sua pele, mas
pela personalidade que tiverem". Em 4 de
abril de 1968 Martin Luther King terminou
sua carreira de nobre e generoso sonhador:
James Earl Ray, branco, ex-presidiário, o
abate a tiro de fuzil, na cidade de Memphis,
Tennessee.
Muitos negros, contudo, descrêem da uti-
lidade de campanhas pacíficas. Uns se orga- &"~.,ri
nizam em comunidades agressivas, cujo leit-
motiv é o racismo antibranco, defendendo o
retôrno às origens africanas. São os Black
Muslims (Muçulmanos Negros) , cujo líder,
Malcolm X, foi também assassinado. Outros,
revolucionários militantes, fazem da Juta pela
emancipação dos negros uma primeira fase da
campanha maior, contra o próprio establish-
-
- - ----

Coleção
BffiLIOTECA DO LEITOR MODERNO Eldridge Cleaver
Volume 132

Alma no Exílio
Autobiografia espiritual e intelectual
de um líder negro norte~americano

Tradução de
ANTÔNIO EDGARDO S. DA CosTA REIS

civilização
brasileira
------

Título do original norte-americano:


SOUL ON ICE
Copyright © 1968 by Eldridge Cleaver

Capa:
AUGUSTO IR!ARTE GIRONÁZ

Diagramação:
LÉA CAULLIRAUX

Direitos para a língua portuguêsa adquiridos pela


EDITORA CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA
Rua 7 de Setembro, 97
RIO DE JANEIRO,
que se reserva a propriedade desta tradução.

1 9 7 1
A Beverly,
Impresso no Brasil com quem partilhei o
Printed in Brazil amor definitivo.
•· .,.
.. ' ~
: .
.

Dentre as excelentes pessoas que muito ajuda-


ram para a publicação dêstes escritos, gostaria de
agradecer especialmente a Edward M. Keating, cria-
dor da revista Ramparts, que foi o primeiro profis-
sional a dar atenção a meus trabalhos; a Maxwell
Gcismar, cujas críticas me ajudaram a conseguir um
certo contrôle sôbre minhas anotações, e a David
Welsh, pela sua inestimável assistência como revisor
de texto.
Agradecimentos

P elas transcrições de trechos das obras abaixo indicadas, agra-


decemos aos proprietários dos direitos, que gentilmente os con-
cederam:
Índice
The Dead Lecturer, de LeRoi Jones, © 1964 by LeRoi Jones.
Transcrição autorizada por The Sterling Lorci Agency.

A Superioridade Natural da Mulher, de Ashley Montagu, © Xlll


1953 by Ashley Montagu. Transcrição autorizada por The INTRODUÇÃO por Maxwell Geismar
Macmillan Company.

I. C ARTAS DA PRISÃO 1
Meu Problema Negro - e o Nosso, de Norman Podboretz in
Commentary. © fevereiro, 1963, by Norman Podbo!etz. A Transformação 3
Alma no Exílio 17
Quatro Vinhetas 24
Commentary, fragmento de uma carta de Irving Louis Horo- 24
wi~, reproduzido com autorização da revista Commentary. - Sôbre Watts
© JUnho, 1963, by The American Jewish Committee. - Olhos 26
- Alimento da Alma 28
- Uma Conversão Religiosa,
Cartas A bertas ao Presidente, de Norman Mailcr, © 1959, by Mais ou Menos 28
Norman Mailer. Transcrição autorizada por G. P. Put- - "O Cristo" e seus ensinamentos 30
nam's Sons. 38
Um dia na Penitenciária de Folsoro
Reações I niciais ao Assassinato de Malcolrn X 48
Da próxima Vez, o Fogo, de James Baldwin, © 1962, 1963,
by James Baldwin. Transcrição autorizada por The Dial
Press, Inc. 61
ll. SANGUE DA BÊST A

A Raça Branca e seus Heróis 63


OIL The Road, de Jack Kcrouac. © 1955, 1957, by Jack Ke-
Lázaro, Adianta-te 80
rouac. Transcrição autorizada por The Viking Press, Inc.
Notas Sôbre o Filho Nativo 92
União em Tôrno da Bandeira lOS
"O Cristo e Seus Ensinamentos" foi publicado inicialmente na A Participação do Homem Negro no Vietnã 113
revista Esquire, em abril de 1967, sob o título de The Guru Lei Interna e Ordem Internacic:1al 120
of San Quentin.

III. PRELÚDIO PARA O AMOR- TR~s CARTAS 131


IV. MULHER BRANCA, HoMEM NEGRO 143
A Alegor-ia dos Eunucos Negros 145
A Mitose Originária 165
Convalescença 178
A Tôdas as Mulheres Negras,
de Todos os Homens Negros 180
Introdução

MAXWELL GEISMAR

....
E STB Livro, escrito na prisão por um jovem negro ameri-
cano (ou afro-americano) , é uma das descobertas da década
de 1960. Numa época literária caracterizada por predorrünante
mediocridade de expressão, pela ausência de novos talentos de
importância, por uma espécie de depressão espiritual após a
grande onda da literatura americana dos anos vinte aos anos
quarenta, Eldridge Cleaver é uma das destacadas novas vozes
literárias a serem ouvidas. Lembra-me os grandes clias do pas-
sado. Evoca o Native Son*, de Ricbard Wright, além de ter
verdadeira afinidade moral com um dos poucos livros bons de
nossa época, a Autobiografia de Malcolm X. E, em têrmos ame-

" Publicndo no Brasil sob o título Filho Nativo, pela Cia. Editôra
Nnciona l, São Panlo (N. do T.)

xiii
ricanos, representa a única coisa comparável aos escritos de
:E: sem dúvida audacioso da parte de Cleaver abrir esta
Frantz Fanon. coleção de ensaios com aquêles que, partindo do caso específico
do estupro, enfoquem na realidade todo o profundo relaciona-
De maneira curiosa, o livro de Cleaver tem claro paralelis- mento entre o homem negro e a mulher branca. H á um tipo
mo com o Black Skin White Masks, de Fanon. Em ambos, secreto de misticismo sexual neste escritor que adiciona profun-
o problema central é o da identificação da alma negra "coloni- didade e colorido ao seu comentário social; é uma mente lite-
zada" - de modo mais sutil, talvez, nos Estados Unidos, por rária e imaginativa pesquisando os aspectos mais relevantes de
uns trezentos anos, se bem que mais penetrantemen te - pela nossa vida em comum. Seguem-se, então, as Quatro Vinhetas
1 sociedade
branca opressiva que projeta sua breve e estreita visão - sôbrc Watts, os muçulmanos, o catolicismo e Thomas Mer-
/ da vida como verdade eterna. Muito apropriadamen te, Eldridge ton, e o heróico professor da prisão chamado Lovdjieff. Neste
Cleaver abre as Cartas da Prisão com a parte chamada "A ponto, começamos a sentir o alcance e a profundidade da mente
Transformação ", datada de 1954, quando contava dezoito anos de Eldridge Cleaver sôbre questões cmoc·ionais e filosóficas, bem
de idade. A Suprema Côrte acabava de colocar a segregação como históricas e sociais, - e, por que não dizer, "heróico",
fora da lei e Cleaver encontrava-se na Penitenciária Estadual de nível raramente atingido na ficção contemporânea , não é carac-
Folsom, na Califórnia, sob a acusação de porte de maconha. terização inadequada para certas partes desta coleção de ensaios
E le seria reenviado à prisão, pelo que descreve como estupro- profundamente revolucionária.
por-princípio. Há uma espécie de adolescente inocência - a · Após uma série de novas experiências religiosas na prisão,
inocência do gênio - nessas primeiras cartas. Mais tarde, êle o jovem Cleaver converteu-se ao maometismo, tornou-se depois
iria revelar uma ironia brutal e um humor profundo e sombrio um pregador m uçulmano dotado de extraordinária eloqüência c
a respeito da civilização do homem branco nos Estados Unidos convicção e, finalmente, um fiel seguidor de Maleolm X. Atra-
do século XX. vés dêsse processo, recuperou sua imagem própria, antes aliena-
da e despedaçada, guando criança do gueto negro da Califórnia;
Cleaver é, simplesmente, um dos melhores críticos da época e, a partir daí, começou o notável processo de auto-análise,
atual; e, nesta afirmação, incluo tanto os sociólogos formais auto-educação e auto-expressão descrit!:IS nas páginas do livro.
como os ficcionistas contemporâneo s que, de modo geral, aban- O ensaio intitulado "Reações Iniciais ao Assassinato de Mal-
donaram esta p arte da literatura pelo culto da sensibilidade. colm X", escrito em 1965, é um documento de suma impor-
(Tenho consciência, também, de que talvez possam ser consi- tância para a compreensão da proscrita alma negra americana
derados excessivos os elogios contidos nesta introdução; em tal dos dias de hoje; esclarece todos os longos e quentes verões de
caso, peço apenas ao leitor que pare de ler o que escrevo, o distúrbios, violências e destruição "sem sentido".
passe diretamente a Cleaver. ) Como no caso de Malcolm X,
Cleaver liga de tal maneira o movimento da resistência negra
aqui está um crítico "de fora", que se diverte em d issecar as militante às correntes de revolução mundial que isto pode r esul-
mais profundas e caras noções do nosso comportamento pessoal tar num choque para muitos americanos brancos de tendência
e social; é preciso certa quantidade de coragem e "objetividade liberal c boa-vontade espuitual.
deliberada" quando o lemos. :Ble despedaça nossos precon-
ceitos favoritos com as garras selvagens de sua prosa, até que Mas é isso que ocorre; e quanto mais cedo tentarmos com-
nossas feridas estejam descobertas c nossa psique exposta. E preender tal coisa, melhor; Eldridge Cleaver pode nos ajudar
temos de reagir ou então rir coro êle pelo serviço que nos pres- neste processo. "Alcançaremos nossa condição de homens. Ou
tou. As "almas da gente negra", como diz W. E. B. Du Bois, a alcançaremos ou a terra será arrasada pelas nossas tentativas
são o melhor espelho em que &e reflete a imagem do branco ti~: conquistá-la" - c algumas partes da terra americana já
americano em meados do século XX. foram arra'Sadas por êstc espírito profético de cólera e digni-

XV
xiv
repúdio de Baldwin ao seu antigo mentor, Richard Wright. O
dade humana. Mas é o capítulo do livro intitulado "Sangue ensaio "União em tôrno da Bandeira" nos dá o simples, inci-
da Bêsta", e trechos como "A Raça Branca e Seus Heróis", sivo e verdadeiro ponto de vista afro-americano sôbre a guerra
que considero de importância fundamental e do maior valor no Vietnã, opinião que Martin Luther King s6 tardiamente acei-
literário. Apresentando-se como "observador da Ofay"*, Clea- tou e que, na verdade, coincide com a opinião mundial sôbre
ver descreve êstc período histórico e esta cultura americana em nosso aberrante comportamento no sudeste da Ásia. Mas êste
têrmos da mais adstr-ita precisão, da mais desapiedada ironia e volume, que se abre com o tema de amor (Eldridge Cleaver
da mais insistente veracidade. Recorda-nos tôdas as simples ver- jamais deixa passar o fundo sexual de cada fenômeno social
dades que as décadas de distorção e hipocrisia da Guerra Fria ou racial), termina com o mesmo tema.
quase varreram de nosso registro hlstórico - a nossa consciên- Há cartas tocantes e esclarecedoras dirigidas à advogada dos
cia histórica. direitos civis na Califórnia, Beverly Axelrod, que, assombrada
O livro é um vigoroso relato daqueles primeiros anos da com o talento de Cleaver, como todos nós que o encontramos
década de 1960, quando a Campanha dos Direitos Civis desper- pela primeira vez há alguns anos atrás, conseguiu sua libertação
tou uma consciência nacional que ficara forçadamente insen- da Prisão Folsom, após nove anos. Há a parte do livro chamada
sível, indolente e evasiva desde o trauma mccarthista. Há "A Mitose Original", próxima de uma espécie de misticismo-
uma atmosfera de turbulência nestes ensaios, que vai do advento sexual laurentino, dando forma a tipos sociais tão encantadores
da Beat Generation e do On the Road, de Jack Kerouac, até como o Criado Supermasculino e a Boneca Ultrafeminina: o mito
os versos revolucionários de Le Roi Jones, voltando depois aos sexo-social que Cleaver ·inventou para o homem negro de segun-
abolicionistas (tão desprezados e escarnecidos pelos historia- da classe (todo corpo, sem cérebro) e para a senhora branca
dores revisionistas do Sul na época moderna), a Harriet Beecher e pura do Sul que, digamos, passa a existência com langor e aos
Stowe e àquela famosa peroração de 4 de Julho em favor da faniquitos. :gstes são os mitos exóticos e as lendas fabricadas
raça escrava, por Frederíck Douglas, em 1852. por um sistema de castas raciais incorporado a uma hipócrita
sociedade de classes. Estas são as fantasias satíricas, pairando
Na parte final do livro, parece que Eldridge Cleaver atingiu sôbre algo que poderia ser chamado de "miscigenação essen-
soa própria convalescença espiritual, com o espírito cicatrizado cial", como a chave procurada, a solução inadmissível para o
(não mais racista ou estreitamente nacionalista) e a fôrça adulta problema racial americano.
como escritor. Como soltam fagulhas essas páginas! O ensaio Esqueci de mencionar as descrições admiràvelmente irô-
"Lázaro, Adianta-te", sôbre as celebridades negras e a respeito nicas do Twist como o sintoma social da nova era de igualdade
do boxe como símbolo da virilidade das massas americanas, e racial nascente. Aqui, com os Beatles e o Rock n' Roll, quando
sôbre Muhamad Ali em particular, é uma beleza. Nêle, Cleaver Eldridge Cleaver entra na área das diversões de massa nos Esta-
começa a tocar em todos os aspectos da cultura americana com dos Unidos, está mais perto do que nunca de rir abertamente
segurança c visão clara. "Notas sôbre o Filho Nativo" é. a dos ridículos do homem branco; além disso, na denúncia final
melhor análise que já li da carreira literária de James Baldwm; do Eunuco Negro à Rainha Negra - ao fértil ventre negro de
e enquanto Cleaver diz, calmamente, coisas que nenhum crítico tôda a história - êle nos lembra de como a civilização sempre
branco poderia realmente atrever-se a dizer, não se nota o menor zombou da alegria humana.
sinal de ciúme artístico mesquinho, ou de vaidade, em sua dis-
cussão - tal como aquela, por exemplo, que marcou o próprio

Harrison, New York


"' Ofay: palavra da gíria negra norte-americana. designando pessoas Junho de 1967
de côr branca. (N. do T.)
xvii
xvi
I. Cartas da Prisão
A Transformação

Penitenciária Estadual de Folsom


25 de junho de 1965

Mn. novecentos e cinqüenta e quatro, quando eu tinha


dezoito anos, é considerado um ponto crucial de transição na
história do afro-americano - e também na dos Estados Unidos
como um todo - pois foi o ano em que a segregação racial
se viu banida pela Suprema Côrte. Foi, também, um ano crucial
para mim, porque- em 18 de junho de 1954 - comecei a
cumprir pena na penitenciária estadual, acusado de posse de
maconha.
Quando entrei na prisão; fazia apenas um mês que fôra
tomada a decisão da Suprema Côrte, e não acredito que tivesse
rucsmo a mais vaga idéia de sua importância ou significação
histórica. Mais tarde, porém, a acirrada controvérsia desenca-
deada pelo término da doutrina iguais-mas-separados viria a exer-
cer um profundo efeito sôbre mim. Essa controvérsia desper-

3
tou-me para minha posição na Améril:a e come~i a formar um com uma sacola de compras cheia de maconha, uma sacola de
conceito do que significava ser negro na Aménca branca. compras cheia de amor - estava apaixonado pela erva e nem
Naturalmente, sempre soubera que era. UJ? negr~, mas por um minuto pensei que houvesse algo de errado em "puxá-la".
nunca, realmente, parara para tomar consciencm ~aq?~o em Fazia quatro ou cinco anos que "queimava a erva" e estava
que estava envolvido. Enfrentei a vida como um mdivtduo e convencido, com o fervor de um cruzado, de que a maconha era
assumi os riscos. Até 1954, vivíamos numa atmosfera de n~vo­ superior à bebida - no entanto, os mandões da terra pare-
caína. Os negros achavam necessário, para ~~te~ u~ míntm? ciam todos ser beberrões. Não podia compreender como êles 1
de sanidade possível, ficar de algum modo a distancia e deslt- tinham mais justüicativas para beber do que eu para "ficar 1
gados do "problema". Aceitávamos as iodi~idades e as engre- baratinado". Eu era um "queimador de erva", e era natural
nagens do aparelho de opressão, sem reagir através da org~­ que me sentisse injustamente prêso.
nização de sit-ins* ou realizando manifestações de massa. Alt- Enquanto tudo isso sucedia, nosso grupo adotava o ateísmo.
mentado pelas chamas da controvérsia sôbre a segregação, logo Simples e sem qualquer base filosófica racional, nosso ateísmo
fiquei inflamado de indignação por meu recé~~escoberto status era pragmático. Eu começara a acreditar que D eus não existe; e,
social e, interiormente, voltei as costas à Amenca, com horror, se existisse, os homens não sabiam nada a respeito dêle. Por
nojo e revolta. conseguinte, tôdas as religiões eram embustes - o que tornava
Na prisão estadual de Soledad, aderi a um grupo de jovens todos os pregadores e padres, aos nossos olhos, embusteiros,
negros que, como eu, estava em agitada rebelião contra o que inclusive aquêles que corriam de um lado para outro na peni-
considerávamos a continuação da escravatura num plano supe- tenciária e que, curiosamente, podiam pedir por você junto ao
rior. Amaldiçoávamos tudo que fôsse american? - inclus~ve Todo Poderoso Criador do Universo, mas não podiam conse-
o beisebol e os cachorros-quentes. Todo o respe1to que pudes- guir nada, aqui embaixo, com os guardas ou com a junta de
semos ter tido por poUticos, pregadores, advogados, governa- livramento condicional - tinham o poder de nos fazer entrar
dores, presidentes, senadores, congressi~tas foi c~mpletamente nos Portões Celestiais depois que estivéssemos mortos, mas não
destruído quando os vimos contemponzar e _ace1tar co~pro­ podiam nos fazer atravessar o portão da prisão enquanto ainda
missos a respeito do certo e do errado, da legalldade e da ilega- estivéssemos vivos. Além disso, os religiosos que trabalham na
lidade da constitucionalidade e da inconstitucionalidade. Sabía- prisão têm um estigma indelével aos olhos dos presos, porque
mos que afinal de contas, êles brigavam entre si a nosso respeito, escoltam os condenados até a câmara de gás. Tais homens de
sôbre o 'que fazer com os negros, e se deviam ou não começar Deus são argumentos poderosos em favor do ateismo, que era,
a nos tratar como sêres humanos. Eu desprezava todos êles. para mim, uma fonte de enorme orgulho. Mais tarde, fortaleci
Os segregacionistas eram condenados indiscriminadamente, meus argumentos ao ler Thomas Paine e sua crítica devastadora
sem mesmo ouvirmos seus elevados e rebuscados argumentos. da Cristandade, em particular, c da religião organizada, em
Os outros, eu desprezava por perderem temp? em debates. com geral.
os segregacionistas: por que não esm~gá-los stmples:nente, JOgá-
los na prisão - êles estavam desafiando ~ lei, na_? estavam? Através da leitura, fiquei assombrado ao descobrir como
Eu desafiei a lei e êles me puser~m na cade1a. Entao, por que sfío confusas as pessoas. Eu pensava que, fora dali, além do
não meter também as mães dêles na prisão? Eu fôra apanhado horizonte da minha própria ignorância, existia a unanimidade;
que, embora eu não soubesse o que acontecia no universo,
m•tros certamente saberiam. No entanto, aqui estava eu desco-
• Protesto passivo organizado, contra a segreg~ç~o racial, no qual b• indo que todos os Estados Unidos atravessavam um caos de
os manifestantes ocupam lugares que lhes são proibidos, como restau· di s~ó rdia sôbre segregação e integração. Nessas circunstâncias,
taurantes e outros locais públicos. (N. do T.) decidi que a única coisa segura a fazer era agir por conta pró-

4 5
pria. Tornou-se claro que me era possível tomar a iniciativa: gir um carro numa auto-estrada, deixar crescer a barba ou fazer
ao invés de simplesmente reagir, eu poderia agir. Passaria unila- amor com uma mulher.
teralmente - não importando se alguém concordasse comigo Como eu não era casado, as visitas conjugais não teriam
ou não - a repudiar tôdas as alianças, a moral, os valôres - resolvido meu problema. Por isso, denunciei essa idéia como
mesmo continuando a existir dentro desta sociedade. Minha injusta por natureza; os prisioneiros solteiros necessitavam e
consciência seria livre e nenhum poder no universo poderia for- mereciam funcionar do mesmo modo que os casados. Advo-
çar-me a aceitar algo que não quisesse. Seria dono do meu guei o estabelecimento de um sistema de Serviço Civil pelo qual
nariz. Isso era também uma parte da minha nova liberdade. mulheres pegas serviriam às necessidades dos presos que manti-
Nada aceitaria até que fôsse provado que era bom - para véssem um registro de bom comportamento. Se o prisioneiro
mim. Tomei-me um iconoclasta ao extremo. Qualquer asser- casado preferisse a própria espôsa, teria êsse direito. Uma vez
ção afirmativa feita por alguém à minha volta tornava-se alvo que a Califórnia não pretendia estabelecer nem o sistema das
para posições de crítica e acusação. visitas conjugais nem o do Serviço Civil, alguém poderia advogar
tanto um como outro com igual entusiasmo e com o mesmo
Esse joguinho tornou-se bom para mim e eu me tornei resultado: nada.
bom nêle. Atacava tôdas as formas de piedade, lealdade e sen-
timento: casamento, amor, Deus, patriotismo, a Constituição, os Isto pode parecer ridículo para algumas pessoas. Mas era
Fundadores da Nação, leis, conceitos de certo-errado-bem-mal, vital para mim e tão urgente quanto a necessidade de respirar,
tôdas as formas de comportamento ritual e convencional. porque eu estava na "fase do touro" e a falta de acesso a mulhe-
Enquanto pulava de um pé para outro, de porrete na mão, em res era, incontestàvelmente, uma forma de tortura. Sofri. Minha
busca de novos ídolos para destruir, encontrei re~mentc, pela amante na ocasião em que fui prêso, a linda e solitária espôsa
primeira vez na vida, com alguma seriedade, O Ogro, erguen- de um militar convocado e servindo no exterior, morreu inespe-
do-se à minha frente numa névoa. Descobri, alarmado, que radamente três semanas depois de eu entrar na prisão; e os rígi-
O Ogro exercia tremendo e espantoso poder sôbre mim, e não dos e desumanos regulamentos controlando a correspondência
compreendia êsse poder nem por que estava à sua mercê. Ten- entre prisioneiros e pessoas livres impediam que eu me corres-
tei repudiar O Ogro, arrancá-lo do meu coração como fizera pondcsse com outras jovens senhoras que eu conhecia. Aquilo
com Deus, a Constituição, os princípios, a moral e os valôres deixou-me sem qualquer contato com mulheres, exceto as de
- mas O Ogro tinba suas garras enterradas no âmago do meu minha família.
ser e recusava-se a tirá-las. Lutei freneticamente para liber- No processo para suportar meu confinamento, resolvi
tar-me, mas O Ogro apenas zombou de mim e afundou suas arrumar uma dessas jovens que posam para fotografias a fim
garras ainda mais profundamente na minha alma. Compreendi, de colá-la na parede da minha cela. Eu me apaixonaria por
então, que havia encontrado uma chave importante, que, se con- ela e extravasaria minhas afeições. Ela, uma representante sim-
quistasse O Ogro e quebrasse seu domínio sôbre mim, estaria bólica da classe proibida de mulheres, ajudar-me-ia até que eu
livre. Mas sabia, também, que era uma corrida contra o tempo fôsse pôsto em liberdade. Das páginas da revista Esquire, casei
e que se eu não vencesse, certamente seria dominado e destruído. com uma noiva de form as voluptuosas. Nosso casamento fêz
Eu, um homem negro, enfrentei O Ogro - a mulher branca. progressos durante algum tempo: sem brigas nem queixas. E
Na prisão, aquelas coisas recusadas e proibidas ao prisio- então, certa noite, quando voltava da escola, fiquei horrorizado
neiro tornam-se precisamente, claro, as que êle mais deseja. c enraivecido ao saber que um guarda entrara em minha cela,
Como éramos trancados nas celas antes do anoitecer, costumava arrancara meu "doce de côco" da parede, rasgara-o em peda-
ficar acordado durante a noite, torturado pela ansiedade dolo- cinhos e deixara o papel picado espalhado no vaso sanitário:
rosa de dar uma voltinha à luz das estrêlas, ou ir à praia, diri- era como ver um cadáver boiando num lago. Dando-lhe o entêr-

7
6
ro que merecia, puxei a descarga. E como diz o dito popular, - todos manifestaram uma preferência, e de modo geral admi-
mandei-a para Long Beach. Mas, fiquei realmente descontro- tiam livremente seu desagrado pelas mulheres negras.
lado de raiva: quase tôdas as celas, exceto aquelas dos homos- - Pra mim, prêto só Cadillac - disse um dêles.
sexuais, tinham uma garôta na parede c os guardas não se - Se dinheiro fôssc prêto, não queria nem um níquel
importavam. Por que, indaguei ao guarda no dia seguinte, tinha - afirmou outro.
me escolhido para um tratamento especial? Um prisioneiro baixo e atarracado, bom pugilista pêso-leve,
- Você não sabe que temos um regulamento proibindo com o complexo de homem pequeno que o fazia gostar de boxear
a colagem de fotografias nas paredes? - perguntou-me êle. com pesos-pesados, saltou sôbre os çés. Tinha uma côr ama-
relada e nós o chamávamos de Borboleta.
- Que se danem as regras. - respondi. - Você sabe tão - Todos vocês, crioulos, são uns porcos! - esbravejou
bem quanto eu que êsse regulamento não é observado. o Borboleta. - Eu não vou com nenhuma branca fedorenta.
- Vou lhe dizer uma coisa. - continuou êle r·indo para Minha avó é branca e nem mesmo dela eu gosto!
mim (o sorriso fêz com que me colocasse de guarda) - assumo Mas isso aconteceu de tal modo que o comparsa do Bor-
o compromisso com você: arn1me uma jovem de côr para colar boleta, também no meio do grupo, logo após disse ao compa-
- mulher branca, não - e eu a deixarei ficar na parede. Esta- nheiro de crime :
mos conversados? - Ora, sente-se e fique quietinho, "seu" pedaço de tronco.
E u fiquei mais embaraçado do que chocado. ~lc rindo na E aquela garôta mais pra branca que pra preta que abriu seu
minha cara. Chamei-o de uns dois ou três palavrões c me afas- nariz? Você a desejava, ou estava somente correndo atrás dela
tei. Posso ainda lembrar sua grande cara de lua arreganhando com a língua de fora porque a odiava?
os dentes amarelos para mim. O aspecto perturbador de todo Parte porque ficara embaraçado e parte porque seu com-
o incidente foi que um terrível sentimento de culpa caiu sôbre parsa era pêso-pesado, Borboleta vôou sôbre êle. E, antes que
mim quando me dei conta de que escolhera a fotografia da pudéssemos separá-los e nos dispersar, para que o guarda não
jovem branca entre várias fotos de garôtas negras. Tentei esque- soubesse quem estivera brigando, Borboleta tirava sangue do
cer, mas estava fascinado pela verdade que o fato envolvia. Por nariz do companheiro. Borboleta fugi u mas, por causa do san-
que, ante~, não tinha pensado naquilo sob êstc ângulo? Assim, gue, o comparsa foi apanhado. No jantar daquela noite comi
concentre1-me na questão e comecei a investigar meus senti- ao lado de Borboleta e interroguei-o duramente sôbre sua ati-
mentos. Seria verdade, eu preferira mesmo a branca ao invés tude em relação às brancas. E, após a evasiva inicial, admitiu
das negras? A conclusão foi clara e inevitável: preferira. que a mulher branca também fazia pouco dêle.
Decidi sondar meus amigos sôbre a questão c foi fácil deter- - E. uma praga - disse êle. - Passamos a vida tôda
minar, das conversas em geral, que a mulher branca ocupava com a mulher branca dançando diante de nós como uma cenoura,
um lugar peculiarmente proeminente em todos os nossos traços prêsa num caniço, na frente de um burro: olhe mas não toque.
de referência. Com que aprendi desde então, isso tudo parece (Em 1958, depois de minha saída em liberdade condicional e
agora terrlvt:lmente elementar. Mas, na ocasião, foi uma aven- tlc ter sido devolvido a San Quentin sob nova acusação, Borbo-
tura tremendamente intricada. leta ainda estava lá. Tornara-se muçulmano negro e foi o prin-
Uma tarde, quando um grande grupo de negros estava no cipal responsável pelo meu aprendizado da sua filosofia. Depois
pátio da prisão tomando sol, agachei-me junto a êles e apresen- de sua libertação de San Quentin, Borboleta entrou para a mes-
tei o problema: o que êles preferiam, mulheres brancas ou negras? quita de Los Angclcs, galgou ràpidamente os degraus hierár-
Alguns disseram que as japonêsas eram suas favoritas, outros quicos e é, agora, um experiente ministro das mesquitas de Elijah
as chinesas, alguns as européias, outros as mülhercs mexicanas Mu h ~1mmad, em outra cidade. Conseguiu completar seu tempo

8 9
geral. Quando voltei a mim, estava trancafiado numa cela de
paredes acolchoadas, sem a mais vaga lembrança de como fôra
de livramento condicional, casou-se - com uma môça bem parar ali. Tudo que podia lembrar era uma eternidade de passos
preta - e está .indo muito bem.) indo e voltando na cela, pregando para as paredes sem ouvidos.
_De nossa discussão, que começou naquela noite e jamais Tive várias conversas com o psiquiatra. Sua conclusão foi
termmo~, passamos a observar até que ponto, no curso dos
de que eu odiava m.inha mãe. Como chegou a isto eu nunca
acontecimentos, o crescimento do negro na América é doutri- soube, porque êle nada conhecia a respeito da minha mãe; e,
nado dentro do padrão de beleza da raça branca. Não que os quando me fazia perguntas, eu respondia com mentiras absurdas.
brancas façam.um esfôrço c?nsciente e calculado para isso, pensá- O que me revoltou nêle foi que me ouvira denunciar os brancos,
vamos; mas, Já que conshtuem a maioria, fizeram uma lava- ainda que em cada entrevista guiasse deliberadamente a conversa
gem cerebral nos n~gros pelos mesmos processos que empre- para a vida da minha família, para a minha infância. Aquilo
gara~ ~a ra s~. doutn~arem nos padrões do seu próprio grupo. em si estava certo, mas êle propositadamente bloqueou tôdas as
Aquilo mtensificou mmhas frustrações por saber que fui doutri- minhas tentativas de trazer à tona a questão racial, e deixou
nado para ver a mulher branca como mais bonita e desejável claro que não estava interessado na minha atitude com relação
do q~e as ,mulheres da minha própria côr. Aquilo lançou-me aos brancos. Era uma caixa de Pandora que êle não se preo-
aos livros a procura de luz sôbre o assunto. No Native Son cupou em abrir. Depois de suspender minhas severas críticas
de Richard Wright, encontrei Bigger Thomas e a visão profund~ contra os brancos, tive alta do hospital. Voltei ao convívio dos
do problema.
prisioneiros como se nada tivesse acontecido. Continuei a medi-
Meu interêsse nesta área persistiu e depois, em 1955 ocor- tar sôbre êsses acontecimentos e sôbre a d.inâmica das relações
re.u w;n fato em Mississipi que me virou pelo avêsso: Émmett raciais na América.
Tdl, Jovem negro de Chicago, fôra assassinado por flertar,
Durante êste período, concentrei minhas leituras no campo
supostamente, com uma mulher branca. Fôra morto a tiros
da economia. Tendo previamente passado os olhos nas teorias
a cabeça esmagada pelos repetidos golpes com barras de ferro:
e escritos de Rousseau. Thomas Paine e Voltaire, dei um certo
e o corpo, totalmente decomposto e com um pêso amarrado
polimento na minha posição iconoclasta sem, entretanto, impor-
foi ret~ado de um rio. F iquei, naturalmente, revoltado com tudo:
tar-me muito em compreender suas posições afirmativas. Na
Mas VI, um dia, numa revista, a fotografia da mulher branca
com a qual Emmett Till alegadamente flertara. Enquanto olhava economia, porque todos pareciam achar necessário atacar e con-
a. foto, senti aquela ligeira tensão no centro do peito que expe- denar os escritos de Karl Marx, procurei seus livros e, embora
êle tivesse me deixado com dor de cabeça, adotei-o como auto-
runento quando uma mulher me atrai. Fiquei enojado e revol-
tado comigo mesmo. Ali estava a mulher que causara a morte de ridade. Não estava preparado para compreendê-lo, mas era
capaz de ver nêle uma crítica e condenação eficazes do capi-
um negro, .possivelmente porque quando êle olhou para ela tam-
talismo. A descoberta de que, realmente, o capitalismo ameri-
bém ~xpenm eotou, as mesmas tensões de lascívia e desejo dentro
cano merecia todo o ódio e desprêzo que sentia por êle, no fundo
do petto - e provavelmente pelas mesmas razões que senti. Tudo
do coração, foi para mim algo como tomar o remédio adequado.
era inacreditável para mim. Olhei a fotografia uma, duas vêzes
Isso teve um efeito positivo e estabilizador sôbre mim - até
e, apesar de tudo, contra a minha vontade e o ódio que sentia
certo ponto, porque eu não estava disposto a ficar bitolado -
pela mulher e tudo que representava, ela me atraía. Senti raiva
de mim mesmo, da América, da mulher branca, da história que c desviou-me de uma antiga preocupação: meditações mórbidas
provocara aquelas tensões no meu peito. sôbrc o homem negro e a mulher branca. Prossegu.indo minhas
leituras até a história do socialismo, li, sem também entender
Dois dias depois, sofri um "colapso nervoso". Durante muito, alguns dos apaixonantes e exortat6rios escritos de Lênin;
vários dias gritei e esbravejei contra a raça branca, contra a
mulher branca, em particular, contra a Am6rica branca, em 11
10
apaixonei-me pelo Catecismo do Revolucionário, de Bakunin e Tu és a minha Moby Dick,
Nechaiév - cujos princípios, juntamente com alguns conselhós Feiticeira branca,
de Maquiavel, procurei incorporar ao meu próprio comporta- Símbolo da corda e da árvore da fôrca,
mento. Fiz dêsse catecismo a minha bíblia e, insistindo numa Da cruz em fogo.
plataforma pessoal que nada tinha a ver com a reconstrução da Amando-te assim,
sociedade, comecei conscientement e a jncorporar êstes princí- Meu coração se parte em dois.
pios à minha vida diária, a empregar táticas de crueldade com Crucificado.
quem quer que tivesse contato. E passei a olhar a América
branca com êstes novos olhos.
De certo modo, cheguei à conclusão que, por uma questão Tornei-me um estuprador. Para refinar minha técnica e
de p rincípios, era de suma importância para mim ter uma ati- modus operandi, comecei a praticar com as môças negras do
tude hostil e sem compaixão para com as mulheres brancas. O gueto - do gueto negro, onde a ignorância e o vício não apa-
têrmo proscrito atraía-me e, quando se aproximava a hora do recem como anomalias ou desvios do padrão normal, mas como
meu livramento condicional, considerei já ser mentalmente livre parte da aptidão para o sofrimento. E, quando achei que
- eu era um proscrito. Afastara-me da lei do homem branco, estava suficientemente treinado, saí em campo seguindo a pista
que eu repudiava com desdém e satisfação. Transformei-m e na
da prêsa branca. Tudo isto foi consciente, del iberado, volun-
própria lei - meu próprio legislativo, minha própria suprema
côrte, meu próprio executivo. No momento em que saí pelo tário e ordenado - apesar de agora sentir que me encontrava
portão da penitenciária, meus sentimentos em relação às mulhe- possuído por um espírito enfurecido, desenfreado e completa-
res brancas, em geral, podiam ser resumidos nas seguintes linhas: mente depravado.
O estupro era um ato de insurreição. Enchia-me de prazer
o fato de ue estava desafiando e pisoteando a lei do homem
A UMA MÔÇA BRANCA branco, o seu ststcma de valôrcs, e que via ava suas mulherCJ
- c .isto, acredito eu, era o que mais me satisfazia, porque me
Eu te amo sentia revoltado com o modo pelo qual, lústôriamente, o homem
Porque és branca, branco fizera uso da mulher negra. Achei que estava obtendo
Não porque és atraente a vingança. Partindo do local em que fôra cometido o estupro,
O u fascinante. a consternação propagava-se em círculos concêntricos. Queria
Tua brancura enviar ondas de consternação por tôda a raça branca. Recente-
:B um fio de sêda mente, encontrei esta citação num dos poemas de LeRoi Jones,
Embaraçando-s e nos meus pensamentos tirado do seu livro The Dead Lecturer:
Em riscos incandescentes
De lascívia e de desejo.

Eu te odeio Um culto de morte necessita do simples braço em


Porque és branca. posição de ataque sob um lampião de rua. Dos corta-
Tua carne branca é alimento de pesadelos. dores de sua terra arrendada. Apareçam, dadaístas niilis-
Branca é tas negros. R aptem as môças brancas. Raptem seus pais.
A pele do Demônio. Cortem as gargantas de suas mães.

12 13
Vivi aquelas linhas e sei que, se não tivesse sido agarrado
pelas autoridades, teria raspado algumas gargantas brancas. pela Liberdade de Expressão), aos teach-ins*, e ao crescente
Existem, é claro, muitos jovens negros lá fora que neste exato movimento de protesto contra a política externa de Lyndon
momento estão cortando gargantas brancas e violando a môça Strangelove; tudo isto, e os milhares de pequenos detalhes, mos-
branca. Não estão fazendo isso porque leram as poesias de traram-me que estava na hora de me compor c andar no rumo
LeRoi, como alguns críticos parecem acreditar. Pelo contrário, certo. Daí o motivo de concentrar meus escritos e esforços nesta
LeRoi expressa simples fatos da vida. área. Estamos num país muito doente - eu, talvez, seja mais
Após voltar à prisão, passei algum tempo examinando a doente do que a maioria. Mas aceito isso. Disse no princípio
mim mesmo e, pela primeira vez na vida, admiti que estava que sou um extremista por natureza - assim, também é justo
errado, que me extraviara - não tanto da lei do homem branco, que eu deva ser extremamente doente. ,
mas do ser humano, civilizado - pois não podia aprovar o Estava bem familiarizado com o Eldridge que veio para a
estupro. Embora tivesse algum conhecimento de minhas moti- prisão, mas aquêle Eldridge não existe mais. E o que sou agora
vações, não me sentia justificado. Perdi o auto-respeito. Meu é de certo modo estranho para mim. Podem achar difícil de
orgulho de homem dissolveu-se e tôda a minha frágil estrutura compreender, mas é muito fácil para alguém na cadeia perder
moral pareceu ruir, completamente abalada. seu senso de indivíduo. E se êlc fo i suportanto tôdas as espé-
Eis por que comecei a escrever. Para salvar a mim mesmo. cies de mudanças radicais, complicadas e desordenadas, então
termina não sabendo quem é. Tomemos como exemplo a ques-
Concluí que ninguém poderia me salvar, a não ser eu mesmo. tão de ser atraente para as mulheres. Vê-se fàcilmente como
As autoridades da penitenciária eram desinteressadas e incapa- um homem pode perder sua arrogância ou certeza sôbre a ques-
zes de salvar-me. Precisava procurar a verdade e desenredar o tão, prêso numa cela! Quando está no mundo livre, é constan-
emaranhado de minhas motivações. Tinha de descobrir quem temente alertado sôbre como está sua aparência pelo número de
eu era e o que desejava ser, que tipo de homem eu devia ser, cabeças femininas que faz virar quando caminha pela rua. Na
e o que poderia fazer para tomar-me o melhor no que eu era prisão, o máximo que êle consegue são olhares de ódio e sobran-
capaz. Compreendi que aquilo que se passara comigo também celhas franzidas. Anos e anos de olhares carrancudos. A indi-
acontecera a um sem-número de outros negros, e que aconte- vidualidade não é nutrida na prisão, nem pelas autoridades nem
ceria com muitos e muitos mais. pelos condenados. :b um buraco muito fundo para se sair.
Constatei que eu procurara a saída mais fácil, fugindo dos O que deve ser feito, acredito, é que todos êsscs problemas
problemas. Também aprendi que era muito mais fácil fazer - particularmente a indisposição entre a mulher branca e homem
o mal do que o bem. E fiquei terrivelmente impressionado com negro - devem ser trazidos à luz, estudados e resolvidos. Sei
os jovens da América, negros e brancos. Sinto orgulho dêles que a atitude doentia do homem negro em relação à mulher
porque reafirmaram minha fé na humanidade. Senti o que deve branca é uma doença revolucionária: que o mantém perpetua-
ser o amor para a juventude da América e quero ser parte da mente fora de harmonia com o sistema que o oprime. Muitos
hruncos autolisonjeiarn-se com a idéia de que a lascívia e o desejo
bondade e da grandeza que ela deseja para tôdas as pessoas. do homem negro pela môça branca dos seus sonhos é pura-
Da minha cela na prisão, observei a América ir acordando aos mcnlc uma atração estética, mas nada poderia estar mais dis-
poucos. Ainda não acordou totalmente, mas existe vida no ar
e em todos os lugares eu vejo a beleza. Assisti aos sit-ins, às
incursões pela liberdade, aos verões sangrentos de Mississipi, às • 'l'rach -ins: período prolongado de conferência e discursos espe-
manifestações em todo o país, ao movimento FSM (Movimento llll llllt'lltc cond uzido~ em colégio ou universidade, por seus membros
1111 i'On vidndoH, como expressão de protesto social. (N. do T .)
14
15
tante da verdade. Sua motivação é de um modo geral de natu-
reza tão sangrenta, pérfida, penetrante c perversa, que os brancos
são realmente pressionados a acharem lisonjeira. Discuti êsses
aspectos com os prisioneiros que foram condenados por estupro,
I
e suas motjvações são muito simples. Mas relutam em discutir
com o homem branco que, na sua maioria, compõe os quadros
da prisão. Acredito que na experiência dêsses homens está a
sabedoria e a prudência que devem ser utilizadas para auxiliar Alma no Exílio
outros jovens que rumam na mesma direção. Penso que todos
nós, a nação inteira, caminharemos melhor se encararmos tudo
isso diretamente. O sentimento de muitas pessoas será ferido, ---- ------------------------------------
mas êste é o preço que precisa ser pago.
Pode ser que eu possa ferir a mim mesmo falando franca
e diretamente, mas não me importo com isso. :a claro que quero
sair da prisão, e quero muito, mas tenho certeza de que um
dia sairei. E estou mais preocupado com o que serei após
sair. Sei que seguindo o curso que tracei encontrarei minha
salvação. Se tivesse seguido o rumo marcado para mim pelas
autoridades, indubitàvelroente já estaria lá fora há muito tempo
- mas não seria um homem inteiro. Seria mais fraco e não
teria certeza sôbre onde desejo chegar, o que desejo fazer e Penitenciária Estadual de Folsom
como ir até lá. 9 de outubro de 1965

O preço de odiar outros sêres humanos é amar menos T ENHO perfeita consc1encia de que estou na pnsao, de
a si próprio. que sou negro, de que fui estuprador e de que sou diplomado
em ignorância. Nunca soube que significado se espera que eu
atribua a êsses fatôres . Mas suspeito de que, em conseqüência
dêsscs aspectos do meu caráter, as pessoas "livres-normais-ins-
llllfdas" , seguramente esperam que eu seja mais reservado, peni-
tente, arrependido e não muito rápido para abrir a bôca sôbre
t·crtos assuntos. Mas eu as "deixei na mão", desapontei-as,
lú com que ficassem boquiabertas numa espécie de torpor, como
se estivessem pensando: "Você está ficando maluco! Será que
nao vê que tem um débito com a sociedade?" Minha resposta
tt todos C:stcs pensamentos ocultos nas suas cabeças quadradas,
t·w ondidos atrás de olhos vesgos e bombardeadores, é que o
"iiii!\IIL: dos camponeses vietnamitas já pagou todos os meus débi-
tnH; que 1l povo vietnamita, afligido por um mal devastador

18 17
tiva de libertá-lo. Mas pode um condenado realmente amar um
chamado Ianque, através de seus sofrimentos - em oposiÇao advogado? :e uma coisa de mau gôsto. Os condenados odeiam
à "frustração" dos tranqüilos amer-icanos bem nutridos, seguros advogados. Caminhar pelo pátio da penitenciária e falar bem
em suas casas e preocupados em comer bacon, presunto ou sal- de um advogado é levantar as sobrancelhas caídas pelo abati-
sicha com ovos de primeira qualidade, enquanto os vietnamitas mento de criminosos maníacos. Os presidiários estão conven-
se preocupam cada manhã em saber se os ianques vão lançar cidos de que os advogados devem possuir um caderninho prêto
gases, incendiá-los ou explodir seus humildes abrigos com sarai- secreto que a ninguém mais é permitido ver, um livro que lhes
vadas de bombas - cancelaram todos os rou*. ensina uma moralidade esotérica, na qual o Deus Supremo é
Ao começar esta carta, poderia - com a mesma facilidade traiçoeiro, e confundir um cliente de confiança, a mais nobre das
- ter mencionado outros aspectos da minha condição. Poderia ações. Os prisioneiros ficaram sabendo que eu me "queimara"
ter dito: estou perfeitamente consciente de que sou alto, de que com algumas revistas que me foram dadas por meu advogado e
sou magro, de que preciso me barbear e de que tenho vigor que eu fôra atirado no "Buraco" por causa daquilo. Riam inten-
suficiente para chupar as velhas têtas murchas da minha avó, cionalmente e me diziam que eu bancara o trouxa, que meu
e de que cu cavaria cada vez mais profundo para ficar limpo advogado me enrolara e que, se não conseguia ver a conspi-
novamente, não apenas no sentido de tomar um banho a vapor, ração, eu era tão estúpido que compraria, não só a ponte Golden
mas de me transformar num perfeito cavalheiro com um toque Gate, mas até um sorvete derretido.
do Harlem; ou de que gostaria de vestir um macacão, colocar
Agora era a minha vez de rir maliciosamente. A paranóia
um babador e tornar-me um Bobalhão, de que gostaria de com- do condenado é tão espêssa quanto o muro da penitenciária -
pletar a "última milha"** e deixar a barba crescer do modo como
e, no momento, necessário. Por que deveríamos ter fé em qual-
requer o nacionalismo local, e me vestir como camarada à moda
de Che Guevara, e compartilhar do seu destino, proclamando quer um? Mesmo nossas espôsas e amantes cujas camas compar-
um nôvo rumo a explorar através do cérebro otimista e blo- tilhamos, com as quais repartimos os momentos mais felizes e
queado da Nova Esquerda, ou de como gostaria de estar neste as relações mais delicadas, deixam-nos depois de algum tempo,
momento em Berkeley, rolando naquela lama, fazendo traves- humilham-nos, proclamam independência e tratam-nos como se
suras naquele chiqueiro de revolução tímida, respirando seus nos odiassem, não nos escrevem sequer uma carta, ou mandam
gases fortes, c olhando indiferentemente para um nôvo John um cartão de Natal cada ano, ou alguns maços de cigarros ou
Brown, um Eugene Debs, um negro humilde e astuto como Mal- tubo de pasta de dente de vez em quanto. Tôda a sociedade
colm X, um Robert Franklin WiJl!ams, um Lênin americano, mostra a bunda para o prisioneiro e espera que êle a beije: o
um Fidel, um Mau-Mau, UM MAU-MAU, UM MAU-MAU, UM MAU- presidiário sente como se levasse um chute ou uma bala bem
MAU, UM MAU-MAU, UM MAU-MAU, UM MAU-MAU. . . Tudo no traseiro. Vê as unhas e dentes do homem e aprende ràpi-
isto é verdade. damentc a descobrir e mostrar as suas. Manter o freio sôbre
Mas o que importa é que me apaixonei por meu advogado! os ideais e sentimentos da civilização em tais circunstâncias é
Não é surpreendente? Espera-se de um condenado que tenha alta provàvelmcnte impossível. Quanto mais incrível não será, então,
consideração por qualquer um que chegue em seu auxílio, que r nquanto enraizados neste buraco, apaixonar-se, e por um advo-
tente ajudá-lo e que gaste tempo, energia e dinheiro na tenta- l'ado! Use um advogado, sim; use qualquer um. Diga-lhe
ruc-;rno que você está apaixonado. Mas você sempre saberá
quundo cstú mentindo e, mesmo se conseguisse ludibriá-lo, não
~· w1 scguiria jamais ludibriar a si mesmo.
• Abreviatura fonética de l owe you: vale, reconhecimento de dí-
vida, contendo os três letras seguidas da quantia c llssin<~tura. (N. do T.) n por que você fica triste quando vê que tudo depende
** O autor refere-se ao caminho entre a sua cela e a câmara da dt· tais fios tênues c caprichosos? Porque você é um sonhador,
morte. (N. do T.)
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- ..-._ - -- __.... ~~--~-- ~ -- -----~~
- ---

um incrível sonhador, com uma minóscula centelha escondida À noite, falo com ela no meu sono, longos diálogos nos
em algum lugar dentro de você e que não pode se apagar, c que quais ela me responde. Alternamo-nos ao falar, como no
nem você pode extinguir ou dominar e que o tortma horr'ivel- script de uma peça. E deixe-me dizer que não acredito em uma
mcnte, porque tôdas as chances são a favor de seu contínuo abra- palavra do que ela diz. Acordo reanimado e, embora meu sono
samento. Em meio à mais sórdida decadência e pútrida selva- tenha sido agitado, não fico cansado. Exceto por umas poucas
geria, esta centelha lhe fala de beleza, de calor e de bondade horas perdidas nas quais ela desaparece e eu caio em sono
humana, de generosidade, de grandeza, de heroísmo, de mar- profundo, flutuo num nível entre a consciência e a paz, e o
tírio e lhe fala de amor. diálogo prossegue. Isso não me aborrece agora. Freqüente-
mente passo por isto quando alguma coisa prende minha cons-
Por esta razão, amo meu advogado. Meu advogado não
ciência.
é uma pessoa comum. h um rebelde, um revolucionário que
Tendo grande consideração pelas pessoas que realmente
está alienado fundamentalmente do status quo e, provàvelmeote,
ouvem os outros, o que a outra pessoa tem para dizer, porque
com uma intensidade, convicção e irrecuperabilidade tão grandes
raramente se encontra alguém que seja realmente capaz de falar
quanto a minha alienação - e possivelmente com mais inteli- e deixar falar com a mesma seriedade. Naturalmente, quando
gência, compaixão e humanidade. Se você ler os jornajs, não
estava fora da penitenciária, não era exatamente assim; as
terá dúvidas quanto ao incessante envolvimento do meu advo-
sementes estavam ali, mas havia muita confusão e loucura mis-
gado na agitação contra tôdas as manifestações dos monstruosos
turadas. Guardava um profundo desejo de me comunicar e
males do nosso sistema, tais como a intervenção nos assw1tos
conhecer outras pessoas, mas era incapaz. E não sabia como
internos do povo vietnamita ou a invasão da República Domi-
fazer.
nicana pelos fuzileiros norte-americanos. E o meu advogado Conseguir conhecer outras pessoas, entrar naquele mundo
defende os manifestantes dos direitos civis, os que participam
nôvo, é um salto derradeiro e irreparável para o desconhecido.
de sit-ins, os estudantes que protestam em favor da Liberdade
A perspectiva é aterradora. Os riscos são enormes. As emoções,
de Expressão e que rebelaram contra a máquina Kerr-Strong* irresistíveis. Na verdade, duas pessoas relutam em despir seus
na Universidade da Califórnia. Meu amor por meu advogado pensamentos uma para a outra, porque - agindo desta maneira
deve-se, em parte, a estas atjvidades e envolvimentos, porque - tornam-se vulneráveis e dão enorme poder sôbre si. E com
estamos sempre do mesmo lado em tais questões. E cu amo que freqüência se infligem dor e tormento! O melhor é manter
todos os meus aliados. Mas isto, que pode ser o princípio de relações insípidas e superficiais; dêste modo, as cicatrizes não são
uma explanação, não chega a explicar o que se passa entre nós. tão profundas. Dos rasgos na alma não corre sangue.
Suponho que devesse ser franco e, antes de me aprofundar Mas não acredito que um relacionamento maravilhoso tenha
mais no assunto, admitir que meu advogado é uma mulher - sempre de acabar em carnificina, ou que tenhamos de ser frau-
ou, talvez, devesse omitir esta parte do enigma - uma mulher dulentos e pretenciosos uns com os outros. Se projetarmos ima-
excelente, fora do comum e linda. Sei que ela acredita que eu gens fraudulentas e pretensiosas, ou se nos fantasiarmos com
realmente não a amo e que estou confundindo uma combinação caricaturas destorcidas do que realmente somos, então, quando
de desejo e gratidão com amor. Desejo e gratidão eu sinto acordarmos do transe e contemplarmos além da falsidade e da
em abundância, mas também amo esta mulher. E temo que, vergonha, tudo se dissolverá, tudo morrerá ou será transformado
acreditando que não a amo, ela aja de acôrdo com tal crença. em rancor e ódio. Sei que algumas vêzes as pessoas se enganam
por motivos genuínos para se apegarem ao objeto de seus senti-
mentos mais ternos. Consideram-se a si mesmas de tal modo
"' Ciark Kerr, educador norte-americano, nascido em 191 1, e Di- inadequadas que se sentem forçadas a usar continuamente uma
retor da Universidade da Califórnia de 1958 a 1967. (N. do T.) máscara para impressionar à outra.

