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HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO

Jean-Cassien Billier
Professor de Filosofia da Université de Ia Sorbonne Paris I e do
Institut Universitaire Européen de Florence

Aglaé Maryioli
Advogada
Doutora em Direito pelo Institut Universitaire Européen de Florence Ex-
professora da Université Catholique de Louvain-Ia-Neuve e da Université de
Rouen

?J/;/ W!Q

At
Manole
Título do original em francês: Histoire de Ia philosophie du droit
Copyright @ Armand Colin Publisher / VUEF, 2001

Tradução: Maurício de Andrade


Tradutor técnico e literário especializado em inglês, francês e alemão
Revisão científica: Ari Marcelo Solon
Professor Associado da Universidade de São Paulo SUMÁRio
Professor de Pós-graduação da Universidade Mackenzie
Editoração eletrônica: Francisco Lavorini
Capa e imagem da capa: Hélio de Almeida

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE SINDICATO


NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ.

B494h

Billier, Jean-Cassien
História da filosofia do direito / Jean-Cassien, Aglaé Maryioli ; tradução de
Maurício de Andrade. - Barueri, SP : Manole, 2005
Tradução de: Histoire de Ia philosophie du droit Introdução. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . ..
Inclui bibliografia XllI
ISBN 85-204-1601-2
PRIMEIRA PARTE
1. Direito - Filosofia. 2. Direito - História. I. Maryioli, Aglaé. n. Título. A FUNDAÇÃO GRECO-
04-2906. LATINA
CDU 340.12 Capítulo 1 A fundação grega. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 2
1. Urna fundação relativa. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
. . 2 2. A hipótese de urna visão completa do direito entre os gregos. .
. 6 3. A completude do direito e da ética no seio da pólis e do
Todos os direitos reservados.
político. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 7
Nenhuma parte deste livro poderá ser reproduzida, por qualquer
processo, sem a permissão expressa dos editores. 3.1 A questão do direito pela questão do bárbaro. . . . . . . . . . 7 3.2
É proibida a reprodução por xerox. O ser humano e a lei. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 8
Direitos em língua portuguesa adquiridos pela:
3.3 A complexidade do nomos """""""""""'" 14 3.4 Ética e direito. . . . . . . .
Editora Manole Ltda. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 16 3.5 Direito e sophia
Avenida Ceci, 672 - Tamboré """"""""""""""""" 27 3.6A questão da melhor lei. . . . . . . . . . . . . . . .
06460-120 - Barueri - SP - Brasil
Fone: (11) 4196-6000 - Fax: (I 1) 4196-6021 . . . . . . . . . . . 29
www.manole.com.br 3.7 A lei e sua escrita. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 31
info@manole.com.br
4. A completude do direito natural e do direito
Impresso no Brasil positivo: physis e nomos ............................................................... 34
Printed in Brazil 4.1 A autonomização do direito com relação à história. . . . 41
vi
HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO vii
SUMÁRIO

4.2 A referência a uma física particular. . . . . . . . . . . . . . . . . . 42 4.3 O


Capítulo 5 A construção da modernidade ......................................... , ......... 134
direito como ciência da divisão e da repartição. . . . . . 45
1. A antropologização do direito. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 134 2.
5. Completude do direito e pluralidade das ordens jurídicas
Grotius . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 135
no universo grego. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
3. Hobbes .................................................................................................. 138
. 48
4. Espinosa """"""""""""""""""""" 142 5. Pufendorf """""""""""""""""""'" 145 6. Locke
Capítulo 2 Personagens da teoria grega do direito. . . . . . . . . """""""""""""""""""""'" 145
. 53 7. Rousseau .............................................................................................. 148
1. Legisladores: Drácon, Sólon, Licurgo, Clístenes ........................ 53
8. Kant ....................................................................................................... 151
1.1 Drácon................................................................................... 54
9. A questão dos direitos inalienáveis: as declarações dos
1.2 Sólon ..................................................................................... 55
direitos humanos. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 166
1.3 Licurgo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 56
10. Hegel ................................................................................................... 181
1.4 Clístenes . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 57
11. Os positivismos ................................................................................... 186
2. A modernidade dos sofistas. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 57

2.1 A sofística naturalista: Antifonte, Trasímaco, Hípias,


Cálicles .................................................................................... 59 TERCEIRA PARTE
2.2 A sofística convencionalista: O Protréptico de Jâmblico, A CRISE DO DIREITO NO SÉCULO XX
Crítias e Protágoras ................................................................ 62
3. Platão . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 67
Capítulo 6 As teorias formalistas ................................................ 194
4. Aristóteles ........................................................................... 79 1. O paradigma formalista de Hans Kelsen ....................................194
5. Epicuro .............................................................................. 90 1.10 contexto epistemológico de emergência do
6. Os estóicos. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . " . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 94
normativismo ....................................................................... , .......................................194
Capítulo 3 A via romana. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 98 1. A 1.2 Uma concepção anti-imperativista do direito. . . . . . . . 200 1.3
herança ambígua. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . O direito como sistema das normas hierarquizadas ... 202
. 98 2. Teoria do direito e fIlosofia do direito em Roma. . . . . . . . . . 1.4 A rejeição do jusnaturalismo................................................204
101 1.5 Validade e eficácia da ordem jurídica. . . . . . . . . . . . . . . 206 1.6
SEGUNDA PARTE As dificuldades internas do normativismo .. . . . . . . . . . 211 1. 7
A HERANÇA JUDAICO-CRISTÃ E A CONSTRUÇÃO DA MODERNIDADE Teoria pura do direito ou teoria do direito puro?
O dualismo irredutível do Ser e do Dever-Ser. . . . . . . . . 214
Capítulo 4 Aherançajudaico-cristã ......................................112 1.8 O objeto da ciência do direito. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 219
1. A fonte bíblica. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 2. Carré de Malberg ou o positivismo estadista francês. . . . . .
112 2. O pensamento medieval, o direito segundo Tomás de 226
Aquino e a evolução do pensamento escolástico """'" 120 2.1 O contexto de emergência da doutrina de Carré
de Malberg ............................................................................... , ........................................... 226
viii ix
HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO SUMÁRIO

2.2 A submissão do Estado ao direito. . . . . . . . . . . . . . . . . . 228 5.3.1 A idéia de pluralismo jurídico. . . . . . . . . . . . . . . . . . 303
2.3 A ordem jurídica: hierarquia dos órgãos, das 5.3.2 O direito objetivo segundo Léon Duguit .., .................. 313
normas ou das funções? ......................................................... 232 5.3.3 O pensamento de Georges Gurvitch ..., ........................ 320
Capítulo 7 As teorias antiformalistas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 237 5.3.4 O fato normativo segundo Gurvitch .., ......................... 321
1. O decisionismo de Carl Schmitt ............................................... 237 5.3.5 O direito social segundo Gurvitch ..., ........................... 324
1.1 A crítica do normativismo .................................................... 239 5.3.6 A teoria institucionalista do direito de Maurice
1.2 A exceção no fundamento do decisionismo . . . . . . . . . . 240 Hauriou . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
1.3 O decisionismo, o normativismo e o institucionalismo .. 246 330
1.4 A crítica do liberalismo. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 5.3.7 O institucionalismo de Santi Romano. . . . . . . . . . . 335
248 5.4 As teorias marxistas do direito. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 340
2. O realismo americano. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 6. Os tópicos jurídicos. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 347
251 2.1 Primeira tese. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Capítulo 8 As teorias idealistas do direito. . . . . . . . . . . . . . . . 351
252 2.2 Segunda tese. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1. O neokantismo de DeI Vecchio e de Stammler..................... ,... 351
. . . . . . 254 2.3 Terceira tese. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 2. A fenomenologia do direito. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
. . . . . . 256 2.4 Quarta tese. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 357
. . . . . . . . . . . 258 2.1 Edmund Husserl e o método fenomenológico ...,... 357
3. O realismo escandinavo .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 2.2 As análises de A. Reinach e de Gerhart Husserl ....... ,. 359
261 2.3 O existencialismo jurídico. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
3.1 As teses dos realistas escandinavos...................................... 261 3629 O renas cimento do direito natural. . . . . . . . . . . . 368
Capítulo
3.2 Crítica ao realismo de Alf Ross ........................................... 266 1. Leo Strauss e a crítica da modernidade ...................................... 368
4. François Gény e a Escola do direito livre. . . . . . . . . . . . . . . . 268 2. O renas cimento do direito natural na Alemanha. . . . . . . . . 374
4.1 O pluralismo das fontes de direito. . . . . . . . . . . . . . . . . 269 4.2 3. O antimodernismo de Michel Villey* ........................................ 379
A livre pesquisa do direito. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 273 4. Finnis . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . '. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
5. A sociologia do direito. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 277 . 385
5.1 Da jurisprudência dos interesses à sociologia jurídica. 277 Capítulo 10 As metamorfoses do positivismo jurídico. . . . . . 387 1.
5.1.1 A jurisprudência dos interesses. . . . . . . . . . . . . . . . . 277 A designação dos modelos. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 387 2. A
5.1.2 Nas origens da sociologia do direito: concepções crítica do positivismo tradicional por H. L. A. Hart ...,. 397
européias e anglo-saxônicas ............................................... 280 2.1 A definição do direito como textura aberta. . . . . . . . . .
5.2 O enfoque sociológico do direito de Max Weber . . . . . . 288 402 2.2 A estrutura do sistema de direito. . . . . . . . . . . . . . . . .
5.2.1 O formalismo normativista de Max Weber . . . . . . . 289 . . 406 2.3 Incerteza quanto à regra de reconhecimento. . . . . .
5.2.2 A racionalidade weberiana do direito. . . . . . . . . . . 293 . . . 409
5.2.3 Para uma crítica das teses weberianas """"'" 295 5.2.4 O
* Escrito por Jean-Cassien Billier.
Estado de direito e o decisionismo weberiano " 297
5.3 As teorias do pluralismo jurídico. . . . . . . . . . . . . . . . . .
303
x
HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO

3. O neo-institucionalismo: Neil MacCormick e Ota


Weinberger ................................................................................. 412
4. Ronald Dworkin: criação e aplicação do direito. . . . . . . . . . 419 4.1
A interpretação construtiva do direito. . . . . . . . . . . . . . 419
4.2 O liberalismo dworkiniano ................................................... 424
4.3 Princípios e políticas. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 426
5. A reconstrução habermasiana do direito. . . . . . . . . . . . . . . . 429
5.1 Um modelo de justiça processual. . . . . . . . . . . . . . . . . . 433 5.2
Justificação e aplicação do direito: Klaus Günther "" 437
6. A teoria da autopoiese e o direito. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 440 7. Para Nikita
A evolução da teoria italiana do direito e a crítica do
positivismo jurídico. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
448
8. O questionamento radical do positivismo jurídico. . . . . . . 458
8.1 A crítica desconstrucionista do direito: o movimento
dos Critical Legal Studies . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 458
8.2 O ceticismo desconstrucionista de Stanley Fish . . . . . . . 464
8.3 O neonietzscheísmo de Michel Foucault* ........................... 470
Conclusão. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
476
Bibliografia. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
479

* Escrito por ]ean-Cassien Billier.


INTROduçÃo

UMA HISTORIA DA FILOSOFIA DO DIREITO não é obrigatoriamente urna


filosofia da história da filosofia do direito. Certamente é preciso des-
confiar de urna neutralidade axiológica ingênua que pretendesse garantir
urna apresentação objetiva de um cortejo histórico de doutrinas: a de-
limitação do quadro histórico, a ênfase dada a este ou àquele momento da
história do pensamento e a própria leitura de cada um desses momentos
são diversos pontos de urna inevitável tornada de posição. Em
compensação, a pretensão sistemática e, principalmente, a ambição de
extrair da cronologia das doutrinas a construção de um sentido geral da
filosofia do direito podem ser excluídas em conjunto pelos autores, o que
é o caso aqui. O que anima esta obra é a simples convicção de que a
compreensão dos debates contemporâneos sobre a filosofia do direito
supõe urna perspectiva dupla: por um lado, a História remetendo o leitor
contemporâneo às problemáticas antigas, gregas e latinas, e lhe indicando
a importância da raiz judaico-cristã; por outro lado, a tentativa de
desenhar mais precisamente os contornos das construções teóricas
múltiplas e muitas vezes concorrentes do século xx. Parafraseando
xiv HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO
xv
INTRODUÇÃO

o que diz Ernst Tugendhat nas proposições introdutórias da primeira de suas sofia do direito ocidental. Essa vontade de estender longamente a parte
Conférences sur l'éthique1, poder-se-ia dizer que o principal erro possível em sobre o século XX corresponde à idéia de que talvez ele seja o menos
matéria de direito e de filosofia do direito hoje em dia consiste em opor conhecido do leitor neófito em matéria de filosofia do direito, além de ser
esses dois domínios, como se o direito pudesse ser uma doutrina pura em evidentemente o mais crucial para que esse mesmo leitor se possa
atuação nas instituições soberanas sem implicar uma filosofia subjacente, orientar nos debates da filosofia do direito contemporânea. Convém ob-
ou como se a filosofia política geral pudesse fazer abstração da dimensão servar, todavia, que esta obra não pretende fazer a história do presente,
jurídica. O primeiro caso é evidentemente anormal, já que tal posição por mas modestamente pôr em evidência as doutrinas que condicionam em
parte dos juristas seria ainda filosófica, no sentido, por exemplo, de um grande parte os debates contemporâneos.
normativismo positivista e estatal inconsciente de si mesmo, ou de um A segunda consiste em infligir ao leitor um segundo desequilíbrio
"direito jurídico limitado" em todo o sentido da expressão, inicialmente na apresentação do imenso período que se estende da Antiguidade ao sé-
hegeliano.2 O segundo seria ainda mais anormal, já que a filosofia desde a culo XX. Dessa vez, é a Antiguidade greco-Iatina que ocupa a maior par
Antiguidade não deixou de se debruçar sobre a questão do direito pela te. Essa desigualdade deliberada de tratamento corresponde à mesma
pena dos mais ilustres representantes, de Platão e Aristóteles até Kant preocupação que motiva a ênfase no século XX: considerou-se que
e Hegel, isso para não falar - o que este livro fará - dos teóricos do o período da história da filosofia política e jurídica que foi mais
século XX. Em suma, para parafrasear as proposições de Tugendhat a extensamente coberto por grande número de estudos, que vão desde as
propósito da ética, o conflito fundamental não é aquele que opõe o direito mais simples exposições pedagógicas às análises mais eruditas e
e a filosofia, mas com toda evidência aquele que opõe diferentes exaustivas, é exatamente o que vai da Renascença ao século XX, e
concepções da filosofia do direito. Dar ao que por isso é também o mais bem conhecido. Em vez de fazer uma
leitor os meios de se orientar por essas diferentes concepções é a grande nova exposição sistemática de todas as doutrinas desse longo período,
ambição deste livro, que tem uma simples vocação pedagógica. preferiu-se não apresentar mais que pontos de referência, insistindo
É necessário também explicar aqui as escolhas que orientaram a especialmente sobre a originalidade da fonte judaico-cristã de parte das
organização desta obra. idéias da tradição jurídico-política oci
A primeira consiste em propor um conjunto historicamente dese- dental. Essa limitação permitiu, em compensação, dar mais atenção
quilibrado. Um grande espaço foi concedido às doutrinas do século XX, àAntiguidade, e tentar recolocar as invenções gregas em matéria de
em detrimento de uma exposição detalhada de toda a história da filo filosofia do direito no corpo completo do pensamento ético antigo.
O ilustre filósofo italiano Norberto Bobbio declarou um dia que
amava pouco as histórias da filosofia do direito em si mesmas, porque
desse modo elas não podiam ser mais que catálogos de doutrinas assaz
1 Ernst Tugendhat, Conférences sur l'éthique (1993), trad. Marie-Noelle Ryan, heterogêneas: aqui uma teoria política, acolá uma teoria do direito.3 Este
PUF, 1998, p. 19. Nós parafraseamos muito livremente, porque nessa passagem
Tugendhat contrapõe o debate necessário entre as diferentes concepções morais
com o debate incerto entre um ponto de vista moral e um ponto de vista não-
moral. 3 N. Bobbio, "Nature et fonction de Ia philosophie du droit", in Archives de
2 Encyclopédie, 1830, III, § 486. philosophie du droit, n. 7, Sirey, 1962, p. 9.
xvi
HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO

livro não escapa dessa crítica. Mas também é evidente que essa
heterogeneidade revela inevitavelmente aquilo que existe entre as múl
tiplas vias de acesso à filosofia do direito. A obra de Hart, por exemplo,
remete muito intimamente ao direito, no ponto em que o pensamento
PRiMEiRA PARTE
de Rousseau convida a uma reflexão sobre a lei no quadro amplo de
uma filosofia mais política que jurídica. Mas a própria diversidade de
ênfase faz a riqueza da história da filosofia do direito. A vontade de con-
servar a trama histórica nesta exposição é ainda pedagógica: pode-se
A FU N DAÇÃO G RECO-LATI NA
talvez deve-se - ler o máximo sobre a base de uma lenta evolução do JEAN/CAssiEN BilliER
pensamento. Assim, quando um leitor moderno descobre um artigo de
John Mackie sobre Ronald Dworkin, diagnosticando na obra deste último
uma "terceira teoria do direito"4 entre o positivismo jurídico e o
jusnaturalismo, o interesse dessa análise é decuplicado pela consciência
informada sobre a longa e complexa história da formação dessas duas
posições a respeito do direito. O esclarecimento histórico é, pois, o ob
jetivo modesto deste livro.

4 John Mackie, "The third Theory of Law': in Philosophy and Public Affairs,
v. 7, n. 1, 1977.
A FUNDAÇÃO GREGA 3

dado o risco de perder assim essa luminosa generalidade. Assim, do outro


CApíTUlo lado da Terra, a China não tem o que fazer com uma fundação grega da
1
razão e do direito: ela própria sabe bem como fazê-Io.2 Atribuir à Grécia
Antiga a tarefa exorbitante de fundar a razão só pode proceder de uma
evicção do resto do mundo. A GréciaAntiga foi certamente um mundo
prodigioso; mas ela não foi "o" mundo. Conhece-se, certamente, a célebre
A FUNDAÇÃO GREGA afirmação de Heidegger em Qu'est-ce que la philosophie?3: ''A filosofia é
grega em seu próprio ser - grego quer dizer, aqui, que a filosofia é, em seu
ser original, de natureza tal que foi em primeiro lugar o mundo grego, e
somente ele, que ela apreendeu, reclamando-o para se desdobrar". Hegel e
Husserl não disseram outra coisa antes de Heidegger.
Sabe-se até que ponto, para o bem e para o mal, pode-se sustentar a
tese de uma especificidade radical da razão grega e, conseqüentemente,
ocidental. É preciso dizer que a posição de herdeiros da "razão" e da
"democracia" ao mesmo tempo é invejável. A Grécia é um ancestral
1. UMA FUNDAÇÃO RELATIVA muito interessante, não por ser verdadeiro, sem dúvida, mas por ser
esquecido. Todavia, mesmo que aderindo à tese husserliana ou
O Ocidente adora ver na Grécia Antiga uma fundação original da heideggeriana de uma propriedade original grega da razão filosófica e
razão, para não dizer absoluta. A filosofia, como a própria etimologia da científica, é preciso admitir que a razão é a coisa mais bem compartilhada
palavra revela, seria uma invenção grega. O direito, na forma de um do mundo. O Oriente produziu normas e uma reflexão sobre essas
debate sobre a fundação da pólisl e os avatares da democracia ateniense, normas. Assim, a China teve evidentemente seus "legisladores" (fajia4).
seria também uma descoberta helênica. Portanto, basta um raciocínio No entanto, é muito claro que, após o modelo ocidental, a Europa
mínimo, mas muito breve mesmo (uma vez que não tem mais que a constituiu-se baseada em uma origem singular mais complexa, ao
aparência de um silogismo) para se deduzir com convicção que a Grécia
Antiga inventa de todas as formas a filosofia do direito. Mas como o
diabo mora nos detalhes, segundo o famoso ditado anglo-saxão, não é
preciso aprofundar-se desde já nos entrelaçados do real e da história, 2 O que não implica evidentemente não reconhecer a especificidade do pen samento

chinês e conceber ingenuamente como universal idéias como "razão" e "direito".


3 Martin Heidegger, Questions lI, trad. de Kostas Axelos e Jean Beauffret,

Gallimard, 1968, p. 15.


l(N.T.) A transcrição das palavras gregas que aparecem nesta obra foi feita
4 Ver François Jullien, "La pensée fondatrice de Ia Chine", in
de acordo com as regras de acentuação do português, de modo a facilitar ao
Histoire de Ia philosophie, t. 1, Armand Colin, 1998, p. 154; Anne Cheng,

Histoire de Ia pensée chinoise, Le Seuil, 1998.
ximo a pronúncia. Vale lembrar, especificamente, que a letra x sempre tem
som
de ks (como na palavra "paradoxo" em português).
4
HiSTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO
A FUNDAÇÃO GREGA
5

mesmo tempo judaica, cristã, grega e romana5. Enfim, isso parece mui
Então, fica claro por que abrimos esta discussão sobre a fundação
to banal, pois contém uma dificuldade de abordagem: que forma parti
grega da filosofia do direito sob a égide de uma dupla limitação: essa
cular do direito e da razão inventaram esses prodigiosos ancestrais que
fundação, ao lado da fonte judaico-cristã, implica imediatamente
foram os gregos? O risco de uma questão desse tipo é muito considerá circunscrever o conjunto da análise e designá-lo como uma história da
vel para admitir uma resposta simples e unívoca: trata-se de nada menos filosofia do direito ocidental; essa primeira e tão emblemática fundação
que reivindicar uma identidade filosófica e política da Europa em grega certamente está longe de ser imaginária, mas está bem diante de
face do resto do mundo (chineses, hindus, muçulmanos, se bem que, todo o teatro de afrontamento das interpretações: há a Grécia de
neste último caso, a interpretação se torne mais difícil em razão das Heidegger, a de Hannah Arendt, a de Leo Strauss, a de Michel Foucault
influências gregas6), ou seja, a exclusão do resto do mundo. Trata-se ao etc., depois a dos historiadores e, entre estes, a dos historiadores do
mesmo tempo de designar a fonte preponderante do modelo de racio direito. Nem sempre essas Grécias coincidem. Dizer "os gregos" já é um
nalidade política ocidental: os gregos ou os romanos, os judeus ou os grande esforços evidente. E na evolução das teorias filosóficas e das
cristãos? instituições gregas, uma curiosidade temporal particular de nossa
Qual é, portanto, o sentido espiritual (Geistig) da Europa, não geo- memória ocidental não é o menor dos paradoxos: os gregos são para nós,
gráfica, mas "transcendental': para retomar a questão de Husserl na sua globalmente, os inventores da pólis, assimilada à democracia, e da
Conferência de Viena de 1935? Em que ele é grego? A interrogação so filosofia, assimilada aos grandes nomes de Sócrates, Platão e Aristóteles.
bre o primitivo parece conter em si mesma a possibilidade de uma mi Ora, a fase da história grega durante a qual a pólis é criada, instituída e
tologia da origem. Então, não deixaremos de lado a suspeita de que se depois transformada localmente e muito brevemente em pólis
possa criar os gregos que se queira. É preciso dizer deles o que democrática, vai do século VIII ao século V a.c. Os filósofos
Tocqueville considerados maiores não aparecem senão no exato momento em que a
declarou sobre a América: "Confesso que na América eu quis mais do democracia é novamente colocada em questão. Há então nessa história o
que a América; procurei ali uma imagem da própria democracia, de suas "enorme paradoxo de dois dos maiores filósofos que já existiram, Platão e
tendências, de seu caráter, de seus prejulgados, de suas paixões; quis Aristóteles, serem filósofos do século IV a.c., e não serem filósofos da
conhecê-Ia, e não foi senão para saber ao menos o que devemos esperar criação democrática grega. [...] O resultado disso é que nossas fontes,
quando refletimos sobre a política grega, não podem ser os filósofos do
ou temer dela"?
século IV a.c. e, em todo o caso, certamente
Rémi Brague, Europe, Ia voie romaine, Criterion,
5 não pode ser Platão, imbuído de um ódio inextirpável pela democracia e
1992. pelo demos"9.
6 Sobre a questão das fundações plurais do pensamento e o risco do

eurocentrismo, ver Histoire de Ia phiIosophie, I, Les pensées fondatrices,


sob dire
ção de ]acqueline Russ, Armand Colin, 1998. (Ver principalmente a
introdução
de]. Russ, p. 6.) 8 Rémi Brague, op. cit., p. 77.
7 Tocqueville, De Ia démocratie en Amérique, Introduction; citação que serve 9 Cornelius Castoriadis, "Imaginaire politique grec et moderne': in La montée
de l'insignifiance, Les carrefours du Iabyrinthe IV, Le Seuil, 1996, p. 163.
judiciosamente de epígrafe para os ProbIemes de Ia dém-ocratie grecque
de ]acqueline
de Romilly, Hermann, 1975.
6
HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO 7
A FUNDAÇÃO GREGA

2. A HIPÓTESE DE UMA VISÃO COMPLETA DO 3. A COMPLETUDE DO DIREITO E DA ÉTICA NO SEIO


DIREITO ENTRE OS GREGOS DA PÓLIS E DO POLíTICO

Tentar designar uma fundação grega da filosofia do direito implica


3.1 A questão do direito pela questão do bárbaro
então retomar aquém de Platão e auscultar as instituições e as teorias a
fim de discemir o que melhor poderia ser a invenção grega como tal. Esse Perante o grego, o outro quer dizer "o bárbaro". Curiosamente, a
empreendimento é no mínimo árduo, em razão da própria riqueza de uma alteridade do bárbaro não se definiu antes de tudo em termos de
civilização de múltiplas faces que se estende por diversos séculos. alteridade, no sentido em que ele seria simplesmente diferente por seus
Contudo, ao preço de aceitar o risco inerente a toda interpretação costumes, sua compleição e suas regras. O que é estrangeiro no bárbaro é
generalista, pode-se propor aqui a idéia de uma completude grega no que ele não parece ater-se às próprias regras. Uma passagem de Heródoto,
enfoque do direito. O que queremos dizer aqui por completude é um citada por um estudo sobre o pensamento sofista do qual retomamos aqui
cuidado extremo em dar conta não do direito, mas da totalidade da vida a análiselO, por exemplo, designa os persas como os homens que adotam
humana, em seus aspectos subjetivos e intersubjetivos, para empregar um muito voluntariamente os costumes estrangeiros: os xeiniká nomaia,
vocabulário certamente anacrônico ou, se preferirmos, do florescimento literalmente, as convenções estrangeiras. O bárbaro, visto por Heródoto, é
do indivíduo e da coletividade, ou seja, do indivíduo no por isso um ser incompleto: ele não se define por si mesmo, mas pelo
seio da coletividade. Esse primeiro aspecto da integridade diz respeito às outro, por aquele de quem adota as convenções. Essa plasticidade tem
relações da ética e do direito e, por extensão, da política. algo de imediatamente escandaloso: é bárbaro não aquele que tem outras
Um segundo modo de completude conceme ao direito de maneira leis, mas aquele que não tem leis próprias, ou que não parece ater-se às
mais específica: é o cuidado em dar conta da legalidade, no sentido da que poderiam ser as suas.
positividade das leis, produzindo o que é sem dúvida a primeira grande A incompletude intrínseca do bárbaro se manifesta por dois traços
doutrina do direito natural. Reduzir a contribuição grega a uma simples essenciais. O primeiro é que o bárbaro não parece alcançar uma verda-
doutrina original do direito natural seria amputar essa civilização de sua deira autarquia, isto é, uma autonomia no sentido literal do termo: ele não
viva consciência da legalidade, de sua longa experiência institucional em é apto a produzir as próprias convenções, as próprias leis. De imediato
matéria de produção de direito positivo. A completude grega da filosofia sua identidade é incerta: ele não é mais que um esboço móvel de identi-
do direito se desenha duplamente: um pensamento que reúne dades parciais adquiridas em meio a circunstâncias contingentes. Em
profundamente o indivíduo e a pólis, o movimento ético e a esfera oposição, o grego é aquele que produz a própria autonomia, e constitui
jurídico-política; e o reconhecimento de um par conceitual maior Physis e dessa forma sua identidade. O bárbaro é essencialmente um não-grego,
Nomos, Natureza e Convenção, para dizer de outra forma, a norma antes de ser acidentalmente um persa: ele é aquele que não se confere
inscrita em uma Natureza superior a toda convenção diante da uma identidade comunitária autônoma. Ser grego é então estar em
positividade das leis. sociedade

!O Barbara Cassin, L'effet sophistique, Gallimard, NRF Essais, 1995, p.177-8.


8 9
HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO A FUNDAÇÃO GREGA

grega: no início é a comunidade que se confere uma identidade e garante como tal, ele não diz a Cidade. A afirmação grega da pólis é a gênese do
assim a de seus membros. O segundo traço é ainda mais profundo: o direito. E essa gênese é também a gênese do ser humano, digno desse
bárbaro não obedece à Lei, mas às leis. Adotando as convenções de uma nome, finalmente assimilado ao grego. Uma vez que a Cidade é o prin-
pólis, ele pode estar apto a ali viver como bárbaro, mas não como grego. cípio e o fim, ela precede e excede o indivíduo, noção pouco expressiva
A relação com a legalidade é profundamente diferente: o bárbaro não faz nesse universo comunitário. O ser desprovido de Cidade (apólis) será,
mais que se curvar a um conjunto de prescrições, o grego se curva à Lei. para Aristóteles, o inverso do ser humano: o ser infra-humano, como o
Apoiando-se em Antifonte e em Xenofonte, Barbara Cassin propõe a seguinte animal, ou sobre-humano, como Deus. Definitivamente, entre o animal e
leitura: "[...] é preciso compreender que a plasticidade bárbara Deus, não há lugar para o indivíduo (hékastos), ser inconcebível no estado
apropriar-se dos conteúdos estrangeiros - distingue-se essencialmente da puro: há apenas o lugar do homem em sua essência de membro de um
conduta grega - respeitar as leis da mesma maneira, sejam quais forem. mundo comum. A individualidade será pensada eventualmente, mas
Em outros termos, o próprio do grego seria uma certa relação com o legal secundariamente a essa pertinência original. É precisamente este ponto
em si" 11. Não é interdito considerar esse enfoque grego do estrangeiro como que pode desvendar a especificidade da invenção grega do direito e do
uma negação de sua forma idiossincrática de identidade: a recusa de uma político: a pertinência do indivíduo a um mundo comum não se limita à
outra forma de apreensão da legalidade retoma à evicção de uma participação tácita de uma comunidade de valores, no sentido, por
possibilidade forte de alteridade. Sem dúvida é preciso dizer que a cons- exemplo, daquilo que será bem mais tarde a tese da sociologia de
trução de uma identidade forte parece aqui supor, ou acarretar, uma re- Durkheim; o bárbaro é bem capaz de uma adesão supostamente não
jeição também vigorosa da relação estrangeira com a legalidade. reflexiva. O grego saberá ele mesmo reconhecer o caráter convencional
Tomando (nomos) dos valores que uma comunidade se atribui, e saberá obedecer à
sua compreensão (julgada superior) da própria idéia de lei contra a sim-
convenção como tal. Nesse movimento em direção à abstração
ples aceitação (considerada contingente) das convenções de uma pólis, os
(da participação espontânea em uma comunidade de valores ao reco-
gregos apresentam a afirmação de um universal da legalidade. Conside-
nhecimento reflexivo da idéia de convenção, isto é, de lei) há tudo o que
rando a idéia de legalidade no que ela tem de universal, sua apreensão do
compõe o gênio próprio da civilização grega: a passagem de uma razão
legal se torna, de imediato, portadora de universalidade, sendo assim le-
"latente" (a simples idéia de comunidade) para uma razão "desenvolvi
gitimada como um critério justo para desconhecer qualquer outra relação
da" (a idéia de lei), sob a égide do cuidado teleológico12 de descobrir a
com o legal.
boa forma de comunidade pela invenção de boas leis.
Se a idéia moderna de história é estranha ao pensamento grego, não
3.2 O ser humano e a lei
obstante há aqui uma profunda descoberta da historicidade: a Cidade não
Dizer o direito é então dizer a Cidade, com a condição de que esta se originou dos deuses, nem da própria Natureza, ela é fruto de uma
seja a pólis grega. O bárbaro é um ser pseudopolítico: ele não diz a Lei criação racional de convenções. Medita-se em Tucídides: "A

12 O que é globalmente a análise de Husserl em La Crise de l'humanité


11 Op. cit., p. 178. européenne et ia Phiiosophie, trad. Gérard Granel, Gallimard, 1976.
10
HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO 11
A FUNDAÇAo GREGA

ausência do maravilhoso em meus escritos talvez os torne menos agra dáveis de povoada de puros racionalistas "divisando no céu o entendimento puro" 15:
compreender"13, mas o que é preciso entender doravante é a voz do primeiro Nietzsche, depois os estudos mais recentes como o de E. R. Dodds, Os
logos. Ora, é próprio do logos, esse todo semântico de linguagem e de Gregos e o irracional, souberam mostrar as zonas obscuras e passionais do
razão, estar vinculado à convenção, uma vez que o mythologos se dava espírito grego. A própria história da Grécia Antiga não é um doloroso teatro de
pela narrativa do Verdadeiro. Apresentar leis não é simplesmente paixões políticas contínuas, de guerras e de dissensões? É notável que a
apresentar palavras? Não é dispô-Ias pelo que elas são, convenções? Não convicção grega de que ser homem não pode ter sentido senão no meio de
nos deixemos enganar: o debate prosseguirá longamente, especialmente homens seja acompanhada por uma viva consciência do risco da multidão:
na obra platônica sobre a questão de saber se a linguagem é simples "Quanto maior é a multidão, mais cego éseu coração': afirmará a VII Neméia de
convenção ou veículo de significações "naturais". Esse célebre debate do Píndaro. Portanto, é por ser o homem naturalmente perigoso para o homem - algo
Crátilo de Platão, que põe em jogo a tese "convencionalista" de Hermó que os gregos sabiam bem antes de Hobbes - que é precioso encontrar remédio
genes e a tese "naturalista" de Crátilo e de Sócrates, não é o do direito? para esse risco. O único phármakon será a idéia de dominar o dado pelo
Os gregos souberam descobrir que a questão do direito é a questão da construído, o natural pelo reflexivo, o caos para o qual desliza
linguagem, e que a questão da linguagem é intrinsecamente jurídica. insensivelmente o indivíduo e a comunidade, pela ordem que se impõe ou que
Descobrir a força da convenção e o risco de ela não ser mais que uma se encontra. Esta é a idéia de lei: diante dos riscos de estar reunido e das
convenção é, portanto, descobrir a força e o risco de ser humano: ser pelas leis. desordens da com
A idéia de risco é onipresente no pensamento grego. É sem dúvida em .petição social espontânea, o Péricles de Tucídides se opõe com uma
torno dela que se organizam os conluios - mas não a confusão da ética e frase: ''A lei, que faz a todos, em seus diversos particulares, a parte igual..:'16.
do jurídico. De fato, se viver é inevitavelmente viver junto, o A anarquia é uma anomia: a ausência de lei. Ora, a anomia será sempre o
risco do político emana dessa reunião. Tem-se muitas vezes risco interno, e não apenas externo, das leis. O maior perigo é, certamente, a
realçado o léxico pejorativo da língua grega para designar a "multidão": ausência de leis. Mas essa não é uma situação abstrata? Tal ameaça
hómilos, okhlos,plethos sob a pena de Tucídidesl4. É preciso se desfazer radical implicaria a possibilidade de uma comunidade humana viver sem
do precon qualquer tipo de lei, algo que nem o próprio bárbaro pode fazer, pois ele sabe se
ceito absurdo de ver o homem grego antigo apaixonado pela ordem, pela fundir nas regras. O ser humano produz regras. Mas para que elas sejam
razão e seriamente dedicado a uma medida justa em todas as coisas. A realmente do direito, é preciso que da idéia simples de regra se passe à idéia mais
medida justa é o ponto culminante de idealidade proposto ao sábio por complexa de legalidade. É nesse contexto que se pode determinar a
Aristóteles na Ética a Nicômaco. O homem grego - mas ele não é qual- especificidade do "universo espiritual da pólis': para retomar uma expressão de J.-
quer homem? - seria antes espontaneamente irracional, entusiasmado, P Vernane7 que Pierre Vidal-Naquet comenta nestes ter
passional, em suma, perigoso para si mesmo e para os outros. Já faz tem-
po que o helenismo moderno abandonou o mito de uma Grécia Antiga

15 Pierre Vidal-Naquet, "La raison grecque et Ia cité" (1967), in La Grece


13Tucídides, Histoire de ia guerre du Péioponnese, Garnier- Flammarion, 1966, ancienne, t. I, Le Seuil, col. Points, 1990, p. 243.
trad. J. Voilqui, I, p. 43. 16 Tucídides, op. cit., 11, 37,1.

14 Por exemplo, Jacqueline de Romilly, op. cit., p. 25. 17 J.-P. Vernant, Les Origines de ia pensée grecque, PUF, 1981.
12
HISTÚRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO 13
A FUNDAÇÃO GREGA

mos: ''A originalidade da cidade grega não está no fato de que se trata de uma
Baseado nisso, a negatividade do bárbaro projeta uma nova luz sobre
sociedade obediente a regras - toda sociedade corresponde a essa definição - nem
a intuição grega do jurídico e do ético. O bárbaro remete, de fato, a um
no fato de que essas regras formam um sistema coerente - é uma lei não somente
duplo e profundo desprezo: pela liberdade e pela reflexividade.
dos grupos sociais, mas do próprio estudo desses grupos -, nem mesmo no fato de
politicamente, ele é aquele que alia o direito ao exercício da dominação.
que os participantes dessa sociedade têm vocação para a legalidade e a divisão do
Sabe-se, por exemplo, que Os Persas de Ésquilo assimilam o bárbaro e o
poder, porque isso é verdadeiro
inimigo, e que, historicamente, em seguida às Guerras Médicas, a idéia de
também para muitas sociedades 'primitivas'. [.u] Na Grécia, esses fenômenos
barbárie remete a um antagonismo político: ".u parece que, ao contato
alcançam o estado consciente: os gregos tomam consciência da 'crise
com o Império Persa representando a primeira forma organizada e
da soberania', por exemplo, ao se confrontar com os impérios vizinhos"18.
metódica de dominação que conheceram, os gregos compreenderam
É inventando não a idéia da lei, mas a consciência da lei, que os gregos
plenamente, por contraste, que a liberdade era um dos traços distintivos de
descobrem a idéia de legalidade. Ora, a anomia como risco interno das leis
sua civilização. As Guerras Médicas são apresentadas por Ésquilo e
parece ter relação com uma perda da própria idéia de legalidade: o vício é
Heródoto como o combate dos cidadãos gregos livres, defensores de suas
então mais puro e mais pernicioso, pois as leis são arruinadas por dentro.
pátrias, contra os exércitos de escravos bárbaros, tributários do Grande
A multiplicação literalmente anárquica de decretos, a inflação do corpo
Rei"21. Para o grego, a lei deverá ser a forma da liberdade, nunca a da
das leis sob a pressão das circunstâncias podem minar a idéia de legalidade. dominação. Ora, a questão filosófica
Pense no que dirão mais tarde Tácito, depois Rousseau: a multiplica subjacente consiste em se perguntar por que o bárbaro não conhece
ção das leis mata a lei. Na GréciaAntiga, Demóstenes se queixava dos abusos a liberdade e o quadro político que torna possível seu exercício. Uma
do poder legislador dos homens políticos, no Contra Timócrates: "Nossa cidade, resposta é sugerida pela descrição do bárbaro pelos historiadores, prin-
julgas, é governada por leis e por decretos. Se alguém vem destruir cipalmente Heródoto: o bárbaro é o homem de coragem cega, de ações de
por uma lei nova a decisão de um tribunal, onde iremos parar? É justo brilho (erga), enquanto o grego é apresentado sob os traços da as-
chamar a isso de lei? Não será antes um desafio às leis (anomia)?"19. O sentido túcia, da tática, da reflexão (logos). O desprezo pela liberdade está
da legalidade consiste na consciência de que o poder não deve ser um
liga
fato do homem político, mas do próprio direito. O poder a priori ilimita do a uma carência de reflexividade. O bárbaro é um ser dominado por si
do da pólis salvaguarda em vez de aniquilar, e a liberdade, assim como o
próprio: joguete da própria coragem e, politicamente, de seus prínCIpes.
princípio fundador, é respeitada: "o rei é alei" (nomos basileus)Z°. O fato de que
Esse segundo desprezo é mais carregado de conseqüências. Põe em
a comunidade é a única fonte da lei é uma garantia de liberdade.
jogo a relação grega com a liberdade sob a forma da reflexividade, o
sentido complexo da noção de nomos e, enfim, a relação do jurídico e da
ética.