20 21
Se um homem é livre - ou seja, não está na pnsao, no e a beleza de sua plumagem, seduz o moribundo de volta à vida.
Exército, num mosteiro, num hospital, numa espaçonave, num O homem à morte sente correr com fôrças dentro de si, através
submarino - e vive uma vida normal com a costumeira multi- das veias do seu corpo, vindas da densa atmosfera criada pela
plicidade de relações sociais com indivíduos de ambos os sexos, presença do pássaro; e sabe intuitivamente no seu apêgo à vida,
pode se revelar incapaz de experimentar o impacto total de que se o pássaro permanecer ali êle reconquistará a fôrça e a
outro indivíduo sôbre si próprio. As influências competitivas e vitalidade - e a vida.
fôrças conflitantes de outras personalidades podem diluir a per-
cepção física e emocional de alguém, até o ponto em que êste Vendo a imagem escapulir dos fracos dedos de sua cons-
não recebe, e nem pode receber, tudo que a outra pessoa é ciência tão logo o pássaro se vá, a mente luta por um sinal dêle
capaz de transmitir. no qual possa prender a memória. Com ciúmes, guarda a lem-
Contudo, posso acreditar que um homem cuja alma ou brança enfraquecida do seu encontro, com a avidez do usurário
mecanismo emocional jaz adormecido num limbo sem vida de que contempla as ações mais rendosas da Bôlsa de V alôres. A
dessuetude seja capaz de responder do fundo de algum grande impenetrável maquinaria do subconsciente projeta a imagem
manancial submerso em seu ser, algo como um potente catalisador sôbre o consciente: o braço direito dela, nu da curva do ombro
atirado numa massa crítica, quando uma mulher atraente, cati- à ponta dos dedos. (Teriam seus lábios tremido com o desejo
vante e amorosa entra no raio de ação dos seus sentimentos. de marcar aquela carne macia e d~ aparência fria com um beijo
E que incitamento profundo, moroso, atormentador, relutante e de fogo, e teriam seus dedos comichado pela ânsia de carícias?)
alarmante! :Ble sente uma certa parte de si em estado de fluxo, Tal é a magia de uma mulher, o princípio feminino da natureza
como se algo estranho e incorpóreo tivesse mexido dentro do corporificado por ela, o poder de ressuscitar e revitalizar um
seu corpo, estremecendo-o ao se flexionar; sente-se como se homem solitário totalmente isolado.
voltasse lentamente à vida. Muda a composição química do seu Tinha vinte e dois anos quando entrei na penitenciária e,
·corpo e é estimulado por novas fôrças. é claro, mudei tremendamente com o passar dos anos. Mas
A princípio, quando ela se aproxima dêle, seu coração é sempre tive grande autocrítica e, nos últimos anos, senti que
vazio, um lugar desolado, um oásis sem água, inconsolável, e êle estava perdendo a identidade. Havia um marasmo em meu
anseia por uma mulher, sem cujo sustento a tensão de sua corpo que se evadia, como se não pudesse localizar exatamente
masculinidade não se afrouxa. Sente a necessidade imperativa sua posição. Eu percebia êste amortecimento, esta sensação de
da bondade, simpatia, compreensão e da voz de uma mulher atrofia que perseguia o fundo da minha consciência. Devido a
de ouvir o seu riso em resposta às palavras que pronuncia, de êste ponto insensível, senti-me peculiarmente desequilibrado, com
olhar dentro dos seus olhos, de aspirar sua fragrância primitiva, a percepção de alguma coisa desaparecida, de uma mancha
de ouvir - com os ouvidos massacrados - o sussurro sensual branca, de uma certa sensação de vazio. Agora, sei o que era.
de roupas íntimas quando as pernas são cruzadas e descruzadas Após oito anos no presídio, fui visitado por uma mulher, uma
sob a mesa, de sentir o pêso delicado e tímido de sua mão - mulher que estava interessada no meu trabalho e preocupada
e como dolorosa e completamente êle tem consciência de sua com o que acontecera comigo. E, desde que a conheci, senti a
presença, de cada movimento seu! S como se deixassem alguém vida, a fôrça correndo de volta àquela mancha. Meu modo de
morrer atrás de um arbusto numa estrada solitária. O sol quente andar, os passos nas minhas caminhadas, que se haviam tornado
e a sombra do arbusto, se não oferecem uma extensão da vida, incertos e inseguros, começaram a recuperar a precisão, a con-
proporcionam pelo menos uma morte lenta. E tão logo êste fiança e o arrôjo que davam vontade de pular sôbre as mesas.
alguém sinta que a próxima respiração será certamente a última, Agora, posso até andar com um pouco de arrogância e, como li
um pássaro raro e com as côres do arco-íris pousa suavemente num livro em algum lugar, "impulsionar-me como uma loco-
num galhinho do arbusto e, com a magia do seu canto melodioso motiva".

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cidade reuniu-se na quadra de basquete. fuibiam sorrisos jubi-
lantes e triunfais, animados por um espírito bairrista, como se
também êles estivessem no centro do levante, que tinha lugar
a centenas de quilômetros ao sul, no gueto de Watts.
- Rapaz - disse um dêles - o que estão fazendo por lá?
Dá o serviço, meu chapa.
Quatro Vinhetas Todos bateram com as palmas das mãos uns nos outros,
numa saudação enfática, e irrompcram em risos de prazer.
- Meu chapa, nossos irmãos estão tomando conta do ne-
gócio! - gritou outro, extasiado.
Um low réder, então, avançando para o centro do círculo
formado pelos outros, inclinou-se para trás e fêz um rodopio
empunhando o cinto com os braços esticados da maneira como
vira J ames Cagney e George Raft fazerem em muitos ftlmes de
gangsters. Juntei-me à roda. Pressentindo a 3Froximação de um
momento de criatividade, todos ficamos bem quietos, impassíveis,
e outros companheiros que passavam por ali chegaram-se à roda,
Sôbre Watts comportando-se da mesma maneira.
- Camaradas - disse - êles andam em grupos de quatro
e dão pontapés nas portas; tomando Reds* e esmurrando cabeças;
Penitenciária Estadual de Folsom bebendo vinho e cometendo crimes, disparando armas e saquean-
16 de agôsto de 1965 do; gozando** e "lenbando", incendiando e rasgando pneus;
virando carros e destruindo bares; enlouquecendo Parker e fa-
zendo-me ficar satisfeito; acabando com a mentira do "calma,
QUANDO deixamos o refeitório numa manhã de domingo meu irmão" e destacando a querida Watts do mapa - minha
e caminhávamos pelo pátio do presídio, quatro dias depois de bunda preta está em Folsom esta manhã, mas meu coração negro
fracassados levantes em Watts, um grupo de low ríders* daquela está em Watts.
Lágrimas de contentamento corriam dos seus olhos.
Foi um r iso puro e revolucionário que todos compartilha-
• Low rider: Apelido usado em Los Angeles para os jovens do mos, algo de que nós, geralmente, não tínhamos oportunidade
gueto. Originalmente, o têrmo se referia ao jovem que rebaixa a sus- de participar. 1
pensão de seu carro de modo a que ande quase colado ao chão; tam- Watts era um lugar de vergonha. Costumávamos usar Watts
bém implica o estilo de dirigir dêsses jovens. Sentados com os braços como um epíteto, quase da mesma maneira como os rapazes da
esticados ao volante e coro os bancos totalmente reclinados, tudo que
se pode ver são seus olhos, o que constitui a maneira "pra írente" de cidade falam da "roça" como têrmo de derrisão. Ridicularizar
dirigir. Quando êsses jovens alienados surgiram com seus carros, logo alguém como "aleijado", que está por fora do que acontece na
passaram a ser chamados de low riders, expandindo-se o têrmo de tal
modo que todos os jovens do gueto negro - mas nunca os delicados
filhos da burguesia negra - passaram a ser chamados de Low rlders.
No Brasil, o têrmo popular que mais se aproxima de Low rider é "' Recls: um barbitúrico, chamado Red Devils; assim conhecido
"lenhador", aquêle que "lenha'' o automóvel, e adota uma postura si- 1lcvi<.Io a côr de sua cápsula e por possuir efeito estimulante.
milar quando ao volante. (N. do T.) n lligh-siding : Gozar alguém. Rir às custas de outro.

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cidade (um campônio desajeitado); um "matuto" de Los An- Que sensação! Aquilo me tocou profundamente, fêz-me
geles derrubaria qualquer um dizendo que êle acabava de deixar perder o gingado, e só então reparei que estava ali em pé olhando
Watts, que devia voltar a Watts até que apreftdesse o que estava embasbacado para ela como um roceiro imbecil. Fiquei real-
se passando, ou que apenas roubou dinheiro suficiente para mente confuso e embaraçado. "Desliguei" completamente. E,
mudar-se de Watts e que já estava tentando desempenhar um quando procurei a porta para sair correndo, vi-a rolar no chão
papel ativo. Mas, agora, os negros são vistos em Folsom pro- de tanto rir. Aquilo, entretanto, fêz com que me sentisse bem
clamando "sou de Watts, meu chapa!" -não importa que seja e até hoje guardo essa lembrança pelo modo como foi pene~
verdade ou não, pois acho que o significado está claro. Confissão: trante o incidente.
também eu participei dêste jôgo dizendo "sou de Watts". Na
ve~dade, vivi lá por algum tempo, e tenho orgulho disso, a des-
p~tto das lamentações enfadonhas de Whjtney Young, Roy Wil-
Tive uma experiência bem diferente durante uma disputa
k ms e do Pregador. pelo poder entre facções de muçulmanos em San Quentin. Um
irmão de direita tentou deixar-me do lado de fora com uma
tática bem baixa: "Irmãos" - disse êle a todos nós, um dia
- "o irmão Eldridge não deve ter permissão para ocupar qual-
Olhos quer posição até que complete sete anos como muçulmano.
:me tem a Marca da Bêsta no corpo. Olhem seus olhos - êle
têm os olhos do demônio".
Penitenciária Estadual de Folsom As palavras me surpreenderam e me tocaram num ponto
28 de outubro de 1965 sensível. Vários outros irmãos também ficaram confusos. Mas,
um dos meus amigos salvou tudo salientando que "muitos dos
chamados negros têm os olhos estranhos das bêstas. Os demô-
nios fizeram uma mistura de todos nós. Mesmo o honorável
Certa v~z, ~u descia a Main Street, em Los Angcles, por Elijah Muhammad tem olhos com uma côr brilhante. O irmão
volta do meto-dta de um sábado, num lindo e ensolarado dia. Malcolm tem olhos reluzentes. Assim, não saia por aí falando
E ra apenas um garnizé, na casa dos dezesseis anos acho eu dêste modo porque você somente estará pregando a desunião.
e tinha a maneir~ de andar do tipo "penso-que-estou-~bafando": O honorável Elijab Muhammad prega a união. Se você se
saracot~ando e ptsando na ponta dos pés. Diante de mim, junto diz muçulmano, irmão, terá de começar pensando positivo e
à calçada, havia um salão de engraxates. Estava bem na minha abandonar tudo que fôr negativo".
direção. Uma vitrola automática tocava alto uma música de
grande sucesso que me atraiu enquanto caminhava. Passei a O sujeito foi obrigado a bater em retirada o mais rápido
andar seguindo o compasso da música. Sentada no banco reser- possível. Mas eu estava sangrando por dentro.
vado aos fregueses encontrava-se uma "irmã" muito bonita esta-
lan~o os dedos. e retorcendo o corpo no ritmo da música, 'e que
sornu para mtm quando, nossos olhos se encontraram. Não
havia ninguém na engra~t~ria e; ~s~ que subi na cadeira o
disco terminou. Parei óe seguir o compasso e fiquei olba~do
para a garôta completamente fascinado. Então, bruscamente,
ela começou a cantar: "L indos, lindos olhos castanhos".

26
t Br:~;;m;'
Unlvnrsldadt do
27
BIBLIOTECA
Alimento da Alma Marias e Padre-Nossos que, como penitência, o padre mandava.
Irremcdiàvclmente enamorado pelo pecado como eu era, embora
aterrorizado pelos pecados dos outros, ansiava pelo Dia do
Juízo Final e o julgamento perante o júri de meus pares - esta
Penitenciária Estadual de Folsom
era a minha única chance de escapar às chamas que já podia
3 de novembro de 1965
sentir chamuscando meus pés. Encontrava-me, naquela ocasião,
numa instituição do Juizado de Menores da Califórnia por ter
transgred ido as leis do homem; Deus, naquela época, não me
A gente ouve um bocado de jazz falando do Alimento da acusara de nada. E, se acusou, foi uma acusação secreta pois
~lma . Coma tr.ipas: os negros do gueto as comem por neces- jamais fui informado de quaisquer queixas contra mim. Os
Sidade, enquanto a burguesia negra transformou o alimento num motivos pelos quais me tornei católico residiam em que as normas
sl?gan de escárnio. . Comer tripas é acabar virando as próprias
da instituição estabeleciam que, aos domingos, todos os internos
tnpas. Agora que Já conhecem o preço de um bife lá vem êles
batendo o cu sôbre o Alimento da Alma. ' eram obrigados a comparecer à igreja de sua escolha. Escolhi
.A ênfase sôbre o Alimento da Alma é a ideologia da bur- a Igreja Católica porque todos os negros e mexicanos a freqüen-
guesia negra contra-revolucionári a. A principal razão de Elijah tavam. Os brancos iam à capela protestante. Fôra eu imbecil
~uhammad ter proibido a carne de porco para os negros nada ao ponto de entrar na capela protestante, um rosto negro num
tmha a ver com tratados dietéticos. A questão é que quando mar de brancos e, com a guerra de guerrilhas que travávamos,
a gente vê todos aquêles negros engaiolados no gueto com a eu poderia acabar sendo um mártir da cristandade - São Eldrid-
cabeça cheia de bifes de filé - com o pêso do fervor religioso ge, o Estúpido.
atrás do desejo da "bóia" - então alguma coisa precisa ser Tudo terminou quando um dia, numa aula de catecismo, o
dada. ~ sistema fêz concessões aos residentes do gueto para padre perguntou se algum dos presentes compreendia o mistério
que obtivessem um pouco de carne de porco, mas não há pro- da Santíssima Trindade. E u estudava minhas lições aplicada-
visões para que a elite abra mão de um bífe. As paredes come~ mente e sabia de cor o que me havia ensinado. Ràpidamente,
çam a desmoronar.
levantei a mão, com o coração palpitando de orgulho e devoção
por essa oportunidade de demonstrar meu conhecimento do
Verbo. Para minha grande surprêsa e embaraço, o padre afir-
mou - e aquilo soou como o ribombar de um trovão - que
Uma conversão religiosa, mais ou menos cu estava mentindo, que ninguém, nem mesmo o Papa, com-
preendia a Divindade, e perguntou por que pensava eu que êles
chamavam aquilo de mistério da Santíssima Trindade? Como
Penitenciária Estadual de Folsom lllll rclt.mpago, notei - ofendido pelas imediatas vaias de meus
1O de setembro de 1965 t.•ok•gns de catecismo - que tinha sido usado, que o padre
f lt':lrn i'i espreita na espera de uma oportunidade para lançar
.tquclc trovão, de maneira a provar conclusivamente que a ques-
1.111 dn Santíssima Trindade não era para ser trazida à luz da
Já fui católico durante certo tempo. Fui batizado fiz a l w11pr~·c nsão.
minha Primeira Comunhão, a Crisma e usava uma C~z de
Cr~sto p~ê.sa a uma ?orr~nt~a em tôr~o do pescoço. Rezava à P cu pretendia explicar a Trindade através de uma analogia
no1te, d1z1a o rosáno, 1a a Confissão c rezava tôdas as Ave- w u1 11 olco três-em-um; c provàvelmente era parecido.

28 29
fúcio, Lao-Tsé, Jesus Cristo, Moisés, Maomé, Buda, Rabbi Hil-
"O Cristo" e seus ensinamentos lel, Platão, Aristóteles, Marx, Lênin, Mao Tsé-Tung, Zoroastro
e Thomas Merton, entre outros. Certa vez, Lovdj;eff deu uma
aula sôbre Merton, lendo trechos de sua obra e tentando inserir
Penitenciária Estadual de Folsom sua vida e trabalho no contexto. tle parecia querer desespera-
10 de setembro de 1965 damente que respeitássemos a vocação e a escolha da vida con-
templativa de Merton. Foi uma batalha difícil porque uma
prisão, em muitas coisas, é semelhante a um mosteiro. Os inter-
nos na aula de Lovdjieíf odiavam a cadeia. Estarrecia-nos
A primeira vez que tomei conhecimento de Thomas Merton
foi em Sao Quentin, por volta de (acredito) 1959-60. Naquele saber que um homem livre podia entrar voluntàriamente na pri-
são - ou num mosteiro. Deixe-me dizer já: pensávamos que
tempo, um .~anto caminhou sôbre a Terra na pessoa de um tal
Chns LovdJ•eff. Tratava-se de um professor em San Quentin Merton era algum tipo maluco. Tínhamos o mesmo conceito
em relação a Lovdjieff. Meu dcsgôsto íntimo era que, em muitas
e gu~ par~ to~os os que o procuravam. O que ensinava? Tudo.
:e !Da•s fácil diZer apenas que ensinava Lovdjieff e deixemos as coisas, eu não era nada mais que um monge; e como abominava
coJsas se desenvolverem assim. Ele próprio clamava ser uma aquela visão de mim mesmo!
espécie de ~iscípulo de Alan W. Watts, a quem costumava tra- Eu fôra mistificado por Mcrton, mas não podia acreditar
zer a Quentm para nos falar de vez em quando sôbre o hinduís- em sua defesa apaixonada do monasticismo. Desconfiava de
mo, zcnbudisJ?o e sôbre o modo como os povos da Ásia contem- Lovdjieff na questão de Thomas Merton. Minha consciência
playam o um verso. Nunca compreendi como "O Cristo" (era ouviu um apêlo especial na sua voz. Defendendo ardentemente
assun que eu. costumava chamar Lovdjieff, para seu pesar e sofri- Merton, Lovdjieff parecia estar defendendo a si próprio, tentando
mento) po~1a sentar-se ao~ pés de Watts, pois êle sempre me se convencer. Um dia, Lovdjieff confidenciou-nos que tentara
par~ceu ma1s veemente, ma1s humano e possuidor de maior sabe- entrar para um mosteiro, mas não conseguira. Mas terminou
d_?TJ~ do que a que Watts demonstrava tanto em suas confe- conseguindo, mesmo sem entrar. San Quentim era o seu mos-
~cnctas _como em se.us livros. Talvez eu tenha form ado esta teiro. Ocupava-se com a penitenciária como se tivesse uma
1mprcssao por ter fi<:ado mais exposto a Lovdjieff do que a vocação especial para ensinar a prisioneiros. Ficava lá dias e
Watts. Contudo, ha~a alguma coisa com respeito a Watts que noites, mesmo aos sábados, sem nunca faltar. As autoridades
me lembrava de un:t mteressante e bem feito anúncio de um apa- precisavam, às vêzes, mandar um guarda à sua sala para que
relho para econom1zar trabalho, destinado à dona de casa ame- parasse a aula, a fim de que os detentos pudessem ser trancados
ricana, e publicado com destaque nas páginas centrais da revista ~·m suas celas para passar a noite. :l?.le ficava horrorizado com
Li/e; embora. a principal qualidade de Lovdjieff parecesse ser a n fato de que lhe podiam fazer tal exigência. Com r elutância,
dor e o s~frunento, be?l ~orno uma fôrça peculiar apoiada na ficntava-se pesadamente na cadeira, sobrecarregado pela derrota,
compreensao do seu propno desamparo, fraqueza e necessidade. t' di;.ia-nos que fôssemos para nossas celas. Parte do poder que
Es~dei ~om Lovdj.ie~ a história J?Undial, filosofia oriental, filo- lhe havíamos dado consistia em que nunca deixávamos sua aula
sofia oc1dental, rcl!g~ao comparatJva e economia. E não podia n menos que êlc próprio nos dispensasse. Se um guarda che-
separar uma aula da outra, como não podiam os outros estu- ~·assc c nos mandasse sair, receberia em resposta apenas olhares
dante~, nem tampouco, acredito, o próprio Lovdjieff. Tudo era l.íos; nfio nos moveríamos até que Lovdjieff desse consenti-
LovdJ•eff. ltll'II(O. Blc adquiria um estímulo particular com essas pequenas
As pared~ .de su~ sala de aula eram cobertas por cartazes vll ó• it1 R sôbre seus algozes. Caso êle não conseguisse chegar
de cartolma ex1bmdo c1tações dos maiores pensadores do mundo. 11 pcnit cnciCtria por ter problemas com o automóvel, como acon-
Japonêses, esquimós, africanos, astecas, peruanos, Voltaire, Coo-
31
30
r
teceu certa ocastao, no dia seguinte enchia-nos de desculpas e
lamentava profundamente a falta.
Lovdjieff conseguiu arrancar-me o compromisso, sob pala-
I passagem, em que falava dos muçulmanos negros aos outros
prisioneiros.

vra, de que algum dia leria Merton por espontânea vontade -:-
não insistiu em precisar uma época, apenas "algum dia". Mutto Aqui, nesta grande, escura e miserável zona, centenas
fácil. Dei-lhe minha palavra. Em 1963, quando fui transferido de milhares de negros são arrebanhados como gado, a
de San Quentin para Folsom por ter sido acusado de agitador, maior parte sem nada para comer ou para fazer. Todos
mandaram-me diretamente para a solitária. As autoridades não os sentidos e imaginações, sensibilidades e emoções, lamen-
julgavam prudente, naquela altura, permitir que eu circulasse tos e desejos, esperanças e idéias de uma raça com vívidos
entre a população carcerária. Eu havia desenvolvido um pro- sentimentos e profundas reações emocionais desabam sôbre
grama intensivo para pôr em prática imediatamente, se alguma êles próprios, comprimidos pela corrente de ferro da frus-
vez fôsse colocado na soütária: estocar livros e ler, ler, ler; tração: o preconceito que os encurrala dentro de suas qua-
fazer ginástica e esquecer o resto do mundo. Já descobrira a tro intransponíveis paredes. Neste gigantesco caldeirão,
inutilidade e a futilidade de preocupar-se. (Anos atrás, já dei- inestimáveis aptidões naturais, sabedoria, amor, música,
xara de ser um daqueles pris ioneiros que pega o calendário e ciência e poesia são atiradas e deixadas ferver com o refugo
risca cada dia que passa.) Quando pedi alguns livros para ler ele uma natureza elementarmente corrompida, e milhares
naquele buraco, um encarregado mandou-me uma lista para que sôbre miJhares de almas são destruídas pelo vício, pela
fizesse a seleção. Fiquei cheio de contentamento ao ver The miséria e pela degradação, eliminadas, varridas e levadas
Seven Storey Mountain, a autobiografia de Merton. Pensei em do registro da vida desumanizada.
Lovdjie(f. Ali estava a oportunidade para cumprir minha pro- O que não foi devorado em sua fornalha escura, Har-
messa. lem, pela maconha, pelo gim, pela insanidade, pela histe-
Fui torturado por aquêle livro, poiso sofrimento de Merton, ria, pela sífilis?
aa sua procura de Deus, parecia-me inteiramente inútil. Naquela
época, eu era um muçulmano negro acorrentado pelo Demônio
no fundo de um buraco. Deveria esperar que Alá destruísse Durante algum tempo, sempre que me sentia amolecer, rela-
as paredes e me libertasse? Para núm, a Hngua e símbolos da fazer era ler aquela passagem para torna.r-
ll ltt'1 11 (anica coisa a
religião não passavam de armas de guerra. Não via outro fim 1111.' novumcntc uma chama viva de indignação. Exercia sôbre
para elas. Todos os deuses estão mortos, exceto o deus da guer- 1111111 prt•cisamcnlc o mesmo efeito que costumavam ter os escri-
ra. Desejava que Merton afirmasse em têrmos seculares as '"~ dr tmjah Muhammad, as palavras de Malcolm X, ou as de
razões que o levaram a retirar-se do sistema político, econô- qu uh1111. 1 porta-voz dos oprimidos em qualquer parte do mundo.
mico, militar e social no qual nasceu, c procurar refúgio num \ tht uvu t'<l111 simpatia diante de qualquer protesto contra a
mosteiro. fll ollllll

Apesar de minha rejeição da visão teísta do mundo defen- 1 llll l'lllnlo, gostaria de falar mais a respeito de Lovdjieff
dida por Mertoo, não podia mantê-la fora da cela. g1e abria c) <'•t ~ lu .
caminho com os ombros através da porta. Benvindo, Irmão c' l111 1 I ovdjidf era possuidor de grande inteligência e tinha
Merton. Dei-lhe um abraço de urso. O que mais me impres- duc · ' ~ tu l'L tllnll ui<:n. Fiquei com a impressão de que a carni-
sionou em tudo foi a descrição que fêz do gueto negro de Nova 11( "'" du SL'I'II tltht ( iucrra Mundial , particularmente a aborda-
I orque - o Harlem. Gostei tanto que copiei à mão o principal. t ' ''' • 1 lt •tt lllltt' tt l' t'Íl'llllficA do genocídio pelo regime nazista,
M ais tarde, depois ele sair da solitária, costu mava lembrar cssu I '1 ttllllt 1 ~fllt i( m ' l\t trautnMicn da qual lhe era impossível

32 33
recuperar-se. Era como se tivesse visto ou experimentado alguma para entrevistar alguns estudantes e auxiliá-los nos trabalhos de
coisa que o mudara para sempre, adoecendo sua alma e engol- aula ou problemas pessoais. Mas, também, nunca deixou de se
fando-o em simpatia e amor por tôda a humanidade. tle odiava queixar do fato de que as autoridades negassem per:missão para
tôdas as repressões contra o pensamento e o espírito humano, que almoçasse no refeitório junto com os prisioneiros. Se lhe
bem como tôda crença cega e tôda asserção dogmática. :e.1e tivessem dado uma cela, êle lá ficaria. Após o almôço, dava
questionava tudo. aula até às três horas da tarde. Quando a escola noturna vol-
Nunca tive certeza sôbre o que exatamente o impelia. Que tava a funcionar às seis horas, O Cristo lá estava, radiante e
era impelido, não havia dúvida. Havia uma sensação de irrea- jubiloso, ensinando cheio de entusiasmo até às dez horas da
lismo em tôrno dêle. Parecia mover-se numa névoa. A atmos- noite. Depois, relutantemente, ia para casa sofrer no exílio até
fera que criava era como o encanto místico da poesia de Khalil que a escola abrisse no dia seguinte. Aos sábados, lá estava êle
Oibran. Parecia estar sempre ouvindo uma música distante, ou novamente radiante e bem cedo para ensinar Lovdjieff. E tam-
bém viria aos domingos, não fôsse as autoridades fazerem pé
~'I vozes silenciosas, ou murmurando para si mesmo. Amava o
firme e se recusarem a discutir o assunto. O Cristo aprovei-
li silêncio e dizia que só devia ser quebrado por comunicações
r,,
'I importantes; afirmava que expulsaria de suas aulas os alunos tava o domingo para gravar um programa de rádio noturno,
li' que se distraíssem em conversas inúteis com os colegas nas últi- com duas horas de duração, que êle retransmitia aos prisioneiros.
I' mas filas. Em aula, era um ditador. Fazia vigorar certas regras Suas aulas eram obras de arte. Transformou a história
~ e não tolerava que fôssem violadas - não fumar na sala, antes, antiga em contemporânea, evocando o ambiente total - intelec-
durante c nos intervalos das aulas; não comentar suas aulas, a tual, social, político e econômico - de uma era. Dava vida às
menos que a conversa tivesse ligação com o assunto discutido ruínas do passado. Os alunos ficavam em seus lugares extasiados
em sala; não comer ou mastigar chicles durante as aulas; não enquanto O Cristo falava, com seus óculos de aros prateados
ser irreverente. Regras simples, talvez, mas em San Quentin refletindo a luz brilhante dos seus olhos.
eram visionárias, arriscadas e audaciosas. O Cristo fêz com Vestia-se como um colegial, denunciando uma inclinação
que vigorassem estritamente. Os outros professôres e os guardas para suéteres simples e calças largas e lisas sem nenhuma carac-
ficavam pensando como êle conseguira aquilo. Nós, estudantes, terística particular. Quando ensinava religião, queimava incenso
imaginávamos como nos havíamos submetido tão entusiàstica- em aula, para evocar um certo estado de espírito. E era sempre
meote. O Cristo olharia sorprêso, como se não compreendesse, indicado para tratar dos alunos que pareciam impossíveis de
caso se fizessem perguntas a respeito. Se um dos outros profes- educar - velhos que passaram a vida analfabetos e fixados em
sôres esquecesse e entrasse fumando na sala de aula de Lovd- suas idéias c hábitos. Lovdjicff não acreditava que al guém ou
jicff, era mandado sair às carreiras. O mesmo acontecia com .tlguma coisa no mundo ficasse permanentemente prêsa a idéias
os guardas da prisão. Ainda posso ver a expressão chocada de l' h:tbitos. Com os alunos inteligentes e que tinham mais facili-
um professor substituto que, ao entrar na sala de Lovdjieff du- dmlc para aprender, Lovdjieff parecia indeciso, quase como se
rante o intervalo, fumando cachimbo, foi severamente advertido: dt,scssc, apontando para os analfabetos e falando para os mais
"Saia imediatamente desta sala!" ntllligcntcs: "Vão embora. Deixem-me. Vocês não precisam
Quando se entrava numa aula de Lovdjieff, entrava-se para dl· rnim. Os outros, sim".
aprender. Se, por acaso, você revelasse outros motivos, recebia Jesus chorou. Lovdjieff choraria com um acontecimento
um "saia imediatamente daqui!" - sem maldade, mas sem equí- lt ii~•.Íl' o ocorrido há milhares de anos em algum atalho esquecido
vocos. :ele era uma magneto, uma instituição. Trabalhava infa- 1h1 ~ 1\·rms do Nilo. Certa ocasião, deu uma aula sôbre os
tigàvelmente. Seu dia começava quando o sino da escola tocava, ltll tl•n!i lwbrcus. Ficou furioso com êles por terem escolhido como
às oito horas da manhã. Várias vêzes, abria mão do almôço lnt·ul p:1rn so estabelecerem as rotas comerciais entre o Egito e

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a Mesopotâmia. Mostrou como, coro o passar dos séculos, êssc Lovdjieff negou-se a dar nota a meu trabalho. E devol-
povo tem sido ·de tempos em tempos atacado novamente, viti- veu-o a mim. Protestei, dizendo que êle estava sendo intole-
mado por carnificinas, expulso de suas terras, perseguido, mas r ante e dogmático ao não compreender meu ódio, simplesmente
sempre reaparece. porque êle próprio era branco. Disse-me que falasse com êle
- O que os faz voltar para êsses lugares! - exclamou. depois da aula.
Lovdjieff perdeu a respiração. Seu rosto desfigurou-se, caiu - Como você pode fazer isto comigo? - perguntou.
para a frente e chorou. - Por que insistem em viver no meio - Apenas escrevi do modo como sentia - disse-lhe.
daquela . . . daquela (por alguns instantes, pensei cá comigo, Ao invés de responder, chorou.
O Cr isto não encontrou palavras) daquela. . . daquela. . . estra- - Jesus chorou - fale i, e depois me retirei.
da?! Isto é tudo, olhem! E apontou as rotas comerciais no Passados dois dias, êle devolveu meu ensaio - sem nota.
Ao contrário, havia manchas sôbre o papel que imaginei serem
mapa atrás de sua mesa, depois sentou-se e chorou sem se con-
lágrimas.
trolar durante alguns minutos.
Embora a popularidade de Lovdjieff entre os prisioneiros
Em outra ocasião, trouxe trechos gravados em fita do Look continuasse aumentando e as listas de pessoas que aguardavam
Hom.eward Angel, de Thomas Wolfe. O Cristo chorou durante suas aulas ficassem cada vez maiores, as autoridades da peniten-
tôda a fita. ciária baniram seu programa de rádio. D epois, proibiram que
O Cristo podia chorar com uma linha de poesia, com uma fôsse à prisão aos sábados. Posteriormente, afastaram-no da
única imagem de um poema, com a beleza da música de um escola noturna, impedindo-o de ensinar. Finalmente, tomaram
poema, com o fato de que o homem pode falar, ler, escrever, seu passe e o impediram de frequentar San Quentin.
andar, reproduzir, morrer, comer, eliminar - com o fato de Preciso dizer que êste homem não foi adequadamente des-
que uma galinha pode botar ôvo. crito. Omiti propositadamente certas coisas, outras não sei como
dizer. Até começar a escrever isto, não sabia que tinha uma
Certa vez, passou uma semana inteira dando aulas sôbre o lembrança tão viva de Lovdjieff. Mas, agora, posso fechar os
Amor. Citava o que os poetas diziam do amor, o que os roman- olhos e reviver muitas cenas nas quais êle representa um ato.
cistas falaram do amor , o que os dramaturgos escreveram sôbre
o amor. Rodou fitas de Ashley Montagu, também sôbre o amor.
No fim da semana, cada aluno deveria escrever um ensaio sôbre
a sua própria concepção do amor, não ·importando se tivesse so-
frido influência do que fôra dito durante tôda a semana. Em
meu trabalho, expliquei que não amava as pessoas brancas. E
citei M alcolm X:

Como posso amar o homem que violou minha mãe,


matou meu pai, escravizou meus ancestrais, lançou bombas
atômicas sôbre o Japão, exterminou índios e me mantém
engaiolado no gueto? Era preferível que me amarrassem
dentro de um saco e me jogassem no Rio Harlem.

36 37
um
sôb re a cam a; evito assim que
car reg ada de livros e pap éis, com o já aco nte ceu cer ta
ban co,
gua rda , ao ent rar, reti re-a do à ro-
hab itualme nte dur mo , pas so
vez. Ain da nu, que é com o os as
o os bra ços , toco com as mã
tina ; flexiono as per nas , abr o um a vira volta.
to de cóc ora s e faç
pon tas dos dedos dos pés, sen
meia hor a.
E assim continuo, cêr ca de
que deseje escrever ou dat i-
Algumas vêzes, cas o ten ha algo dis-
nda r pelo cor reio da ma nhã ,
U m dia na Penitenciária de Folsom
lografar de mo do a pod er ma obr iga dos , se
pen so a ginástica. Ma s isso
é coisa rara . (So mo s
exp edi da num dia
dên cia seja
que rem os que nos sa cor res pon cai xa do cor reio até às
tas na
determ ina do, a col oca r as car o caf é
da cela às sete e me ia par a
ojto hor as. Qu and o saím os inh o do
da cai xa pos tal, e, a cam
da ma nhã , pas sam os ao lad o
cor res pon dên cia .)
refeitório, col oca mo s a
a em que term ino a ginás-
No rma lme nte , por volta da hor cha -
ma mo s de zela dor de fila, ou
tica, o car cer eiro (nó s o cha o
u bal de com águ a quente. Nã
vei ro) apr oxi ma -se e enc he me a peq uen a
Cad a cela pos sui um
temos águ a que nte cor ren te. arm ário , um a
a fria, um a cam a, um
pia com um a torn eira de águ um vas o san itár io. O
da par ede , e
ou dua s pra tele iras ao longo o,
som reg ado r gra nde com um can o comprid
Pen iten ciár ia Est adu al de Fol carcer eiro tem um
par a reg ar as pla ntas, ape nas sem
19 de sete mb ro de 196 5 com o o que as pessoas usa m cêr ca
can o atra vés das bar ras e despeja
o chuveiro. l?.Ie enf ia o da min ha cela não
nte. A por ta
de qua tro litr os de águ a que com cin qüe nta e oito
da de aço
tem bar ras; é um a cha pa sóli
Mw dia com eça oficialmente às sete
os prisioneiros são obrigados
hor as, qua ndo tod os
a lev ant ar da cam a e ficar em

s,
buracos do tam anh o
c um postigo no cen tro, na altu
apr oxi ma do de um a mo eda de me io dól ar,
ra dos olhos, com três cen tím
ca
e-
o
os gua rda cer eiro esti
que sejam con tad os pel trus de larg ura e cinco de com
prim ent o. O car
dia nte da por ta da cela par a s, três ... " s e des pej a a min ha
iras ma rca ndo "um, doi dos peq uen os bur aco
que cam inh am ao lon go das file , t' ll ll O alra vés de um vés do pos-
a até às sete horas. Ge ralm ente
tard e, joga a cor resp ond ênc ia atra
Con tud o, nun ca fiquei na cam prim eira coi sa llp tnt que nte . À
nte tam bém os pris ion eiro s
pas sam
esto u aco rda do. A IIJ'O, po r ond e nor ma lme
por vol ta das cinco e meia, já os,
cam a. Depois, recolho tod os os livr lllii HUS , livros, doces
e cigarros.
que faço é arru ma r a cam a, ond ência par a mim, êle se
chã o e jogo-os em cim a da Ou nndo o gua rda tem cor resp
jornais, etc . . . esp alh ado s no Na min l1a ccln , cha ma pelo nom e; eu ent ão
recito me u
a faz er gin ásti ca. Jlllt jun to à por ta c me
a fim de lim par o chã o par l apó io um a larg a cha pa A-2 949 8 - par a verificar se
sou o Cle ave r cer to.
re o qua
ten ho um peq uen o ban co sôb s,
lllll lll' I O
ênc ia, sem pre desvio os olh
os da
sad o, com cêr ca de um me tro por oite nta centímetroa. IJu 111do rece bo a cor resp ond Dep ois, sen to-
de com pen
rever, seja à mã o Oll à nuíq uin
' "' • tl t• 11mt1o a não pod er
ver que m a rem ete.
que uso como me sa par a esc com ar a car ta dev aga rzin ho, com o faz
a imp rovisad a no chão, .iuntament e uu 11 .1 l' li iiHI c com eço a olh tir
A noi te, col oco ess a mes
leio à noi te, esp alh o um a por çao
I"V•IIIIH tll.l pôq uer qua ndo chora sua s car tas. Pos so sen
os livros e os pap éis, e, qua ndo da cela colo co a pra nch a, 11111
o saio
de coisas sôb re o chão. Qu and 39

.)8
acontecer
no enve- Molotov sôbre você antes que perceba, algo que vi
quand o recebo uma carta sua e, quand o choro seu nome em San Quentin. Sempre que estou numa dessas celas com
lope, solto um grand e berro. :a
como tirar quatro ases. Mas,
dez, barras, mantenho um cobertor à mão para uma emerg ência,
sete, oito, nove,
se a carta não é sua, é como se eu tirasse para apaga r um incêndio caso necessário. Paran óia?
Sim, mas
ntes. Uma violen ta patad a. Nada. Na minha
tôdas as cartas de naipes difere é a última coisa que alguém pode fazer por si própri o.
sem parar.
Pior ainda é quando o guard a passa pela minha porta atual cela, com sua porta iotranspotúvel, não me preoc upo com
chave s tilinta ndo. Se êle pára, as chave s soam maus instint os, talvez
Posso ouvir suas s. sabotagens - embo ra se alguém tiver
s como ... chave
como sinos de Natal; se continua, soam apena consiga imaginar algo praticável.
das
Resido no bloco de honra. Nos outros blocos, a frente Bem. . . após termi nar a ginástica c ter chegado a
água
do me mude i pela prime ira vez Nor-
celas é apenas de barras. Quan quente, tomo um banho de passa rinho na minús cula pia.
, não gostei muito da idéia. As celas s, até às
para o bloco de honra malmente, isso ocorre por volta das seis horas. Depoi
de aço,
parec iam feitas para uma masmorra. As fortes portas sete e meia, quando saímos para o café, limpo a cela e tento
mo que arrepi ava
ao fecharem, batiam com um clangor de finalis pegar algumas notícias do rádio. Rádio ? - cada cela tem um
a porta se fecho u para mim
minha alma. A primeira vez que par de fones! - com apena s dois canais . Os progr amas são
o, anos
tive a mesma sensação feroz e histérica que havia sentid monitorizados na sala de rádio. A programação é
feita pela
in, quand o debut ei na solitár ia. Duran te
atrás, em San Quent e comissão do rádio, da qual sou memb ro.
por socorr o,
um rápido momento, senti-me como se gritasse
parecia-me que em nenhuma circunstânci a teria capac idade para Às sete e meia, café. Do refeitó rio, todos os dias exceto
supor tar aquela cela. Naqu ela fração de segundo, senti
como aos sábad os, meu dia de folga, vou direto à padar ia, visto
meio-dia.
se gritasse para os guard as, implo rando que me deixas sem sair, minha roupa branc a de trabalho, e assim fico até o
que seria e vinte da tarde, a hora obriga-
suplicando que me deixas sem ir embo ra, prome tendo Depois fico "livre" até às três
er às celas, quand o somos obriga dos, nova-
um bom môço no futuro. tória para se recolh Há
ficar de pé junto a porta para sermo s conta dos.
tam- mente, a
Mas, tão ràpidamente como senti aquel a sensação, ela uma outra contagem às seis e meia - três vêzes todos os dias,
senti em paz comig o mesm o.
bém foi embora, dissolvida, e me , sem falhar.
tar qualq uer coisa, tôdas as coisas
Achei que poderia supor entre
mesm o o teste de ser quebr ado ao meio na tortur a do cavale te. Quan do termino o trabalho na padaria posso escolher
ição nas no salão para assisti r aos pro-
Estive em todos os tipos de celas que havia à dispos nto,
(l) ir para minha cela; (2) ficar
teca; ou (4) sair até
daque la, naque le mome (3) descer até a biblio
penitenciárias da Califórnia, e a porta gramas da televisão;
tar pêso,
parec ia a mais cruel e detest ável de tôdas. Entre tanto, acostu - o pátio para caminhar, sentar para tomar sol, levan
z, bola
mei-me a gostar desta porta. Quan do saio da cela não vejo a jogar algum joguinho interessante - como dama s, xadre
o sêco ol, arrem êsso de disco, saco
hora de voltar, de bater aquela porta pesada e ouvir de gude, ferradura, volibol, beiseb
de mesa, obser var os
por trás de mim. rsar, TV, tênis
girar das chaves enquanto o carcereiro a tranca de boxe, basquete, conve
outros colega s.
as chave s das celas do. bloco que estão observ ando os
O zelador de fila carrega consigo outros prisioneiros
surprê so
de honra o dia inteiro, abandonando ..as à noite, e para
se entrar Quan do vim pela prime ira vez para Folsom, fiquei
eiro de Os joga-
na cela tudo que a gente tem a fazer é cham ar o carcer ao ver velhos de cabeç a branc a jogando bola de gude.
me segur o: em todo o
plantã o no corredor. Uma vez dentro dela, sinto- as dores de bolas de gude em Folso m são legendários
neiros ou os guard falar nêles foi
não tenho mais de olhar os outros prisio
cela que sistema penitenciário: a primeira vez que ouvi
armad os nas tôrres de contrô le. Se você vive numa de supre ma derro ta a
descansar: há vários anos atrás. Existe um senso
só tem barras na frente, não pode se dar ao luxo de respeito dêJcs. Um sujeito pode gabar -se de que vai sair da
um coquetel
alguém pode vir anelando pelo corredor e atirar
41
10
oito horas. Fico muito satisfeito por poder aproveitar mais
prisão e permanecer lá fora, mas alguém logo ridiculariza seu
êsse tempo extra para datilografar : posso lhe escrever maiS
orgulho d izendo que em breve êle estará de volta, jogando bolas
cartas.
de gude como uma pessoa que perdeu sua antiga grandeza, um
Às quintas-feiras, deixo a minha cela após a contagem das
joão-ninguém, arremessado de volta à infância por uma derrota
seis e meia para comparecer à reunião semanal do IAC. Essas
esmagadora no seu sonho final. Os jogadores de bolas de gude
reuniões são suspensas exatamente às nove horas. Nas manhãs
transformaram o jôgo numa arte, e jogam o dia inteiro, fanàti-
de sábado, meu dia de folga, costumo participar das reuniões do
camente absorvidos pelo que estão fazendo.
Gavel Club, mas no sábado passado, como estava no meio de
Se eu tivesse um companheiro de cela que soubesse jogar, minha última carta para você, retirei-me para minha ce1a. Fico
jogaria xadrez com êle de vez em quando, talvez uma partida satisfeito por ter vontade de deixar o Gavel Club, mas espero
por noite. T enho um tabuleiro de xadrez particular c, às vêzes, não fazê-lo porque é lugar onde estou adquirindo valiosa expe-
quando não tenho nada para fazer, apanho um pequeno enve- riência e técnica de falar em público.
lope no qual guardo uma coleção de problemas para enxadristas Em média, passo aproximadamente dezessete horas por
recortados dos jornais, e resolvo um ou dois. Mas nunca fui dia na minha cela. Gozo a solidão. A única desvantagem é que
capaz de dedicar todo meu tempo a uma destas partidas. E não tenho possibilidade de conseguir o tipo de material de lei-
raras vêzes consigo jogar uma partida lá fora, no pátio. . . Sem- tura que desejo, e é difícil encontrar alguém com um bom nível
pre que atravesso o pátio nestes últimos tempos, estou normal- de conversa.
mente a caminho da biblioteca. Existem poucos sujeitos aqui que escrevem. Parece que
No pátio, há um pequeno barraco junto a um dos cantos todos desejam escrever. Alguns dêles conseguiram vender um
onde está instalada a sede do Conselho Consultivo dos Prisio- trabalho aqui, outro ali. Eles têm uma comissão de escritores
neiros (IAC). Esporàdicamente, visito o barraco para bater papo que se reúne na biblioteca sob a proteção do nosso bibliote-
e saber das últimas notícias. E, vez por outra, vou até a área cário. Jamais tive o desejo de integrar essa turma, em parte
de levantamento de pêso, coloco o calção, seguro um pedaço devido à minha antipatia pela atitude do bibliotecário, e em
de ferro por algum tempo e fico "de môlho" sob o sol. parte devido aos tipos falsos e esquisitos dos prisioneiros. A
Às lrês e meia da tarde, cela. Em pé para a contagem. maior parte, suponho, é porque os m·e mbros da comissão são
Depois, saída para o jantar. Volta à cela. Em pé para a con- todos brancos e todos perturbados com relação às pessoas de
tagem às seis e meia. Depois, todos podemos deixar as celas, côr. São uns tipos amáveis, não chegando a ter o entusiasmo
um corredor de cada vez, para tomar banho, trocar os lençóis dos bons liberais brancos, e se conformam com a atmosfera de
c toalhas imundas por outras limpas, cortar o cabelo e, então, Mississipi que prevalece aqui em Folsom. Aqui, brancos e
todos voltam às celas. Evito esta reunião social tomando banho negros não se confraternizam. O conceito de H arry Golden de
na padaria. À noite, apenas saio para trocar meu lençol. No integração vertical e segregação horizontal domina tudo. Os
bloco de honra, temos permissão para sair após a contagem das brancos querem falar com você lá fora, no pátio ou no trabalho,
seis c meia da tarde todos os sábados, domingos e quartas-feiras permanecendo em pé, mas se esquivam quando é para se sentar
para ver televisão até às dez horas, antes de sermos trancados ao lado do negro. Por exemplo, quando entramos em fila para
para dormir. A única vez que saí para ver televisão foi para a "bóia" há a mais comrpleta integração. Mas, uma vez dentro
apreciar as "belezas" do Shinding and Hollywood-A-Go-Go, mas do r efeitório, os negros procuram os negros para sentarem juntos,
o programa nunca mais foi ao ar. Recentemente, conseguimos e os brancos se aproximam dos brancos ou dos mexicanos.
mudar as regras de maneira que, nas noites de TV, os do bloco Há um sujeito judeu de Nova Iorque que se meteu em
de honra possam escrever à máquina até às dez horas. Antes, encrencas em F risco ( San Francisco) . E'le pensa que é outro
era costume não permitir que se batesse à máquina depois das Lenny Bruce. Realmente é engraçado e muito desembaraçado,

42 43
c fico de conversa com êle - é excitado mas está abatido com dias depois, êle disse-me: "Você percebeu minha reação, o outro
a situação atual. Diz que viveu em North Beach e tudo mais, dia, não?"
e que tem uma garôta que lhe escreve, membro do DuBois Club - Eu percebo tudo em você, todos os d ias - respondi.
de San Francisco. Bem, êsse sujeito é bem letrado e trocamos ale parecia esperar ou desejar que eu lhe desse um sôco ou
livros. Diz, ainda, que em casa tem todos os exemplares do outra coisa. D isse-lhe que êle não servia para nada exceto para
The Realist publicados até sair de circulação. A The Evergreen ser a espôsa de algum prisioneiro, e êle riu e, depois, levou-me
Review fascina-o. Comunicamo-nos muito bem e sei que o a um monólogo do tipo Lenny Bruce.
sujeito não é racista, mas um conformista - o que a meu ver
é pior e mais perigoso do que um adversário incondicional. Minha reação particular é ter o mínimo possível de rel a-
Outro dia, falávamos a respeito do Movimento pela Liberdade ções com os brancos. Não tenho respeito por um cara que
de Expressão. Sle estava lendo um livro de Paul Goodman, vem para cima de mim no pátio, todo cheio de camaradagem,
Growing Vp Absurd, que trazia consigo. Estávamos bastante e que depois sente-se obrigado a não sentar ao meu lado. Não
é porque deseje me sentar com êle, mas há um princípio envol-
presos à conversa e, então, veio a hora do almôço. Entramos
vido nisso tudo que me magoa profundamente.
na fila e continuamos a trocar idéias. a te tentava me convencer
que todo o Movimento fôra previsto nos escritos de Paul Oood- Falando sôbre hipocrisia: você devia ver a biblioteca.
man, e que êle ouvira, com os próprios ouvidos, Mario Savio Temos permissão para retirar, da biblioteca estadual, apenas
d izer o mesmo. Depois, subitamente, reparei que o judeu ficava livros de direito e não-ficção. Dos livros de direito, somente
atento e começava a olhar em volta. Aquilo me fêz ficar ner- podemos pedir as publicações contendo pareceres de julgamentos.
voso. Pensei que alguém talvez estivesse tentando cair sôbre Podemos obter qualquer decisão do Tribunal de Apelações do
nós com uma faca ou alguma outra coisa. Enquanto êle conti- Distrito da Califórnia, do Supremo Tribunal local, dos Tribu-
nuava observando ao redor, perguntei-lhe que bicho o havia nais Distritais norte-americanos, das cour d'assises e da Suprema
mordido. Virou-se realmente vermelho e disse que "acabava de Côrte dos Estados Unidos. Mas os livros de natureza especula-
lembrar-se" que precisava falar com outro companlteiro. Logo tiva são proibidos. Muitos prisioneiros que não têm advogado
dei conta do que se tratava, e disse então, "até mais tarde", são obrigados a agir in propria persona. Fazem tudo direito.
e lá se foi êle. Estou acostumado com tais cenas, com uma Mas seria muito mais fácil se êles tivessem acesso a livros que
herança de quatrocentos anos de aprendizado para lidar com mostrassem como patrocinar corretamente a sua causa, como
tais tipos. Vi-o no refeitório olhando atordoado sem saber o preparar as petições e audiências. aste é um ponto sensível
que fazer. Tive de rir dêle. Achei que provàvelmente estava perpétuo da Folsom Prison Bar Association, como nós cha-
pensando que se os brancos colocam os negros na câmara de mamos.
gás, êles podiam agarrá-lo também por estar em minha compa- Os romances q ue realmente devem ser lidos não são encon-
nhia. Tal pensamento me deu comichões e continuei observando trados e o bibliotecário não deixa que se faça a requisição.
o judeu, que espreitava nervosamente os outros. Um de seus Perguntei-lhe, certa ocasião, se êle lera um determinado livro.
pontos de indignação, diz êle, é que nunca perdoará Israel por
ter seqüestrado e assassinado Eicbmann, e ficava louco comigo - Oh, sim! - exclamou.
porque eu tomava o lado de I srael, somente para manter viva a - O que você achou dêle? - perguntei.
conversa. Acôrdo em demasia mata um bate-papo. O que, de - Simplesmente maravilhoso! - respondeu.
fato, o deixava nervoso era minha afirmação de que existem
muitos negros que, se estivessem na mesma posição, fariam uma - E que acha de pedi-lo à Biblioteca Estadual? - per-
pequena caça aos tipos como Eichmann na América. Al$UDS guntei.

44 45
-Não. confiscou e retulou como de minha "propriedade" da mesma
Os livros que alguém deseja ler - por piores que sejam, forma como fêz com meus livros de anotações.
como Sex and Rascism in America, de Calvin C. Hernton Desejo devotar meu tempo à literatura e ao trabalho de
- êle jamais deixar-á que você o consiga. escrever, com tudo o mais em segundo plano, mas não posso
"O diretor da penitenciária estabeleceu : nada de sexo", é fazer isto na prisão. Tenho de m anter os olhos bem abertos
a sua constante e peremptória réplica. durante todo o tempo ou não conseguirei nada. Há sempre
alguma loucura passageira, e quer goste ou não, você estará
Existe um livro escrito por um juiz de Nova I orque que envolvido. Não existe escolha neste assunto: você não pode
conta casos de prostitutas. O autor procura explicar o fato de ficar sentado esperando que as coisas venham até você. Assim,
prostitutas brancas, algumas delas do interior do Sul, terem ne- engajei-me em tôdas as espécies de intrigas insignificantes que
gros como cafetões, e eu desejava relê--lo. achei necessárias para sobreviver. Consome um bocado de
Nada de sexo, diz o bibliotecário. ~le é indiferente ao tempo e de energia. Mas é necessário.
fato de que é uma questão de vida ou morte para mim! Eu não
sei como êle justifica isto, porque basta você ir até a cantina
dos prisioneiros para comprar a pior e mais libidinosa antilite-
ratura que já fo i escrita. Mas tudo o que "está acontecendo''
na atualidade é proibido. Estava louco para ler An American
Dream, de Norman Mailer, mas êsse também é proibido. Você
pode conseguir o Reader Digest, mas a Playboy?. . . - nem
pense. Durante muito tempo tive a intenção de entrar com
um processo no Tribunal Federal para defender o direito de
• receber a revista Playboy. Você acha que H ugh Hefner pa-
trocinaria tal ação? Penso que algumas idéias muito interes-

I santes viriam à tona.


A biblioteca possui, na verdade, uma seleção de material
muito sólido, desde coisas feitas há dez anos até a Bíblia. Mas
isso não satisfaz um sujeito que está tentando agir na última
metade do século XX. Vá até Já e tente encontrar Hemingway,
Mailer, Camus, Sartre, Baldwin, Henry Miller, Terry Southern,
Julian Mayficld, Bellow, William Burroughs, Allen Ginsberg,
Herbert Gold, Robert Gover, J. O. Killens, etc. - nada existe.
E também têm esta mania quando se trata de livros de, ou a
respeito de negros. O livr o de Robert F. WiUiams, Negroes
with Guns, já não é mais permitido. Solicitei-o à Biblioteca
Estadual antes que fôsse muito popular por aqui. D evorei-o e
deixei que alguns amigos o lessem, antes que o bibliotecário o
censurasse e o colocasse na lista negra. Certa vez, encomendei
dois livros através da cantina dos prisioneiros, com meu pró-
prio dinheiro. Quando a editôra os mandou, o bibliotecário os
41
46
- A TV não disse - respondeu Silly Willie. A aflição
era clara em sua voz. - Estávamos lá atrás, na Aléia Pipe,
examinando a televisão, quando um boletim especial entrou no
ar. Tudo que disseram foi que Malcolm X havia sido alvejado
e que o estavam levando às pressas para o hospital.
- Obrigado - disse eu a Silly Willie. Senti sua mão
Reações Iniciais ao Assassinato confortadora apertar meu ombro pouco antes dêle sumir na
escuridão. Durante alguns instantes ponderei se devia sair e
de Malcolm x conseguir mais informações, mas algo fêz com que eu ficasse
ali. Lembro-me perfeitamente de ter pensado que logo viria a
saber de tudo. Na tela diante de mim, Victor Buono agarrava
uma mulher pelo pescoço e apertava-o freneticamente até ar-
rancar os últimos suspiros de vida do seu corpo inerte. Eu es-
tava pensando que os ferimentos de Malcolm X talvez não fôs-
sem tão sérios, que êle se recuperaria e que o atentado poderia
ser uma bênção disfarçada: que centralizaria ainda mais a
atenção sôbre êle e criaria uma torrente de simpatia e apoio em
todos os guetos negros da América, colocando assim mais poder
em suas mãos. A possibilidade de que os ferimentos fôssem
fatais, de que enquanto eu estava sentado ali Malcolm já teria
morrido, foi excluída elo meu pensamento.
Penitenciária Estadual de Folsom Após terminar o filme, enquanto entrava na fila do lado
19 de junho de 1965 de fora do refeitório, uma longa linha de prisioneiros, e via a
expressão chocada e descontrolada no rosto do Irmão J, ainda
não podia acreditar que Malcolm X éstivesse morto. Mistura-
D OMINGO é dia de cinema na penitenciária c eu estava
sentado no salão escuro do Refeitório N9 1 - que os prisio-
mo-nos na multidão de prisioneiros que se movimentava no pátio
e fomos imediatamente cercados por um grupo de muçulmanos
que, como eu, eram firmes correligionários de Malcolm X . ~le
neiros chamam de O Teatro Folsom- assistindo Victor Buono está morto, seus rostos disseram, embora ninguém tenha falado
num filme intitulado O Estrangulador. Um detento, conhecido uma só palavra. Enquanto permanecíamos ali em silêncio, dois
como Silly Willie, aproximou-se de mim e murmurou-me ao prisioneiros negros aproximaram-se e um dêles nos disse:
ouvido: - E uma barbaridade assassinarem um homem como
aquêle! Com tanta gente, por que mataram Malcolm? Por que
- Irmão J mandou lhe dizer que a televisão acaba de
anunciar que Malcolm X foi alvejado por tiros quando discur- não assassinaram alguns membros da curriola do Tio Tom*?
:sava num comício em New York.
Por um momento, a terra pareceu sair de órbita. A pele
de todo o meu corpo arrepiou-se.
* Tio Tom - diz.se do negro servil ou cheio de deferências para
com os brancos (assim chamado devido ao personagem principal de
- Qual o seu <:stado? - perguntei. Une/e Tom's Cabin, romance escfito em 1852 por Harriet Beecber
Stowe). (N. do T.)

48 49
Gostaria de pôr as mãos no sujeito que fêz isso. E se afastou, Enquanto caminhava ao longo do primeiro corredor na di-
praguejando e gesticulando com seu colega. reção da minha cela, encontrei Red, que vive perto de mim na
O que se diz a seus camaradas no momento em que O mesma ala.
Líder cai? Todos os comentários parecem irrelevantes. Se a - Imagino que você sabe o que aconteceu com Malcolm?
causa da morte são as tão faladas causas naturais, ou um aci- - Claro - disse cu. - Dizem que foi apanhado.
dente, a reação é previsível, um sentimento de impotência, hu- Red, que é branco, sabia através de nossas muitas discus-
milhação, desamparo perante as fôrças do universo. Mas sões que eu era extremamente favorável a Malcolm, e êle pró-
quando a causa da morte é a bala de um assassino, o desejo prio, estando completamente afastado do status quo, reconheceu
irresistível é de vingança. Alguém logo quer atacar com vio- o que representava o crime: um golpe negativo contra uma
lência, matar, esmagar, destruir, desfechar um poderoso contra- fôrça positiva. As perguntas de Red eram as óbvias: Quem?
golpe para inflingir sôbre o inimigo uma perda equivalente e Por quê? :ble as formulava tímida e cautelosamente devido ao
recíproca. Mas como alguém pode atacar em tal ocasião se terreno traiçoeiro sôbre o qual pisava: um homem branco, ruivo
algo acontece numa multidão anônima e amorfa de prisioneiros e de olhos azuis, preocupado com um acontecimento que tantos
na Penitenciária de Folsom e O Líder morto a milhares de outros saudavam com sorrisos e suspiros de alivio. Fui para a
quilômetros, do outro lado do continente? minha cela.
- Vou para a minha cela - participei ao pequeno e Embora ouvisse a notícia sendo divulgada constantemente
apertado nó de muçulmanos. - Alá é o Grande Conhecedor. pelo rádio e lesse tudo a respeito nos jornais, os dias se pas-
Tudo se manifestará em tempo. Dêem um pouco de tempo. saram com meu pensamento continuando a rejeitar o fato da
As-Salaam Aliakum. morte de Malcolm. E u subsistia num estado de atordoamento,
- Wa-Aliakum Salaam- responderam os irmãos à sau- vagando em transe ao redor de Folsom, orientando-me através
dação, e apertamos as mãos, o cumprimento duplo que é muito das horas de trabalho na padaria da prisão; e, contudo, estava
popular entre os muçulmanos nas prisões da Califórnia. (~ atento para observar o efeito do assassinato sôbre meus colegas
tão popular que, às vêzes, ficamos cansados de tanto apertar prisioneiros. Da maior parte dos brancos, sentia-se uma insi-
mãos. Se um muçulmano deixa um grupo por alguns instantes nuação e um sinal de sorriso nos olhos. Padeciam ansiosos para
para beber um pouco de água, êle certamente apertará as mãos ver uma guerra irromper entre os seguidores de Elijah e os
de todos antes de sair e, novamente, quando voltar. Mas, correligionários de Malcolm.
ninguém se queixa e o costume é respeitado como um gesto de Existem apenas uns poucos brancos em Folsom com os
unidade, amor fraternal e solidariedade - tão significativo numa quais eu jamais discutiria a morte de Malcolm ou qualquer
situação onde os muçulmanos são perseguidos e vêem negados o outra coisa além de beisebol ou do tempo. Muitos dos mexi-
reconhecimento e o direito de funcionar como uma legítima re- canos-americanos são simpáticos, embora alguns façam questão,
ligião.) Dirigi-me à minha cela. Vivo no Edifício NQ 5, que quando observados pelos brancos, de fazer considerações mali-
é o Bloco de Honra de Folsom, reservado para aquêles que man- ciosas, indicando que estão satisfeitos com o desaparecimento
tiveram um registro limpo pelo menos durante seis meses. de Malcolm. Entre os negros houve lamentação em massa por
Vantagens: uma cela ampla, menor vigilância dos guardas, te- Malcolm X. Ninguém conversou muito durante alguns dias.
levisão tôdas as noites de quarta-feira, sábado e domingo, en- Os únlcos negros que não estavam indignados eram uns poucos
trada e saída mais fáceis. Se, enquanto estiver morando no muçulmanos que continuavam leais a Elijah Muhammad. Inter-
Bloco de Honra, você cometer uma falta que resulte em ação pretavam o assassinato de Malcolm como um desejo de Alá
por parte da comissão disciplinar, uma das p~nições certas é caindo sôbre sua cabeça por ter se deseneamjnhado. Para êles,
ser imediatamente chutado do Edifício NQ 5. era um castigo divino e uma advertência para aquêles que Mal-

50 51
... u a ,
- ........ J

éolm tentou . N ão era tanto a morte de Malcolm que os


fazia . Pela minha experiência, o meio mais rápido para tornar
feliz; mas, aos seus olhos, pareci a agora possível apagar a -se
cisão otllado pelos muçul manos é criticar Elijah Muham mad ou
no movim ento e restau rar a unidad e monolítica da Nação dis-
do cordar de algum a coisa que êle disse ou escreveu. Se
Islã, uma união que contem plavam com certa nostalgia. Elijah
escreveu, como fêz, que o porco é uma criatur a veneno sa
Muito s prisioneiros negros viam a morte de Malco lm como com-
posta de 1/3 de rato, l / 3 de gato e 1/ 3 de cachor ro,
um ponto crucial de transição na América negra. Consid e você
erando tentar aprese ntar fatos científicos para desafiar tal afirma
que os negros geralm ente , falam caloro samente a :esp; ção
ito de então imedia tamen te pecou contra a sabedo ria, e acabou
varrer todos os chama dos lideres negros , com os quats nao -se:
con- Quão mais improvável não seria, então, que os muçul manos
cordam ou que não admira m, êste foi o primei ro caso de se
morte levan~ssem e denun ciassem o próprio E lijab,
significante de um líder negro que alguém pode se lembra repudi ando sua
r. O autond ade e teologia, negand o sua revelação, e toman do
que me tocou profun damen te foi que os prisioneiros o lado
negros contrá rio ao do Mensa geiro do Todo-Poderoso Deus Alá?
saudaram a nova era. Se um homem tão valioso para nós Nunca
como sonhei que algum dia seria lançado naque le papel desafortunad
Malcolm podia desapa recer, então, no que me concer ne, o.
qual- Após ~alco~m fazer sua peregrinação a M eca, compl etando
quer homem poderia desapa recer, - inclusive e u mesmo.
Ocor- uma excursao tnunfa l através da Africa e do Orient e M
rendo uma seman a ap6s a supost a revela ção compr omete édio
dora durant e a qual recebe u as altas homen agens dispensadas
a u~
I da alegada conspi ração para dinam itar a Estátu a da Liberd
0 Monum ento de Washington e o Sino da Liberd ade, uma cons-
ade, dignitá rio visitan te, regress ou aos Estado s Unidos e começ
edificar a sua recém- criada Organização da Unida de Afro-a
ou a

l~
piraçã o supost ament e tramad a por negros desc?n,t_entes, o me-
~ssa~­ ricana . .E també m constr uiu a Mesqu ita Muçul mana, Inc.,
sinato de Malco lm X lançou ao vento novas 1de1as com para
trnph- recebe r os muçul manos que acredi tava que deixar iam Elijah.
cações para o fu turo da luta negra na Améri ca. A
Mc~quita Muçulmana ensina ria o Islamismo ortodo
Supon ho que, como muitos irmãos e irmãs no movimento xo, sob a di-
rcçao do Xeque Ahme d H assoun, da Cidad e Santa de Meca.
da Nação do Islã, també m .me apeguei à espera~ça de O
que, Grand e Xeque Mul1ammad Sarur Al-Sab ban, secretário-ger
de alguma manei ra, a brecha entre Malco lm X e EllJah Muh~m al da
­ Liga Mundial Muçul mana, oferec era os· serviços do Xeque
Ah-
mad seria apagad a. Enqua nto o Irmão Malco lm estava med, segund o o Herald Dispatch, de Los Angeles, para "auxil
VIVO,
muitos muçul manos podiam alimentar esta esperança, fechan iar
do Malcolm X nos seus esforços para corrig ir a imagem destor
os olhos ao cresce nte amargor de sua rivalidade. Mas a cida
morte que a religião do Islã recebe ra de grupos adversários
provoc ou a cisão final e selou- a par~ a história. 'Bste.s acol':te neste
cimentos causar am uma profun da cnse pessoal em mmha - país".
vtda
e crenças, como provoc aram també m ~em outros muçul mano~. Começei a defender Malcolm X. N uma reunião secret
a
Durante a amarg a época de sua ascensao e antes do seu dos muçulmanos em Folsom, anunciei q ue deixar a de
rompi - seguir
mento com Eüjah Muham mad, observ ávamo s Malco lm Elijah Muham mad, que estava transfe rindo meu apoio para
X en- o
quanto ê1c procur ava freneticamen te reorien tar-se c estabe I nnão Malcolm. Exortei todos os presen tes a que pensas
lecer sem no
uma nova platafo rma. Era como assistir a um bailari no assunto c fizessem uma escolha, porqu e não era mais possív
dança r el
com a morte no alto de um arame retesado. Ele faz piruêta montar dois cavalos ao mesmo tempo. Na parede da
s, minha
gira com rapidez, dá saltos mortai s - mas cai firme sôbre cela pregar a um grande quadro com o retrato de Elijah Muham
os -
pés e já sai corren do. Observávamos tu~o, procu rando um
~a­ rnad, que possuí a há muitos anos. T irei-o do lugar, destru
í-o e
tivo para conde nar Malco lm X e arranc a-lo ~e nossos co~aço
es. no mesmo local coloquei, utilizando a mesma moldu ra,
Líamo s tôdas as acusações e contra -acusaçocs. Julgue uma
t Mal- lllldn fotogr afia de Malco lm X ajoelh ado na Mesqu ita Moham
colm X inocen te. -
mcd Ali, no Cairo, que recort ara do Saturday Evening Post.
A
52
53
prmc1p10, os outros muçulmanos em Folsom denunciaram-me; aceitaria até John Brown* se ainda estivesse vivo - o que
alguns que eu conhecia Intimamente há vários anos deixaram de certamente coloca o padrão em alto nível.
falar comigo ou mesmo de me olhar. Quando nos encontráva- No momento em que me declarei a favor de Malcolm X,
mos, desviavam o olhar. Para êles, a escolha era simples: Elijah gozava de certo prestígio entre os muçulmanos das prisões da
Muhammad é o Mensageiro escolhjdo de Alá, o instrumento da Califórnia, em conseqüência de minha atividade no sentido de
Vontade de Alá. Todos os que se opõem a êle estão auxiliando fazer novas conversões e campanhas pela liberdade de religião
os inimigos de Alá, os Diabos Brancos. Quem você escolhe, para os prisioneiros muçulmanos. Enviamos uma pilha de cartas
Deus ou o Diabo? Malcolm X, aos olhos dos seguidores de e petições aos tribunais, autoridades do Govêrno e mesmo às
Elijab, cometeu uma heresia imperdoável quando, mudando suas Nações Unidas.
idéias e abandonando a posição racista, admitiu a possibiJidade Após a morte do Irmão Booker T. X ., morto a tiros por
de laços fraternais entre negros e brancos. Em carta enviada um guarda da prisão de San Quentin, e que na época era meu
da Terra Santa para os Estados Unidos, Malcolm X afirmou: companheiro de cela e Mlnistro-pr·isioneiro dos Muçulmanos de
San Quentin, minha liderança entre os muçulmanos naquela pe-
nitenciária foi publicamente endossada pelo representante de
Elijah Muhammad na costa ocidental, Ministro John Sbabazz,
Vocês podem se chocar com estas palavras partindo de da Mesquita de Muhammad em Los Angeles. Tal atitude fôra
mim, mas eu sempre fui um homem que tenta enfrentar os tomada em virtude das condições explosivas, naquela época, em
fatos e aceitar a realidade da vida como novas experiências San Quentin. As autoridades muçulmanas desejavam impedir
e desenvolver o conhecimento. As experiências desta pe- qualquer violência iniciada por muçulmanos, o que tomou-se
regrinação muito me ensinaram e cada hora na T erra Santa uma real possibilidade em conseqüência da morte do Irmão
abre meus olhos ainda mais . . . eu comi do mesmo prato Booker. Recebi instruções para impor uma disciplina rígida na
com pessoas cujos olhos eram do mais azul dos azuis-;éujos Mesquita de San Quentin, que continuara a existir apesar dos
cabelos eram do mais louro dos louros, a pele da mais intermináveis esforços das autoridades do .presídio para acabar
branca das brancas. . . e eu senti a mesma sinceridade nas com ela. A maior parte dos muçulmanos presos durante aquêles
palavras e nos atos dêstes muçulmanos "brancos" que senti dias já se encontra em liberdade. Fui um dos poucos remanes-
entre os muçulmanos africanos da Nigéria, Sudão e Gana. centes e, por êsse motivo, era visto pelos outros muçulmanos
como um dos que se sacrificaram e muito investiram na luta pela
disseminação dos ensinamentos de E lijah Muhammad. Por esta
razão, minha deserção para o lado de Malcolm X provocou
Muitos de nós ficaram chocados e ultrajados com essas pa- grande consternação entre os muçulmanos de Folsom. Mas,
lavras de Malcolm X, que tiveram grande influência sôbre todos vagarosamente, Malcolm estava conseguindo marcar pontos e
nós e constituíram o fator principal em muitas de nossas con- era óbvio para mim que sua influência crescia paulatinamente.
versões ao maometismo negro. Mas havia aquêles que ficaram Os prisioneiros negros qtte tinham reservas a respeito de Malcolm
felizes por se libertarem de uma doutrina de ódio e de supre- enquanto êle estava sob a autoridade de Elijah agora o aceita-
macia racial. O ônus por pregar o ódio e a supremacia racial,
que é a carga do homem branco, é muito duro de suportar. In-
terrogado sôbre se êle aceitaria brancos como membros de sua
Organização da Unidade Afro-americana, Malcolm declarou que * Jobn Brown (1800-1859), abolicionista norte-americano e líder
do ataque em Harpers Ferry, onde foi capturado, julgado por traição
e enforcado. (N. do T.)

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vam, e estava claro que admitiam a liderança de Malcolm. lançou uma impiedosa e condenadora denúncia do sistema penal
Aquêles que havíamos tentado em vão, durante anos, converter em vigor. É apenas uma questão de tempo até que a questão
ao rebanho de Elijah, enfileiravam-se agora com entusiasmo por do débito do prisioneiro para com a sociedade, versus o débito
trás de Malcolm. da sociedade para com o prisioneiro, seja injetada, forçosamente,
Dirigi uma campanha regular de relações públicas para na política estadual c nacional, na luta pelos direitos civis e
Malcolm em Folsom. Fazia com que cópias de seus discursos humanos, e nas consciências do corpo político. É uma questão
fôssem feitas e circulassem entre os prisioneiros negros. Nunca explosiva que vai até à raiz do sistema judiciário da América,
perdi uma oportunidade para falar favoràvelmente a respeito de à estrutura da lei criminal, às crenças e atitudes predominantes
Malcolm, para citá-lo, para explicar e justificar o que estava com relação aos prisioneiros condenados. Embora seja mais
tentando fazer. Cedo conquistei os ouvidos dos muçulmanos, fácil fazer um caso em tôrno dos condenados negros, os mesmos
e não levou muito tempo para que Malcolm tivesse outros ar- princípios se aplicam igualmente aos prisioneiros brancos e me-
dentes defensores em Folsom. Em muito pouco tempo, êle tor- xicano-americanos. .eles também são enganados, muito embora
nou-se o herói da vasta maioria dos detentos negros. Elijah um pouco mais sutilmente, pela "sociedade". Uma vez que os
Mubammad foi, aos poucos, ficando irrelevante e passé. prisioneiros negros comecem a reivindicar uma nova disposição
Malcolm X tinha uma significação especial para os con- e definição da justiça, naturalmente os prisioneiros brancos e
denados negros. Sendo êle próprio um ex-prisioneiro, ascendeu mexicano-americanos exigirão igualdade de tratamento. Malcolm ·
das camadas mais profundas para as grandes alturas. Por êste X era um foco para estas aspirações.
motivo, era um símbolo de esperança, um modêlo para milhares O movimento muçulmano negro foi destruído no momento
de prisioneiros negros que se viram presos em armadilhas no em que Elijah estalou o chicote sôbre a cabeça de Malcolm,
círculo vicioso do PLP: prisão-livramento condicional-prisão. porque não era o movimento muçulmano negro em si que era
Uma coisa que os juízes, policiais e administradores de presídios tão irresistivelmente atraente para os verdadeiros crentes. Era
parecem nunca ter compreendido, e a qual certamente não dão o despertar para o autoconhccimento de vinte milhões de negros
a ~enor importância, é que os prisioneiros negros, bàsicamente, que era tão imperioso. Malcolm X articulou suas aspirações
ao mvés de se contemplarem como criminosos e perpetradores melhor do que qualquer outro homem de nossa época. Quando
de crimes, vêem-se como prisioneiros de guerra, vítimas de um falou sob a bandeira de Elijah Muhammad êle foi irresistível.
sistema social viciado e de cão-come-cão que é tão odioso a Quando falou sob sua própria bandeira êle foi ainda mais irre-
ponto de anular seus próprios delitos: na selva não existe o sistível. Se êle se tivesse tornado um quaker, um católico, ou
certo ou o errado. adventista do sétimo dia, ou um judeu do tipo Sammy Davis,
e se êle tivesse continuado a dar voz às ambições caladas na alma
. . invés
Ao de um devedor que paga um débito à sociedade'
. do homem negro, sua imagem ainda teria sido triunfal: porque
os pnswne1ros negros acham que estão sendo alvo de abusos
..
que seu apnsmnamento é simplesmente uma outra forma da
' o que era grande não era Malcolm X mas a verdade que êle
proclamava.
opressão que conheceram durante tôda a vida. Os prisioneiros
negros acham que estão sendo esbulhados, que é a "sociedade" A verdade dita por Malcolm subjugou todo o grupo dos
que lhes deve, e que precisa pagar o débito. chamados líderes e porta-vozes negros que brincavam e transi-
O código penal americano não leva isto em consideração. giam com a verdade de modo a bajular a estrutura do poder
Malcolm X levou, e os prisioneiros sabem que a ascensão ao branco. :me foi detido pela única maneira que um homem dêsse
poder de Malcolm X, ou de um homem como êle, teria even- calibre pode ser detido, pelo mesmo modo que os inimigos do
tualmente revolucionado o sistema penal na América. Malcolm povo congolês usaram para travar Lumumba, pelo mesmo mé-

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todo que os exploradores, tiranos e opressores parasitas sempre camos no solo não é mais um homem - e sim uma se~
empregaram para esmagar os legítimos esforços do povo pela mente - que, após o inverno do nosso descontentamento,
liberdade, justiça e igualdade - pelo crime, pelo assasinato e brotará novamente para nos encontrar. E então o conhe-
pela carnificina desvairada. ceremos pelo que êle foi e é - um Príncipe - nosso pró-
O que levou os assassinos a matá-lo? Será que os aborreceu prio e reluzente Príncipe negro! - que não hesitou em
o fato de que Malcolm transferia nossa luta para a arena inter- morrer pelo muito que nos amava.
nacional através de sua campanha para levá-la até às Nações
Unidas? Bem, assassinando-o êles apenas aceleraram o processo,
porque nós certamente levaremos nossa causa perante um Alcançaremos nossa condição humana. Ou a alcançaremos
mundo que nos é simpático. Aborreceu aos assassinos o fato ou a terra será arrasada por nossas tentativas de conquistá-la.
de Malcolm ter denunciado a demonologia racista tipo camisa-
de-fôrça de Elijah Muhammad? Bem, certamente a denunciamos
e continuaremos a denunciá-la. Aborreceu aos assassinos que
Malcolm nos tenha ensinado a nos defendermos? Não continua-
remos sendo uma prêsa indefesa diante do assassino, do franco-
atirador e do lançador de bombas. Na medida em que Malcolm
falava a verdade, a verdade triunfará e prevalecerá, e seu nome
continuará vivo; na medida em que aquêles que se opunham a
êle mentiam, terão seus nomes amaldiçoados. Porque "a ver-
dade esmagada na terra crescerá novamente".
Mas, agora, Malcolm não mais existe. Os aduladores, os
Tios Tom, lacaios e fantoches da estrutura do poder branco,
fizeram o melhor que podiam para denegrir Malcolm, para ex-
tirpá-lo do coração do seu povo, para empanar sua memória.
Mas suas milhares de palavras mentirosas encontrarão ouvidos
surdos. Como Ossie Davies tão eloqüentemente expressou, no
seu imortal elogio de Malcolm:

Se você o conhecesse saberia por que devemos reveren-


ciá-lo: Malcolm era a nossa condição humana, nossa viva
e negra condição humana! Esta era a sua significação para
o seu povo. E, honrando-o, reverenciamos o melhor de
nós mesmos. . . Por mais que possamos ter discordado
dêle - ou por mais que tenha havido discordância entre
nós, a respeito dêle e de seu valor como homem, deixe
que seu afastamento de nós sirva apenas para nos unir,
agora. Confiando êstes restos mortais à terra, a mãe co-
mum de todos, encerrem no pensamento que o que colo-

58 59
II. Sangue da Bêsta
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A Raça Branca e seus Heróis

As pessoas brancas não podem, na sua maior parte,


ser tomadas como modelos de vida. Ao contrário,
o homem branco está por si próprio em aflita ne-
cessidade de novos padrões, que o libertem de sua
confusão e o coloquem uma vez mais em frutuosa
comunhão com as profundezas de seu próprio ser.

James Baldwin,
The Fire Next Time*

PARA princípio de conversa, quero deixar uma coisa bem


clara : não sou, nem jamais fui, um homem branco. E tam-
pouco - apresso-me em acrescentar - sou agora um muçul-
mano negro - embora já o tenha sido. Mas sou um Observador
dos Ofay, um membro dessa liga sem estatutos e amorfa, que
tem afiliados em todos os continentes e em tôdas as ilhas dos
mares. Observadores anônimos dos Ofay podemos ser chama-
dos, porque vivemos escondidos nas sombras onde quer que
pessoas de côr tenham experimentado a opressão dos brancos,
tios escravistas, dos colonizadores, dos imperialistas e neocolo-
niaJistas brancos.

• Publicado no Brasil, sob o título Da Pr9xima Vez, o Fogo, pela


lllblioteca Universal Popular (BUP), Rio de Janeiro. (N. do T.)

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--- - _-- -~ - ~

Irritou-o, compatriota, eu ter encaixado êsses epítet~s desta


maneira? T olere-me. Minha intenção não era necessànamente Jucntos c enganado pelo desejo ardente de estabilidade social,
espalhar sal sôbre as feridas de alguém. Fiz isso principalmente confundindo fenômenos transitórios com a dura realidade. A
para aliviar uma certa pressão sôbre ~eu cérebro. Entendeu? fôrc;a c a continuidade do "coice branco" na América é apenas
Se não então estamos em maus lenç6ts, porque nós, observa- uma ilusão. Por mais que essa ação de retrocesso possa parecer
, A •

dores dos Ofay temos uma acentuada tendencta para escorregar crescer em fôrça, a iniciativa e o futuro repousam naqueles
para êstes assu'ntos. Se o aborrece, para mim ~ apenas uma brancos que se libertaram da síndrome senhor-escravo. E êstes
tarefa pois não faz muito tempo o meu modo de vtda era ~regar, podem ser encontrados principalmente entre os jovens.
o mais ardentemente que pudesse, que a raça branca e uma Durante os úl timos doze anos, veio à tona um conflito polí-
raça de demônios, criada pelo seu criador para fazer o mal.' .e tico entre gerações que é mesmo mais profundo do que a luta
fazer com que o mal pareça o bem; que a raça branca é a m~­ racial. Sua primeira manifestação dramática foi dentro das fi-
miga natural e imutável do homem negro, que é o homem on- feiras da população negra, quando estudantes universitários do
gina1, o dono, o artífice e a nata do planêta Terra; que a raça Sul, fartos com a atitude chapéu-na-mão dos tios Tom em relação
branca em breve seria destruída por Alá, e que o homem negro ~L revolução, sacudiram o jugo da NAACP *: Quando os estudantes
herdaria então a terra que sempre, na verdade, foi sua. iniciaram os primeiros sit-ins"' *, o espír·ito de luta espalhou-se
Lavei, por assim dizer, minhas mãos no sangue ~o má;tir como chamas em palha .por tôda a nação, e a técnica de ação
Malcolm X cujo recuo ante o abismo da loucura cnou novo direta não-violenta, constantemente refinada e afiada como uma
espaço par~ outros ocuparem; e estou agora e~volvido nesse faca, ràpidamente amadureceu. Os "líderes" negros mais velhos,
minúsculo espaço, tentando urna manobra própna. Tend? re- que agora advogam esta tática e por ela dão a vida, censuraram
nunciado aos ensinamentos de Elijah Muhammad, descobn q~e os estudantes por êfes realizarem sit-ins. Os estudantes lançaram
a reencarnação não se segue automàticamente, por s~a pr6~na o desprêzo sôbre suas cabeças esbranquiçadas. Nos dias que
dinâmica, que um vazio é deixa~o .em nossas concepçocs, e este antecederam os sit-ins, tais líderes conservadores sempre logra-
vazio procura constantemente elunmar-s~ puxando-nos .de volta vam êxito em repelir elementos insurretos entre a população
para nossas antigas concepções. Tentet um compromt~so ten- negra. (Uma medida do seu poder, antes da rebelião dos estu-
tador adotando um vocabulário selecionado, de manetra que dantes, é mostrada pelo sucesso em isolar grandes figuras negras,
agora, quando vejo o branco ~os olho~ d~f~s, a? !nvé~ de tais como o falecido W.E.B. DuBois e Paul Robeson, quando
chamá-los de "demônios" ou "bestas", digo 1mpenabstas ou êstes destemidos homens, recusando morder suas próprias lín-
"colonialistas", e todos parecem ficar mais felizes. guas, perderam privilégios junto ao Govêrno norte-americano
pelos seus ilimitados esforços para vincular a revolução negra
Em silêncio, passamos anos observando os Ofays, tentando aos movimentos de libertação nacional em várias partes do
compreendê-los, dentro do princípio de que se tem uma me~or mundo.)
chance de lutar com o conhecido do que com o desconhectdo.
Alguns de nós estavam, e outros ainda estão, interessado~ e~ Os "líderes negros" e os brancos que dêles dependiam para
saber se é definitivamente possível viver no mesmo terntóno controlar a população de côr sentiram-se ultrajados pela inlper-
com p~ssoas com quem parece tã? desagradável c,onviver; outros tinência dos estudantes. Clamando por uma moratória na ini-
ainda desejam permanecer o ma1s afastado posstvel dos Ofays.
O que nós compartilhamos é o desejo comum de romper o poder
dos Ofay sôbre nós. • Associação Nacional para o Progresso da População de Côr
(National Association for the Advancement o f Colored People) .
Em épocas de mudanças sociais radicais, tais como a e~a (N. do T.)
em que vivemos, é fácil ser iludido pela investida dos acontect- ** Forma de resistência passiva, na qual os manifestantes sen-
!tlm-se em praças públicas em sinal de protesto. (N. do T.)
64
65
r

n1ocráticas feitas pelos Aliados durante o conflito. A Carta do


ciativa estudantil, foram saudados com uma repetição dos sit-ins, AHfintico, assinada pelo Presidente Roosevelt e pelo Primeiro-
e retiraram-se para suas tôrres de marfim a fim de contemplar Ministro Winston Churchill, em 1941, afirmando "o direito de
o nôvo fenômeno. Outros, menos prudentes por estarem for- todos os povos de escolher a forma de govêrno sob a qual possam
temente ligados aos brancos, tiveram suas carreiras abruptamente viver" estabeleceu o princípio, embora levasse anos de lutas no
terminadas porque pensavam que podiam liderar um coice pós-guerra para dar a esta peça de retórica a aparência de rea-
branco-negro contra os estudantes, apenas para se acharem numa l idade. E, assim como a revolução mundial impeliu os opri-
espécies de Baía dos Porcos. Os diretores de educandários midos a reavaliarem sua imagem própria em têrmos das con-
negros, que expulsaram estudantes dos colégios só-para-negros dições em mudança, para abandonar as atitudes servis incul-
cadas pelos longos anos de subordinação, a mesma dinâmica
na tentativa de sufocar as manifestações, acabaram perdendo
dD mudança induziu a população branca mundial a reavaliar de
seus empregos; os estudantes vitoriosos não permitiram que
igual modo a sua imagem própria, a desenganar-se quanto à
continuassem dirigindo o campus. Os protestos espontâneos nos
psicologia da Raça Superior desenvolvida com o passar dos sé-
campus do Sul contra as medidas repressivas de suas adminis-
culos de suprt.ma hegemonia.
trações escolares foram um sinal do levante em favor da Liber-
dade de Expressão que, anos mais tarde, sacudiria o campus UC,
:B na juventude branca do mundo que as maiores mudanças
estão ocorrendo. :B ela que está experimentando a grande dor
em Berkeley. De incontáveis maneiras, a rebelião dos estu-
física de despertar a consciência para descobrir seus heróis-por-
dantes negros serviu como catalisador para a fermentada revolta
I herança, transformados pelos acontecimentos em vilões. A
dos brancos. comunicação e a compreensão entre as gerações brancas mais
o que aconteceu subitamente foi que a raça branca perdeu velhas e mais novas entraram em crise. Os mais velhos, que
seus heróis. Pior ainda, seus heróis foram desmascarados como pela tradição das classes ou raças privilegiadas, não compr~
vilões e os seus grandes heróis como arquivilões. As novas g~ endem genulnamente a juventude, presos aos velhos pensamentos
rações brancas, aterradas pela marca sanguinária e desprezível e cegos em relação ao futuro, apenas começaram a ser atór-
deixada sôbre a face do globo por sua raça nos últimos cin- mentados - porque a juventude apenas começou a se rebelar.
qiienta anos, estão rejeitando a panóplia de heróis brancos, cujo Tão completa é a revolução na psique da juventude branca que
heroísmo consistiu em erigir a vergonhosa estrutura do colonia- a tradicional tolerância que cada geração mais velha achou n~
lismo e do imperialismo; heróis cujas carreiras descansavam cessário mostrar está ràpidamente se exaurindo, deixando um
sôbre um sistema de exploração doméstica e estrangeira, enrai- gôlfo de temor, hostilidade, mútua incompreensão e desprêzo.
zada no mito da supremacia branca e no destino dessa raça. A A rebelião dos povos oprimidos do mundo, juntamente com
elas repugna e envergonha o espetáculo de cowboys e pioneiros a revolução negra na América, abriu caminho para uma nova
- seus heróicos antepassados cujas proezas encheram de or- avaliação da bist(>ria, um reexame do papel desempenhado pela
gulho as gerações anteriores - galopando através de uma tela raça branca desde o princfpio da expansão européia. As gran-
de cinema atirando em índios como em garrafas de Coca-Cola. des conquistas positivas também estão sendo registradas, e as
Mesmo Winston Churchill, que é contemplado pelos brancos gerações futuras as aplaudjrão. Mas não pode haver aplausos
mais idosos como, talvez, o maior herói do século XX - mesmo agora, não enquanto o íeitor continuar segurando o açoite na
êle, em conseqiiência do sistema do qual era uma criatura e ao mão! Nem mesmo os próprios filhos do feitor podem achar pos-
qual serviu, é um arquivilão aos olhos dos jovens brancos r~ sível aplaudi-lo - nem êle mesmo pode se aplaudir! As proezas
beldes. negativas soam muito alto. Caçadores e donos de escravos,
Ao término da Segunda Guerra Mundial, os movimentos assassinos, carniceiros, invasores, opressores - os heróis brancos
de libertação nacional no mundo colonizado ganharam nôvo adquiriram novos nomes. Os grandes estadistas brancos que as
ímpeto e audácia, procurando tirar proveito das promessas de-
67
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crianças aprendem a reverenciar nas escolas são desmascarados


como os arquitetos dos sistemas de exploração c escravidão hu- d,1 publicidade c autopropaganda dos grupos mais barulhentos,
l 'ih' período passou a ser conhecido como a era dos beatniks,
mana. Os líderes religiosos são expostos como os absolvedores
l'tllilora nem todos os jovens afetados por estas mudanças se
ou os justificadores de tôdas estas façanhas perversas. Os pro-
fessôres das escolas e universidades são vistos como uma pane- julgassem tais. Os gritos dos beatniks e a sua violência e cruel
linha de lavadores de cérebros e de branqueadores. denuncia do sistema - caracterizado por Ginsberg como Mo-
loch, uma divindade semítica sanguinária à qual as tribos antigas
A juventude branca atual está começando a ver, intuitiva- 11acrificavam seus filhos primogênitos - era a séria e irrevogável
mente, que para escapar ao ônus da história que seus pais fi- declnração de guerra. ~ rcvelador que os mais velhos olhassem
zeram, êles estão obrigados a enfrentar e admitir a verdade os beatniks como meros desajustados obscenos, demasiadamente
moral dessa obra de seus pais. Que figuras veneradas tais como preguiçosos para tomar banho, que acham doloroso cortar o
Georoe Washington e Thomas Jefferson eram donas de centenas cabelo. Os velhos tinham olhos, mas não podiam ver; tinham
de es~ravos negros, que todos os Presidentes até Lincoln gover- ouvidos mas não podiam ouvir - nem mesmo quando a men-
naram um pafs de escravos, e que cada Presidente desde Lincoln sagem foi passada tão às claras como esta notável passagem de
foi conivente com o cinismo e a politica em relação às questões On the Road, de Jack Kerouac:
dos direitos humanos e do bem-estar geral das grandes massas
do povo americano - êsses fatos pesam duramente sôbre o
coração dêsses jovens.
Num fim de tarde lilás eu caminhava com todos os mús-
Os mais velhos não gostam de dar crédito a êsses jovens
culos doendo sob as luzes das Ruas 27 e Welton, no bairro
por serem capazes de compreender o que acontece e o que ~coa­ negro de Denver, desejando ser um negro, sentindo que
teceu. Quando falam de delinqüência juvenil, ou da atitude
o melhor que o mundo branco podia oferecer não era sufi-
de rebeldia da juventude atual, empregam sempre frases empo- cientemente arrebatador para mim, não era suficientemente
ladas. Falam da "alienação da juventude", do desejo dos jovens vida, prazer, emoção, mistério, música, não era bastante
de ser independentes, dos problemas da "imagem do pai" e da
noite. Desejava ser um mexicano de Denver, ou mesmo
"imagem da mãe" e seus efeitos sôbre os adolescentes, que ca-
um pobre japonês extenuado pelo trabalho; qualquer
recem de modelos exatos segundo os quais se pautarem. Mas coisa, enfim, exceto o que tão melancolicamente eu era,
consideram um péssimo modêlo a ligação dos problemas da um "homem branco" desiludido. Durante tôda a minha
juventude com os eventos centrais de nossa época - os mo- vida tive ambições brancas . . . e passei então pelas va-
vimentos de libertação nacional no exterior e a revolução negra randas escuras das casas de negros e mexicanos; ouvia-se
interna. Os alicerces da autoridade na América desmoronaram vozes suaves, ocasionalmente o munnúri'o choroso de al-
porque tôda a sociedade foi denunciada, julgada e culpada de guma jovem sensual e misteriosa; as faces obscurecidas
injustiça. Para a juventude, os mais velhos são os Maus ame-
dos homens atrás de plantações róseas. As crianças sen-
ricanos; para os velhos, os jovens ficaram malucos.
tadas como sábios em antigas cadeiras de balanço.
A rebelião da juventude branca atravessou quatro fases ni-
tidamente visíveis. Primeiro, houve um recuo inicial, uma re-
jeição do conformismo que a América esperava, e sempre
recebeu, mais cedo ou mais tarde, de sua geração jovem. Os A segunda fase chegou quando êstes jovens, tendo decidido
descontentes recusavam-se a participar do sistema, tendo des- enfàticamente que o mundo, e particularmente os Estados Uni-
coberto que a América, longe de auxiliar os fracos, aumentava dos da América, era inaceitável para êles na sua forma atual,
ainda mais suas misérias para mantê-los dominados. Em virtude deram início a uma busca ativa de papéis que pudessem desem-
penhar para transformar a sociedade. Se muitos dêsses jovens
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se davam por satisfeitos sentados nas esquinas, fumando ma- mulher ou de uma criança negra. Os políticos brancos podem,
conlla e ouvindo jazz numa orgia perpétua de felicidade esté- caso os negros se levantem por um crime em particular, dizer
rica, havia outros, menos comprimidos pelo sistema, que re- com seus lábios aquilo que sabem em seus pensamentos que
conheciam a necessidade de ações positivas. Moloch não podia deveriam sentir em seus corações - mas não dizem.
pedir nada mais do que ter suas vítimas descontentes retiradas Este sentimento negro pôde ser medido quando dois bran-
em pequenas ilhas seguras, passivas, apolíticas e não participan- cos e um negro, defensores dos direitos civis, foram assassinados
tes, numa economia cada vez menos capaz de proporcionar em Mississipi, em 1964: o fato foi recebido como positivo pelos
empregos para o crescente poço de desempregados. Se todos os negros, num nível de compreensão mais profundo do que o
desempregados tivessem seguido a liderança dos beatniks, Mo- pesar que sentiram pelas vítimas e suas famílias. Estas boas-
loch teria prazerosamente legalizado o uso de drogas alucina- vindas à violência e morte para os brancos podem quase ser
tórias e da maconha, e aprovado os álbuns de jazz livre e sacos ouvidas - e realmente são ouvidas - nas palavras inevitáveis,
de dormir para todos aquêles desejosos de assinar uma decla- e freqüentemente repetidas pelos negros, de que aquêles brancos
ração prometendo continuar beats. A desencantada juventude e o negro não morreram em vão. Assim foi com a Sra. Viola
branca não-beat foi atraída magneticamente para a revolução Liuzzo. E grande parte da raiva que os negros sentiram em
negra, que começara a tomar forma de massa e de insurreição. relação a Martin Luther King durante a Batalha de Selma, partiu
Mas ela teve dificuldade em compreender seu relacionamento do fato de que êle negou à história um grande momento, que
com o negro, e que papel os "brancos" podiam desempenhar nunca seria recuperado, ao bater em retirada sôbre a Ponte
numa "revolução negra". Por ora, limitaram-se a assistir de Edmund Pettus e recusar a todos aquêles brancos que o seguiam
longe os ativistas negros. aquilo pelo que viajaram milhares de quilômetros. Se a polícia
tivesse repelido à fôrça tôdas aquelas freiras, padres, rabinos,
A terceira fase, que se aproxima ràpidamente do fim, emer- pregadores e distintas senhoras e cavalheiros, velhos e jovens -
giu quando a juventude branca começou a integrar-se em gran- como havia feito com os negros na semana anterior - a vio-
de número, nas manifestações negras. A presença de brancos lência e a brutalidade do sistema teriam sido implacàvelmente
entre os manifestantes animou os líderes negros e permitiu que
usassem táticas que jamais teriam sido capazes de empregar
a
desmacarados. Ou se, vendo King determinado liderá-los até
Montgomery, as tropas tivessem se afastado para evitar preci-
com fileiras exclusivamente negras. A consciência racista da samente a confrontação que Washington não teria tolerado,
Aniérica é tal que um assassinato não é registrado como real- anunciar-se-ia a capitulação do Sul branco militante. Dó modo
mente um crime, a menos que a vítima seja branca. E foi so- como aconteceu, a marcha sôbre Montgomery foi uma mostra
mente quando os jornais e revistas começaram a publicar foto- de algo sem brilho, encenado pelo Establishment. Mas, a esta
grafias e reportagens de manifestantes brancos sendo espancados altura, os jovens brancos já eram participantes ativos da revo-
e mutilados pelas turbas policiais que o público começou a lução negra. Na verdade, começaram a transformá-la em algo
protestar. Os negros tornaram-se tão acostumados a êste duplo de maiores proporções, com o potencial de abraçar tôda a ~é­
padrão que êles, também, reagem diferentemente à morte de rica para uma recomposição radical da sociedade.
um branco. Quando os defensores brancos da liberdade eram
tratados com brutalidade juntamente com os negros, um suspiro A quarta fase, agora principiando, vê esta juventude branca
de alívio levantava-se das massas negras, porque os negros sa- tomando a iniciativa, utilizando técnicas aprendidas na luta
biam que o sangue branco é a moeda da liberdade numa terra negra para atacar problemas na sociedade, em geral. O exemplo
onde, durante quatrocentos anos, o sangue negro tem sido der- clássico desta nova energia em ação foi a batalha estudantil no
ramado inadvertida e impunemente. A América nunca foi, na campus da UC, em Berkeley, na Califórnia- o Movimento pela
verdade, ultrajada pelo assassinato de um homem, de uma Liberdade de Expressão. Liderando a revolta estavam os vete-

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ranos do movimento dos direitos civis, alguns dos quais passaram hipocrisia; sua grandeza nacional, a vaidade arrogante; seus
algum tempo ~a linha de fogo, nas imensidões do Mississipi e sons e regozijo são vazios e desalmados; sua denúncia de
Alabam~. Flumdo de;> mesmo rmpeto estavam as manifestações tiranos, o arrematado descaramento; seus gritos de liber-
estudantis contra a mtervenção norte-americana nos assuntos dade e igualdade, uma zombaria vazia; suas orações e
internos do yietnã, Cuba, República Dominicana e Congo, e hinos, seus sermões e manifestações de gratidão, com tôdas
contra o apoto norte-americano ao apartheid na África do Sul. as suas solenidades e procissões religiosas, são, para êle,
Os estudantes, da mesma forma, incitaram a comunidade inte- mais aranzel, fraude, decepção, impiedade e hipocrisia -
lectual para ações e posições que seriam inconcebíveis anos um véu fino para acobertar crimes que desonrariam uma
ant~s: testemunhar o_s sit-ins. Mas a revolta tem maiores impli- nação de selvagens . ..
caçoes do que um stmples protesto. As características dos re-
beldes brancos que mais alarmam os mais velhos - o cabelo Você se vangloria de seu amor à liberdade, de sua C1Vl-
grande, as novas danças, o amor pela música negra, o uso da lização superior, e de sua cristandade pura, enquanto todo
maconha, a atitude mística em relação ao sexo - são instru- o poder político da nação (englobado nos dois grandes par-
mentos da sua rebelião. E viraram essas armas contra a estru- tidos políticos) está solenemente comprometido em apoiar
tura totalitária da sociedade americana - e querem transfor- e perpetuar a escravidão de três milhões de seus compa-
má-la. triotas. Vocês arremessam seus anátemas contra os tiranos
. ~esde o princípio~ a América tem sido uma nação esqui- de cabeça coroada da Rússia e da Áustria e orgulham-se
zofrêntca. Suas duas tmagens conflitantes nunca foram recon- de suas instituições democráticas, enquanto vocês mesmos
ciliadas, porque nunca antes a sobrevivência de seus mitos mais consentem em ser os meros instrumentos e guarda-costas
ternos tor~ou obrigatória essa reconciliação. No passado, du- dos tiranos da Virgínia c da Carolina.
rante as vwlentas lutas entre o Norte e o Sul, que culminaram
com a Guerra Civil, as duas imagens entraram em conflito Vocês convidam para suas praias fugitivos da opressão de
embora os br~ncos nortistas : ~ulistas mal chegassem a compre~ outras terras, prestam-lhes homenagens com banquetes,
endê-lo. A tmagem da Amenca sustentada por seus cidadãos saúdam-nos com ovações, dão-lhes alegria, fazem-lhes
m~is alienados não foi proposta nem pelo Nor te nem pelo Sul; brindes, trocam cumprimentos, oferecem-lhes proteção e
fot, ta lvez, melh?r_ expressa por Frederick Douglass, que nasceu dão-lhes dinheiro como se fôsse água; mas os fugitivos de
em plena escravtdao no ano de 1817, fugiu para o Norte e tor- sua pr6pria terra vocês transformaram em anúncios de re-
no u-se o maior líder e porta-voz dos negros de sua época. Em compensa, caçam, prendem, atiram e matam. Vanglo-
pal~~ra~ que podem ainda, depois de tantos anos, despertar uma riam-se de seu refinamento e da sua educação universal;
aud1encta de negros americanos, Frederick D ouglass desferiu, em entretanto, mantêm um sistetma tão bárbaro e medonho
I 852, uma abrasadora denúncia em seu discurso do Quatro de como jamais houve a manchar o caráter de uma nação
Julho, em R ochester: - um sistema iniciado na mesquinhez, apoiado no or-
gulho e perpetuado na crueldade.