18 Pierre Vidal-Naquet, op. cit., p. 249.


19 Demóstenes, Contre Timocrate, 152; sobre o contexto da crise política e
jurídica desta citação, ver J. de Romilly, op. cit., p. 109. 21 Marie-Françoise Baslez, "Le péril barbare: une invention des Grecs?", in La
20 Citado por Moses I. Finley, Les Anciens Grecs, 1963, trad. Monique Ale Grece ancienne, sob a direção de Claude Mossé, Société d'édition scientifique,
xandre, Le Seuil, col. Points, reed. 1993, p. 55. 1986, reed. Le Seuil, 1986, p. 289.
14 15
HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO A FUNDAÇÃO GREGA

3.3 A complexidade do nomos mem, a vontade divina grega se expressa pela vontade humana. Podese
então assistir, na Grécia arcaica de Homero, à assembléia dos homens
A passagem do fenômeno simples das regras, quer dizer, do fenô- sábios dando suas sentenças da mesma maneira como são representados
meno da própria sociedade, ao nomos supõe uma reflexividade: tudo sobre o cinturão de Aquiles no canto XVIII da llíada. "Essa é a thémis da
começa por se lançar neste salto que consiste em um abandono voluntário qual cada magistrado invoca o símbolo, pela mão estendida ou pelo
do mito, na emergência de um pensamento positivo e em urna cetro. Situada acima das decisões humanas, ela é transcendente." O justo
transformação geral da concepção grega de mundo. Na sociedade arcaica positivo é identificado com o justo natural, pois a vontade dos ma-
de Homero ou de Hesíodo, o ser humano era assim especificado por seu gistrados corresponde à manifestação da vontade transcendente. Portanto,
status de ser social e de portador da técnica. A dimensão propriamente ao mesmo tempo se exprime urna reflexividade em gestação: não seria
política desse ser só aparecia em filigrana. É a reflexividade que preciso inserir urna vontade humana, a dos sábios magistrados, para ter
engendrará o nomos, porque é preciso que o homem apreenda de novo sua consciência de maneira reflexiva da vontade divina, e não se deveria
humanidade corno animal político, e portanto jurídico, e não admirar a liberdade de ação nessa compreensão da lei? O acor
simplesmente social. Mas pensa-se no que dirão Schelling, depois Ernst do com a ordem harmoniosa do universo encantado pelos deuses não
Cassirer22 (ver, mais tarde e de urna outra maneira, Claude Lévi- éconcebido corno urna submissão brutal da vontade humana à vontade
Strauss): divina: ele é feito pela compreensão íntima e reflexiva da vontade supe-
a mitologia compreende a evolução da consciência e urna forma primeira rIor que rege o cosmos.
de pensamento positivo. Desde então, há urna criação progressiva da A thémis já contém em seu poder alguma coisa do nomos. Mas a
positividade pela reflexividade com base na própria mitologia. No campo realização dessa virtualidade pelo desenvolvimento da reflexividade
do direito e da justiça, essa progressão aparece entre os gregos. Na deverá passar por urna transformação de conceito e, para começar, de
reflexão grega original sobre o direito, manifestada sobre o modo vocabulário. "Progressivamente, a palavra dike vai substituindo thémis. A
mitológico, a idéia de justiça já é bastante complexa. Ela não é um sim- dike (de dêiknymi: mostrar) representa a justiça sob um aspecto
ples efeito da exterioridade dos deuses, urna pura "heteronomia': se mais intelectual que voluntário, e é vinculada apenas indiretamente à
quisermos adotar o vocabulário kantiano: ela já é bem ligada a urna clara vontade divina. É quando aparece a noção de nomos, de lei, mas com um
noção de vontade. Assim, "a justiça tem primeiro urna significação sentido de ordem onto-axiológica, despojada das nuanças voluntaristas
voluntarista. Se ela vem do exterior, é que decorre da vontade de um modernas favorecidas por traduções latinas imprudentes"24 (assim, a
deus, de Zeus"23. Esse voluntarismo divino se investe de urna idéia latina de lex em Cícero, por exemplo, supõe a auctoritas, o
humanização imediata: ao contrário da vontade divina da religião re- imperium, e não poderia traduzir verdadeiramente o nomos grego, que
velada dos cristãos, que se revela de forma direta de Deus para o ho excede o sentido simples da positividade das leis). O nomos remete ao
desdobramento da liberdade pela compreensão reflexiva da ordem do
universo. Estabelecer o nomos é restabelecê-Io, manifestá-Io: ele já está
22 Por exemplo, em Le mythe de l'État (1946), trad. Bertrand Vergely,
Gallimard, NRF, 1993, p. 79.
23 Jean - Mare Trigeaud, Humanisme de ia iiberté et philosophie de ia justice, t.
I, Biblioteque de philosophie eomparée, Bordeaux, Éd. Biere, 1985, p. 24 Jean-Mare Trigeaud, op. cit., p. 47.
46.
16
HIST6RIA DA FILOSOFIA DO DIREITO 17
A FUNDAÇÃO GREGA

inscrito na natureza das coisas, ele se identifica originalmente com um


verá perseguir o mesmo objetivo de harmonia universal, já que é natural.
direito natural. Ora, paradoxalmente, é absolutamente necessário esta
Pensemos na, não por acaso célebre, noção de isonomia. Ela tem por
belecer o que já é: é preciso manifestar a ordem natural em uma ordem
significado político e jurídico a participação dos membros da cidade na
positiva. Assim, a idéia grega do direito é antípoda das concepções da vida pública em níveis iguais: é o exercício comum, compartilhado,
modernidade. O direito grego não é um simples modo de relações de equilibrado da soberania sobre o modo grego. (Isso quer dizer que não é
indivíduos, e muito menos de possibilidade dos interesses particulares, preciso projetar aí uma concepção moderna da igualdade dos direitos: os
já que também não concerne propriamente à fala dos sujeitos do direi escravos, as mulheres, as crianças são outros obstáculos do mundo antigo
to: é um modo de relação com o mundo. Essa ambição exorbitante se para nossa visão moderna da igualdade; o cidadão grego da Política de
encontra também na preocupação de universalidade que habita a refle Aristóteles, por exemplo, é aquele que participa das assembléias do povo
xão grega sobre o direito. A pólis tem um valor universal porque ela ou que exerce uma função pública: isso exclui as mulheres, as crianças e
aqueles que sofreram uma atimia, isto é, que foram destituídos dos
estabelece uma nova relação para o mundo, e não somente para a so
direitos cívicos por uma falta grave.) Jean-Pierre Vernant pôde mostrar25
ciedade. Isso explica sem dúvida a estranheza, pelo menos aos olhos
o que esse exercício em comum da soberania supunha de igualdade no
modernos, das teorias jurídico-políticas gregas: enquanto nas doutri direito à palavra e à argumentação pública e de consciência de dever
nas modernas do direito natural o Estado será o meio da realização do realizar pelo estabelecimento de regras positivas a idéia de um justo
indivíduo, ele é o principal fim no pensamento grego. Se a liberdade equilíbrio natural. A isonomia é anterior à democracia; ela não é a
individual é impensável e quimérica, o direito não sabe interessar-se por democracia ainda, como esclarece um estudo de Pierre Vidal- Naquet e de
ela. O que importa é a independência do Estado, e não a do indivíduo. Pierre Lévêque consagrado a Clístenes, o Ateniense26, mas é de alguma
A intuição grega diz que quanto mais o Estado for independente, mais forma sua condição de possibilidade. Uma palavra que avance sobre as
o cidadão será livre. O elo indissolúvel entre o destino do indivíduo e o outras, um discurso que se pratique de súbito de maneira hegemônica e lá
está o corpo político desequilibrado. A isonomia é terapêutica: ela
da pólis faz com que a realização da ordem universal da natureza não
pretende restabelecer uma justa partilha da palavra e dos
possa ser senão coletiva. Cada grego tem, pois, um destino intrinseca
mente jurídico: ele só se realizará por uma justa manifestação do nomos.
3.4 Ética
Daí e direito
podemos tirar diretamente a relação do jurídico e do ético no
pensamento grego: são as duas faces de um mesmo remédio
destinado 25 Jean - Pierre Vernant, Mythe et société en Grêce ancienne, Maspero, 1974, p.
a restituir o justo equilíbrio natural. A mesma palavra, eklos, 208.
26 Pierre Lévêque e Pierre Vidal-Naquet, Ciisthêne 1'Athénien. Essai sur ia
designará
représentation de l' espace et du temps dans ia pensée poiitique grecque de ia fin
a doença e a injustiça: um desequilíbrio do corpo e da alma du VIe siêcle à ia mort de Piaton, Annales littéraires de l'université de Besançon,
individuais vaI. 65, Les Belles-Iettres, 1973, capo 11, p.31. Referência retomada e
e um desequilíbrio do corpo político. A medicina jônica ou claramente exposta em Martine Pécharman, ''L'idée du politique", in Notions de
phiiosophie, sob a direção de Denis Kambouchner, vaI. III, Gallimard, Folia
hipocrática
Essais, 1995, p. 93.
tentará restabelecer a lei de equilíbrio natural do corpo, a ética se vin
culará ao ser completo - não é ela essencialmente um remédio entre os
gregos? -, o político, pela via da instituição de uma ordem jurídica, de
18 19
HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO A FUNDAÇÃO GREGA

direitos. Ela tem um valor hipocrático, e por extensão ético. Um texto de nosso poder. Ora, objetou o acadêmico Carnéades28, "alguma coisa está
Alcméon de Crotona faz apelo à noção de isonomia para definir a saúde em nosso poder". Contra o argumento preguiçoso, e contra as conse-
do corpo, designando a doença como uma monarquia ou tirania exercida qüências nocivas para a ética dos argumentos necessitaristas oriundos da
por um dos elementos corporais sobre os outros. Ora, não é de fato uma reflexão de Diodoro Cronos sobre os futuros contingentes, é preciso
constante do pensamento grego comparar a pólis a um homem e o homem descobrir um campo possível para a liberdade. A resposta estóica, pela
a uma pólis? Como na filosofia platônica, em que o próprio homem é voz de Crisipio, foi sutil: consistiu em distinguir destino e necessidade e
apresentado como uma cidade onde se confrontam as forças antagônicas introduzir duas causalidades, uma adjuvante, que não depende de nós, a
prontas a acarretar desequilíbrios funestos. outra principal ou antecedente, que depende de nós. Mais uma vez o
Ser responsável por si mesmo: responder por seu corpo e por seu pensamento grego soube pensar a liberdade do homem, mesmo no
espírito diante de si mesmo e diante da comunidade. O herói das tragédias coração de um nó de necessidades29. É que a liberdade é a condição de
de Ésquilo ainda era um ser pré-jurídico: ele era o lugar de enfrentamento possibilidade da ética, do político e do jurídico, ou, como escreverá Kant,
das forças sobre-humanas que vinham intervir no coração de suas da prática. Por que coisas responderíamos se nossos atos não fossem
decisões. Nesse sentido, ele ainda não era dotado da autonomia da imputáveis a nós? A tragédia já apresenta essa condição sine qua nono
vontade que torna possível um no mos. E, por conseguinte, bem no seio da Conhece-se a célebre interpretação de Hegel para a An tígo na de
necessidade implacável que lhe era imposta, ele descobria uma margem Sófocles; no final da tragédia, o equilíbrio das leis foi restabelecido: se
de livre escolha sem a qual a responsabilidade por seus atos jamais lhe um morto foi furtado à lei dos vivos, um vivente será furtado dos viventes
poderia ser imputada.27 Também mais tarde, na filosofia de Epicuro na e devolvido à morte. A lei da Cidade e a dos mortos são equilibradamente
época helenística, é preciso que ele tenha um afastamento mínimo respeitadas. Certamente não se trata aqui de indivíduos, mas de relações
possível da livre escolha diante da necessidade: na física de Epicuro, será de equilíbrio entre dois universais. Mas a própria condição da tragédia
ao átomo e à sua declinação que será atribuída essa função fundadora,
assim como, na tragédia da mais alta Antiguidade, é ao hiato possível da
vontade individual no coração da necessidade. Se tomarmos como
exemplo a concepção estóica do universo, ponto culminante da deter- 28 Cícero, De fato, XIV, 31.
29 Alasdair MacIntyre comenta claramente este episódio estóico da liberda
minação pelo imenso poder do destino, encontraremos sem dúvida essa
de concebida em última instância como uma consciência reflexiva da necessida-
necessidade de estabelecer uma liberdade, ainda que seja mínima, para
de: "Since human nature is part of cosmic nature, the law which governs the
tornar pensável a ética. O argós logos, como os estóicos nomearam o cosmos, that of the divine Logos, provides the law to which human action ought
argumento megárico, "o argumento preguiçoso", enunciava uma necessi- to be conformed. At once an obvious question arises. Since human life proceeds
dade total e extrema. Se tudo depende do destino, nada mais está em eternally through an eternally predetermined cycle, how can human beings fail to
conform to the cosmic law? What alternatives have they? The Stoic answer is
that men as rational beings can become conscious of the laws to which they
necessarily conform, and that virtue consists in conscious assent to, vice in
27 Sobre este assunto, ver Jean-Pierre Vernant e Pierre Vidal-Naquet, dissent from, the inevitable order of things". (A Short History of Ethics, A
"Ébauches de Ia volonté dans Ia tragédie grecque", in Mythes et tragédie en Grece History of Moral Philosophy from the Homeric Age to the Twentieth Century,
ancienne, Maspero, 1977, p. 43. Londres, Routledge & Kegan, 1966; p. 105 na reedição de 1998.)
20
HIST6RIA DA FILOSOFIA DO DIREITO 21
A FUNDAÇÃO GREGA

é, por conseguinte, a margem de liberdade na qual se relacionam


Sabe-se que em geral os gregos abominavam a hybris, o excesso: a ética consiste
Antígona e Creonte: do ponto de vista do universal, não há escolha
fundamentalmente em um regulamento da hybris. Mas é necessário precisar aqui
possível, pois o equilíbrio deverá ser restabelecido; do ponto de vista do humano,
que a palavra hybris tem o sentido original de "ação ilegal". A hybris é, desde a
entretanto, é preciso postular uma liberdade elementar dos atores. A ética e o
Grécia Antiga, uma violação do nomos: um roubo, por exemplo. O sentido
direito serão remédios dessa liberdade.
passado à posteridade - tentar ultrapassar os limites da natureza humana e
No universo arcaico, incluindo a tragédia, a liberdade é ainda in- tolamente desafiar os deuses - é secundário. A hybris é primeiramente o
certa: o drama se encontra no enfrentamento de necessidade contra oposto da dike33, uma violação da restrição legap4. Moderar é dar a cada
necessidade, com um jogo livre, no sentido em que se diz que duas peças um o que lhe é devido: esse é o ideal jurídico da isonomia, esse é o ideal
que não se ajustam perfeitamente compõem um conjunto essencial, mas mínimo. ético, por exemplo, de um PIa tão restabelecendo a justa repartição das
Necessidade da lei da cidade contra necessidade da partes da alma. A unidade dessas duas formas da moderação, ou da
lei dos mortos, ou então "[...] o drama arcaico da luta entre o soberano ponderação, constitui um ideal filosófico grego. É precisamente aquele
- príncipe ou conselho oligárquico - representando o grupo, as famílias que está em questão no Cármides. Sócrates encarna a unificação dos
ciumentas de seus privilégios ancestrais e os indivíduos preocupados com gêneros de vida: o da cidadania e o da vida filosófica. "O sentido
independência"3O. Depois tudo se soluciona, e subsistem apenas o Estado e o profundo da refutação socrática se encontra aqui", sublinha um
indivíduo, "...unidos pelo vínculo inteligível do nomos. E a comentário recente3s: "A sophrosyne não tem qualquer valor político
pólis conservará a unidade e a vida enquanto essas duas forças se reco- se a distinguimos de seu valor moral; o valor político da sophrosyne é
nhecerem uma a outra como verdade, o cidadão somente existindo para o perfeitamente inconsistente se não se junta a ele a consideração do gênero
Estado, o Estado somente existindo para todos os cidadãos"3l. A pólis de vida. [...] A refutação de Sócrates insiste em afirmar que a distinção
como organismo real e singular (e não como forma do Estado em entre negócios privados e negócios públicos não tem nenhuma pertinácia
geral, sobre o modelo do Império Romano), como totalidade e não recupera certamente a distinção entre o próprio e o
ética32 é uma das duas faces do controle da liberdade, sendo a outra a estrangeiro, entre o interior e o exterior, pois fazer política ou fazer
via ética do organismo singular. Postulamos aqui que o movimento seus negócios é sempre
originário da reflexão é único, tornando-a definitivamente unitária.
Que movimento? Vamos partir de uma problemática complexa, a
do Cármides de Platão, consagrado à questão da moderação. Seria
de fato errôneo dissociar as formas ética e jurídica do controle. A idéia
33 Segundo Hesíodo: a hybris da "raça de ferro" faz com que "o único direito
de seja a força, e que a consciência não exista mais"; é a dike que recebe o encargo de triunfar
moderação sugere que é preciso tentar um domínio sobre os excessos. sobre essa desmesura; cf. Jacques Perron, "l'analyse des notions abstraites chez Hésiode",
Revue des Études grecques, t. LXXXIX, julho-dezembro de 1976, p. 286.

30 François Châtelet, La naissance de l'histoire, Minuit, 1962; reedição de 34 Sobre este assunto: Werner Jaeger, Paideia, La formation de l'homme grec,
Seuil, col. Points, 1996, t. I, p. 79.
trad. André e Simonne Devyver, Gallimard, NRF, 1964, p. 137-8,510.
31Ibidem.
35 Marie- France Hazebroucq, La folie humaine et ses remedes, Platon,
32 Hegel, Principes de la philosophie du droit, § 185.
Charmide ou De la modération, Vrin, 1997, p. 191-3.
23
22 HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO A FUNDAÇÃO GREGA

ocupar-se de negócios exteriores e estrangeiros. Contudo, na República, valorizad036: pode-se ler aí a virtude ou não daquele que sabe amar com
esses negócios exteriores são aqueles de que cada um deve ocuparse em moderação. O privado parece se realizar no público: a ética deve se
função do que está no interior da cidade justa, sendo subordinados ao que manifestar. Ela está por natureza projetada na esfera das relações
é o todo da cidade. Uma vez que é perfeita a analogia entre a alma e a jurídicas.
cidade, as ações privadas do homem justo serão subordinadas ao que ele Não é sem propósito esclarecer a prática grega do direito pela prá-
é, à boa constituição do todo da alma. A moderação da alma remete tica da ética e, especificamente, junto com Michel Foucault, a apreen
justamente ao conhecimento de si mesmo [...]. A aparente oposição entre são de regras jurídicas por aquelas que regem a sexualidade. No início é
ação pública e ação privada encontra resolução na única verdadeira a metáfora médica que já mencionamos. Plutarco poderá dizer sem
distinção entre o si mesmo e o não-si: ocupar-se realmente de seus exagero, no início dos Preceitos de saúde, que filosofia e medicina per-
negócios é dispensar para fora de si o não-essencial, para se ocupar tencem a "um único e mesmo domínio" (mia khora37). "A melhoria, o
apenas do essencial, orientar a inteligência para as realidades inteligíveis.. aperfeiçoamento da alma que se busca na filosofia, a paidéia, que esta
." deve assegurar, pinta-se cada vez mais de cores medicinais" ao longo da
Podemos fazer duas breves observações sobre essa percepção de história da Antiguidade, observa Foucault38. O exercício filosófico é uma
sabedoria socrática. A primeira é que se trata aqui, muito evidentemente, terapia de si mesmo: ele é o ético. Ora, essa atividade consagrada a si
do próprio Sócrates. Não é certo que os gregos em seu conjunto tenham mesmo não é um exercício de solidão, mas uma verdadeira prática so
tido espontaneamente essa visão da completude da ética, do jurídico e do cial: primeiramente, ele ocorre em estruturas mais ou menos
político. É o inverso que parece muito bem sugerido aqui! Não se trata de institucionalizadas, como foram as comunidades neopitagóricas ou
uma refutação socrática, contra um desprezo possível, e sem dúvida epicuristas, bem como na Academia platoniana ou no Liceu aristotélico. É
corrente, pela independência da esfera jurídico-política? Mas não é ao preciso um quadro institucional para essa aplicação em si mesmo. Nas
mesmo tempo a afirmação de um ideal filosófico socrático e grego da escolas, a ética tem por objeto o jurídico, em um sentido metafórico
unidade necessária das condutas política, jurídica e ética? A segunda certamente, pois o domínio do direito é o da cidade, e não o da escola.
observação concerne à oposição da esfera pública e da esfera privada. É Mas a escola é uma cidade dentro da cidade. A ética somente se exerce na
preciso, sem dúvida, ressaltar a originalidade e a complexidade da cidade e para a cidade. O caso da figura epicurista tem sem dúvida o
posição global da civilização grega. Ao contrário do que será a grande significado de uma decadência gritante do período helenístico: assumindo
invenção da modernidade européia, trata-se antes de tudo de pensar uma a abstenção política do sábio, o epicurismo reduz o quadro "políti
unidade superior do privado e do público sob a égide de uma distinção do
essencial (a conduta filosófica, sob formas múltiplas e tantas escolas) e do
36 Sobre esse assunto, além de Foucault, ver: Claude Mossé, Splendeur et misere
não-essencial (a vida sem reflexão, não merecendo ser vivida). Há de Ia courtisane grecquej e Maurice Sartre, L'homosexualité dans Ia Grece ancienne,
realmente uma "vida privada" grega. Assim, no âmbito da sexualidade, artigos retomados em La Grece ancienne, coleção apresentada por Claude
Michel Foucault nos ensina que a esposa pertence a essa esfera Mossé, Le Seuil, 1986.
estritamente privada, da qual se fala muito pouco ou nada. O erotismo 37 Plutarco, De tuenda sanita te praecepta, 122e.

"público", aquele das relações com as cortesãs e principalmente aquele da 38 Michel Foucault, Histoire de Ia sexualité, t. III, "Le souci de soi", Gallimard,

homossexualidade, é NRF, 1984, p. 71.


24
HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO 25
A FUNDAÇÃO GREGA

co" do exercício ético a um grupo de amigos. Essa evolução arranca a ética de


da idéia grega do político: a arte de governar a si mesmo se torna um
seu solo político. É possível ver nisso uma amarga constatação da ambição
fator político cada vez mais determinante das leis no momento em que
política grega: Léon Robin, em seu estudo sobre A moral antiga39, sugere que "a
surge uma dúvida sobre a força imperativa e transformadora das leis.
ética, como ciência distinta, se constituiu em uma época relativamente tardia, e
Para que serve uma boa lei, se ela está a serviço de um governante que
depois que os filósofos foram desencorajados de realizar pela via política uma
não sabe governar a si mesmo? Só a ética pode dar uma consistência à
reforma prática dos costumes". A ética não se torna uma disciplina autônoma a
forma jurídica.
não ser pelo efeito da decadência da autonomia da própria pólis no mundo
Esta última proposição exige algumas explicações. Ela não quer
helenístico. Mas o ideal da idade de ouro da filosofia e da política gre
dizer que o pensamento grego em geral confunde, para utilizar termos
gas era muito mais se assistirem juntos o indivíduo e a pólis, um com o
modernos, moral e política, ou normas morais e normas jurídicas. É bem
outro e um para o outro.
evidente que existe um trabalho de distinção desses domínios na reflexão
No século lU a.c., o desmoronamento das cidades-Estados põe em
antiga. Para especificá-Io de forma simples e prosaica, basta constatar
questão essa herança. Se aceitamos o anacronismo, pode-se evocar uma
que na obra de Aristóteles são bem diferenciados os trabalhos sobre as
espécie de primeira "globalização": a interpretação dos mundos gregos e não-
constituições e aqueles sobre a ética a Eudemo ou a Nicômaco. Mas o
gregos encobre a identidade política propriamente helênica. Permanece a
caminho da reflexão, que conduz à avaliação dos atos
possibilidade de um desvio na idéia de autonomia na ética: que cada um, pelo
individuais ou coletivos, é unificado em torno da determinação comum de
menos se for sábio, se torne uma cidade autárquica. Ora, mesmo nesse
um Bem41. Esse Bem não é propriamente único. Politicamente, sabese
novo contexto explodido do universo grego, o go
que a diversidade de Bens foi extrema. Werner Jaeger nos faz ver que os
verno ético permanece como fundamento de todo governo político.
Estados gregos "supõem ideais espirituais diametralmente opostos" e que
Segundo uma clara e sintética expressão de Foucault, "a racionalidade do
"esse contraste é certamente um dos fatos primordiais da história política
governo dos outros é a mesma que a racionalidade do governo de si mesmo":
grega". Além disso, escreve ele: "trata-se de um elemento capital na
"É o que explica Plutarco no Tratado para o príncipe sem experiência:
história do espírito grego. Ignorar o fato de que o ideal político da Grécia
não se poderá governar se não se é governado. Ora, quem deve dirigir o
estava longe de ser uniforme nos tornaria incapazes de compreender a
governante? A lei, é certo; todavia não é preciso entendê-Ia como a lei escrita,
própria essência da cultura helênica, essa cultura que se caracteriza, para
mas antes como a razão, o lagos, que vive na alma do governante e não
terminar, por um violento conflito interno com uma reconciliação em
deve jamais abandoná-Io"4°. A fase "decadente" da ci
síntese harmoniosa e triunfal"42. Mas a pluralidade dos ideais políticos, e
vilização grega nesse famoso século lU a.c., que viu florescer as doutrinas
conseqüentemente das concepções do Bem, não põe jamais em questão a
epicurista e estóica, não faz mais que exacerbar um traço profundo
idéia de uma pólis como totalidade ética, e não simplesmente como um
todo político. Os gregos "não concebiam que pu
desse existir uma relação estritamente utilitária e material entre virtude

39 Léon Robin, La Morale antique, Paris, 1938; PUF, Nouvelle Encyclopédie


philosophique, 1963, p. 169.
41 Cf Alasdair MacIntyre,A short History of Ethics, op. cit., p. 87. 42
40 Op. cit., p. 110.
Werner Jaeger, Paideia, op. cit., p. lll.
26
HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO 27
A FUNDAÇÃO GREGA

cívica e salvaguarda da comunidade. A seus olhos, a pólis constituía um


inspirar os poetas e os reis sensatos! O próprio Sólon qualificava como
universal dotado de uma base religiosa"43. Uma vez que a humanitas é
sophé a atividade poética. A areté, a excelência, pode ser colocada sob a
assimilada à vida no seio de um Estado, uma vez que viver para o ho
tutela da sophia: é pelo menos o que afirma um poema de Téognis49. É a
mem não é nunca viver biologicamente e de forma passiva (a forma obra de Pierre Hadot que nos põe no caminho dessa preeminência final da
frustrada da bios), mas sempre, de forma ativa, tomar parte na vida sabedoria sobre a legislação, esta não sendo mais que uma das
comum (politêuestai), a idéia de Lei é elevada à mais alta dignidade na manifestações da primeira. Eis então (ainda!) uma "idéia fundamental na
escala da civilização humana. Nesse sentido, pode-se dizer como Jaeger Antiguidade", a idéia "do valor psicagógico do discurso e da importância
que "a lei representa o estágio mais importante no desenvolvimento da capital do domínio da palavra. A palavra opera em dois registros
cultura helênica" e que ela foi "a forma mais durável e universal da ex aparentemente muito diferentes: o da discussão jurídica e política (os reis
periência moral e judiciária da Grécia"44. Heráclito não escreveu que "o praticam a justiça e apaziguam as querelas) e o do encantamento poético
povo deve combater por suas leis como por suas muralhas"? (Diels, frag (os poetas por seus cantos mudam o coração dos homens)"so.
mento 44). A lei é então a melhor das defesas da cidade, e não se saberia
cantar seu elogio o suficiente4s. Ora, se legislar é uma atividade eminen-
temente nobre, o apanágio dos sábios, ela depressa voltará para o filósofo 3.5 Direito e sophia
exercê-Ia, prepará-Ia: nas Leis ou na República, Platão se transforma
No fundo, a lei é realmente um problema grego? Não é ela um sim-
de filósofo em legislador; no final da Ética a Nicômaco46, Aristóteles faz
ples avatar da grande convicção de que homem e sociedade podem estar
seus votos a um legislador para realizar o ideal que ele acaba de formu
doentes e que suas afecções podem e devem ser tratadas pelo discurso? A
lar. O legislador, como o filósofo e o poeta, é um educador. Aliás, Jaeger
areté, essa célebre excelência ética, pode ser atingida por homens que se
observa que é um traço próprio da mentalidade grega citar freqüente
dedicam ao amor da sophia: a filo-sofia. Se toda concepção do direito se
mente o legislador ao lado do poeta. PIa tão dirá no Pedro47 que o legis
baseia em uma antropologia particular, como sugere, por exemplo, um
lador é um "autor" e que ele é semelhante ao poeta. A poesia e a teórico contemporâneo flamengo, Jan M. Broekmans1, a antropologia dos
legislação gregos tem de original o fato de que ela se abstém de pensar na idéia de
são próximas uma da outra. Sem dúvida remetem a uma mesma sophia, a um mal radical: o homem é doente, mas é curável. A idéia de lei é então
uma mesma sabedoria. O próprio Hesíodo, em sua Teogonia48, põe em extraordinariamente paradoxal: colocada o mais próximo possível do
paralelo a sophia do poeta e a sophia dos reis. As mesmas musas devem tumulto desencorajador das paixões humanas, situada às portas da hybris
na qual se afunda sem cessar o humano, ela
43 Ibidem, p. 127.
44 Ibidem, p. 144.
45 Werner ]aeger, ÉIoge de Ia Loi, BulIetin Guillaume Budé, 1. VIII, 1949.
49 Téognis, Poemes éIégiaques, 1072.
Aristóteles, Ética a Nicômaco; a esse respeito, ver: Werner ]aeger,
46 50 Pierre Hadot, Qu'est-ce que Ia phiIosophie antique?, Gallimard, col. Folio,
Paideia, 1995, p. 41.
op. cit., n. 38, p. 511- 51 ]an M. Broekman, Droit et anthropologie, LGD], 1993 (traduzido do ho
2.
landês), capo I, seções 2 e 3 principalmente.
47 Platão, Phedre, 257d e 278c.

48 Hesíodo, Théogonie, 80-103.


29
A FUNDAÇÃO GREGA
28 HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO

no espírito grego das leis têm mais isto de extraordinário: eles se expri
IIII1
promete não obstante, com uma desconcertante serenidade, a possibi-
lidade de uma terapia do homem pelo homem por intermédio do discurso. mem sob a forma de uma confiança no logos escrito. O nomos arcaico
A importância do legado grego em matéria de textos políticos e jurídicos, A primeira
não é escrito: ora,éserá
de ordem histórica,
considerado comomasum
tem uma implicação
progresso filosó
incontestável
I~
o prestígio inaudito conferido pela invenção da democracia, a obsessão de fica oevidente.
do nomos fato de seSetornar
a idéia
um grega de escrito.
discurso lei parece supor
Sobre esteinicialmente
ponto, a
"
identidade da Europa moderna que, em seus sonhos genealógicos, idéia de
permitimo-nos aqui duas breves análises.
'111 desejará tanto se definir como herdeira direta de Isócrates, de Demóstenes
que se possa aperfeiçoar o ser humano, ou restituí-Io ao que deva ser
1
e de todos os discursos políticos gregos escandidos pela instituição 3.6 A questão da melhor lei
escolar (pelo menos até uma época recente, e que não se espera o retorno, sua essência, é preciso igualmente colocar que a própria lei é perfectível.
II1

quando esses nomes ainda evocavam aos alunos uma idade de ouro É um problema que se coloca em primeiro lugar de modo prático, real
intelectual e política), fizeram sem dúvida com que a reflexão
mente prosaico. Aristóteles o resume em sua Política (lI, 8), quando
propriamente jurídica e política grega tomasse o lugar, na memória
examina a constituição ideal elaborada por Hipodamos de Mileto: "É
coletiva (quer dizer, essencialmente institucional), da ambição mais
profunda e mais ampla de oferecer ao homem uma salvação quase útil ou nocivo substituir as leis ancestrais por outras leis melhores?" A
unicamente intra-humana pelo exercício do logos: a palavra e a refle- questão é saber se há um progresso possível na ordem das leis e se, de
xão. Os trabalhos de Pierre Hadot, como os de Michel Foucault, modo mais preciso, esse progresso ocorre pelo efeito da substituição de
certamente reequilibram essa imagem. A lei não é um problema grego. O
leis novas pelas patróioi nómoi, quer dizer, pelas leis ancestrais. Aristó
que preocupa a civilização grega é a restituição do homem ao que é digno
de ser humano, pelos exercícios variados e complementares da dietética, teles, fiel ao seu método de exame de teses e antíteses, faz análise dos
da ginástica, da ética e das leis. A lei é filosófica no pensamento grego argumentos possíveis. Por um lado, parece bem estabelecido que as ciên
porque ela faz parte (e não é mais que uma parte) do amor fundamental cias e as técnicas só conheceram o progresso libertando-se das tradi
que deve desenvolver pela sophia. ções ancestrais, e que os ancestrais não tinham a cultura nem a
Esse amor pela sophia tem ocorrências múltiplas, para não dizer inteligência dos contemporâneos, o que faz com que obedecer às suas
formas quase contraditórias na marcha da evolução das doutrinas filo-
prescrições seja estúpido: o critério de uma boa lei deve ser a excelência
sóficas. Seria absurdo negar as profundas diferenças doutrinais que exis-
tem entre as concepções da prática de si e da relação jurídica e política (agathon) e não a velhice. Por outro lado, parece que uma lei não pode
para com outrem no seio de uma comunidade ao longo de uma história ser verdadeiramente comparada a uma técnica ou a uma ciência: a lei
que vai dos pré-socráticos a Panécio de Rodes, isto é, até o século II a.c. só exerce uma ação educativa quando se adquiriu o hábito de viver se
Platão,Aristóteles, os cirenaicos, os cínicos, depois Epicuro e os estóicos, gundo sua prescrição. Há, portanto, um risco inerente em toda refor
para citar apenas os momentos mais marcantes, colocam pedras ma: uma lei modificada com muita freqüência perderá sua força de lei.
fundamentais e determinantes no edifício plural do pensamento grego. Esse debate entre uma posição conservadora e um movimento
Contudo, no próprio seio dessa variedade, outro traço marcante pode ser reformado r é recorrente no pensamento grego do direito. O
apontado como uma constante do pensamento grego da lei e do direito. O
princípio
amor pela sophia, o desejo de aperfeiçoar que se manifestam
do respeito às tradições ancestrais foi por longo tempo muito forte.
Por
"'11