O que é o Quatro de Julho para o escravo americano? Vocês derramam lágrimas sôbre os húngaros caídos, e fa-
Eu respond~: um dja que lhe revela, ma is do que todos zem da triste história de seus males o tema de seus poetas,
os outros dtas do ano, a repulsiva injustiça e crueldade estadistas e oradores; até seus filhos galantes estão prontos
de que é a vítima constante. Para êle, sua celebração é a pegar em armas a fim de defender-lhes a causa contra o
uma vergonl1a; seu alarde da liberdade, uma amaldiçoada opressor; mas, em relação aos dez mil males do escravo

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americano, impõem o mais estrito silêncio e os proclamam
como um inimigo da nação que ousa fazer dêstes males o visão do mundo negro permanece intacto e, de fato, começa a
assunto de manifestações públicas! se expandir e a propagar no terreno psicológico deixado vago
pelas mentiras brancas inviáveis, isto é, nas consciência& dos
jovens brancos. g notável como o sistema funcionou durante
tantos anos, como a maioria dos brancos permaneceu efetiva-
Esta visão extremamente alienada da América foi pregada mente inconsciente de qualquer contradição entre a sua visão
pelos abolicionistas e por Harriet Beecber Stowe em seu livro do mundo e aquêle mundo verdadeiro. O mecanismo pelo qual
Uncle Tom's Cabin. Mas tal visão da América era demasiada- isto se tornou possível requer agora um exame.
mente repugnante para receber ampla atenção, e o debate sério
sôbre a sua imagem e a sua realidade somente ocupou a margem Lembremo-nos que o homem branco, para justificar a es-
da sociedade. Mesmo quando confrontada com a esmagadora cravidão e, posteriormente, a segregação, elaborou um mito com-
evidência do contrário, a maior parte dos americanos brancos plexo e altamente difundido que, em certa época, classificava o
achou possível, após acalmar seus músculos agitados, restabe- negro como uma bêsta de carga sub-humana. O mito foi pro-
lecer-se confortàvelroente na alardeada crença de que a América gressivamente modificado, elevando gradualmente os negros na
está consagrada à proposição de que todos os homens são criados escala da evolução, seu status sofrendo mutação lenta, até o
com igualdade e dotado pelo seu Criador de certos direitos ina- platô do separados-mas-iguais ser alcançado ao término do sé-
lienáveis - vida, liberdade e a busca da felicidade. Tendo a culo XIX. Durante a escravidâo, o negro era ~ontemplado como
Constituição por leme e a Declaração da Independência como um Criado Supermasculino irracional. Forçado a desempenhar
estrêla-guia, o navio do Estado navega sempre na direção de o trabalho de mula de carga, êle era julgado em têrmos de sua
uma visão mais brilhante da liberdade e justiça para todos. habilidade para fazer tal trabalho - "negros do campo", etc.
Pelo fato de não existir uma base comum entre estas duas O homem branco administrava a plantação, fazendo todo o
imagens contraditórias da América, elas tiveram de ser man- trabalho intelectual, exercendo um poder onipotente sôbre os
tidas separadas. Mas no momento em que os negros puderam escravos. Eram poucas as suas dificuldades para se dissociar
ingressar no mundo branco - libertados de suas jaulas, os dos escravos negros, e não podia imaginar que suas posições
guetos mudos e sem face, para cantar, caminhar, falar, dançar,
fôssem revertidas, ou mesmo reversíveis.
escrever e discursar sôbre a sua imagem da América e dos ame-
ricanos - o mundo branco foi subitamente desafiado a pôr em Com os negros e brancos sendo concebidos como tipos
prática o que pregava. E é por isso que aquêles brancos, que mutuamente exclusivos, os atributos imputados aos negros não
abandonaram a imagem branca da América e adotaram a negra, podiam, da mesma forma, ser impingidos aos brancos - pelo
foram recebidos com tal implacável hostilidade pelos seus se- menos, não no mesmo grau - sem apagar a linha separando
melhantes mais velhos. as duas raças. Estas imagens eram apoiadas na função social
Durante todos êsses anos, os brancos foram ensinados a das duas raças, no trabalho que realizavam. O homem branco
acreditar no mito que pregavam, enquanto os negros tinham de ideal era aquêle que sabia como usar a cabeça, como dirigir e
enfrentar a dura realidade daquilo que a América colocava em controlar as coisas e conseguir que estas fôssem feitas. Aquêles
prática. Mas, sem as mentiras e distorções, os americanos brancos que não tinham condições para desempenha r tais fun-
brancos não teriam sido capazes de fazer o que fizeram. Quando ções, não obstante aspiravam a isso. O homem negro ideal era
os brancos são forçados a contemplar honestamente a prova aquêle que fazia exatamente o que lhes mandavam, eficiente e
objetiva de suas ações, o cimento da falsidade que une a so- prazerosamente. ..Dos escravos", disse Frederick Douglass,
ciedade ràpidamente se desintegra. De outro lado, o centro da "espera-se geralmente que cantem tão bem quanto trabalham".
Corno a função e a posição do homem negro tornou-se mais
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variada, as imagens do branco e do negro, tendo se tomado f, 1tn sociológico na América - , escondeu o fato psicológico
, 11 prcmo: de que para a consciência branca, o fato de da: a
estereótipos, ficaram para trás.
qunlqucr coisa a qualidade de "negra" coloca-a automàtl~a­
A doutrina do separado-mas-igual foi promulgada pela Su- nwntc numa categoria inferior. Um exemplo bem conhectdo
prema Côrte, em 1816. Domesticam ente, tinha o mesmo propó- ua necessidade branca de negar o devido crédito aos negros está
sito da Política de Portas Abertas em relação à China no cená- no domínio da música. Os músicos brancos eram famosos por
rio internacional; objetivava estabilizar uma situação e subor- i1·cm ao Harlem, e a outros centros culturais negros, exatamente
dinar uma população não-branca de maneira que os explora- para roubar a música do negro, transportand o-a de volta, atra-
dores racistas pudessem manipulá-la de acôrdo com os seus inte- v~s da linha da côr, até o Grande Mundo Branco e passando
rêsses e egoísmos. Estas doutrinas foram impingidas como o adiante a descarada pilhagem como criações pr~rias. Os negros,
epítome da justiça esclarecida, a mais alta expressão da mora- enquanto isso, eram ridicularizados como músicos negros tocando
lidade. Santificada pela religião, justificada pela filosofia e lega-
mt1sica crioula inferior.
lizada pela Suprema Côrtc, a doutrina do separado-mas-igual ia
sendo imposta de dia pelos representant es da lei e, sob o manto A revolução negra interna e os movimentos de libertação
da escuridão, pela KKK & Cia. Booker T. Washington, o Mar- nacional no exterior sacudiram sem a menor cerimônia o mundo
tio Lutber King de seus dias, aceitou a doutrina em nome de de fantasia no qual viviam os brancos. t doloroso muitos não
todos os negros. W. E . B. DuBois denunciou-a. terem ainda percebido que seu mundo de fantasia foi tornado
inabitável na última m etade do século XX. Mas é para longe
A doutrina do separado-mas-igual marcou a última fase do
dêstc mundo que a juventude branca de hoje está se dirigindo.
vôo do homem branco em direção à neurose cultural, e o prin-
cípio da luta frenética do homem negro para afirmar sua condi-
o herói "tigre de papel", James Bond, oferecendo aos brancos
uma imagem triunfante de si próprios, está dizendo o que muitos
ção humana e igualar sua posição com o branco. Os negros se
brancos desejam desesperada mente que seja reafirmado : Eu sou
aventuraram em todos os campos nos quais pudessem conquis-
ainda o homem branco, senhor da terra, com licença para matar,
tar o ingresso. A meta era apresentar em todos os campos uma
e o mundo continua sendo um império a meus pés. James Bond
performance que se igualasse ou sobrepujasse a dos brancos.
se alimenta daquela minúscula e secreta ansiedade, o coice branco
Isto produziu uma motivação patológica nos negros, para igualar
psicológico, sentida em certo grau pela maior parte dos brancos
ou sobrepujar os brancos, e outra nos brancos para manter a
vivos. :E: exasperante ver pequenos homens de pele marrom e
distância que os separava dos negros. Esta é a câmara na qual
amarela do misterioso Oriente, e os homens negros opacos da
brancos e negros americanos recebem suas deliciosas torturas!
Africa (para não falar dêstes impudentes negros americanos! )
A princípio, havia a linha da côr negando categoricam ente a
virem às Nações Unidas falar com inteligência e espalharem por
entrada do negro ym certas esferas de atividade. Quando isto
todo o nosso globo seus representantes estranhamen te vestidos
deixou de funcionar, e os negros invadiram setor após setor da
- a maior parte corno se fôssem desprezíveis recém-chegados
vida e economia americanas, os brancos desenvolveram outros
de outros planêtas. Muitos brancos acreditam particularme nte
métodos para manter a djstância. A ilusão da natureza inferior
que é apenas uma questão de tempo antes que os fuzileiros rece-
do negro tinha de ser mantida.
bam o sinal para dar caça a êsses desocupados e os mandar
Um dos artifícios desenvolvidos pelos brancos foi rotular o de volta para suas jaulas. Mas é para longe dêste mundo de
q ue quer que fôsse fei.to pelos negros com a etiquêta "negro". fantasia que a juventude branca de hoje está se dirigindo.
Assim, tínhamos ·a literatura negra, atletas negros, música negra,
doutôres negros, políticos negros, trabalhadore s negros. A ma- Na revolução mundial ora em andamento, a iniciativa está
ligna ingenuidade dêste artifício é que, embora descreva preci- com as pessoas de côr. Aquêles números crescentes de jovens
samente um fato biológico objetivo - ou, pelo menos, um brancos estão repudiando a herança de sangue e o fato de toma-

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rem pessoas de côr como seus heróis e modelos é um tributo não lutando, com a depravação imperialista, pela posse de terras
apenas ao seu discernimento como à elasticidade do esp[rito til' outros povos - e até dos próprios povos. Parece não haver
humano. Hoje, os heróis da iniciativa são pessoas comumente f 1m para as espantosas ações das quais suas populações são
consideradas como não-brancas: Fidel Castro, Che Guevara, t ulpadas. CU LPADAS. O morticínio de judeus pelos alemães, o
Kwame Nkrumah, Mao Tsé-Tung, Gama! Abdel Nasser, Robert lançamento de bombas atômicas sôbre o povo japonês - tais
F. Williams, Malcolm X, Ben Bella, John Lewis, Martin Luther .u;ocs pesam duramente sôbre as almas abatidas e consciências
King Jr., Robert Parris Moses, Ho Chi Minh, Stokel~y Carmi- tumultuadas da juventude branca. Os heróis brancos, com as
cbael, W. E . B. DuBois, James Forman, Chou En-La1. ruãos sujas de sangue, estão mortos.
A juventude branca atual começou a reagir ao fato de que Os jovens brancos sabem que as pessoas de côr espalhadas
o American W ay of Li/e é um fóssil da história. Por que êles pelo mundo, inclusive os afro-americanos, não procuram vin-
vão se importar se seus pais carecas ou de cabelo raspado não gança para o seu sofrimento. Procuram, sim, as mesmas coisas
aceitam suas cabeleiras de homens de cavernas? E não podem que os rebeldes brancos desejam: um ponto final na guerra e
11a exploração. Negros e brancos, os jovens rebeldes são pessoas
dar maior importância aos velhos, êsses quadrados que não gos-
Iivres, livres de uma maneira como os americanos nunca foram
tam de suas novas danças: o /rug, o monkey, o jerk, o swim, o na história do país. E êles são ultrajados.
watusi. :eles sabem que é muito melhor e mais gostoso balan-
çar c contorcer o corpo do que arrastar-se no salão de dança Existe na América de hoje uma geração de jovens brancos
como zumbis ao som morto da música de Mickey Mouse que que é verdadeiramente digna do respeito ~e um l:o~e!ll negr~,
amortece a consciência. :B maravilhoso que a juventude tenha c isto é um fato raro nos asquerosos anais da h1stona amen-
perdido todo o respeito pelos mais velhos, pela lei e pela ordem, cana. Desde o princípio do contato entre negros e bran~os hou-
já que, por mais que sua memória recue no tempo, ela só teste- ve muito poucas razões para um homem negro respeitar um
munhou o escandaloso espezinhamento do lugar do negro na branco com exceções tais como John Brown e outros menos
sociedade americana e do direito dos povos em todo mundo de conhectdos. Mas o respeito se impõe e, quando é devido, não
serem deixados tranqüilos, livres das garras das potências estran- pode ser dado nem tirado. Se um homem como Malco~ X
pôde mudar e repudiar o racismo, se cu próprio e outros antigos
geiras? ~les viram a lei, tanto a interna como a internacional, muçulmanos podemos mudar, se os jovens brancos podem mudar,
ser cuspida por aquêles que não gostavam dos seus têrmos. Não
é maravilhoso, então, que êles se sintam justificados, realizando então há esperança para a América. Seria certamente es!Xanho
sit-ins e lutando pela liberdade, transgredindo leis feitas por descobrir a mim próprio, enquanto mergulhado na doutrina de
homens sem lei? Os velhos e ridículos políticos do tipo cava- que todos os brancos são demôn!os por natureza, sendo ~ornao­
leiros da noite, nada sabem exceto organizar comissões de inves- dado pelo coração para aplaud1r e reconhecer o respeito por
tigação para examinar os distúrbios, para descobrir as causas da êstes jovens brancos - apesar do fato de que êles são descen-
agitação entre os jovens. Mirem-se num espelho! As causas são dentes dos senhores e eu descendente dos escravos. Os pecados
vocês, Senhor e Senhora Ontem; vocês, com suas línguas dos pais são colocados sôbre as cabeças dos filhos - . mas
rachadas. somente se os filhos continuarem as ações perversas dos pa1s.
Atualmente, o jovem branco não pode deixar de constran-
ger-se diante das felooias da sua gente. Por tôda parte, em cada
continente êle vê a arrogância racial, a brutalidade selvagem
contra os 'povos conquistados e subjugados, o gen?cíd~o; ~ê a
carga humana do comércio de escravos; a extermmaçao stste-
mática de índios americanos; as nações civilizadas da Europa

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unm nação de excêntricos bisbilhoteiros que preferem o biquíni
l ll> corpo nu, a mentira branca à verdade negra, os sorrisos de
Jlollywood e gargalhadas enlatadas aos aplausos cheios de senti-
mento do Bronx. O punho de ferro herético da realidade ame-
ricana sobe à superfície na luva de veludo de cada esfôrço insti-
1ucionalizado, de modo que, cada ano, nós como uma nação,
Lázaro, Adianta-te Nomos moídos através de vários ciclos de fricção, satisfazendo
simbolicamente o apetite insaciável da lei da selva, de facto
encobrindo nossa cultura, proclamando ao mundo em voz alta
c imperturbável que "a competição" é a lei da vida, e ficando
confusos, embaraçados e furiosos se alguém replica: "A Compe-
tição é a Lei da Selva e a Cooperação a Lei da Civilização".
Nossa massa de desportistas está engrenada para dissimular
- embora dando-lhe expressão - o comportamento de acôrdo
com o apurado aparato do mito do mais preparado no processo
ele sobrevivência. Da pequena liga às grandes ligas, passando
pelo clímax orgíaco das Séries Mundiais; dos times de futebol
universitários, através das equipes colegiais, à grande final do
O desejo de sangue ano na decisão do boliche; entrecortado pelos subciclos do bas-
quete, corridas e competições de atletismo - tôda a nossa massa
desportista dá encenação à ética cultural básica, utilizada e subli-
Ü RINGUE de boxe é o centro supremo da masculini-
mada nos rituais pagãos comunitário-nacionais.
dade na América, o terreno em que a natureza humana é julgada Mas há um aspecto no cristal da nossa natureza que evita
pelo critério dos punhos, o campeão dos pesos-pesados, como o aproveitamento, despreza a sublimação e exige ser visto na
um símbolo, é o verdadeiro Míster América. Numa cultura que sua crua nudez, reclamando de nós a visão e o cheiro de sangue.
secretamente endossa a ética de piratas do "cada um por si" - A veemência com que negamos êste fato óbvio de nossa natu-
o darwinismo social da "sobrevivência do mais apto" - está reza somente é rivalizada pela nossa histeria vitoriana sôbre a
longe de terminar, manifestando-se em nosso rotineiro sistema questão do sexo. Quer nós saciemos nossa sêde com a visão
social de partes em competição, em nosso sistema econômico do de um Jesus sangrando na cruz, com o ritual do sacrifício da
cão-come-cão de lucros e perdas, e em nosso sistema de justiça elevação da hóstia e a consagração do sangue do Filho, quer
no qual a verdade é secundária diante da habilidade e das liga- com a tourada, briga de galo, briga de cachorro, luta corpo-a-
ções do advogado - .a culminacão lógica desta ét@, num ~ível corpo ou pugilismo, temperado com a lembrança e a herança
interpessoaJ é que_o fraco é visto como a prêsa justa e natural ocidental dos gladiadores de Roma e do esporte das multidões
do forte. Mas, uma vez que êste princípio obscuro viola nossos no tempo em que se alimentava leões no Coliseu com cristãos e
ideais e manifestações democráticas, nós o forçamos às ocultas, outros inimigos da sociedade - qualquer que seja a máscara
sob a modéstia nacional contumaz que nos desmascara como simulada pelo impulso, o bater persistente do tambor ao passar
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dos anos entoa o canto : ainda que Drácula c o vampiro preci- A N•lcbridade negra
sem fugir de cena ao raiar o sol e à aparição da luz, a noite
tem sua hora fua e a escuridão precisa cair. E tôdas as lâm;
padas até agora fabricadas, e tôdas as usinas gerando eletrici- O assassinato de Malcolm X, o exílio de Robert F . Wil-
dade não têm absolutamente qualquer efeito sôbre o girar ori- liams, que foi forçado a fugir para Cuba em face do terror com-
ginal da terra em sua órbita. binado entre o FBI e os agentes da justiça sulista, e o exílio do
Na América, damos a máxima expressão ao nosso desejo falecido W. E. B. DuBois, que no ocaso de uma vida heróica
de sangue nos esportes de massas, como é o boxe. Alguns de fê?: três gestos simbólicos como uma legação final ao seu povo
nós são suficientemente romanos para admitir o amor e a neces- ( renunciando à cidadania americana, "regressando" à Africa para
sidade do esporte. Outros fingem contemplar as coisas de outro tornar-se cidadão de Gana e amaldiçoando o capitalismo enquanto
modo. Mas quando uma luta pelo campeonato de pesos-pesados exaltava o comunismo como a esperança do futuro) - êstes
eventos de um lado, e, do outro, a concessão do Prêmio Nobel
se desenrola, a nação faz feriado moral e todos se afinam -
a Martin Luther King e a disseminação de sua imaoem como
alguns espreitando com o canto do ôlho para a selva quadrada e herói internacional, atestam o fato histórico de que"'os únicos
para o teste animalesco de fôrça bruta que ali se desenvolve. n cg~os ame~icanos a guem se permitiu alcançar fama nacional
Cada instituição na América está contaminada pela mística uu mteroacwuai foram os fantoches e os lacaios da estrutura
da raça, e a questão da masculinidade é confundida pela pre- do_poder branco - e os artistas e atletas.
sença tanto de um homem "branco" como de um homem "negro". Uma das táticas pela qual os governantes da América man-
Um era o senhor e o outro, o escravo, até o momento em que tiveram bestificados milhões de negros em condições de subju-
ambos foram declarados homens "iguais"; o que deixa os ameri- gação das mais favoráveis, foi a consciente e sistemática emas-
canos positivamente sem uma imagem própria unitária e nacio- culação das lideranças negras. Através de um elaborado sistema
nalmente viável. Qualquer que seja a mais leve visão da masculi- de sanções, recompensas, punições e perseguições - geralmente
nidade que possuam é uma miscelânea .improvisada e cruel de com membros da burguesia negra agindo como assassinos profis-
violência e sexualidade, um exercício e adoração dicotomizados sionais - qualquer negro que procurasse liderar as massas negras
de fôrça física, submissão e temor diante desta fôrça - o que era jogado na prisão, morto, banido do país, perseguido, ou dei-
é apenas um aspecto das relações em colapso entre homens e xado na obscuridade e isolamento em sua própria terra e entre
mulheres na América. Esta é uma época em que os modelos seu próprio povo. Seu isolamento era assegurado por boicotes
de publicidade alternados com a destruição do caráter nos veí-
de masculinidade e feminilidade foram reduzidos a p6 pelo
culos de massa, c pelos jogos de poder fratricida dos Tios Tom
levante social, já que os homens e mulheres mais alienados e nas que controlam a comunidade negra em nome da estrutura do
profundezas da sociedade deixam "suas posições" e reivindicam poder branco. As ilustrações clássicas desta política de repres-
o direito de serem "homem" e "mulher" em bases iguais às dos são ao militante negro são as carreiras de Marcus Garvey, W. E.
antigos cavalheiros e senhoras. ~stes, em troca, não mais são B. DuBois e Paul Robeson.
vistos, por si próprios e pelos outros, como super-homens e super- Garvey, que no primeiro quartel dêste século desencadeou
mulheres, mas apenas como homens e mulheres iguais aos demais. um movimento negro maciço com base na América, mas de
E neste período de transformação social e confusão sexual, o raio e potencial internacional, foi atirado numa penitenciária
pugilismo, e, em particular, o campeonato de pesos-pesados, serve federal e depois exilado para a Inglaterra. W. E. B. DuBois, um
como teste supremo da masculinidade, apoiado na perfeição do dos gigantes intelectuais do mundo moderno, foi silenciado e iso-
corpo e de seu uso. lado na América tão vil e eficazmente como o regime racista na

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África do Sul silenciou e isolou líderes das massas negras como Quando a questão da s~gregaçâo nas fôrças armadas ·veio
o Chefe A1bert Luthuli, ou como a Grã-Bretanha, no Quênia, .t tona durante os anos 40, o então campeão mundial dos pesos-
silenciou e isolou inteiramente Jomo Kenyatta. Após fracas- pesados, Joe Louis, c Louis Satchmo Armstrong, que também era
sarem as tentativas para levá-lo à prisão sob acusações forja- famoso por tocar trumpete, foram obviamente muito mais citados
das, DuBois foi para o exílio em Gana e, mais tarde, renun- sôbre o assunto do que A. Philip Randolph ou W. E. B. DuBois.
ciou à cruel cidadania da terra onde nasceu. E, mais recentemente, no auge de uma epidemia nacional de
Paul Robeson estava no ápice de uma carreira brilhante sit-ins e manifestações, o Procurador-Geral ,.Robert Kennedy
como cantor e ator, ganhando cêrca de duzentos mil dólares por convocou um grupo de "influentes" artistas e atletas negros para
ano, quando começou a falar apaixonadamente em nome de seu reunirem-se com êle em segrêdo, a fim de receberem a mensa-
povo, incapaz de conciliar o luxo de sua própria vida com a gem d'O Homem e retransmitirem o evangelho aos nativos inquie-
miséria das massas negras nas quais teve origem e das quais tos. Na verdade, êste inteligente Agente do Desejo da Admi-
tinha orgulho. A resposta das massas negras ao seu carisma nistração achava possível que a Rainha do Mellow Mood, Lena
alarmou tanto os Tios Tom como a estrutura do poder branco, llorne, e Harry Belafonte, tendo como apoiador James Bald-
e Paul Robeson foi marcado para a destruição. Através de um win i, estivessem qualificados - para não dizer "inclinados", o
esfôrço coordenado e sistemático, Robeson tornou-se alvo do que não estavam - para dizer ou fazer alguma coisa a fim de
boicote econômico e da destruição do caráter. Destruído finan- "esfriar" as hordas de insurretos brancos e negros, obtendo um
ceiramente, e profundamente desgostoso por ver os Tios Tom período de congelamento. Obviamente, a manobra fazia sen-
negros trabalhando assiduamente para derrotá-lo e manter o seu tido para Kennedy. Valia a pena tentar, pois Kennedy sabia que
próprio povo por baixo, o espírito de Robeson foi esmagado, a ela se apoiava numa sólida tradição que funcionara durante anos.
saúde estragada e a carreira destruída. Mas os tempos haviam mudado fundamentalmente, e a tenta-
Esmagando os lideres negros, e ao mesmo tempo elevando tiva de esfriamento de Kennedy foi recebida com vaias e gritos
as imagens dos Tios Tom e das celebridades do mundo apolí- Je desprêzo e escárnio dos negros - inclusive artistas e atletas.
tico do esporte e do jôgo, os veículos de massas eram capazes Assim como o palhaço Dick Grevory foi alvejado, ao tentar
de canalizar e controlar as aspirações e metas das massas negras. "esfriar" os negros revoltosos em Watts, as celebridadas sabiam
O efeito era tirar o "problema" de_um contexto político, eco~ que sua posição na comunidade negra, que subitamente tornou-se
nômico e filosófico e colocá-lo no nível obscuro da "boa-vop- importante, podia fàcilmente ser destruída caso dessem a impres-
tade", "generosas e harmoniosas relações raciais" e "boa con- são de estarem cooperando num esfriamento tipo Tio Tom. As
duta esportiva". Esta técnica de "contrôle negro" tem sidoffio apostas estavam aumentando e os negros em tôda a parte cada
eficaz que os negros de fama na América sempre foram - e vez ficavam mais ansiosos e impacientes para jogar suas vidas
continuam sendo - os artistas e os atletas (isto também é contra o status quo. A estupidez do esfriamento Tio Tom chegou
uma verdade na América branca). A tradição manda que sem- talvez à sua mais grotesca encarnação quando, após os negros
pre que surja uma crise com reflexos raciais, um artista ou um provocarem distúrbios e incêndios no ~arlem, os amigos negros
atleta logo apareça e exponha uma interpretação previsível e da estrutu ra do poder branco fizeram circular um panfleto com
conciliatória do que está ocorrendo. Os veículos de massas cor- O título CALMA, RAPAZ!
rem por todos os lados com pesadas câmaras e microfones esten- Mas a prova de que a estrutura branca nunca aprende pode
didos, como se algum grande profeta estivesse na iminência de ser encontrada na ridícula ação do complicado mecanismo que
falar de um nôvo pacto de Deus; quando, na realidade, tudo que governa Los Angeles. Após o maior e mais violento levante
aconteceu foi que os negros foram novamente vendidos e acal- negro desde a Guerra Civil - o incêndio de Watts - os rea-
mados - "Uma vez mais, bum! Uma vez mais, bum!" cionários cegos e apegado à tradição de Los Angeles procuraram
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apaziguar a agitada comunidade negra nomeando John Rose- rança negra, ao contrário, era ver Lázaro esmagado, ver Tio
boro, um jogador de beisebol, "aparador titular da equipe do Tom derrotado, dar uma prova simbólica da vitória do negro
Los Angeles Dodgers", para o cargo de consultor sôbre rela- autônomo sôbrc o negro subordinado.
ções comunitárias. Uma de suas tarefas era pregar "a boa von- O amplo apoio a Muhammad Ali entre os negros nada tinha
tade entre os negros e o Departamento de Polícia do Chefe a ver com a ideologia racista dos muçulmanos negros. Mesmo
Parker". os seguidores do falecido e amado Malcolm X, muitos dos quais
:e neste contexto - do papel tradicional do artista e dos desprezam Muhammad Ali pelas mesquinhas considerações que
atletas negros na crise racial e da rebelião contra esta tradição fêz sôbre o caído Malcolm, eram não obstante a favor dêle
- que a luta Muhammad Ali-Floyd Patterson, pelo campeonato contra Patterson, como o menor dos dois males - porque Ali
mundial dos pesos-pesados, deve ser encarada. estava mais em harmonia com o comportamento físico furioso
do negro de hoje, enquanto Patterson era uma luz do anacro-
nismo de anos atrás. Em tempo de guerra, bem no centro da
batalha, o homem de paz não pode comandar os ouvidos do seu
povo e perde terreno para o homem da guerra. A excitação revo-
A luta entre Muhammad Ali-Patterson lucionária na alma do homem negro dos nossos dias, que trans-
bordou e incendiou Watts, nada significa se não quiser exprimir
negócios, e foi focalizada no frio e implacável ódio e desprêzo
:e tentador dizer que a luta de Muharnmad Ali contra Floyd sôbre Floyd Patterson e na arte bajuladora do fantoche da moda
Patterson foi uma "questão interna" da população negra. Mas de sua imagem.
como pode ser isto, caso seja verdade que ambos os lutadores Não há dúvida de que a América branca aceitará um cam-
e a própria luta, como tudo mais na América, são de certo modo peão negro, aplaudindo-o e recompensando-o, desde que não
uma propriedade controlada pelos brancos? A luta foi, ideolo- haja uma "esperança branca" à vista. Mas o que a América
gicamente, um acontecimento de fundamental importância, refle- branca exige de seus campeões negros é um corpo brilhante e
tindo a consolidação de certas conquistas físicas da revolução poderoso e um cérebro inerte e bestial - um tigre no ringue e
negra. Entretanto, a ficção diplomática da "questão interna", um gatinho fora dêle. f: uma farsa cruel e deprimente coroar
não mais operativa na política internacional, também é inope- um rei num ringue e depois dar-lhe empurrões do lado de fora,
rante aqui. Tanto a América negra como a branca foram tra- indo ao ponto de queimar urna cruz junto à porta de sua casa,
gadas pelo turbilhão do evento, sentindo por qualquer razão um como os brancos fizeram quando Floyd Patterson tentou inte-
profundo relacionamento com o que estava sendo representado grar uma localidade. "A casa de um homem é seu castelo", um
naquele ringue. Sabiam que um triunfo e uma derrota estavam ditado que nada significa para os negros; o castelo, para um
tendo lugar, com conseqüências para a América, transcendendo negro, existe apenas na sua consciência. E, para um rei negro
o destino dos dois homens em posição de luta no ringue para do boxe, as fronteiras de seu reinado são abruptamente circuns-
medir suas fôrças. critas pelas cordas ao redor do ringue. Um escravo na vida pri-
A versão simplista da luta espalhada pela imprensa era de vada, um rei em público - eis a vida que um campeão negro
que havia uma "esperança branca" e uma "esperança negra" por era obrigado a levar. Até a chegada de Muhammad Ali.
trás dessa luta. A esperança branca de uma vitória de Patter- Muhammad Ali é o primeiro campeão negro "livre" a se
son representava, substancialmente, um desejo contra-revolucio- confrontar com a América branca. No contexto do boxe. é
nário para forçar o negro, agora em rebelião e personificado no um revolucionário genuíno, o Fidcl Castro negro do pugilismo.
mundo do pugilismo por Ali, a voltar ao seu "lugar". A espe- Para a consciência da América branca "branca' e da América

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negra "branca", a eoroa dos peSós-pesados caiu nas mãos do dor branco conduzindo um macaco gigantesco, o campeão negro
inimigo, usurpada por um pretendente ao trono. Muhammad d omestica~o pelo homem branco, pulando em volta, prêso por
Ali é contemplado como "ocupando" o reino dos pesos-pesados uma correta. Mas quando o macaco rompe a correia, bate com
em nome de um poder obscuro e estranho, quase do m esmo as mãos fechadas e mortíferas sôbre seu peito maciço e começa
modo como Fidel foi considerado, como um intruso temporário a falar do alto, proclamando-se o maior, declamando poesia e
"ocupando" Cuba. Não fêz diferença que, quando Patterson aniquilando qualquer arma que o caçador branco aponte contra
anunciou que derrotaria Ali e devolveria a coroa à América, Ali êle (e o caçador branco não estando disposto a rastejar no
protestasse vigorosamente, perguntando: "O que êle quer dizer? próprio ringue), um sério deslizamento ocorre na auto-imagem
Eu também sou americano!" Floyd Patterson era a ponta de lança do homem branco - porque aquilo pelo que se defit~ia deixou
simbólica de uma hoste contra-revolucionária, líder das legiões de ter uma identidnde reconhecível. "Se aquêle macaco prêto
m(ticas dos negros fiéis que habitam a imaginação branca, cuja é um homem", o caçador branco pergunta a si mesmo : "então,
tarefa a cumprir era libertar a coroa e devolvê-la ao seu "lugar" o que eu sou?"
próprio no Mundo Livre. Muhammad Ali, ao esmagar o Coelho Foi, realmente, Sonny Liston quem marcou a chegada do
- após castigá-lo à vontade, de maneira que não pudesse haver negro autônomo ao pugilismo. Mas êle não tinha ideologia e,
dúvidas, de modo que os cronistas esportivos não pudessem assim, o escândalo que provocou podia ser controlado, se bem
roubar-lhe a vitória no papel - inflingiu uma punição psicoló- que com dificuldade e dor. A mística q ue propagou foi aquela de
gica na América branca "br anca", similar - em têrmos de um lôbo solitário que não pertence ao seu povo ou fala por
choque - ao episódio da Baía dos Porcos com F idcl Castro. êle. Agia por Liston c falava apenas por L iston, e isto não
Se a Baía dos Porcos pode ser contemplada com um "direto" estava fora de harmonia com a ética competitiva, fort alecendo
de direita no maxilar psicológico da América branca, então Las assim a cultura americana. Se cada homem age para si próprio,
Vegas foi um perfeito gancho de esquerda nos intestinos. era racional que Liston agisse para si. Embora mesmo êste grau
Essencialmente, cada campeão negro até Muhammad Ali de autonomia num negro fôsse agudamente ofensivo, a América
era um fantoche, manipulado pelos brancos na sua vida parti- branca podia tolerá-lo com menos histeria, sem a sensação de
cular para controlar sua imagem pública. Seu papel era escon- estar ameaçada. Mas quando o Negro ideológico capturou a
der os cordões pelos quais foi suspenso, de modo a aparecer coroa dos pesos-pesados, nenhuma frente fria poderia apagar a
como autônomo e auto-impulsionado diante do público. Mas, violenta erupção emocional na América branca e entre os con-
com a chegada de Muhammad Ali, o senhor dos fantoches foi fusos T ios Tom, que também experimentavam uma crise idên-
deixado com a mão cheia de cordões, aos quais o seu boneco tica. Sim, até mesmo os velhos fiéis Tios T om têm um a auto-
dançarino não estava mais prêso. Para homem branco, sentin- imagem. Todos os homens devem ter uma auto-imagem, ou
do-se superior a cada homem negro, aquilo representou um então começam a se ver como mulheres, as mulheres começam
golpe violento na sua auto-imagem; porque Muhammad Ali, a vê-los como mulheres, e, assim, as mulheres perdem a sua
pelo simples fato de que leva uma vida particular autônoma, própria auto-imagem; e logo ninguém sabe o que é ou o que
não pode preencher as necessidades psicológicas dos brancos. alguém é - isto é, o mundo começa a parecer precisamente
como parece hoje. Para que haja tão profundo alvorôço em
O campeão de pesos-pesados é um símbolo de masculi-
tôrno de Muhammad Ali tudo indica que há alguma coisa muito
n idade para o homem americano. E um campeão negro, desde
mais séria do que um título de pugilismo em jôgo, algo cor-
que esteja firmemente acorrentado em sua vida particular, é um
tando diretamente o centro da loucura de nossa época.
leão caído aos pés de cada homem branco. Através de um curio-
so mecanismo psíquico, o mais insignifican te homem branco A parábola de J esus no Nôvo Testamento ressuscitando
sente-se um matador-gigante, um super -homem, um grande caça- Lázaro é interpretada pelos muçulmanos negros como um p ara-

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leio simbólico da história -do negro na América. Capturando prccnderá que precisa continuar a mudar ou morrer. Sim, a
homens negros na Africa e trazendo-os para a escravidão na lmguagem de Louisville é uma bazófia vociferante. Sim, é êle
América, os demônios brancos mataram o homem negro - um racista muçulmano negro, suficientemente fiel à necessidade
mataram-no mental, cultural, espiritual, econômica, política e de sua crença para divorciar-se da espôsa por não adotar sua
moralmente - transformando-o num "negro", o Lázaro sim- religião; e para expulsar seu treinador, que o ensinou a "voar
bólico deixado no "cemitério" da segregação e da cidadania de como uma borboleta c a picar como uma abelha", pela mesma
segunda classe. E, assim como Jesus foi chamado à caverna razão. Mas êle é também um homem "livre", determinado a
para ressuscitar Lázaro, Elijah Mubammad foi convocado por não ser um fantoche do homem branco, embora lute para dis-
Deus para levantar o Lázaro moderno, o negro, do seu túmulo. traí-lo; determinado a ser autônomo na sua vida particular e
- Levanta-te, meu povo! - clama Elijah Muhammad. um verdadeiro rei público - e êle é exatamente isso. Um cam-
peão de pesos-pesados racista muçulmano negro é uma pílula
Cassius Clay, mudando a identidade de seu túmulo como muito amarga para a América racista branca engulir. Engula-a
uma pele velha ressequida, foi um dos que atenderam ao cha- - ou então enfie tudo pela goela abaixo e espere que as con-
mado de Elijah, repudiando a identidade que a América lhe deu vulsões de seus intestinos, América, possa fazê-la vomitar o vene-
e assumindo uma nova - a de Muhammad Ali. Floyd Patterson no de ódio que a levou ao extremo, neste vale de sombras da
não atendeu a Elijah. morte.
A América para fora da qual Elijah Muhammad chama seu
povo está mesmo condenada, desmoronando, incendiando-se,
talvez não pela mão de Deus mas decerto pela mão do homem;
e esta América condenada foi parcialmente enterrada no ringue
do boxe, em Las Vegas, quando Muhammad Ali forçou com
tôda a violência o Lázaro à submissão. Com a América que
desaparece, também o homem-Lázaro criado no crisol de seu
6dio e dor se dissolve. A vitória de Muhammad Ali sôbre
Floyd Patterson marca a vitória de um Mundo Nôvo sôbre um
Mundo Velho, da vida e da luz sôbre Lázaro e a escuridão do
túmulo. S a América recriando-se fora de suas próprias ruínas.
A dor é poderosa para cada americano, negro ou branco, por-
que a tarefa é gigantesca e não se tem certeza alguma do seu
cumprimento. Mas existem homens fortes nesta terra e êlcs não
serão contestados. Sua tarefa não estará terminada enquanto
Paul Bunyan e John Henry, um como outro, não puderem se
contemplar como homens, enquanto a fôrça da imagem de um
existir às custas do outro.
Por mais cruel, brutal e vicioso que possa ser, ninguém
pode negar a Muhammad Ali o seu triunfo; e embora você esqua-
drinhe os guetos de suas cidades desesperadas e agite os seus cin-
turões negros à procura de outro fantoche que tenha êxito onde
o Coelho fracassou, sua busca será em vão. Porque mesmo que
você procure, você, você mesmo, está sendo modificado e com-

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com uma dimensão adicional de seu ser à experiência articulada
<.I c outro negro, apesar da universalidade da experiência humana.)
Assim como imagino que muitas sentiram e ainda sentem,
cu vibrava com qualquer coisa escrita por Baldwin. Seria como
um gás propulsor para mim se pudesse ficar sentado sôbre uma
almofada junto à máquina de escrever de Baldwin, apanhando
cada página recém-nascida para êste nosso mundo. Ficava mara-
Notas Sôbre o Filho Nativo vilhado com o fato de que Baldwin, com aquêles olhos grandes
que alguém pensaria estarem contemplando fixamente o macro-
cosmo, pudessem também penetrar no microcosmo. E, embora
fôsse tão cheio de som, não era um escritor ruidoso como Ralph
Elisson. E colocou muito da minha própria experiência, que eu
pensava ter compreendido, numa nova perspectiva.
Contudo, comecei gradualmente a sentir um certo descon-
fôrto a respeito de alguma coisa em Baldwin. Fiquei pertur-
bado ao ter ciência de uma aversão em meu coração à deter-
minada parte da canção que êle cantou. Porque isso acontecera
eu, a princípio, era incapaz de dizer. Depois, li Another Coun-
try * e soube porque meu amor pela visão de Baldwin havia
se tornado ambivalente.
Muito antes, tornara-me um estudioso do The White Negro,
de Norman Mailer, que me pareceu ser profético e penetrante
na sua compreensão da psicologia envolvida na confrontação
crescente de negros e brancos na América. Fui, portanto, insul-
APÓS ler alguns livros de James Baldwin, comecei a ex- tado pessoalmente pelo repúdio estouvado e impertinente de
perimentar aquêle contínuo prazer que alguém sente ao desco- Baldwin ao The White Negro. Baldwin cometeu um crime lite-
brir um fascinante e brilhante talento em cena, um talento capaz rário pelo seu arrogante repúdio a uma das poucas expressões
de penetrar tão profundamente no pequeno mundo de alguém importantes de nossa época. O The White Negro pode conter
que êste sente ter sido transformado e libertado, libertado das um excesso de casca verbal esotérica, mas deve-se perdoar Mailer
garras frustradoras de um mal qualquer que, por algum motivo, por isto em virtude da s6lida semente de verdade que nos pro-
chegou a possuí-lo. Sendo negro, achei isto uma rara e ínvul- porcionou. Afinal, é o bebê que queremos e não o sangue das
gar experiência, pois poucos dos meus irmãos e irmãs negros páreas. Mailer descreveu naquele ensaio incisivo a primeira
aqui na América conseguiram alcançar o poder, que James Bald- importante fenda na "montanha da supremacia branca" - impor-
tante porque mostra a profundidade da efervescência, em nível
win chama de sua vingança, que supera os reinados: o poder de pessoal, no mundo branco. As pessoas estão procurando arden-
fazer o que quer que seja, poder que sujeitos como Baldwin usam
quando combinam o alfabeto com os elementos voláteis de sua
alma. (E, gostem ou não, um homem negro - a menos que
assuma irreparàvelmente uma "consciência branca" - · responde * Publicado no .Brasil, sob o título Numa Terra Estranha, Edítôra
Globo, Pôrto Alegre.