I1I1 31
II11
A FUNDAÇÃO GREGA
30 HISTÓRIA DA FilOSOFIA DO DIREITO

se ater às leis já estabelecidas, mesmo que apresentem algumas eviden


certo houve sobre esse assunto a palavra aparentemente definitiva de
~
Hesíodo: nomos d' arkháios áristos, a lei dos ancestrais é a melhor lei. A tes imperfeições. Desde então, o debate entre as patróioi nómoi e o
invocação das patróioi nómoi permaneceu por muito tempo como um agathon ou o áriston, entre o antigo e a "boa" ou a "melhor" lei, remete
argumento político nos tempos difíceis em que se debateram opções
talvez, em última instância, à idéia de que a melhor das leis não pode
opostas, mas sempre extremistas: por ocasião do advento de regimes
autoritários, de forma tirânica ou oligárquica, a aspiração às patróioi ser positiva, que ela está inscrita em uma ordem superior: a ordem da
nómoi foi o grito de guerra daqueles que reivindicavam a liberdade em "natureza", ou das essências. Se nos permitimos brincar com o duplo
parte perdida; no advento de uma democracia extremista, o retorno às sentido da palavra arcaico, é possível considerar que o debate jurídico
patróioi nómoi foi inversamente a palavra de ordem dos reacionários ou
dos moderados. Preciso e clarividente, Tucídides saberá relatar suas na ordem temporal, que preocupa os gregos tanto e de maneira tão du
discussões, por exemplo aquelas do último terço do século V a.c. Ora, a radoura - as novas leis podem verdadeiramente ser melhores que as an
própria existência de um debate recorrente sobre o progresso proble- tigas? - recorta um debate sobre a fundação das leis na ordem dos
Com efeito, e esta será nossa segunda observação, a lei se tornou,
mático das leis mostra a que ponto a civilização grega não considerava o
princípios: o nomos
no curso remete à physis.
da constituição O progresso
da civilização consistirá
grega nauma
clássica, transfor
questão
domínio jurídico como uma simples técnica entre outras. Parece que o
progresso que tem curso nas ciências e nas técnicas não poderia ser mação
de do nomos, de palavra em discurso escrito, de tradição perpetua
reconduzido na ordem jurídica de forma não problemática. É que a lei da em3.7
logos
A reflexivo.
escrita: sua Ora,
leioe direito seessa
escrita última asserção
escreve. Sabe-se tem
porigualmente
Aristótelesumque a
retoma à terapia do ser humano completo, para o qual ela é apenas um alcance problemático no universo conceitual grego.
constituição
dos tratamentos. Não é certo que seja inteiramente pensável um progresso ateniense de Sólon foi gravada, em seguida à de Drácon. O objetivo
na ordem terapêutica. Medita-se em Rousseau, bem mais tarde: o desse
progresso das ciências e das técnicas implica menor progresso moral? O trabalho de escrever foi primeiro de publicidade: tratava-se de tornar a
exame da civilização grega nos coloca em face de uma situação, no fundo
lei visível para todos. Mas ao mesmo tempo a escrita prende a palavra
sempre paradoxal: os gregos, por um lado, devem acreditar na idéia de
ao tempo e manifesta a permanência da lei. Isso é pouco espantoso para
um progresso possível na ordem dessa tekhne particular que é o
estabelecimento das leis. As leis, no sentido do direito positivo, devem a consideração moderna. Ora, essa insistência na escrita do no mos, que
ser aperfeiçoáveis, sem dúvida alguma. Mas ao mesmo tempo, uma vez assume assim um valor positivo, é central no universo grego, ao mes
que o direito não saberia ser verdadeiramente uma tekhne, não é certo que mo tempo que é espantoso. Ela é central primeiro porque toda a socie
as novas leis sejam melhores que as antigas: o uso bem estabelecido das dade política, toda a politéia, é condicionada pela escrita. A cidadania
patróioi nómoi foi aprovado, e já se conhecem suas virtudes e seus supõe a roupagem do equivalente a um estado civil. O nome dos ado
limites terapêuticos. Condena-se, por um lado, o caráter "bárbaro" de
lescentes e o demos ao qual pertencem são escritos sobre tabletes. O
certas leis arcaicas (como fazem Tucídides e Aristóteles, por exemplo),
katalogos, dirá Xenofonte em sua Constituição de Esparta, faz parte in
celebra-se também o progresso técnico dos coríntios para justificar o
valor renovador de Atenas em oposição ao imobilismo de Esparta; mas tegrante da organização da cidade. Para governar não é necessário re
pode-se concluir, por outro lado, que é sábio e prudente gistrar pela escrita (anagraphein) os indivíduos e os bens? Uma
passagem
32
HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO 33
A FUNDAÇÃO GREGA

de uma esclarecedora introdução às traduções da Constituição de


que cercam o pensamento ocidental são desmentidos pelo primado da
Esparta
escrita que se afirmou na política".
de Xenofonte e da Constituição de Atenas de Aristóteles atrai nossa aten-
Desse modo, quando Platão explica na República o que é a justiça,
ção para o caráter aparentemente paradoxal de uma tamanha valoriza-
propõe uma analogia: o que é justo para um indivíduo, a saber a justa
ção da escrita pelo direitos2. É geralmente admitido, com efeito, que o
hierarquia das partes da alma, apreende-se mais facilmente pelo que é
pensamento grego e mais singularmente o pensamento de Aristóteles
justo para uma cidade, a saber a justa hierarquia de classes. O modelo de
depreciaram globalmente a escrita (grámmata) em benefício da voz
compreensão é aqui o da escrita: o que está escrito (grámmata) em
(phoné). A hierarquia aristotélica no De interpretatione faz da voz um
grandes caracteres é mais facilmente decifrável que em caracteres
símbolo dos estados da alma, e da escrita um símbolo da voz; símbolo
miúdos! A constituição justa é uma escrita com duplo objetivo: lei escrita
de símbolo, a escrita está mais longe da intenção de significado. Jacques
e escrita em caracteres grandes do justo equilíbrio da alma. A escrita é
Derrida interpretou essa teoria como um fonocentrismo constitutivo
certamente um phármakon: um remédio no empreendimento platônico, e
da metafísica ocidental: um primado da palavra e da voz sobre a escri-
fortemente grego, de terapia da alma e da cidade. Mas todo phármakon é
taS3. É verdade que Aristóteles e Platão realçam o caráter confuso das
também um veneno. Essa ambivalência essencial da escrita phármakon,
leis escritas: por definições gerais, elas não podem atingir a perfeição
esclarecida por J acques Derrida na análise do mito de Teuth no Pedro de
de ser imediatamente explícitas sobre todos os casos particulares. Mas,
Platão, pode ser reaplicada sobre a problemática grega do no mos: é um
fora essa observação, que é menos uma crítica do que uma constatação,
progresso indubitável estabelecer leis escritas, o direito positivo - a escrita
é preciso realmente admitir, com D. Colass4, que "... mesmo que se seguisse
permite classificar e avaliar os regimes políticos (a passagem para a lei
Derrida em uma colocação à luz do logocentrismo de Platão e da filosofia
escrita é o objeto de um elogio, por exemplo, em As Suplicantes de
ocidental, seria preciso sustentar que, na esfera política tal como ela se constitui
Eurípides); mas esse nomos positivo não poderia ser destacado de um
depois dos gregos, a instância da letra, sua insis
nomos de ordem superior, como é o direito natural sobre o direito
tência pela escrita domina a palavra. A partir de Platão e de Aristóteles
positivo. A escrita é positiva, em todos os sentidos do adjetivo, mas pode-
forma-se uma tradição que, mesmo que ela se avizinhe de uma ontologia
e de uma ontoteologia do primado da palavra sobre a voz, primado do Logos ou
se dizer que é também negativa: ela não saberia realizar uma justiça
da Os dei, do Verbo e da Boca de Deus, construiu uma teoria política que
perfeita.
atribui à escrita um papel de antídoto (alexiphármakon) a certos males A escrita não poderia constituir uma terapia perfeita. Ela é
possíveis da política. O logocentrismo e o fonocentrismo absolutamente necessária para o jogo jurídico-político, mas não poderia
sozinha - como este último também não poderia - cuidar do homem por
inteiro, quer dizer, da cidade e da alma. Para tentar definir essa
completude grega do político, do jurídico e do ético, proporemos retomar
52 Dominique Colas, Avant-propos, trad. desses textos por François Ollier, os termos da filosofia de Paul Ricoeur, também eles saídos de uma leitura
Les Belles Lettres, 1985; reed. Gallimard, cal. Tel, 1996, p. 12. atenta de Aristóteles: visar à "boa vida" em instituições justasss.
53 Jacques Derrida, "La pharmacie de Platon': artigo publicado em TeZ
Que!,
55 Paul Ricoeur, Soi-même comme un autre, sétimo estudo, "Le sai et Ia visée
n. 32-33,1968, reeditado em Marges de Za phiZosophie, Minuit, 1972.
540p. cit., p. 13. éthique", Le Seuil, 1990, p. 199-237.
34
HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO 35
A FUNDAÇÃO GREGA

Para os gregos, parece que a vida não pode ser levada a práticas frag
de J. W. Jones57: se os gregos não formularam seu direito em um sistema
mentadas. É o homem por inteiro, como corpo, como alma e como ser
é porque eles não dispunham de uma profissão jurídica estabelecida.
social e político, que interessa à civilização grega. Visar à "boa vida" é
Encontra-se um veredicto similar em um estudo exaustivo mais recente
então realizar a vida em seu conjunto, relacionando todos os planos de
do direito grego antigo: "A elaboração sistemática dos conceitos jurídicos
vida e todos os planos da vida a um ideal, que já é a integração total de
e das situações factuais sobre as quais eles repousam está ausente na
todos os aspectos da vida. Uma ética separada ou uma esfera jurídica
ciência grega do direito. Inversamente, é sabido de todos que reunir
perfeitamente autônoma são, desse ponto de vista, impensáveis: a bus
primeiro os conceitos jurídicos em um arranjo perfeito para, em seguida,
ca da boa vida supõe a busca das instituições justas, tudo se concluindo
elucidá-Ios, constitui o grande orgulho da ciência romana do direito"58.
nelas. O ideal dessa visão ético-jurídica permanece extraordinariamente
Contudo, a aparente lacuna de sistematicidade em matéria de direito não
humano: certamente é ideal, no sentido de que é ideal a essência platô- nos deve induzir à negação ou mesmo a uma simples desvalorização do
nica, por exemplo, mas jamais estranha ao ser humano. O homem gre direito positivo no universo grego. É certo que a temática do direito
go não conhece o que será dentro de alguns séculos o pecado cristão: natural é forte e durável na Antiguidade grega. Mas parece enganoso
somente se peca contra alguém a quem se faz mal, e não contra alguma acentuá-Io em detrimento da emergência da idéia da positividade das leis.
coisa. O homem injusto entre os gregos não poderia causar o menor De fato, o pensamento grego, sem dúvida como todo pensamento
desgaste à idéia de justiça: ele não nutre senão a si mesmo. Desviar-se da jurídico, é amplamente dominado pelo problema da relação a se pensar
lei não é uma simples ilegalidade, no sentido moderno de uma entre o direito positivo e a idéia de uma justiça perfeita. Esta última foi,
marginalidade com relação a uma ordem do direito positivo, nem uma no período arcaico, inicialmente relacionada a um modelo divino, o que é,
falta, no sentido de um atentado a um modelo transcendente de justiça se ousamos a observação, muito pouco original. Mas, em um segundo
que sofresse com isso, como sofrerá o Deus cristão: é afastar-se de si, tempo, que faz sem dúvida a especificidade do universo intelectual grego,
afastando-se da cidade. ela foi relacionada à physis, isto é, à natureza. Ora, rapidamente essa
natureza será desencantada: o próprio do progresso da filosofia grega terá
sido essa tão breve e tão espetacular passagem de uma explicação
4. A COMPLETUDE DO DIREITO NATURAL E DO
teogônica do universo, de uma natureza encantada pelos deuses para uma
DIREITO POSITIVO: PHYSIS E NO MOS explicação física do mundo, a transformação do mythologos em logos.
Em matéria de reflexão sobre a justiça perfeita, observa-se sem
Os gregos, diferentemente dos romanos, ensinam pouca coisa so surpresa a mesma passagem de um paradigma divino para um para
bre a legislação dos contratos, dos prejuízos ou do direito de proprie
dade, observa um teórico moderno do direito 56, que remete a uma
tese

57 J. W. Jones, The Law and Legal Theory of the Greeks, Oxford, Clarendon
Segundo W. Friedmann, Legal Theory, Londres, Steven and Sons Ltd, 4.
56
Press, 1956.
ed., 1960; trad. francesa sob o título de Théorie générale du droit, LGDJ,
58 Arnaldo Biscardi, Diritto greco antico, Milan, A. Giuffre Editare, 1982;
Bibliotheque de philosophie du droit, 1971, p. 6.
parágrafo 6 da introdução. Tradução nossa.
36
HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO 37
A FUNDAÇÃO GREGA

digma físico. Na Teogonia de Hesíodo, é Zeus que instaura a


colocar a hipótese de que o grafocentrismo político presente no reco-
justiça, e é
nhecimento e desenvolvimento das leis escritas como convenções é um
ainda ele que oferece o nomos e a dike aos homens. Quando
antídoto contra a teocracia. Não há mais uma escrita legítima da qual um
aparecem
poder sagrado tenha o monopólio, mas escrituras positivas da lei. Há aqui
os primeiros fisiólogos (Tales, Anaximandro, Anaxímenes), a
algo do mundo grego que se pode ousar batizar com um latinismo: a coisa
referên
pública, a res publica, é em primeiro lugar a escritura pública das leis, e
cia ao divino não é banida com um só golpe - em Anaximandro,
depois, se possível, sua aplicação em um debate público de palavras.
por
Nesse sentido, haverá na Grécia apenas um único "partido da
exemplo, o divino é ainda um atributo daquilo que é; mas já
convenção", no qual se classificariam Antifonte, Jamblico, Critias
começa a
ou Protágoras. Há sem dúvida um reconhecimento geral desse fenômeno
dar lugar a uma referência cada vez mais central à physis. A
da convenção contra o qual se quer ou não opor uma norma superior que
transformação é realizada quando o par conceitual physis-nomos não tem será o "direito natural" grego. Sem esse reconhecimento, compreender-se-
mais o
ia mal por que o par physis e nomos aparece como uma instância central no
sentido inicial de uma simples oposição da coisa (ou do fato) e da pala
pensamento grego. Aristóteles, por exemplo, retomará essa problemática
vra (sentido na obra de Hesíodo, Ésquilo, além de Heráclito ou Pín-
conceitual que o par coloca diante dele. Nós adaptaremos aqui a chave de
daro59), mas o sentido de uma oposição mais complexa, mais
leitura proposta outrora por Castoriadis62: a oposição entre physis e
abstrata e mais reflexiva da natureza e da convenção. Quanto a isso, a
nomos "... irrompe violentamente desde a véspera do pensamento
contribuição dos sofistas é essencial e pouco contestável. Além do
grego - da mesma maneira que as oposições que, sem ser idênticas, são
mais, é bem notável que a sofística se definisse pela emergência
profundamente aparentadas com ela, entre doxa (opinião/representação) e
radical de uma du
alethéia (verdade), entre pháinesthai (aparecer, deixar-se ver, manifestar-
pla questão, ou de duas questões intimamente ligadas: a do político e a
se) e êinai (ser verdadeiramente). Essas oposições, que dividem desde o
da linguagem, lugares por excelência da convenção. Antifonte pensará
início os filósofos e a filosofia, são elas próprias oposições políticas: são,
assim o político 6°; o fenômeno da convenção sendo o novo objeto cen-
como se prefere dizer, o conflito político que dilacera a pólis em sua
tral para a reflexão filosófica, depois da unidade de princípios de Tales, a
expressão ontológica, ou a própria ontologia dividida politicamente".
cosmologia jônica ou a ontologia eleata. As problemáticas pré
O debate traz, portanto, a questão do fundamento e da razão de ser da
socráticas dão lugar à evidência imperial do político como palco e objeto
instituição política, a justificação possível do nomos (desse nomos aqui e
do pensamento humano. Ora, o político vai com a linguagem: ser cida
de todo nomos possível). Tudo parece derivar de uma consciência
dão se define por uma relação com a lei. O logos é então o "meio natu
extrema do problema da instituição: instituir quer dizer estabelecer. Ora,
ral" do humano: é o mesmo que dizer que o natural para o homem é o
o que é estabelecido, o positivo, no
artificial.
S9 Interpretação de F. Heinimann, Nomos und Physis, Bâle, 1945; cf. Jean
O François
pensamento grego
Balaudé, Les parece
théories ter arrancado
de Ia a si
justice dans mesmo da
l'Antiquité, dominação
Nathan, 1996, p.
hierocrática
48. pela descoberta da convenção, isto é, de uma primeira
62 Cornelius Castoriadis, Les carrefours du Iabyrinthe, t. I, Le Seuil, 1978,
Ver Barbara Cassin, op. cit., p. 162.
60
270. p.
idéia do legal (a segunda que faz referência ao direito natural)
61 Dominique Colas, op. cit., p. 42.
perfei
tamente positivo. Com referência a uma análise já citada61, pode-se
38
HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO 39
A FUNDAÇÃO GREGA

sentido que aparecerá mais tarde em "direito positivo': pode se sustentar ciso reconhecer que os grandes pensadores, como Platão e Aristóteles,
como tal? A oposição physis-nomos comanda talvez (pelo menos é a resistem às mutilações que sofrem. Nesse sentido, a interpretação da
hipótese de Castoriadis) ao mesmo tempo as outras oposições filosóficas filosofia grega por Heidegger pode sem dúvida ser considerada ao mesmo
(parecer e ser, opinião e verdade) e as oposições políticas (democracia e tempo grandiosa e eminentemente discutível (mas afinal, todas as
oligarquia, por exemplo). "O demos pode argumentar contra os olígoi o interpretações são discutíveis, se bem que muito poucas sejam grandio-
caráter convencional e arbitrário da lei instituída, e invocar uma igualdade sas): anulando a questão da doxa e colocando em um pedestal a questão
'por natureza' dos homens livres; ou mais precisamente se apoiar sobre a da alethéia, Heidegger apaga talvez com um mesmo gesto a oposição do
ausência de uma 'naturalidade' do nomos, de uma lei dada 'pela natureza', nomos e da physis. Ora, pode-se adiantar a hipótese de que a oposição
para impor sua lei e sua opinião, sua doxa: Édoxe physis-nomos permanece como base em Pia tão e Aristóteles: mas essa
tei bouléi kai toi démoi ('pareceu bom ao conselho e ao povo') é a cláu cisão se torna interna a seus pensamentos. Haveria então um risco de reter
sula introdutória das leis atenienses. De qualquer forma, a artificialidade, somente a versão deslumbrante da verdade essencial platônica: ignorar
a não-naturalidade do nomos é ao mesmo tempo pré-requisito para a luta todo um corpo de obras políticas, literárias e filosóficas que, dos trágicos
política explícita e explicitada ('pensada') - e acarretada por ela. Ora, e de Aristófanes a Tucídides, pensam a antítese do nomos e da physis, ao
essa artificialidade é, para os gregos, ao mesmo tempo incontestável e preço de múltiplas variações. Assim, o nomos de Sófocles tem ainda o
enigmática: o enigma do nomos não é apenas e simplesmente arbitrário, sentido geral de "costumes" ou de "hábitos"; assim, pode-se pensar mais
thései, como pode ser um gesto ou um ato individual; ele é o arbitrário profundamente em uma relação do "natural" e do "positivo" no seio do
universal ou a universalidade como arbitrário - e, no entanto, partido da convenção: quando Empédocles vê no nomos o domínio da
essa universalidade arbitrária é o fundamento e a condição de existência convenção, ele coloca também a possibilidade de um ponto de vista da
do que aparece a eles e é, com efeito, a coisa menos 'arbitrária' de physis sobre a convenção, uma vez que o princípio fundamental da
todas, a cidade, a sociedade." O enigma, nada mais que o próprio ele- legalidade (to pánton nóminon) está inscrito em primeiro lugar no todo da
mento do humano, ou seja, a convenção, a instituição que natureza, o que implica que o convencional deriva de uma naturalidade63;
éindissoluvelmente lagos e pólis (o que resume bem a idéia de lei), não a mesma observação para Demócrito: a lei é convencional, mas ela não
éregulado pela "natureza", mas pela lei estabelecida. constitui o justo, que lhe é anterior.
As oposições da luta política não acompanham termo a termo, A partir de então, da convenção surge a natureza. Há uma evidência
prossegue Castoriadis, as concepções filosóficas. Todavia, os pensadores da convenção: ser para o homem é ser nómoi, pela instituição. Mas por
gregos mais inovadores não são os que colocaram o nomos contra a que preferir certo nomos a outro? Como legitimar essa atividade
physis insistindo sobre esse caráter instituído não só das constituições discriminante do povo ou do Sábio legislador? Como transpor a evi
políticas mas também da constituição do mundo. Sobre esse assunto, dente pluralidade das convenções, já que, como sublinha Aristóteles, a
Demócrito foi uma grande figura. Mas essa possante e profunda corrente justiça "se diz de maneira múltipla" (pleonakhós lêgestai)? Tudo aquilo
de pensamento foi abordada por Platão e Aristóteles, que durante muito
tempo foram (e são até hoje em certa medida) apresentados como
aqueles que souberam liquidar o convencionalismo em nome da
63 Ver: Jean-François Balaudé, op. cit., p. 48; e também: Aristóteles a
physis
propósito de Empédocles na Metaphysique, A 4, 984 b 32.
e da alethéia. Se continuamos com a interpretação de Castoriadis, é pre
w

41
A FUNDAÇÃO GREGA
40 HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO

interpretação aristotélica da Antiguidade grega, ainda que o tema do


que é legal no sentido de uma lei estabelecida (kéimenos, lei positiva) é,
ipso facto, díkaion, justa? padrão natural perpasse o pensamento grego. Em segundo lugar, pode
É preciso inserir uma natureza. Mas que natureza? A aporia aqui é moS colocar três características gerais desse modelo de pensamento, que
que a natureza jamais é conhecida por natureza, pois é preciso descobri- são antes de tudo aristotélicas: a autonomização do direito com relação à
Ia, pensá-Ia, extrair dela as leis pela reflexão. Pode-se pensar aqui na história, a referência a uma física particular e a idéia do direito como ciência
ausência da palavra natureza na Bíblia hebraica64: o equivalente de "na- da divisão ou da repartição65. O exame dessas três características apre
tureza" em hebreu seria a "maneira". Ora, pensarão os gregos, há uma
senta um problema de abordagem: distinguir radicalmente esse primeiro
maneira das coisas naturais, aquelas que crescem (physis vem de physein:
modelo de naturalismo jurídico do segundo, aquele das teorias moder
brotar, crescer) independentemente do homem, e há a maneira das coisas
artificiais, criadas pelo homem. Essas duas "maneiras" de ser, physis e nas do direito natural.
nomos, parecem absolutamente complementares e aparentemente 4.1 A autonomização do direito com relação à história
indissociáveis: assim, é natural ao homem falar, mas convencional fazê10
A pluralidade dos nómoi é reconhecida pelos gregos, como será por
nessa ou naquela língua. O natural parece preceder logicamente o
positivo, mas, paradoxalmente, ele não é descoberto pelo homem senão Aristóteles (pleonakhós lêgestai!). Essa pluralidade não é tanto histórica
através do positivo. E uma vez que descobrir quer aqui dizer pensar, a no sentido de uma multiplicidade de sistemas de direito positivos
natureza que precede a convenção é sempre uma natureza convencional: quanto
uma certa imagem racional da natureza. É isso que aparece quando política: não seria o caso de pensar o direito pela simples coleção
alguém se debruça sobre o naturalismo antigo, essa formidável invocação dos
de um modelo natural do qual derivaria a convenção e que acaba de sistemas de direito positivo herdados do passado ou instituídos pelas
realizar uma completude perfeita da visão do direito, considerando-o diversas
65 Aformas
posiçãode autoridade
dessas política. Aprovém
três características históriaglobalmente
"temporal"dadas leis e
interpreta
positivo e natural. o caráter
ção positivo dos
do direito sistemas
natural políticos
antigo por Leoformam
Strauss,aquilo que por
retomada podería
Luc Ferry e
Quais são, de fato, os traços distintivos do naturalismo antigo? Em mos chamar de historicidade do direito. O mínimo que se poderia dizer
Alain
primeiro lugar, ser relativo: ele não existiria sem essa singular consciência é que Renault emsão
os gregos Philosophie
sensíveis politique (PUF, 1985,
a esse respeito: vol.lII, p. de
a permanência 48, um
onde
disestá o
da positividade das leis, da ordem convencional do humano presente no esquema
curso sobre as leis dos ancestrais e sobre as escolhas propriamente po
nomos, e ele ganha toda sua força nos sistemas de filosofia particulares, explicativo que seguimos aqui) e por Alain Renault e Lukas Sosoe em
principalmente o de Aristóteles, que desprezaram o risco de consi- Philosophie
derações extremas do caráter convencional do mundo humano (os du droit (PUF, 1991, p. 233), que relaciona a problemática antiga do direito
sofistas). Falar do naturalismo antigo é, em certa medida, falar de uma a
Aristóteles. Sobre a distinção necessária dos dois tipos de jusnaturalismo
(antigo
e moderno): Simone Goyard- Fabre, "Les deux jusnaturalismes ou l'inversion des
64 Leo Strauss, Joseph Cropsey, History of political philosophy, Chicago Press,
enjeux politiques", in Cahiers de philosophie politique et juridique de
1963; trad. Olivier Sedeyn, Histoire de Ia pensée politique, PUF, col. Léviathan,
l'Université
1994, p. 3.
de Caen, 1988, n. 11, "Des Théories du droit naturel", p. 9.
42
tlll~
HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO 43
A FUNDAÇÃO GREGA

líticas entre os diversos regimes da autoridade política o atesta suficien


Um desvio pela Crítica da razão pura de Kant pode ser esclarecedor para
I' temente. Mas pensar o direito deverá se fazer por transcendência dessa
tentar compreender o naturalismo antigo. Quando Kant diz que jamais se
historicidade "primeira" do direito (esta última proposição traduz poderia conhecer a "coisa em si", uma vez que conhecer é fazer uma
evidentemente mais nossa própria leitura que a de Leo Strauss). Certa representação e que é definitivamente impossível comparar nossa re-
J, mente, como realça Leo Strauss, há aí um movimento fundador de presentação com o objeto real, pode-se concluir sumariamente que o
conhecimento só tem relação com os fenômenos (Phaenomena): nossa
dessarraigamento da problemática do direito da tradição ancestral: "Na
representação da natureza não é a natureza em si, tal como ela seria
origem, a autoridade se enraizava na tradição ancestral. A descoberta independente do olhar que se tem dela. A coisa em si não é mais o outro
da noção de natureza destrói o prestígio dessa tradição ancestral. A fi do objeto nem um outro objeto, uma vez que esse objeto é por definição
incognoscível: é um outro ponto de vista sobre o objeto, aquele que teria
losofia abandona o que é ancestral para o que é bom em si, por aquilo
uma compreensão perfeita e infinita, e não imperfeita e finita como a
que é bom por natureza... Destruindo a autoridade da tradição ances nossa. Esse ponto de vista literalmente absoluto suplantaria o do nosso
tral, a filosofia reconhece que a natureza é a autoridade suprema. Con conhecimento, voltado aos fenômenos (o real da forma que o construímos
em nossas representações). O que é a natureza no naturalismo antigo?
tudo, seria mais exato dizer que, assim fazendo, a filosofia reconhece o
Duas coisas ao mesmo tempo, sem dúvida, que não se devem confundir:
padrão na natureza"66. Há aqui um movimento de pensamento que vai uma representação racional particular da natureza (uma "física"), que não
substituir o direito ancestral consagrado pela história por um direito poderia evidentemente ser confundida por nós com a própria natureza (em
natural estabelecido pela razão. Mas a reflexão sobre o bem em si (e si), e que varia consideravelmente conforme se liga à física de
Demócrates ou de Aristóteles, arrastando em seu sulco um ou outro tipo
sobre
de jusnaturalismo; e a idéia geral, partilhada além das diferenças entre
o justo em si) vai permitir também julgar o presente do direito: os sis físicos particulares, de que se pode colocar um outro ponto de vista
temas de direito positivo existentes. A autonomização do direito em sobre o direito positivo, que seria aquele de um conhecimento
relação à história, ou mais precisamente em relação à historicidade, efe perfeito do que é perfeitamente justo: esse ponto de vista não seria aquele
de Deus, como será o caso na teologia cristã e na metafísica clássica, mas
tua-se assim pela posição de um direito natural que assume sentido bem
aquele da Natureza. É preciso então explorar esses dois aspectos de
menos "aquém" do direito positivo (o que poderia implicar ainda uma jusnaturalismo grego: mostrar como ele adquire sentido e traça seus
4.2 historicidade,
absurda A referência noa uma física
sentido particular
ingênuo de que o direito natural re limites em relação a físicas específicas e, evidentemente, completamente
montaria
Não sea uma hipotética
conhece jamais aépoca de (physis):
natureza naturalidade
não sedoconhece
homem!), doo que
senão obsoletas; mostrar que ele inventa um formidável paradigma: a idéia de
um ponto de vista perfeito sobre o imperfeito, natural sobre o positivo.
físico,
"além" essa imagem
do direito racional
positivo, comoqueuma
o espírito humano estabeleci
permanência tem da natureza.
da pela
Fazê-Io em nome da natureza, e não dos deuses ou de Deus, é em si uma
reflexão coberta pelo conceito de natureza. invenção inédita: eis algo que prefigura o ponto de vista transcendental
66 Leo Strauss, Droit naturel et histoire, PIon, 1954, p. 108; citado por L. kantiano (o que torna possívelo direito positivo é o direito natural, quer
Ferry e A. Renaut, op. cit., p. 48. dizer, a própria idéia de
1JII

"
~I 45
A FUNDAÇÃO GREGA
44 HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO

I
marmos como referência essencial a física aristotélica, podemos dese
direito), mas que se produz pela física e não pela teologia67. Se se deseja
estimular essa interpretação, seria preciso dizer que o pensamento grego nhar os contornos conceituais essenciais69 da visão de um mundo con
do direito nunca foi tão grego como quando eliminou de sua física cebido a partir de um princípio unitário: é um mundo fechado,
qualquer teologia; nesse sentido, Aristóteles seria o menos grego e os
hierarquizado e finalizado. Ele é fechado e circular, o que implica que
sofistas ou Demócrito seriam os mais "autênticos" pensadores da con-
venção e da hipótese examinada com circunspeção de um ponto de vista tudo
da natureza sobre a convenção.
nesse mundo é situável, designável a um lugar próprio objetivo, já que
O que é partilhado por muitos pensadores gregos é a referência à
natureza como condição de possibilidade fundamental: a norma fun- no universo newtoniano, por exemplo, o espaço infinito acarretará a
damental é disposta em uma ordem cósmica que existe independente- destruição da idéia dos lugares próprios, definitivamente relativos para
mente do sujeito. A objetividade é uma propriedade do objeto universal
os observadores. Ele é hierarquizado, porque possui um "alto" e um "bai
que é a natureza, e não o sujeito. Há então uma objetividade do direito,
um "direito objetivo" que deve ser "observado" pelos sujeitos pensantes xo", cada corpo dirigindo-se para seu lugar próprio (os movimentos
na ordem natural, pois o direito natural, em sua forma clássica, é ligado a "violentos" no sentido aristotélico serão assim os movimentos contrá
uma perspectiva teleológica do universo, como precisa Leo Strauss. rios à direção desejada pela natureza): tudo tem seu lugar natural. Ele é,
Quanto ao termo physis, é preciso apreender a idéia de uma entidade
enfim, finalizado porque, se os corpos se movem, a causalidade profun
fundamental a partir da qual se efetuou um "impulso", ou uma mani-
festação: uma vinda ao ser a partir de um fundamento únic068. Se to da de seu movimento é final: eles se movem para retomar seu lugar
natural. A realização do desenho da natureza consiste nesse movimen
to geral de cada coisa em direção a seu lugar cósmico natural, em suma,

67Fazemos aqui referência de maneira muito simplificada à análise proposta a seu lugar naturalmente legítimo. É fácil aplicar essa representação da
por Martin Heidegger no capo 9 do Principe de raison ("De Ia physis à Ia raison natureza sobre o direito: será justo para alguma coisa o que corresponda
pure"), trad. André Préau, Gallimard, 1962: para dar razão ao que é (o real, para
nós o direito positivo), pode-se estabelecer (Aristóteles, na Física) o ser; o ser a seu4.3
telos, ao seucomo
O direito fim natural,
ciência em um universo
da divisão identicamente
e da repartição
não é inicialmente algo que é por si e que se desvenda ou se manifesta em fechado,
Das concepções do justo natural decorre logicamente que a ciên
seguida: desvendar-se não é uma propriedade do ser, mas faz parte de sua
hierarquizado e finalizado.
cia do direito A ordem
foi definida suposta
como umada natureza
ciência da representa
repartição:bem
não se
propriedade. Nesse sentido, em nossa leitura, o direito positivo não pode ser
"secundário" com relação a um direito natural que viria em primeiro lugar, tratapapel de critério objetivo e transcendente. Mas é igualmente inevi-
seu
existindo independentemente de suas manifestações: é no direito positivo que se de recolocar cada um em seu devido lugar? Não é no fundo o que
tável que cada física particular produza uma concepção particular do
desvenda algo do direito natural. Mas a essa física do ser (é a própria natureza) afir
pode suceder a idéia pura de condição de possibilidade a priori: o transcendental direito!
kantiano, de uma razão "física" a uma razão "pura". mará oCf.
69
famoso ditado
a análise romano:
clássica suumKoyré,
de Alexandre cuiqueDu tribuere (atribuir
monde c/os à l'universa infini,
cada
68 Sobre a problemática geral do vir a ser e da physis, Lambros Gallimard; L. Ferry e A. Renaut, op. cit., p. 49.
Couloubaritsis, Aux origines de Ia philosophie européene, Bruxelas, De Boeck, 1992, p. 44.
qlll'lIlllll
um o que lhe é devido, ou seja, restabelecer uma divisão
46
equilibrada)? HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO
47

~
A FUNDAÇÃO GREGA

A justiça é aqui fundamentalmente distributiva7°. Esse aspecto do


direi intrinsecamente diferentes dessas duas atividades. A justiça é o
IIIIIIIII{
to é particularmente claro em Aristóteles: o direito (to díkaion, que sig domínio da justeza e não o das matemáticas, com seu cortejo de tentativa
e erro na busca do equilíbrio mais justo nas divisões. Basta recordar aqui
nifica também o justo) é uma proporção, ou o efeito de uma divisão
!111/llli
a passagem célebre e tão penetrante de Aristóteles consagrada à lei, que é
que é proporcional. A justiça se exerce como uma divisão. Nesse ponto, "sempre algo de geral': o que implica "casos específicos para os quais não
é preciso levantar uma ambigüidade possível. Na medida em que o di é possível colocar um enunciado geral que se aplique com retidão". Ora,
IIIIII~
uma vez que a lei é, por definição, do geral, e o real é do singular, a
I reito opera as distribuições (díkaion en tais dianomais, o direito reside
aplicação das leis não poderia consistir em uma retidão matemática: é um
IIIII~
nas distribuições), os escolásticos propuseram mais tarde, seguindo sua trabalho de ajustamento, de analogias proporcionais, de aproximação ao
leitura de Aristóteles, a expressão "justiça distributiva': Ora, é necessá mais justo de uma solução eqüitativa.
I~III! Essas três características da concepção geral do direito no universo
rio explicar que essa "distribuição" não tem nem o sentido de igualda
grego permitem destacar uma jogada maior: a oposição do
~llil
de nas riquezas, nem o de tarefa igualadora operada por um juiz jusnaturalismo antigo e do jusnaturalismo moderno. O "direito natural"
qualquer. O papel do "juiz" é verificar a justiça de repartições previa do modelo antigo é baseado na ordem da natureza: há nisso uma priori-
dade ontológica atribuída à natureza sobre as criações jurídicas de ordem
mente operadas, das quais ele não é o instigador. E, ao contrário de todo
positiva (o que não implica uma correlação, como vimos, com a
igualitarismo (que foi ao menos surpreendente em uma sociedade pro depreciação absoluta da ordem positiva, e ainda menos a ausência de uma
I fundamente não igualitária, sobretudo pela instituição da escravidão), consciência da positividade das leis, que é, ao contrário, exacerbada).
Quando o modelo puramente "físico" do mundo se apaga em benefício de
o justo é assunto de proporções e não de igualdade aritmética. Esta últi
um modelo metafísico, a problemática permanece inalterada: trata-se
I ma tem sentido na justiça dita "comutativa': para retomar uma segun sempre de inscrever o paradigma da justiça no "ser do mundo".
da expressão escolástica, que intervém no domínio das transposições Paralelamente, essas concepções atribuem igualmente uma prioridade à
~ comunidade sobre o indivíduo, este último não podendo em nenhum caso
de valores de patrimônio a patrimônio: as sunallágmata, no vocabulá
ser o depositário isolado de direitos "naturais" que seriam anteriores a
,
rio de Aristóteles7I. Aqui se trata das trocas tanto voluntárias e contra toda inscrição em um espaço político. Desde então, compreendese que o
I
tuais (ekousia) como involuntárias (akousia), delitos que demandam direito natural moderno, cuja origem se situa por volta do século XIV
uma reparação pecuniária. Nesse domínio de "comutações': bem pare com o nominalismo de de Ockham (ver infra), é o contrário do
70 Cf. L. Ferry e A. Renaut, op. cit., p. 51. modelo antigo: ele se baseia no indivíduo até a obsessão. O desabamento
ce que o díkaion é simples assunto de igualdade aritmética; mas a apli
71 Sobre os aspectos "distributivo" e "comutativo" do direito, ver: MicheI é total: os modernos deduzirão o direito natural da natureza, no sentido da
cação dessa igualdade matemática não Ocorre sem mal, e deve ter em essência, do sujeito humano, e não da natureza das coisas. Em suma,
conta as
Villey, qualidades
"Une que
découverte d' matizam
Aristote': as
in quantidades:
Le droit et lesassim, uma
droits de troca enPUF,
l'homme, pode-se designar a primeira forma de direito natural como um direito
tre um sapateiro e um arquiteto deve levar em conta, para avaliar o pre "objetivo" e a segunda como um direito "subjetivo". Não deixa de ser
1983,
interessante observar de passagem que os grandes exegetas do
ço dos
p.51. calçados de um e as construções do outro, as qualidades
48
HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO 49
A FUNDAÇÃO GREGA

direito natural objetivo da Antiguidade tenham muitas vezes dificuldade


testável progresso, mas seu aperfeiçoamento permaneceu sempre estranho
de aceitar o tema moderno dos direitos do homem, oriundo do di
à idéia de sistematização. Da mesma forma, o número impressionante de
reito natural subjetivo. Sem ser obrigatoriamente ou totalmente
constituições políticas (politéiai) e de escritos sobre a lei foi inversamente
adversários do pensamento dos direitos do homem, eles salientam com
proporcional na Grécia, pelo cuidado de construir um sistema unitário e
freqüência o que consideram como suas fraquezas, ou suas incoerências: estritamente regrado do direito. Se tomarmos como exemplo extremo a
por exemplo, a famosa hipótese de um indivíduo coberto de direitos Grécia helenística, quer dizer, em uma época tardia de esclarecimento do
anteriores à constituição da sociedade política e jurídica. Leo Strauss, universo da pólis clássica e de expansão no Oriente e no Egito, assiste-se a
Michel Villey ou, no campo mais geral da ética, Alasdair MacIntyre se uma espantosa co-habitação de esferas jurídicas heterogêneas. Há
apegam à emergência dessa subjetividade como princípio de avaliação primeiro um direito egípcio, praticado essencialmente nas campanhas de
jurídica e moral. A reativação da problemática antiga de um naturalis conquista pelos Gregos: os atos jurídicos, efetuados por padres egípcios
mo em matéria de teoria do direito e da moral os conduziu às vezes a agindo como notários ou como juízes, são conformes à "lei dos Egípcios"
que remete a um antigo código faraônico. Háem seguida um direito
acotovelar de perto (e a citar) adversários ferozes da Ilustração e dos
propriamente grego, aquele do conquistador: mas esse, por um lado, não
direitos do homem como Burke72.
tem a pretensão de substituir o direito ancestral do país conquistado e, por
outro lado, é ele próprio heterogêneo, emprestando seus elementos às
5. COMPLETUDE DO DIREITO E PLURALlDADE DAS
diversas cidades que forneceram imigrantes no Egito. Há enfim a
ORDENS JURíDICAS NO UNIVERSO GREGO legislação dos Ptolomeul3, editada sob forma de diagrámmata e de
prostágmata, que prima ao mesmo tempo sobre o
Os poucos traços da compreensão grega do direito que tentamos direito egípcio e sobre o direito grego. A questão da determinação da lei
destacar parecem advogar a favor de uma complementaridade das es aplicável, fora o primado das sentenças dos Ptolomeus, era regulamentada
feras jurídica, ética e política, depois de uma complementaridade pela natureza da jurisdição apreendida, grega ou egípcia, com os juízes se
entre referindo ao direito que eles conheciam74. Tal plasticidade é
a ordem positiva das leis e sua ordem objetiva fundada em um surpreendente? Não é precisamente ela que os gregos reprovavam nos
natura bárbaros? É certo que essa situação muito particular, a do Egito dos
Ptolomeus, difere do universo político e jurídico da idade clássica. Con-
lismo. Esse todo, que designamos pela expressão de uma dupla
tudo, pode-se colocar a hipótese de que a Grécia helenística não faz mais
"completude" do direito, ainda pode sem dúvida ser esclarecido se o
aplicarmos sobre um fenômeno de pluralidade das ordens jurídicas no
mundo grego. Sabe-se que a elaboração de uma ciência sistemática do
direito esteve ausente na Grécia Antiga, como esteve ausente no direito 73 Refere-se à dinastia oriunda de Ptolomeu (todos os seus sucessores trarão seu
babilônico. Na Mesopotâmia, a legislação de Hamurabi foi um incon nome), que foi um dos lugar-tenentes de Alexandre, sátrapa do Egito a partir de
72 Isto é especialmente analisado no volume m de Philosophie politique de
323, depois autoproclamado rei do Egito em 305 a.c.
L. Ferry e A. Renaut, p. 55, "Défendre les droits de l'homme contre le droit 74 Segundo Jean Gaudemet, Les institutions de l'Antiquité, Montchrestien,
des 1991, p. 115-6.
Anciens': op. cito
JIIII"'"