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temente, e com grande esfôrço físico e mental, a libertação funda- lidade Africana, levou-o a desmascarar-se paulatinamente, o que
mental e irrevogável - e, o que é mais importante, estão logran- é bastante claro em "Príncipes e Podêres". Mas, cada nôvo
do êxito em escaparem das grandes mentiras brancas que com- desmascaramento torna-se mais custoso do que o anterior, já
põem o mito monolítico da Supremacia Branca e Inferioridade que, para acertar cada vez, êle tem de ir um pouco mais longe
Negra, numa tentativa desesperada por parte de uma nova gera- na velhacaria, o que lhe toma mais tempo, gradualmente, para
ção de americanos brancos de ingressar no espírito igualitário bater em retirada e se camuflar sob a nuvem de fumaça perfu-
cosmopolita do século XX. Mas vamos examinar os argumentos mada de sua prosa. Vez por outra, conseguimos vislumbrar a
que estão por trás do ataque de Baldwin a Mailer. sua "conversa mole" de menino cabeçudo - seus grandes olhos
Há na obra de James Baldwín o mais cruel, total e agoni- espreitando o que se passa atrás das costas na maliciosa reti-
zante ódio dos negros, particularmente dêle próprio, e o mais rada de criança que surrupia um prato de gulodices.
vergonhoso, fanático, bajulador e servil amor pelos brancos que
Nos elementos autobiográficos de Notes ot a Native Son,
alguém poderia encontrar nos escritos de um escritor ameri-
Baldwin é franco quando confessa que, ao desenvolver sua versão
cano negro de destaque em nossa época.
da condição humana no Harlem, descobriu que, já que sua he-
Uma releitura do Nobody .Knows My Name não auxilia, rança africana fôra varrida e não lhe era acessível, apropriar-
mas convence os mais ávidos admiradores de Baldwin do ódio se-ia da herança do homem branco e a faria sua. Esta terrível
aos negros impregnado nos seus escritos. No ensaio "P ríncipes realidade, fundamental para o comportamento psíquico de todos
c Podêres", a antipatia de Baldwin em relação à raça ne~ra é os negros americanos, revelou a Baldwin que êle odiava e temia
chocantemente clara. O ensaio é a interpretação de Baldwm da a pessoa branca. Então, diz: "Isto não quer dizer que eu amei
Conferência de Escritores e Artistas Negros, que se reuniu em o povo negro; pelo contrário, desprezei-o, possivelmente porque
Paris em setembro de 1956. O retrato de Bald'win que nos é não conseguiu produzir um Rembrandt". A distância psíquica
dado por suas palavras é o de uma consciência em implacável entre o amor e o ódio poderia ser a diferença mecânica entre
oposição aos esforços de solenes e dedicados homens negros que um sorriso e o escárnio, ou poderia ser o trajeto de um impulso
tomaram a seu cargo a grande tarefa de rejuvenescer e corrigir nervoso das profundezas do cérebro à ponta de um dedo do
as psiques e a cultura abaladas do povo negro, um povo. espa- pé. Mas êste impulso, em sua trajetória através dos nervos
lhado sôbre os continentes e as ilhas dos mares, onde v1ve na norte-americanos, pode, caso seja verdadeiro, descobrir a pas-
lama das masmorras emporcalhadas em que o mundo foi trans- sagem disputada; pode confundir a fibra do ódio com aquela
formado pelos brancos. do amor, sobrecarregando a pobre reserva de energias - e,
Em seu relatório da conferência, Baldwin, o negro relu- assim, a longa viagem de volta poderá nunca ser completada, ter-
tante, arrastando o pé em cada passo, pôde apenas ridicularizar minando num reconhecimento, ouro compromisso e, finalmente,
a visão e os esforços dêstes grandes homens e cobri-los de des- numa mentira.
prêzo, reservando seus cumprimentos - todos êles irônicos ~ O ódio a si próprio toma muitas formas; às vêzes, não pode
para os oradores rejeitados e apupados ~lo~ outros c~ofer~n­ ser notado por ninguém, nem pelo mais agudo observador, nem
cistas em conseqüência de suas opiniões fansa1cas e reac1onánas. pela própria pessoa, nem pelos seus amigos mais íntimos. O
Baldwin sentiu-se obrigado a detonar sua pistola de espolêta num ódio étnico a si mesmo é de detectação ainda mais difíciL Mas,
duelo com Aimé Césaire, o grande canhão da Martinica. Indi- nos negros americanos, toma freqüentemente a forma bizarra de
retamente, Baldwin estava defendendo seu primeiro amor - o um desejo-de-morte racial, com muitas e enganosas manifesta-
homem branco. Mas a repulsa que BaJdwin, nessa conferência, ções. Irônicamente, proporciona grande parte do ímpeto que
sentiu pelos negros, que se regozijavam por sua pele escura, pro- está por trás das motivações da integração. E a tentativa de
curando e mostrando seu orgulho na Negritude e na Persona- reprimir ou negar tais impulsos na psique de alguém leva muitos

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negros americanos a tomarem-se separatistas ostensivos, muçul- tributos. O que vem acontecendo nos últin1os quatrocentos anos
manos negros e advogados da volta-à-Africa. Não admira que c que o homem branco, tendo acesso à mulher negra, vem bom-
E lijah Muhammad pudesse conceber a idéia do processo de evo- beando seu sangue e seus genes nos negros - isto é, vem cum-
lução controlada, do qual teria resultado a raça branca. Segundo prindo o plano de Yacub e acelerando o desejo de morte racial
Elijah, há cêrca de seis mil e trezentos anos atrás tôda a popu- dos negros.
lação da terra era composta de Negros Primitivos. Retirado na D eixando à parte, por um momento, o caso de Baldwin,
ilha de Patmos, um cientista negro louco, de nome Yacub, ela- parece que muitos homossexuais negros, aquiescendo a êste desejo
borou um esquema para obter brancos a partir dos negros atra- de morte racial, sentem-se furiosos e frustrados porque, na sua
vés da ação de um sistema de contrôle da natalidade. A popu- doença, são incapazes de ter um filho com o homem branco. A
lação da ilha de Patmos era de 59 . 999 habitantes e sempre que cruz que têm de carregar é que, embora curvando-se e subme-
um casal quisesse se unir só recebia permissão se houvesse uma tendo-se ao homem branco, o fruto de sua miscigenação não é
diferença de côr, de maneira que, cruzando os negros com os a pequena prole metade branca de seus sonhos, mas um aumento
membros da população de côr pardacenta, e os pardos com no relaxamento de seus nervos - embora êles redobrem seus
pardos - mas nunca negros com negros - todos os traços do esforços e recebam o esperma do homem branco.
negro eram eventualmente eliminados; o processo foi repetido Nesta terra de dicotomias e CIJ?OStos desunidos, aquêles ver-
até que os pardos fôssem eliminados, deixando apenas homens dadeiramente preocupados com a ressuL'!'eição dos americanos
da raça vermelha; o vermelho foi descorado, ficando apenas o negros tiveram sempre que tratar com os intelectua is negros que
amarelo; então, o amarelo também passou pelo mesmo processo, se tomaram seus próprios opostos, absorvendo todos os padrões
f icando somente o branco. Assim, Yacub - que então já de conduta de seu inimigo, vícios e virtudes, na tentativa de aspi-
havia morrido há muito tempo, pois todo o processo levara cen- rar os padrões alheios em todos os aspectos. A distância entre
tenas de anos - obteve finalmente êxito, criando o demônio um audacioso e bajulador Tio Tom e um intelectual lambe-
branco com os olhos azuis da morte. botas reside apenas em sofisticação e estilo. Pensando bem,
Bstc mito da criação da raça branca, chamado " A História Tio Tom aparece aqui muito mais limpo porque normalmente
de Yacub", é uma inversão do desejo-de-morte racial dos negros está apenas tentando sobreviver, prefer indo pretender ser algo
americanos. O plano de Yacub ainda está sendo seguido por diferente do seu próprio ser, para agradar ao homem branco e,
muitos negros, atualmente. E é simples: muitos negros acre- assim, receber favores. Contudo, o intelectual adulador não
ditam, como implica o princípio da assimilação na América pretende ser diferente do que realmente é, mas odeia o que é
branca, que o problema racial na América só pode ser solu- e procura modelar-se à imagem de seus ídolos brancos. Torna-se
cionado quando forem eliminados os vestígios da raça negra. um homem branco num corpo negro. Escravo obstinado e autô-
Com êste objetivo, muitos negros abominam a simples idéia de mato, passa a ser ..9..!!'!&s valioso i_pstn,Jmento do homem branco
cruzamento entre dois negros de pele muito escura. Os filhos, D}_ .9pressão dos outros negros.
dizem êles, nascerão disformes. O que querem dizer é que os O homossexual negro, quando seu requebro tem uma cono-
filhos certamente serão negros, e isto não é desejável. Do difun- tação racial, é a suprema personificação desta contradição. O
dido uso de cosméticos para embranquecer a pele e outros pre- homem branco privou-o de sua masculinidade, castrou-o no
parados para tirar a marca africana dos cabelos, até o extremo, fundo de seu cérebro incendiado; e quando êle se submete a
ao qual recorrem mais negros do que se está propenso a acre- esta mudança e toma o homem branco como amante da mesma
ditar, de se submeterem a operações para afinar o nariz c redu- forma que Big Daddy, centraliza na "brancura" todo o amor em
zir a grossura dos lábios, o desejo de morte racial dos negros sua alma enclausurada e vira o fio da lâmina do ódio contra
americanos - a meta de Yacub - vai tirando seus terríveis a "negrura" - contra si mesmo, contra o que êle é, e todos

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aquêles que se parecem com êle lembram-lhe êle mesmo. Pode B.ddwin acima citado, oculta-se o rebento de Baldwin, de sua
chegar até a odiar a escuridão da noite. l l nsao entre o amor e o ódio - amor pelos brancos e ódio
O desejo de morte racial manifesta-se como a fôrça impul- pd os negros. E quando nos aprofundamos nesta tensão desco-
sora em James Baldwin. Seu ódio aos negros, mesmo quando hrir~os que, quando aquêles "dois gatos magros" cruzaram seus
se justifica através do que concebe como sua causa, torna-o cammhos naq~ela sala de visitas francesa, um era um Gatinho,
a apoteose do clilema no ethos da burguesia negra que rejeitou o outro um T1gre. O ronronar de Baldwin foi transmitido maa-
completamente sua herança africana, considera a perda irrevo- uificamente em The Fire Nexl Time. Mas sua obra é o fruto
gável e recusa-se a procurar novamente naquela direção. Esta de uma árvore com raízes envenenadas. Em tal suculento fruto
l' m tal dolorida árvore, que raiz maligna! '
é a ra~z do violento repúdio de Baldwin ao The White Negro,
de Mailer. E írônico, embora fascinante pelo que revela sôbre a efer-
vcs:ência na al~a norte-americana de nossa época, que Norman
MarJer, o menmo branco, e James Baldwin, o menino negro,
Compreender o que está em jôgo aqui e compreendê-lo tenham-se encontrado no centro de uma tempestade social via-
em têrmos da vida desta nação, é conhecer o fato central de que jando em d ireções opostas; o menino branco, com o co~beci­
o relacionamento entre negros e brancos na América é uma rnonto dos negros brancos, viajava na direção de uma confron-
equação de poder, uma luta pelo poder e que esta luta não se tação com o n:~ro~ com a África; enquanto o menino negro,
cor~ uma cons~1encra branca, estava a caminho da Europa. O
manifesta apenas no quadro dos direitos civis, do nacionalismo
negro, etc, mas também nos relacionamentos, ações e reações io- nanz de Baldwm, como a agulha de uma bússola procurando o
terpessoais entre brancos e negros. Quando êstes dois "gatos ma- norte, está constantemente apontado na direção de sua terra
gros", Baldwin e Mailer, encontram-se numa sala de visitas fran- natal adotiva, a Europa, que é sua pela osmose intelectual, e
cesa, era precisamente esta equação do poder que estava em ação. 110 lugar da África. O que êle diz de Aimé Césaíre um dos
:e
fascinante ler (em Nobody Knows my Name) em que maiores escritores negros do século XX - e êle o' cliz com
têrmos esta equação de poder se manifesta na reação imediata intenção írônica - que "êle tinha penetrado no coração do
de Baldwin àquele encontro: "E ali estávamos, subitamente, grande deserto que era a Europa e roubado o fogo sagrado ...
qu~. . . e~a. . . a afirmação de seu poder", parece simplesmente
dando voltas um em tôroo do outro. Gostávamos um do outro,
mas cada um temia que o outro fizesse valer sua posição. :Sle mmto .mats claramente aplicável a Pedro do que a Paulo. O que
B~ldwm parece esquecer é que Césaire explica que o fogo,
poderia ter feito isto porque era mais famoso e tinha mais di-
nheiro, e também porque era branco: mas eu poderia ter feito seJa sagrado ou profano, queima. No caso de Baldwin, embora
valer a minha precisamente porque era negro e sabia muito o fogo não pudesse queimar o prêto do seu rosto certamente
incendiou seu coração. '
mais a respeito daquela periferia que êle tão impiedosamente
amalcliçoa no The White Negro, do que êle jamais poderia espe- Não estou interessado em negar coisa alguma a Baldwin.
rar saber". ( Grifos acrescentados) Como tôda a nação, tenho um grande débito para com êle. Mas
Fazer valer a posição - poderia parecer - é um negócio do princípio ao fim de suas obras, de Go Tell It on the Moun~
muito perigoso, especialmente quando as tropas se amotinaram tain, passando por Notes of a Native Son, Nobody Knows My
e a base da autoridade, ou da posição, é destituída daquele poder Name, Another Country, até The Fire Next Time, às quais dou
de int~rdição e pa~sa a ser suspeita. Alguém pensaria que para grande valor, há uma sutileza decisiva na visão de Baldwin que
Baldwm, êstes mahzes brancos e negros não mais estariam arma- corresponde ao seu relacionamento com as pessoas negras e com
dos com o poder de intimidar - e, se alguém pensou isto, estaria a masculinidade. Foi esta mesma sutileza, na m inha opinião,
extremamente errado : por trás da estrutura do pensamento de que compeliu Baldwin a difamar Rufus Scott em Another

98 99
- - ........ ~-

Cowury, a venerar André Gide, a repudiar The White Negro, ltojc, com o conselho de Baldwin a seu sobrinho (The Fire
a dirigir a faca de Brutus contra o corpo de Richard Wright. Nnt Time) a respeito da pessoa branca: "Você deve aceitá-la
Como disse Baldwin em Nobody Knows My Name, "acho que \' aceitá-la com amor. Pois essas inocentes pessoas não têm
conheço alguma coisa a respeito da masculinidade americana que outra esperança". (Grifas acrescentados.)
muitos homens da minha geração não sabem, porque não foram
ameaçados por ela do modo como eu fui". Está certo, benzinho; Rufus Scott, uma criatura patética que se entregou ao pas-
mas não é verdade que Rufus Scott, o fantasma frágil e ame- satempo do homem branco de suicidar-se, que deixou um homos-
drontado de Another Country, suporta a mesma relação com sexual bissexuado enfiar-lhe o pau na bunda, e que tomou como
o Bígger Thomas do Native Son, o rebelde negro do gueto e mulher uma devassa sulista, com tudo o que êstes relaciona-
um homem, como você próprio suportou com o gigante caído, mentos angustiantes implicam, era o epítome de um eunuco
Richard Wright, um rebelde e um homem? negro que se submeteu completamente ao homem branco. Sim,
Rufus era um defensor da liberdade psicológica, oferecendo a
outra face, murmurando como um fantasma: "Você gozou o
Em alguma parte, num dos seus livros, Richard Wright des- melhor, por que não aceitar o resto?", o que não tem absoluta-
creve um encontro entre um fantasma e vários jovens negros. mente nada a ver com a maneira pela qual os negros consegui-
Os jovens negros rejeitaram o homossexual; e aí Wright estava ram sobreviver aqui no inferno da América do Norte! Isto
aludindo a um exemplo clássico, embora cruel, de um fenômeno tudo torna muito claro o que aprendemos de Erich, o arqui-
comum aos guetos negros da América: o costume dos jovens fantasma de Another Country, das profundezas da alienação de
negros de saírem em "caça aos bichas". Esta prática de pro- seu corpo e da fonte de suas necessidades: "E êle levou quase
curar homossexuais pelas ruas, cercá-los, fazê-los rebolar e espan- até êste último momento, à véspera de sua partida, para come-
cá-los, aparentemente apenas para satisfazer algum impulso sel- çar a reconhecer que parte do grande poder que Rufus tinha
vagem, para infligir dor num alvo específico e selecionado, os sôbre êle estava Jjgado ao passado que Erich sepultara em algum
"rejeitados pela sociedade", parece-me não estar desligada, nos lugar escuro e profundo; ligado a êle próprio, em Alabama,
têrmos dos mecanismos psicológicos relacionados com o caso quando eu não era mais do que uma criança; ao frio povo branco
dos linchamentos e castrações rituais, infligidos aos negros pelos e ao caloroso povo negro, quente pelo menos para êle . .. "
sulistas brancos. Sste foi, pelo que me lembro, um dos poucos
comentários de Wrigbt sôbre a questão do homossexualismo. Assim, também, quem não pode imaginar a fonte de tal
Penso que pode ser dito com segurança que os homens, audaciosa loucura como a que moveu Baldwin a fazer esta sur-
nos livros de Wright, muito embora agrilhoados a uma forma de preendente observação a respeito de Richard Wrigbt, em seu
impotência, eram impetuosamente heterossexuais. Sua heteros- ignóbil ensaio Ai de mim, Pobre Richard! "Nas minhas próprias
sexualidade era implícita, ao invés de laboriosamente afirmada relações com êle, eu me exasperava sempre com suas concep-
ou enfatizada; era presumida, como todos nós supomos que sejam ções de sociedade, política e história, pois elas me pareciam
os homens até que algo ocorra para nos fazer pensar de outra extremamente excêntricas. Eu nunca acreditei que êle tivesse a
mnneira. E Bigger Thomas, a maior criação de Wright, era um mínima compreensão real de como uma sociedade é formada".
homem em violenta rebelião, apesar de inepta, contra o sufo-
cante, bárbaro e totalitário mundo branco. Não havia traços em Richard Wright está morto e Baldwin está vivo e ao nosso
Bigger Thomas de um amor discreto do tipo Martin Luther lado. Baldwin diz que Ricbard Wright tinha noções que eram
King pelos seus opressores. Por exemplo, Bigger teria ficado extremamente excêntricas, e Baldwin é um homem honrado.
completamente frustrado, como a maior parte dos negros de

100 101
"ó, julgamento; tu fugiste para e do mundo. Mas, ah! "ó, Senhores", é a obra de Baldwin que
as bêstas irracionais, é tão vazia de conteúdo político, econômico ou mesmo social.
E os homens perderam a razão!" Todos seus personagens parecem estar bolinando e trepando no
vácuo. Baldwin tem um toque soberbo quando fala de sêres
humanos, quando está dentro dêles, especialmente dos seus
homossexuais; mas perde-se quando olha além da pele; enquanto
Wright não tem necessidade, como teve César, de um Antô- o ponto forte de Wright, segundo me parece, está em refletir
nio enfurecido para defender sua causa: sua vida e sua obra
os intr.incados mecanismos de uma organização social, de seu
são seu escudo contra a estocada macia da adaga de Brutus. O funcionamento como uma unidade.
que êle fêz de bom, ao contrário de César, não será enterrado
com seus ossos. Pelo contrário, apenas o que vive pode ser
ferido por Brutus.
Baldwin diz que, nos escritos de Wright, a violência senta-se O ensaio de Baldwin sôbre Ricbard Wright revela que êle
no trono onde deveria estar o sexo. Se isto é assim, então é desprezou - não Richard Wright, mas a sua masculinidade.
apenas porque na realidade norte-americana o ódio é soberano ele não pode confrontar a virilidade em outros - a não ser para
na verdadeira jurisdição do amor. E somente através de um submeter-se a ela ou para destruí-la. E êle não pretende se
êrro de posições é que o artista, cuja obrigação é nos contar a dobrar a um homem negro. Wr.ight compreendeu e viveu a
verdade, pode produzir o efeito desejado casando a violência verdade que Norman MaiJer insinuava quando dizia " ... pois
com o amor e o sexo com o ódio - caso, para chegar a êste ser um homem é a batalha contínua da vida de alguém, e êste
fim, alguém sinta-se obrigado bàsicamente a converter a rebe- sempre perde um pouco de sua condição humana em cada com-
lião em dócil submissão - "Você gozou o melhor", lamenta- promisso com a a utoridade de qualquer poder no qual não acre-
va-se Rufus, "por que não aceitar o resto?" Richard Wright dita". Comprometido com o poder do homem branco, o que é
não era suficientemente fantasma para chegar a esta cruel dis- real e nada tem a ver com a autoridade, mas diante do qual
torção. Com êle, o sexo, não sendo um esporte com especta- êle sucumbiu psicologicamente, Baldwin é totalmente incapaz
dores, ou uma panacéia, mas o veículo sagrado da vida e do de libertar-se daquela dor horrível. 2 o flagelo de sua arte, por-
amor, é por si próprio sagrado. E a América que Wright conhe- que a única saída para êle é abraçar psicologicamente a África,
ceu e que é, não é o Jardim do :&ien mas o seu oposto. Baldwin, a terra de seus pais, o que êle categoricamente se recusa a fazer.
personificando em sua arte a política de autoflagelação de Mar- E, ao contrário, recorreu a urna desprezível guerra de guerrilhas
tin Luther King, e espalhando falsamente as notícias de que o subterrânea, travada no papel, contra a masculinidade negra,
Dia do Fantasma havia chegado, desmascarou tal política em assumindo o desejo de morte racial de Yacub, e atinWodo um
Another Country. ponto, penso eu, esplêndídamente descrito por Mailer: "Leva-
Dentre todos os romancistas negros americanos, e mesmo dos à provocação, é natural - ainda que lamentável - que
dentre todos os romancistas americanos de qualquer matiz, Ri- muitos homossexuais optem por atribuir algo intrinsecamente
chard Wright destaca-se como o maior por sua profunda interpre- superior ao homossexualismo e levá-lo longe demais é um ponto
tação do político, do econômico e do social. Wright teve a habili- de v,ista tão estultificante, tão ridículo e tão anti-humano como
dade, como Dreiser, de aproveitar as gigantescas e esmagadoras o preconceito heterossexual".
fôrças ambientais e dirigi-las com sutil precisão sôbre os indiví-
duos e seus atos do modo como são surpreendidos no turbilhão Quanto a mim, não acredito que o homossexualismo seja
da selvagem e anárquica torrente de vida, amor, morte, ódio, dor, o último passo adiante em relação ao heterossexualismo na escala
esperança, prazer e desespêro, no pano-de-fundo de uma nação da evolução humana. O homossexualismo é uma doença, assim

102 103
como o rapto de crianças ou o desejo de tomar-se o presidente
da General Motors.
Esta nação enfrenta um grave perigo, do qual não nos
apercebemos até agora. E é precisamente êste perigo que a
obra de Baldwin oculta; na verdade, afasta-nos dêlc. Estamos
engajados na mais profunda e mais importante revolução e re-
c.o?strução de q~e os homens jamais foram convocados a par-
tJCtpar em suas vtdas, e das quais êles absolutamente não podem União em 1-ôrno da Bandeira
es~a~ar. ou ev~tar, a não ser colocando em perigo a própria
extstencJa da VIda humana neste planêta. A época da vergonha
acabou, e a face do santo sofredor não precisa mais ser oferecida
duas .vêze~ ao bárb~o. . A comichão dos complexos de culpa
dos ltberats brancos mqUJetos leva à perdição. A deformidade
grotesca do que nos está acontecendo é refletida nesta observa- Eu faço distinção entre dois colonialismos, entre o
ção de Murray Kempton, citada em The Realist: "Quando eu doméstico e o exlerno. O capitalismo interno é o
era menino, Stepin Fetchit era o único ator negro que traba- colonialismo doméstico.
lhava regularmente no cinema . . . Os tempos mudaram mas ) )
A

a1gumas veze~, penso que Malcolm X e, até um certo grau, Osagyefo Kwame Nkrumah,
James Baldwm, são os nossos Stepin Fetchits". Conscientismo
Sim~ os tempos realmente mudam. "Os metralbadores, por
favor, um passo à frente", dizia LeRoi Jones em um poema.
"A metralhadora na esquina", escreveu Richard Wr.ight, "é o
símbolo do século XX". O espírito embriônico do kamikaze
real e vivo, crescP. cada dia no coração do homem negro e exis~
tem sonhos sôbre o legado de Nat Turner. O fantasma de John
Brown move-se vagarosamente nas vizinhanças. E eu imagino HÁ cinco anos, mesmo os visionários mais audaciosos
não teriam ousado predizer o fustigante desespêro do faz-ou-
se James Chaney dissesse, enquanto Andrew Goodman e Mi-
chael Schwerncr ficassem observando esperançosos, enquanto os morre e a efervescente e ritmada pulsação que explodiu em
cachorros grisalhos esmagassem seus ossos com violentos golpes nossa política, em nossas conversas diárias, em nossos sonhos
de correntes - dizia o pobre James, copiando Rufus Scott - e pesadelos. A efervescência sob a superfície de nossos debates
"Você gozou o melhor, por que não aceitar o resto?" Ou se públicos e opiniões políticas formais cresceu mais em impor-
viraria para seus irmãos brancos, vendo seu apêrto, e diria, co- tância durante a Guerra Civil. A parapolítica do primeiro
piando Baldwin: " Isto é problema seu, rapaz". Congresso J ohnson que, em contraste com a maior parte de seus
Eu digo, copiando Mailer: "vem por aí uma tempeslade predecessores, pareceu assemelhar-se ao dinamitar de uma re-
de merda". prêsa, foi na verdade inativa, comprometedora e .ineficaz em
relação à urgência dos problemas sociais alimentadores da con-
flagração que se apodera da alma da América; problemas que
não podem mais ser conciliados ou escondidos hàbilmente sob
a manta nacional da auto-sugestão. A poss.ibilidade de enco-
brimento não mais existe, e os únicos iludidos são os próprios

104 105
sugestionadores. Aquêles que são as vítimas dêstes "problemas
Quanto à esquerda, todos os americanos que adoram a
sociais" - os negros, os velhos, os desempregados e os desem- TV e os trajes finos acham que a revolução negra foi concebida
prcgáveis, os pobres, os estudantes ·insatisfeitos e sem instrução em Moscou (risque Moscou, coloque Pequim) e lançada por
adequada, os inimigos da guerra c os amantes da paz - at!- fanáticos esquerdistas, e que o crescente movimento de massas
raram fora a manta em violenta rebelião, recusando serem SI-
em oposição à guerra americana no Vietnã é "inspirado, ma-
lenciados até que suas reivindicações sejam incondicionalmente
nipulado e controlado pelos comunistas".
satisfeitas. A América se tornou viva até o ma-is profundo de
suas entranhas, e grandes fôrças rivais de ímpeto revolucionário Não é exagêro dizer que o destino de tôda a raça humana
tomaram posição em todos os cantos desta terra para as car- depende do resultado do que está acontecendo hoje na América.
tadas decisivas durante cujo desenrolar ninguém poderá en- Esta é uma realidade desconcertante para o resto do mundo;
contrar santuários. que deve sentir-se como passageiros de um jato supersônico
reduzidos à condição de observadores passivos e desamparados
Os americanos estão ficando crescentemente polarizados em enquanto uma turba de bêbedos, drogados e ~.alucos luta p~l.a
esquerda e direita, com a grande massa do povo no centro, posse da poltrona do pilôto. Saber se a Amenca tende deCISI-
confusa e, às vêzes, para encobrir esta confusão, fingindo indi- vamente para a direita ou para a esquerda é o problema polí-
ferença. "Extremismo de direita", "extremismo de esquerda" tico fundamental no mundo de hoje; a mais séria questão ora
- nunca, desde os anos trinta e a deprimente era McCarthy, enfrentada pelo povo ameliicano é sôbre quem são agora, nesta
estiveram êstes slogans armados com o poder de matar. Hoje, era que se segue à da luta pelos direi tos civis, os verdadeiros
nos lábios de pessoas importantes, "direita" e "esquerda" são patriotas, a nova direita ou a nova esquerda?
lâminas de barbear verbais num sentido sem paralelo na história
americana. O ex-Governador da Califórnia, Brown, lançou a A questão do lugar do negro na América, que durante muito
ominosa advertência de que "o fedor do fascismo está no ar". tempo podia realmente ser l.evantada como uma questão séria,
foi definitivamente resolvida: êle está aqui para ficar. Mas a
O último candidato republicano à presidência foi rotulado como
revolução negra é a verdadeira base do campo de batalha em
extremista de direita. E J. Edgar Hoover, do FBI, o maior
que a nova direita e a nova esquerda estão lutando. Em certo
tira da América, expede periodicamente sérias advertências de sentido tanto a nova direita como a nova esquerda são o pro-
que os esquerdistas, tornando-se mestres em artifícios, estão duto d~ revolução negra. Um amplo consenso nacional foi
quase logrando êxito em subverter isto, e estão tenazmente desenvolvido sôbre a luta dos direitos civ.is, c teve sofisticação
abrindo caminho para tomar aquilo. e moral suficientes para repudiar a direita. E:ste consenso,
que se situa entre o caos e uma nação violenta, é o bem mais
Tanto a direita como a esquerda alegam que amam o país.
precioso da América. Mas existem aquêles que o desprezam.
A Ku Klux Klan, a Sociedade John Birch, o Partido Nazist a
Americano, os republicanos conservadores, os minutemen, e até A tarefa que a nova direita ardorosamente tomou a seu
os Hell's Angels - todos se enrolaram na bandeira americana cargo é corroer e romper êstc consenso, algo que se torna uma
e solenemente se chamam de patriotas. Seus inimigos c críticos, possibilidade real já que as questões e condições precisas, que
vendo que os direitistas não desapareceriam enquanto fôssem deram razão ao nascimento do consenso, não mais existem.
gozados como retardados, malucos e velhas senhoras de sapatos
De outro lado, a tarefa da nova esquerda tem sido manter
de tênis, surpreendidos e atemorizados pelo potencial de fôrça
a unidade do consenso durante o período de transição da luta
revelado pelos vinte e seis milhões de votos dados a Goldwater, pelos direitos civis à etapa subseqiicnte, que pode ver o desen-
agora concedem-lhes um status político de facto, ap]icando-lhes volvimento de um movimento mais amplo, de.safiando a estru-
sofisticados rótulos tais como "neofascistas" e "direitistas".
tura do poder político e econômico na América.
106 107
O fato de que Johnson adotou a política externa de Gold- ativo dos EUA, os regimes exploradores e assassinos seriam
water desiludiu sensivelmente um setor significativo do consenso; destroçados pela própria população espoliada. A nova esquerda
muitos sentiram que foi uma traição de confiança. Esta nação compreende perfeitamente isto. Ela sabe igualmente que o
apenas começou a relaxar-se, após travar numa batalha por sua apoio americano ao colonialismo deve ser eliminado para que
vida moral, uma batalha que deu à luz uma confiança que se os recursos e a maquinaria administrativa da nação possam
tornou uma causa sagrada; e a traição desta confiança, desta ser liberados para a tarefa de criar uma sociedade verdadeira-
causa, poderá um dia ser vista como tendo lançado os alicerces mente livre e humanista no país. E neste ponto, na junção das
do cinismo e da depravação política que preparou o caminho políticas externa e doméstica, que a revolução negra torna-se
para o Hitler da América. Não obstante, ao procurar manter uma só com a revolução mundial. Aquêles que com mais ve-
a unidade do consenso, a esquerda é auxiliada tremendamente emência se opõem ao progresso negro também são os mais
pelos inimigos que faz, e mais ainda pelos inimigos que herdou ardentes advogados de uma política beligerente, os que mais
da luta pelos direitos civis. O torpe espetáculo de dinossauros violentamente atacam os críticos da escaLada americana na
Dixicratas * denunciando os que protestavam contra a guerra guerra contra o povo vietnamita, os mais duros dentre os fer-
no Vietnã, apenas pode enfurecer e preparar grandes setores do renhos entusiastas da intervenção armada nos assuntos internos
público que perderam a paciência durante o período de transição. da República Dominicana e da América Latina, em geral.
Tudo que a nova esquerda precisa fazer é apontar: Olhe, lá Não é coincidência que trogloditas políticos e intelectuais
está o mesquinho do X, e adivinhe quem está com êle - aquêle fossilizados como o Senador Stennis, de Mississ-ipi, e Strom Tbur-
porco do Y! Lembra-se do que êles disseram sôbre Selma? mond, da Carolina do Sul, sejam os primeiros a discursar contra
Ao mesmo tempo, o laço entre o apoio secreto da América as manifestações e marchas de protesto do Dia do Vietnã, reali-
ao colonialismo no estrangeiro e a servidão do negro interna- zadas em tôda a América em outubro de 1965. :f:les, que certa
mente torna-se cada vez mais claro. Aquêles que estão princi- vez discursaram tão calorosamente contra a revolução negra,
palmente preocupados com a melhoria das condições do negro ainda estão lutando na mesma guerra; simplesmente se 'retiraram
reconhecem, como ·o fazem os proponentes da liquidação do para terrenos diferentes. O levante em massa da população negra
sistema neocolonia1ista da América, que sua luta é uma só. e o apoio e si~atia surgidos na comunidade branca expulsaram
.Eles vêem a principal contradição de nossa época. os dinossauros de sua pdmeira linha de defesa: a linha da côr.
Ocultamos algo da verdade dizendo que a nova esquerda Mas êstes adversários da revolução negra, destroçados na ques-
simplesmente se opõe à política externa da América. Isto é um tão dos direitos civis, de modo algum levantaram acampamento
eufemismo devido ao seu apoio aos movimentos de libertação e bateram em retirada. :t?.les se reagruparam e se entricheiraram
nacional naquelas áreas do mundo ainda sob domínio colonial num nôvo jront. São de opinião que a situação básica do negro
de jure e naquelas sob a autoridade de regimes de títeres neo- não pode realmente mudar sem transformações estruturais no
colonialistas. Os Estados Unidos têm o poder de decisão, sim sistema político e econômico da América.
ou não, sôbre todo o colonialismo no mundo atual. Não existe O de que o negro necessita e o que conscientemente pro-
um regime colonial na face da terra, no momento, que consiga cura é o poder político e econômico. E nós certamente teste-
sobreviver seis meses caso os Estados Unidos lhe sejam con- munharemos a fusão da revolução negra com um movimento de
trários; e, em muitos casos, sem o apoio militar e econômico maiores proporções reivindicando o desarmamento e a conver-
são da economia para fins pacíficos. Esta perspectiva, de uma
aliança entre a revolução negra, a nova esquerda e o movimento
* Facção dos democratas sulistas oposta aos programas dos direitos da paz, enche a estrutura do poder de apreensão: observem a
civis do Partido Democrata. reação furiosa provocada por Martin Luther King quando pedJu

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qudar 'f.io Sam a fazer a sua boa ação. A estrutura do poder
a cessação dos bombardeiros americanos no Vietnã do Norte
... ao pode publicamente reconhecer que o conflito vietnamita é
negociações com a Frente de Libertação Nacional e a admissã~
t1111.1 guerra civil, porque tal reconhecimento nos exporia como
da China nas Nações Unidas.
11111 agressor que intervém ao lado de um favorito em um conflito
. A luta contra a revolução negra, tanto quanto foi possível, ' 1vtl. De fato, a intervenção da América transformou em guerra
íot dcflagrada em nome da bandeira e da Constituição. Agora, de libertação nacional uma guerra civil.
nesta nova fase da luta, a reação está novamente empregando
como armas os mesmos instrumentos com os quais foi antes O Presidente não pode se dar ao luxo de contar a verdade
derrotada. E las são as únicas armas que restam às fôrças direi- .w povo americano porque êle sabe que a população não apoia-
I 1:1 a guerra caso ela realmente a compreendesse. É açenas
tistas - um tipo de terror aberto e repressão militar a que
recorreriam àvidamente caso não vissem outro meio. Curio- tuantcndo-a confusa e histérica- o trabalho dos vastos, centra-
samente, neste nôvo nível de luta, êles têm muito maiores espe- Jizndos e fraudulentos meios de comunicação de massas - que
ranças de sucesso. Os objetivos são mais obscuros. O objetivo U3J consegue prossegui-la. E esta é a fonte do grande temor
moral ainda não se tornou tão evidente como ocorreu na luta th.: J ohnson frente aos teach-ins e manifestações de protesto. A
pelos direitos civis. E a direita é capaz de manipular o povo verdade é elétrica e se propaga, propaga, propaga. O que
tirando proveito do traço "o mais forte deve estar 'com a razão" otormenta J ohnson e a nova direita é o temor de que os cres-
do caráter da América, acoplado à auto-imagem narcisista de centes protestos contra a sua política despertem o povo ameri-
amigo do oprimido. Os americanos concebem-se coletivamente cano. .:f:les sabem que massa~ de americanos saíram às ruas
como um gigantesco pelotão de salvamento em serviço vinte e para realizar manifestações contra LBJ. A confusão das massas
quatro horas por dia e pronto para responder a um chamado - em ações àbviamcnte hipócritas como a intervenção ameri-
em qualquer ponto do globo onde possam surgir disputas e cana na República Dominicana ao lado de uma sanguinária
conflitos. junta militar de extrema direita- pode transformar-se em fúria
das massas.
Não faz sentido ao povo americano combater numa guerra
irresolutamente. Goldwater sabia disto quando fêz a campanha O sistema capitaLista mundial chegou a uma encruzilhada
para a presidência, a direita o sabe hoje. Se a América está decisiva na estrada, bem no coração da nossa crise nacional. A
em guerra no Vietnã, então faz sentido aos americanos quando estrada para a esquerda é o caminho da reconciliação dos povos
a direita indignada ex.jge a aplicação de mais e mais fôrças, explorados do mundo, da libertação de todos os povos, do des-
aumento dos bombardeios, gás, napalm e mesmo armas nucleares mantelamento de tôdas as relações econômicas apoiadas na explo-
o uso de qualquer e tôda as armas eficazes para matar, derrota:, ração do homem pelo homem, do desarmamento universal e do
e dominar o inimigo. Os americanos gostam de ver uma tarefa estabelecimento de normas jurídicas internacionais com meios
realizada, e o que êles mais odeiam é deixar de lado um trabalho eficazes para fazê-las cumprir. A estrada para a direita é a
quando têm os meios à disposição para completá-lo. recusa à submissão frente a exigência universal pela libertação
nacional, justiça econômica, paz e soberania popular. Cami-
A administração Johnson sente-se obrigada a ofuscar a nhando por esta última trilha, os homens com poder de decisão
questão recusando-se a esclarecer ao povo americano a verda- devem estar preparados para desencadear o genocídio mundial,
deira natureza do conflito no Vietnã. Interpretando a situação inclusive o extermínio dos negros na América. As pessoas dentro
no sudeste asiático como uma guerra entre duas nações sobe- dêsses países que tentam opor-se ao desejo da maioria esmaga-
ranas, o norte comunista tendo invadido o sul democrático e dora da raça humana devem estar dispostas a renunciar aos
amante da paz, LBJ é capaz de posar como um reformista so- últimos vestígios de sua liberdade própria, e a ver seus governos
cial, embora ineficiente, indo em auxílio do fraco e oprimido, transformados em regimes totalitários não tolerando contestação.
enquanto um mundo cínico, como sempre, olha e se recusa a
111
110
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A fúria da estrutura do poder americano em relação ao exercício


do direito constitucional de discordar, de reunir-se pacificamente
e entregar uma petição contra a guerra de Jobnson no Vietnã,
é apenas um suave antegôsto da cicuta que o povo será forçado
a tomar caso permita que seu país desça a trilha que procura
a morte na encruzilhada.
O Presidente Kennedy deu a perfeita impressão de com-
promisso com a trilha da reconciliação, e era a fonte de muitos A Participação do Homem
de seus apelos. O que amedontra o povo a respeito do Presi-
dente Johnson é que êle parece estar tentando evitar tomar uma Negro no Vietnã
decisão há muito tempo. Mais cedo ou mais tarde êle e seus
assessores terão de escolher.
A nova direita e a nova esquerda na América, cada uma
tentando encaminhar a nação pelos rumos divergentes da encru-
zilhada, têm entre elas o destino do mundo e as esperanças de
uma humanidade torturada e ensangüentada - procurando eter-
namente a vida e quase sempre recebendo a traição e a morte
da mão estendida do sedutor.

ENTRE os testes mais críticos enfrentados por Johnson


estão a guerra do Vietnã e a revolução negra .interna. O fato
de que os cérebros do Pentágono tenham decidido enviar dezes-
seis por cento de soldados negros para o Vietnã é uma indica-
ção de que há um relacionamento estrutural entre estas duas
áreas de conflito. E a escandalosa rejeição inicial do Legisla-
tivo da Geórgia em dar posse ao representante eleito J ulian
Bond, porque êle denunciara o papel de agressor dos Estados
Unidos no Vietnã, mostra, também, a muito íntima relação entre
o modo como sêres humanos estão sendo tratados no Vietnã e
o tratamento que estão recebendo aqui nos Estados Unidos.
Vivemos hoje num sistema que está nas últimas etapas de
seu prolongado processo de colapso em escala mundial. Os diri-

112 113
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gentes dêste sistema têm as mãos m~ito ocupadas. A, injustiça Norte), e se os Estados Unidos forem capazes de lançar sua
está sendo desafiada em cada esquma c em cada nwel. Os fúria e poder armado contra o crescente gigante não-branco que
governantes sentiram que a grande ameaça são ?S movimentos c a China (e êste é o verdadeiro alvo da política norte-ameri-
de libertação nacional em todo o mundo, e parttcularmente na cana no Vietnã e o objetivo da estratégia norte-americana em
Asia Africa e América Latina. Para que possam deflagrar todo o mundo), caso os Estados Unidos saiam vitoriosos nestas
guer~as de repressão contra êstes movimentos ~~ libertação na~i~­ frentes, então será a vez do homem negro novamente encarar
nal no exterior, êles precisam ter paz, estabib~ade e unammt- o linchador e o incendiário do mundo: e de enfrentá-lo sàzinho.
dade de propósitos internamente. Mas, domesticamente, há um
Cavalo de Tróia, um Cavalo de Tróia negro que já despertou Os americanos negros são muito fàcilmente iludidos por
para sua condição e agora luta para se levantar. Também êle uns poucos sorrisos e gestos amigos, pela aprovação de umas
exige a liberdade. poucas leis de aparência liberal que são deixadas nos livros,
mofando sem serem postas em vigor, e pelos discursos insípidos
Qual é o propósito da atenção que os governantes estão de um Presidente que é um mestre consumado em tagarelar com
agora focalizando sôbre o Cavalo de Tróia? Advirá êle de um os milhares de cantos de sua bôca. Tal poesia não garante o
amor recém-descoberto pelo cavalo, ou será que os governantes Cuturo seguro da população negra da América. A população
necessitam que o cavalo fique quieto, impassivo, e não cause negra deve ter uma garantia, deve ter certeza, precisa estar con-
aos dirigentes, que já se vêem bastante encurralados, quaisquer vencida, afastando tôdas as dúvidas, de que o reinado do terror
problemas ou embaraços enquanto travam a guerra no Vietnã? terminou e que -não foi apenas suspenso, e que o futuro de seu
Na verdade os governantes têm necessidade do poder do cavalo povo está garantido. E a única maneira pela qual ela pode
nos campo~ de batalha. O que o homem negro na América assegurá-lo é conquistando a unidade e a comunicação orga-
deve manter constantemente na lembrança, é que a. doutrina da nizada com seus irmãos e aliados em todo o mundo, em bases
supremacia branca, que é uma part; da ideologia do siste~a internacionais. Ela precisa ter êste poder. Não existe outra
mundial que a estrutura do poder esta tentando preservar, detxa maneira. Qualquer outra coisa é a traição ao futuro de seu
ao homem negro a maior porção do sofrimento e ódio que a povo. O que está envolvido aqui, o que está sendo decidido
supremacia branca serviu de bandeja à população não-branca do neste exato momento, é a forma do poder no mundo de amanhã.
mundo durante centenas de anos. O homem branco orientado O problema racial americano não pode mais ser discutido
pela supremacia branca sente menos remorso a respeito do mas- ou resolvido separadamente. O relacionamento entre o geno-
sacre de "crioulos" do que sente em relação ao esmagamento cídio no Vietnã e a atitude do homem branco em relação aos
de qualquer outra raça sôbre a terra. :Bste fato ~stórico incon- amer-icanos negros é um relacionamento direto. Tão logo o
testável, tomado aos persistentes esforços atuats dos Es~ados homem branco resolva seu problema no Oriente, imediatamente
Unidos para cortejar a União Soviética v.isando a uma ahança voltará de nôvo sua fúria contra o povo negro da América,
contra a China, significa PERIGO para todos os povos do mu~do seu antigo saco de pancada. A população negra tem sido enga-
que têm sido vítimas da supremacia branca. Se êste namoro
fôr bem sucedido se os Estados Unidos finalmente forem capa- nada repetidas vêzes, vendida a cada instante pelos falsos líde-
zes de fazer par c~m a Rússia, ou se os Estados Unidos puderem res. Ap6s a Guerra Civil, a América passou por um período
continuar amedrontando a União Soviética para que esta rene- similar ao que estamos vivendo agora. O problema dos negros
recebeu ampla atenção. Todos sabiam que o homem negro
gue seus compromissos com a solidariedade socialista interna- tivera a justiça negada. Ninguém duvidava de que era tempo
cional (que os soviéticos estão sen:pre ~p~egoando,. embora
ainda permitindo que os agressores 1mpenalis_tas contt!lue!;l a para mudanças e que o homem negro devia ser feito um cidadão
bombardear diàriamente a República Democrática do Vtetna do de primeira classe. Mas a Reconstrução acabou. Os negros que
(oram elevados a altas posições foram bruscamente chutados
114 115
para as ruas e aglomerados como gado juntamente com as mas- soberan ia da América. O homem negro já chegou à compreen-
sas de negros nos guetos e cinturões negros. O linchador e o são de que, para ser livre, é necessário lançar sua vida - tudo
incendiário receberam licença para matar negros à vontade. Os enfim - na batalha, porque os opressores se recusam a com-
americanos brancos encontraram um nôvo nível para o qual preender que, agora, lhes é impossível aparecer com outra trama
expulsaram os negros. E com o auxílio de instrumentos tais para esmagar a revolução negra. O negro não pode se permitir
como Booker T. Washington, a doutrina da segregação foi pre- uma nova tentativa. Não pode se permitir cruzar os braços.
gada firmemente nas costas dos negros. Foram necessários cem Precisa pôr fim a todo o show AGORA e assumir firmemente o
anos para avançar com dificuldade daquele nível de esfriamento contrôle de suas questões, porque, se não o fizer neste momento,
para a miserável posição que os am~r·icanos. n~~os ora ocupam. se não conseguir agarrar fortemente as rédeas desta oportuni-
O tempo está passando. A oportumdade histonca. que os acon- dade histórica, talvez não haja amanhã para êle.
tecimentos mundiais agora apresenta m aos am~ncanos negros
está se escoando a cada tique-taque do relógio. O interêsse do homem negro está em ver um Vietnã inde-
pendente .e livre, u~ Vie~ã forte que não _seja o !a~toche .da
j
.&te é o último ato do show. Estamos vivendo numa época liuprcmaCJa branca mternacwnal. Se as naçoes da As1a, Afnca
em que os povos do mundo fazem a tentativa final em direção ~· América Latina forem fortes e livres, o homem negro na
à liberdade plena e completa. Nunca antes esta condição ~reva­ J\111érica estará seguro e livre para viver com djgnidade e auto-
leceu na História. Antes, existiram sempre redutos ma1s ou respeito. ~ um fato cristalino que enquanto as nações da
menos articulados c conscientes, porções de classes, etc., mas J\frica, Ásia e América Lat.ina eram algemadas pela servidão
a época atual é de consciência de massas, quando o mais insigni- •olonial, o negro americano era mantido firmemente no tômo da
ficante homem na rua está em rebelião contra o sis tema que ' 11rcssão e impedido de soltar um gemido de protesto de qual-
lhe negou a vida e que, como êle já compreendeu, é a fôrça que quer efeito. Mas quando estas nações começaram a lutar pela
lhe retira a dignidade e o auto-respe ito. Contudo, êle está sendo M i l\ liberdade, fo i então que os americanos negros foram capa-
informado de que levará tempo para que se dê início aos pro- Zl'S de aproveitar sua chance; foi, então, que o homem branco
gramas, para aprovar a legislação, para educar a popul~ção
d ispôs-se a pequenas concessões - forçado peta pura neces-
branca e aceitar a idéia de que a população negra deseJa e
merece a liberdade. M as é fisicamente impossível avançar tão
lutlndc. A única salvação duradoura para o americano negro é
rápido quanto o homem negro gostaria. Os homens negros são r11tcr todo o possível no sentido de que as nações africanas)
extremamente sérios quando d izem LIBERDADE AGORA. Mesmo .tswticas c la tino-americanas venham a ser livres e independentes.
que o homem branco quisesse apagar de vez todos os traços do J\ êstc respeito, os negros americanos têm um .importante
mal na calada da noite, não seria capaz de fazê-lo porque o p.1pél a desempenhar. Constituem um Cavalo de Tróia negro
sistema econômico c político não o permitirá. Tôda a conversa dt 'lll ro da América branca e representam uma parcela de mais
a respeito de ir muito rápido é traiçoeira para o futuro do homem dt• Ylnll.: c três milhões de l10mens. É uma grande fôrça. Mas
negro. 111 111ht: m serão muito fracos se estiverem desorganizados e divi-
O que o homem branco deve ser levado a compreender é dtdn~ por disputas internas. Neste momento, está deploràvel-
que o homem negro na América de hoje está totalmente ciente "" uk desorganizado; a necessidade urgente, pois, é de união
de sua posição e não pretende ser ludibriado nova~e~te com l w gan ização. A unidade está nos lábios dos negros. Hoje
mais cem anos de privação da liberdade. Nem por umco mo- 4 l.tmos à beira de mudanças radicais nesta paisagem miserável
mento ou por qualquer preço o homem negro atualmente em "' quase mil pequenos grupos e organizações fragmentadas e
rebelião na América estará disposto a concordar com qualquer 1111 lit'il'ntcs, incapazes de trabalhar juntas por uma causa comum.
coisa que não seja a sua completa participação proporcional na I 111'1'/'.\',\idade de uma organização que dê uma voz ao interêsse

116 117
comum do homem negro é sentida em cada osso e músculo da tlade. Os americanos negros são considerados os maiores tolos
A:mér.ica negra. do mundo por irem para outro país lutar por algo que êles
pr6pr,ios não têm.
Ontem, após repudiar firmemente o racismo negro e romper Os racistas brancos ficam perturbados com o fato de que
seus laços com a organização dos muçulmanos negros, o falecido povos do mundo inteiro gostam dos americanos negros mas
Malcolm X lançou uma campanha para transformar a luta do acham impossível dedicar semelhante afeição calorosa aos' ame--
homem negro americano, de um tímido apêlo em prol dos ricanos brancos. O racista branco sabe que êle é o Americano
"direitos civis", numa exigência universal pelos dJreitos humanos, Mau e quer que o americano negro seja também Mau aos olhos
com o supremo objetivo de pôr à prova o Govêrno dos Estados do mundo : a miséria gosta de companhia! Quando pessoas em
Unidos nas Nações Unidas. Isto e a idéia da Organização da todo o mundo gritam "Yankee, Go Home", visam o homem
Unidade Afro-americana foram o legado de Malcolm ao seu branco e não o homem negro, que é um escravo recém-liber-
povo. E a idéia não caiu em terra árida. Já os líderes negros tudo. O homem branco está deliberadamente tentando fazer os
americanos reuniram-se com os embaixadores da África negra povos do mundo se virarem contra os americanos negros, porque
durante um almôço na sede das Nações Unidas. A ninguém es- sabe que se aproxima o dia em que os americanos negros neces-
capou o significado dêste momentoso acontecimento. O fato de sitarão_ da ajuda e do apoio de seus irmãos, amigos e aliados
terem sido o caso de Julian Bond, sua denúncia da agressão naturrus espalhados por todo o mundo. Se através da estupi-
norte-americana no Vietnã e a ação de elementos racistas no dez, ou seguindo líderes escolhidos a dedo, que são agentes
legislativo da Geórgia que reuniram os líderes da América e da servis da estrutura do poder, os americanos negros permitirem
África negra, é profético de um reconhecimento ainda mais claro o êxito desta estratégia contra êles, então, quando a hora chegar
pelos homens negros, de que seus interêsses também estão amea~ c precisarem de ajuda, êste auxfl,io e apoio do mundo não exis-
çados pela guerra de repressão norte-americ ana no Vietnã. Esta tidL To~o o amor, respeito e boa-vontade internacional de que
harmonização de causas e questões está destinada a dar conse- os amencanos negros atualmente gozam no mundo inteiro
cução ~ outro sonho que o assassinato de Malcolm impediu-lhe terão desaparecido. :rues mesmos terão soterrado tudo ·isso na
de realizar - a Organização da Unidade Afro-americana, ou
talvez uma organização similar sob nome diferente. Os ameri- f lama dos arrozais e pântanos do Vietnã.

I
canos negros sabem, agora, que precisam se organizar para alcan-
çarem o poder de mudar as políticas externa e interna do
go.vêrno n?rte-america~10. Precisam fazer com que suas vozes
seJam ouvJdas a respe1to destas questões. Precisam fazer com
que o mundo saiba de que lado estão.
Não é por casualidade que o govêrno norte-americano está
enviando aquêles soldados negros para o Vietnã. Algumas pes-
soas pensam que o objetivo da América, ao enviar dezesseis por
cento de soldados negros para o Vietnã, 6 destruir a nata da
juventude negra. Mas há um outro resultado importante. Trans-
formando seus soldados negros em carniceiros do povo vietna-
mita,~ a Amér!ca está propagando o ódio contra a raça negra
em toda a Ásta. Mesmo os africanos negros acham difícil não
odiar. os ameri~anos negros, por serem êstes tão estúpidos que
se deiXam mampular para matar outro povo que luta pela liber-

118 119
morrendo, você não pode sair para ficar à sua cabeceira para
llizcr adeus ou ir até o seu túmulo para vê-la descer à terra,
pura vG-la, pela última vez, tragada por uma cova escura.
As técnicas do cumprimento da lei são muitas: pelotões de
ruzilamcnto, câmaras de gás, cadeiras elétricas, câmaras de tor-
turas, garrote, guill1otina, a corda apertada no pescoço. D eci-
lliu-sc que a pena de morte é necessária para apoiar a lei, para
Lei Interna e Ordem Internacional torna r mais fácil o trabalho de fazê-la ser cumprida, para impe-
dir transgressões ao código penal. O fato de que nem todo
mundo acredita nas mesmas leis está fora da discussão.
As leis que devem ser cumpridas dependem de quem está
no poder. Se os capitalistas estão no poder, fazem com que
se cumpram leis voltadas para proteger seu sistema, seu modus
1•ivendi. Possuem uma aversão particular aos crimes contra a
propriedade, mas estão preparados para serem liberais e mos-
trar um pouco de compaixão pelos crimes contra a pessoa
humana- o menos, naturalmente, que um exemplo dêste último
esteja combinado com um exemplo do primeiro. Em tais casos,
nada pode impedi-los de impor a penalidade máxima contra o
transgressor. Por exemplo, assalto armado com violência, para
um capitalista, é o verdadeiro epítome do mal. Pergunte a
qualquer banqueiro sôbre o que êle pensa a respeito.
Se os comunistas estão no poder, põem em prática leis
voltadas para proteger seu sistema, seu modus vivendi. Para
Üs
I departamentos de policia e as fôrças armadas são êles, o horror dos horrores é o especulador, aquêle mágico que
as duas armas da estrutura do poder, os músculos de contrôle se aperfeiçoou na arte de conseguir tudo com nada e que, na
e coação. Possuem armas terríveis para infligir a dor no corpo América, seria membro em posição de destaque na Câmara
humano. Sabem como causar mortes horríveis. Têm cassetetes de Comércio local.
para espancar o corpo e cabeça. Têm balas e revólveres para O "povo", entretanto, em parte alguma é consultado; mas
abrir buracos na carne, para pulverizar os ossos, para aleijar
e matar. Empregam a fôrça para lhe obrigar a fazer o que as
autoridades decidiram que você deve fazer.
Todo país sôbre a terra tem estas agências da fôrça. Os
I
em tôdas as partes tudo é sempre feito em seu nome e ostensi-
vamente pelo seu bem-estar, embora seus problemas na vida
real continuem sem solução. O "povo" é um carimbo de
borracha para o ardiloso e hipócrita. E nenhum problema pode
povos de tôdas as partes temem êste terror e esta fôrça. Para ser resolvido sem se levar em conta o departamento de polícia
êles, é como uma fera rosnando que pode colocar um ponto final e as fôrças armadas. Tanto os reis como os bobos da côrte
nos sonhos de alguém. Têm celas c pr.isões para trancafiá-los. compreendem isso, tanto as primeiras damas como as prosti-
Obrigam-nos a cumprir as sentenças. Não lhe deixam partir tutas comuns.
quando bem entender. Você tem de ficar em posição de sen- A polícia faz em nível doméstico o que as fôrças armadas
tido até que lhe dêem permissão para relaxar. Se sua mãe está fazem em plano internacional: protegem o modus vivendí dos

120 121
que estão no poder. A polícia patrulha a cidade, .isola comu- os " tiras" e os americanos "botarão pra quebrar" de costa a
nidades, bloqueia estradas, invade casas, procura por aqu ilo que lOSta. Existem, naturalmente, uns poucos cidadãos que, por
está escondido. As fôrças armadas patrulham o mundo, inva- onde andam, carregam seus próprios "tiras" particulares, ~entro
d<· suas almas. Mas existe o roubo na terra, furto, assassmato,
dem países e continentes, isolam nações, bloqueiam ilhas e popu-
rupto, ·invasão de domicilio, trapaça, todos os tipos, de crime~,
lações inteiras; e também devastam aldeias, regiões inteiras,
lucro renda interêsse - e êstes descendentes blases de Puri-
invadem casas, cabanas, cavernas à procura daquilo que está
tano; agarra~-se uns aos pescoços dos outros. Para complicar
escondido. O policial e o soldado violarão a sua pessoa, farão
o assunto, existem também pessoas ricas e pobres na ~enca.
você sumir com vários gases. Cada um dêles atirará em você,
Existem negrose brancos, índios, pôrto-riquenhos, mexicanos,
espancará sua cabeça e corpo com paus e cassetetes, com coro-
judeus, chineses, árabes, japonêses - todos com d!!eitos_jgu_!l'iS
nhadas de rifles, atravessará você com baionetas, abrirá buracos
mus com posses diferentes. Alguns têm tudo e outros nao tem
na sua carne com balas, e o matará. Cada um tem poder ·ilimi-
n:.tda. Todos foram ensinados a venerar o santuário da Gene-
tado de fogo. Empregarão tudo que fôr necessário para fazer
ral Motors. Os brancos estão no tôpo da América e desejam
você cair de joelhos. Não arunitirão um não como respost~.
permanecer ali, bem no alto. T ambém estão no tôpo do mundo,
Se resistir a seus Càssetetes, apelam para os revólveres. Se resis-
no nível internacional, e também desejam permanecer ali, bem
tir aos revólveres, pedem reforços com canhões. Eventual-
no alto. Em todo lugar existem aquêles que desejam quebrar
mente virão em t anques, em jatos, em navios. Não descan-
êstc precioso relógio de brinquedo do sistema, tirar os brancos
sarão enquanto você não se entregar ou morrer. O policial e o
soldado ficarão com a última palavra. de cima do seu alto cavalo e torná-los ·iguais. Em tôda a parte,.
os brancos estão lutando para prolongar seu status, para retar-
Tanto a polícia como as fôrças armadas cumprem ordens. dar a erosão de sua posição. Na América, quando tudo o mais
Ordens. Ordens que vêm de cima para baixo. Lá em cima, fracassa, êles chamam a polícia. No plano internacional, quando
por trás das portas fechadas,Aem antecâmara~•. em salõe~ de con- tudo o mais fracassa, convocam as fôrças armadas.
ferências martelos batem sobre mesas, o tllmtar de Jarros de
prata pdde ser ouvido enquanto a á~a gelada é servida em Uma coisa estranha aconteceu em Watts, em agôsto de
taças de cristal para homens bem nutridos e conservadoramente J965. Os negros - que, nesta terra de propriedade privada,
trajados e viúvas americanas elegantemente vestidas com o rosto são de tudo pr-ivados e não têm nenhuma propriedade- ficaram
rejuvenescido e cabelos pintados, o ar permeado com o humor enfurecidos e provocaram uma rebelião porque haviam ~urpr~n­
quadrado das piadas de Bob Hope. Ali são realizadas as reu- dido um guarda antes que êle pudesse lavar suas maos SuJas
niões, agrupados os pensamentos e tomadas tôdas as decisões. de sangue. Normalmente, o departamento de pol~cia pode dar
Um grupo de finórios sai apressadamente do salão de conf:- conta de tais tumultos. Mas, desta vez, foi diferente. As
rências para espalhar as decisões por tôda a cidade, como noti- coisas escaparam ao contrôle. Os negros investiram às cegas,
cias. Cumprir ordens é um emprêgo, um modo de responder incendiando, dando tiros e quebrando tudo. O departame}l~o
aos compromissos familiares, um meio de dar leite às crianças. de polícia não tinha meios para controlá-los; o chefe da polícia
Nas fôrças armadas é um dever, patriotismo. Não agir assim pediu reforços. Lá veio a Guarda Nacional, aquêle cruza-
é traição. mento ambíguo da zona morta onde o exército doméstico se
funde com o internacional; aquela fôrça hipócrita suspensa den-
Cada cidade tem o seu departamento policial. Nenhuma
estaria completa sem êle. Seria uma loucura total di~igir uma tro da América e pronta para agir em qualquer nível, capaz de
cidade amer-icana sem o fuzil e o homem. Os amencanos ou dar apoio tanto à polícia como às fôrças armadas. Desenca-
já foram demasiado longe ou ainda não se puseram em movi- deando um formidável poder de fogo, esmagou os negros.
mento; o centro não existe, sõmente os extremos. Acabem com Mujtas pessoas viram que aquêles que ofereceram a outra face,

122 123
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em Watts, tiveram a cabeça totalmente estourada. Ao mesmo ro~dio e os editorialistas dos jornais são os magos da cortina
tempo, explodiam cabeças no Vietnã. A América estava emba- llc fumaça e os "enroladores".
raçada, não pela qualidade de suas ações mas pelo excesso de O que é verdade no plano internacional, também o é no
publicidade centralizada sôbre seus pontos negativos, e um pouco mvcl interno; só que o ás escondido na manga é mais fácil de
amedrontada em virtude do que implicavam todos aquêles cadá- detetar na arena internacional. Quem sustentaria que os solda-
veres, nos dois fronts. Aquêles corpos falaram eloqüentemente dos americanos estão no Vietnã por sua espontânea vontade?
de aliados e alianças potenciais. A comunidade de interêsses (· lcs foram convocados pelas fôrças armadas e ensinados a oh<?
começou a emergir, gotejando sangue, das cinzas de Watts. Os dccer ordens. Foram enviados para o Vietnã por ordem dos
negros em Watts e em tôda a América podiam agora compreen- generais do Pentágono, que as receberam do Secretário da Defesa,
der o ponto de vista do vietcong: ambos são o alvo do que as tJLIC as recebem do Presidente, que está envolto em uma nuvem
fôrças armadas estavam distribuindo. tlc mistério. O soldado nos campos de batalha do Vietnã, o
Desta forma, os negros, agora incitados pelo nôvo conh<? homem que se arrasta no mato e aperta o gatilho quando um
cimento que desenterraram, gritam- "BRUTALIDADE POLTCIALI" camponês mirrado e tremendo cruza sua alça de mira, está ape-
De um extremo ao outro do país, o nôvo gr·ito de guerra foi nas cumprindo ordens, conduzindo uma política e um plano.
dado. A juventude, êsses nós de energia compulsiva, que é tôda Mal sabe do que se trata. );:les o amarravam muito bem com
combustível e músculos, acelera seus motores na ânsia de fazer os slogan.<; da TV e as Séries Mundiais. Tudo que sabe é que
alguma coisa. Os Tios Tom, não mais desejando pôr-se de roi ·indicado para conduzir um certo ritual de deveres. Está
joelhos para · lamber botas, continuam a fazê-lo de cócoras. A bem treinado e faz o melhor que pode. E faz um bom trabalho.
burguesia negra reivindica a criação de Juntas de Exame de Talvez queira agradar os que estão acima dêle, com a quali-
Cidadãos para afirmar o contrôle civ·il sôbre a atividade da polí- dade de seu desempenho. Pode estar pretendendo ser sargento,
cia. Nos quartos sujos, nas esquinas fedorentas c escuras dos ou outra coisa. :Bste homem é de alguma fazendola em Shit
guetos, homens negros conscientes amaldiçoam a própria covar- Creek, Geórgia. Sõmen te ficou sabendo a quem matar depois
dia e olham fixamente os rifles e revólveres espalhados sôbre de passar pelos campos de treinamento. Poderia, da mesma
as mesas, tremendo como se desejassem que um impulso de ronna, sair pronto para matar suecos. E matará 1.!.!!!-SU~
valentia corresse através de seus corpos e os impelisse às ruas, morto caso receba ordens_Eara faz!:!..o.
aos berros e atirando para todos os lados. As mulheres negras O mesmo acontece com o policial em Watts. Não está
olham para seus homens como se êstes fôsscm lacraias, curiosos ali por que quer. Todos êles foram mandados cumprir tal mis-
mecanismos de carne representando um incscrutável jôgo de são. Receberam instruções sôbre o que fazer e o que não fazer.
espera. A violência torna-se um pombo-correio voando através Também foram informados sôbre o que era melhor não fazer.
dos guetos à procura de um cérebro negro no qual possa se Assim, quando êle continuamente faz alguma coisa, em cada
empoleirar durante uma estação. gueto nojento desta terra de merda, isto significa apenas que está
Na sua fúria contra a polícia, contra a brutalidade po}jcial, cumprindo ordens.
os negros perderam de vista a realidade fundamental: a polícia Não é segrêdo que, na América, os negros estão em com-
é apenas um instrumento para a implementação das políticas pleta rebelião contra o sistema. Querem tirar a cabeça que
daqueles que tomam as decisões. A brutalidade policial é ape- está enfiada na areia. Não gostam da maneira como a América
nas uma facêta do cristal de terror e opressão. Por trás da ' é dirigida, de alto a baixo. Alguém tem uma patente sôbre
\brut~lidade polici~l está ~ brutalidade social,. a ~rutalidade :c_9- tudo. Nada foi esquecido. Até recentemente, os próprios negros
lnômJca e a brutaltdade polítícã. lJa petspecttva do gueto, nao é eram contados como parte da propriedade privada de alguém,
fácil distinguir isto: o locutõr de televisão, o anunciador do ju11tamente com as galinhas e as cabras. Os negros não esque-

124 125
ceram isto, principalmente porque ainda são tratados como se Iu.tliCOS. Não têm defesas contra os negros e tampouco
fôssem parte do inventário de bens de alguém - ou talvez, dt p tlllll de tempo para erigi-las. As masas negras podem dorni-
nesta época de exasperação contra os custos da previdência u 1 l,a quando bem entenderem, com um só golpe poderoso.
social, os negros estejam na relação dos compromissos orçamen- I • .a burguesia branca apresenta um problema maior, aquêles
tários da nação. Seja como fôr, os negros, entretanto, não estão l11 !l h OS que são donos de tudo. Com muitos agrilhoados ao
em posição de respeitar ou ajudar a manter a instituição da .11 1 mprego, o ódio no coração dos negros por êste sistema de
propr.iedade privada. O que desejam é imaginar um meio de 1'"1plicdade privada cresce diàriarnente. A inv.iolabilidade que
conseguir algumas daquelas propriedades para si mesmos, des- 1• 11 .1 u propriedade está sendo colocada em questão. A mística
viá-las para o atendimento de suas nencessidades. Esta é a dn IHulo de propriedade está se dissolvendo. Em outras partes
essência de tôda a questão, a verdadeira brutalidade envolvida. tio mundo, os camponeses se rebela m e expropriam a terra dos
Esta é a fonte de tôda a brutalidade. mli!t()S proprietár ios. Os negros na América acham que o
A policia é a guardiã armada da ordem social. ~s negr~s lllulo de propriedade não é eterno, que não é assinado por Deus,
são as principais vítimas domésticas da ordem soctal amen- ' lfll \l novos títulos, tornando os negros proprietários, devem ser
cana. Um conflito de interêsses existe, portanto, entre os negros ' ' dlgidos.
e a polícia. Não se trata imicamente de urna questão de "tiras" Os Muçulmanos Negros fazem ecoar o grito : "Nós VAMOS
felizes em apertar o gatilho, de "tiras" brutos que adoram esma- l i 1t AI, GUMA TERRA!" "ALGUMA TERRA NOSSA OU DE OUTROS!"
gar cabeças de negros. Para a maioria, trata-se de um emprêgo. I >M 11ogros na América esqujvam-se do colosso da General Mo-
E bem pago. E há numerosos benefícios à margem. O verda-
li li 'i. Não sabem como investir através daquele matagal de ações
deiro problema é o de uma ordem social que fica feliz em apertar 111 d in{Lrias, ações preferenciais, bonificações e debêntures. Sabem
o gatilho. Pll lcnrncnte que a General Motors é gigantesca, que tem sob
Os utópicos falam de um dia em que não existirá políc.ia. 11c 11 contrôle bilhões de dólares, que é proprietária de terras, que
Não haverá nada para êles também. Todo homem curnpnrá 1111.111 subsidíárjas são uma verdadeira legião, que é um reposí-
0 seu dever, respeitará os direitos de seu vizinho, ?ão pertur- 111110 de grandes podêres. Os negros querem esmagar os miolos
bará a paz. As necessidades de todos serão exammadas co_rn du <icner al Motors. Estão meditando a res.P._eito. Enquanto isso,
cuidado. Cada um terá simpatia pelo seu semelhante. Na? til-vem aprender q ue a políciãí:ecebe ordens da General Motors.
ocorrerão coir.as tais como crimes. Não haverá, é claro, prest- I que o Banco da América tem alguma coisa a ver com êles,
dios. Nada de cadeiras elétricas nem câmaras de gás. A corda 111\1110 embora não tenham sequer um níquel depositado. Não
da fôrca será coisa do passado. Tôda a terra viverá em abun- I! m contas bancárias, apenas contas para pagar. ~nico meio
dância. Não haverá nem crimes conçra a propriedade nem espe- IJII C COnhecem para fazer retiradas de Um banco é usando a mira
tk um revólver. A s frentes reluzentes dos arranha-céus os inti-
culação. midam. N ão os possuem. Sentem-se alienados nas próprias
:a fácil notar que não estamos às vésperas de um ingresso 11t lçadas por onde caminham. :Bste país do homem branco,
na Utopia: existem "tiras" por tô;fa a part~. No Norte e noA
1stc mundo do homem branco. Inundados por homens de côr.
Sul, os negros são os pobres. Veem propnedades po~ toda a lJ111a economia consagrada ao socorro dos brancos. Os negros
parte, propriedades que pertencem aos branc?~· A. es!e res- 11110 incidentais. A guerra contra a pobreza - êsse monstruoso
peito, a burguesia negra tornou-se apenas um ndtculo meo,modo. 111Sulto aos músculos retesados que seguram as armas do homem
Tendo empreendido uma batalha por sua entrada nos c• rc~os 111:gro - é urna indicação de como os homens efetivamente se
dominantes americanos, durante cinqüenta anos, todos os mews Ncnlam e conspiram um a morte do outro; na verdade, sentam-
de defesa da burguesia negra estão d·irigidos para fora, contra Nc com réguas de calcular e calculam como esconder o pão dos

126 127
l!(.,,_l~"tl H-fe.\~"' l.t. .. . ~4. L•· ~•· dt.:c-~
famintos. E a burguesia negra junta vorazmente as migalhas tlt.m. Nada deve ser permitido gue possa ameaçar a organi-
jogadas em seus becos escuros. ~ auto A justica é secundária. A segurança é fundamental .
Enquanto isso, os negros observam e especulam sôbre táti-
Existem vinte milhões dêsses negros na Amér·ica, provà-
velmente mais. Hoje êles repetem, com reverência, êsse número
l•'"· São convocados para morrer pelo Sistema no Vietnã. Em
W.ttls, são mortos pelo Sistema. Agora - AGORA! - êles se
mágico para si próprios: existem vinte milhões iguais a nós! J'nguntam de maneira resoluta: Por que não morrer logo aqui,
Gritam isto um para o outro com respeitosa admiração. Nin- l " ' Babilon, lutando por uma vida melhor, como o vietcong?
guém precisa dizer a êles que há um grande poder latente nesta S~: aquêles sujeitos baixinhos podem fazê-lo, o que há de errado
sua massa. Sabem que vinte milhões de qualquer coisa é um llllll os grandes machões como nós?
número suficiente para receber algum reconhecimento e consi- Surge um nôvo estado de espírito, espalha-se pela América,
deração. Sabem, também, que precisam aproveitar seu número 11lrav6s da face de Babilon, cristaliza-se no coração dos negros
c amolá-lo como uma espada de fio cortante. A General Motors ~·111 tôdas as partes.
branca também sabe que a união dêstes v·inte milhões de vaga-
bundos pode representar a morte do sistema que lhe garante a
existência. A todo custo, então, ela procura evitar que êsses
negros se unam, que se tornem ousados e revolucionários. Estes
donos da propriedade branca sabem que precisam manter os
negros covardes e int imidados. Por um complexo s.istema de
sinais e insinuações, certas ordens são dadas ao chefe de polí-
cia e, ao xerife, que as passam a seus homens, os soldados de
infantaria nas trincheiras dos guetos.
Sentimos êste sistema de contrôle como uma loucura.
Assim é que Leonard Deadwyler, um dêstes vinte milhões de
negros, levou às pressas sua mulher grávida para o hospital e
foi alvejado e morto por um policial. Um acidente. Que o sol
nasça no leste e se ponha a oeste também é um acidente. Os
negros se levantaram em armas. De um extremo ao outro da .
América, os negros se enfureceram com êste acidente, esta última
evidência do tipo de povo predestinado aos acidentes que êle
é, da crueldade c dor de suas vidas, êstes negros à mercê de Ian-
ques e Confederados, felizes em apertar o gatilho na coalizão
contra a sua pele. Querem o sangue do policial como um sinal
de que o vietcong não é a única resposta. Um sinal para salvá-
los da morte que devem sofrer e que precisam provocar nos
outros. A estrutura do poder não experimentaria a menor vaci-
lação em entregar o bode-expiatório para acalmar a gentalha,
para restaurar a lei e a ordem; mas sabe, nas cúpulas de suas
fôrças, que os negros devem, a todo custo, ser mantidos à dis-
tância, que ela deve apoiar o departamento de polícia, seu Guar-

128
III. Prelúdio para o Amor
- Três Cartas
(Nota: Eldridge Cleaver estêve numa penitenciária
na Califórnia durante aproximadamente nove anos.
Beverly Axelrod é uma advogada de San Francisco.
Antes da época em que foram escritas estas cartas,
o Sr. C lcaver escrevera à Sra. Axelrod pedindo-lhe
assistência jurfclica. Ela o visitou três vêzes antes
de ocorrer a seguinte troca de cartas.)

Eldridge Cleaver
Penitenciár-ia Estadual de Fo1som
Represa, Califórnia
5 de setembro de 1965

C ARA Beverly Axelrod:


Durante dois dias cansativos e noites passadas em claro,
após a sua partida, passei o tempo com as minhas idéias, sen-
1indo-me prematuramente envolvido por uma espécie de névoa
etérea e mágica, decorrente da dialética de nosso contato. Quando
a deixei sentada naquela pequena cabina envidraçada (que, de
nlgum modo, devo aprender a respeitar, porque tem agora um
significado eterno e especial), não parei um só -instante. Incluin-
do a porta daquela cabina envidraçada, e contando a porta da
minha cela, atravessei doze portões e portas, antes de me deixar

133
cair sôbre minha estreita cama, atordoado com o pêso daquele , i,, inacreditável de acontecimentos casuais que nos colocaram
DIA. As portas e portões se abriam diante de mim, vibrando, I lt't.) a face na pequena cabina envidraçada, no gabinete do
enquanto eu avançava sôbre elas, enquanto as atacava, como se du~:tor da Prisão Folsom.
fôssem ativadas por células fotoelétricas respondendo à minha Você me atirou o salva-vidas. Se, pelo menos, soubesse
aproximação. Caminhei ràpidamente, mas me sentia como se , omo cu estava me afogando, como achava que tinha afundado
estivesse correndo, aos tropeções, afastando tudo e me deba- pl'la terceira vez há algum tempo, como fiquei me debatendo na
tendo para limpar a passagem através de um denso emaranhado ·•).tua simplesmente porque ainda sentia o desejo de lutar e a
de trepadeiras. Não falei com ninguém e achei que ninguém ,,trnção de uma praia distante, como me sentei agitado naquela
poderia me ver ou me reconhecer. (Estava errado: fui acusado nnifc, com o pêso polissílabo do seu nome batendo no meu cére-
no dia seguinte de passar por alguns carcereiros como se êles bro - Beverly Axelrod, Bevcrly Axelrod - e por qual instinto
não estivessem ali. Continuei dizendo a êles que, na verdade, ll'Solvi-me a escrever a você? Joguei com uma equação elabo-
e pelo que me lembrava, êles não estavam ali, mas se recusa- J nt.lu em delírio - e estava certo.
ram a acreditar na própr·ia não-existência ou invisibilidade.)
No terceiro dia, tudo a mesma coisa. Não, isto está indo Deixe-me dizer uma coisa. Eu tinha vinte e dois anos
longe demais! quando vim para a prisão e, naturalmente, mudei muito com o
Que transfusão! Não acredito que possa suportá-la em passar dos anos. Mas sempre tive uma grande autocrítica e,
llüS últimos anos, senti que estava perdendo minha individua-
doses tão maciças. Elas podem ser fatais.
lidude. Havia um amortecimento em meu corpo que me .iludia,
Estou quase temeroso de voltar aos meus manuscritos - muito embora eu não conseguisse localizar exatamente o seu
êles próprios parecem estar fugindo de mim - após conversar lugar. Estava ciente desta insensibilidade e desta sensação de
com você. Sei que devo permanecer ·imóvel, petrificado, até atrofia localizada no fundo da minha consciência. Em virtude
que consiga lhe mandar esta carta. Então ... úêste ponto insensível, sentia-me peculiarmente desequilibrado,
E u, realmente, não tenho um sentido de mim mesmo e com a certeza de alguma coisa perdida, de uma mancha branca,
sempre sofri com as atenções dos outros, especialmente de meus uma certa sensação de vazio. Agora sei o que era. E, desde
amigos. Entro em pânico. Fui, recentemente, até a sede do que a encontrei, sinto a fôrça da V·ida correr de volta para
Folsom Gavel Club. Um dos meus incentivadores teceu elogios nquêle lugar. Meus passos, meu modo de andar, que era cuida-
em profusão sôbre mim e minhas qualificações para o trabalho. doso e incerto, começou a se recuperar e a adquirir uma nova
Contorci-me na cadeira e me senti oprimido. Isto significa que confiança, um arrôjo que me dá vontade de sair pulando sôbre
não tenho o ego para um elogio? Não, não significa. f: h-ipo- as mesas. Posso andar até com certa arrogância e, como li
crisia minha, mas sempre que alguém diz alguma coisa bonita num livro em algum lugar, "impulsionar-me para a frente como
sôbre mim, aquilo me atinge como um sôco e me deixa tonto. uma locomotiva".
Mas não pare, deixe-me sofrer - e superar tudo.
Sinto-me impelido a me e~ressar a você extravagantemente,
e as palavras, frases, sentenças, parágrafos saltam na minha AGORA VIRE O DISCO E TOQUE DO OUTRO LADO
mente. Mas eu as faço ficar quietas, recuso escrevê-las, porque
tudo parece tão previsível e corriqueiro. Sinto-me humilhado Eu tentei desor.ientá-la, iludi-la. Não sou assim tão mo-
pelas palavras que você me inspira a lhe escrever. Recuso desto. Não tenho humildade e de modo algum tenho mêdo de
esc1·evê-las. Que direito tem você de despertar minha alma do você. Se finjo ser tímido, se pareço hesitar é apenas um
seu sono? Mas tudo é dourado e escrevo isto com uma sensa- engôdo. Desempenhando o papel de tímido, atraio meus amigos
ção de doce ironia, o melhor para tornar maravilhosa a seqüên- c conquisto sua confiança. E depois, caso me seja favorável,

134 135
desfecho o golpe - sem misericórdia. Menti quando disse que Beverly A.xelrod
não tinha consciência de mim mesmo. Tenho perfeita cons- Advogada
ciência do meu tipo. Minha vaidade é tão grande quanto o San Francisco, Califórnia
alcance de um sonho, meu coração é o de um tirano, meu braço 10 de setembro de 1965
é o braço do carrasco. ~ somente o fracasso das minhas conspi-
rações que eu temo. Enquanto no passado tivemos os Profetas
do Juízo Final, na minha vaidade eu desejo ser a própria Voz Caro Eldridge Cleaver:
do Juízo Final. Estou zangado com os insurretos de Watts. . . . Necessidade de expressão quem sente agora sou eu,
:Sics arrancaram minha máscara e revelaram a todos o poten- "' terminar os assuntos legais; estou entrando em pânico. Não
cial que pode estar por trás do meu Sorriso de Tom. Planejei .uu suficientemente forte para tomar o curso mais seguro, que
concorrer à Presidência dos Estados Unidos. Meu slogan? '•l i ia não ampliar muito o tema de nossa correspondência, e
.rtruvcsso horas difíceis tentando dizer o que quero, sabendo
COLOQUE UM DEDO NEGRO NO GATILHO NUCLEAR.
quo ludo será lido pelos censores.
Sua carta, que continuo relendo, mostra que você está
Quatrocentos anos de docilidade, de calma, frieza e reco- passando pela mesma agitação que eu; mas, suporto o ônus de
lhimento sob pr essão e tensão dariam ·para provar ·que eu era ll lo permitido. Você fala a respeito de ser letal, e depois sôbre
o homem para o cargo, que não entraria em pânico numa crise u vida voltando a correr - e sei que tudo é verdade.
e apertaria o botão. Podiam ter confiança em mim porque Estou me guiando, agora, puramente pelo instinto, o que
eu era frio. Era uma "barbada", tinha-a como certa - mas uflo é comum para mim, mas de certa forma sei que estou certa,
então veio Watts! Todos os meus planos sumiram como fumaça! nu ta lvez, justamente por ser tão importante, não me ·importo
E desta maneira, com ferramentas já usadas, curvei-me para t•om o risco de estar errada. Você entende o que eu quero
começar novamente. dil"cr? Estou escrevendo de uma maneira obscura em virtude
Por favor, cuide-se. dn amaldiçoada falta de liberdade em nossas comunicações.
Acredite nisto: eu aceito você. Eu pouco o conheço, mas
Até que alguma coisa aconteça, devo esperar, porque não muito o entendo; e, não importa o que aconteça, eu o aceito.
tenho outra escolha - e mesmo que tivesse ainda esperaria. Sua natureza humana é sentida de milhares de maneiras, invul-
J'Hr e maravilhosa. Estou de fora, no mundo, com uma infi-
rlldade de escolhas. Você não precisa ficar imaginando que
Com tôda a minha consideração, t·sto u me agarrando a alguma coisa por não ter uma régua para
rncdir. Eu o aceito.
A respeito daquele outro lado do disco: você pensava
Eldridge nt(;Smo que eu não sabia? Uma outra facêta do cristal pode
Ner um têrmo mais adequado: eu mesma tenho poucas. Não
k nho mêdo de você e sei que não me ferirá. Seu ódio é grande,
11 tas nem tanto quanto você às vêzes imagina; êle pode ser
u ~ado, mas também pode ser suavizado e acalmado.
Que quantidade enorme de explorações teremos de fazer!
Siulo-me como se estivesse à beira de um nôvo mundo.

136 137
Lembrete para mim: seja racional. Não pode ser resol- I t tt l>~slico. Apenas acontece em livros - ou nos sonhos de
vido. As escolhas: 1. :me acredita em tudo que diz, mas não nlh'tnos de manicômios - e com pessoas que são sinceras.
pode saber, não tem escolha; ou 2. .f: uma bonita simulação c otlllpartilbo com você a terrível sensação de estar à beira de
por que êle não sabe que você, de qualquer maneira, faria exata- ' " "hccer realmente outra pessoa.
mente o que está fazendo por êle; ou 3. .f: uma brincadeira para
quebrar a manotonia, consciente ou não. Resposta: Não faz a Dou grande importância às pessoas que de fato ouvem as
mínima diferença, porque eu não posso descobrir, êle não pode uulras, que têm algo a dizer, porque r aramente se encontra
descobrir, e, de qualquer modo, já é muito tarde. A única coisa tl!•uém capaz de levar a sério a si mesmo e aos outros. Mas
importante é tirá-lo de lá, o que era óbvio desde a primeira carta, , u 11ão era realmente assim quando estava fora da prisão -
com tôda a objetividade de um advogado. 1111hora as sementes existissem, havia muita confusão e loucura
111 1~luradas. Também não estava interessado em me comunicar
Que coisa terrível é alguém sentir-se à beira da possibi-
Hdadc de realmente conhecer outra pessoa. Pode isto ter acon- 1 wn outras pessoas - ·isto não é verdade. O que quero dizer
tecido? Não tenho certeza. Não sei se duas pessoas podem , que eu tinha um desejo profundo de me comunicar e ficar
realmente despir seus pensamentos uma para a outra. Estamos n 111 hccendo outras pessoas, mas era incapaz e não sabia como
I 11~B-lo.
tão cheios de temores de rejeição e ambição que raramente
sabemos se estamos sendo fraudulentos ou, na verdade, sendo Sabe você qual pensamento desp udorado logo r emexeu
nós mesmos. rllinha consciência? Que eu mereço você, que mereço conhecer
De todos os perigos que partilhamos, provàvelmente o maior ,, me comunicar com você, que mereço ter tudo o que está acon-
vem de nossa fantasia um sôbre o outro. Será que estamos enfei- ll't:cndo. O que fiz eu para merecer isto? Não acredito no sis-
tando um ao outro? Não temos meios para testar a realidade. r,•ma de méritos. Eu Sou Quem Sou. Não, eu não a magoarei.
Não posso mais escrever. Estou assombrada por ter escrito
Lembrete para nós: 1 . :ele acredita em tudo que diz e sabe
tanto assim. Tenho receio de ler tudo novamente, porque certa- 11 q ue está dizendo; 2. As simulações são cruéis, e como ~u
mente rasgaria o papel. Assim, enviarei a você como está. poderia ser cruel com você? 3. :ete não está br·incando, não
Pode imaginar o quanto deixei de dizer? Ht:ha a vida monótona, conscientemente ou não. Tem planos
Sinceramente, t• sonhos, P. é extremamente sério. R esposta : faz uma grande
d•k rença, e espero ajudá-la a descobrir, êle já está descobrindo;
Beverly A xelrod.
tomá-lo como você acha é uma queimadura, e subestima a si
própria: faça d istinção e pegue apenas depois que localizar o
'luc gosta - mas espero que seja muito tarde para você vir a
mim porque, certamente, já é tarde demais para mim.
Eldridge Cleaver
Seu julgamento - " de todos os perigos que partilhamos,
Penitenciária Estadual de Folsom
provàvelmente o maior vem de nossa fantasia um sôbre o outro.
Represa, Califómia
Será que estamos enfeitando um ao outro?" - deixa-me preo-
15 de setembro de 1965 \'upado. Seria muito simples caso fôsse assim: eu poderia con-
seguir (e como seria fácil!) passar o resto da minha vida na
rwisão e nós poderíamos viver felizes até o fim. Mas não é
Cara Beverly Axelrod: ' ' ~s im fácil, é? E u procurei um relacionamento duradouro, algu-
Suas cartas são para mim pedaços vivos - grandes! - de ma coisa permanente num mundo em mutação, no qual tudo é
você, e são as coisas mais importantes da minha vida. Isto é lnmsitório, efêmero e cheio de dor. Nós, humanos, somos cria-

138 139
turas muito frágeis para controlar tais emoções titânicas e aspi- para nos humilhar lembrando-nos de quão pouco conhecemos
rações, esforços e impulsos profundamente magnét.icos. os sêres humanos, a nós próprios. Não sabia que sentia tudo
A razão pela qual duas pessoas relutam em realmente se Jlito dentro de mim. Agora, tudo isto cai como cascata sôbre
despirem de corpo e alma, uma diante da outra, é porque, fazen- 111inha cabeça e ameaça jogar-me no chão, na poeira. Mas,
do isto, elas se tornam vulneráveis e dão eJlorme poder sôbre d~.:vido a fôrça do impulso magnético que tenho por você, não
si à outra. Quão tremenda, quão extrema, quão catastrofica- 1111.: intimido e sei que posso agüentar firme.
mente podem elas ferir-se, destroçar-se c arruinar-se para sem- Eu respoito você mesmo em sua ausência. Tenho o mau
pre! Quão freqüentemente, na verdade, terminam infligindo dor h5bito de, quando falo de mulheres numa roda exclusivamente
e tormento uma à outra. O melhor é manter ligações insípidas masculina, referir-me a elas como putas. Esta puta aqui, aquela
e superficiais; desta maneira, as cicatrizes não são tão profundas, puta ali, você entende! Há pouco tempo, falava sôbre você
nenhum sangue escorre da alma. Você falou maravilhosamente com uns cortadores de gargantas e disse: "Essa puta . .. " E
- ú, que beleza!! - em sua carta sôbre "que coisa terrível é 11cnti muita vergonha de mim mesmo. Fiz uma autocrítica e
alguém se sentir à beira da possibilidade de realmente conhecer r.ofri espiritualmente durante dias seguidos. Isto pode parecer
outra pessoa .. . " e "sinto-me como se estivesse à beira de um 111significante, mas dou-ll1e grande importância em virtude da
mundo nôvo". Conseguir conhecer algném, entrar nesse mtmdo corrente de pensamentos que tal fato desencadeou. Interesso-
nôvo, é um salto supremo e irreparável para o desconhecido. A file por você, preocupo-me com você, e tudo é muito nôvo e
perspectiva é teuificante. Os perigos são muitos. As emoções l'Stá muito longe daquele Eldridge X.
são irresistíveis. Na experiência humana, somente os temas pe- Sua persistente pergunta, "como pode êle dizer? êle não
renes podem nos mover em tal extensão. Morte. Nascimento. lcm escolha", merece uma resposta. Mas não é o tipo de per-
O Túmulo. Amor. ódio. gunta que possa ser respondida por palavras. É preciso tempo
Não acredito que um relacionamento puro tenha de termi- l' ações, e isto envolve confiança, significa tornar-nos vulneráveis,
nar sempre em violência. Não acredito que tenhamos de ser despirmo-nos de corpo e alma, transformarmo-nos em alvos
fraudulentos e simuladores; porque esta é a fonte das dificul- fáceis - e se um dos alvos está fingindo, então o alvo sincero
dades futuras e do fracasso. Se projetarmos imagens fraudu- pagará com a dor - mas o alvo falso, acho eu, será o der-
lentas e simuladas, ou se fantasiarmos um ao outro em carica- rotado. (Se ambos os alvos estiverem fingindo, nossa mãe!
turas destorcidas do que realmente somos, então, quando acor- Oue fiasco, que simulação, que coisa desprezível! Rio do que
darmos do transe e olharmos além da falsidade e das aparên- finge, porque não tem poder sôbre mim, não me sinto vulne-
cias, tudo se dissolverá, tudo morrerá e se transformará em rável, e sim protegido pelos olhos fa iscantes de Pórcia. Estendi
rancor e ódio. Sei que algumas vêzes as pessoas fingem umas minha confiança a você. Sou vulnerável e indefeso e faço de
para as outras sem motivos e com o objetivo de se apegarem mim um alvo para você.)
aos seus mais ternos sentimentos. Sentem-se tão insuficientes Preste atenção: sua carta é maravilhosa e você surge repen-
que se vêem forçadas a usar uma máscara, de maneira a impres- tinamente. Ao aparecer, desce e coloca os pés, envolvidos em
sionar continuamente a outra. Eu não quero "prendê-la", e desejo snpatos cheios de pregos, diretamente sôbre meu coração. Não
que você se "liberte" de sua própria necessidade de mim. se trata de estarmos enfeitando um ao outro, e não somos apenas
Procuro o que é profundo. Ao contrário do conselho do nós que estamos sendo envolvidos pelo que nos acontece. É
Profeta, fico com o crédito e deixo escapar o seguro. O que realmente um movimento complexo que está se processando e
sinto por você é profundo. Beverly, há alguma coisa em relação no qual somos simples partes. Representamos fôrças históricas
a nós dois que é fora do comum. Algo para se escrever um c, na verdade, são elas que estão se misturando e movendo-se
livro, para os poetas se inspirarem, para silenciar os cínicos e na direção de cada um de nós. E também não é uma farsa

uo 141
imposta pelo desespêro. Vivemos numa estrutura social deso-
rientada e desorganizada, e ultrapassamos suas barreiras do
nosso próprio modo, passando psicologicamente para uma área
longe de suas loucuras e repressões. Reconhecemos um ao
outro. E, tendo nos reconhecido, não seria marav·ilhoso que
nossas almas dessem as mãos e permanecessem unidas, mesmo
enquanto nossas consciências se enganam, vacilam, hesitam e
estremecem? IV. Mulher Branca,
Paz. Não se atemorize, e não desperte. Homem Negro
Continue sonhando. Seu,

Eldridge.

142
A Alegoria dos Eunucos Negros

SENTEI-ME para comer o feijão numa mesa de quatro co~


1l t11sde meus antigos colegas de prisão: jovens, fortes e super-
lativos Eunucos Negros em tôda a sua plenitude. Pouco depois,
um Lázaro velho e gordo, de cabelos grisalhos, lisos e lustrosos,
.u tificialmente esticados, com um sorriso agitado e alegre, que
11 fazia parecer um chocolate da marca Papai Noel, convidou-se
fl.lra a nossa mesa e sentou-se na cadeira em frente à minha.
Sorrisos irônicos acenderam nossas faces negras e um fogo inten-
MJ ardia em nossos olhos enquanto examinávamos aquêle Lázaro
1nlrometido.
Uns poucos minutos se passaram em silêncio.
Eu e meus colegas tlnhamos um pensamento a respeito de
ucgros velhos como aquêle ali, sentado bem na minha frente.
I !avia alguma coisa em seu tipo, a maneira como se compor-
tnva, que desprezávamos. Nós o classificávamos como um Tio

145
--- ---~

Tom - não que o tivéssemos visto curvando-se e lambendo os um modêlo, com orguJho - com reverência! Mas não,
l llt.t l ,
sapatos do homem branco, mas sabíamos que os rebeldes negros 11 r l'tardatário
bajulador, você se atreveu a manter-se apegado
de sua idade não mais caminhavam pelas ruas da Amér.ica: ou ' u,t miserável vida, a envelhecer c ficar com os cabelos bran-
estavam mortos, presos, ou exilados em outro país. Ou qualquer gurduchão e acovardado!
outra coisa. Assim, já tínhamos uma opinjão formada sôbre O Acusador parou de falar e começou a comer o feijão
êle, um tipo fingido que proljfera no gueto negro. Apesar de '"' ;tr de vingança, como se cada grão fôsse um homem branco,
não ser um opositor passivo (e não se tratava de um não-vio- 111.tgnndo-os com a colher.
lento), estava morto dentro de outro negro; e, apesar do homem - O que há de errado com êsse sujeito, hoje? - pergun-
branco lhe ter arrancado tôda a vida, tôda a raça, permanecia tou o Acusado, com o rosto deformado pela perplexidade e ner-
falando a respeito do que faria se o homem branco lhe tivesse \tt~tsmo.

feito alguma coisa pessoalmente. Se apenas falar derrubasse um - Está doente - tentei eu, para ver como o Infiel rea-
go~êrno, êle já estaria no poder. De um certo ponto de vista, f tllll.
od1ávamos êste negro, mas no fundo ficávamos fascinados com - Deve estar doente - disse o Acusado, mexendo o café
os curiosos têrmos aos quais êle chegara em sua relação com f 1111idamente. - Tôda esta conversa estúpida sôbre morte e
o mundo. ttl llrrc r.
Pouco depois, e sem nenhuma provocação aparente, o jovem - Sim, estou doente! - descarregou o Acusador, quase
Eunuco do meu lado esquerdo, batendo com a mão fechada sôbre ~ ~~rocado, falando entre os feijões. - Você me faz ficar doente,
a mesa para dar mais ênfase, esbravejou: M:tlusalém! O que está tentando fazer, ganhar uma competição
- Velho Lázaro, como é que você ainda está vivo? tll· longevidade? Como é que conseguiu êsses cabelos brancos?
- O quê? - perguntou o Infiel, surprêso mais pela ma- c 'omo se arrumou para sobreviver? e, sim. Estou doente,
neira súbita e o tom ameaçador em que lhe foi feita do que pela dncute, doente.
própria pergunta. (Afinal, tôda a sua geração fôra interrogada - Eu também - disse o Eunuco à minha direita, falando
com a mesma pergunta, de milhões de maneiras diferentes : 1wla primeira vez.- Estou doente, doente, doente.
Charlle Parker perguntou a Lester Young, D izzy GiJiespie a - Eu também estou - acompanhei.
Louis Armstrong, Mao Tsé-Tung a Chiang Kai-Shek, Fidel Cas-
- Qual é o nome desta bricandeira? - perguntou o Lá-
tro a Batista, Malcolm X a Martin Luther Kiog, Robert F.
I MO, tentando, na surdina, dar uma nota de frivolidade. - É
Williams a Roy Wilkins, Norman Mailer aos Quadrados Totali-
tários.) A pergunta foi penetrando vagarosamente e, enquanto nova para mim.
isso, o sorriso de Papai Noel transformava-se, mostrando sinais Era algo cruel que estávamos fazendo e nós o sabíamos,
de pânico, numa contração no canto esquerdo de sua bôea oleosa. porque havíamos feito o mesmo antes com outros. Em certo
Seus olhos, escuros, pequenos e redondos, saltaram e fixaram-se 'il'lllido, estávamos apenas brincando com êle, testando-o, exa-
no interrogador. ttlinando-o, estudando-o, mas em outro plano falávamos a sério.
- Perguntei-lhe por que ainda não está morto? - repet.iu O Lázaro, percebendo a ambigüidade, ficou confuso.
o Ellnuco à minha esquerda. . - Você sabe qual a diferença entre um gorila e um guer-
- Por que eu deveria estar morto? Eu não enten ... l'ilheiro? - o Eunuco à minha direita perguntou ao Acusado.
- Se você tivesse sacrificado a vida - o Eunuco inter- O Lázaro parecia estar procurando uma resposta.
rompeu-o poderíamos pelo menos respeitá-lo. Poderíamos - Vou tornar as coisas mais fáceis para você - pros-
pela menos djzer que você foi um homem - um grande homem. :;t.:guiu o Eunuco. - Você é um gorila, e um guerrilheiro é tudo
Pelo menos poderíamos apontar para o seu túmulo como um aquilo que você não é.

146 147
- - - -

- - -- - - -==--- -

O Acusado abriu a bÔca pata responder, mas o Eunuco à ~'"' fraqueza. D êem-lhe a mínima liberdade e ela os crucifi-
minha esquerda, que atirara a pr-imeira pedra, cortou-o. ' "... Tenho ódio das putas negras. Não se pode confiar nelas
- Um guerrilheiro é um homem - disse com imperti- ''"11o nas mulheres brancas, e se a gente tenta, elas não dão
nência, os olhos brilhando - mas você é uma espécie de aber- \,llor c não sabem como agir. g a mesma coisa que tentar
ração da natureza! tn•mar uma cobra. Intimamente, tôdas gostam do homem bran-
Seguiu-se um silêncio em que todos procuravam e inter- ,u. algumas lhe dirão isso na cara, outras através de ações e
rogavam a si próprios. Alguém pensou em sangue, revólver e p.llavras. Vocês nunca repararam que, assim que uma mulher
facas, clticotes, cordas, correntes e árvores, gritos, linchamento, lll'gra tem êxito na vida, casa-se com um homem branco? E
mêdo, cassetetes, cães policiais e mangueiras de bombeiros, 1.110 por experiência própria. Conheço uma puta negra que sem-
incêndios, feridas e bombas, mulheres sofrendo e jovens deson- (II C diz que não existe nada que um homem negro possa fazer
radas, mentiras, zombarias, garotos gelados de frio e rapazes por ela, exceto deixá-la a sós ou buscar ou levar um bilhete
castrados, velhos ·indefesos, môças fisicamente viciadas e psicolo- pura o homem branco.
gicamente massacradas ... - Não existe amor entre um homem negro e uma mulher
Passados alguns momentos, perguntei ao Acusado, em voz negra. Vejam eu, por exemplo. Amo as mulheres brancas e
neutra: odeio as negras. Está dentro de mim, tão profundo que já não
- Você já trepou com uma mulher negra? lunto mais arrancar. Eu pularia em cima de dez putas crioulas
Como se êle tivesse um interruptor ligado ràpidamcntc, seus nrcnas para conseguir uma mulher branca. E não tem êsse
olhos acenderam, ansioso pelo que pensava ser uma mudança de negócio de mulher branca feia. A mulher branca é bonita mes-
assunto. O Lázaro mordeu a isca. O brilho de seus olhos tor- mo que seja careca e tenha apenas um dente. . . Não é apenas
nou-se maligno no momento em que se debruçou sôbre a mesa o Iato de que ela é uma mulher de quem gosto; admiro a sua
e me disse, confidencialmente: pele lisa, macia, pele branca. Fico satisfeito só de lamber sua
- Quisera ter um níquel por cada puta que levou uma pele branca como se brotasse mel dos seus poros, e acariciar
pirocada minha! Seria tão rico agora que vocês, seus atrofiados, seus cabelos longos, sedosos e macios. Existe uma suavidade
teriam de fazer seus pedidos com seis meses de antecedência envolvendo a mulher branca, algo delicado e suave no seu inte-
para conseguirem apenas me ver. Vamos ficar sozinhos. Sen- rior. Mas uma puta negra me parece feita de aço, dura e resis-
tem-se numa mesa comigo. tente como pedra, sem a suavidade e docilidade da mulher
- Uma porrada bem dada no seu pescoço com uma cimi- branca. Não há nada mais maravilhoso do que os cabelos de
tarra é a solução para todos os seus problemas, Lázaro! - uma branca sendo soprados pelo vento. A mulher branca é
disse com um silvo o Acusador, o Eunuco à m inha esquerda, mais do que uma mulher para mim. . . e como uma deusa, um
com os lábios tremendo de raiva. símbolo. Meu amor por ela é religioso e vai além da imagi-
- O que quer dizer com isso? - perguntou o Acusado, nação. Eu a adoro. E adoro as calcinhas sujas de uma branca.
fingindo não ter percebido. - Algumas vêzes, penso que o meu sentimento pelas mu-
- :Ble quer dizer o que eu digo - disse o Eunuco à lheres brancas deve ter sido herdado de meu pai, e do pai do
minha direita. - Que durante quatrocentos anos você teve meu pai, e do pai. . . o mais distante que possamos retroceder
mêdo do feitor, mas chegou a hora de conhecer o mêdo de sua na escravidão. Devo ter herdado de todos êsses homens negros
própria espécie. parte do meu desejo pela mulher branca, porque o meu amor
- Ufa! - bufou o Acusado, e levou uma colher cheia por ela é maior do que o que qualquer homem possa ter tido.
de feijão à bôca, mastigando-o distraidamente. Passados alguns E verdade, desejo tôdas as mulheres brancas que êles dese-
minutos, voltou a falar. - As mulheres negras tomam a afeição jaram, mas que nunca foram capazes de conseguir. .Bles foram

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passando êste desejo para mim, e realmente o passaram; é como • .t.1rá contaminada, envenenada e corrompida; e eu continua-
um tumor corroendo meu coração c devorando meu cérebro. li I sendo um escravo - e assim continuará a mulher branca.
Nos meus sonhos, vejo mulheres brancas pulando uma cêrca - Você pode não acreditar nisto ... quando vou para a
como delicados cameirinhos; e, cada vez que uma delas salta, 1 .lllHI com uma puta crioula, fecho os olhos e me concentro, e
os cabelos são soprados pela brisa e espalham-se por trás da h1~•o começo a acreditar que estou trepando com uma daquelas
cabeça como a crina de um garanhão Pa!omino: louras, ruivas, louras curvilíneas. Conto-lhe a verdade, esta é a única maneira
morenas, louras avermelhadas, louras sujas, louras oxigenadas, 1k ''traçar" uma negra, fechando os olhos e pensando que ela
louras platinadas - todos os tipos. Elas são as côres dos meus I' J czcbcl. Se olhar para baixo e a vir debaixo de mim, ou se
pesadelos. Será que -isto está parecendo invenção minha, gente u1inha mão tocar em seu cabelo crêspo, isto seria o fim, estaria
môça? tudo acabado. O melhor seria eu me levantar e cair fora, porque
.rue fêz sinal para mim; dirigia-me a pergunta. Levei algum nao terminaria mais nada, mesmo se ficasse a noite inteira mon-
tempo çara responder. Preferia ficar calado. Mas clisse: tado nela. O homem negro que disser que não trepa com a sua
- Por que você mentiria para nós? Quero clizer, ninguém .lczcbel é um mentiroso deslavado. Acredito que se um líder
pode ser completamente verdadeiro em tudo que diz, e você desejasse unir os negros num bloco sólido, poderia fazê-lo fàcil-
me deu a impressão de estar falando francamente ... mcnte. Tudo que teria a fazer era prometer a cada homem negro
Por dentro êle ria, e eu podia ver nos seus olhos. Então, uma mulher branca e a cada mulher negra um homem branco.
voltou a falar: Teria tantos seguidores que não saberia o que fazer com tarita
gente. Acredite-me.
- Bem, fiquei matutando sôbre isto durante anos. A
gente tem de tentar compreender o que está nos incomodando, - E vou dizer mais a vocês, gente môça; algo de que
não gosto de falar. Detesto falar a respeito destas merdas ...
entendeu? Mas, realmente, não acredito que possa compreender
Vocês aí, meus chapas, estão muito cheios de si. Pensam que
algo de alguma coisa e menos ainda quando se tem que ordenar
tudo. Mas eu me embeicei comigo mesmo e passei a aceitar os sabem muita coisa sôbre vocês, mas realmente não sabem nada,
meus próprios pensamentos. Por exemplo, não sei exatamente nem de vocês, nem de suas mulheres, nem a respeito da gente
como a coisa funciona, quero dizer, não consigo analisar, mas branca. Provàvelmente, vocês não acreditarão no que eu vou
dizer: é algo que incomodará o ego de vocês. Mas, de qualquer
sei que o homem branco fêz da mulher negra o símbolo da escra-
maneira, vou lhes contar.
vidão e da mulher branca o símbolo da liberdade. Tôdas as
vêzes que abraço uma mulher negra estou abraçando a escra- O Lázaro fêz uma pausa e contorceu-se, como se tentasse
vidão, e quando envolvo em meus braços uma mulher branca, acomodar melhor o traseiro na cadeira. Quando falou nova-
bem, estou apertando a liberdade. O homem branco proibiu-me mente, sua voz estava trêmula:
de possuir a mulher branca sob a pena de morte. Literalmente, - Aquêle que adora a Virgem M aria cobiçará a linda
se tocar a mulher branca, vou pagar com a vida. Os homens loura. Aquela que anseia ser arremessada nos braços de Jesus,
morrem pela liberdade, m as os homens negros morrem pela ricará excitada com os olhos azuis e os braços brancos do rapaz
mulher branca, que é o símbolo da liberdade. ~ste foi o desejo tipicamente americano.
do homem branco e, enquanto êle tiver o poder de impor sua A essa altura, Lázaro parou e ficou procurando nossas faces.
vontade sôbre mim, de forçar-me a aceitar o seu desejo, neste Mas nossos rostos eram máscaras impenetráveis e, assim, não
assunto ou em outro qualquer, não serei livre. E não serei lhe demos o menor sinal.
livre enquanto não puder ter uma mulher branca em minha - A guerra que está sendo travada entre o homem negro
cama e enquanto o homem branco não se preocupar com suas c o homem branco - prosseguiu - não é a única. A vida
própr.ias questões. Até êste dia chegar, tôda a minha existência está cheia de guerrinhas e a gente combate em tôdas ao mesmo