"iIII
51
5 A FUNDAÇÃO GREGA
0 HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO

que avivar a consciência já antiga da pluralidade das esferas de direito: matéria de direito privado. Os gregos certamente legaram alguns con
~ ceitos que pertencem ainda hoje ao vocabulário do direito privado (fran-
cada cidade tem seu direito, limitado no tempo e no espaço. A alteridade
11111

de uma esfera de direito para outra é um fato de proximidade. A reflexão cês): os contratos "sinalagmáticos", pelos quais as partes se engajam
~I
sobre as constituições é ela própria uma mistura de observação e de reciprocamente (em oposição aos contratos unilaterais), os contratos
produção dessa pluralidade: Aristóteles e seus discípulos escreveram mais "quirografários", créditos ou dívidas por ato escrito e assinado pela mão
I ~I
de 150 politéiai, das quais nos restam pouca coisa. Na Atenas do século do devedor, ou ainda a "enfiteuse" que designa um contrato intermediá
II
VI ao V a.c. e mesmo do século IV, as mudanças de regime político rio entre a venda e o aluguel. Civilização marítima, a Grécia Antiga dei
I' ocorrem de uma geração para outra, quando não no seio de uma mesma xou igualmente de herança algumas regras jurídicas sobre a atividade
geração. As instituições são renovadas quase constantemente! Aliás, de armador (o empréstimo à Ia gosse, a teoria das avarias comuns77).
censurou -se a posteriori nos gregos, como fez Hannah Arendt, essa Parece que a totalidade da vida civil grega não foi impregnada de direi
"instabilidade" política, fazendo inversamente o elogio da solidez da to: é preciso esperar os romanos para que as regras do direito privado
auctoritas romana. É possível, ao contrário, ver nessa aparente versatili- assumam uma posição sistemática e completem de forma coerente e mais
dade a intuição profunda de que a democracia não é um modelo insti- estrita as do direito público.
tucional, mas o movimento permanente de uma auto-instituição da As fronteiras do direito, ou entre os tipos de direito, talvez dão lu-
sociedade75. Essa pluralidade é certamente externa: ela só corresponde às gar a um jogo de pluralidade das esferas jurídicas. Essa é a interpreta
esferas de direito sucessivas ou justapostas. Contudo, é possível pensar ção, por exemplo, de alguns exegetas italianos contemporâneos do
em uma pluralidade interna das ordens jurídicas. direito greg078. Eles relembram com isso que existia uma coexistência
Essa relativa pluralidade interna das ordens jurídicas contém em de esferas de direito na cidade grega: ao lado do direito da cidade (póIis)
primeiro lugar dois fatos históricos. O primeiro, já citado, é a ausência propriamente dito, a idéia de um direito sagrado anterior a todo direito
secular na Antiguidade de uma sistematização do direito até o império positivo e independente dele podia se perpetuar, da mesma forma que
romano. Poder-se-ia quase reconduzir aqui, a propósito dos gregos, uma podia subsistir um direito de família oriundo das relações entre as gran
observação que foi feita a respeito da Antiguidade mesopotâmica: a des famílias, concebidas anteriormente à construção da cidade. O di
própria idéia de um tratado dogmático, sistematizando todas as ordens reito de família enquanto tal é um exemplo esclarecedor: era subdividido
jurídicas, parece ter sido estranha ao espírito dos antigos76. O segundo, em um direito de família no sentido estrito, cujas regras definiam as
que sem dúvida não é mais que uma manifestação do primeiro, é o relações entre os membros de uma mesma família, os direitos de sucessão
deslocamento que existe na civilização grega entre a proliferação de e, por fim, o que era relativo ao culto; e um direito de família que se pode
direito "público" e o esforço criador infinitamente mais modesto em qualificar de "interfamiliar", que tratava das relações entre as diversas
famílias, e que está na origem de um direito das obrigações. Se

75 É a interpretação proposta, por exemplo, por C. Castoriadis em Les


carrefours du labyrinthe, voI. IV, Le Seuil, 1996, p. 187. 77 Ver Jean Imbert, Le droit antique, PUF, 1961, p. 50-1.
78 Paoli, que se refere à teoria moderna da pluralidade das esferas jurídicas
G. Boyer, De Ia science juridique et de sa méthode dans l'ancienne
76

Mésopotamie, Semitica, IV, 1951-1952, p. 5-11. de Santi Romano (ver infra) e Amaldo Biscardi, Diritto greco antico, op. cito
52
HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO

um sujeito é destituído de seus direitos civis (direito da cidade) no caso da

2
atimia, contudo ele permanece submetido ao direito da família e ao
direito sagrado: por isso, ele permanece um sujeito de direito, mas, pode CApíTUlo
se dizer, incompleto. O "sujeito de direito" no sentido pleno do termo éde
fato o sujeito de diversos direitos.
Esses eventuais "efeitos de pluralidade" põem em questão a
"completude" da visão grega do direito? Em todo caso, eles permitem
contemplar sua complexidade. Assistimos, com efeito, a fenômenos
PERSONAGENS DA
aparentemente paradoxais: uma poderosa tomada de consciência da TEORIA GREGA DO DIREITO
positividade do direito, oriunda de uma não menos vigorosa teoria do
direito natural; elogios admiráveis da lei estabelecida pelos homens (
quer
dizer, pelos gregos!) coexistente com uma persistência da referência à lei
sagrada. O abandono da teocracia em nada impede o reconhecimento de
uma esfera de obrigações ligadas ao culto; a vontade de organizar
pelo direito a vida humana, uma vez que o ser humano digno desse nome
é aquele que sabe viver pelas leis e dentro das leis, em nada impede a 1. LEGISLADORES: DRÁCON, SÓLON, LlCURGO,
existência de pontos de incerteza deixados pela ausência de uma siste- ClÍSTENES
matização jurídica. Em última instância, a completude parece assegurada
pela própria complexidade do fenômeno do direito na Grécia Antiga. o objeto por excelência dos grandes legisladores gregos é a politéia. Esse
conceito, que já evocamos, deve ser entendido em um sentido amplo. Não
corresponde exatamente, por exemplo, à expressão moderna "regime
político". Em grego antigo, o vocábulo politéia tem múltiplas acepções:
organização política, constituição, vida política, política da cidade,
república, democracia, poder político, governo, direito da cidade, direito
político do cidadãol. Contudo, é possível remeter o campo semântico do
termo para uma definição global e fundamental: a politéia é a própria
questão do direito, uma vez que ela orienta a questão das instituições e do
direito de cidadania. Participar da politéia é simples

1 Sobre esse assunto: Jacqueline Bordes, Politeia dans Ia pensée grecque jusqu'
àAristote, Les Belles Lettres, 1982, p. 13-33.
""

54
55
HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO PERSONAGENS DA TEORIA GREGA DO DIREITO

mente desfrutar de seus direitos2; quer dizer, beneficiar-se do direito está associado à idéia de fundação do direito como mediação dos con-
como tal. Note-se que se trata essencialmente do direito "público". Na flitos por um texto que limita a latitude das interpretações possíveis.
arqueologia da politéia, Drácon e Sólon ocupam um lugar quase místico.

1.2 Sólon
1.1 Drácon
No século seguinte (640-560 a.c.), Sólon é infinitamente mais co-
Foi um legislador ateniense a quem se confiou a tarefa de fazer as nhecido e merecidamente mais célebre: sua obra multiforme (ele foi ao
leis por escrito, sem dúvida em 621 a.c. Todavia, conhece-se pouco mesmo tempo homem de Estado, legislador e poeta) deixou traços pro-
sua fundos. Em primeiro lugar, foi quem decidiu abolir as leis draconianas,
obra e ignora-se quase tudo sobre sua carreira. O que se sabe é que que faziam dos pequenos proprietários de terras verdadeiros escravos
sua dos aristocratas que lhes emprestavam dinheiro. A seisachethéia de
legislação tinha por objetivo acabar com o arbitrário e com as lutas Sólon consistiu na decisão de anular as dívidas, o que, aliás, não põe fim
entre as famílias mais poderosas de Atenas. Uma tentativa de Cilon de à servidão, uma vez que Sólon se recusa a repartir os bens dos nobres e
tomar o. poder, fracassada pela família dos Alcmeonidas e pelo arconte mantém a causa do endividamento. Atacado por todos os lados sobre
Mégacles, levou ao paroxismo um clima de crise na Atenas do século essa questão, Sólon atinge a unanimidade a posteriori para uma obra
VII a.c. O papel de Drácon tem, nesse sentido, um alcance simbólico (e destinada a lan
não se exclui que seu elogio tenha essencialmente um valor simbólico, çar as bases da isonomia. Quando vivo, todavia, já era consagrado entre
uma vez que se supõe atualmente que a "Constituição de Drácon" é um os Sete Sábios da Grécia, antes de ser considerado pai fundador da
falso documento do final do século V a.C): trata-se de regulamentar os patroios politéia, a constituição dos ancestrais, ela própria assaz ambígua
diferentes pelo direito, e sob a égide de um poder político que se torna para poder ser reivindicada tanto por partidários como por adversários da
um árbitro todo poderoso. Assim, a legislação de Drácon sobre os as- democra
sassinatos prevê processo diante dos tribunais do Areópago ou dos cia. No domínio das instituições, Sólon duplicou o Areópago com um
Éfetas, a fim de proteger o assassino da vingança das famílias e dos clãs. Senado (a Boulé de Sólon), dando origem ao bicameralismo, e criou um
A lendária severidade das penas previstas por Drácon (que legará à lín tribunal (a Heliéia) cujo espírito era assegurar uma melhor igualdade da
gua portuguesa o adjetivo draconiano) importa menos aqui que o valor lei e de sua aplicação, uma vez que seus membros eram escolhidos nas
simbólico dessa figura ancestral do direito, e principalmente da passa quatro classes da sociedade ateniense.
gem à escrita jurídica: as perturbações de Atenas também se deviam ao É certo que a contribuição de Sólon é considerável pela idéia de
fato de que a oligarquia interpretava à sua maneira a legislação oral. igualdade e de imparcialidade do direito e das instâncias públicas, mesmo
Drácon, que foi designado precisamente para fixar as leis por escrito, que o resultado concreto fosse controvertido: sem ser um demo
crata no sentido político do termo, ele insufla o espírito de igualdade de
2 É o que propõem o historiador Edmond Will (Le Monde grec et l'Orient, I,
direit03. Em certa medida, esse grande legislador pode ser conside
p. 419, PUF, 1988) e Claude Mossé em Le citoyen dans ia Crece antique,
3 Sobre Sólon: Aristóteles, Constituição de Atenas; Pierre Lévêque, L'Aventure
Nathan,
1993, p. 86. grecque, Armand Colin, 1964, livro II, capo 3; Claude Mossé, Le citoyen dans ia
JII!I
""

:111

57
56 PERSONAGENS DA TEORIA GREGA DO DIREITO
HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO

'i zendo da lei (nomos) um bem de todos".4 O ponto máximo da paixão


: rado um filósofo do direito. E, a esse respeito, ele ilustra perfeitamente a
~
i ambigüidade (ou a completude) da visão grega do direito: grande criador grega pelo direito no que ele tem de mais positivo, a obra dos legislado
l
e ordenador do direito positivo, ele não cessa de cantar nas suas Elegias a res, permanece ancorado a uma fonte divina. Entre os séculos VII e VI
1'111
justiça divina: a eunomia (a boa legislação) é feita de sabedoria e de a.c., a elaboração do direito é colocada sob os auspícios do deus oracu
moderação (sophrosyne) e de luta contra todas as formas de hybris, essa
lar de Delfos: ApoIo. E quando Licurgo deve fIxar as leis da cidade
desmesura que é uma ofensa aos deuses. Sua obra de reformador político
(Esparta), ele o faz recebendo a rhetra, o oráculo de ApoIo.
e jurídico é, em última instância, habitada por uma convicção
profundamente religiosa: a de que a crise de Atenas é uma afronta aos
1.4 Clístenes
deuses e à justa ordem do mundo que eles instituíram. A "restauração" de
Sólon é bem grega: é uma reforma política, jurídica, mas também Sua obra data de 508 ou 507 a.c. Ele prosseguiu o projeto de Sólon
essencialmente ética; as três ordens convergem em direção a uma justiça em matéria de isonomia, mas lhe deu uma feição claramente democráti
natural ligada a uma harmonia teológico-cósmica. ca, pelo menos em teoria. Foi responsável pela repartição do
conjunto da
Grécia em demos de cidadãos (uma centena de demos para a
1.3 Licurgo
Ática). Daí em diante, todo cidadão é designado pelo seu nome seguido
Sabe-se que Sólon teve seu equivalente em Esparta na pessoa de não mais
Licurgo, cuja aspiração é análoga, mesmo que ela resulte em um outro por seu patronímico - prática que favorecia a evidência de nobreza -,
tipo de legislação. Entre direito natural (grego, quer dizer, teológico- mas
cósmico, baseado na ordem divina do mundo) e direito positivo, esses pelo nome de seu demo. Pode-se ler nas entrelinhas a emergência do
legisladores têm um ponto comum, salientado por Claude Mossé e Annie su
Schnapp-Gourbeillon: "A existência de legisladores inspirados pela jeito de direito moderno contra todas as hierarquias patriarcais. Mas
divindade não é um fato próprio do mundo grego. As civilizações do essa
Antigo Oriente trazem a prova disso. Mas na Grécia, parece que o busca do ideal de isonomia na afIrmação institucional, cada vez mais
2. A MODERNIDADE DOS SOFISTAS
marcante, da igualdade de todos perante a lei não impede que haja para-
legislador aparece toda vez para regulamentar uma situação de crise, de
stasis que ameaça a unidade da cidade, e que a solução por ele trazida lelamente uma referência
A contribuição religiosa na
dos legisladores obra paradoxal:
é, pois, de Clístenes.
elesOintroduziram
Estado de
para essa crise consiste em fIxar regras a fIm de tornar a justiça (a dike) Clístenes permanece religioso em seu fundamento.
a escrita das leis, mas não reconhecem as leis como puras criações do
acessível a todos e de protegê-Ia da arbitrariedade dos poderosos, fa discurso. Por trás do positivo permanece o natural, como por trás do
legislador se encontra ApoIo. No século V a.c., a Grécia vê a emergência
de dois fenômenos novos: a democracia e a sofística. Não é proi
Crece antique, op. cit., p. 92-3; Philippe Malaurie,Anthoiogie de ia pensée juridique, Éd.
Cujas, 1996, p. 9-12; Claude Mossé e Annie Schnapp-Gourbeillon, Précis d'histoire
grecque, Du début du deuxieme millénaire à ia bataille d'Actium, Armand Colin, 1990, p.
153. 40p. cit., p. 153.
'"
.....

59
PERSONAGENS DA TEORIA GREGA DO DIREITO
1~111~
58 HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO

ção do indivíduo nas doutrinas de Platão ou de Aristóteles, no


bido ver aí um vínculo: o regime das assembléias democráticas supõe o
~ reconhecimento do poder da palavra no debate público e da arte retórica, contex
I~
que visa ao convencimento. Mas o que os sofistas manifestam ésem to de uma comunidade, evidentemente, e de um direito do indivíduo à
dúvida menos a descoberta da democracia como regime do que a
!I~ "excelência" e não à igualdade jurídica moderna6.
descoberta do político como lugar de discurso. O político é assunto de
Pertence sem dúvida aos sofistas o mérito de colocar com uma
logos. A máxima originalidade dos sofistas consiste em deixar mal a bela
11

completude grega do positivo e do natural, do político e do jurídico com o espécie de acuidade original e extrema a questão do direito: teria ele
ético. PIa tão conservará contra eles a inspiração dos grandes legisla- um
dores: as boas leis fazem homens íntegros, ou pelo menos têm uma efi-
fundamento natural, quer dizer, o que é justo segundo a lei positiva
cácia ética. Nada disso entre os sofistas: a lei não tem alcance sobre a
natureza do indivíduo, e ela não é capaz, como declara Licofrão, de "tor- é
nar bons e justos os cidadãos" (Fragmento 3). Então para que ela serve? justo por natureza (phJSei díkaion) ou é apenas uma justiça por con
Nada mais que fazer viver em sociedade seres que são indivíduos antes de venção (nômoi díkaion)? A força com a qual os sofistas souberam
serem cidadãos, e que buscam seu interesse em um acordo puramente
des
convencional. Pouco importa sua qualidade ética: como dirá mais tarde
Kant, o político pode existir no seio de uma congregação de demônios, tacar essa questão os define mais do que sua associação com um puro e
desde que estes descubram nisso um interesse. Portanto, não se respeitará simples partido de convencionalismo. A esse respeito, pode ser consi
a lei porque ela é divina: ela será admitida como uma criação derado2.1 A sofística
como simbóliconaturalista:
que Trasímaco, que foi posto em cena por Platão
propriamente humana e convencional (sftltheta), desprovida, para certos Antifonte, Trasímaco, Hípias, Cálicles8
na República sob os traços provavelmente extremados de um apologista
sofistas, de qualquer fundamento na natureza. Derrubando o
da tirania, não seja
Antifonte, em precisamente um partidário
um texto magistral do convencionalismo!
que foi conservado (fragmentos
comunitarismo político grego, os sofistas afirmam que somente o indi-
víduo existe por natureza. Ele preexiste a toda comunidade e faz desta O espelho
B 44 deformador do aplatonismo
A e B9), opõe natureza eatribui
a lei, eaos sofistas uma
se interroga imagem
sobre aquilo que
uma simples construção artificial, como as leis que a tornam possível. A muito
engajanegativa ou unívoca7. Esquematicamente, poderíamos propor
afirmação sofista do indivíduo vem singularmente matizar uma in- dois tipos de posições sofísticas diante da questão do direito.
6 Sobre esse assunto, ver a observação de J.-E Kervégan no artigo "Les droits de
terpretação bem unilateralmente comunitária, ou "holística': para retomar
l'homme" de Notions de philosophie, t. lI, Gal1imard, cal. Folio Essais, 1995, p.
a terminologia de Louis Dumont5, da sociedade e da teoria política
646.
gregas. A primazia da comunidade sobre o indivíduo foi inegável, mas 7 Ver o estudo de Barbara Cassin, op. cito
certamente não absoluta: a importância histórica dos sofistas o atesta, 8 Sobre os dois primeiros tipos de posições sofísticas, retomaremos a análi
como pode atestá-Io igualmente a relativa legitimidade de uma afirma se proposta por J.-M. Balaudé, Les théories de Ia justice dans l'Antiquité, op. cit., p.
47-64 e, em parte, a análise de Jacqueline de Romil1y, La loi dans Ia penséegrecque,
Les Belles Lettres, 1971, p. 73-95.
5 Louis Dumont, Romo aequalis, Gallimard, 1977; Essais sur l'individualisme, Le 9 Traduzido por Barbara Cassin, op. cit., p. 275, retomado e modificado no
Seuil, 1983. estudo de J.-M. Balaudé, op. cito
autoctonia, o nascimento no sentido geográfico, distinguindo os

... atenienses de todos os outros povos pelas qualidades próprias. Quando


platão escreve, sem dúvida em eco irônico a Antifonte, que "a igualda
m
de de origem, estabelecida pela natureza, nos obriga a buscar a igualda61
III!~ 60 PERSONAGENS DA TEORIA GREGA DO DIREITO
HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO
de política estabelecida pela lei"12, trata-se de uma physis que obrigaria
!I~I~

os atenienses a adotarem uma forma particular de nomos: a natureza


fundamentalmente as condutas humanas. Fazendo do útil o critério do
I~~
justo, ele distingue o útil segundo a lei e o útil segundo a natureza. "Se- serve aqui apenas para demonstrar a superioridade de um grupo sobre
III!
guindo seu raciocínio, o útil segundo a lei não é respeitado senão diante os outros, e não para questionar a legitimidade de toda instituição hu
~ de testemunhas, ao passo que o útil segundo a natureza não precisa de mana como em Antifonte. Argumentando, além disso, sobre as contra
testemunhas, sendo realizado independentemente da presença de uma
dições da lei positiva (ela obriga a servir os pais, mesmo que sejam
testemunha. Conseqüência: a verdade está do lado da natureza, enquanto a
lei, pela qual se diz o justo, fica reduzida a um acordo artificiaL A maus,
inferioridade da lei é marcada também pelo exame das conseqüências dá vantagem a quem dá queixa, pode incomodar o inocente acusado,
práticas: se alguém infringe a lei sem ser visto, não terá nada a temer; em que deve provar sua inocência etc.), Antifonte deseja demonstrar a in
contrapartida, as prescrições naturais que nos são impostas causam o
certeza da justiça humana.
mesmo mal se não forem respeitadas, quer sejamos vistos quer não.
Assim, a lei se opõe à natureza, o arbitrário ao verídico."lo Limitemonos Trasímaco, por sua vez, exprime uma desconfiança da lei ainda
aqui a duas breves observações. É em nome da natureza que é sublinhado mais
o caráter puramente convencional das leis. A natureza permite alcançar marcante e mais "política": ela não seria somente uma pura
uma universalidade recusada à lei por causa de seu relativismo histórico, e convenção,
ela tem um sentido muito físico: segundo Antifonte, nada distingue por mas ainda a expressão do interesse da classe dirigente. No livro I da
natureza o bárbaro do grego, pois ambos respiram o mesmo ar pelas República, Platão o faz dizer que todo governo só estabelece as leis que
mesmas bocas. A lei se arrisca a ser um entrave à natureza. Uma melhor lhe são favoráveis. A justiça, na ordem do legal, desde então nada mais
definição para o conceito de physis (natureza) pode ser apresentada aqui,
é que "o interesse do mais forte" (338c). A verdadeira justiça é devolvi
se compararmos as posições de Antifonte e de Platão, principalmente em
da a uma naturalidade.
Menéxeno. Antifonte tenta opor diametralmente a natureza e a lei, e
sustentar a tese segundo a qual a lei cria VÍnculos que se opõem à Hípias exprime outra crítica: não somente a lei por convenção é
natureza em vez de ser dela a conseqüência necessária. Physis é aqui o de pouco valor em relação a uma justiça natural detectável nas leis
contrário de nomos, exceto se considerarmos um nomos ideal que não não
seria o espelho da physis. Quando se lê paralelamente o Menéxeno de escritas, mas ela é ainda nociva, já que não faz mais que sublinhar
Platãoll, parece que Platão reivindica também uma superioridade da os particularismos (toda convenção é por essência particular) contra a
ordem da physis sobre a ordem do nomos. Mas a palavra physis assume universalidade e a totalidade da natureza.
então um sentido particular, designando a Essas críticas sofistas da fraqueza da lei por convenção, imprópria
para estabelecer uma verdadeira concórdia entre os homens, são
transformadas
10 J.-M. Balaudé, op. cit., p. 51 em um requisitório muito mais radical com Cálicles, o lendário
11 Cf Fernanda Decleva Caizzi, '''Hysteron proteron': Ia nature et Ia loi selon opositor de
Antiphon et Platon", Revue de Métaphysique et de Morale, n. 3, 1986. 12 Platão, Ménexene, 239a.
...
'IIIIIl
l
IIII~

I
63
62 PERSONAGENS DA TEORIA GREGA DO DIREITO
I~ I1II
HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO

I deles opta pelo naturalismo: o que já é uma restrição de abordagem.


tenha inspirado seu personagem em um sofista chamado Polícrates. Mas, na
1II I~
dúvida, é preciso aceitar o fato de que Platão criou, pelo menos em parte, seu Quanto àqueles que tomam o partido da convenção, é preciso tentar
I pior contraditor! Cálicles foi realmente um sofista, ou teria sido, caso nunca entendê-Ios com prudência. O mais célebre deles, Protágoras, corre o
tenha existido? Jacqueline de Romilly lhe nega essa qualidade, vendo nele um
ser, real ou fictício, que combina a lucidez intelectual dos sofistas com paixões risco de ser reduzido em nosso espírito a seu aforismo tão famoso: "O
políticas pragmáticas, e manifesta a crise da lei na Grécia do final do século V a. homem é a medida de todas as coisas"13. Que homem? O indivíduo sin
C. Cálicles não vê somente na lei uma convenção imposta arbitrariamente por um
gular ou a natureza humana? Hegel dirá mais tarde que os sofistas não
grupo dominante a uma comunidade humana, mas uma perversão que tenta opor-
se à desigualdade natural. A lei, por princípio igualitário, não pode ser outra tinham ainda distinguido o interesse do sujeito na sua particularidade
senão aquela que os fracos impõem aos fortes: uma armadilha da maioria para ser
do interesse do sujeito na sua racionalidade substanciaP\ o que é urna
lançada sobre os fortes. Cálicles foi, em seu arrebatamento, um precursor de
Nietzsche, como este último também acreditava? É verossímil que a aristocracia forma severa de dizer que esse pensamento leva a um relativismo cético
dos "fortes" não tinha senão um sentido pragmático e político para Cálicles, ao estéril que deve ser "ultrapassado" por uma afirmação da Verdade de
passo que ela terá um significado menos político do que "espiritual" para
tipo platônico. Mais recentemente, Michel Villey pode escrever de for
Nietzsche, no sentido de que os super-homens nietzschenianos não devem ser
confundidos (pelo menos é o que esperamos!) com um grupo de brutos que se ma ambígua15 que Protágoras tem uma concepção da justiça "toda sub
colocam acima ou aquém da lei. Cálicles se afasta da posição crítica naturalista jetiva", tirando "conseqüências democráticas" dessa justiça, reduzida a
da lei desenvolvida por Trasímaco, Hípias ou Antifonte, ou então a conduz ao ex-
ser não mais que um sentimento. Ora, é bem essa a dificuldade: o
tremo? Ele se afasta, uma vez que a referência a uma lei natural não significa
desta vez uma concórdia natural ideal que as leis seriam incapazes de pôr em convencionalismo não implica um relativismo grosseiro ou um
obra; mas ele a conduz ao extremo, uma vez que abala a idéia de lei a ponto de questionamento radical da idéia de lei. É mais adequado o sentido de
convidar a rejeitá-Ia. Não se trata, portanto, somente de criticar as leis em nome uma tentativa de ultrapassar a antítese canônica physis-nomos, e uma
de um princípio superior, mas de encontrar um homem "assaz felizmente dotado
insistência sobre a capacidade humana de socialização. No fundo, ele
para [...] rejeitar todas essas correntes" e "pisotear [...] nossas leis, todas
contrárias à natureza" (Górgias, 484a). celebra a força da lei! Leo Strauss expõe claramente em Droit naturel et
histoiré6: "O argumento convencional se reduz a isto: o direito é con
vencional porque resultou inteiramente da cidade, e a cidade é conven
13 Protágoras, Fragmento RI.

cional.14 Hegel,
Contrariamente à nossadeprimeira impressão, o convencionalismo
2.2 A sofística convencionalista: 15
Leçons sur I'Histoire Ia Philosophie, trad. Garniron, Vrin, t. lI, p.
Michel Villey, La formation de Ia pensée juridique moderne, Montchrétien,
262.afirma que o significado do direito ou da justiça seja puramente
não
O Protréptico de Jâmblico, Crítias e Protágoras 1975, p. 18.
arbitrário ou que não haja a seu respeito qualquer espécie de consenti
16 Leo Strauss, Droit naturel et histoire, trad. M. Nathan e E.
o convencionalismo dos sofistas consiste em interpretar com
prudência e moderação. Acabamos de constatar justamente que Dampierre,
uma parte Flammarion, 1986, p. 104-5.
Iiii
""'

64
HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO PERSONAGENS DA TEORIA GREGA DO DIREITO 65

mento geral. Pelo contrário, supõe que todos os homens entendem por fustigar, não vendo nela mais que uma manipulação temerária do povo
justiça essencialmente a mesma coisa: abster-se de causar malefício aos para consigo mesmo, sem mesmo contar com a "quinquilharia retóri
outros, auxiliar outrem ou se preocupar com o bem comum". ca" que permite essa manipulação (nisso ele se opõe, portanto, diame-
O "Anônimo" de lâmblico, nome dado a um texto sofista apócrifo tralmente ao elogio da retórica por Górgias); e uma lei aristocrática,
contido no Protréptico do século lU d.e., é inteiramente dedicado a necessária à sociedade, inflexível e estável. O partido de Crítias podia
defender o nomos convencional contra a physis: trata-se de uma apolo então ser designado como aquele de um elogio político da lei: a lei da
gia da lei e do regime democrático que se opõe diametralmente às teses aristocracia, que sabe criar de qualquer maneira uma ordem social julgada
de um Cálicles. Crítias, por sua vez, tem um estatuto um pouco parti ideal pelos próprios aristocratas.
cular. É um aristocrata que tomou parte do grupo dos Trinta Tiranos, Protágoras ficou célebre em razão de sua longa e minuciosa refu-
que sustenta por motivos pragmáticos posições teóricas convencionalistas tação por Platão, em especial no Teeteto e, obviamente, no Protágoras.
e posições políticas pró-oligárquicas. Ele morreu em 403, por ocasião de Platão tinha sem dúvida muito interesse em deduzir das proposições de
combates contra os democratas1? Mais homem de ação que teórico é, Protágoras um relativismo absoluto, para melhor fazer aparecer sua
contudo, autor de um drama satírico, Sísifo, no qual defende, não sem própria refutação. É certamente inegável que o relativismo está no centro
algumas contradições, uma espécie de convencionalismo pragmático do pensamento de Protágoras. Como sublinhou há pouco tempo
(entenda-se cínico). Personagem ambíguo, parece desprezar as Jacqueline de Romillfo, esse relativismo não deve jamais ser subestimado,
leis (quando de sua participação no governo oligárquico dos Trinta, ele mesmo que seja temperado pela idéia de que a utilidade impõe certas
exclui Terâmenes da lista de cidadãos com plenos direitos para poder virtudes, principalmente na cidade. Protágoras se desvencilhou dos
condená-Io à morte sem julgamento!18), explicando em seu Sísifo fundamentos ontológicos da virtude, mas não da própria virtude.
que a Ele se propôs, para retomar uma fórmula de J. de Romilly, a "construir
invenção das leis é uma astuciosa iniciativa humana para tentar escapar sobre novas bases uma ética centrada, precisamente, sobre as regras que
da desordem de uma vida natural que, para o homem, seria bestial, presidem a vida coletiva, e cuja expressão é, em definitivo, a lei". O mito
submetida à força e ao arbitrário... Tornado célebre por seu ateísmo, de Protágoras relatado por Platão11 expõe uma teoria da socialização:
Crítias nega à lei qualquer fundamento divino ou natural, e desenvolve imaginando um estado original que retoma a mitologia de Hesíodo,
uma doutrina muito "moderna" segundo a qual os deuses são criações Protágoras coloca que todos os animais devem receber eqüitativamente
humanas emanando da ação legislativa19, inventados pelos próprios le- qualidades. Epimeteu, estando encarregado de proceder a uma dis-
gisladores para fazer com que as leis sejam respeitadas. No fundo, hádois tribuição eqüitativa, esquece o homem, introduzindo assim um
tipos de lei para Crítias: uma lei democrática, que ele não cessa de desequilíbrio insuportável. Então Prometeu intervém para reparar sua

17 Cf. Balaudé, op. cit., p. 58.


18 Ver: Jacqueline de Romilly,La [oi dans Ia pensée grecque, op. cit., p. 149, 165, que não tem qualquer necessidade de crer nesses deuses. Somos, pois, os antípodas da
169. 19 Essa "modernidade" não deve fazer dele um precursor de Marx: Crítias desta crítica marxista do "ópio do povo"!
ca, como aristocrata comedido, a extrema utilidade de uma crença popular nos deuses, que 200p. cit., p. 84-5.
permite fazer respeitar uma ordem social desejada por uma elite oligárquica 21Platão, Protágoras, 320d-323c.
..
.1

67
PERSONAGENS DA TEORIA GREGA DO DIREITO
66
II HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO

1'100 ~IIII
realizar uma socialização política que a tekhne dada por Prometeu não
leviandade, furtando dos deuses o fogo, assim como o saber que permite
utilizá-Io, a fim de dá-Io como compensação ao homem. Esse roubo poderia levar a cabo sozinha. Entre eles, alguns desenvolverão melhor
II~

R original, que é aquele da técnica e do saber, acarreta toda uma série de essas faculdades e se tornarão os dirigentes políticos.
conseqüências para o homem: ele fica grato aos deuses por esse "dom" Em conclusão sobre a herança sofista em matéria de pensamento
I~

(ele não é culpado do roubo, uma vez que foi cometido por Prometeu), do direito ou, mais exatamente, da lei, concordamos com B. Cassin
adquire a linguagem e desenvolve as tékhnai, e sua socialização tornase o
(op.
fruto de uma tekhne, de uma arte. Está assim destacado o caráter
"artificial'~ isto é, convencional da socialização. Zeus trará, por inter- cit.) quando afirma que a tese fundamental permanece sendo a insis
médio de Hermes, o dom da justiça aos homens. O homem é, portanto, tência sobre o lagos, que é o elemento pelo qual se motiva o humano e
destinado pelos deuses a constituir ele próprio uma sociedade política. Ele
pelo qual ele se realiza. A realização propriamente política, a do acordo
será um produto da arte, ou melhor, de si mesmo. O fundamento
ontológico da lei desaparece (nenhuma referência a qualquer physis), dos espíritos, a homónoia, é obtida pelo lagos. A cidade, no sentido so
mesmo que seja uma impulsão divina que, no mito, arrasta o homem para fista, é antes de tudo uma performance, propõe B. Cassin, em um senti
a obrigação de se estender pela tekhne em direção à realização do do sem dúvida mais próximo do verbo inglês to perform que do
Respeito, ou Moderaçã022 (aidós), e da Justiça (dike) que foram deposi- português performance: realizar uma tarefa, realizar um dever. O con
tados nele por Zeus como capacidades inatas, devendo ser manifestadas
senso sofista é uma realização intra-humana, a da homónoia, o maior
ou desdobradas23. A via convencional do nomos é propriamente a do
de todos os bens. O que é a lei, senão a forma de linguagem, senão o
homem. Há aí uma "antilogia" característica do pensamento de
Protágoras: é o divino (aqui Zeus) que insufla o que há de humano no "jogo de linguagem" específico, para retomar o vocabulário de
humano, da mesma forma que a virtude é ao mesmo tempo uma dádiva Wittgenstein, que permite essa realização? Sem dúvida, a força dos so
inata e fruto de um ensinamento. Contra a idéia de um declínio original fistas reside nesse ato de fé do poder do lagos para realizar a
(Hesíodo) ou de um eterno retorno (os pitagóricos), Protágoras toma o homónoia.
partido de um progresso humano, com um otimismo comedido: em defesa Para serem persuadidos por leis, os gregos devem ter consciência da força
da democracia, ele sustenta que todos os homens receberam de Zeus as 3.
intrínseca PLAT
do lagos e da própria idéia da lei. Tal pode ser então a
faculdades de aidós e de dike, e estão por isso aptos a
ÃOMutila-sesofista
"Grundnorm" (ver a exposição da teoria da Grundnorm segundo
o pensamento de Platão, escrevia há pouco tempo o his
Hans Kelsen na terceira parte): "A lei dos gregos é a lei de prestar o
toriador da filosofia de direito Michel Villef5, quando se quer reter
juramento de obedecer às leis"24.
apenas os elementos políticos e jurídicos. O imenso paradigma platô
nico de fato se presta particularmente mal a um exame parcial,
22 Essa última tradução. é proposta por Luc Brisson, La philosophie grecque,
porque
PUF, 1997, p. 115.
23 O mito de Protágoras certamente não poderia ser reduzido às dimensões
24 Barbara Cassin, op. cit., p. 239.
mínimas deste comentário. Dever-se-á ler com proveito a interpretação detalhada
25 Michel Villey, La formation de Ia pensée juridique moderne, op. cit., p. 26.
sobre isso proposta por Barbara Cassin: L'effet sophistique, op. cit., p. 215-225.
~
68
HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO 69
PERSONAGENS DA TEORIA GREGA DO DIREITO
11

o pensamento de PIa tão leva a um ponto culminante um traço do pen-


ter o quê? Isso coloca constantemente o problema da distribuição
samento grego que já quisemos ressaltar: a relação da ética, do jurídico
entre os cidadãos, e ao mesmo tempo abre a via de uma interrogação. Ele
e do político. Contudo, mesmo a esse respeito o diagnóstico não é fácil.
derruba essa definição e faz da justiça o que poderíamos chamar - e o que
Certamente, a questão central da legitimação de uma ordem jurídico se tem aliás chamado nos tempos modernos - uma propriedade holista, ou
ij
política não pode se colocar, nos termos antigos e platônicos, fora de holística, uma propriedade do todo". A preocupação platônica, por-
uma perspectiva moral do ponto de vista da justiça, ao contrário de uma tanto, é descobrir a Justiça segundo o Bem, pela meditação da filosofia.
formulação moderna, que limitaria o debate somente às condições de Não sendo o mínimo indiferente com respeito às leis positivas, que ele
aplicação dessa ordem, de maneira neutra frente à moral26. Contudo, o conhece perfeitamente e saberá, aliás, desenvolver com profundidade em
paradigma platônico não é somente uma simples exacerbação de uma As Leis, Platão permaneceu desconfiado com respeito à lei: uma vez
maneira globalmente grega de pensar a prática. É mesmo verossímil que escrita, ela tomba sob o golpe do mito de Teuth, o deus egípcio que teria
dado aos homens o dom funesto da escrita, e ela não poderia atingir
seja o desvio produzido por Platão diante da cultura grega que definiu
jamais a perfeição da ciência encarnada nos filósofos no poder, o muito
também seu pensamento. No final das contas, toda sua obra não é uma
famoso filósofo-rei. Uma lei não é forçosamente falsa, mas permanecerá
defesa e ilustração (e transformação também) da doutrina de seu mes
sempre inadequada aos olhos de PIa tão. Em O Político28, ele declarará que a
tre Sócrates, o infatigável adversário dos sofistas que dominaram até
lei não poderá jamais abraçar o real, unir as dessemelhanças entre os
então a cena filosófica grega? A relação grega da ética e da esfera jurídi
homens e que por isso seu drama é intrínseco: ela deve enunciar uma
co-política podia admitir distorções: assim é aquela induzida pelos so regra geral, um absoluto para ser uma lei, mas desde então ela falha por
fistas que exacerbaram o aspecto convencional da lei e essência quanto ao individual. E ele terá uma expressão muito
fragilizaram, de contundente para designar essa inadequação entre o absoluto abstrato da
forma às vezes pragmática, a exemplo de Crítias (embora este não te lei e a singularidade dos casos concretos: a lei é como um "homem
nha sido propriamente um sofista), O alcance moral das idéias de lei e arrogante e ignaro", ánthropon authadé kai amathé, que não
de justiça. É em primeiro lugar contra esse desvio que se ergue PIa tão. permitiria a ninguém fazer nada contra suas ordens, nem mesmo fazer
Mas, por extensão, sua oposição se estende à idéia de um debate demo- melhor que o que ele prescreve. Em suma, a lei tem alguma coisa de um
crático, ou mesmo simplesmente político e permanente sobre a manei disco estragado, que não sabe repetir sua prescrição ao infinito, dirá
ra de se governar. Platão visa à Verdade: uma vez desvendada, seria Castoriadis comentando esta passagem!
absurdo debatê-Ia ao infinito. "Platão': dizia Cornelius Castoriadis27, Acima das leis, Platão colocará a idéia de Justiça. Sabe-se, por
textos célebres, a que ponto a justiça platônica tem por ambição realizar
"derruba completamente a concepção grega da justiça como questão
com a mesma harmonia o equilíbrio do homem e o da cidade. Não
constantemente aberta na cidade: quem deve dar o que, e quem deve
26 É mais ou menos nesses termos que a distinção é formulada, por exemplo,
é o objetivo final? Em um curso que professou sobre Platã029,
Nietzsche observa o grito
por Otfried Hõffe em La justice politique, Fondement d'une philosophie critique du
droit et de l'État, trad. Jean-Christophe Mede, PUF, coI. Léviathan, 1991, p. 197.
27CorneIius Castoriadis, Sur Le Politique de Platon, Seminário na EHESS, 28 Le Politique, 294a-b.
1986, publicado em Seuil, na coleção La couleur des idées, 1999, p. 22. 29 Nietzsche, lntroduction à la lecture des dialogues de Platon, cursos datando
pr'