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tempo. Ê necessária uma grande estratégia para enfrentar tôdas mente em competições do mesmo nÍvel. Dentro desta mecâ-
as hostilidades, precisa-se ter um estilo, e se há alguém fazendo nica, o Cérebro e o Corpo são mutuamente exclusivos. Não
guerra contra você sem que você saiba, bem, você está em pode haver urna verdadeira competição entre superiores e .infe-
maus lençóis, está completamente perdido . . . Está sendo tra- riores. Por isso tem sido tão penoso para os negros, histori-
vada uma guerra entre o homem e a mulher negra, que a trans- camente, romper a barreira da côr no esporte. Uma vez rom-
forma numa aliada silenciosa, indireta mas efetivamente, do pida, a magia evapora-se; e, quando o homem negro começa
homem branco. A mulher negra é uma aliada inconsciente e n tomar vantagem num determinado esporte, a pergunta começa
talvez nem perceba isto, mas o homem branco certamente per- a flutuar em todos os lugares: "O boxe está morrendo? O bei-
cebe. Esta é a razão, em tôda a história, de ter êle feito com sebol está por baixo? O que aconteceu com o futebol? Para
que ela subisse econômicamente acima de vocês e de mim, para onde está indo o basquete?" Na verdade, o nôvo símbolo da
fortalecer a sua mão contra nós. Mas o homem branco é um supremacia branca é o gôlfe, porque ali o Cérebro domina o
·idiota porque também está travando uma guerra com a mulher Corpo. Mas, tão logo o Corpo começa a arrebanhar alguns
branca. E não termina aqui: os homens brancos se combatem troféus, a pergunta voltará a ser feita: "O que aconteceu ao
entre si. gôlfe?" X
- O mito da muUler negra robusta é a outra f.ace do mito - Tudo isto ficou claro quando Joe Louis destruiu Max
da· loura maravilhosa e estúpida. O homem branco transformou Schmeling na segunda luta. Schmeling era o tipo do ídolo que
a mulher branca num delicado objeto de cabeça ôca e corpo o homem branco acalentava e venerava em seu coração. Mas
frágil, uma jarra do sexo, e colocou-a sôbre um pedestal; e os brancos aplaudiram Joe por esmagar Schmeling. Por quê?
transformou a mulher negra numa Amazona forte autocon- Por que a vitória de Joe sôbre Schmeling simbolizou o triunfo
fiante para depositá-la em sua cozinha; êste é o segrêdo do da democracia capitaüsta sôbre o nazismo? Não! Talvez isto
avental de Tia Jem.ina. O homem branco transformou-se no tenha pesado um pouco, mas intimamente êles aplaudiram Joe
Administrador Onipotente e estabeleceu-se no Primeiro Pôsto. pela mesma razão que desprezaram Ingemar J obansson, embora
E transformou o homem negro no Criado Supermasculino, chu- o tenham recompensado generosamente, por nocautear Floyd
tando-o para os campos. O homem branco deseja ser o cérebro Patterson. A vitória de Joe sôbre Schmeling, confirmou, apesar
e quer que sejamos os músculos, o corpo. Tudo isto está entre- da derrota de F loyd contradizer, a imagem que o homem branco
laçado de uma maneira louca, que jamais consegui esclarecer. tem do Negro como Criado Supermasculino, a personificação da
As vêzes, parece-me absolutamente clara e, outras, não acre- fôrça bruta irracional, o escravo perfeito. E Sonny Liston, o
dito. Lembra-me dois pares de algemas prendendo a nós qua- Corpo irracional, é enaltecido em relação ao barulhento e fala-
tro, reunindo tôda a carne branca e negra num certo molde. grossa Cassius Ciay, porque, afinal, é preciso pelo menos um
Daí se explica, quando se desce ao nível mais profllndo, o cérebro de passarinho para dirigir um fala-grossa, e o homem
porquê do homem branco não querer que o homem negro, a branco despreza êsse pouquinho de cérebro num homem negro.
mulher negra ou a mulher branca, tenham uma educação mais E quando Clay, o grosseirão barulhento, abdicou de sua imagem
aprimorada. A ilustração dêstes ser.ia uma ameaça à sua oni- como Corpo e tornou-se Muhammad Ali, o Cérebro, os bran-
potência. queias não puderam suportar sua impertinência! O homem
- Vocês nunca perceberam por que o homem branco nor- branco gosta do Criado Supcrmasculino: John Henry, o homem
malmente aplaude o negro que se destaca com o corpo no ter- guiado pelo aço, todo Corpo, pôsto de joelhos pela Máquina,
reno do esporte, enquanto odeia ver um homem negro se desta- que é o símbolo fálico do Cérebro e o supremo ide-al do Admi-
car com o cérebro? A mecânica do mito exige que o Cérebro nistrador Onipotente. Para a maneira de pensar do homem
e o. Corpo, como o leste e o oeste, nunca se encontrem, especial- branco, êste era o sistema perfeito das imagens socia.is. Mas,

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como todos os sistemas perfeitos, tem uma gigantesca brecha Onipotente, pode fazer isto! Mas pode-se capturar o corpo num
bem no centro. momento de excitação, numa frustração violenta e cheia de ódio
- O Administrador Onipotente concedeu ao Criado Super- por esta grande brecha do plano perfeito, esta chave-inglêsa da
masculino todos os atributos da masculinidade associados com mríquina perfeita, amarrar o Corpo na árvore mais próxima e
o Corpo: v.igor, fôrça bruta, músculos, e até mesmo a beleza nrrancar o seu estranho fruto, conservando-o numa garrafa e
do corpo bruto. Exceto um. Havia um único atributo da lc•l'ando-o para casa para entregá-lo à linda loura estúpida e,
masculinidade ao qual êle não desejava renunciar, embora êste d<'pois, regozijar-se na mentira de que não o Corpo, mas o Cére-
predicado particular fôsse a essência e a sede da masculin.ida~e: hro é o homem.
o sexo. O pênis. O pênis do homem negro era a chave-mglesa O Lázaro parou de falar c ficou sentado com a bôca aberta.
perdida nas engrenagens da máquina perfeita do homem branco. Sua respiração estava acelerada, como se tivesse corrido e ficado
O pênis, virilidade, é do Corpo. Não é do Cérebro: o Cérebro sem fôlego. O Eunuco à minha esquerda arregalara os olhos e
é neutro, HOMO, MÁQUINA. Mas na partilha que o homem ficara fitando o espaço, o que fazia deliberadamente para evitar
branco impôs ao homem negro, êste recebeu o Corpo como seu que alguém percebesse o ar de espanto que, eu sabia, seus olhos
domínio, enquanto êlc se apropriava antecipadamente do Cére- certamente Iefletiam. Os pensamentos recusaram cristalizar-se
bro. Pouco tempo depois, o Administrador Onipotente desco- 1.:111 minha mente; despejei mais café na minha xícara e assim
br·ÍU que, na impetuosidade do seu ardil, êle se confundira e se que a aproximei dos lábios soprei suavemente a superfície espu-
privara do pênis (Reparem a imagem minúscula que o homem mosa e escura, e fiquei olhando por sôbre a borda da xícara
branco faz de seu pênis. Ele o chama de "pica", "piroca", para o Infiel, que permanecia sentado com o rosto contorcido,
"rôla".) Assim, êle renegou a barganha. Chamou de vo'lta o mordendo seu grande lábio inferior como se estivesse lutando
Criado Supermasculino e disse: - Olha, rapaz, temos um para lembrar-se de alguma coisa, ou talvez para compreender ou
pequeno ajuste final a fazer. Eu continuo sendo o Cérebro e imaginar algo. Parecia confuso. O Eunuco à minha direita
você o Corpo. Mas, a partir de agora, você cuidará do batente permanecia contemplando o prato de feijão.
e eu cuidarei das trepadas. O Cérebro precisa controlar o Corpo.
De repente, o Infiel levantou os olhos e encarou-me. Via-se
P ara provar minha onipotência, preciso corneá-lo e agrilhoar
no seu olhar uma expressão cruel c mortificada. Eu podia sentir
suas "bolas" de touro. Restringirei o raio de ação de sua "vara"
como era grande a sua dor c aflição. Aquilo me fêz ter mêdo
e limitarei o seu alcance. Minha "pica" sobrepujará sua "vara".
- não tanto do Infiel mas de mim mesmo, da minha geração,
Já fiz os cálculos e terei a liberdade sexual. Vou controlar sua dos meus colegas, porque não tinha certeza se eu, nós, sabíamos
"vara" com minha vontade onipotente, e impor limitações às o que fazer ou se aprenderíamos antes que fôsse muito tarde,
suas aspirações; c, se violá-las, você estará sujeito à pena de c se seríamos capazes de escapar, algum dia, àquela mesma dor
morte. . . Terei acesso à mulher branca e à mulher negra. A profunda, de mim, de nós mesmos. Parecia-me, naquele mo-
mulher negra terá acesso a você - mas também a mim. A mento, e sabia que o mesmo pensamento corria através das
mulher branca terá acesso a mim, o Administrador Onipotente, mentes de meus colegas Eunucos, que qualquer destino, a morte,
mas não permitirei que ela chegue até você, o Criado Super- a câmara de gás, a cadeira elétrica, o pelotão de fuzilamento,
masculino. Sujeitando sua masculinidade ao contrôle de minha a heroína, o suicídio - qualquer coisa, enfim, seria melhor do
vontade, estarei também lhe controlando. A haste do Corpo, o que submeter-se à terrível e insuportável dor à qual o Infiel
pênis, deve submeter-se ao desejo do Cérebro. aprendera a acostumar-se. Senti um calor latejando em meus
- Era a solução perfeita, apenas não funcionava. Somente culhões. Instintivamente, e com uma sensação de pânico, levei
conseguiu ocultar a verdade. Na verdade, não se pode dissociar a mão até o meio das coxas quase temendo que minha "vara"
o pênis do Corpo! Nem mesmo o Cérebro, o Administrador tivesse desaparecido, mas ela estava lá, ereta, e apertei-a. Uma

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onda de vigor rolou pelo meu corpo. Senti-me potente e sabia ' continuei tentando dormir. Não tive sonhos nem nada. Foi
do que ser.ia capaz, caso nunca traísse a lei da minha "vara". 11111 sono profundo, pacífico e suave. Posso ainda lembrar o ex-
O Infiel sorriu e, então, tive certeza que êle lera meus pensa- t,tsc da~uele sono. Nunca na minha vida experimenta~a coisa
mentos. Respirou forte e recostou-se na cadeira, começando tt.~~•al, tao cheia. de felicidade. Quando acordei, ela segurava
a falar com voz pausada, quase monótona: n~t.nha cabeça de1~ada no seu colo e seu rosto possuía um brilho
vu tuoso e maravill10so, uma expressão extremamente estranha
- Certa ocasião, tive uma mulher - não, uma puta! - l'rll co~paração com tudo que eu vira antes. Então, lembrei-me
que tinha um sôco como o de Sugar Ray Robinson. Eu era do camvete e um grande temor se apoderou de mim. Saltei
obrigado a nocauteá-la tôdas as noites de sábado. Começava pa~Aa ~ chão e ~lhei ao red_?r. Ela fechara o canivete, quebrara
sempre uma discussão e, depois, avançava contra mim, igual .t 1.1mma. e o. at•.rara no chao do quarto. Meu estômago tremeu
a um homem. Como você pensar·ia em tratar uma puta que quando 1magme1 a grande chance que eu tivera.
não pode viver com você sem brigar? E ela não precisava se - Afin_al, ficamos em pa.z; durante cêrca de um mês.
enervar comigo para começar a briga. Fiz a experiência. Limi- Nossas relaçoes foram insufladas com nova vida e vitalidade.
tei-me, um dia, a ficar de pé, olhando-a de modo a fazê-la Ourante _aquêle tempo não tivemos uma única briga, nenhuma
entender que eu não me importava com o que ela dizia, da palavra asp~ra passara entre nós. Aque.la pedra, aquêle aço
mesma forma como se lhe dissesse : "Olha, menina, isso é com ( q u~ eu od~t o na puta negra !) desaparecera. E, estranhamente,
você. O que quer que possa acontecer, você será a culpada". scnt1-';lle agmdo com naturalidade, sem pretensões a respeito dela.
PUM! Ela atingiu-me na bôca. Foi então que cheguei à con- Parec1a, naqu~Jcs dias, como se estivéssemos dançando, perfei-
clusão de que ela não podia aceitar-me como homem, a menos tamente, no ntmo e no passo um do outro. Um dia erftão
que agisse como o Corpo, exercendo fôrça física. Não revidci estávamos passeando de automóvel e avancei um sinal ~marel~
o sôco. Fiquei furioso, com a maior raiva que já senti na vida. um pouco tarde demais, e logo um tira de motocicleta veio ao
Na verdade, acho que fiquei momentâneamente fora de mim. meu encalço.
Agarrei-a pelo braço, puxei meu canivete de mola - com uma
lâmina de oito polegadas - armei-o e obriguei-a a sentar-se - Hê, rapaz - disse êle para mim. - Você não sabe
distinguir côres?
no sofá. No momento, podia ver que pensava que tudo estava
acabado para ela. Seus olhos ficaram tão grandes quanto os Não queria uma mu1ta e, portanto, decidi falar com êle
de uma vaca e ela estava realmente apavorada. Coloquei o cani- fran?am~nte. Fiz a minha parte, dei-lhe um grande sorriso e
vete na mão dela e forcei-a a ficar com êle. Deixei então os expliquei que r~atmente lamentava o ocorrido, que pensara poder
braços caírem em tôrno do seu corpo e pousei a cabeça sôbre ultrapassar o smal a tempo, mas meu carro era muito velho e
seu colo. A mulher ficou furiosa . Ameaçou cortar a minha vagaras~. .!::te falou rispidamente comigo, e lançou-se em um
jugular se não saísse dali. Não era meu hábito e tampouco longo d1scurso sôbre a importância de saber obedecer às leis
tinha a intenção de levantar-me. Parecia que, se eu o fizesse, e regulamentos e da impossibilidade de uma sociedade ser con-
não teria o prazer de viver outro segundo. Esta foi a sensação o:olada e administrada sem obediência às leis. Limitei-me a
que senti; se me levantasse e a deixasse agir ou tentasse me pro- dizer uma porção de "Sim, Senhor" e "Não Senhor" e êle
teger de qualquer maneira do canivete, não teria outra oportu- mandou que cu fôsse andando e que me comp~rtasse co~o um
nidade de continuar vivendo. Assim, fiquei prostrado naquela bom meruno. Quando arranquei, lancei o olhar para a minha
posição com a jugular exposta para ela e para o canivete. Tentei mulh~r e vi que estava de mau humor. Aquela doçura do mês
dormir. A princípio, ela tentou tirar minha cabeça do seu colo, antenor desaparecera e eu podia sentir novamente a pedra e
depois parou c, então, começou a chorar. Eu podia sentir os o aço. Quando. chegamos em casa, ela começou a discutir comi-
soluços sacudindo o seu corp o. Mas mantive os olhos fechados go, mas rccuset-me a responder. Sem dizer nada, arrumou e

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empacotou seus pertences e deu no pé. A puta me virou pelo atravessando seu coração. É o mesmo que sua mulher, durante
avêsso. Nunca fôra deixado daquela maneira tão repentina! o orgasmo, gritar o nome de algum cara mesquinho que mora
Ela arrumou um outro macho. E costumavam brigar até na rua. no mesmo quarteirão.
O cara se acostumou a gostar de brigar tanto quanto ela. Foram
- Agora, há uma coisa que quero dizer e que está dire-
muito felizes juntos. Mais tarde, ela matou o sujeito. Enfiou-
tamente relacionada com isto. Para ser franco, nunca com-
lhe umas balas no corpo em plena rua, como se fôsse um
preendi ·isso e não acredito que jamais consiga. Mas eu vi o
cachorro - e, por fim, venceu a questão no tribunal. Consi-
negócio funcionando e pode ser que vocês, irmãos, compreen-
deraram homicídio justificável.
dam, o que lhes será útil e os auxiliará. Existe uma doença
- Então, a puta mudou de nome e começou a cantar nos brancos que se localiza no centro de sua loucura e os faz
como profissional. Cantava bem mesmo, e o seu nome e retrato agir de maneiras diferentes. Mas existe uma destas maneiras que
estavam em tôdas as revistas e jornais. Eu costumava ver suas os obriga a agir de tal modo que parece contradizer tudo que
apresentações nos night-clubs. Aí, adivinhem o que ela fêz. conhecemos a respeito dos branqueias, e que choca muitos
Casou-se com um homem branco! O cara era um duro, um negros quando os encontram. . . Existem homens brancos que
vagabundo, não tinha nada vêzes nada. Não tinha nem um lhes pagarão para que trepem com suas espôsas. 'Sles se a~ro­
tostão quando casou-se. Ela lhe dava todo o dinheiro. tle ximam de você, e dizem : "Gostaria de foder uma mulher
controlava sua conta bancária e comprou um grande e extra- branca?" "O que quer dizer?", você pergunta. "No toma lá,
vagante cabaré. Depois, divorciou-se dela. A puta perdeu a dá cá", êle garante. "É muito simples. Ela é a minha mulher.
bossa artística e começou a cair, cair, cair. Seu potencial de E precisa de vara de negro, é tudo. E precisa mesmo. É como
ganhar dinheiro reduziu-se. E pôs a vida tota lmente de lado um remédio ou uma droga, para ela. Precisa mesmo. Eu
e começou a cantar músicas de igreja. O spirttual. Entrou para pagarei. É tudo no sério, nada de truques. Interessado?" E
a igreja e tornou-se uma verdadeira religiosa. Tod.os d iziam
A você va-i até a casa dêle. Os três vão para o quarto. Há um
que ela se apaixonou por Jesus e que encontrou nele, fmalmentc, cer to tipo que deixa você e a mulher dêle sàzinhos, e ainda
seu homem certo. E é onde ela está neste momento, naquela pede que você lhe dê uma boa surra de pica. Quando tudo
igreja. termina, êle lhe paga e o leva de automóvel para onde você
- Desde então, passei a acreditar que, para uma mulher quiser ir. Também há aquêle tipo que gosta de espreitar pelo
negra, casar com um homem branco é como acrescentar a estrêla buraco da fechadura paxa ver você trepar a mulher dêle. Ou,
final à sua coroa. É o ápice da realização a seus olhos e aos então, fica espreitando pela janela, ou pede para ficar deitado
de suas irmãs. Reparem quantas celebridades negras c~sara_?'l debaixo da cam a para ouvir o ranger das molas enquanto você
com homens brancos. Tôdas as mulheres negras que nao sao come a mulher. Há um outro tipo que adora trepar com a
celebridades desejam sê-lo também para que possam casar com espôsa depois de você ter term in ado o serviço. E há aquêle
homens brancos. O branqueia é o seu príncipe encantado. que quer que você trepe com ela só um pouco, o tempo sufi-
Quando elas beijam você não é realmente você que estão bei- ciente para que ela dê a p artida, engrene o motor e esquente
jando. Fecham os olhos e imaginam seu príncipe encan~do a máquina; e depois pede que você largue o osso ràpidamente
branco. Ouçam êste segrêdo . . . Jesus Cristo, o puro, é o OOlVO para que, então, êle salte sôbre e la e, juntos, façam o resto
psíquico da mulher negra. Você aprenderá antes de morrer sàzinhos.
que, durante a cópula e no momento do orgasmo~ a mulher Não me ocorreu dizer nada; e eu não sabia o que dizer.
negra nas primeiras convulsões de seu espasmo, gnta o nome Estava ·indignado com o Infiel e senti repulsa pelo seu monólogo
de Jc;us. " Oh, Jesus, estou terminando!", grita ela no auge da e pela importância que pareceu dar a essas questões. Meus
~xcitação. Isto, para você, é uma dor. É como uma facn sonhos pairaram em outros lugares e não conseguia avaliar as

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coisas de que êle falara. Continuei sentado, saboreando a estra- Sua lembrança hesitou um momento. Minúsculas gôtas de
nha qualidade da emoção que tomara conta de mim. Não me uor brotaram em sua testa.
recordo de quando o Eunuco à minha esquerda começou a falar,
pois a princípio sua voz era para mim apenas um som, um - Mas alguma coisa aconteceu e eu ... eu ... fui embo-
som nebuloso e .incoerente, e sõmente mais tarde comecei a '·' · . . não o vi nem ouvi falar dêle durante muitos e muitos
unos. Então, finalmente, voltei... para aquêle lugar. Eu
distinguir as palavras:
linha de rever mais uma vez a velha cidade. E resolvi sair à
- . . . já estou cheio! Seu velho Lázaro. Tudo o que
você disse foi enrolação, tudo já morreu e está fedendo, tudo pr ocura do ~eu grande amigo. Depois de muito procurar, vim
foi desvirtuado e desordenado, sem pé nem cabeça. '' :;aber que ele se encontrava numa instituição. Uma institu.ição
O Eunuco tinha um jeito desafiador, coro o maxilar rete- para doentes mentais. :Ele estava lá desde a minha partida,
durante todos aquêles anos. Assim, fui vê-lo. Mudara com-
sado.
plctan:ente, tanto que não acreditei que pudesse reconhecê-lo, se
- Sim, eu sei - disse o Infiel - e vocês, gente môça,
vêem aproximar-se a grande oportunidade para mudar tudo isto. nf!o Fosse ~elos seus olhos. Jamais esqueceria aquêles olhos,
j.1mars. Tmha os olhos como, segundo dizem, os de Jomo
Todo o homem com um plano fantástico vê sua chance próxi-
ma . . . Mas, mesmo assim, você tem de admitir que o homem Kcnyatta, o olhar firme que atravessa uma parede de tijolos.
branco é cheio de merdinbas. Sle nos depena ou não, bah? O Infiel levantou uma das mãos e apontou para o Eunuco
Por acaso não toma conta do negócio? Preocupa-se com os '' minha esquerda.
negócios que são bons para êle, tica empolgado e limpa todo - Meu amigo tinha os seus olhos, justamente como os
mundo, inclusive êle próprio. Agora me digam, não é wna ver- dCstc irmão aqui - disse êle.
gonha do caralho? Seu rosto mostrou uma fisionomia confusa e temerosa por
O Infiel olhou para um de nós. Ninguém lhe respondeu.
ulguns momentos, mas êle ràpidamente dominou-a. O Eunuco
Apenas o encaramos, seu rosto, seus olhos, sua pele de choco-
il minha esquerda mudava a tôda hora de posição na cadeira.
late mole. Então, êle caiu na risada, dando gargalhadas até
estremecer sua estrutura obesa. Ninguém sabia porque êle estava - Mas êle reconheceu-me, meu amigo reconheceu-me -
rindo. Aquilo partia do inter.jor dêle, mas seu rosto parecia disse o Infiel. - Imediatamente lembrou-se de quem eu era.
estar sofrendo, como se não estivesse gozando o sorriso. Várias Não me apagara em sua memória, como se poderia pensar depois
vêzes tentou dizer alguma coisa, mas sempre era dominado de todos aquêles anos. No momento em que êles o trouxeram
pelas gargalhadas. Finalmente, deixou escapar: .1té mim na sala de visitas, pude ver que êle me reconhecera
- . . . vocês foram obrigados a reconhecer as qualidades embora não tivesse dito o meu nome. Sentamo-nos numa pe~
de uma pessoa que detestam - e continuou em outro espasmo quena mesa e êle disse: "Ah, nunca pensei que você viesse aqui!
de grunhidos e risos abafados. Agora podemos começar nosso grande empreendimento! Trans-
Quando a gargalhada morreu, êle começou a batucar sôbre formaremos tôda a Europa orgulhosa num bordel internacional
a mesa com seus dedos pequenos e gordos. c os homens de tôdas as partes da terra farão sua peregrinaçã~
- Certa vez, eu tinha um grande amigo - disse. - Cres- até lá, e fertilizarão o exaurido solo humano coro sua rica e
cemos juntos. . . e não importa em que lugar. Ele foi o melhor variada semente!" Eu nada lhe disse, e nada podia dizer. Apenas
amigo que tive, mais íntimo do que um irmão. .E:ramos mais ouv.ia. E êle falou e falou. Transportou-me longe, bem longe
apegados que dois peixinhos num aquário, um sempre atrás do no tempo. Chegou então a hora de ir-me embora. Prometi-lhe
outro. Quando éramos garotos fuzemos um juramento de irmãos que voltaria no dia seguinte. :eles o levaram. Eu nunca voltei.
de sangue, como os guerreiros índios. Só eu e êle. F izemos um Mesmo q?ando lhe prometi, sabia que nunca mais voltaria,
pacto nos comprometendo a ser camaradas a viçla ÍQteirf1- nunca mms.

161
O Infiel fêz uma pausa e respirou fundo. Lutava consigo Estremeceu com a própria pergunta.
mesmo, lutava para manter sob contrôle algo muito p~deroso e
impetuoso. Podia-se sentir a fôrça terrível da agorua varan- - O sangue é um lubrificante - disse o Eunuco à minha
esquerda. - Amacia a passagem c permite que um povo escape
do-lhe o interior do corpo.
do laço mais apertado. Você não esburaca uma rcprêsa, homem,
- :ate morreu duas semanas depois, meu amigo se ma- você a dinamita!
tou ... ferindo-se propositalmente, batendo com a cabeça contra
a quina de um muro de concreto. - Você está sedento de sangue! - observou o Infiel,
falando diretamente ao Eunuco à minha esquerda. - Mas isto
Durante alguns minutos, ninguém falou. Cada um estava nao será assim!
submerso nos próprios pensamentos. Finalmente, o Eunuco à
minha esquerda, em tom frio, gelado, disse: - Sim! - respondeu o Eunuco. - Estou sedento de
sangue .. . de sangue do homem branco. E, quando eu beber,
- Você, seu Lázaro porco. Você o matou. Você o assas- quero beber bastante porque tenho uma grande sêde a saciar.
sinou. Você o traiu! Quero beber por cada homem, mulher e criança negras arras-
O Infiel fêz como se fôsse responder, mas o esfôrço morreu. tadas das costas da Africa para o matadouro, por cada um dos
O Eunuco à minha esquerda disse para o Infiel: meus irmãos e irmãs que sofreram desamparadam ente nos porões
imundos dos desgraçados navios negreiros. . . por seu amigo
- Seu problema, meu velho Lázaro, é que você não pode
que esmigalhou o cérebro naquela casa de loucos ... quero beber
suportar a visão do sangue do feitor. o sangue do homem branco por cada grama da minha carne e
O Infjel olhou surprêso. Mingue que êle esmagou e rasgou nas ilhas do Caribe, por tôdas
- O mundo - disse êle vagarosamente - não pode supor- as almas de gente negra dilacerada nos campos fétidos do Velho
Sul c por cada um dos massacrados e linchados nos lamaçais
tar outro banho de sangue. ,
do Nôvo Sul ____:_ e do Norte, do Leste e do Oeste, dos quintos
- O mundo é hemofílico - retrucou o Eunuco. -Veja dos infernos da América do Norte! Apenas o sangue do homem
bem! Quando foi que o mundo parou de sangrar? Nunca; hranco pode lavar a dor que eu sinto. Você se encolhe quando
nem por um momento deixou de sangrar; e está sangrando em su fala em derramar o sangue do homem branco, seu velho
algum lugar neste exato momento. Agora mesmo, enquanto I .ázaro, mas eu lhe digo que o dia está próximo em que mar-
estamos sentados aqui conversando, alguém em algum lugar está cha rei sôbre o legislativo de Mississipi com uma metralhadora
se precavendo de alguém, de algum inimigo. Alguém está intro- fervendo em minhas mãos e os bolsos cheios de granadas. Já
duzindo uma lâmina num inimigo. Alguém está acendendo um q ue lerei de morrer, então certamente vou matar.
estopim, contra um inimigo. Na África, Ásia, ~uropa, Am,é~ca
do Sul, e bem aqui no bom e velho ~tado~ Urud?s. da Amenea, - Não - disse o Infiel. - Não. Mais sangue apenas
.1crcscentará um crime a outro. N ão!
0 sangue está sendo derramado. _Ya ou~Jr. o radto ou. a te~­
visão neste momento e as prime1ras notrc1as que ouvtr serao Levantou-se subitamente da mesa, olhou para cada um de
de sangue, de total de mortos. Vá pegar um jornal ou uma nós como se estivesse rogando, como um criminoso diante do
revista e as mesmas estarão encharcadas de sangue. O sangue juri que êle sabe estar na iminência de mandá-lo para a câmara
pinga do vídeo da TV. Então, por que fica chocado em ouvir da morte. Respirou profundamente como fizera antes, e deixou
falar de sangue? os ombros caírem.
- Sim, o mundo está sangrando - disse o Infiel - mas - Sangue em cima de sangue; crime em cima de crime;
está sagrando para morrer. Quanto tempo vai durar? l1jolo de sangue em cima de tijolo de sangue de uma nova e

162 163
iouca TÔrre de Babel que, também, desmoronará. . . Não pode
haver triunfo no sangue.
Depois, o Infiel virou-se e afastou-se da mesa aos trope-
ções, balbuciando alguma coisa.
Observamos sua partida. Parou e olhou para trás, em
nossa direção, como se esperasse ou tivesse a esperança de que
nós o chamássemos de volta. Então, tornou a virar-se e desa- A Mitose Originária
pareceu de nossas vistas, de nossas vidas.

Então o Senhor Deus fêz com que um profundo


sono calsse sôbre Adão; e êle dormiu: e ~!e to-
mou-lhe uma das suas costelas, e fechou com carne
o seu lugar. E, da costela que tinha tomado do
homem, o Senhor Deus fêz uma mulher e levou-a
par~ junto do homem. E Adão disse: Eis agora
aqut o osso do meus ossos e a carne da minha car-
ne; e ela se chamarâ Mulher, porque foi tomada do
Homem.

- Gênesis 2:21-23

B como se na evolução do sexo uma partícula se


rompesse, um din, de um eromossomo-X e, posterior-
mente em relação aos cromossomos-X, poderiam
produzir apenas uma fêmea incompleta - a criatura
que agora chamamos de macho! B na direção desta
deficiência originária de cromossomos que todos os
variados problemas que o macho traz como herança
podem ser delineados.

Ashley Montagu.
The Natural Superiority of Women"

Creio que qualquer classe submetida acostuma-se


melhor à sexualidade do que uma classe ociosa.

"' Publicado no Brasil por esta Editôra sob o título A Superior~


dade Natural da Mulher, em 1970. (N. do T.)

164 165
Cada metade da igualdade humana, os hemisférios macho
e fêmea, deve preparar-se para a fusão, alcançando uma Imagem
Sexual ú nica, isto é, uma identidade heterossexual livre dos
impedimentos mutuamente exclusivos, antagônicos e antípodas
do homossexualismo (o produto da fissão da sociedade em clas-
ses antagônicas e uma cultura e civilização agonizantes alienadas
de sua biologia) .
A luta contínua do homem por uma Imagem Sexual única,
Norman Mailer que apenas pode ser alcançada numa Sociedade única, toma-se
uma fôrça de impulsão bás·ica da Luta de Classes, que é, por
Tire Presidential Papers• sua vez, a dinâmica da história. A busca da Fusão Apocaliptica
encontrará condições excepcionais apenas numa Sociedade Sem
Classes, com a ausência de classes constituindo o sine qua non
para a existência de uma Sociedade única na qual a Imagem
As raízes da heterossexualidade estão enterradas nesta
opção revolucionária feita há algum tempo em algum passado
Sexual única possa ser a lcançada.
Cada estrutura social projeta na tela das possibilidades
as imagens do mais alto tipo de identidades sexuais de macho
nebuloso - mas não assim tão remoto que não possa ser alcan-
e fêmea realizáveis dentro dos limites dessa sociedade. As pes-
çado com o longo braço da mente - por algum precursor des-
soas dentro desta sociedade são motivadas e impelidas, em vir-
conhecido do homo sapiens. Surgindo de algum pantanal som-
tude da busca eterna da Fusão Apocalíptica, a alcançar esta
brio, de alguma poça de lama estagnada, de alguma campina
tranqüila, êste ancestral desconhecido do Homem-Mulher, por mais alta identidade, ou a chegar o mais próximo que possam
alguma m itose fantástica da essência, d ividiu o seu Eu único ao da perfeição da Imagem Sexual única. Todos os impedimentos
à real.ização desta imagem tornam-se fontes de alienação, obstá-
meio - nos hemisférios macho e fêmea da Esfera Originária.
culos no caminho do Eu procurando realizar sua identidade
.9-stes hemisfér-ios evoluíram até o que hoje conhecemos como
suprema.
homem e mulher.
Uma vez que cada sociedade projeta a sua própria imagem
Quando a Esfera Original dividiu-se, criou-se uma fôrça de sexual, a Sociedade única projetará uma Imagem Sexual única.
atração básica, um magnetismo dinâmico de opostos - o Anelo Podemos assim postular, seguindo o modêlo de Marx, que na
Original - que exerce uma atração irresistível entre os hemis- antiga sociedade comuna!, não separada em classes antagô-
férios macho e fêmea, sempre tendendo a fundi-los novamente nicas, exoistiu uma Sociedade única na qual a Imagem Sexual
numa unidade em que o macho e a fêmea realizam a sua verda- única estava em concordância natural com o modo de vida do
deira natureza - a unidade perdida da Esfera Originária. Esta povo. Esta é a inocência perdida do J ardim do f:den.
é a eterna e .inconsciente motivação dos hemisférios macho e A Sociedade de Classes projeta uma imagem sexual frag-
fêmea, do homem e da mulher, para sobrepujar a Mitose Ori- mentada. Cada classe delineia uma im agem sexual coincidente
ginária e alcançar a identidade suprema da Fusão Apocalíptica. com a sua função de classe na sociedade. E, uma vez que a sua
função-classe divirja daquela das outras classes, sua imagem
sexual diferirá também e na mesma proporção. A origem da
* Publicado no Brasil, sob o título Cartas Abertas ao Presidente, fragmentação do Eu na Sociedade de Classes repousa na alie-
por esta Editôra, em 1966. (N. do T.) nação entre a função da Mente e a do Corpo do homem. O

166 167
homem, como ser pensante, desempenha uma Função AdminÍS· A Sociedade ele êlasses possui uma prectsposição estrutu-
trativa na Sociedade. O homem, como pessoa ativa, desem- rada que tende a perpetuar o sistema social. Os Administradores
penha uma Função de Fôrça Bruta. Simbolizo estas duas fun- Onipotentes, desejando preservar o que consideram como posição
ções básicas, quando estão corporificadas em homens vivos fun- super·ior e modo de vida, têm - do ponto de vista de classe e
cionando na sociedade, como o Administrador Onipotente e o também em nível individual - uma reação negativa diante de
Criado Supcrmasculino. qualquer influência na sociedade que tenda a aumentar o número
Já que todos são criados iguais, quando o Eu é fragmen- de machos qualificados para desempenhar as funções adminis-
tado pela influência das leis e fôrças da Sociedade de Classes, trativas. Quando sentem que algo melhorará a posição dos que
os homens das classes de elite usurpam o contrôle e a Função estão abaixo dêle, os Administradores Onipotentes dão início a
Administrativa da sociedade, como um todo - isto é, usurpam um "anti"-reflexo básico. Qualquer liberalidade que possam
o componente administrativo da natureza e da biologia dos mostrar é urna indicação do ponto até onde suprimiram seu
homens das classes inferirores às dêle. O poder administra- "anti"-reflexo, que é por si uma parte do seu desejo de onipo-
tivo está concentrado no ápice da sociedade, na Divindade da tência. Sua liberalidade é, na verdade, car·idade.
sociedade (faraó, rei, presidente, executivo). O poder admi- O Criado Supermasculino compreende claramente que a
nistrativo abaixo do ápice é delegado. Aquêles pertencentes às superioridade do Administrador Onipotente sôbre êle é alicer-
classes para as quais nenhum poder administrativo foi delegado çada no desenvolvimento de sua mente e no poder que comanda
têm o componente administrativo de suas personalidades supri- como resultado. Conseqüentemente, dá início a um "pró"-re-
mido, alienado e negado. Aos que usurparam a Função Admi- flexo. :Ble é, por exemplo, pró-educação universal às expensas
nistrativa, chamaríamos de Administradores Onipotentes. Lu- públicas.
tando entre si por posições mais altas na hierarquia administra- A fraqueza, a fragilidade, a covardia, e a efeminação estão,
tiva, repudiam o componente Fôrça Bruta de si próprios, ale- entre outros atributos, associados à Mente. O vigor, a fôrça
gando não ter parentesco com êle e projetando-o nos homens bruta, a robustez, a virilidade e a beleza física estão associadas
das classes mais baixas. ao Corpo. Assim, as classes mais altas, ou Administradores
Todos os machos nas classes abaixo do Administrador Oni- O nipotentes, estão eternamente associados à fraqueza física, ao
potente, ou Divindade da sociedade, estão alienados do compo- definhamento, aos corpos raquíticos, à efeminação, à impotência
nente administrativo de si próprios de maneira proporcional à sexual e à frigidez. A virilidade, vigor e fôrça estão associadas
sua distância do ápice. Isto é, percebem sua alienação em tênnos ils classes mais baixas, aos Criados Supermasculinos.
de distância do ápice. Esta percepção, em tênnos do ápice, é Na sociedade feudal, os homens da nobreza, que eram
ilusória. Na verdade, a alienação deve ser medida pela sua Administradores Onipotentes por direHo div.jno, eram geral-
distância da obtenção de uma Imagem Sexual única, o ponto de mente considerados como fracos, delicados e efeminados, com as
partida para a Fusão Apocalíptica. Geralmente, numa Socie- nfctações dos homossexuais declarados. Os servos e campo-
dade de Qasses fragmentada, o impulso básico dos Administra- neses eram considerados como fisicamente fortes, másculos,
dores Onipotentes é desprezar se:us corpos e glorificar suas 1obustos e fecundos - "supermasculinos".
mentes. A imagem do Administrador Onipotente, segundo a qual
Aquêles que foram destinados à Função de Fôrça Br uta, ~ lc é marcadamente efeminado e delicado em virtude de seu
chamaríamos de Criados Supermasculinos. Estão allenados do rL·púdio c abdicação explícitos do corpo em favor da mente,
suas mentes. Para êles, a mente conta apenas na mcdidtl em tornn AO decisiva pnra a imagem da mulher da elite. Embora
que lhes permita receber, compreender c cumpr.Jr o dc~>cjo do11 ,\'r·u lmm<•m s<•}u c•/l'llli!lado, <'.>:if./C·SC deltt que possua e projete
Administradores Onipolcnh.:s. /111/U inlfl}/1'111 l {llt' l".l'tt1 t'/11 r•io/('fttO n mfrll.l'f(' C'OIIl f i dNI'. mais

/(18
incisivamente feminina, de maneira que a imagem efeminada do do vigor dos homens mais alienados abaixo dêle - porque os
seu homem possa ainda, em virtude do violento contraste nos homens m ais alienados da mente, os menos debilitados pela con-
graus de feminilidade, ser percebida como masculina. Por con- fusão da Mente, serão considerados como as manifestações mais
seguinte, ela se torna "ultrafeminina" . masculinas do Corpo: os Criados Supermascu1inos. (Esta é
precisamente a raiz ou origem do homossexualismo, eternamente
De modo a projetar uma imagem de ultrafeminilidade, as associada ao Administrador Onipotente.) A dialética do Criado
mulheres da elite repudiam e abdicam da Função D oméstica da Supermasculino é o inverso daquela do Administrador Onipo-
fêmea (que é, nesta última, a contrapartida da função de F ôrça tente. O Criado Supermasculino é possuidor de uma debili-
Bruta do macho). Para realçar sua imagem e aumentar sua dade no cérebro, em conseqüência de sua alienação da mente.
feminilidade, o componente doméstico de sua natureza é proje-
tado sôbre as mulheres das classes mais baixas, e a feminilidade Em virtude de desprezar a fraqueza do corpo em si pr óprio,
destas é proporcionalmente diminuída. Com efeito, processa-se o Administrador Onipotente possui uma aversão secreta ou sub-
uma mudança: a mulher da elite absorve em seu ser a femini- consciente às mulheres de sua mesma classe, devido à Ultra-
lidade da mulher das classes inferiores, extirpando o seu compo- feminilidade que elas desenvolveram para contrabalançar a efe-
nente doméstico; a mulher das classes mais ba ixas absorve em minação de seus machos. Ao mesmo tempo, supera a si próprio
seu ser o componente doméstico jogado fora pela mulher da nos esforços para ocultar tal aversão e fazer acreditar que a
elite e renuncia à sua própria feminilidade. A mulher da elite verdade é o contrário. Desta forma, faz de sua mulher um
torna-se, então, Ultrateminina enquanto a mulher abaixo dela ícone e, literalmente, a adora. Presta tôda a obediência a Ela
torna-se Subfeminina. D entro dos propósitos das imagens sociais, de maneira ritualística, enquanto na capela de Sua presença.
a mulher das classes inferiores transforma-se numa Amazona. Colocando-A sôbre um pedestal, sai à procura da confirmação
de sua masculinidade insegura em tôdas as partes. Já que a
Desta forma, a mais fantástica e complexa dialética de inver-
mulber da elite tende a tornar-se semelhante, isto é, a projetar
são é criada na Sociedade de Classes. O Administrador Onipo- uma imagem homogênea da Ultrafeminilidade, ela não pode, no
tente empenha-se na busca perpétua de seu corpo alienado, pela
fim, satisfazer a necessidade psíquica dêle - a afirmação da
afirmação de sua masculinidade instável. Torna-se um vene- mascúlioidade. A fôrça mede a sua própria potência através
rador da bravura física, ou então acaba desprezando o corpo e
da confrontação com outra fôrça. Para testá-la, êle precisa ir
tudo o mais associado a êle. Temendo a impotência - e a
onde ela exista. Pode entregar-se a um esporte de imagem
impotência está implicita na sua negação e abdicação do Corpo masculina, tornar-se um caçador de feras, um amigo do ar livre,
- sua mais profunda necessidade passa a ser a evidência de
um alpinista. Pode até encontrar satisfação suficiente em alguma
sua virilidade. Seu oposto, o Corpo, o Criado Supermasculino, saída como a de não ter problemas que o façam lembr ar-se de
é uma ameaça ao seu autoconceito (e, para compô-lo total- sua fraqueza sexual. Pode ignorar a sua impotência porque está
mente, esta ameaça percebida e o temor resultante são refor- cego em face do seu deslumbrante sucesso e superioridade em
çados decisivamente pelo fato de que os homens abaixo dêle outros campos.
constituam uma ameaça real, porque o objetivo de suas vidas
é destruir a sua Onipotência sôbre êles). Contempla-os como Mas na busca da confirmação de sua masculinidade, o que
seus inimigos inferiores, homens de uma casta mais baixa do comumente sente como uma procura de satisfação sexual e de
que a sua e a da sua espécie. Despreza-os e os odeia. Entre- novas conquistas, sua atenção é atraída - como a fôrça de
tanto, em conseqüência da debilidade de sua imagem e de seu atração da gravidade - pelos Corpos potentes das classes infe-
ser, que o impele a adorar a masculinidade e o valor físico, o riores, em suma, pelo vigor. Pode explorar sexualmente os
Administrador Onipotente não consegue encobrir, mesmo sob Corpos das secretárias do escritório; mas, na sua descida em
uma aparência extremamente sublimada, a ·inveja do corpo e direção à Fonte do Vigor, poderá ser atraído pelos Corpos dos

170 171
operários da fábrica. Se êstes Corpos a.inda o deixarem nas do seu Princípio de Feminilidade, o gatilho do mecanismo do
garras do desejo e da insegurança, cavará cada vez mais pro- seu orgasmo, move-se para além do alcance ou raio de ação do
fundo nas camadas mais baixas até encontrar seu Bálsamo de clitóris efeminado do seu homem. Frígida, fria, gelada, gêlo.
Gilead sexual. Neste ponto, há uma caixa de Pandora de aber- Ártico. Antártico. Ao final da fuga do seu corpo, está um
rações sexuais. paredão intransponível de gêlo. (Se uma lés()ica é alguma coisa,
O Corpo é tropical, morno, quente: Fogo! }';: suave, agra- então é uma mulher fria , uma vagina congelada, com uma
dável de tocar, luxuriante para o beijo. O sangue é quente. janela e uma fenda no seu paredão de gêlo.)
Os músculos são vigorosos. O movimento básico das mulheres Na mesma proporção da intensidade do seu temor e da
da elite é a fuga dos seus corpos. A fragilidade do corpo femi- sensação de gêlo da Ultrafeminina, está o seu desejo psíquico
nino, quando contrastado com o vigor do corpo masculino, é pela chama, pelo calor do fogo: o Corpo. A Ultrafeminina,
um atributo óbvio da feminilidade tal como se manifesta nas procurando a satisfação sexual, encontra apenas a exaustão
imagens sociais. Portanto, para realçar e enfatizar a femini- üsica na cama do Administrador Onipotente, e tôdas as proba-
lidade da sua imagem - o que é obrigatório para que ela repre- bilidades de encontrar a satisfação psíquica estão contra ela.
sente um violento contraste feminino em relação à imagem efe- Seu "noivo psíquico" é o Criado Supermasculino. O Adminis-
minada de seu homem, o Administrador Onipotente - ela pro- trador Onipotente, tendo repudiado e abdicado do seu corpo,
cura aumentar a fragilidade do seu Corpo e apagar todos os do componente masculino que projetou sôbre o homem abaixo
vestígios de vigor, a fim de diferenciá-lo a.inda mais da forma dêle, não consegue apresentar à mulher, a Ultrafeminina, uma
efeminada do seu homem. A aparência de vigor em seu corpo imagem de masculinidade capaz de penetrar nas profundezas
é considerada vergonhosa. psíquicas onde o tesouro do seu orgasmo está enterrado. O
Tendo projetado o seu vigor, ou o seu componente domés- ato sexual, sendo uma aventura conjunta da Mente e do Corpo,
tico, sôbre as mulheres das classes inferiores, alcança a imagem não pode tocar -embora satisfaça o corpo dela e esgote o seu
de fragllidade, de fraqueza, de desamparo, de delicadeza e de vigor - naquele ponto mágico da mente que desencadeia o
graciosidade. Sêdas, franzidos, babados, pulseiras c rendas são mecanismo do orgasmo da Ultrafeminina. Privada da satisfa-
os seus elementos. No domínio do sexo, em virtude do ato do ção psíquica e, em virtude das convenções e costumes sociais,
intercurso sexual ser tanto um processo mental como físico, impedida de se lançar à busca da realização sexual, ainda que
uma aventura conjunta entre a Mente e o Corpo, a contradição representando a função de mãe e espôsa do Administrador Oni-
básica reside em que ela é fisicamente inadequada, embora potente, a Ultrafcroinina torna-se uma celibatár-ia psíquica.
mentalmente voraz, coro a mente em extremo conflito com o No enésirno grau da escala do desejo físico da Ultrafemi-
corpo. O mecanismo de seu orgasmo, que começa no corpo e nina (cujos contornos poucos homens ou molheres jamais, de
termina nas profundezas psíquicas da mente, transforma-se num fato, exploraram durante a vida inteira, recorrendo às formas
curto-circuito durante a luta entre a mente e o corpo. de sublimação), está situado o símbolo fálico itinerante do
Sentado à beira da cama, como a Esfinge muda às margens Criado Supermasculino. Embora, talvez, nunca tenha tido um
do Nilo, está o Ogro da Frigidez. Ela é aterrorizada, em face contato sexual com o Criado Supermasculino, ela está total-
da qualidade da sua vida, da perspectiva de tornar-se a prisio- mente convencida de que êle pode satisfazer sua necessidade
neira perpétua da prisão da frigidez. Seu temor básico é a física. .Ble não teria de fazer muito esfôrço, já que pode con-
frigidez, o estado no qual sua busca frenética de Ultrafeminl- trolar aquelas Amazonas do mesmo nível baixo que o seu
lidade colide com a morte por congelamento da alma; onde o com seu corpo forte, músculos ondulados, com seu vigor e fogo,
fogo do seu corpo é consumido pelo gêlo da sua mente. O com a fôrça impulsora de sua espinha, a pressão dos seus qua-
centro psíquico da sua sensualidade, o pólo à procura do macho Qris I} o aro e~caldant~ de !)Ui\ "vf!r~"' Mas o que caracteriza

172
a essência da Ultrafeminina é o fato de estar seduzida e tortu- maneiras e hábitos das classes mais altas, das Ultrafemioinas e
rada pelo conhecimento secreto e intuitivo de que êle, o seu t.los Administradores Onipotentes. A maneira exata como isto
noivo psíquico, tem poder para derreter com o seu fogo o runciona é um problema para análise de sociólogos e psicólogos,
paredão de gêlo, para sondar suas profundezas psíquicas, para em nível de massas, e para os psiquiatras c viciados em quebra-
experimentar o óleo de sua alma, para tocar seu santuário íntimo, cabeças, em nível individual. O que estamos delineando aqui é
para detonar a bomba do seu orgasmo e proporcionar-lhe a pra- uma perspectiva a partir da qual tal análise pode ser melhor
zerosa satisfação. empreendida.
A atitude desafiadora do Criado Supermasculino está no A noiva psíquica do Criado Supermasculino é a Ultrafemi-
fato de ter sido roubado de sua mente. De uma maneira mis- nina. Ela é a "mulher dos seus sonhos". Ela, a delicada, frágil,
teriosamente eficaz, a sociedade na qual vive pressupõe em sua desamparada Ultrafeminina exerce uma atração magnética sôbre
verdadeira estrutura que êle, desprovido da mente, é a perso- éle. Quando a compara com a própria mulher, a robusta c
nificação da Fôrça Bruta. A tendência e o reflexo da sociedade autoconfiante Amazona, o desejo dela arde em seu cérebro. J';le
são contra o aperfeiçoamento ou mesmo o funcionamento da tem repugnância pelo excesso de vigor injetado na Amazona
sua mente; e incute-se nêle, de tôdas as partes, a sensação de pela Função Doméstica que ela desempenha. Da mesma forma,
que a sociedade é verdadeiramente surda, muda e cega para a uma vez que os padrões de beleza são estabelecidos pela elite,
sua mente. Os produtos de sua consciência, a menos que es- a Ultrafeminioa personifica o padrão oficial da beleza feminina
tejam muito intimamente associados à sua função social de na .sociedade como um todo. Influenciado e imbuído por êste
Fôrça Bruta, são motivo de indignação e desprêzo por parte da padrão de beleza oficial, e ao mesmo tempo cercado por Ama-
sociedade como um todo. Quanto mais distantes estiverem os zonas que não represen~m êstc tipo e que, na verdade, estão
seus produtos mentais da Fôrça Bruta, tanto mais cofàticamcnte em conflito com êJc, o Criado Supermasculino desenvolve um
serão rejeitados e desdenhados pela sociedade, e tratados como desejo obsessivo e uma ânsia de contato sexual com a Ultra-
invasões impertinentes nos domínios do Administrador Onipo- feminina. l::stes desejos são marcados pelo fato de, em geral,
tente. Seus pensamentos não são levados em conta. );le não estarem predestinados a permanecer irrealizados. A sociedade
dirije, regula, controla ou administra o que quer que seja. De arranjou as coisas de tal modo que o Criado Supermasculioo e
fato, êle próprio é dirigido, manipulado e controlado pelos Ad- a Ultrafeminina geralmente não têm condições de acesso ou
ministradores Onipotentes. A luta de sua vida é pela emancipa- proximidade, em relação um ao outro, que propiciem estí-
ção da mente e pelo reconhecimento oficial do fato de que a mulo para o envolvimento sexual. Realmente, não é um fato
possui. fora do comum o Criado Supcrmasculino c a Ultrafeminina se-
Na sua sociedade, decidiu-se que a Mente é superior ao rem duramente perseguidos, senão mortos, por tais contatos
Corpo, e êle sabe que é o Corpo e que o Administrador Onipo- sexuais.
tente é a Mente. A Mente é superior à matéria, e o Corpo é
matéria. :ele pode desprezar o Administrador Onipotente por
sua fraqueza física e invejá-lo por sua mente; ou pode desprezar A Amazona está numa posição peculiar. Assim como seu
o próprio corpo e idolatrar o corpo fraco do Administrador Oni- homem foi despojado de sua mente, também ela foi destituída
potente. Pode até empeuhar-se êle próprio em adquirir uma de tôda a sua feminilidade. A sociedade decretou que a Ultra-
imagem física frágil de modo a identificar-se com aquela do feminina, a mulher da elite, é a deusa sôbre o pedestal. A
Administrador Onipotente. As pessoas que compõem a base Amazona é a personificação do componente doméstico rejeitado,
da sociedade, onde está o Cr·iado Supermasculino, são bem co- a mulher na qual "as mãos sujas de gordura" não parecem estar
nhecidas pelo reflexo de tentarem amoldar-se ao estilo, padrão, em desacôrdo com ela. A adoração e o respeito que tanto o

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Administrador Onipotente como o Criado Supermascul:ino dis- certamente não é sempre o caso. Mas mesmo que êle seja
pensam à imagem da Ultrafeminina é uma fonte de profunda impedido, de fato, de ascender na escala social, o Criado Super-
aflição para a Amazona. Ela inveja a existência cheia de mimos masculino pode pelo menos ·imaginar-se fazendo isso sem ter
e pompons da Ultrafeminina e almeja ·incorporar êstes. ~le­ primeiro de ultrapassar quaisquer barreiras biológicas. Da
mentos à sua própria vida. Alienada do componente femmmo mesma forma, o Administrador Onipotente pode descer a escala
de sua natureza, seu componente doméstico reforçado é um social, desenvolver seus músculos c arar a terra como o mais
pêso e uma vergonha insuportáveis das quais deseja ardente- baixo servo do feudo. As mulheres, também, podem descer ou
mente se livrar. subir, dependendo de seus méritos, sem ter de romper uma ca-
A Amazona acha difícil respeitar o Criado Supermasculino. deia biológica.
Ela o vê essencialmente como um homem apenas pela metade, Mas na sociedade onde existe um sistema de castas raciais,
um homem incompleto. Não tendo soberania sôbre si próprio, onde as pessoas no alto são diferenciadas daquelas de baixo pela
também não tem sôbre ela a soberania que os tradicionais mitos raça, bem como pela imagem social, então os dois tipos de ima-
patriarcais levam-na a ac~editar que ~lc devesse t~r. Em nível gens conflitantes podem vir a ser considerados mutuamente ex-
ainda mais baixo os deseJOS e necesstdades da pstque da Ama- clusivos. O abismo entre a Mente e o Corpo parecerá coincidir
zona movem-na ~a direção da fonte do çoder, na direção do com o abismo entre as duas raças. Neste ponto, o temor da
receptáculo da soberanja - u~a .atração .n~o~i~ada pelo De- miscigenação biológica é transposto às imagens sociais; e já que
sejo Originário de transcender a M1tose ~ngmana. Q~ando a a distinção entre as duas raças é fundamentada na biologia, a
Esfera Originária dividiu-se nos hemisfé nos macho e femea, o distinção social entre a Mente c o Corpo é tida como sagrada.
atr-ibuto da soberania foi depositado no hemisfério macho, e Qualquer tentativa do Criado Supermasculino de cicatrizar esta
esta qualidade exerce uma atração magnética sôbre o hemisfério ferida e reclamar sua mente será vista como um desejo maligno
fêmea. Usurpando a mente do Criado Supermasculino, o Ad- de transcender as leis da natureza pela mestiçagem, pela misci-
ministrador Onipotente usurpou tôda a soberania; e em virtude genação. Partindo do pólo oposto, se um membro da elite ten-
do seu monopóHo da soberania, transformou-se no noivo psí- tasse transpor o abismo seria julgado como a mais nojenta forma
quico da Amazona. Em outro plano, entre~anto, sendo tamb~m de degeneração e traição à casta. Os temores e emoções inte-
atraída pelo corpo do Cr·iado Supermasculino, a Amazona fica riOJ·cs, que estão na verdade ligados às características biológicas
perdida entre dois mundos. c são parte de um mecanismo para aux.iJiar a sobrevivência
Em suma existem na Sociedade de Classes dois grupos de rncial e étnica, são aproveitados nas imagens sociais e transfor-
imagens coefi~ientes. Disputando a coroa da. masculinidade, mados dêsse modo em armas na Luta de Classes. Os temores
existem imagem baseada no corpo e outra ap01ada na Mente; raciais são armas na Juta entre o Administrador Onipotente e o
disputando a coroa da feminilidade existem uma imagem. baseada Criado Supermasculino pelo contrôle da soberania sexual.
na Ultrafeminilidade frágil e desamparada e outra apomda nos O Cr.iado Supermasculino e a Amazona são os menos alie-
atributos de robustez e autoconfiança da Amazona, Numa so- nados da cadeia biológica, embora suas mentes - especialmente
ciedade de população racialmente homogênea, na qual as pes- :t dos Criados Superrnasculinos - encontrem-se num estado ge-
soas que detêm altas posições são da mesma raça daquelas que t.d de subdesenvolvimento. Contudo, são a riqueza de uma na-
estão abaixo, as imagens conflitantes não são mutuamente ~x­ ~ ao. o suprimento abundante de matéria-prima humana inesgo-
clusivas. Um Criado Supermasculino, por exemplo, que adqUire l.tvcl e essencial, do qual depende o futuro da sociedade e com
o treinamento de Administrador Onipotente pode tornar-se um 11 qual - através da marcha implacável da história para bases
membro da elite e funcionar de acôrdo com a mesma - consi- .tinda mais amplas de democracia e igualdade - a sociedade se
derando-se a existência de certa mobilidade vertical~ o que n·novará e se transformará.

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Jllaior comunicabi/idade intelectiva dos negros . ..
(Grifes ncrescentados.)
- Irving Louis Horowitz, Presidente,
Departamento de Sociologia, Hobart
and William Colleges; Genebra, New
York, Commentary, junho de 1963.

Convalescença
SE a separação das pessoas brancas e negras na América
ao longo da linha da côr tivessem o efeito, em têrmos de ima-
gens sociais, de separar a Mente do Corpo - os brancos opres-
sores usurpando a sobera nia através da monopolização da Mente,
as~im como na infância invejei os negros abdicando do Corpo e tornando-se Administradores Onipotentes
pelo que me parecia sua superioridade masculina, e Ultrafemininas incorpóreos; e os negros oprimidos, despo-
assim os invejo hoje pelo que me parece sua beleza jados da soberania e, portanto, da Mente, existindo como ma-
e atração física superiores. Avaliei a atração física nifestação do Corpo e tornando-se Supermasculinos e Amazonas
em alto grau, e agora sou capaz de sentir dores em Negras desprovidos de mentes - se assim fôsse, então a decisão
todo o meu ser quando vejo um casal negro no salão
de dança, ou um Negro jogando beisebol ou basquete. do Supremo Tribunal dos Estados Unidos, em 1954, no caso
Eles gozam de umq relacão com seus próprios corpos Brown contra a Junta de Educação, que demoliu o princípio da
que eu gostaria de gozar com o meu, e eor essa ore- segregação racial na educação pública e atacou pela raiz a prá-
ciosa guqUdade parecem-me qhcu,oadax. (Grifes tica de segregação em geral, foi uma im;portante operação ci-
acrescentados) rúrgica realizada por nove homens de togas pretas sôbre a Linha
Maginot racial, que está e ncravada tão profundamente quanto
- No rman Podhorctz, o sexo ou o desejo de lucro na cismática psique americana. Caso
"My Negro Problem - And Ours", tivesse êxito e esta obra de arte da cirurgia social, realizada
sem o benefício de qualquer anestésico exceto Deus e a Cons-
Commeuwry, fevereiro de 1963
tituição, numa terra onde Deus está morto e a Constituição em
coma há 180 anos, teria representado maravilha maior do
que um transplante de coração bem sucedido, pois significaria
Por que invejar no Negro a sua atração, as enxertar a Mente da nação novamente em seu Corpo, e vice-
suas habilidades físicas? Por que não pergu ntar o versa.
que é que impede a atração e a habilidade física de
tornarem-se propriedade geral do jovem? O Sr. Se o que precede é verdadeiro, então a história da América
Podhoretz fala de classe média, da respeitabilidade nos anos que se seguiram à revolucionár.i a declaração do Su-
branca; o que isto significa senão o estar afastado premo Tribunal deveria ser um registro do convalescimento da
do processo de trabalho, do processo de labor, do nação. E na investigação seríamos capazes de ver os Adminis-
processo criativo? .A solucão, cutretwll<lJ uão é a_ tradores On)potentes e as Ultrafemin:nas agarrando-se aJs
li uida ão direta da linha da côr através da li ni- poucos familiarizados e alienados Corpos, e as Amazonas e os
dqção da cQr. mas, ao contrário, atra v ' S de uma
. mqjor camunicabilidade física dos brancos c de uma
Criados Supermasculinos tentando alcançar e defender uma

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mente propna. O resultado, acho eu, é claro e inequtvoco. O vando ao futuro e à vida; e pedir a êstes Amerícanos que
ajuste que parece ter sido concluído é que os brancos tiveram compreendam que êles eram os passageiros do veículo desgo-
que se valer dos negros para dominarem os segredos das con- vernado e que o fantasma lascivo era o rebolado agitado do
torsões do Corpo, enquanto os Negros foram obrigados a re- J'wist das noites de Sábado, ou o "lê, lê, lê" que os Beatles
correr aos brancos para atingirem os segredos da Mente. Coube surrupiaram a Ray Charles; e pedir a êstes djssolutos calvinistas
a Chubby Checker, trazendo o 1'wist como boas-novas, ensinar que examinem e atestem os laços lógicos e recíprocos, é mais
aos brancos a novamente sacudirem suas bundas, coisa que a cruel do que perur a um músico de serestas que imite os sons
história os levara a esquecer. Trata-se de uma habilidade que tlc John Coltrane.
seguramente devem ter possuído algum dia, mas que abando-
naram em conseqüência dos sonhos puritanos de fugir à ten- No princípio desta era surgiu um ladrão com uma tremenda
tação da carne, deixando para os negros os terrores do Corpo. mania de ficar rico e que sabia que os avestruzes e as corujas
tinham sido subornados com doses maciças de Eufonia, que
era a sua mania, dêles. O ladrão sabia que não precisava es-
perar pelo cair da noite e que podia mostrar impunemente seu
Nos violentos anos de mudanças desde a decisão de inte- rosto no mercado em plena luz do dia, fazer o trabalho, apagar
gração nas escolas, em 1954, uma onda de fenômenos de massa a pista, vender bagulho ao receptador, enquanto avestruzes e co-
aparentemente sem xclação surgiu no cenário americano - des- rujas, atraídos pela E uforua, um com a cabeça enfiada num
viando-se radicalmente da norma predominante do Cachorro- buraco - qualquer buraco - e o outro com a cabeça nas
Queote-e-Leite-Maltado, da fl"ia, quadrada, superficial e inex- nuvens, somente piar.iam sem ouvir, falar ou ver qualquer mal
pressiva atmosfera de Manhã-de-Domingo que sufocava a alma nisso.
da nação. E tudo isto num país onde os tão falados modeladores Assim surgiu Elvis Presley, tocando sua guitarra estram-
da opinjão pública, os escr.itores, políticos, profcssôres e moto- b6Lica c sacudindo o rabo por todo o continente, surrupiaudo
ristas de táxi são mentirosos voluntários e eufóricos, avestruzes l'mna e fortuna, abrindo caminho ruidosamente e, como um
e corujas, uma panelinha de fantasmas furtivos, um punhado Johnny Appleseed de nossos ruas, lançando as sementes de um
de Walter Jenkinsens, uma turma de bebedores de café, fumadores nôvo ritmo e estilo nas almas brancas da juventude branca
de cigarros, ladinos, chupadores de bunda, procuradores de status, amcr.icana, cuja fome e necessidade interiores não mrus se satis-
tagarelas, nervosinhos, gargantas, bebedores de tranqüilizantes, faziam com os antissépticos sapatos brancos c canções mais
mentalidades retrógradas, fora de moda, rastejadores. Não brancas ainda de Pat Boone. "Você pode fazer o que quiser",
importa que muitas "pessoas inocentes", as manipuladas e esti- cantou Elvis para os sapatos brancos de Pat Boonc, "mas não
muladas, algumas das quais lançadas num jôgo com razoável pise nos meus sapatos de camurça azul".
quantidade de mistério e mesmo aventura, tivessem suas mentes Durante êste período de agitação e buscas, por volta da
desordenadas. :t:.stes observadores não estavam preparados nem mesma época em que os negros de Montgomery, no Alabama,
para sentir ou saber que um rompimento radical, um salto revo- Iniciaram seu histórico boicote dos ônibus (dando origem à li-
lucionário para fora do alcance da visão, t-ivera lugar em partes derança de Martin Luther King, dizendo à nação que, com esta
secretas da alma do país. Foi como se um veículo desgovernado in iciativa, o primeiro passo afirmativo, uma engrenagem da ma-
corresse pela noite americana, por uma rua sem iluminação, qu inaria em alguma parte do universo fôra deslocada), alguma
dirigindo-se para um muro de pedra, e fôsse abordado em sua coisa, um alvo, entrou em foco. As tensões na psique americana
corrida cega por um fantasma clandestino com o olhar embas- abriram uma fenda na Linha Maginot racial; c, através desta
bacado que, na última esquina antes do desastre e do caos, brecha, esta minúscula ponte entre a Mente e o Corpo, as massas
desv·iasse o veículo para uma estrada macia e desimpedida, le- negras, que estavam silenciosas e sonolentas desde os anos 20

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e 30, rumavam agora na direção de uma luz indistinta que fazia A partir do momento em que a Sra. Rosa Parks, naquele
sinal do outro lado da brecha. O fato de que êstes negros podiam ônibus em Montgomcry, Alabama, resistiu ao Administrador
dar agora tal passo foi percebido pelos avestruzes e corujas como Onipotente, um contato, embora passageiro, foi estabelecido com
um sinal de decadência nacional, um s-inal de que o Sistema a soberania perdida: o Corpo fizera contato com a Mente. E
fôra rompido naquela ponto. E isto deu origem a um temor, o choque dêstc contato enviou uma corrente elétrica por tôda
que ràpidamente tornou-se o foco de tôdas as ansiedades e exas- a nação, atravessando a Linha Maginot racial e acendendo o
perações nas mentes dos Administradores Onipotentes; e, para fogo nos corações dos brancos. As rodas começaram a girar, o
corporificar esta decadência percebida e atuar como pára-raios dcgêlo teve início e apesar de Emmett Till e Mack Parker esta-
contra o temor, floresceram os beatniks no cenário americano. rem mortos. embora Eisenhower enviasse tropas para Little Rock,
apesar da presença simulada de Autherine Lucy na Universidade
Como pioneiros defendendo seus direitos na terra de nin- de Alabama ser uma farsa - a despeito de tudo isto, já estava
guém que se espalha ao longo da Linha Maginot racial, os claro que a grande operação cirúrgica de L954 lograra êxito e
beatníks - assim como, antes dêles Elvis Presley - tiveram que o paciente sobreviveria. O desafio agigantava-se no hori-
a audácia de fazer à luz do dia o que a América vinha há muito zonte: a África Negra, enigmática e intransigente, começava a
tempo fazendo, como os larápios, no anonimato da noite: rela- desfilar suas nações recém-libertadas nas Nações Un.idas; e o
cionar-se em nfvel humano com os negros. Insultados, abomi- lslã de EJjjah Muhammad, all11pliando-se nas inflamadas refor-
nados e desprezados pelos "modeladores da opinião pública",
perseguidos pela polícia, transfoJmados num epíteto do ridículo mas anunciadas pela língua perfurante de Malcolm X, corria
pelos gaiatos da panelinha do Cachono-Quente-e-Leite-Maltado, pelas ruas dos Negros com Ellen Ginsbcrg e Jack Kerouac.
os beatniks irreverentemente recusaram-se a sair de cena. Allen Então, enquanto a revolta verbal das massas negras ele-
Ginsberg e Jack Kerouac ("os ritmistas Suzuki", como os cha- vava-se a um climax cacofônico (o Corpo, as Amazonas e os
mara James Baldwin, zombeteiramente, num momento de pânico, Criados Supermasculinos, tornando-se conscientes, gritavam de
"cansados das ambições brancas" e "arrastando-se de madrugada milhares de maneiras "Eu tenho uma Mente própria"); e en-
pelas ruas dos Negros, procurando nelas uma saída para seu quanto o Senador de Massacbusetts salvava a nação das garras
inconformismo"; ou como explicou Norman Mailer", com o (tipo Dr. Fantástico) do Detetive Imundo, injetando, ao mesmo
código do homem negro orientando suas ações"). O Bing tempo em que emergia vitorioso, um nôvo e vivo espírito no
Crosbismo, o Perry Comoísmo e a Dinah Shoreísmo levavam povo com o jeito do seu sorriso c o penteado de sua mulher;
ao câncer, c a vanguarda da juventude branca o sabia. então, como se um sinal tivesse s.ido dado, como se a Mente
gritasse para o Corpo: "Estou pronta!" - o Twist, desbancando
E assim com o espírito de revolta foi se alastrando vaga- n flula Floop, explodiu no cenário como uma detonação nuclear,
rosamente por todo o continente desde aquêle ônibus errante espalhando sua poeira atômica de ritmo nas Mentes e Corpos
em Montgomery, no Alabama, vertendo como nova vida pelas do povo. A precipitação : o Hully Gully, a Batata Amassada,
rachaduras c abrigos dos guetos do Norte e varrendo com ventos o Dog, a Banana Amassada, o Watusi, o Frug, o Swim. O Twist
furiosos os campus das Universidades do SuJ, para entrar em foi um míssil teleguiado, lançado do gueto no coração da cidade.
erupção, finalmente, nos sit-ins e passeatas pela liberdade - O Twist teve o êxito que a polícia, a religião e a lei jamais ti-
assim êste turbilhão fantástico de mudanças sociais convulsionou veram, escrevendo no coração e na alma o que a suprema Côrte
o país, abalando um público americano confiante, a música fol- somente podia escrever nos livros. O Twist foi uma forma de
clórica, falando de verdades fundamentais, saindo lentamente do terapia para uma nação em convalescença. O Administrador
túmulo; e o lóbulo morto do ouvido nacional, contraído invo- Onipotente c a Ultrafeminina responderam ao Twist tão dramà-
luntàJiamente à princípio, começou a ouvir. ticamente, sob um impulso comum, precisamente porque êle

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)hcs proporcionou a ]Ossibilidade de redamarem rtova1nen(e - Estão tentando voltar atrás - dizia outro.
seus Corpos após gerações de vida alienada e incorpórea. - Merda - desabafou um jovem negro que passara a
Os rígidos e mecânicos Administradores Onipotentes e Ul- vida roubando lojas. - Se me fizessem a p ergunta, diria que
trafemininas apresentaram um espetáculo surpreendente enquanto acho que é o fim do mundo.
entravam aos bandos nas pistas de dança para aprenderem a - Uuuuu-iiii! - exclamou um músico negro que estivera
mexer com o corpo. Vieram de cada nível da sociedade, do tocando m1m baile e que agora assistia os dançarinos. - R apaz,
mais alto ao mais baixo, contorcendo-se ridícula mas prazero- nunca vi uma coisa assim! Olha aqui, cara, abra o jôgo e diga-me
samente pelo salão, sentindo estímulos animadores e experimen- o que está acontecendo! Quero dizer, será que eu fiquei por
tando novas sensações, libertados de alguma prisão desconhecida fora? O nde é que eu andava? R apaz, passei a vida soprando
na qual seus Corpos haviam sido encerrados, gozando de uma um pedaço de lata e nunca assisti a uma coisa igual. Sabe,
liberdade que jamais sent iram antes, de um sentimento de co- cara. vou entrar na brincadeira. Uuuu-üii ! Olha aquela puta
munhão com alguma or.igem mística de vida e vigor, da qual ali! Que diabo ela está tentando fazer? Tá querendo remexer
saltava uma nova consciência e prazer da carne, uma nova apre- ou quebrar a espinha? Uuuuu-iiiii!
ciação das possibilidades de seus Corpos. Êles se requebravam,
Uma jovem negra disse: - Leve-me para casa, não
giravam e sacudiam suas pequenas bundas mortas como zumbis agüento mais!
petrificados tentando reconquistar o calor da vida, reacender os
membros inativos, a bunda fria, o coração de pedra, as rígidas, Outra respondeu: - não, vamos ficar! Isso aqui é feno-
mecânicas e desempregadas juntas com a centelha da vida. menal!
e&te espetáculo surpreendeu realmente muitos negros, por- E um sujeito negro barbado, que não estava interessado
que êles o perceberam como uma intrusão da Mente na província em aprender a requebrar, que achou que se estivesse interessado
do Corpo, e aquilo anunciava o caos: porque os negros sabiam, podia levantar-se da mesa naquele momento e começar a se
pela experiência de sua vida diária, que o sistema dentro do contorcer, disse para uma garôta ao seu lado já com a cabeça
qual estavam aprisionados era fundamentado na Linha Maginot girando:
racial c que o pecado mortal, o cruzamento da linha - travessia - Não é nada. :Eles apenas estão tentando voltar atrás,
comumente iniciada do lado negro - estava sendo cometido, isso é tudo.
en masse, pelos brancos. Os Administradores Onipotentes e as - Voltar atrás? - disse a jovem franzindo as sobrance-
Ultrafemininas invadiam a Linha Maginot! Fôra desfechado um lhas irônicamente. - Voltar atrás de onde?
ataque maciço sem paralelo na história americana e, para os - De onde quer que êles tenham estado - respondeu o
Negros, tudo isso era muito confuso. Claro, 6lcs o testemunha- negro barbado. - De onde mais poderiam voltar?
ram em escala individual: haviam visto muitas pessoas brancas - O que eu quero saber é se êles estão fazendo o mesmo
destruir a Linha Maginot. Mas, desta vez, a coisa tinha tôda a em Mississipi - observou um negro alto, de olhar venenoso,
aparência de um movimento nacional. Circularam até mesmo com uma grande cicatriz de navalha na fronte esquerda e que
rumôres de que o Presidente Kennedy e sua Jackie dançavam deixara o Mississipi às pressas certa noite.
o Twlst secretamente na Casa Branca; e que seu Assessor Nú- E os dançarinos foram apanhados por um remoinho de
mero Um fôra enviado disfarçado ao Peppermint Lounge para êxtase, balançando como pêndulos, mecânicamente como metrô-
aprender o Twist e trazer a moda para a Casa Branca. Aquêles nomes ou fantoches com cordas invisíveis sendo manipuladas
negros sabiam que algo de fundamental importância mudara. por um mestre dotado de um tremendo senso de humor.
- Rapaz, o que deu nessa gente branca? - perguntava - Parecem chineses fazendo exercícios populares - co-
um. mentou um negro. - Isso é tudo que estão fazendo, ginástica!

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- :t verdade - disse o companheiro. -Estão tentando fato de seu marido estar na cadeia, êlc não teria vencido. Da
ficar em forma. mesma forma, estou convencido de que Luci Baines Johnson,
Em bora a princípio divertido e confuso, tratou-se não obs- dançando o Watusi em público com o Matador Joe .Piro: con-
tante de uma ruptura. Os Administradores Onipotentes e as quistou mais votos para seu velho em 1964 do que JamaiS po-
Ultrafeminin as descobriram novos aspectos do Corpo, novas pos- deria conquistar um vagão cheio de seus discursos empolados.
sibilidades de ritmo, novos meios de se mover. O Hula Hoop
Quando irrompeu a Revolta de Birmingham, !'o v~rão ~c
fôra um princípio falso, uma tentativa mecânica e teatral da
1963 e o Presidente Kennedy entrou em cena profenndo a naçao
Mente para suprir-se do que apenas o Corpo pode dar. Mas,
com o Twist, êles finalmente sabiam estar requebrando. As um discurso sem precedentes sôbre os direitos civis e enviando
fôrças agindo na arena mundial de nossa época criaram na um projeto de lei ao Congresso, as bases do processo fo:am
psique coletiva dos Administrad ores Onipotentes e das Ultrafe- completadas . Martin L uther King Jr., dando voz às necessida-
mininas um desejo irresistível de simplesment e levantar e sa- des do Corpo, e o Presidente Kennedy, falando em no~ne das
cudir o gêlo c o câncer de suas bundas brancas alienadas, e o necessidades da Mente, entraram em contato naquele dta. Os
l-lula Hoop e o T wist proporcionaram formas socialmente acei- dançarinos do Twist, exibindo seus sapatos de camurça azul, so-
táveis de fazê-lo. brepujaram o fantasma de sapatos branc,os que come ~~chorro
Quente e bebe Leite Maltado, enquanto este dançava a Jlga ~e­
Naturalmente, nem todos os brancos tomaram parte nestas cânica de Satã sôbre o túmulo de Medgar Evers. Os assassmos
agradáveis experiências. Para muitos, quanto mais "sugestiva" bombardear iam agora em vão aquela igreja c assassinariam
uma dança se tornasse - isto é, quanto mais se tornasse puro grotescamen te aquelas jovens negras. (0 que esperavam ma~
Corpo e menos Mente- tanto mais escandalosa parecia; e suas tar? estariam atacando o escuro da pele ou o fogo da alma.
reações foram um índice para o grau de alienação dos seus a história? o Corpo?.) Também foram em vão as ~alas assas-
Corpos. Mas o que condenaram como um sinal de degeneração sinas que esmigalhara m a cabeça de John Kenne~y, ~trando uma
c decadência moral era, na verdade, um sintoma de saúde, um vida, sim, mas criando algo ma ior e fracassando mtctramente em
sinal de esperança para a total recuperação. Como profetizou apagar do registro a Marcha sôbre_ W~shin~o~ e a sua_ verdade:
Norman Mailer: '· ... a igualdade do negro provocaria uma que esta nação - burguesa ou nao, unpenahst~ ou nao, . assas-
profunda mudança na psicologia, na sexualidade e na concepção sina ou não repulsiva ou não - e seu povo amda contmham,
moral de cada branco vivo". Precisamente porque a Mente se em alguma 'parte de suas almas sanguinárias e hipócritas, um
unia ao Corpo, a teoria se fundia com a prática. grandioso potencial de espírito que é sua esper~nça, um poten-
t!. significat-ivo o fato de que o Hula Hoop e o Twist en- cial inesgotável que acende a imaginação da sua JUVentude. Mas
traram em cena com tôda a sua fúria no crepúsculo de Eise- era tarde demais. Muito tarde porgue chegara a hora dos negros
nhower e na aurora da era Kennedy. Poderia ser interpretado ("eu consegui umà M ente própria") fazerem agitação, varrere1'!1
como uma rebelião contra os anos vazios de Eisenhower. Ar- 0 Harlem à noite como uma onda de gafanhotos, quebrando, gn-
gumentar-se-ia igualmente que o movimento coletivo que fêz tando, sangrando, rindo, chorando, regozijando, celebrando, num
nascer o Twist foi o mesmo que elegeu Kennedy. Estremeço júbilo de destruição, para vomitar a bosta d? homem ~ra.nco
ao pensar que, dada a d-iferença mínin1a da votação final em que vinham comendo há quatro:entos ~~os; estllbaçan?o Vttm~as
1960, Richard Nixon poderia ter vencido fàcilmente as eleições das lojas do homem branco, at1rando tiJOlos que desejava~ fos-
se tivesse persuadido uma de suas filhas Ultrafemininas, para sem bombas, correndo, saltando em círculos como um Ciclone
não dizer Ultraquadrada, a dançar o Twist em público. Mesmo através da Mente do homem branco, desviando-se de seus coices
que Kennedy ficasse no telefone uma semana inteira comparti- no meio das ruas escuras de Rochester, New Jersey, Filadélfia.
lhando dos sentimentos da Sra. Martin Luther IGng Jr. pelo E embora a oposição, empanturran do-se de Cachorros Quentes

,186 187
c Leite M~ltado~ com. o sangue agora espalhado sôbre os sapatos seu atual e selvagem relacionamento. Esta é a contradição fun-
brancos, amda mvest1sse na escuridão contra as manifestações, damental do século XX; e é contra êste pano-de-fundo que tem
mostrando o protocolo da Hospitalidade Sulista reservado para lugar a tentativa da América de unir sua Mente e seu Corpo,
OS negros e OS Amantes dos negros - SCHWERNER-CHANEY- para salvar sua alma.
GOODMAN - também era muito tarde. Pois não somente Luci b neste contexto que os negros - personificando o Corpo
Baines Johnson dançara o Watusi em público com o Matador e, desta maneira, em mais íntima comunhão com as suas raízes
J oe, co~o os Beatles estavam em cena, injetando grandes doses biológicas do que os outros americanos - proporcionam o elo
de Negntude nos brancos, nesta era de agitação beatnik pós- salvador, a ponte entre a biologia do homem e suas máquinas.
Elv·is Presley. Na sua forma mais pura, como ajuste ao ambiente científico e
Antes de darmos nos Beatles um beijo homossexual - tecnológico de nossa era, como purgativo e suavizador da alma
dizendo: "se um homem fôr suficientemente burro para procurar do homem, encontra-se o jazz, emanação da fricção e da har-
a mulher dentro de si, êsse homem beijará outro homem; e se monia do negro americano com o seu meio ambiente e que con-
um~, mulher. procurar o .macho dentro de si, beijará outra mu- seguiu captar a batida e o ritmo dos nossos tempos. E embora
lher - de1xe-nos ad~trar o gênio de sua imagem, que con- a ciência e a tecnologia modernas sejam as mesmas em New
forta avestruzes e coruJas, naquele ponto em gue E lvis Presley York, Paris, Londres, Acra, Cairo, Berlim, Moscou, Tóquio,
"faturou'~: .Elvis, c?m sua batida estridente mas limpa (ainda Pequim ou São Paulo, ,o jazz é o único meio internacional ver-
que mecamca e .alienada), era ainda muito Corpo (e muito .d adeiro de comynicacão no mundo de ho~, capaz de falar cria- -
cedo) para as ps1ques retesadas e em decadência dos Adminis- tiyamente, com ig,11al jntepsjdade e relevância, aos povos de
tradores Onipotentes e das ~ltrafemininas; enquanto os Beatles, tôdas as partes.
fazendo uso da coroa caucastana da feminilidade e ignorando 0 A menos sofisticada (mas não menos apoiada no Corpo)
Corpo no plano visual (embora sua música, ao contrário, fôsse música popular dos negros urbanos - que foi conhecida como
cb~ta de Corpo), amenizavam as dúvidas de avestruzes e co- Ritmo e Blues antes dos brancos se apropriarem delas e desti-
ruJas apresentando uma imagem cerebral e incorpórea. larem-nas num produto que chamou de Rock'n Roll - é o
A música e a dança são, talvez, um pouquinho menos ingrediente básico, a raiz dos hinos espalhafatosos e cacofônicos
velhas d<: que o próprio homeffi:. Ê com a música c a dança, com os quais os Beatles de Liverpool levam suas hordas de
a reAcre~çao atrav~ da arte dos ntmos insinuados e implícitos na fãs Ultrafemininas à catatonia e à histeria. Para as fãs dos
cad~~c1a de sua vtda e de seu ambiente cuJturaJ, que o homem Beatles, que estiveram alienadas de seus Corpos durante tanto
punflca a alma das tensões da luta cotidiana, e mantém sua har- tempo e de maneira tão profunda, o efeito dêstes ritmos potentes
monia no universo. No ambjente cada yez 111-ais .mecanizado c eróticos é elétrico. Nesta música, o negro projetou - como
a~tom~tjzado e cjbernétjco do mundo moderno - um mund~ se drenasse o pus de uma ferida - a sua poderosa sensualidade,
fno e, mcorpóreo de rodas, superfícies plásticas canos' boto~ es,
)
sua dor e desejo, seu amor e ódio, sua ambição e desprêzo. O
transt~tore~, ~omputadores, ~ropulsão à jato, foguetes na Lua, negro projetou em sua música o seu próprio Corpo. Os Beatles,
energ~a at?mrca - a necess1dade do homem pela afirmação de os quatro rapazes cabeludos de Liverpool, estão oferecendo,
.sua bJOio ta tornou-se muito mais intensa. :Bie sente necessidacté como presente seu, o Corpo do negro; e, ao fazerem ·isto, esta-
e uma . e mJçao c ara e onde tetmina seu corpo e onde começa belecem uma comunicação rítmica entre o Corpo e a Mente do
a máquma, onde o homem termina e começam as extensões do próprio ouvinte.
h~mem. Essa grande ânsia massificada, que transcende às fron- Que venham os Beatles - representantes da alma, inter-
teJras raciais ou nacionais, resulta das sutis subversões do am- mediários da Mente e do Corpo. Um longo caminho desde os
biente mecânico que a tecnologia está criando mais ràpidamente Sapatos Brancos de Pat Boonc. Um ponto de parada num
do que é capaz de receber e assimil<u: o próprio homem 1 com trajeto va~aroso, percorrido deliberadamente a tôda velocidade.

188 J89
branco ficou entre nós, sôbre nós, à nossa volta. O homem bran-
co foi o teu homem e o meu homem. Não te esqueças desta
verdad e, minha Rainha, pois mesmo que ela tenha incendiado a
medula de nossos ossos e diluído nosso sangue, precisamos tra-
zê-la à superfície da mente, ao domínio do conhecimento , fixando
nosso olhar sôbre ela como uma serpente enroscada nas barras
A Tôd as as Mulheres Negras, do cercado de brincar de um bebê, ou como as flôres frescas sôbre
o túmulo de uma mãe. Ela deve ser pesada e compreendida no
de todo s os Hom ens Neg ros coração, pois o salto da bota do homem branco é o nosso ponto
de partida, nosso ponto de Decisão e Volta - o pivô salpicado
de sangue do nosso futuro. (Mas eu te pediria para lembrar
- - -- -- - - - --- --- ------- --- -- que, antes que pudéssemos sair da escravidão, tivemos de ser
derrub ados do nosso trono.)

Do outro lado do abismo estéril da masculinidade negada,


de quatro centenas de anos sem as minhas Bolas, vemo-nos hoje
face a face, minha Rainha. Sinto uma profunda e horrível fe-
rida, a dor da humilhação do guerreiro vencido. A vergonha do
Rainha-Mãe-Filha da África corredo r exímio que tropeça na partida. Não tenho justificações.
Irmã de minha alma Não posso suporta r olhar os teus olhos. Tu não sabes c ( cer-
Noiva Negra da Minha Paixão tamente deves ter percebido agora: quatrocentos anos!) que
Meu Amor Eterno durante quatrocentos anos fui incapaz de olhar diretamente os
teus olhos? Estremeço por dentro sempre que me olhas.
Posso sentir. . . no br-ilho dos teus olhos, de um lugar escond ido
Eu te saúdo, minha Rainha, não com a lamúria servil
de um Escravo submisso à qual já te acostumaste, nem com a
bem lã no fundo, um segrêdo que guardas hã muito tempo. Esta
é a simples verdade. Não que eu me sentisse justificado, em
nova voz, as súplicas oleosas da lustrosa Buq~uesia Negra, nem tais circ!lnstãncias, em tomar tais liberdades contigo, mas quero
com os gritos cruéis do grosseiro Escravo Ltvre - mas com que saibas que eu tinha mêdo de olhar nos teus olhos porque
minha própria voz, a voz do Homem_ Nc~ro., E embora _:c sabia que ali encontraria refletida a Denúncia impiedosa da minha
saúde de outra maneira, minha saudaçao nao e. n~va, mas tao impotência e o irresistível desafio de reaver minha masculinidade
velha quanto 0 Sol, a Lua e as Estrêlas._ E, ao mves de marcar conquistada.
um nôvo pr-incípio, significa apenas a mmha Volta. Minha Rainha, é difícil para mim dizer-te o que hoje sinto
Eu regressei dos mortos. E te falo neste momento do Aqui no coração por ti - o que está no coração de todos os meus
e Agora. Eu estava morto há quatrocentos ~~o.s. Dura~te qua- irmãos negros e de tôdas as tuas irmãs negras. E tenho mêdo
trocentos anos tu tens sido_uma..mulh.er_sQlrtaqa, despoJada do de fracassar, a não ser que venhas a mim, sintonize-te em mim
teu homem. uma mulher sem homem. Durante quatrocentos anos com a antena do teu amor, o amor sagrado em grau extremo
não fui nem teu homem nem meu próprio homem. O homem que tu não me pudeste dar porque cu, estando morto, não me-
recia recebê-lo; aquêle amor de negro, perfeito c radical, com
190
191
o qual nossos pais floresceram. Deixa-me beber da fonte do íttn som do sofrilnento da min/1a mulher. o soM DA MINHÀ
rio do teu amor, deixa as cordas da fôrça do teu amor amar- l\1ULHER C HAMANDD-ME, CHAMANDO-ME, EU OUVI O TEU GRITO
rarem minha alma e cicatrizar as feridas da minha Castração, @E SOCORRO, OUVI AQtJêLE SOM AFLITO MAS Al3AIXEI A CABEÇA
deixa meu exílio convexo terminar sua Odisséia assombrada na E NÃO DEI ATENÇÃO, OUVI O CHÔRO DA MINHA "MULHER , OUVI
tua essência côncava, que recebe aquilo que pode dar. Flor da O GR ITO DA MlNliA MULHER , OUVI MINNA MULH ER TMPLORAR
Africa, somente através do poder libertador do teu nôvo amor A PIEDADE DA BÊST A, OUVI-A IMPLORAR l'OR MIM, OUVI MINHA
é que a minha masculinidade poderá ser resgatada. Pois é nos MULH ER IMJ>LORAR A P I EDADE DA B~STA POR MIM, OUVI MINHA
teus olhos, diante de ti, que minha necessidade deve ser justi- MULH ER MORRER, OUVI O SOM DA TUA MORTE, UM SOM DE ES-
ficada. Só, só, s6 tu e somente tu podes condenar-me ou dei- TALIDO, UM SOM QUEBRADO, UM SOM QUE SOAVA O FINAL, O ÚLTI-
xar-me em liberdade. MO SOM, O DERRADEiRO SOM, O SOM DA MORTE, EU, EU OUVI , EU
Convence-te, I rmã Negra, que o passado não é um pano- O OUÇO TODOS OS DIAS, E U O OUÇO AGORA. . . EU T E OUÇO AGo-
rama proibido, algo para o qual não ousamos olhar com mêdo RA . . . Eu TE ouço . . . Eu te ouv.i então. . . o grito veio como
ele sermos, como a espôsa de Loth, transformados em estátuas um raio fulminante deixando em chamas um risco nas minhas
de sal. Pelo contrário, o passado é um espelho onisciente : con-
costas negras. Num estupor covarde, com o coração palpitando
templamo-lo e nêle vemos refletidos nós próprios e todos os
outros - o que fomos, o que somos hoje, como ficamos desta c os joelhos tremendo, vi o chicote da morte do Escravizador
maneira e o que estamos nos tornando. Negar-se a olhar para cortar zunindo o ar e morder com dentes de fogo a sua carne
o Espelho do Antes, meu coração, é recusar contemplar a face delicada, a carne negra e macia das Mães Africanas, forçando
do Agora. a Vida a sair prematuramente do seu útero dilacerado e ultra-
jado, o útero sagrado que or.iginou o primeiro homem, o útero
que incubou a Etiópia, populou a Núbia e deu à luz os F araós
do Egito, o útero que pintou de prêto o Congo e originou o
Eu vivi a sétima vida do gato, encarei Satã e virei as costas Zulu, o útero de Méris, o útero do Nilo, do Niger, o útero de
a Deus, jantei no chiqueiro dos Porcos, e desci ao ponto mais Songbay, do Mali, de Gana, o útero que sentiu o poder de
profundo do Buraco, entrando no Covil e apanhando minhas Chaka antes de êJe ter visto o Sul, o útero Sagrado, o útero que
Bolas de entre os dentes de um leão a rugir! conheceu a forma futura de Jomo Kenyatta, o útero dos Maus-
Maus, o útero dos Negros, o útero que nutriu Toussaint L'Ou-
verture, que aqueceu Nat Turner, Gabr·icl Prosser e Denmark
Beleza Negra, em silêncio impotente eu ouvi, como se fôra Vesey, o ·útero negro que se entregou em lágrimas àquela cor-
uma sinfonia de lamentações, os teus gritos de socorro, os apelos rente anônima e interminável da Nata da Africa, a Nata Negra
angustiados e cheios de pavor que ainda ecoam em todo o Uni- da Terra, aquela corrente anônima e interminável que com fortes
verso e por tôda a mente, um milhão de gritos dispersos através gemidos caiu no esquecimento do grande abismo, o útero que
dos anos de dor que se fundiram num único som de sofrimento recebeu, alimentou e sustentou firme a semente e devolveu So-
para assombrar e sangrar a alma, um som incandescente para journer Trutb, a Irmã Tubman, Rosa Parks, Bird e Richard
queimar o cérebro e acender o estopim do pensamento, um som Wrigbt, e suas outras obras de arte que usaram e usam nomes
de prêsas c dentes para comer o coração, um som de fogo se tais como Marcus Garvey, DuBois, Kwame Nkrumah, Paul R o-
alastrando, um som de gêlo que queima, um som de chamas beson, Malcolm X e Robert Williams, e aquêle que tu suportaste
que devoram, um som ardente, um som de fogo para derreter o com sofrimento c que se chamou Elijah Muhammad, mas, acima
aço das minhas Bolas. Um som de Fogo Azul, um som Melan- de tudo, todos aquêJes anônimos que êles te arrancaram do útero
cólico, um som de morte, um som da m iuha mulher em pranto, numa inundação de sangue de assassinatos que se espalhou e se

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infiltrou na lama. E Patrice L umumba, Emmett Till e Maék Vale da Escravidão, do Sofrimento e da Morte - ali, naquele
Parker. Vale escondido bem abaixo de nós por uma névoa que se esvai.
Oh, Minha Alma! Tornei-me um covarde lamur-iento, um Ab, que visões, sons e sofrimentos estão por trás daquela névoa!
desgraçado medroso, um bajulador vil, com o meu desejo de E pensávamos que a dura escalada daquele vale cruel levava
oposição petrificada diante do temor cósmico do Senhor dos a algum lugar agradável, verde, pacífico e ensolarado! Mas aqui
Escravos. Ao invés de instigar os Escravos à rebelião com uma tudo é selva, uma região selvagem e bravia que transborda em
oratória eloqüente, suavizei suas feridas e cantei com eloqüên- ruínas.
cia o Blues. Ao invés de atirar minha vida cheia de desprêzo Mas coloca tua coroa. Minha Rainha, c construiremos uma
na cara do meu Algoz, derramei o nosso precioso sangue! J'lova Cidade sôbre estas ruínas.
Quando Nat T urncr procurou libertar-me do meu temor, êsse
mesmo Temor entregou-o ao Carniceiro - um monumento mar-
tirizado à minha Emasculação. Meu espírito era sem vontade;
e minha carne, fraca. Ab, eterna ignomínia!
Eu, o Eunuco Negro, despojado de minhas Bolas, caminhei
pela terra com a mente trancada num Frigorífico. Eu mataria
um homem ou tlma mulher negra mais rápido do que esmagaria
uma môsca, enquanto colheria para o homem branco milhares
de qullos de algodão por dia. Qual o lucro dos esforços cegos
e exaltados dos (Culpados!) E unucos Negros (Justiceiros!) que
escondem suas feridas e menosprezam a verdade para mitigar
sua culpabilidade através do pálido sofisma de postular uma
Democracia Universal de Covardes, assinalando que na história
ninguém pode esconder-se, que, se não numa época, então cer-
tamente em outra, o salto de ferro do Conquistador esmagou na
lama as Bolas de Todos? Memórias do ontem não mitigarão as
torrentes de sangue que vertem hoje dos meus culhões. Sim, a
História lembra um texto escarlate, com seus rabiscos e pon-
tinhos impressos em vermelho com sangue humano. Mais exér-
citos do que os mostrados nos livros fincaram bandeiras em
solo estrangeiro deixando a Castração no seu rastro. Mas ne-
nhum escravo deve morrer de morte natural. E~is te um ponto
onde a Cautela termina e a Covardia principia. Enfiem-me uma
bala no cérebro com a arma do opressor numa noite de sítio.
Por que há dança c cantoria nos Bairros Escravos? Um Escravo
que morre por causas naturais não pode se comparar a duas
môscas mortas na Escala da Eternidade.
Ao invés de ser pranteado, merece piedade.
A mulher negra, sem perguntar como, diz apenas que so-
brevivemos à nossa marcha e trabalhamos forçados através do

194 19:5
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foi t'ODJpósto
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Fones: 273-4483
273-0905
Caixa Postal 30.174
S~o Paulo - BrasU
1971
JUL74 2 3 55 3 ment cujas premissas e normas de conduta po
lítica ferozmente combatem. São os Blac.
Panthers ( Panteras Negras) , de que Eldridg
Cleaver, o autor dêste livro, é um dos diri
CIEAVER, Eld gentes mais categorizados.
AUTOR , ALMA NO EXÍLIO - Autobior:rafia espr
Alma no enli o ritual e intelectual de um negro norte-america
TfTUL~oen~ no é uma obra apaixonante. Documento hu
mano, literário c político de extraordinári:
JUL74 2 3 55 3 Devolver am I relevância, seu sentido geral Jranscende as li
mitações da revelação pessoal. Verificaremo
UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA
BIBLIOTECA CENTRAL 15. JUN. 1981 i} que Eldridgc Clca ver, autodidata c escrito
nato, é um dos mais atilados críticos sociais d
seu tempo: demonstra-nos, com a ênfase ade
obra deve ser devolvida na Ciltima data carimbada quada a quem tanto sofreu (humilhações, prí
sões, exílio) , que a sociedade norte-american:
oscila entre a opulência e a miséria, entre 1
formalismo jurídico e o desrespeito aos mai
elementares e inalienáveis direitos do homem
A publicação dêste livro, nos Estado
Unidos, constitui evidência adicional dêss1
contraditório complexo de problemas em qu1
vive a maior, mais rica e poderosa nação de
UNIVERS' mundo capitalista: transformando-se em best
se/ler, aberto às mais variadas interpretações
BIBL!I um libelo contra a própria estrutura em qUI
ela se apóia. "Cieaver é um homem domi
nado por preocupações cristãs, pela angústia
e pelo desapontamento cristãos, pela resigna
Autor ....:~~~~
ção cristã, pela resistência messiânica e pell
esperança também cristãs" - escreveu Rober
., Coles na revista The Arlanric Monrhly. " .. .
Titulo :.:...~~--~~- ..
extraordinàriamente bem escrito por um ho
mem de espírito agudo e anal.ítico. . . produ;
no leitor os mais violentos choques e sobres·
pi -utua.J. e · · saltos, porque o autor não usa luvas de pelicr
'l!:i'c;i"fí õl::'tl:H!.me· e ilumina certas áreas sombrias que gostaría-
mos não fôsscm objeto de sua atenção ... " -
N. 0 RQglstro ..!.~f comentou Julian Mayfield em The Nation
" Uma obra excepcional, tanto pelo que di;
quanto pela forma como seu autor o faz ... '
N.° Chnmada - afirmou Thomas Lask em Tire New Yorl
Times.
Em suma: articulado e corajoso, sensíve
e conscientizado, Eldridge Cleaver nos dá err
Htm\ oubradu. mui
ALMA NO EXÍLIO um auto-retrato dramáticc
ullo 11\r dl'volvida e um vívido panorama de um dos grandes pro-
blemas humanos de nossa época.

FUH/BCE- 04 EDITÔRA CtVJLlZAÇÃO BRASil EIRA


Eldridge Cleaver
- negro norte-americano que
prisões e tôda a sorte de humilhações
faz dêste seu · ·

Alma no .Exílio
um

Documento humano, l iterário e


de extraordinária relevância, ____ ·L··---
1ivremente nos Estados Unidos, onde
objeto de compreensiva
transformando-se num oe~•r-setu~r

Alma no
não é apenas uma crítica acerba e ,...,,., .. ,"~
do establishment norte-americano, mas
um livro de esperança - obra que traJJSrrntet
uma mensagem de fé no futuro e de ~.;uuu<:lll~'i:ll
na ca pacidade de os homens
os seus erros e superarem
paixões egoístas

MAIS UM LANÇAMENTO DE CATEGORIA


C I V I L I I \ (' \ O H I{ \ \ I I I 1 I'

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