70
71
HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO PERSONAGENS DA TEORIA GREGA DO DIREITO

de alegria de Sócrates quando, após longos desvios, a justiça está por fim
instaurará, ao contrário, o absoluto como programa da filosofia política
à vista: a justa repartição dos papéis no Estado não será mais que o 32
d o

espelho do justo equilíbrio das partes da alma. Justiça e sabedoria, ou ' e jun
lCa .
moderação, dikaiosyne e sophrosyne, são muito próximas uma da outra.
Algumas palavras de definição são sem dúvida necessárias sobre
Mas é necessário precisar que a sophrosyne platônica não é uma simpIes
esse tema do "absolutismo" platônico. A definição do "melhor regime
moderação social, uma convenção de obediência à ordem jurídica
possível" por Platão, principalmente na República, é
vigente, como poderiam entender, em um sentido próximo da justiça,
os contemporâneos de Platã03O: pelo contrário, trata-se de religar pro- fundamentalmen
fundamente a busca do melhor regime político possível à do melhor te uma utopia? É a definição que sustentava, por exemplo, Leo
gênero de vida possível. A ambição é espetacular: por "melhor" não se Strauss33.
deve entender aqui uma simples otimização ética e política, mas a pers- Essa utopia é totalitária ou ela traz o germe do totalitarismo? Sabe-
pectiva da via única da Verdade e do Bem. Tem-se muitas vezes glosado se
sobre o alcance "reacionário" das proposições políticas platônicas. O que essa última hipótese foi muito defendida pela obra de Karl
esforço desmesurado de PIa tão vai, contudo, muito além dessa qualifi- Popper,
cação: trata-se de encontrar e de fixar, como comenta Castoriadis31, um La société ouverte et ses ennemis (A sociedade aberta e seus
regime que deterá a história! O que quer dizer, em primeiro lugar, deter inimigos). Sem
o ciclo dos regimes oligárquicos, de democracia e de tirania que se su- pretender decidir aqui um debate complexo e sempre aberto, propo
cedem sempre que a corrupção os destrói, mas também deter o ciclo de mos simplesmente três argumentos destinados a prevenir uma condenação
soluções técnicas em matéria de direito e de política: o direito positivo precipitada da conduta platônica.
será colocado sob a tutela da Idéia do Bem e da Verdade definitiva. O . Em primeiro lugar, quando Platão pensa a questão jurídica,
absolutismo filosófico de Platão é em si mesmo uma revolução. Os so- ele o faz certamente em relação constante com uma filosofia
fistas se recusaram a reconhecer que um conhecimento da justiça pudesse global do Bem e da Justiça, tomando a existência de tais entidades em
ser absoluto: por conseqüência, admitiam facilmente uma pluralidade de um universo de Essências, mas também com base nas legislações gregas
ordens jurídicas e políticas, com a justiça operando em Atenas ou em existentes e com o cuidado de uma transformação possível dessas
Esparta de formas diversas. O texto platônico da República legislações. Uma abor
dagem32 aSobre este assunto,
esse respeito fazemos pelo
foi proposta nossahistoriador
leitura de A. MacIntyre,
Paul Veyne34:emPlatão
Quelle
justice? Quelle rationalité?, trad. M. Vignaux d'Hollande,
não é Thomas Morus ou Fourier! Ele se inspirou em legislações autên- PUF, 1993, p. 88-9:
a República deve ser compreendida não como a exposição de uma teoria de
ticas e esperava que um fundador de cidade pusesse à obra seu próprio
dos anos 1871-1876 (Einleitung in das Studium der platonischen Dialogue, editado por formas acabadas, mas como um programa para a construção de uma teoria
projeto
filosóficadee constituição, sempre procurando salientar que certamente não
Krõner em 1913), trad. Olivier Berrichon-Sedeyn, Éd. L'Éclat, 1991, p. 68.
se poderia
política jamais
fundada pôrum
sobre emabsoluto.
obra a cidade ideal. Ele não era de forma algu-
30 Isto é esclarecido pelo estudo de Marie-France Hazebroucq, La folie

humaine et ses remedes, Platon, Charmide ou De la modération, ma "totalitário",


Leo Strauss, salvo
33 em considerar
Droit naturel et histoire, que o totalitarismo
op. cit., p. 131. é uma cons
Paul Veyne, "Critique d'une systématisation, les Lois de Platon et Ia réalité",
Vrin, 1997, p. 34

Op. cit., p. 163.


184.
31
in Annales, 37° ano, n. 5-6, setembro-dezembro de 1982, Armand Colin, p. 883-
903.
""111
""

!' 73
'"
1

'I1 72 HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO


PERSONAGENS DA TEORIA GREGA DO DIREITO

.,

I11ente sorrir ou irritar-se ao constatar que Platão prevê, por exemplo,


i~11

1
tante que se poderia propagar sem deformação através dos séculos: mas,
11111 nesse sentido, uma grande parte da realidade política greco-romana eI11 detalhes, as regras da vida social e "privada" dos Guardas, na Repú
mereceria ser qualificada como totalitária, e não somente a doutrina pla- blica38. Mas nosso espanto supõe a consideração anacrônica de um di
' IIIIII

tônica. É preciso desconfiar do anacronismo. Aliás, da República às Leis, reito do indivíduo que não verá o dia senão bem mais tarde, na época
II1111 ~IIII
Pia tão parece evoluir no sentido, senão de um pessimism03S, pelo menos
I11oderna. A cidadania antiga não é a cidadania moderna, e a relação
de uma forma de "realismo", como se ele houvesse tomado a medida dos
constrangimentos humanos e em parte renunciado à idéia de uma coI11 a lei era, por esse motivo, fundamentalmente diferente. A esse res
I refundação radical e absoluta em matéria jurídico-política. peito, Platão permanece com evidência um grego da Antiguidade: quem
I1
. Em segundo lugar, a acusação recorrente de "totalitarismo" por parte dos se espantaria com isso? Ora, a cidadania antiga provinha de uma vida
modernos parece ignorar alguns aspectos essenciais da filosofia do direito
coI11unitária forte. Quando Platão faz dizer às leis, no Críton39: "Nós
platônico. A cidade perfeita da República não é uma realidade encarnada no
mundo do futuro, à qual seria preciso se curvar: ela não é mais que um modelo vos
ideal que é preciso imitar, como as aparências imitam no futuro as Essências colocamos no mundo, nós cuidamos de vós e velamos sobre vossa edu
imutáveis. A obediência às leis de uma tal cidade é certamente colocada como cação, nós vos demos, a vós e a vossos companheiros, uma parte de to
uma norma absoluta. Mas é preciso então destacar um traço essencial: os
dos os bens de que dispúnhamos...", é preciso compreender que esse
próprios govemantes, senão os primeiros, devem se submeter às leis. O texto das
mundo antigo vive em uma relação de "parentesco" com as leis. O cor
Leis será muito claro nesse pont036. Há uma lei perfeita acima das leis, como há
38 Platão,
po político República,
é marcado porLivro
essa V, 457,459,460;
primazia essas passagens
da comunidade expõemda
e, portanto, pnnCi
uma cidade perfeita que é somente imitada na cidade humana. Desde então, "não
palmente
comunidade dasumregras
programa de eugenia,
de vida. no qual
A religião, porcada classe ou
exemplo, raça (genos),
é antes de tudo os
se pode verdadeiramente acusar Platão de totalitarismo: por um lado, porque a
ciência do chefe político é de origem transcendente e porque a cidade como tal magis
civil e comum, excluindo a idéia de uma fé privada. A despeito das opo
não forma pois uma 'totalidade'; por outro lado, porque a cidade é regida por leis siçõestrados, os guardiães e os agricultores, é estritamente delimitada, e no qual
de "classes" ou de "castas" (cidadãos livres, escravos, autóctones,
às quais o próprio chefe está sujeito"37. O filósofo-rei não é um líder até
estrangeiros etc.), essa sociedade era sem dúvida muito menos diferen
carismático! Os govemantes platônicos já realçam o que Max Weber chamará de mesmo as relações sexuais são confinadas dentro de regras muito estritas.
ciada que a nossa. O grau de diferenciação social pode até ser conside
poder legal. Con
. Em terceiro lugar, o domínio tentacular das leis sobre os cidadãos rado como mínimo (é uma interpretação um pouco provocadora, é
tudo, parece anacrônico e pelo menos redutor julgar que "... essa eugenia é uma
verdade, de Michael Walzer4O): as divisões sociais, embora visíveis, não
nos textos platônicos não nos deveria escandalizar. Pode-se certa prefiguração dos métodos nazistas", o que podemos ler em Le pouvoir,
science et philosophie politique, por M.-C. Bartholy e J.-P. Despin, Magnard,
1987, p. 15.
Platão, Críton, 51c.
35Eis aí uma interpretação geral amplamente partilhada; por exemplo: 39

Monique Canto-Sperber, "La philosophie politique de Platon", in Philosophie 40 Michael Walzer, Communauté, citoyenneté et jouissance des droits, artigo
grecque, PUF, 1997, p. 289. publicado na revista Dissent, Nova York, 1993, tradução publicada na revista
36 Platão, Leis, IV, 715c, d. Esprit,
37 Janine Chanteur, Platon, le désir et Ia cité, Sirey, 1980, p. 225 (nota). março-abril de 1997, p. 122-131.
p

universo grego, da soberania. Platão argumenta longamente no Político


75
~i 74 HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO
para defender a idéia segundo a qual a soberania direta e arbitrária da
PERSONAGENS DA TEORIA GREGA DO DIREITO

quele que possui a ciência real está acima das leis. Isso parece estar em
III I!~

eram absolutas, nem mesmo revestidas de uma forma legal sistemática. O contradição com a idéia de um "poder legal", pelo qual os govemantes
corpo político grego é concebido pelas leis: Platão não faz mais que estão submetidos às leis. No fundo, uma exceção parece não somente
acentuar esse traço quando decide remeter as leis a um fundamento admi
absoluto. Não há nada de "fora da lei" possível nesse universo: isso é tida, mas ainda requerida por Platão: a do legislador. Em virtude de uma
grego. Mas pode haver uma justiça absoluta acima das leis, que as ultra- constatação de que a lei não pode ser mais do que um mais ou menos, já
passa definitivamente: isso é platônico. O "totalitarismo" platônico não é que escrita ela não pode dar conta da complexidade do real, isto é, dos
mais que uma versão absolutista do universo político grego. casos individuais, o legislador poderá não só fazer mas também desfazer
A radicalização platônica pode ser parcialmente explicada pelo as leis. Sendo o único a possuir a ciência real, ele não terá necessidade
contexto histórico. Platão foi na verdade marcado, em sua juventude, por do
duas experiências: a tirania dos Trinta, os quais arruinaram as esperanças consentimento de ninguém. Desde então, seria preciso distinguir aqui
que ele tinha inicialmente depositado quando se puseram a cultivar um uma teoria "carismáticà' do poder, ou uma doutrina da soberania que, no
grave desprezo pelas leis; e a condenação à morte de seu mestre Sócrates fundo, comprometeria toda legalidade em benefício de um puro e
pelo regime democrático que sucedeu aos Trinta. A vida de Platão se simples
confunde com a crise da lei em Atenas41. Endireitar a lei em nome da arbitrário, fosse ele real? Certamente não, e é precisamente por isso que
Justiça e fundar essa última sobre uma base sólida, a de uma metafísica a contradição é apenas aparente. Platão destaca com efeito as
das Essências, torna-se muito depressa sua preocupação essencial. As insuficiências da lei, e apresenta a vantagem que seria depositar a
etapas desse conserto irão dos primeiros escritos, onde são colocados os soberania em mãos
temas de uma crítica das leis positivas em nome de um princípio peritas do único legislador real. Mas ele determina também que o reino
superior (a Apologia de Sócrates) e uma reflexão sobre a ne- deste representa, para usar uma expressão de J. de Romilly, "um caso li-
cessidade de obediência incondicional às leis (o Críton), ao diálogo mite, situado nas fronteiras do possível". A probabilidade de uma cidade
vibrante do Górgias, em que é colocada a oposição radical do platonismo perfeita é nula. Desde então, no mundo imperfeito das aparências, não
e das doutrinas sofistas, antes de chegar aos três textos maiores: a Repú- pode haver senão cidades imperfeitas, que tentam aproximar-se do regi
blica, o Político e as Leis. Nosso propósito não será aqui o de considerar me ideal. Ora, nesse mundo imperfeito, que é o nosso, feito de ciência
um a um esses textos, que oferecem o espetáculo intelectual da evolução jurídica imperfeita, de regimes políticos imperfeitos, de imitação por es-
de uma teoria da justiça. O que nos importa é tentar definir siste- sência imperfeita, o filósofo é principalmente o "conselheiro do príncipe",
maticamente a relação que mantém o pensamento de Platão com o direito. com o poder retomando ao homem polític042, e a lei se torna
O direito é, antes de tudo, já vimos, inseparável da justiça. A língua paradoxalmente absolutamente necessária e imperativa. Curioso
grega dispõe, aliás, somente de uma única palavra para significar o restabeleci
direito e o justo: to díkaion. Em segundo lugar, vem uma teoria original, mento: a lei terá um valor absoluto pela única razão de que ela não pode
no jamais ser perfeita!
A lei se torna então uma mediação essencial entre o mundo das
Idéias e o das Aparências: ela é o lugar da imitação. Ora, se imitar
41 Ver: Jacqueline de Romilly, La ioi dans ia pensée grecque, op. cit., p. 180. o 42 Platão, O Político, 259a.
~.

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PERSONAGENS DA TEORIA GREGA DO DIREITO
HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO

mundo das idéias é a palavra de ordem absoluta do pensamento platônico, tO transcendente. "A lei grega", salienta J. de Romilly, "não era,
apreende-se, portanto, que esse movimento de imitação como tal é um como a
imperativo absoluto: a soberania retoma às leis. Mas, para tanto, não lei judaica por exemplo, uma lei revelada"45: ela não buscava garantia
importa a que leis. É necessário ainda que uma lei preencha pelo menos radicalmente externa.
duas exigências fundamentais: ser feita dentro do interesse da cidade, Platão retoma muito, em sua obra magistral, o universo grego, que
dentro do atendimento do Bem (o que parece banal, mas é preciso é o seu. Sabe-se que o texto das Leis toma emprestado amplamente
lembrar-se do Trasímaco do livro I da República, que sustentava que um o direito positivo das cidades gregas, sem que uma cidade em particular
governo somente edita as leis que lhe servem), e se inspirar em um mo- possa ser definitivamente considerada como modelo único (tem -se
delo divino, com os deuses oferecendo ao mesmo tempo a inspiração e a com
garantia das leis; a metafísica platônica é uma metafísica religiosa43. As freqüência proposto Creta ou Atenas como modelos da inspiração
leis religiosas serão as primeiras e comandarão todas as outras no texto platônica, mas a interpretação não parece decisiva sobre esse pont046).
das Leis. Não se poderia passar em silêncio por esse aspecto do Sabese que a religião grega e um certo número de leis ou de termos
pensamento platônico, que é igualmente um traço do enfoque grego do jurídicos são transpostos por Platão na sua doutrina: a grande audiência
direito: o fundamento religioso. Heráclito já declarava: "Todas as leis acorda
humanas se nutrem da única lei divina" (Fragmento 114). Mesmo os da à República fez esquecer às vezes que a última obra platônica, as
grandes legisladores, de Licurgo a Sólon e até ao democrata Clístenes, Leis, constitui uma espécie de "Espírito das Leis" da Antiguidade grega.
eram reputados por consultar os deuses. Platão não faz mais que seguir Não
essa tradição de um fundamento metafísico-religioso do direito, quando se pode, afinal, ver no paradoxo platônico do legislador real, detentor
coloca seu exame do campo jurídico sob a autoridade de uma oração ideal da soberania face à soberania real e absoluta das leis imperfeitas, a
solene e inaugural à divindade no início do texto das Leis44. A esse transposiçã047, nem mesmo o excesso, de uma hesitação propriamente
respeito, há uma relativa continuidade da noção arcaica de justiça (a antiga: toda a Antiguidade, tanto a grega quanto a romana, em verdade,
Thémis) com a noção de dike da época clássica na referência comum à nunca deixou de hesitar entre dois esquemas de pensamento jurídico-
religião. Mas é preciso desconfiar de um contra-senso possível: o "fun- político. Segundo um, os governantes saem claramente das fileiras dos
damento" religioso é a todo momento ultrapassado por um fundamento governados e, sem ser forçosamente de uma "raça" diferente da destes,
"político" (a auto-instituição da sociedade, da qual os gregos são tão têm por definição governar enquanto os governados devem simplesmente
orgulhosos) e racional. Em nenhum caso a referência religiosa pode ser obedecer. Segundo o outro, o governante não é mais que um cidadão
45 La lai dans la pensée grecque, ap. cit., p. 1.

tomada como único fundamento, e ainda menos como um fundamen mais ativo que os outros, oriundo de um corpo cívico composto
46 Essa relação das instituições gregas antigas e do pensamento jurídico de

Platão, no texto das Leis, foi examinada de maneira detalhada por Marcel Piérart, "Platon et Ia Cité
grecque", Théarie et réalité dans la Canstitutian des 'Tais", Bruxelas, Éd. de
l'Académie Royale de Belgique, 1973. Piérart sustenta por seu lado que o modelo
43 A filosofia de Platão "recupera" e transfigura a religião grega. Ver sobre empírico essencial na constituição do pensamento platônico permanece sendo Atenas (p.
esse assunto: Daniel Babut,La religion des philosophes grecs, PUF, 1974, p. 75-104. 198, por exemplo).
44 Isso foi analisado por Jacqueline de Romilly em Religion et droits dans la 47 Platão repensa, por exemplo, as atribuições tradicionais dos "arcontes",
Grece ancienne, in Archives de philosophie du droit, Sirey, t. XVIII, p. 5-16. acresce seu número e aumenta o seu poder.
P""

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HISTORIA DA FILOSOFIA DO DIREITO PERSONAGENS DA TEORIA GREGA DO DIREITO

de ativistas: ele nada mais é que um responsável reconhecido por


4. ARISTÓTELES
seus
pares. A despeito da oposição desses esquemas, permanece uma constante A mudança de paradigma filosófico operada por Aristóteles não é
própria à Antiguidade: a cidade antiga "considera que, de certa maneira, nem um pouco mais fácil de definir brevemente que o complexo pensa-
seus cidadãos o escolheram (é o que dizem a Sócrates as Leis mento platônico. Muitas vezes se propôs uma simplificação enganosa:
de Atenas no Críton) e ela espera deles um zelo de soldados de profis um Platão amigo das Essências metafísicas, o dedo apontado em direção
são"48. O Antigo Regime não exigirá de seus súditos senão a fidelidade e ao céu inteligível, e um Aristóteles "realista", às vezes até mesmo
o imposto; a sociedade moderna não requererá mais que um civismo prosaico. O próprio Aristóteles não nos ajuda muito a pensar em uma
mínimo destinado a assegurar uma ordem pública decente. A Antiguidade distinção matizada. Discípulo dissidente de Platão, desenvolve sua
grega exige o amor às leis! O "absolutismo platônico", que precisa crítica com base em uma exposição um pouco caricatural do pensamento
ser muito relativizado, toma sentido nesse universo: entre a hipótese de de seu mestre. O que Aristóteles pinta é um platonismo ingênuo e
uma "raça" de governantes (o legislador real ideal) e o amor às leis, per
dogmático: é mais ou menos a filosofia dos "arrieres-mondes" de que
manecerá antes de tudo, nas Leis, o pressuposto e exigido amor às leis. O
zombará Nietzscheso. O mínimo que se pode dizer é que uma oposição
legislador real da República se metamorfoseia em Conselho Noturn049,
diametral de um "idealis
composto de filósofos. A constituição se torna um misto de democracia e
mo metafísico" e de um "realismo" deva ser singularmente matizada: o
monarquia, e a estrita divisão de classes desaparece. Além da evolução
Platão das Leis sabe conferir um olhar atento ao direito "positivo" e ao
platônica em direção a um acomodamento de sua teoria ao real, parece
cuidado de dar conta das instituições humanas, mesmo que seja para
que se pode ver nisso um condensado da visão jurídico
iluminá-Ias em última instância por uma metafísica das Essências; quanto
política grega: é a própria cidade que é real, soberana, absoluta, orgu-
a Aristóteles, seu sistema filosófico admite tão bem um exame célebre
lhosa da superioridade sobre o resto bárbaro do mundo. Com a
e realista das instituições humanas como uma doutrina que será chamada,
condição, todavia, de que ela tenha uma alma. A teoria do direito pla-
dois séculos depois de seu desaparecimento, (por Andrônicos de Rodes)
tônico não é nada mais que essa soberania exigida da alma (individual,
"a metafísica aristotélica" e que fornecerá um protótipo para a teologia
política) sobre o corpo (individual, político): os direitos da alma, e não
medievaIsl. A crítica da metafísica platônica por Aristóteles não deve fa-
os direitos do homem, porque o que conta nessa metafísica radical não
zer supor que se abandona o campo da ontologia: esta é simplesmente
poderia ser outra coisa senão a alma, que não quer fugir do corpo que não
profundamente transformada.
detesta, como quer uma caricatura do platonismo, e sim tenta pro-
Com relação ao direito, essa transformação ocorre quanto à idéia de
fundamente salvá-Io.
natureza. Platão, para responder à oposição sofista da natureza e da

48 Paul Veyne, Critique d'une systématisation, les Lois de Platon, op. cit., p. 50 É o que salientava Paul Ricoeur, em Être et substance chez Platon et Aristote,

886, assim como a análise que precede os dois esquemas políticos. Sedes, 1982, p. 171.
49 O Conselho Noturno das Leis é como a alma desse corpo que é a cidade, 51 Há certamente um Deus no pensamento de Aristóteles, mas muito dis tante

por analogia com a alma que deve dirigir o indivíduo humano. Ele leva o corpo do futuro Deus cristão, e daí a estranheza de seu "batismo" a posteriori pela teologia
político para o Bem e a virtude. cristã.
p""°

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PERSONAGENS DA TEORIA GREGA DO DIREITO
HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO

lei, a essa dupla aporética physis-nomos, havia proposto uma sobrenatureza: um colocar o eidos, que se traduz por Idéia na filosofia platônica, externa-
mundo de Essências, uma ordem inteligível, da qual o mundo aparente e sensível mente ao sensível e em devolver por conseguinte a natureza a uma
não era mais que uma pálida imitação. Desde então, uma vez que a lei era o sobrenatureza, Aristóteles vai tratar de mostrar que esse eidos, que se
lugar privilegiado dessa "imitação", como já vimos, opor-se à lei traduzirá agora por "forma" na filosofia aristotélica, não é uma realida
positiva redundava em se opor à lei inteligível. Essa reconciliação do de separada, mas um princípio de organização imanente. A natureza é
"direito positivo" com a natureza tornada inteligível, a sobrenatureza, matéria e forma, persegue um fim (telas) sem estar certa de atingi-Io, e
supõe certamente algumas acrobacias: a de considerar, em primeiro lugar, tem o valor de uma norma. Constata-se a permanência do tema
que essa sobrenatureza exista realmente, embora de modo arbitrário (é socrático: a pluralidade sensível remete sempre a um eidos, mesmo que
preciso aceitar em bloco a metafísica das Essências, o que não é fácil: este seja doravante globalmente imanente, e não transcendente. Desde
compreende-se a longa resistência dos interlocutores de Sócrates nos então, compreende-se que o primeiro enfoque aristotélico do direito,
diálogos platônicos!); e também considerar que a contingência aparente por exemplo, no texto da Retórica, seja quase idêntico ao de Platão: as
das leis positivas (elas podem ser inadequadas, más, e o são leis positivas devem remeter a uma lei mais fundamental, uma "lei Ila
sempre no fundo, uma vez que está escrito que não são mais que tural", comum e eterna, definindo um "justo por natureza", Mas Aristóteles
pálidas imitações das leis perfeitas, mas inteligíveis) não compromete seu logo terá de tomar consciência da fraqueza intrínseca dessa posição
caráter absoluto (elas participam da Idéia de lei, movimento de imitação filosófica: ela pode de uma só vez enfraquecer o direito positivo e tornar
do inteligível no sensível que tem um valor absoluto). É esse pesado inoperante um direito natural por ser muito abstrato e universal. A
aparelho especulativo, hipotecado por uma ontologia das Essências (ou doutrina de Aristóteles assume então todo sentido e toda
Idéias) nada menos que evidente, que Aristóteles vai rejeitar. No livro A originalidade quando propõe articular estreitamente o direito positivo e o
da Metafísica, ele mostrará as dificuldades quase intransponíveis direito natural, em vez de dividi-Ios.
Essa articulação será realizada sob a égide de um raciocínio original
em que esbarra, segundo ele, essa ontologia das Essências52, e que o pró
e refinado, que se pode tentar reconstruir a partir do capítulo X do
prio Pia tão tinha, aliás, designadas em um escrito que tem uma espécie
livro V da Ética à Nicômaco54. Tudo se fundamenta sobre uma
de valor "autocrítico"53: a primeira parte do Parmênides. Aristóteles vai
distinção primeira do justo no sentido absoluto e do justo no sentido
reelaborar à sua maneira a noção de physis. Se Platão está errado
político. O justo no sentido absoluto tem um sentido moral, e é colocado
em
sobre um modelo de proporção geométrica: trata-se de definir uma
igualdade de relação. O justo é, pois, o igual. Esse é o justo natural. A
52 Nós nos inspiramos aqui na análise desenvolvida por Alain Renaut e
redefinição do justo natural faz esperar uma repartição simétrica simples: o
Lukas Sosoe, em Philosophie du droit, PUF, 1991, p. 237. Entenda -se bem, a
direito natural, fundado sobre o justo natural e absoluto, deveria ser oposto a
crítica aristotélica do platonismo deve ser encarada com nuança: é verossímil que exista
uma "oscilação" no pensamento de Aristóteles, que dá, vez ou outra, um sentido
"concreto" e "abstrato" à idéia da ousia ("substância" ou "essência': conforme se privilegia
na tradução o primeiro ou o segundo sentido). Tal é ao menos a interpretação de Pierre
Aubenque (Le probleme de l'être chez Aristote, PUF, 1962), em seguida àquela de B. 54 Nós seguimos inteiramente a análise proposta por Alain Renaut e Lukas
Dumoulin, contra leituras ilustres mas mais antigas como a de Werner Jaeger. Sosoe,op. cit.; as observações complementares provenientes de outros estudos serão
53 Qualificação proposta por Pierre Aubenque. indicadas em notas.
..
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HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO PERSONAGENS DA TEORIA GREGA DO DIREITO

um direito positivo, fundado sobre o justo político. Mas essa do humano. Há aí uma inversão de perspectiva que uma fórmula da
distinção iria apenas reconduzir à oposição tradicional do direito natural análise de Alain Renaut e Lukas Sosoe sintetiza claramente: "Bem longe
e do direito positivo. A vontade aristotélica de ultrapassar essa cisão vai de a variabilidade das leis ser um indício de sua artificialidade, é o pró-
então manifestar-se na definição do justo no sentido político. prio projeto de impor leis universais que deve parecer uma violência
O justo político será, na verdade, em parte natural e em parte legal, ànatureza, como contra natureza"56. Com base nisso, a definição do direito
quer dizer, positivo. Estranha proposição: ela afirma que a distinção entre positivo como particularização do direito natural é ainda insuficiente. É
direito natural e direito positivo não se passa ao exterior da legislação, mais exato dizer como Aristóteles que direito natural e direito positivo são
mas no interior do justo político, ou seja, do domínio da legislação. Para ambos variáveis, mas de maneiras diferentes. "E este é em definitivo o novo e
esclarecer essa definição da articulação positivo/natural, Aristóteles nos verdadeiro critério da distinção: as variações do direito natural são
convida a pensar o natural como o que tem em todo lugar o mesmo poder, necessárias tanto no conteúdo quanto na forma, en quanto que as do direito
e o positivo, o "legal'~ como o que é colocado por convenção aqui e ali, e positivo não o são senão nas formas; seu conteúdo permanece contingente e
vem, pois, particularizar a justiça natural. Essa definição abstrata é não se deixa deduzir de nenhum princípio. Em suma, é necessário que haja o
utilmente esclarecida por um exemplo simples, aquele proposto por Pierre direito positivo (convenções, costumes, tradições etc.), mas não essa ou aquela
Aubenque em seu comentári055: é conforme ao justo natural pagar disposição escrita no direito positivo de uma dada comunidade em uma dada
impostos, mas tem importância ao justo legal pagar essa ou aquela época."57 A variabilidade do direito positivo é colocada por Aristóteles em
quantia, fixada por uma convenção variável de direito positivo. As analogia com a das unidades de medida, ou ainda com aquela da facilidade de
conseqüências imediatas dessa redefinição da articulação do natural e do tradução de um texto. Mas essa analogia deve ser esclarecida. No caso do direito,
positivo são claras: há entre eles apenas uma diferença de grau de comenta Pierre Aubenque, "não há texto jurídico que seja o arquétipo de suas
generalidade, e não uma oposição radical, e o domínio da legalidade (o traduções, não há nada em comum entre os direitos positivos além de sua
positivo, portanto) é a realização do justo natural. O raciocínio aristotélico facilidade de tradução: não sua comunidade abstrata, mas sua
remete a uma interpretação nova da idéia de natureza: se a comunicabilidade. A conversibilidade entre direitos positivos é o direito
natureza física é a mesma em todos os lugares ("O fogo queima tão bem natural"58.
aqui quanto entre os Persas"), a natureza humana é variável e sujeita a Essa concepção aristotélica do direito natural é pelo menos enge-
uma indeterminação essencial. A esse respeito, a "conformidade com a nhosa. Ela supõe uma superação da concepção tradicional que opõe um
natureza" não se pode pensar em termos de universalidade, mas antes direito universal, comum a todos os homens e na maioria das vezes as-
de variabilidade. Em suma, o direito natural não deve ser compreendido sociado pelos gregos à esfera do não-escrito, e um direito particular. Esse
como uma "universalidade separada': sobre o modo platônico de uma par conceitual está presente na Retórica, único local onde ele reconhece
supernatureza, mas antes como aquilo que acompanha a variabilidade

55 Pierre Aubenque, "La loi selon Aristote", artigo publicado nos Archives de 56 Op. cit., p. 241. 57

philosophie du droit, 1980, voI. 25, p. 147. Essa análise é retomada por A. Op. cit., p. 242.
Renaut e L. Sosoe. 58 Op. cit., citado por Renaut e Sosoe, op. cit., p. 243 (grifo nosso).
,...

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84 HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO
senão o que permite pensar o direito
PERSONAGENS positivo
DA TEORIA como direito (a "conver
GREGA DO DIREITO
I
I sibilidade" dos direitos positivos, segundo a expressão de Aubenque).
a possibilidade de um conflito entre direito natural e direito positivo A primeira maneira de interpretar essa "imanência" do direito
I
em referência à Antígona de Sófocles, e que também ocorre um conflito
natural aristotélico é a mais simples, mas também a mais fraca, para não
entre lei não-escrita e lei escrita. Mas tal oposição é verossímil preci-
I
samente ao que Aristóteles pretende repensar em termos de complementar dizer a mais falsa. Ela consistiria em dar à imanência o sentido de um
idade essenciap9. Se há por certo uma distinção fundamental, ela conduz relativismo fundamental: se existe um justo natural, seria estritamente
II ao não-instituído e ao instituído: o direito natural (to physikón díkaion) é imanente às comunidades históricas. A segunda maneira consiste em
por definição não-instituído, ao contrário do direito positivo (to nomikón realçar que essa imanência é pensada por Aristóteles no quadro da pes
I díkaion). Se aceitamos a análise aristotélica de um direito natural
quisa de um optimum político, quer dizer, de uma forma de universali
concebido como lugar de conversibilidade dos direitos positivos, parece
I
que esse direito deva ser pensado como o "horizonte" dos direitos dade natural. Nesse sentido, a imanência do justo natural não é pensável
positivos, ou ainda, para parafrasear Husserl, que os direitos positivos senão quando se recorda que o eidos platônico é conservado por
devem ser pensados "sobre o horizonte" do direito natural. Pode-se ainda Aris
conceber o direito natural aristotélico como uma "idéia reguladora"6°, no
tóteles: não é somente a "forma" de uma comunidade histórica parti
sentido kantiano, que permite dar sentido aos direitos positivos. Sem
cular de direito positivo, mas a forma do próprio direito. É por essa
dúvida é preciso insistir sobre a dupla refutação que é realizada por
Aristóteles, e que torna sua posição tão complexa ou, para certas pessoas, razão
obscura. que a sugestão de uma analogia com a idéia reguladora kantiana pode
Aristóteles, com efeito, associa face a face as duas atitudes tradicio- ser aceitável: o direito natural aristotélico é ao mesmo tempo o que tor
nais (em seu tempo como no nosso!): a de puro convencionalismo ou na possível e o que visa ao direito positiv061.
puro positivismo jurídico, que nega toda justiça natural, todo direito não- Certamente, é preciso realçar que a busca de um optimum político
instituído; e a do naturalismo, que toma uma "origem" incompreensível destaca ao mesmo tempo o político, e não o direito, e a pretensão de
do instituído no não-instituído, ou ainda uma crítica das leis positivas em um ideal. Nesse sentido, há uma conformidade aparente com o
nome de um princípio separado. Com Aristóteles, é afligida de inanição modelo
tanto a redução do justo ao legal como a tentativa de introduzir uma platônico. Mas o legislador real possuía uma ciência suprema,
legalidade natural. Permanece, pois, essa estranheza filosófica: um justo
acima das
natural mas mutável, e não imutável, e que não é outra coisa
leis, que lhe permitia suprir a generalidade abstrata da lei. Em
Aristóte
les, essa ciência, que como tal não poderia se apresentar senão sobre o
61 Pode-se pensar sobre o aristotelismo de Eric Weil, que aceita a idéia de
59 Ver O que propusemos como uma "completude" essencial do direito na geral,uma
sofreria da mesma enfermidade da lei. O político quehistórica,
deve suprir
lei natural, mas a confina na imanência de uma comunidade recu
tural e do direito positivo na tradição grega.
a generalidade das leis
sando o optimum nãopor
visado possuirá uma
Aristóteles. Ver"ciência"
sobre esse superior, masPetit,
assunto: Alain trêsEric
60 Interpretação brevemente proposta por Otfried Hõffe, no artigo "Aristote" da
Histoire de la philosophie politique, sob a direção de Alain Renaut, CalmannLévy, 1999, qualidades: o apego
Weil et Ia doctrineà aristotélicienne
constituição existente,
de la justiceanaturelle,
capacidade (dinamis)
Archives de
de Philosophie,
vaI. 1, p. 173. 52, 1989,p.279-284.
exercer as funções políticas e a virtude, posto que a capacidade política
homem justo, no sentido das disposições interiores que permitissem a

P' este efetuar atos justos. Mas se ele não se pode encarregar da "morali

da de subjetivà', ele é responsável pela justa repartição no seio de uma


87
PERSONAGENS DA TEORIA GREGA DO DIREITO
86 HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO comunidade política que visa a um Bem de natureza ético-política. Essa

relação particular entre a esfera ético-política e a esfera da legalidade


não se confunde com a virtude. Somente a deliberação permitirá com-
pensar as lacunas da lei62: a deliberação sobre os casos particulares pro- (sobre as quais sugerimos que sejam claramente distintas, mas não ra-
longa a lei e a aperfeiçoa. Quanto à quimera de um Estado ideal,
dicalmente separadas) é ligada à idéia de que o "bem individual" é sub
Aristóteles lhe dedica algumas palavras desabusadas no livro VII de sua
Política: "É vão falar em detalhe dessas coisas. Pois não é difícil pensar metido ao "bem coletivo" e pode ser descrito como uma regulação ética
nelas, mas é mais difícil fazê-Ias. A palavra é objeto de desejo, mas o
permanente. O legislador institui uma máquina política, seja por cria
acontecimento é objeto do acaso".
Essa prudência política acarreta uma distinção clara em Aristóteles ção, seja por retificação de um sistema já existente, e essa máquina será
da esfera da legalidade. O direito se distingue da ética. Separa-se dela
totalmente? A questão é mais delicada de decidir. Não, se considerarmos auto-regulada por um "feedback ético": "não somente a felicidade e a
que a dikaiosyne, a justiça enquanto virtude ética, é requisito para o virtude dos cidadãos serão a prova de que o sistema político é excelen
homem político, que deve exercer funções públicas e suprir pela sua ação
te, mas são os efeitos éticos do funcionamento da máquina política que
as insuficiências intrínsecas da lei. Não ainda, se admitirmos como
Werner Jaeger63 que Aristóteles conserva uma subordinação mais alta do deverão dar informações ao legislador para modelar e modificar esse
direito e da ética ao político, que caracterizava a política de Platão. Visto
funcionamento"65.
que viver conforme as leis é na Grécia antiga a lei suprema, o Estado
antigo permanece para seus cidadãos uma espécie de quinta-essência de Contudo, é preciso destacar que a não-separação do ético-político e
toda norma "moral", observava então Jaeger. Ora, é da natureza do direito do jurídico somente tem sentido no seio de uma distinção clara, que
ser político64: to díkaion politikón. Sendo o direito fundamentalmente

uma ciência da divisão eqüitativa, supõe uma instituição exercendo essa
divisão e uma comunidade política na qual isso tem lugar. Certamente, o precisão à sua articulação. O justo legal somente define um quadro
jurista não é um moralista: ele não saberia tornar o
da ação:
uma obrigação in foro externo, e não in foro interno, evitando,
62 Segundo P. Aubenque, "Théorie et pratique politiques chez Aristote", in como mais
Entretiens de Ia Fondation Hardt pour l'étude de l'Antiquité classique, t. XI,
Genebra, 1965, p. 111.
tarde em Kant, associar uma ação legal (realizada por obrigação exterior)
65 Pierre Pellegrin, Introdução à sua trad. das politiques de Aristóteles,
63 Werner Jaeger, Aristote, Fondements pour une histoire de son évolution a
(1923), trad. alivier Sedeyn, Éd.I'Éclat, 1997, p. 414. Garnier-Flammarion, 1993, p. 29; ver também Aristóteles, Éthique à
64 a que ressaltava igualmente Michel Villey, "Une découverte d' uma ação propriamente moral (que seria realizada "por virtude", de prefe
Nicomaque,
Aristote", in Le droit et les droits de l'homme, PUF, 1983, p. 46. Sobre a justiça rência X,
a 10,
"por1180b23.
dever" no sentido kantiano). As leis, ressalta Aristóteles,
política aristotélica, ver principalmente os dois pequenos ensaios de Francis
Wolff,Aristote et Ia politique, PUF, 1991, e de Richard Bodéüs, Aristote, La não 66 É isso que sustenta a. Hõffe, op. cit., p. 167-172, mas insistindo muito, a
justice et Ia cité, PUF, 1996. nosso ver, em uma "separação" do direito e da ética em Aristóteles.
produz mais que uma regra "aritmética"), a esfera jurídica remete à es

P' fera ética, sem se confundir com ela. Há uma "interseção", como escrito
~
por Ricoeur67, entre o aspecto privado e o aspecto público da justiça
89
88 HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO
distributiva, comoPERSONAGENS
há uma "interseção" entre a mesotés, a justa medida
DA TEORIA GREGA DO DIREITO

11!lil
ética, e a eqüidade, a justa medida legal. Medianidade ética e igualdade
I A regulação social realizada pelo Estado por meio das leis tem então
I1I11
proporcional política, perceptível no trabalho de eqüidade do direito,
um estatuto difícil de apreender: sem ser uma "moralização': ela
permanece ligada à ética na subordinação de todas as esferas ao político, permitem "salvar" filosoficamente e eticamente a igualdade, escreve ain
visto que o Estado não é uma simples aliança contingente, mas uma união da Ricoeur, que conclui: "A igualdade (proporcional) é a vida das insti
orgânica necessária que tem por fim a virtude e a felicidade de todos.
tUições, o que a solicitude é para as relações interpessoais". Esse é,
Essa regulação se efetua mediante a realização de uma justiça
distributiva, que se dedica a distribuir de maneira eqüitativa as honras e como
os bens (cada um devendo receber não uma parte igual, mas igual ao seu sustentaremos aqui, o direito aristotélico, em sua esfera distinta, mas
mérito), e uma justiça corretiva, igualitária ou ainda sinalagmática, quer não separado da ética, sob a égide de uma concepção particular da jus
dizer, reguladora das relações de troca. Essa justiça corretiva pode ser
considerada sob dois aspectos distintos: na medida em que determina tiça política.
relações de troca segundo uma certa medida, ela é dita comutativa; na Uma separação radical do direito e da ética faria de Aristóteles um
medida em que faz prevalecer essa medida nos casos litigiosos pela filósofo moderno sobre um modelo, por exemplo, kelseniano. Ora, é
intervenção de um juiz, ela é dita judiciária. A palavra-chave da doutrina
claro que Aristóteles é o contrário do positivismo jurídico, e que ele é
aristotélica permanece sendo eqüidade. No fundo, o direito não estána lei:
bem um filósofo... antigo! É para sua doutrina do direito natural que
ele é depositário de um ato de estabelecimento ou de restabelecimento da
eqüidade, ou seja, na repartição igual, mas não igualitária. Considerando a devemos retornar afinal, para tentar apreender a especificidade de sua
formalidade abstrata das leis à maneira de Platão, Aristóteles enuncia "filosofia do direito", o que não prejulga em nada os aspectos que se
como lugar do direito a aplicação de regras segundo o critério de poderá qualificar como "modernos" em sua doutrina.
eqüidade. A regra do próprio direito é a regra lesbiana, em referência ao O direito natural aristotélico não tem nada do direito natural
instrumento de medida flexível dos arquitetos de Lesbos, que moderno.
acompanhavam a forma da pedra a se medir. Aplicar regras por definição E isso por duas razões evidentes: por um lado, ele não remete à
formais e abstratas a casos por definição particulares e concretos é o
idéia moder
direito. A eqüidade, "ajustamento da legalidade" segundo a expressão
aristotélica, não é somente o critério do direito, mas seu lugar, senão sua na de um direito "subjetivo", vinculado a cada indivíduo pelo
definição. Sendo a igualdade aritmética abstrata, somente a eqüidade tem simples fato de
sentido: o direito se articula aqui com o político, visto que justifica em si que ele existe- os "direitos do homem" modernos são, já o vimos,
mesmo uma concepção eqüitativa, e não igualitária ou igualitarista da impensáveis na Antiguidade e em Aristóteles; por outro lado, ele não
sociedade, da qual Rawls saberá se lembrar em sua Théorie de Ia Justice.
remete a um direito
E visto que a eqüidade também é uma "justa proporção" (na justiça
distributiva, trata-se de tender em direção a uma igualdade proporcional, imutável, intemporal
67 Paul e abstrato,
Ricoeur, Soi-même commeemunsuma,
autre, aLeuma transcendência,
Seuil, 1990; p. 2320 a um
uma espécie de medianidade) contra todo formalismo igualitário (da qual prin 68 Retomamos aqui as três observações sobre Aristóteles propostas por A.
a lei é o exemplo mais notável: ela não ópio "separado"
Renaut do real.
e L. Sosoe, op.cito, Por isso, o direito natural aristotélico é bem
p. 243-2480
F

91
90 PERSONAGENS DA TEORIA GREGA DO DIREITO
HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO

se certamente ver aí em primeiro lugar um impasse do pensamento e da regra epicurista do direito no texto das Sátiras de Horácio: "O direito
prática política antiga: em parte inapta para produzir a idéia de uma é, segundo sua natureza, a regra do interesse que existe de não se
essência abstrata e universal do homem, ela não pode pensar nos pre
direitos do homem e atesta, por exemplo, a escravidão (apenas em parte, visto judicar mutuamente"69. O termo interesse merece ser analisado cui
que existiu de qualquer forma uma corrente de pensamento anti-escravagista,
dadosamente, uma vez que se queira evitar assimilar a posição de
representada por certos sofistas como Hípias de Eléia ou Antifonte, que se
anteciparam ao Ulliversalismo moderno). Eis aí um agravo recorrente contra
Epicuro a um utilitarismo rudimentar. O interesse que define o direi
Aristóteles: ele teria sido incapaz de sair do quadro político de seu tempo para to não é aqui o de uma única pessoa, e ainda menos o do "mais
pôr em causa a escravidão. É certo que, para fazê-Io, seria necessário dispor de forte"
uma norma transcendente, sem a qual a crítica parece impossível: uma norma no sentido de Trasímaco. Também não é o interesse de um grupo, por
imanente nunca pode ter uma função crítica? Para Aristóteles, como mais tarde exemplo, de sábios, nem mesmo de uma Cidade total, transcendente
para Hegel, há no fundo uma racionalidade imanente com o real. Essa com relação aos cidadãos, sobre um modelo platônico. Trata-se na
não-separação do ideal, da norma visada, censura o naturalismo antigo e realidade do interesse de todos e de cada um, ou seja, da própria for
o ma que deve tomar o interesse: a reciprocidade7°. Há então sem dúvi
historicismo moderno. da duas maneiras de compreender Epicuro. Uma, que se qualificarácomo
Mas pode-se igualmente considerar que a "modernidade" de interpretação fraca, consiste em não ver nessa definição do direito senão
Aristóteles consiste precisamente em não pensar um direito natural o resultado de uma pesquisa genealógica: é verdade que essa
abstrato e separado: mesmo conservando uma distinção clara entre demonstração existe na tradição epicurista, principalmente em Lucrécio,
direito natural e direito positivo, Aristóteles consegue evitar produzir fazendo remontar o direito à decisão tomada pelo gênero
uma definição formal do direito natural, a mesma que conduzirá às humano de pôr fim às inimizades e à violência. Tal interpretação iria no
grandezas e aos impasses do jusnaturalismo moderno. sentido de uma espécie de concepção antiga do "estado da natureza", cara
aos filósofos da época moderna. A outra, que se qualificarácomo
5. EPICURO interpretação forte, consiste em dar um sentido quase "prékantiano" ao
raciocínio epicurista, a despeito das evidentes diferenças entre as
doutrinas filosóficas de Epicuro e de Kant. O próprio Kant não declarou
A doutrina epicurista do direito nos conduz ao inverso dos grandes
que considerava Epicuro "um espírito mais verdadeiramente filosófico
modelos platônicos e aristotélicos: se o eidos admite urna variação
que qualquer dos filósofos da Antiguidade"7l, medi
fundamental entre Platão e Aristotéles, da Idéia transcendente àForma
tando, é verdade, sobre a filosofia do conhecimento epicurista, na qual
imanente, ele permanece o ponto de ancoragem conceitual fundamental
ele indicava uma antecipação de sua própria reflexão sobre os limites
nos dois casos. Ora, com Epicuro, o que é recusado é precisamente o
Horácio, Satire, 1,117-118.
69
eidos: a justiça (dikaiosyne) não é nada "em si", afirma a Máxima
Segundo Victor Goldschmidt, Le fondement du droit positif selon
70
Capital XXXIII. O justo (díkaion) não sendo mais um eidos, não é Épicure,
senão um modo de relação ou, se preferirmos, urna regra de relação entre Archives de philosophie du droit, t. XXI, Sirey, 1976, p. 202-3.
os homens. Pode-se buscar a expressão mais simples da 71 Pierre Aubenque, "Kant et l' épicurisme", citado por G. Rodis-Lewis, Épicure

et Son école, Gallimard, 1975, p. 382.

~
r
93
92 PERSONAGENS DA TEORIA GREGA DO DIREITO
HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO

II pelo mundo grego de referências e fronteiras, com a imagem das lon


da razão, e não precisamente da doutrina do direito. Certamente,
III
I pode parecer pelo menos surpreendente fazer de Epicuro, cujo materialis- gas muralhas doravante em ruínas que ligavam Atenas ao Pireu. Bem
mo inspirou Marx em sua tese de doutorado e que põe o interesse no
na meio dessa reviravolta72, que é por excelência uma descoberta da
II
centro da filosofia prática, um longínquo ancestral de Kant. Mas Epicuro
tenta fundamentalmente, como Aristóteles, ultrapassar a antinomia variedade infinita dos valores e dos direitos positivos, a reação
natureza-convenção e uma posição simplesmente relativista. É nessa epicurista é notável: longe de lançar as luvas e de levantar uma pura
perspectiva conceitual que ele é levado a desenvolver uma reflexão sobre
e simples constatação do fracasso da reflexão sobre o eidos, mergu
o que "torna possível" o direito, o que é inteiramente kantiano.
lhando em um relativismo que seria muito justificado, ela parece
A reciprocidade ideal, que é a forma "pura" do interesse para
Epicuro, é enunciada, por exemplo, na Máxima Capital XXXI: "O justo operar um salvamento da reflexão sobre o fundamento do direito se
da natureza é uma garantia da utilidade que há em não se causar desarraigando da metafísica. Ora, o materialismo atomístico da físi
mutuamente dano ou sofrê-Io". Essa concepção do justo associa ombro a
ca epicurista implica uma aproximação original da sociedade e do
ombro o convencionalismo (existe uma forma universal do justo) e o
naturalismo (essa forma universal é uma forma lógica, e não um arquétipo direito: os homens não são destinados por natureza a viver em sociedade,
cósmico). O que é justo é a dikaiosyne, termo que toma um valor muito são ao contrário naturalmente dispersos como os átomos do
abstrato com Epicuro: afastando toda concepção transcendente e toda universo físico. Por essa razão precisa, um direito natural não é
redução empírica (historicista, por exemplo, a despeito de uma pensável: o que é natural é a dispersão, não a relação. Os vínculos,
apresentação histórica do direito que estáigualmente presente no corpus
como o direito, serão sempre convencionais (incluindo o laço erra
epicurista), Epicuro parece ir em direção a uma fundação quase
damente suposto natural entre pais e filhos). Mas visto que o único
transcendental que dá conta da universalidade do direito: "O justo é o
fim visado pela natureza é o prazer, a justiça consistirá em realizar as
mesmo para todos, porque é algo de útil na comunidade mútua dos
homens", tal é a condição de possibilidade universal e imutável do direito condições de obtenção do prazer. Entre essas, a segurança será essen
(o qual se evitará, pois, designar como um direito natural). "Mas cial: o direito deverá antes de tudo ser garantia contra a violência e o
considerando a particularidade do país e todas as outras causas que se perigo. Torna-se uma condição sine qua non da ética: para se
queira, não se segue que a mesma coisa seja justa para todos" (Máxima aperfei
Capital XXXVI), tal é o direito positivo, que é o que se torna possível e çoar, para se realizar, é preciso estar previamente em segurança. Daí
que é por definição mutável, visto que é preciso reajustá-Io essa conclusão tão antimoderna do enfoque epicurista do direito que se
permanentemente, observa Epicuro, com as evoluções socioeconômicas e encontra em Estobeu: "As leis são estabelecidas para os sábios não
políticas. Sabe-se que a época de Epicuro, o século lU, foi teatro de uma
a fim de que não cometam injustiça, mas a fim de que não a sofram"73.
extraordinária redefinição de valores da qual a filosofia helenística inteira 72 Abundantemente apresentado e comentado: por exemplo, Jean Salem,
é testemunha: declínio da cidade grega, promiscuidade de culturas, perda TeI un dieu parmi les hommes, L'éthique d'Épicure, Vrin, 1994, p. 133.
73 Citado por André- Jean Voelke, Les rapports avec autrui dans Ia philosophie
grecque d'Aristote à Panétius, Vrin, 1961, p. 83.

...
...... ..
!IIII~I po vivente e divino? Essa lei natural, que é a razão do mundo, não
95
94 PERSONAGENS
d
DA TEORIA GREGA DO DIREITO

HISTÚRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO


sabe
6. OS ESTÓiCOS ria ser outra em Atenas ou em Roma, outra hoje e outra amanhã, co
II
mentará Cícero em sua República (lU, 22, 33): é uma lei por essência
o universo epicurista feito de vazio e de átomos esparsos era imenso,
II desolado, quase aterrador: a ética epicurista nos incitava a não temê imutável. A oikeiósis é uma "auto-apropriação"74: o próprio homem se
III 10 e até a amá-lo, como a doutrina do direito tinha por condição primeira distingue em sua essência como ser racional, descobre em si mesmo uma
nos desvencilhar da insegurança. O universo estóico é, como se sabe,
lei e urna razão natural. Mas amar a si mesmo, descobrir-se intuitiva
diametralmente oposto: ele é pleno, harmonioso, inteiramente ocupado
por uma simpatia universal que reúne todos seus elementos entre si. A mente humano, supõe que o outro seja também amado e reconhecido.
doutrina estóica do direito partirá então de uma tese absolutamente oposta Todo homem é aceito como um igual por todo homem, visto que o
daquela que acarretava a dinâmica convencional epicurista: há uma lei
contrário da oikeiósis, a allotriósis, será uma repugnância fundamental
natural, aquela da relação universal que existe objetivamente entre os
seres. Também a relação social é fundada sobre uma dádiva natural, a por tudo o que não seja nós mesmos ou por tudo o que nos seja estra
oikeiósis, que é o conhecimento primeiro e quase intuitivo de pertencer à nho e hostil. A intuição estóica consiste nessa apreensão imediata de
comunidade universal dos seres racionais. Pedra angular do sistema outrem sob a espécie de identidade de natureza: ele é "como eu", e não
estóico, a doutrina da oikeiósis remonta aos fundadores dessa escola
de um outro gênero, de uma outra forma ontológica (allotriósis) que eu.
filosófica: Crisipo e Zênon de Cítion. Ela sustenta que o ser humano é
Não é difícil presumir com base nessas linhas o que será em suas
provido desde o nascimento de uma consciência de si, de uma percepção
contínua de si mesmo (synaisthésis), que acompanha todas as suas aplicações o ideal de universalidade e de igualdade dos estóicos:
percepções do mundo exterior a si mesmo. Os estóicos latinos falarão de abo
um tactus interior: um "toque interior", uma compreensão intuitiva de lindo as barreiras que separam os indivíduos e as comunidades hu
nós mesmos, como seres humanos dotados de razão, que é também um
manas, eles serão levados a questionar duas instituições gregas, a
amor a si mesmo. Sêneca terá, como muitas vezes, uma fórmula concisa e
oposição entre heleno e bárbaro, a oposição entre homem livre e es
elegante. O que é a oikeiósis, dirá ele em substância, senão o fato de que
cada um é "comprometido consigo mesmo" (sibi quisique commissus est) cravo. Sabe-se assim que o geógrafo Eratóstenes condenava, sob a in
e o dever que disso decorre de não "faltar a si mesmo" (sibi non deesse)? fluência dos estóicos, a oposição tradicional do grego e do bárbaro,
Visto que um tal discernimento estóico de si como ser humano é próprio opondo-se àqueles que aconselhavam Alexandre (em cuja primeira
do gênero humano, nós estamos entrosados com o universal. Os estóicos fileira é muito verossímil que estivesse o próprio Aristóteles) a ver nos
se interessam pelo homem, e não pelo cidadão, a menos que este fosse um bárbaros apenas inimigos: a verdadeira distinção entre os homens não
cidadão do mundo na sua visão altamente cosmopolita do político: é o
era para ele nem de raça nem de povo, mas de virtude. Da mesma for
74 Preferimos este neologismo à tradução já muito expressiva de oikeiósis
mesmo que dizer um cidadão não de direito positivo, mas, sem mediação,
ma, Crisipo tinha negado
por "apropriação", toda oposição
proposta por T.-F.deBalaudé,
naturezaLes
entre os homens:
théories de Ia justice
de direito natural. Porque o mundo é "uma espécie de cidade'~ governado
por uma lei imanente: segundo eles, não é o mundo uma espécie de nada
dans distinguia, segundo ele, um escravo de outro servidor, se não fosse
organismo ao mesmo tem essa diferença
l'Anti Clt., p.113
qUl"t'e,. op.acidental . que faz com que o primeiro faça parte dos bens
JP
l
97
96 PERSONAGENS DA TEORIA GREGA DO DIREITO
HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO
II

deveres para com ele "porque há um limite à vingança e à punição". O


II de seu dono. A negação estóica de toda legitimidade natural de escra-
vidão encontrará mais tarde sua fórmula célebre e forte sob a pluma de direito positivo deve, nesse sentido, ser aplicado em regra com o di
Fílon de Alexandria75: Ánthropos gar ek physeos doulos oudeis, "Nenhum reito natural que ele deve fazer respeitar: aplicando a justiça, é preci
homem é escravo por natureza". Tal afirmação não se contenta em SO respeitar o espírito mais que a letra, visto que o espírito não é mais
refutar Aristóteles e sua justificação de uma naturalidade do escravo: ela
que essa evidência primeira, natural e racional da oikeiósis que revela
relega o direito positivo à categoria de convenção, ao mesmo tempo
I II eventualmente falsa e contraditória com a lei natural e sem efeito
a comunidade da essência do gênero humano. Foi então justo que essa
ontológico, visto que a condição jurídica do escravo não poderia jamais doutrina fosse defendida em Roma por dois irmãos na comunidade
ter qualquer ressonância sobre sua essência de homem. Contrários a essencial do gênero humano, separados somente por uma distinção
Aristóteles nesse ponto, os estóicos se opuseram também a Platão. Sabe- acidental: um, Marco Aurélio, era imperador; o outro, Epicteto, era
se essencialmente por Plutarco, o ilustre doxógrafo da Antiguidade, que a escravo.
t República que Zênon compôs devia ser uma refutação em regra da
República de Platão: animado por um ideal de igual dade e universalidade,
Zênon defendia nessa obra de juventude a visão de uma humanidade
indivisa, formando uma única e mesma comunidade sob o governo da lei natural.
Utopia do direito natural? Sem dúvida. Mas a longa história da escola estóica
verá germinar variantes mais humanas e mais concretas, de Panécio de Rodes a
Cícero, cujo sincretismo terá em grande parte influências estóicas. É, por exem-
plo, no De Officiis que é preciso buscar o eco das lições de Panécio no
pensamento ciceroniano: a comunidade humana (societas humana) será
considerada fundada em natureza segundo um vínculo (vinculum) que não é outra
coisa senão a razão ou a própria lei natural. Cuidadoso em assentar os princípios
de uma aplicação da lei natural de igualdade entre os homens de obediência
estóica, Cícero demonstrará (De Officiis, I, 11, 33) que, quando uma injustiça nos
aflige da parte de outrem, ela não rompe completamente a comuni dade humana
entre o agredido e o agressor: nós continuamos a ter

75 Pode-se mostrar que essa tomada de posição de Fílon de Alexandria, que não era
propriamente estóico, não se devia à sua herança judaica, mas era de origem
essencialmente estóica. Ver sobre este ponto A.-J. Voelke, op. cit., p. 118, n. 67.

.:.
,,
I~ A VIA ROMANA 99

7
111
tando-as: Horácio transpõe Alceu, Virgílio afronta Homero, Cícero bebe
I~I'I~ CApíTUlo das fontes dos manuais da média Academia, enquanto Lucrécio versifica
~I~ Epicuro. "Há um único domínio da cultura que, com o reconhecimento de
todos, os romanos inventaram e legaram à posteridade: é o direito",
I
I
observa Rémi Brague' . Mas reconhecer nossa dívida com os juristas
romanos deve ter um sentido bem preciso: não simplesmente o reco-
~I~ A VIA ROMANA nhecimento prático, levantando o inventário dos instrumentos jurídicos
que os romanos inventaram, mas também uma reflexão sobre o sentido
da experiência jurídica romana. É preciso apreender bem a ambigüidade
da herança: os romanos nos legaram apenas o direito ou também uma
filosofia do direito original? Tentaremos justificar aqui uma afirmação: se
os gregos souberam dar corpo a filosofias do direito, os romanos
desenvolveram seu gênio próprio na ordem da teoria do direito.
Certamente, é agora necessário justificar uma diferença semântica
mínima: por filosofia do direito, entendemos vastas reflexões quanto ao
1. AExiste
HERANÇA AMBíGUA
em nosso imaginário intelectual um preconceito tenaz quan fundamento e definição do direito, quanto à articulação do positivo e do
to à bipartição da herança antiga: os gregos nos teriam legado a natural, quanto a seu sentido no processo humano da socialização; por
teoria do direito, entendemos um conjunto de reflexões oriundas mais
filoso
diretamente de práticas jurídicas, e que tenta esclarecer ou teorizar sobre
fia e a democracia, os romanos nos teriam oferecido um sólido
essas práticas. Kant dizia isso mais brutalmente no início da Rechtslehre,
sistema afirmando que a definição do conceito geral do direito só interessa aos
jurídico e político. Já nos extasiamos diante dos fulgores abstratos dos filósofos: os juristas se interessam na maioria das vezes pelas suas
gregos, perdoando-Ihes a instabilidade da vida política, e se costuma doutrinas de direito positivo. A oposição não vale no absoluto: o Platão
deplorar não sem complacência as medíocres qualidades dos filósofos das Leis, mesmo aquele da República, é ao mesmo tempo um teórico
que os romanos conseguiram apresentar, ao mesmo tempo prestando e um filósofo do direito; na época moderna, Carré de Malberg ou Ronald
homenagem a seus talentos de construtores do Império. Com a notável Dworkin são tanto filósofos quanto teóricos do direito. Trata-se, pois,
exceção de Hannah Arendt, os filósofos clássicos e modernos muito mais de uma acentuação ou, mais exatamente, de Uma escolha
pouco se interessaram pelo pensamento romano: Roma parece nunca metodológica: partir de práticas jurídicas para pensar o direito, ou partir
ter encontrado seu Heidegger para nos revelar as próprias luzes sobre o do sentido que pode ter a idéia do direito para pensar as práticas jurídicas
particulares. Os juristas falam de "doutrina do di
Ser. Nós, ao contrário, temos zombado do pragmatismo dos romanos e
da suposta falta de originalidade de seus filósofos, dos quais se ressal
tam as fracas tentativas de tradução latina das jóias mais sutis da
, Europe, la voix romaine, op. cit., p. 35.
conceituação grega. Adaptadores de gênio, os romanos não parecem
fazer outra coisa senão prestar homenagem às invenções gregas, imi .Ii
oo
y
1 100
A VIA ROMANA
101

I HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO

universalidade concreta do Império. Há um belo elogio da singularidade


reito" no sentido de que o teórico do direito é em primeiro lugar, para
I eles, aquele que é capaz de manejar o interior das regras lógicas de uma romana na pena de Aelius Aristide: "Nem o mar nem a extensão de
doutrina de direito positivo. Nesse sentido, sem dúvida os romanos nunca
um continente podem ser um obstáculo ao acesso à cidadania comum.
I i são tão grandes como quando inventam doutrinas de direito; quando se
engajam no terreno mais global da filosofia do direito, eles não saberiam Nesse domínio, a Ásia não é separada da Europa. Tudo se encontra aber
I
rivalizar com os modelos gregos que importaram e que manejavam com to a todos, e nenhum homem digno de poder ou de consideração per
I~I
habilidade, mas com pouca invenção.
A relação das duas civilizações, grega e romana, na origem, é nesse manece estrangeiro. Existe uma democracia universal sob a direção de
sentido esclarecedora. Os gregos consideravam ponto de honra ressaltar um único chefe. Vós proporcionastes que o nome romano não fosse mais
que não tinham tido mestres, não sem alguma pose, como se não
o de uma cidade, mas o nome de um único povo. É em direção a vós
devessem nada, por exemplo, à civilização egípcia. Os romanos confes-
sam sem dificuldade o que devem aos outros, e aos gregos em primeiro 2. TEORIA
que DOADIcidade
tudo converge. REITO E FI LOSOFIA
é semelhante DOcomum
a um mercado DI REITO
a toda
lugar. Rémi Brague2 propõe resumir essa diferença pela oposição de duas
a terra" (Elogio de Roma3).
palavras: autoctonia ou não-autoctonia. Os gregos foram os heróis da EM ROMA
autoctonia, como foram os teóricos sem igual da autonomia e da A originalidade da experiência romana não consistiu somente na
autarquia; os romanos inventaram a figura de uma origem não autóctone, constituição de um sistema jurídico rigoroso e eficaz e de um
de uma origem concebida como uma fundação pela transferência. A Império
versão da lenda troiana de Virgílio, na Eneida, não é o mito romano por
em que ele pode finalmente se exercer: Roma soube produzir
excelência? Segundo Rémi Brague, "Enéias deixa Tróia saqueada pelos
gregos com seu pai e seus deuses domésticos, e os transfere para terra alguma
latina. [...] Ser romano é fazer a experiência do antigo como novo e como coisa absolutamente nova que os gregos ignoravam: uma literatura
o que se renova pela transplantação em um novo solo". A palavra-chave ju
grega é physis: a natureza, literalmente o que cresce, o que se
rídica, no sentido de uma reflexão doutrinária forte; em suma, um apa
desdobra depois de uma origem. O conceito romano por excelência será,
relho de teoria do direito. Sobre essa questão, retomaremos em parte a
muito diferentemente, o de auctoritas, que implica a idéia de um autor
cuja iniciativa renova um gênero ou um estilo. Os gregos foram os ho- análise de Michel Villet, não sem sugerir uma crítica a seu respeito,
mens da pólis, ou melhor, de uma miríade de cidades: eles eram examinando sucessivamente três aspectos da singularidade latina:
atenienses ou espartanos, antes de serem gregos, e muito freqüentemente, . Em primeiro lugar, os romanos dispuseram o que faltou ao apa
com exceção dos estóicos e de alguns sofistas, gregos antes de serem relho judicial grego: uma profissão específica a serviço do aparelho,
homens. Os romanos foram esses cidadãos não-autóctones, vítimas da
exercida pela classe de jurisconsultos. Ao longo dos séculos, Roma
co 3 Citado por Pierre-François Mourier, "Éloge de Rome'; Esprit, n. 2, fevereiro de 1993.

20p. cit.) p. 38.


nheceuMichel
assimVilley,
4
um Le droit romain, PUF, 1945, reed. 1993, p. 36.
grande número de figuras marcantes: Quinto Múcio
Cévola, Sérvio Sulpício, Labeão, Sabino, Celso, Juliano, Ulpiano, Paulo
... ou Papiniano. Esses juristas também foram teóricos do direito, escre
r
~ crever tratados científico-pedagógicos é constituir o direito numa ars:
103
102 HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO
não arte no sentido moderno,Amas sim uma técnica e uma ciência. A
VIA ROMANA

I; teoria do direito combinará então essa dupla perspectiva temo-cientí


veram tratados doutrinários, comentários de textos jurídicos, as responsa fica: o direito deve ser uma doutrina coerente, capaz de exibir as regras
I e as quaestiones. O conjunto dessa literatura jurídica e teórica prolífica foi
de seu funcionamento, com a condição de que essa doutrina seja baseada
compilado por ocasião do Baixo Império, e nos é em parte transmitido
no exame de casos jurídicos bem precisos e que ela possa retomar o mais
I sob a forma de um Digestum realizado a pedido de Justiniano. Pa-
radoxalmente, uma das constantes dessa produção teórica é sua aversão depressa para eles no prazo do esclarecimento doutrinário.
11
pela teoria: o jurisconsulto romano, diz Michel Villey, tem sempre seu . Em terceiro lugar, o direito romano parece ter isto de particular:
11 olhar fixado sobre o caso concreto, sobre o qual ele tem o hábito de ser ele acarreta um paradoxo na relação que estabelece entre direito natu
consultado. Se ele produz regras gerais, é somente de forma estritamente
11 ral e direito positivo. Esse último ponto, sobre o qual não escondere
jurisprudencial, por analogia entre casos similares. "Toda definição é
perigosa em direito civil; ela se presta a ser refutada" afirma um frag- mos que depende de uma interpretação possível do direito em Roma
mento do Digestum (D, 50.16.203), que propõe aliás uma máxima em ruptura com aquela proposta por Michel Villey, é o mais difícil de
metodológica: "Não é preciso querer tirar o direito da regra, mas a regra expor. Vamos sugerir aqui dois pontos muito simples de ancoragem de
se tira do direito" (D, 50.17.1).
. Em segundo lugar, os jurisconsultos romanos não limitam sua
nossa reflexão. O primeiro provém de uma observação que fazia o his
toriador Pierre Grimal em 1960, em sua obra consagrada à civilização
atividade à prática judicial, em que aconselham, na qualidade de peritos,
as decisões dos prestadores para fazer justiça: eles desenvolvem com romana5: em Roma, "o direito preexiste à lei". Para Grimal, essa fórmu
muita freqüência uma obra científica e pedagógica. O ensino do direito la se entende em um sentido histórico preciso: "Na Roma dos reis, e
representa papel essencial na constituição de um corpo de teoria do ainda
direito. Esse ensino responde a várias necessidades: inicialmente, àquela durante muito tempo sob a República, direito judiciário e direito cons
de formar discípulos que vão perpetuar a profissão; em seguida, àquela de titucional não eram separados. O rei, como o cônsul, era o depositário
defender eventualmente uma "escola" doutrinária particular contra outra de um conjunto de regras destinadas a fundamentar as relações das
concorrente (houve assim uma rivalidade entre a escola dos Sabinianos e pessoas entre elas e com a cidade". O direito é em primeiro lugar uma
a dos Proculianos); enfim, àquela de servir de guia para os praticantes do função, em um duplo sentido: manter a ordem entre as pessoas e, se
direito, exilados nos confins do Império, em proveito dos quais os mais
jogarmos com o sentido da palavra função, fazer conhecer e
ilustres jurisconsultos redigem verdadeiros tratados práticos de direito. O
aplicar as
próprio Cícero, embora não fosse jurista de profissão, sem dúvida
regras de vida social (o rei, o cônsul). Grimal explica que as regras cons
participou desse fervor pedagógico, colocando seus talentos de filósofo e
de reitor ao serviço de uma exposição tão clara quanto possível do que é o titucionais serão apenas um caso particular desse direito, desprenden
direito, destacando de maneira muito romana em seu De Oratore (XLI, do-se lentamente e de maneira imperfeita. O fundamento do direito é
191-192) que somente a experiência da vida jurídica pode levar a uma o poder: quem quer que detenha uma parcela de poder tem por missão
verdadeira ciência do direito, sem temer aparentemente que essa essencial assegurar a manutenção da ordem por meio do direito. Essa
5 Pierre Grimal, La civilisation romaine, 1960; reed. Flammarion, col.
proposição pudesse voltar-se contra seu autor... O objetivo comum de manutenção da ordem torna-se ainda mais crucial quando se pensa
Cícero e dos jurisconsultos que se dedicam a es Champs, 1997, p. 98.
na
f li
104
HISTÓRIA DA FilOSOFIA DO DIREITO A VIA ROMANA 105

dualidade essencial da cidade romana: "É porque existia uma plebe ex cada Estado e não se aplica a seus cidadãos; jus gentium, direito das pes-
terior às gentes que foi necessário fazer intervir um árbitro situado acima soas, a saber, o direito que se aplica, no Estado romano, ao mesmo tempo
de uns e de outros e capaz de assegurar um regulamento de conflitos que aoS cidadãos e aos estrangeiros, visto que, em um sentido qualificado
subsistisse não somente entre as gentes mas também - isto foi o mais pelo autor como mais vago, o direito, encontrando-se idêntico entre todos
importante para o desenvolvimento do direito - entre essas e indivíduos os povos, seria por conseguinte comum a todos os homens; enfim, há o
isolados, que não eram protegidos por qualquer grupo intermediário entre jus naturae ou jus naturale, direito natural, "um direito ideal, um pouco
eles e o Estado"6. A origem do direito romano se confunde com a função vizinho do direito comum a todos os homens designado alhures pelo
ordenadora do direito. Isso não impede em nada que esse nome de direito das pessoas". Desfazer as relações entre esses termos não
direito possa desenvolver em seguida um sistema de direito das pessoas, é coisa fácil. Quanto a isso, parece-nos certo que a análise de G. Del
uma busca da eqüidade etc. Mas a famosa "inscrição do direito romano Vecchio teve o mérito da clareza e da brevidade. Del Vecchi09 refere-se
nas coisas': de que Villey não pára de falar, tem para nós este sentido a Cícero relembrando sua tese principal: o direito não é um efeito da
muito simples: os romanos não partem da lei (natural, ou da idéia de vontade livre, mas é ditado pela natureza. O direito não se baseia em uma
lei) para pensar o direito; eles partem do direito para pensar a lei, o que pura positividade: nesse caso, as leis dos tiranos seriam o direito. Ele se
quer dizer que sempre partem de uma função fundadora, a de um direito refere a uma justiça natural imutável e necessária. A ordem parece ser
ordenador, e jamais emancipador, do que é. O elogio permanente então a seguinte: do jus naturale decorre, em estreita relação com ele, um
da jurisprudência dos romanos como "berço do direito': que faz com jus gentium que, cumprido por todos os povos, serve de base para seus
que Villey7 vá ao encontro da idéia de que o direito é rico em relacionamentos recíprocos porque é fundado sobre necessidades
"mutabilidade", mas que não pode nem deve ter o menor sentido comuns, mesmo que admita variações circunstanciais. Enfim, há o jus
reformador, e ainda menos revolucionário. civile: o direito em vigor em cada povo em particular. Como escreve DeI
O ~~gundo ponto de ancoragem de nossa leitura se situa sobre o Vecchio, nessa tricotomia - jus naturale, jus gentium, jus civile - "não há
plano semântico e não mais histórico. Partindo do direito, jus, a via contradição portanto; eles constituem antes determinações graduais de
romana desenvolve esse conceito não sem criar dificuldades para os um único e mesmo princípio': No pensamento de Cícero, com efeito, sem
leitores modernos. Se se toma, por exemplo, um manual muito completo dúvida não há nenhuma contradição. Realmente se trata de partir de um
de direito roman08, está exposto em preâmbulo que o jus romano admite direito natural; nas determinações sucessivas do direito, a obra do
divisões semânticas: jus civile, o direito civil, aquele que é próprio de legislador pode ter o sentido de temperar as exigências da pura justiça e
da pura razão naturapo. O Estado e o direito são efeitos da natureza.

6 Ibidem, p. 102.
7 Por exemplo: "Le droit dans les choses': in Controverses autour de l' ontologie
du droit, PUF, 1989, p. 9 Georges DeI Vecchio, Philosophie du droit, Dalloz, 1953, p. 52.
20. 10 É o que observa James E. Holton, no capítulo consagrado a Cícero de
8 Nós nos referimos aqui de passagem ao Manuel élémentaire de droit romain Histoire de la philosophie politique, sob a direção de Leo Strauss e Joseph Cropsey, PUF,
trad. Olivier Sedeyn, 1994, p. 189.
de Paul Frédéric Girard, Paris, Librairie Arthur Rousseau, 1918 (o título é
enga
noso: este manual elementar compreende 1175 páginas...). -I:t.
~
106 107
A VIA ROMANA
HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO

Essa idéia de um direito natural comum a todos os homens, oriunda ual decorreriam as determinações positivas do direito. Essa
do cosmopolitismo naturalista estóico, tornou-se familiar aos juristas segunda
romanos. Ela é encontrada em Ulpiano, em versão diferente: o q roposição parece, por conseguinte, inconciliável com a primeira. Com
fundamento do direito está na própria natureza das coisas. O jus naturale ~feito, se o direito natural implica um nível metapositivo do direito, ele
se liga à aequitas: um tratamento igual das coisas e das relações iguais. deveria servir para julgar o direito positivo; em outras palavras, deveria
Tal seria o fundamento do direito: a "naturalidade" da regra da aequitas. haver uma função crítica de emancipação a respeito da determinação
O direito natural permanece, portanto, sempre o critério teórico mais histórica: nesse caso, é inconsistente que os juristas romanos não tenham
elevado, observa Del Vecchio, mesmo que a ordem das determinações do condenado a escravidão inscrita no jus gentium em nome do jus
conceito de direito leve a raciocínios que em retrospectiva podem nos
naturale. Se o direito natural não implica qualquer crítica do direito
parecer espantosos: do direito natural são deduzidos princípios gerais, por positivo, ele
exemplo, de que os homens são iguais e livres por natureza. "Os juristas
se torna praticamente destituído de sentido nesse sistema inteiramente
romanos reconheciam expressamente que a escravidão é contrária ao ocupado a partir do jus gentium, considerado, como diz Del Vecchio,
direito natural; mas eles a justificam em nome da jus uma espécie de direito bruto elementar. Del Vecchio conclui essa ques-
gentium, visto que é praticado entre todos os povos, em conseqüência das tão ressaltando que se confunde com freqüência o jus gentium com o jus
guerras." Villey, por sua vez, explica claramente em que a coerência do
naturale: ora, escreve ele, o primeiro é um conceito essencialmente
sistema jurídico romano com respeito da escravidão era totalll. Ele
romano, e o segundo um conceito próprio da filosofia grega. A herança
comemora de passagem, não certamente a escravidão, mas que os ro- da filosofia grega para um Cícero, e dentro do universo intelectual dos
manos não tenham jamais acalentado a quimera dos direitos do ho- juristas romanos, manifesta-se no emprego da expressão jus naturale.
mem12. Pode-se recear nesse ponto que a fascinação por Roma o tenha Mas não é certo que isso não inclua uma contradição real no pensa
cegado. Como realmente conciliar duas proposições que parecem in- mento romano entre uma tradição profundamente empirista e historicista
conciliáveis? Por um lado, de fato, a história do direito romano e de seu (Villey escreve: "realista") descrita por Grimal e a referência filosófica
espírito, amplamente descrito pelo próprio Villey, advoga a favor de um pelo princípio de um direito natural.
método: partir do real histórico. Villey escreve pois com razão que o A análise de Hannah Arendt retomada por Barbara Cassin14 parece
direito romano "é o contrário de um direito construído por princípios a de imediato uma solução. Opondo a pólis grega à patria romana,
priori'~ que a jurisprudência romana é "em primeiro lugar uma descrição Hannah Arendt pretendia mostrar duas relações profundamente opostas à
do mundo'~ que todo esse direito "deriva de observações": "A obra dos lei. Os gregos foram os cidadãos de uma miríade de cidades; a lei éa
juristas romanos é essencialmente realista"13. Por outro lado, a "muralha" em cujo abrigo pode existir uma pólis: a vida política começa
teorização romana do direito consiste em se referir ao jus naturale, do depois da fundação e da legislação. Ao contrário, os romanos fo
ram cidadãos de uma cidade: Urbs, a Cidade, Roma. A experiência
romana seria aquela da auctoritas, da relação com o passado, com os pais
11 Michel Villey, Le droit et les droits de l'homme, PUF, 1983, p. 90. 12 fundadores, com a história política fundadora. Essa análise, que pretende
Ibidem, p. 102. mostrar o poder da análise do político na via romana, conduz
13 M. Villey, Le droit romain, op. cit., p. 42. 14 L'effet sophistique, op. cit., p. 253.

..
r~
108 109
A VIA ROMANA
HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO

no entanto a uma conseqüência possível: os gregos tiveram necessida aquisição ou pela sua perda, isto é, os casos particulares. Quando se
de de uma referência forte ao direito natural para conjurar a dispersão redige na Roma dos "códigos" (os Codices ou as lnstitutiones), o "mun
"horizontal" das cidades e de seus direitos positivos, enquanto os ro- do é unificado" e "não se tem mais que distinguir o romano do verda
manos, em razão mesmo de seu modelo histórico e vertical, puderam ter deiro estrangeiro". A cidadania, como escreve ainda Claude Nicolet,
a tentação de assimilar o direito natural ao que lhes parecia inscrito no "mudou de sinal", ela é definida nos manuais de direito do século II com
direito positivo, pelo menos quanto ao jus gentium. Contudo, a intuição relação à escravidão: é então um "status social". O conceito tênue de
política central dos romanos foi, sempre segundo Hannah cidadania em nada provém de uma teorização original forte, mas de
Arendes, de jamais sacrificar o privado ao público, contrariamente aos uma sedimentação empírica, em que se misturam o costume e os textos
gregos, e de pensar a coexistência dessas duas ordens. O direito romano escritos depois, essencialmente após um exame empírico dos casos parti
não se mistura, com efeito, na ordem interna da família (e portanto nas culares. Se há, com efeito, uma espécie de abstração original, ela não tem forma
relações do pai com seus escravos ou com suas crianças). O modelo jurídico- jurídica precisa: a cidadania em Roma na época das Guerras Púnicas é muito
político romano abre por aí uma via original, contrária ao direito subjetivo pouco diferente da politéia das cidades gregas. O populus
moderno, como ressalta inúmeras vezes Villey: o homem em geral não tem designa então a totalidade dos cives, quer dizer, a coletividade dos
direito, "somente os homens tem direitos diversos"16. cidadãos como agem coletivamente: é uma comunidade extensiva
A proteção da clivagem público/privado somente intervém ao preço de (os romanos como membros desta comunidade que é a cidade de
uma concepção reduzida da cidadania. Sobre esta questão, retomaremos aqui os Roma). A civitas não é nesse sentido senão uma "condição global".
traços salientes de uma análise proposta por Claude Nicolet17, que insiste Desse ponto de vista, Claude Nicolet tira duas conseqüências. A
preliminarmente sobre esse caráter evolutivo da noção de cidadania romana: a primeira é o caráter de exclusividade da cidadania: não se pode ser
civitas Romana durou quase um milê cidadão de duas ou de
nio, e não representa a mesma coisa no tempo de Políbio e nos séculos II ou III várias cidades. A segunda é uma espécie de exigência pragmática: o
d.e. Mas, como escreve Claude Nicolet, o direito romano "jamais sentiu a bom funcionamento e a perenidade da cidade romana exige "que seja
necessidade, em qualquer momento de sua história, de dar à cidadania uma realizada, pelo menos de modo aproximado, uma certa igualdade dos
definição global, coerente e codificada". direitos entre os cidadãos". Essa exigência é teorizada a posteriori por
Desde a origem, ou pelo menos desde a República média ou tardia, a Cícero
cidadania é em grande parte negligenciada pelo direito. O que chama a atenção no século I a.e.: ela se torna uma igualdade jurídica (diante da lei civil)
dos juristas romanos são os litígios levantados pela sua e uma igualdade política diante das funções legislativa e executiva. A
igualdade jurídica foi grosso modo realizada pelo fim do século IV
ou no ínicio do século III a.e. Em contrapartida, a igualdade política con-
serva e mesmo acentua ao longo do tempo uma distinção jurídica e civil
15 H.Arendt, Condition de l'homme moderne, trad. G. Fradier,Agora, 1994, p.IOD.
16 M. Villey, Le droit et les droits de l'homme, op. cit., p. 99.
entre "privilegiados", membros de uma "ordem", e "comuns", os
Claude Nicolet, "Citoyenneté française, citoyenneté romaine. Essai de
17 humiliores. "Essa tendência", conclui Claude Nicolet, "triunfará não so-
mise mente na esfera do direito público - determinando cada vez mais, por
en perspective': in Le modele républicain, sob a direção de Serge Berstein e exemplo, a condição fiscal de cada um - mas também no direito penal, até
Odile Rudelle, PUF, 1992, p. 43-52. culminar no século III na extraordinária desigualdade de procedimentos e
penas que se aplicam. [u.] O próprio direito privado conhece
Iii.
110
HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO

a mesma evolução, por exemplo, na medida em que aparece a


heredita
riedade obrigatória de certas profissões e obrigações e privilégios que
lhe são relacionados'~ Em suma, não apenas a cidadania romana é um SEqUNdA PARTE
"estatuto superior'~ não igualitário com relação aos que não a possuem,
mas ela procede na sua própria dinâmica política de uma evolução não
igualitária. Em todos os graus, ela é portanto um estatuto social dife- A HERANÇA JUDAICO-CRISTÃ E
renciado: em nada ela é pensada e aplicada como unitária. A preciosa A CONSTRUÇÃO DA MODERNIDADE
distinção do privado e do público, ressaltada por Hannah Arendt, não
deve cegar o leitor moderno: a "lógica de distinção" do sistema romano
deve sem dúvida ser reinserida no contexto geral de um sistema jurídico e JEAN/CAssiEN BilliER
político construído mais sobre a diferenciação hierárquica do que
sobre a proteção dos cidadãos (mesmo que eles não fossem mais que uma
"classe") graças a uma limitação da esfera pública. O "empirismo"
do direito romano e sua historicidade parecem advogar a favor da idéia
que temos afirmado, em ruptura com o "realismo" celebrado por Michel
Villey: a cidadania romana não é mais que um estatuto social ao qual o
direito dá uma forma jurídica. A história romana funda o direito romano:
é o mesmo que dizer, por um truísmo, que o direito romano não funda o
direito, mas simplesmente nos explica um modelo político e social
antigo.

~
11111111 11 I
A HERANÇA JUDAICO-CRISTÃ
113

I~iir

I' CApíTUlo 4 me no judaico-cristianismo. Ainda com Voegelin3, pode-se lembrar a


que ponto a passagem de uma verdade "antropológica" e "cosmológica"
de tipo antigo para uma verdade "soteriológica" de tipo judaico-cristão
II~III foi decisiva. Se só nos referimos ao grande modelo aristotélico, parece
claramente que a pólis é bem pensada em termos de philia politiké, de
amizade política: essa amizade, que é a substância da sociedade política,
A HERANÇA JUDAICO-CRISTÃ ocorre entre os homens e se realiza dentro de uma homonóia, um acordo
profundo entre eles. Se esse acordo é "espiritual" tanto quanto político,
ou mais simplesmente "ético", como mostramos na primeira parte, isto
quer dizer que tais homens devem efetivamente viver de acordo com a
parte mais divina que está neles, como ressalta Voegelin ao ler a Ética a
Nicômaco. Mas essa parte "divina" não é transcendente da própria
comunidade política com relação ao indivíduo. Ela não implica qualquer
salto em direção a uma alteridade absoluta. A impossibilidade de uma
philia entre o homem e Deus, em razão de sua desigualdade radical, está
1. A FONTE BíBLICA no centro de um paradigma que consagra, isto é, diviniza o laço social,
único lugar de realização entre seres globalmente de mesma natureza,
Qualquer leitor de filosofia grega antiga conhece a célebre afirma mesmo que os últimos sofram uma hierarquia ontológica que vai do
ção de Platãol segundo a qual uma pólis tem os mesmos traços de escravo ou da mulher ao homem livre, ou "cidadão no sentido pleno". O
um modelo estóico certamente faz saltar este último elo de uma hierarquia
indivíduo em suas características mais gerais. Esse é, em suma, o ontológica intra-humana, mas ao preço de uma espécie de reforço do
para paradigma de fundo: é pela integração absoluta no grande organismo
digma grego antigo que nos recorda o estudo de Eric Voegelin2 que naturo-divino do cosmos que o homem é o igual do homem. Nenhuma
mar transcendência; ao contrário, uma fulgurante imanência. Paralelamente,
não é preciso minimizar uma evolução histórica: quando o estoicismo
cou época: uma sociedade política deve ser em tudo ordenada e
tematiza a igual dignidade de todo indivíduo humano, a cidade-estado
harmoniosa, um kósmion, intermediária entre a harmonia cósmica na
tende a desaparecer, com sua lógica de identificação comunitária estrita:
turalista (o kosmos), o que faz dela literalmente um mikrokosmos, e a
as novas estruturas imperialistas, bem mais impessoais, implicam uma
harmonia do indivíduo pacificado pela sabedoria e pela própria reali
redistribuição da consciência que o homem tem de si mesmo, e que pode
zação no seio de uma comunidade política, o que faz dela agora um
evoluir para uma descoberta de si como "cida
makro-ánthropos. Nesse sentido, o paradigma antigo é marcado pela au
I República, 368c-d.
sência
2
de transcendência, pelo menos no sentido que este termo assu
Eric Voegelin, La nouvelle science du politique (1952), trad. Sylvie Courtine
Denamy, Le Seuil, 2000, p.
-3 E. Voegelin, op. cit., p. 124.
106.

.
r
115
114 HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO A HERANÇA JUDAICO-CRISTÃ

dão do mundo" completo, e não de uma única cidade. O homem estóico lado, ela se concentra sobre a única noção de "direito natural", notando

é certamente integrado ao "grande animal" que é o cosmos divino como de passagem que ele se torna com freqüência uma "lei natural" sob a
uma parte é integrada ao todo, mas ele se insere sobretudo no grande pena dos padres da Igreja depois dos teólogos escolásticos. A analogia
todo político-social que é o império. A philia aristotélica e o paradigma
é
antropológico da lei são consideravelmente ampliados pelos estóicos.
Desde então, pode-se duvidar do sumário filosófico e histórico proposto certamente notável, mas também limitada: o direito natural dos Antigos
por alguns historiadores da filosofia do direito: o cristianismo, no fundo, se torna, de qualquer forma, o modelo sobrenatural do Justo, divino e
só teria de perseguir e ampliar por sua vez o empreendimento estóico. É transcendente. Por outro lado, ela tende a conservar do judaico-cristia
necessário sem dúvida não confundir duas coisas: por um lado, as nismo essencialmente apenas seu aspecto "cristão", sem buscar nas
ressonâncias estóicas no pensamento cristão dos primeiros séculos, por exemplo,
fon
quando uma distinção como a estabelecida pelos estóicos entre "um ideal
tes hebraicas um outro modo de relação com a Lei diferente da
absoluto e um segundo direito natural relativo" é batizado cristão e ligado à
Antiguidade greco-latina, como se a herança testamentária e a tradição
doutrina do pecado original, que traz a necessidade de instituições humanas que,
hebraica passassem para um segundo plano.
tendendo para o ideal, jamais poderiam ser totalmente boas4; por outro
lado, a ruptura profunda de ponto de vista sobre o homem entre o paradigma
O segundo ponto de vista, que será por nós privilegiado,
o

grecolatino e o paradigma judaico-cristão.


consis
. O primeiro ponto de vista, o de um prolongamento cristão do te, ao contrário, em tentar apreender o elemento de ruptura, ao
menos
pensamento estóico, realmente greco-latino em seu conjunto, merece,
de maneira indicativa. Para fazer isso, retomemos em primeiro lugar
contudo, que nos demoremos um instante a fim de avaliar melhor as
críticas que se possam formular contra ele. Diagnosticado pelas posições para a questão da origem da lei em Israel e para a herança testamentá
dos padres da Igreja, ele consiste em pensar que a idéia do direito natural ria do cristianismo. Por motivo de uma ruptura logo de início com os clichês
"não renova essencialmente, mesmo com as influências cristãs, o fundo sobre a relação com a Lei como o único comando transcenden
do problema. A doutrina que se desenvolve é, certamente, teológico- te imperioso (Deus se dirige a Moisés), realçamos aqui uma análise pro

política. Mas como para os filósofos Platão e Aristóteles e também posta por Stéphane Moses6. O que é de fato a Revelação no monte Sinai,
para Cícero, o direito natural é a norma universal do justo. Os durante a qual Moisés recebe os Dez Mandamentos e as duas Tábuas
autores cristãos prolongam os temas político-jurídicos da filosofia natural da Lei? Este "acontecimento" é o fundamento de uma relação com a Lei
antiga"5. Esta tese tem, ao nosso ver, duas características. Por um como uma prescrição vinda de uma alteridade absoluta e unica
mente imperiosa? A concepção comum, ajudada em parte por alguns
séculos de teologia, mas sobretudo pela posição dogmática cristã que
acentua muitas vezes a novidade radical da Nova Aliança, encarnada pelo Cristo
amante, em relação ao Deus "vingador" da Antiga Aliança,
4 W. Friedmann, Théorie générale du droit, LGDJ, p. 55 assimila facilmente essa relação com a Lei a uma transcendência es magadora.
5 Simone Goyard-Fabre, "Les deux jusnaturalismes': in Cahiers de philosophie
Ora, a própria idéia da Aliança não é precisamente a de um choque
politique et juridique, Université de Caen, n. lI, 1987, p. 20. 6 Stéphane Moses, L'Eros et Ia loi, Lectures bibliques, Le Seuil, 1999, p. 66.
amoroso entre o Criador e sua Criatura? Moses lembra a tradição hebraica, e
enfatiza principalmente um comentário do Cântico dos Cânticos escrito na
.11:
::. segunda metade do século XVIII por Elija de
r
l 116 HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO

Vilna7: a história da esperança messiânica começa com "o choque de um


A HERANÇA JUDAICO-CRISTÃ

mia e de heteronomia, tratados hititas (não semíticos, portanto) que


117

primeiro encontro amoroso". Desde então, a Revelação a Moisés deve ser fundamentam em parte a arqueologia semítica previam que o vassalo
apreendida como o "paradigma da união mística entre Deus e o povo devia engajar-se "voluntariamente" junto a seu soberano, pois não o
hebreu". A tese paradoxal, mas tão expressiva, de Elija de Vilna volta a fazer seria suicídio, mas seu soberano devia, não obstante, "cortejar
dizer que a origem da Lei é uma experiência amorosa: os mandamentos seu vassalo"; da mesma forma, a "Aliança" na arqueologia da lei em
são também beijos. Não nos parece que uma leitura do acontecimento
Israel,
fundador que é a Revelação à luz do erotismo místico do Cântico dos
mais marcada ainda que o tratado hitita, implica uma dependência e
Cânticos seja excessiva, e ainda menos exterior à própria natureza da
uma obrigação mútuas. Certamente, é necessário distinguir aqui Lei e
relação com a Lei que instaura o judaísmo, depois o cristianismo: todo o
Mandamento: a arqueologia sociopolítica do povo de Israel esclarece
mistério repousa sobre este Deus amante, a ponto de lançar por sobre a
a relação de "reciprocidade desigual" (Deus ama o homem, o homem
diferença ontológica os meios de uma Aliança com o homem, este Deus
deve amar a Deus, Deus é superior e transcendente com relação ao
tão oposto ao Deus inacessível à philia humana de Aristóteles. Ainda a
homem) da estruturação religiosa do judaico-cristianismo, mas ela deve
título de comparação, pode-se pensar no comentário proposto por
igualmente fazer apreender o hiato entre a lei (estática) e o Manda
Scholem sobre a relação com a lei descrita por Kafka em O Processo, e
mento (divino). Com o judaísmo, o que vem em primeiro lugar é sem
que é, segundo ele, um "nada da revelação" (Nichts der Offenbarung), um
dúvida o Mandamento, e não a lei: Deus não legisla, manda.
estágio assustador em que a lei se afirma pelo único fato de estar em
Este primado do Mandamento sobre a Lei nos parece igualmen
vigor, mas não significa, ou ainda nã08. A Revelação a Moisés é o
te decisivo, em comparação com o universo greco-Iatino: a origem da Lei está
contrário deste "Estar em vigor sem significar" (Geltung ohne Bedeutung)
"fora" da Lei, ela está acima da Lei, o que pareceria absurdo nos sistemas greco-
que Scholem interpreta em Kafka: ela está em vigor porque ela significa.
Iatinos. Essa transcendência convida desta vez a uma interrogação sobre a
O amor à Lei é um novo paradigma: muito diferentemente da
antiga raiz judaica da longa relação cristã com a lei, que será profundamente, na
Antiguidade greco-Iatina, não se trata simplesmente de que os homens se
ordem do político, uma reflexão sobre a projeção da "lei" divina, no sentido do
amam de philia por amar a lei, mas que a própria Lei ama os homens.
Mandamento (di
Esta novidade filosófica radical sem dúvida deve ser lida igualmente
vino, testamentário, evangélico para os cristãos), sobre as instituições e leis
sobre a base da tradição histórica. André Lacocque o mostra em um
humanas. Paul RicoeurlO, retomando em seguida a André Lacocque sobre
estudo centrado sobre o texto do Êxodo 20, 13 ("Não matarás")9: em um
este diagnóstico do primado do Mandamento sobre a
dialética espantosa de autono
Lei que se deve a Franz Rosenzweigll, faz a ponte com o sentido "amoroso" do
dom da Lei no Mandamento: diante da lei de uma modernidade que a
esvaziou de conteúdo, conservando-lhe somente
7Elija ben Shlomo Zalman, dito Gaon de Vilan (1720-1797), fundador da
tradição lituana do judaísmo ortodoxo europeu, comentarista do Talmud e da
tradição cabalista.
8 Segundo Giorgio Agamben, Homo sacer, ie pouvoir souverain et ia vie nue Ibidem, p. 169.
10

(1995), trad. M. Raiola, Le Seuil, 1997, p. 60. F. Rosenzweig, L'Étoiie de ia Rédemption, trad. Alexandre Derczanski e
1l

9 André Lacocque e Paul Ricoeur, Penser ia Bible, Le Seuil, 1998, p. 103. Jean-Louis Schlegel, Le Seuil, 1982.

iIr.
118 119
HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO A HERANÇA JUDAICO-CRISTÃ

a forma do imperativo, o mandamento bíblico seria o de um "amor que sujeiçãO, que também esclarece as razões do cisma, parecia incompa
obriga", implicando esta singular dialética de autonomia e de heteronomia tível com o desenvolvimento de uma teologia política que contivesse
e esta projeção permanente do Mandamento divino sobre as leis humanas. o fermento de um poder permanente de julgar o campo político-jurí
O universalismo paulino radicalizará, no Novo Testamento, esta nova dico em nome da lei divina. A palavra de Tertuliano é expressiva: "Deus
relação com a Lei. O judaico-cristianismo Surgirá de uma "tensão" é meu único mestre!".
permanente entre valores mundanos e valores ultramundanos, entre um A Igreja do Ocidente buscará por muito tempo os meios de fazer
mundo hierarquizado, holista e hierarquicamente inferior, e uma relação respeitar sua predominância sobre o campo jurídico-político
com Deus que transcende o mundo do homem e as instituições sociais, humano.
afirmando cada vez mais o valor infinito do indivíduol2. Quanto às Depois do naufrágio do império carolíngio, ela se defenderá do
formas que tomou historicamente essa tensão na história política do imperador germânico, por exemplo, retirando-lhe a base de "direito
cristianismo, elas são conhecidas. Por um lado, houve um verdadeiro divino" que ele reivindicava a fim de se elevar acima de Roma. A esse
modelo oriental de "sinfonia político-religiosa" a partir de Constantino e respeito, contra as caricaturas é preciso lembrar o que foi muitas vezes o
Teodósio, este último fazendo do cristianismo, por decreto, uma religião sentido
do Estado em 380. Por outro lado, um modelo ocidental foi inaugurado exato desse conceito de "direito divino", inseparável de sua utilização:
por Ambrósio de Mi por exemplo, entre os séculos XI e XIII, a doutrina do direito divino foi
lão em 390, quando ele excomungou Teodósio e abriu caminho para uma invocada pelos defensores do poder do Estado normalmente tendo como
posição de projeção da lei divina e da Igreja sobre a lei dos adversários os defensores do poder eclesiástico. Em outros termos, longe
césares e sobre as instituições políticas, depois aprofundada pela des- de ser uma consagração "constantiniana" do caráter sagrado do poder
valorização augustiniana das instituições humanas13. O cisma que político pela Igreja, a doutrina do "direito divino" se opunha ao direito da
ocorrerá em meados da Idade Média entre os católicos e os ortodoxos Igreja! Por sua vez, a Igreja tinha interesse em ressaltar a origem humana
fiéis à tradição constantiniana não será alheio a esta profunda divergência do poder político, por um lado para defender seu poder relativo de
sobre o estatuto do "poder espiritual" frente ao temporalou integrado a estabelecer e de depor os príncipes, e por outro para mostrar que o poder
ele: até o reinado de Carlos Magno e os anos 800, os papas de Roma são civil não podia ter outra origem senão o consentimento do povo sob a
súditos do Império! A esse respeito, eles são obrigados a remeter uma alta supervisão da Igreja. Uma outra leitura é possível:
cópia de seus documentos ao imperador do Oriente e seus legados a de Michel Villey, que insiste sobre a distância entre o tema propria
carregam um passaporte bizantino. Essa mente jurídico romano da lex e o outro, cristão, do jus. Certamente, a
noção de jus é central no pensamento romano, como vimos, mas nunca no
sentido de uma possibilidade de julgar realmente o sistema de direito em
nome de um princípio superior e exterior a ele. A crítica augustiniana do
12 Alain Renaut, Les deux christianismes (citando Louis Dumont, Essais sur
l'individualisme), Naissances de Ia modernité, Histoire de Ia philosophie
jus será precisamente como aquela produzida pelo cristianismo em seu
politique, t. 2, Calmann-Lévy, 1999, p. 33-4. conjunto, qual seja: o jus da cidade não merece este nome porque ele é
13 Ficamos tentados a explicar em detalhes estes episódios fundadores por injusto perto do que será um direito cristão concebível na única cidade de
Jean-Cassien Billier, Le Pouvoir, Armand Colin, 2000. Deus. Mas Villey não crê que essa revolução intelectual tenha
transformado o direito: o crepúsculo do mundo ro
1 mano se deve, segundo ele, ao fato de que morreu sob os golpes dos
1:
..
r i111porta apreender que a teologia política e jurídica tomista se edifica

sobre o fundamento rico e complexo do pensamento medieval16.


121
120 A HERANÇA JUDAICO-CRISTÃ
HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO
Quan

bárbaros, e não sob o efeito de uma transformação insuflada diretamente do se tenta sistematizar os desenvolvimentos originais do
pelo cristianismol4. pensamento
político e jurídico a partir do século XII, pode-se sem dúvida projetar
2. O PENSAMENTO MEDIEVAL, O DIREITO SEGUNDO cinco correntes maiores dentro das múltiplas controvérsias da época,
TOMÁS DE AQUI NO E A EVOlUÇÃO DO co1110 propõe, por exemplo, W. Friedmann17:
PENSAMENTO ESCOlÁSTICO 1. Uma ruptura com o pensamento "augustiniano" que conside
rava que o Estado, suas instituições e a sociedade política completa são
A arte gótica e a obra de Tomás são contemporâneas: ambas cons-
infectados irremediavelmente pelo pecado; vai-se doravante mostrar que
troem, no século XIII da era cristã, catedrais feitas para serem duradou-
ras. A arquitetura tomasiana é nesse sentido excepcional: a montante, ela eles podem ser os instrumentos da encarnação dos fins morais e dos
responde com força e serenidade a uma época de incerteza intelectual, modos de realização da justiça. A esse respeito, o Policraticus de
política e social; a jus ante, ela se torna por séculos o principal amargo r
Jean
da doutrina cristã católica. Acabamos de evocar com Michel Villey o
declínio do direito romano como alvo dos assaltos bárbaros. No século Salisbury, que data de 1159, é característico: inspirando-se em Cícero e
XIII, a situação é diferente: por um lado, o direito romano retornou com Sêneca, ele reivindica para o Estado um estatuto altamente positivo de
consistência na prática das cidades italianas, dos príncipes laicos, mas instrumento do bem. Reencontramos em Tomás uma conduta análo
também nos Cursos dos Papas; por outro lado, a teologia se sistematiza ga, fundada desta vez sobre a referência aristotélica;
consistentemente com Tomás de Aquino, com um recurso maciço à
2. A designação do direito como princípio superior da sociedade,
filosofia de Aristóteles. Efetua-se então, escreveu VilleylS, um "novo
encontro" entre o direito e a doutrina teológica, mas "desta vez um que também remete mais a uma renovação da filosofia antiga do
encontro verdadeiro: não mais, como nos tempos das invasões bárbaras, direi
entre um direito romano moribundo e uma cultura bíblica viva. Agora as to natural, revisitada pelo cristianismo, do que a uma reflexão
duas forças são iguais: a teologia instaurada como mestra dos estudos - o
política
direito retornando à existência". Este encontro frutífero que participa da
riqueza do pensamento tomista não deve contudo fazer crer que o edifício sobre a função de ligação recíproca de governantes e governados
de Tomás aparece ex nihilo. Ao contrário, por
regras jurídicas;
3. Uma polêmica profunda quanto à autoridade de um direito
14 Michel Villey, "Torah- Dikaion 1", in Critique de Ia pensée juridique moderne,
16 Michel Bastit, Naissance de Ia loi moderne, PUF, 1990, p. 25: "L'
Dalloz, 1976, p. 29. objetivo, ligado à questão do primado de um ou outro dos dois pode
15 M. Villey, Bible et philosophie gréco-romaine, Archives de Philosophie du admiration
res, temporal e espiritual. No fim do século V, a doutrina do papa
droit, t. XVIII, p. 28. des choses".
Gelásio
17 O .
havia proposto um
p. Clt., p. 56. equilíbrio entre as duas esferas: ao poder político, a
:;..
J11arcada por uma crítica permanente das esferas de poder em nome de

122 uJ11 direito "objetivo". 123


HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO A HERANÇA JUDAICO-CRISTÃ
4. Uma teorização líquida sobre a questão da autoridade jurídica
da sociedade civil: a Idade Média nega o absolutismo e reivindica o
no fim do século XI entre o papa Gregório VII e o imperador Henrique
prin
IV: o primeiro reivindicava não somente o direito de investir os bispos,
mas também uma autoridade moral e jurídica sobre o imperador; o se cípio segundo o qual a soberania, o direito e o governo devem
gundo pretendia por seu lado fazer valer como prerrogativa do poder provir
imperial o direito de nomear o clero. Um segundo conflito estourou em do povo. Essa tese é formulada por Jean Salisbury, Jean de Paris, e
seguida entre o papa Bonifácio VIII e o rei da França, Felipe, o Belo, o ainda
que vai proporcionar, por volta de 1302, um discurso em favor da su
por Tomás de Aquino.
premacia da Igreja sob a pena de Egídio Colonna, o De ecclesiastica 5. Uma evolução decisiva da concepção dos direitos privados e,
potestate, enquanto Jean de Paris defendia por seu lado a autonomia do sobretudo, do direito de propriedade privada: os padres da Igreja
rei e a separação dos poderes em seu De potestate regia et papa li. Esse con
debate, que precede Tomás de Aquino e o sucede, aparece muito clara- sideravam que a propriedadé privada era uma instituição pecadora,
mente na célebre controvérsia entre os partidos guelfo e gibelino. O
li
partido guelfo, defendido entre outros por Egídio Romano e Giácomo
gada aos baixos apetites e à cupidez humana; na Idade Média, as
de Viterbo, afirmava que se dois poderes derivavam de Deus, um espi
influências tanto de Aristóteles quanto da jurisprudência romana
ritual e o outro temporal, somente a Igreja podia reivindicar uma prio promovem o abandono do severo princípio dos padres e o reconhecimen
ridade legítima, sendo o intérprete "imediato" da lei divina, enquanto o to pelos teólogos, na primeira fileira dos quais Tomás, do direito à
Estado não podia ser mais que uma derivação e um intérprete interme propriedade privada.
diários. Partindo dessa tese, os guelfos inferiam que o papa tinha o po Esse breve retrospectiva, seguindo as categorias de Friedmann, do
der de depor ou de punir o imperador. Em oposição, o partido gibelino pensamento medieval a montante e a jusante de Tomás deve, por con-
visava a subtrair o Estado da ingerência da Igreja. Defensor de uma so- seguinte, convencer-nos de que a Idade Média não foi, como às vezes se
berania plena e completa do Estado, o partido gibelino reivindica uma gosta de dizer, um período de obscuridade intelectual. Bem ao contrário!
inspiração no ideal do Império Romano. O mais ilustre gibelino foi É um pote de doutrinas que marcarão longamente o pensamento político
Dante, que redigiu um tratado De Monarchia por volta de 1312, no qual e jurídico ocidental. Entre todas elas, retomemos à de Tomás
ele se aplica em demonstrar, por exemplo, que o povo romano foi de- de Aquino. Para tentar ir rapidamente em direção às questões essen
signado por Deus para governar o mundo, e que o imperador, sendo o ciais de seu pensamento, distinguimos dois pontos. O primeiro se refere à
herdeiro do povo romano, é também um soberano universal de pleno doutrina to mista do Estado. Contra toda tentação augustiniana de definir
direito. Essa longa querela é sujeita a muitas interpretações possíveis. o Estado como um mal relativo devido ao pecado original, Tomás pensa
Friedmann considera, por exemplo, que o dualismo dos dois poderes com Aristóteles que o Estado é um produto necessário e natural da
chegou a uma definição em razão de um poder constantemente cres sociabilidade humana. Em suma, ele existiria mesmo independente do
cente do Estado, a um direito concebido cada vez mais como um ins- pecado. Há nisto uma profunda reabilitação do status e do papel do
trumento do Estado, mesmo enquanto era progressivamente minada a Estado: ele não apenas tem por função garantir a seguran
doutrina de um direito natural. Mas pode-se igualmente sublinhar a ça dos membros de uma comunidade política, mas deve ainda promover o
extraordinária riqueza dessa herança teológico-política ocidental, Bem, o que supõe que se lhe reconheça então esse poder. Esse
Estado, que deve ser idealmente a imagem terrestre do reino de Deus, é
tb. não obstante subordinado à Igreja aos olhos de Tomás. O segundo ponto
0
r 125
A HERANÇA JUDAICO-CRISTÃ
124 HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO

II
por suas manifestações. A segunda é a kx naturali" a lei
diz respeito mais particularmente a sua concepção do direito. Quanto a
II isso, com relação à complexidade da doutrina e à riqueza dos comentários uatural. Esta
modernosl8, designaremos aqui três elementos que parecem deCISIVOS:
I . A ruptura tomista com o augustinismo jurídico da Alta Idade pode, em contrapartida, ser conhecida diretamente pela razão huma
Média. Villey a explica assim: "São Tomás demonstra que a lex vetus,
I feita para reger o povo judeu (contida especialmente no Êxodo, no na: precisamente porque ela é, no seio da criatura racional, uma parti
Levítico e no Deuteronômio) comportava outrora preceitos relativos ao
cipação da lex aeterna. Enfim, a terceira ordem é a da lex humana,
direito, providos de um conteúdo jurídico (judicialia); somente esses
preceitos não estão mais em vigor no mundo cristão. Ora, uma vez a lei
abolidos os preceitos do direito judeu pelo evento de Jesus Cristo, nada
veio substituí-Ios na 'lei nova', porque a mensagem do Evangelho não é humana. Esta última é uma invenção do homem com base nos princí
política nem de direito. A lei cristã do Evangelho nada tem de jurídico;
pios da lei natural: ela não passa de uma aplicação particular da lei na
ela não compreende nada de 'judicialia'. No final das contas, Deus se
recusa a regulamentar essas questões de direito pela lei divina revelada, tUraFo. As últimas questões são ao mesmo tempo de ordem
mas decidiu confiá-Ias à iniciativa do homem (humano arbitrio
relinquuntur), e não a clérigos: Pedro somente recebeu as chaves do reino metodológica e moral, como explica Giorgio Del Vecchiozl: a lei huma
dos céus. O próprio da religião cristã, em oposição à judaica, foi restituir na "pode derivar da lex naturalis per modum conclusionum ou per
de uma vez o direito à inteligência natural; enquanto os talmudistas
judeus se verão constrangidos a modificar sua lei em todos os sentidos modum
para tirar dela em cada tempo as soluções judiciais. Evidentemente, é na
determinationis, segundo seja ela a resultante de premissas da lex
história da Europa um evento capital; o direito volta a ser um ofício
profano". 19 naturalis, como conclusão de um silogismo, ou seja ela uma
. A divisão e a hierarquização da lei em três ordens. Tomás projeta uma
especificação
gradação da lei que liga profundamente o homem a Deus e Deus ao
homem por intermédio de uma série de ordens. A primeira é a lex mais precisa do que é afirmado em geral pela lex naturalis. O problema
aeterna: a lei eterna ou divina, isto é, a razão divina no sentido de Tomás,
pratico é o seguinte: devemos obedecer à lex humana, mesmo quando
que governa o mundo. Essa lei perfeita é igualmente desconhecida em sua
perfeição: o homem não pode ter mais do que noções parciais ela esteja em oposição à lex aeterna ou à lex naturalis? Ou ainda: a que

ponto o cidadão é forçado a obedecer às leis do Estado? Segundo a dou


20 Para uma análise detalhada das noções de lei eterna, lei natural e lei hu
trina tomista, é preciso obedecer à lex humana, mesmo quando ela vai
mana, ver Michel Bastit, op. cit., p. 79-92.
18 Especialmente M. Bastit, op. cito contra o21bem comum, quer dizer, mesmo que ela cause um prejuízo, e
G. Del Vecchio, op. cit., p. 62.
19 M. Villey, Bible et philosophie gréco-romaine, op. cit., p. 29-30.
isso para a manutenção da ordem propter vitandum scandalum vel
turbationem; mas não se deve obedecer quando ela implica uma viola
i:.
ção da lex divina contra Dei mandatum. Tal seria, por exemplo, uma lei

que impusesse um culto falso".


. Uma dupla reflexão sobre o sentido do que é a lei e sobre a justi
ça. As ordens sucessivas da lei que acabamos de examinar devem ser com

efeito remetidas a uma "pré-compreensão" do que é a lei enquanto tal.

No fundo, quatro elementos são suficientes para desenhar essa pré-com

preensão: a lei é uma disposiçãO da razão (e não da vontade), a fim de


assegurar o bem comum, vinda da instância responsável do que é comum

a todos, e deve enfim ser uma disposição tornada pública, quer dizer,
I
,
r 127
A HERANÇA JUDAICO-CRISTÃ
126 HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO

aristotelismo relativo se situa em um quadro não aristotélico: o da Re


"promulgada"22. No caso da lei divina, é claro que o que é justo o é
pelo simples fato de que o que é promulgado provém do próprio Deus.
No caso da lei humana, é necessário compreender uma nova articulação: velação.
confiante na razão humana, Tomás pensa em uma justiça legal possível Baseado nisso, pode-se apreender o movimento de evolução do
no sentido ou que seja orientada para a idéia de um Bem comum e
deduzida pela razão natural a partir dessa idéia do Bem. O aristotelismo pensaxnento escalástico. No grande modelo tomista, a razão é
de Tomás aparece neste traço: a justiça é uma construção da prudência,
em conformidade com a natureza das coisas. A concepção tomista do central, e
direito é inteiramente essencialista (o direito tem um fundamento racio- sempre o leva sobre a vontade. Ou ainda: razão e vontade são apenas
nal, ele existe em si, independente das vontades, ele é anterior ao indiví-
duo que o estabelece e ao Estado) e prudencial (o conteúdo do direito um, à imagem da Razão divina que não saberia querer contra sua Von
~:I:I

édeterminado pela razão humana especulativa e pela razão prática em seu tade. A transformação teológica realizada por Duns Scot (1265-1308) e
contato com o real). A ordem jurídica não é, nesse sentido, submetida a
uma norma moral ou natural preestabelecida em Tomás: existe somente por Guilherme de Ockham (1290-1349) recairá precisamente sobre o
pelas determinações prudenciais operadas pelo homem. Mas, uma vez que
estatuto da vontade. Scot vai afirmar que a liberdade do homem impli
o direito enquanto tal supõe a meta de um Bem, há nesta determinação
prudencial a construção simultânea de uma ordem jurídica e moral, com a ca na independência de sua vontade com relação à razão: não é mais a
justiça legal assegurando a realização e a execução dessa ordem. O que é razão que governa a vontade, mas sim a vontade que governa a razão,
notável em Tomás é esta conciliação permanente
da transcendência de Deus (e aqui, nesse sentido, da lei divina) e de uma ou como diz Scot, "comanda o intelecto". É apenas em Deus que a von
confiança imensa depositada na razão humana. O poder legislativo do tade coincide com a razão: a liberdade absoluta de Deus não pode ja
homem é portanto real para Tomás. O homem pode determinar de mais ser má, ao passo que a liberdade humana pode errar. Nos termos
maneira autônoma, racional e livre o justo positivo. Mas a confiança não
é cega: esse poder, seja ele bem compreendido, é ao mesmo tempo da breve apresentação que propusemos aqui do esquema bíblico, po
limitado e relativo: o homem não pode decidir realmente entre o justo e o der-se-ia dizer que, com Scot, o Mandamento se torna central com re
injusto fora do quadro de sua competência legislativa. Dito de outra
lação à lei. O que importa, para Scot, é amar a Deus, este mandamento
forma, ele não pode legislar contra a natureza, isto é, no sentido de To-
más, contra a razão, já que sua natureza é precisamente a de ser um sendo o único princípio do direito natural. Todos os outros mandamen
animal racional; e ainda menos contra a lei divina, já que esse tos (os dez mandamentos), dos quais podem derivar as normas positi
vas, são relativoS. A diferença de ponto de vista é clara entre Tomás e
22 Cf. Otto Hermann Pesch, comentando a Questão introdutória 90 de To-
Scot: Tomás, sendo aristotélico, examina o próprio sentido das noções
más em Thomas d'Aquin, Limites et grandeur de ia théoiogie médiévaie (1988),
trad. J. Hoffmann, Éd. du Cerf, 1994, p. 365. de direito
23 M.eBastit,
de justiça,
op. cit.,pensa
p. 227.em termos de restituição, de equilíbrio, de

eqüidade; Scot, por sua vez, estuda o equilíbrio a propósito da aplica


... ção dos mandamentos23. A inversão efetuada pelo "voluntarismo"
scotista é decisiva: o direito é identificável em ultima instância com a
vontade absoluta de Deus, que não é a natureza das coisas e que só é
sujeita ao seu próprio arbítrio. Nessa perspectiva, há em Scot um ponto
de vista muito radical: a lei suprema é sem lei, uma vez que ela não é
outra coisa senão a pura e simples liberdade da vontade divina. Nesse
sentido, a "lei eterna" é suprimida por Scot.
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HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO A HERANÇA JUDAICO-CRISTÃ
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Depois de Scot, o pensamento de Ockham coloca a essência da lei tanJo que não é aceito que Ockham tenha pessoalmente tido a influência
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I na decisão voluntária: a de Deus ou a do imperador. Mas a originalidade efetiva que se lhe atribui, tanto que seu nome é muito raramente citado
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famosa de Ockham consiste em uma extensão do alcance dessa fonte pelos teólogos juristas da segunda escolástica; a outra é metodológica,
"voluntarista" da lei: o próprio sujeito, quer dizer, o indivíduo, torna-se
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II
consistindo em se perguntar se é legitimo falar retros
H
também em certa medida um legislador. Sobre esse ponto, Ockham pectivamente de uma "teoria do direito subjetivo" de um autor que ja
lil
ultrapassa a doutrina de Scot. Contra a tradição augustiniana, e bem além
i l

mais tratou disso explicitamente. A análise crítica de Daniel Gutmann26


das proposições scotistas, Ockham vai exaltar a vontade humana. nos parece, pois, trazer aqui um esclarecimento preciso, porque come-
Fazendo isto, escreveu M. Bastit, ele "introduz entre os poderes que dido: "Em definitivo, o aporte de Occam27 à modernidade reside pro-
le vavelmente menos na definição que ele dá do direito subjetivo do que na
gislam uma oposição irredutível. Mais ainda, ele torna impossível a análise do processus pelo qual é constituído o direito objetivo e pelo qual
concepção de uma ordem entre as diversas leis. Mais além, ele cria uma este constitui os direitos objetivos. Colocando que o direito não pode
oposição definitiva entre o caráter geral e racional da lei e as decisões jamais ser declarativo, fundando sua doutrina sobre um voluntarismo que
individuais da vontade. Quando ele ensaia resolver o conflito, ele não faz encontra sua coerência em seu extremismo, o Franciscano anuncia sem
mais que reduzir a lei a uma disjunção de decisões particulares, como é o dúvida a estrutura do artificialismo político". Pela mesma razão, nós
caso para a lei natural"24. O voluntarismo individualista de Ockham pudemos ressaltar aliás que seria exagerado ver na obra política de
conduz a um subjetivismo formalista, cujo efeito será funesto, aos olhos Ockham uma antiforma do "contrato social"28.
de Villey, sobre a formação do pensamento jurídico moderna? Pode-se Em contrapartida, a prefiguração das teorias do contrato social é
certamente preferir, como Villey, o modelo tomista e sua inscrição da bem mais clara em Marcílio de Pádua, contemporâneo de Ockham. Bem
Revelação na natureza das coisas. Mas é preciso reconhecer que a cor- mais "laico" que Ockham, Marcílio projeta uma doutrina política que
rente inaugurada por Ockham terá uma profunda repercussão na busca apresenta a demonstração de que o poder político é uma emanação do
da filosofia do direito. É a partir do indivíduo que o direito se elabora, povo que, por isso, pode reivindicar a soberania. Ainda sobre essa ques-
diz Ockham, e se ele consiste em regras universais, não sobressaem em tão, é preciso desconfiar das simplificações históricas retrospectivas: uma
seguida senão sua forma e sua validade lógicas. Nesse sentido, a questão visão doutrinária não é forçosamente anti-religiosa. As intenções dos
da essência geral do "justo" é em grande parte esvaziada, pelo menos da pensadores que prefiguram as teorias do contrato são múltiplas. Assim,
forma como se revestia em Tomás. A invenção de Ockham parece ser a no século XV; a inspiração "contratualista" se encontra na De
de um direito subjetivo, poder natural do indivíduo sancionado pelo Concordantia catholica de Nicolas de Cuse (1433). Ora, como ressalta
direito positivo. Esta é pelo menos a tese de Michel Villey. Não é proibi Giorgio DeI Vecchi029, na medida em que "ela tendia a subordinar a
do apontar aí nuanças, sob a forma de objeções25: uma histórica, ressal autoridade do

24 Ibidem, p. 303. 26 Ibidem, p. 27.


2S Daniel Gutman, "La question du droit subjectif chez Guillaume d'Occam': 27 As duas ortografias são utilizadas: Ockham ou Occam.
in Le droit des Modernes, Estudos publicados sob a direção de Stéphane Rials, 28 ]. C. Billier, Le pouvoir, op. cit., p.145-9.
.
2 O'P. Clt.,
LGD], 1994, p. 11-29. 9 p. 67.

k:.,
,1 130
HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO A HERANÇA JUDAICO-CRISTÃ 131

príncipe ao consentimento popular, a teoria do contrato social, mais ou


cosmoteológica do direito, que caracteriza o primeiro pensamento
menos amplamente entendida, pode em certos momentos se enqua
medieval e que ainda ilumina a arquitetura tomista, a busca pelos fun-
drar nos objetivos da Igreja. É assim que alguns escritores jesuítas rei
damentos do direito vai, com efeito, abandonar cada vez mais a refe-
vindicaram a autoridade do povo, entre o século XVI e o XVII, como
rência à "natureza das coisas" para substituí-Ia por uma "natureza do
Bellarmin, Molina, Mariana, Suarez': A evolução é desta vez muito clara,
homem". Nesse sentido, pode-se ler no final da Idade Média um advento
e ela parece decisiva para a construção da modernidade jurídicopolítica:
da modernidade. Os pensamentos de Duns Scot e de Guilherme de
trata-se de pensar o direito como instrumento contra o absolutismo. Como
Ockham são assim grandes lances fora do quadro cosmoteológico tra-
a motivação, diferente, mas não oposta, dos "Mo
dicional: o voluntarismo anda junto com um convencionalismo, com um
narcômacos" protestantes era a de combater o absolutismo, estes terão
reconhecimento da arte, ou do artifício, de que é capaz a inteligência
por objetivo demonstrar que o poder dos príncipes é limitado juridica-
humana. Certamente, Scot e Ockham atribuem sempre à vontade divina
mente pelo contrato de origem. Esse movimento dos Monarcômacos
um lugar eminente: nisto, é proibido pensar que o nominalismo e o
(literalmente "adversários dos monarcas") protestantes, que certamente
voluntarismo já são positivistas. Mas não é próprio de uma mutação
pretende fazer respeitar seu direito à diferença religiosa no seio do
conciliar o Antigo e o Novo?
Estado e então demonstrar o caráter inviolável de certos direitos, em
Da via antica à via moderna se desenha, pois, uma transição com-
particular o da liberdade de confissão e de culto, anuncia gradualmente
plexa, da qual a Renascença foi historicamente o teatro principal. A montante, a
uma construção jurídico-política destinada a validar que o Estado
mistura do Antigo e do Novo existe na segunda escolástica. O caso da Escola de
tenha por função garantir os direitos fundamentais. Essas evoluções,
Salamanca é bastante exemplar. Francisco de Vitória dá um "passo à frente"
como o pensamento de Ockham, têm um estatuto ambíguo: aí se encontra
quando antecipa o que se chamará bem mais tarde de direito internacional
com toda a evidência as premissas da via moderna, como escreve
público: reconhecendo aos índios das Américas o direito de usufruir suas
S. Goyard-Fabre3°, mas seria muito exagerado afirmar por isso que o
terras e sua vida, ele o faz em nome de um retorno ao tomismo, quer dizer,
Estado soberano se tornaria a estrutura preponderante na Europa oci
invocando um "direito natural" aristotélico-tomista das comunidades políticas. A
dental desde o início do século XlV, por exemplo, ou que a limitação do obra de Suarez vem, ela também, em seguida a de Vitória, para o modelo
poder do Estado pelo direito já estava então claramente teorizada no tomista. Como aval, a Reforma Protestante e a busca luterana de um
sentido moderno: os Monarcômacos não são os constitucionalistas ale- direito natural do qual o homem seria a sede. A defesa, que já evocamos, do
mães do século XIX ou os Carré de Malberg da Idade Média! O que se direito à liberdade religiosa e de uma esfera que o Estado não deve invadir é uma
opera é nada mais nada menos que uma mutação profunda da qual é temática profunda da Reforma que terá impacto certo sobre a modernidade po-
preciso ressaltar os traços marcantes. lítica, ou, para ser mais preciso, sobre as concepções do Estado no liberalismo
Esta mutação pode sem dúvida ser caracterizada como uma político. Mas ainda é necessário se prevenir de diagnósticos muito simples. Por
antropologização do direito3l. Em ruptura progressiva com a fundação um lado, com efeito, este combate não foi próprio dos movimentos reformistas,
porque a Igreja Católica Romana, de seu lado, não havia cessado de defender
suas prerrogativas com relação ao Poder temporal; por outro lado, porque as
30 S. Goyard- Fabre, Les principes philosophiques du droit moderne, PUF, 1997, p. 9. 31 S. Goyard- vozes reformadoras foram
Fabre, Les fondements de I' ordre juridique, PUF, 1992, p. 65.

Â1
t;
r 133
132 HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO A HERANÇA JUDAICO-CRISTÃ

múltiplas, indo de um Lutero que capitulou muito depressa diante do será verdadeiramente um paradoxo que uma religião fundada sobre o
Estado, considerando sem dúvida que os alemães de seu tempo eram dom da liberdade de Deus ao homem avance na direção de uma
incapazes de tomar eles próprios a direção de seus destinos espirituais32, autonomização aumentada das esferas do agir humano? A herança ju
a um Calvino defendendo vigorosamente as prerrogativas espirituais do daico-cristã pode parecer nesse sentido não uma "fundação" muito
consistório de Genebra, principalmente o direito de excomungar, ou um antiga, mas um movimento muito crítico extremamente propício ao
John Knox organizando a Igreja Escocesa fora do controle do Estado. Ao
direito, já que parece invocar a todo momento a possibilidade de julgar
final, a transição ocorre sobre poucas questões, mas essenciais:
- a limitação do poder do Estado e o reconhecimento de uma em nome da liberdade.
autonomia das esferas de valor no seio do Estado;
- a passagem de um paradigma originário da Antiguidade e re-
visitado pelo cristianismo, de um "direito natural" ligado a uma "natureza
das coisas desejadas por Deus" (com os dois membros dessa expressão
operando a fusão entre o direito natural antigo e o direito natural da
primeira escolástica, cujo modelo perfeito é a teologia de Tomás) para um
novo paradigma ligado agora à natureza humana. O movimento que se
esboça é aquele de uma desnaturalização do direito natural, já que, no
final, não se buscará mais fundamentá-Io na ordem da Natureza ou na
ordem de uma Sobrenatureza divina. A esse respeito, as antecipações de
Ockham apontam para uma atenção aumentada sobre o poder racional do
homem;
- o advento da modernidade, pela via das evoluções da teologia
política, anuncia-se sob os três gêneros, humanismo, individualismo e
racionalismo. É certamente paradoxal que a herança judaico-cristã pareça
chegar a negações de si mesma: o divino conduz ao humano, a
comunidade ao indivíduo, a fé à razão? Pode-se evocar aqui a leitura neo-
weberiana de Marcel Gauchet em Le désenchantément du monde33, a de
um cristianismo concebido como "religião da saída da religião': Mas

32 Como sugere Jean Delumeau, Naissance et affirmation de Ia Réforme, PUF,


1965, reed. 1994, p. 37l.
33 Le désenchantement du monde, Gallimard, 1885.

~
I
I

A CONSTRUÇÃO DA MODERNIDADE 135

5
chocam in fine sobre o estatuto inevitavelmente central e fundador da lei
CApíTUlo divina: em última instância, a lei é um mandamento do superior ao
inferior, de Deus aos homens, ou do Rei ao povo. A passagem a uma
antropologização efetiva do direito supõe então um novo tipo de apreen-
são do homem e do mundo, um novo modelo de inteligibilidade: tudo
isto aparece claramente no século XVII, com a mutação galileana seguida
A CONSTRUÇÃO DA MODERNIDADE da cartesiana. O mecanismo físico se torna um modo de apreensão do
mundo natural, e o processo de racionalização vai logo se estender ao
domínio jurídico-político. Uma vez que esta parte de nossa exposição da
evolução da fllosofia do direito se vê indicativa de momentos julgados
maiores e não visa a nenhuma exaustão histórica, designaremos aqui
primeiro as doutrinas de Grotius e de Hobbes como os dois novoS
modelos de apreensão do direito que instauram a modernidade. Depois
daremos ênfase a algumas doutrinas maiores que construíram a
modernidade.
1. A ANTROPOLOGIZAÇÃO DO DIREITO

Um grande teólogo da segunda escolástica como Suarez não poderia 2. GROTIUS


contemplar uma verdadeira antropologização do direito. Em sua doutrina,
observa-se, por exemplo, uma consideração crescente da soberania
o De Jure Belli ac Pacis de Grotius (ou Grócio) data de 1623-1625.
popular, mas o poder que pertence ao povo é dado por Deus e deve ser
Como Tomás, Grotius se apóia largamente sobre a fllosofia de
essencialmente transmitido ao rei. Certamente, o pensamento de Suarez
Aristóteles, mas ele tira dela conclusões diferentes. Partindo da idéia
contém uma profunda desestruturação do modelo tomista1. O direito
aristotélica de um desejo natural do homem de viver em sociedade e da
natural tende a se tornar racional: a ratia naturalis substitui a
tese segundo a qual a natureza do intelecto humano implica que o homem
lei natural, sem que desapareça a referência última à lex aeterna. Da
deseja uma sociedade pacífica, ele estabelece os princípios do direito
mesma forma, o voluntarismo suareziano que exige que a lex aeterna
natural, um direito "tão imutável que não pode ser mudado pelo próprio
implique necessariamente, para o homem, no recurso à liberdade, não
Deus". É preciso apreender a lógica dessa conduta, que está ligada a um
apaga certamente a ancoragem na Revelação. Assim, como observamos
contexto histórico bem preciso. Durante toda a Idade Média, dois grandes
no capítulo precedente, as evoluções teológico-políticas bem reais se
poderes haviam exercido uma espécie de hegemonia acima de cada
Estado: a Igreja e o Império. São essas duas grandes instâncias, ao preço
de fortunas e de equilíbrios diversos a favor de um ou de outro, que
I Jean-François Courtine, Nature et empire de [a [Di, Études suaréziennes,
Vrin,1999. tinham, de alguma maneira, regulado isto que hoje poderíamos chamar de
"relaÇões internacionais". Na época de Grotius, os projetos do Império
ou da
...
136
HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO A CONSTRUÇÃO DA MODERNIDADE 137

Igreja de exercer um poder universal são revistos. Trata-se então de pen contrato pelo qual o povo transmite seu poder aos governantes, esse povo
sar a novas expensas o regulamento pacífico possível de relações entre as perde o direito de controlar ou de punir os governantes. Grotius vai negar
comunidades políticas. É por isto que Grotius vem para o direito: a fim de até que o objetivo de um governante seja o bem dos governados, e deixa
descobrir princípios capazes de fixar relações jurídicas entre esses Es um pouco obscura a questão de saber se os governantes são
tados. O direito não é então outra coisa senão o meio racional e natural verdadeiramente ligados pelas promessas feitas aos sujeitos da comu-
(porque conforme a natureza de um ser dotado de razão: o homem) de nidade política no momento do pacto. Chega-se a um dilema que é a
assegurar a paz. A modernidade de Grotius consiste igualmente em extrair grande dificuldade interna da doutrina de Grotius: se a promessa e sua
esse direito natural da teologia: não só o direito natural, como dis observação inviolável são a própria forma do direito natural, compreen-
semos, não poderia ser mudado por Deus, mas também, precisa Grotius, de-se mal como o direito natural pode, também, chegar sem contradição
ele existiria mesmo se Deus não existisse! A simples "sociabilidade" na às violações da promessa e, o que é ainda mais espantoso, à ausência
tural do homem é suficiente para ser uma condição de constituição do mesmo de promessas, uma vez que, sobre este último ponto, Grotius
direito: porque dela derivam "formas" jurídicas. Por exemplo, a precisa bem que o direito natural é válido mesmo sem promessa. Nós
inviolabilidade de um pacto: se admitíssemos que um pacto pudesse ser subscrevemos aqui a análise de Giorgio Del Vecchio: o contrato social
violado, a sociedade não seria possível. Desde então, o pacto é um ato não tem verdadeiramente valor racional no sistema de Grotius, pois
jurídico legítimo e racional, porque é por estar profundamente de acor representa uma espécie de expediente destinado a ratificar um fato es-
do com a sociabilidade que ele torna possível e ao mesmo tempo realiza. tabelecido, o da obrigação de obediência dos governados para com os
A forma do pacto servirá tão bem à dimensão internacional, implican governantes. O fundo do debate se situa além: o direito natural não tem
do a inviolabilidade dos tratados internacionais, como à dimensão nacio- qualquer sentido "defensivo" em Grotius, quer dizer, qualquer senso de
nal, isto é, à constituição de uma comunidade política de forma justificação de uma defesa de direitos do indivíduo ou da comunidade
contratual. Nós estamos na presença de uma teoria do contrato. contra um governo tirânico. Se a modernidade de Grotius reside na ra-
É importante compreender, porém, que entre as numerosas dou- cionalização antiteológica da questão do direito, seu aspecto antimoderno
trinas do contrato social, a teoria de Grotius ocupa um lugar particular. (se podemos chamar assim) aparece na posição tortuosa que ele adota
Com efeito, numerosos teóricos do contrato social adotaram abertamente contra os Monarcômacos e, em particular, contra Althusius, que
este artifício metodológico (o pacto civil) como tal: como hipótese reivindicava o direito dos povos de retomarem a soberania original: para
ou como princípio regulador. Grotius pensa o contrário, que o contrato Grotius, o contrato social tem um valor definitivo, o que parece não ter
outro objetivo senão demonstrar que o povo tem uma obrigação absoluta
social ocorreu, que ele é um fato histórico: o que implica imediatamente
e perpétua de obedecer o soberano. O lugar intermediário que Grotius
que ele não pode ser único, mas é belo e historicamente ligado a cada
ocupa na história da filosofia do direito, e que vai nos remeter
comunidade política particular. Para ele, toda a constituição de um
imediatamente em direção a Hobbes, é muito sinteticamente definido por
Estado foi precedida de um contrato social por meio do qual cada co-
Alfred Dufour2: "O que parece caracterizar de fato
munidade política escolheu sua forma de governo. Desde então, cada
uma dessas formas, embora se possa pensar no grau de excelência, adqui
riu certa legitimidade: cada povo tem o direito (natural) de escolher o
modo de governo que prefere. Em contrapartida, uma vez passado 2 AlEred DufoUf, Droits de l'homme, Droit naturel et Histoire, PUF, 1992, p. 60.
o

..
138 139
HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO A CONSTRUÇÃO DA MODERNIDADE

a doutrina de Grotius do direito natural no século XVII é, em primeiro rano. Nesta imagem muito complexa do contrato, é preciso sem
lugar, uma nítida delimitação da autonomia da razão com respeito à dúvi
Revelação. É por ali que o direito natural de Grotius se situa entre a
da apreender antes de tudo o refinamento metodológico: tudo se ba
corrente dogmática do direito natural cristão, tanto protestante quanto
seia em uma "desconstrução" do estado de natureza para chegar a uma
católico, que tende a subordinar, de Calvin a Suarez, o direito natural ao
direito divino positivo, e a corrente racionalista do direito natural construção do estado civil ou político como estado artificial. O que nos
moderno, que tende a eliminar, de Hobbes a Thomasius, o direito divino parece complexo e merece ser realçado é que o estado de natureza, sen
positivo da ordem jurídica assim como a Revelação da ordem do do uma hipótese metodológica, "desenha" o estado real. O método de
conhecimento': Hobbes consiste em realizar uma espécie de annihilatio mundi - de
aniquilação ou de "decomposição" do mundo, do real- que faz do real
uma ficção. Em suma, essa realização da desconstrução, que reduz o
3. HOBBES estado real à posição de uma ficção, tem "por objetivo mostrar que o
conhecimento não revela imediatamente o mundo, mas somente nossas
É particularmente difícil apresentar a originalidade da doutrina representações. Toda afirmação concernente às coisas não será mais
político-jurídica de Hobbes em poucas linhas, em razão de sua que o produto de uma inferência racional a partir da representação"3.
sobredeterminação: ela se tornou o emblema da mutação em direção à a Ao término da desconstrução (estado de natureza) seguida da constru
modernidade, como pode ser igualmente, em um sentido diferente, a de ção (estado civil ou político), há um modo de reconhecimento da fic
Maquiavel. Se quisermos tentar desenhar muito brevemente as inovações ção como ta14: o artificialismo de Hobbes é uma ruptura metodológica
de Hobbes, pode-se reter três pontos essenciais: que substitui o fundamento cosmoteológico da lei pela pura vontade
- um racionalismo radicalizado, que exporta para o campo jurídico- de uma reconstrução racional do real.
político as estruturas e, sobretudo, as ambições da jovem ciência me Para Hobbes, o homem não é sociável por natureza: ao contrário,
canis ta de seu tempo; ele é naturalmente egoísta e animado pela busca única de seu interesse
- uma redefinição da idéia da lei natural; individual, com menosprezo pelo interesse dos outros. Caso se consi-
- uma transferência maior, a de um direito natural concebido à derasse o homem governado somente pela sua natureza, a condição
maneira antiga, ou neo-antiga, fundado sobre uma ordem cósmica ou coletiva seria um estado de guerra permanente entre os indivíduos pro
cosmo teológica, para um direito natural concebido como uma qualifi- vidos de uma liberdade absoluta. O contrato interindividual só poderáser
cação subjetiva, baseada na natureza do homem e principalmente no motivado pela busca da segurança: a fim de escapar do estado de guerra e
princípio da conservação de si mesmo. garantir a segurança, é preciso que cada indivíduo aceite renunciar à
A modernidade de Hobbes está primeiramente em seu método. liberdade. Sobre esta descrição da mais célebre passagem da filosofia de
Todo mundo conhece a famosa construção hipotética do contrato social: Hobbes, façamos duas breves observações. Em primeiro
a hipótese metodológica do "estado da natureza", o pacto concluído
3 Y. C. Zarka, La décision métaphysique de Hobbes, Vrin, 1987, p. 40.
segundo o motivo essencial da "segurança': quer dizer, da conservação de
4 Poder-se-ia sustentar que é também um tema barroco: Anne-Laure
si, que atinge a instauração do Estado- Leviatã absolutamente sobe Angoulvent, Hobbes ou ia crise de i'État baroque, PUF, 1992.

...
r origina-se no contrato. Que ele seja encarnado por um "homem ou uma

assembléia", precisa Hobbes, pouco importa se pelo menos ele possui141


A CONSTRUÇÃO DA MODERNIDADE
140 HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO
este título de soberania absoluta que se mede no sentido exato do pac

lugar, notemos que tudo se efetua em Hobbes sobre o modo do absoluto: to: OS indivíduos concluíram um contrato inter pares, entre indivíduos
no estado de natureza, o indivíduo está provido de um direito natu- iguais no estado de natureza, e assim transmitiram integralmente seu
ralmente ilimitado, o jus omnium in omnia; sendo esse direito natural
inviável, ou mais exatamente, comportando uma espécie de contradição poder ao Estado. Desde então, não haverá jamais um "segundo contra
performativa (a liberdade absoluta implica a morte, por ausência radical to" entre o próprio Estado e os indivíduos: o soberano não concluiu e
de segurança, e então a morte da liberdade: o direito natural deixado a si
mesmo se aniquila como direito), o indivíduo deve operar uma renúncia não concluirá jamais o menor pacto com seus subordinados. Ao con
absoluta. Com Hobbes, nós estam os em um pensamento do trário, sua soberania se mede pelo fato de que, juridicamente, ele tem
incondicional: o "direito natural" incondicionado do estado de natureza
sozinho o poder de fazer e de desfazer as leis, ou seja, ele jamais
não pode se resolver a não ser por uma renúncia incondicional a favor do
Estado- Leviatã. Em segundo lugar, comparemos brevemente as doutrinas está li
de Hobbes e de Grotius. O ponto de partida é o mesmo: a necessidade de gado às leis que ele próprio faz. A soberania hobbesiana é por isso
paz, o motivo absolutamente central da segurança. Mas as respostas são
absolutamente diferentes. Grotius construiu de alguma maneira o ex lege e supra legem. Nesse nível de leitura, Hobbes faz um prelúdio
paradigma do pluralismo político: segundo ele, os contratos são à
múltiplos, pois são livremente formados por cada comunidade política
doutrina positivista estadista do Estado legislador e centralizador. Não
particular. Nesse sentido, a via hobbesiana de total renúncia a todo direito
individual no contrato não é senão um dos múltiplos possíveis do contrato pode haver o "justo natural" nesse sistema, apenas um justo legal. Além
social. Hobbes, por sua vez, desenha um paradigma monológico: o disso, sendo o soberano o legislador único, somente a lei é jurislatricia:
contrato é único, fixo, e não pode consistir em outra coisa senão uma
é a lei que determina o direito. A juridicidade de um ato pode residir
subordinação absoluta e incondicional dos indivíduos à autoridade do
Estado-Leviatã. Em suma, não é exagero sublinhar aqui que entre Grotius apenas na sua conformidade com uma lei civil que somente o soberano
e Hobbes a "modernidade" se inverte sobre este ponto central: o tem o poder de colocar. Este quadro muito "positivistà' do legalismo
pluralismo político é grotiano, o absolutismo é hobbesiano. centralizador hobbesiano deve contudo ser amenizado.
Compreende-se então a construção do direito proposto por Hobbes, Com efeito, pelo menos sobre três pontos aparecem limites níti
que tem sua fonte na soberania absoluta do Estado- Leviatã e que
dos à instituição positivista que se manifesta na doutrina de Hobbes:
reconduz à República de Jean Bodin (1576). Somente o Estado tem o
poder de dizer o direito: a soberania se mede por este poder de definir as 1. Mesmo recusando o dualismo da tradição jusnaturalista clássi
"regras e medidas': Somente o Estado tem o poder de comandar, já que a ca entre "direito natural" e "direito positivo", Hobbes conserva em seu
lei é um mandamento. Ora, uma vez que aquele que comanda não o pode sistema o paradigma central de uma "lei de naturezà', embora ela adqui
fazer senão "de direito", trata-se de demonstrar absolutamente a ra um estatuto muito pouco naturalista por ser doravante uma "con
legitimidade do poder, o fundamento que torna válida a lei. Esse poder, clusão ou um teorema da razão", como o diz o capítulo XV do
que é um poder absoluto e soberano, summum imperium,
Leviatã.
A função dessa lei de natureza permanece, contudo, absolutamente cen
k
2. A doutrina de Hobbes não pode ser assimilada ao positivisl11o
I
142
jurídico se este admite uma autolimitação constitucional do Estado,
r HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO 143
A CONSTRUÇÃO DA MODERNIDADE
o
,
que será o caso em certas formas modernas de positivismo jurídico. espinosiana se dá, em toda a sua filosofia, com o dualismo e com o
transcendentalismo. A filosofia de Espinosa é decididamente monista e
O
imanentista. A lei só tem sentido em uma perspectiva imanente (assim
absolutismo de Hobbes se aproxima mais de um decisionismo, e se também a lei científica e jurídica), como Espinosa sustenta em uma carta
a Jarig Jelles de 2 de junho de 1664. O Deus sive Natura espinosiano não
oPõe é nem legislador nem está submetido às leis. Esta tese opõe Espinosa
radicalmente nesse sentido às doutrinas modernas da auto limitação do tanto a Suarez e mais tarde a Leibniz quanto ao pensamento de Ockham
ou de Descartes. O primeiro paradoxo é que a lei não pode ser entendida
poder do Estado pelo direito, uma vez que ele constitui filosoficamente exclusivamente no sentido jurídico: é lei aquilo que corresponde a uma
relação necessária constitutiva da realidade. Então, se o direito natural
uma tomada de posição forte a favor de uma indivisibilidade absoluta não é outra coisa que o poder se afirmando corno uma necessidade física
da soberania.
(o jus de um indivíduo é igual a sua potentia) fica difícil entender corno a
própria palavra direito, no sentido positivo, possa conservar algum
3. Enfim, o estatuto do sistema jurídico-político hobbesiano não é
sentido. Espinosa propõe então conciliar sua revolucionária ruptura
contra o transcendentalismo teológico com urna base relativa de direito
assimilável à tese positivista da neutralidade axiológica do sistema
positivo humano, que provém de um acordo recíproco entre os homens.
do O pacto (hipotético) humano, fundador do direito e do Estado, é ditado
segundo ele pelo interesse dos indivíduos: por conseqüência, na versão
direito. A tese de Hobbes permanece bem mais política que espinosiana do contrato, cada um conserva a possibilidade de romper esse
pacto se o julga contrário ao seu interesse. Háoutro paradoxo aqui: o
jurídica: ele
direito natural espinosiano não é mais que a expressão, ou a extensão, do
defende uma teleologia das leis, uma vez que a essência das leis e das conatus do ser humano, de sua tendência natural de perseverar em seu
ser, ao qual não pode desobedecer. O que pode um corpo é seu direito,
instituições estadistas deve ser definida pela visão da paz. Em Suma,
escreve Deleuze comentando Espinosa: "A teoria do direito natural
além implica a dupla identidade do poder e de seu exercício, deste exercício e
do direito. [...] A palavra lei não tem outro sentido: a lei de natureza não é
de todo o relativismo histórico, o Estado deve visar em tudo e sempre a
jamais urna regra de deveres, mas a norma de um poder, a unidade do
paz, quer dizer, a conservação e a segurança dos indivíduos. Se esta vi direito, do poder e de sua realizaçã05': Em suma, em termos certamente
é aquela de um salus poluli, o edifício hobbesiano tem, pois, um não espinosianos, ser e dever-ser se confundem.
4. são
ESPINOSA
telas:
o Estado, sendo um
O pensamento de "Deus mortal':
Espinosa é em deve fazer
muitas a salvação do
considerações povo, fazer
original,
mesmo do
a salvação paradoxal,
homem quanto à questão
(notar-se-á do Hobbes,
que, em direito. Aa Igreja
grandeéruptura
categori 5 Gilles Deleuze, Spinoza et le probleme de I' expression, Minuit, 1968, p. 237.

camente e incondicionalmente subordinada ao Estado). Sobre este pon


..
~ 144 HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO
r A CONSTRUÇÃO DA MODERNIDADE
145

Ora, se o indivíduo, em nome deste direito natural, pode cancelar o pacto, po todo ao direito natural, mas tudo parece, mais uma vez, correr o risco
fica comprometida a validade objetiva deste. Se os homens estão efetivamente de se diluir: o direito natural espinosiano não é "subjetivo", ele não tem
determinados a agir segundo seu maior interesse, como o pacto poderia ter
conteúdo obrigatório, e por que se poderia cancelá-Io em nome do interesse,
um sujeito claramente designáveF. Espinosa o reconhece para todos os se
supondo uma espécie de erro possível na determinação? O enfoque espinosiano res, inclusive para os animais. O caráter imanentista e global do direito
do direito parece diluir um pouco o seguinte: ele mais anuncia a introdução da
na
noção de lei na física de um Newton (Principia,
1687) do que constrói uma teoria do direito (o que seria totalmente contraditório tUral
5. PUespinosiano
FEN DORF parece esvaziá-Io de toda normatividade.
com o monismo). Da mesma forma, o argumento assaz entusiástico de Espinosa, Titular da cátedra de direito natural, criada por ele na Universida
segundo o qual o Estado não pode impor limites àliberdade natural de
de de Heidelberg, depois na Universidade de Lund, na Suécia, o
consciência, é ambíguo: Espinosa não diz que o Estado não deve impor tais
limites, mas que, muito simplesmente, ele não pode, porque o pensamento é alemão
naturalmente incoercível. Este fundamento da liberdade de pensamento, a Samuel Pufendorf retoma de Grotius a idéia de urna tendência natural
despeito de seu impacto sobre a história das idéias políticas, será suficiente? Não,
I responde Giorgio Del Vecchio: "Basta observar que se esta liberdade era
do homem a se associar, e de Hobbes, a idéia do interesse essencial do
materialmente inviolável, teria sido supérfluo reivindicá-Ia contra as opressões indivíduo no pacto de associação, assim como a tese de um Estado cujo
I1I1

seculares. Se não podemos atingir o objetivo é assegurar a paz e a segurança. A doutrina de Pufendorf re
próprio pensamento, pode-se atingi-Io em suas manifestações, em seu substrato
presenta muito bem a tendência clássica do direito natural, com as am
de ordem física e na própria vida do sujeito pensante6': Definitivamente, a
grandeza imanentista e monista do pensamento espinosiano, que lhe permite bigüidades que ela comporta: o estado de natureza oscila aqui entre dois
romper com a teologia clássica com uma radicalização sem precedente estatutos, o de um momento histórico anterior à existência do Estado,
(Tractatus theologico-politicus de 1670), parece antitética com um exame do o de uma hipótese metodológica correspondente ao que seria a condi
direito de outra forma que não seja uma reflexão sobre os meios de respeito às
ção do homem sem o Estado. Uma vez que o direito natural conservará
leis: elas deveriam se impor necessariamente, mas o homem de paixões precisará
do medo da forca para não as infringir, enquanto o homem de razão saberá um primado sobre o direito positivo no sistema de Pufendorf, tudo se
aceitá-Ias penetrando-as de conhecimento racional. A relação estabelecida por 6. LOCKE
prende à validade da hipótese primeira, o que valerá à escola clássica do
Espinosa entre as leis que "dependem de uma necessidade da natureza" e as que direitoAnatural severas críticas.
filosofia de Locke é de uma amplitude totalmente diferente. Pre
"dependem de uma decisão humana': quer dizer, entre o jus naturae e o jus civile,
cisamos primeiramente situar Locke brevemente em seu contexto
é o da particularização: as segundas são casos particulares das primeiras. Tudo
remete o tem his

7 Cf. Gérard Courtois, La /oi selon Spinoza et saint Thomas d'Aquin, Archives
de Phi/osophie du droit, n. 7, Sirey, 1962, p. 170.
6 G. Dei Vecchio, op. cit., p. 87.

It..
146 147
HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO A CONSTRUÇÃO DA MODERNIDADE

tórico e filosófico. Historicamente, estamos mergulhados na época da indivíduos. A submissão ao poder público não é jamais incondicional:
grande Revolução Inglesa de 1688 (Locke nasceu em 1632 e morreu em elo contrário, os direitos naturais fundamentais são a condição per
1704). Esta revolução, muito freqüentemente passada em silêncio na ~anente do exercício do poder e da aplicação e do respeito às leis posi
tradição francesa, implementou um sistema eficaz dos direitos do povo tivas. Com essa tese de um Estado concebido expressamente como
e do Parlamento frente aos da Coroa. No clima de debate político e filo-
garantia dos direitos individuais, Locke funda o paradigma do
sófico antes e durante a revolução, pelo menos duas tendências se de
libera
frontam: uma absolutista, na linha de Hobbes, a outra liberal lismo político, mesmo que ele tenha tido precursores, principalmente
,
entre os Monarcômacos protestantes ou no católico Marcílio de Pádua.
r
epresentada por Robert Filmer, John Milton, Algernon Sidney e prin- É verdade que restam dificuldadesB no seio da doutrina lockiana.
cipalmente John Locke. Mais atrás, é preciso igualmente remontar a um Assim, Locke enuncia que um acordo da maioria equivale a um ato da
tratado de Richard Hooker (Df the Laws of ecclesiastical polity) publica sociedade inteira. Nesse sentido, um voto majoritário poderia tirar de um
do a partir de 1594, que, embora conferisse ao rei da Inglaterra o poder indivíduo, de um grupo de indivíduos ou até mesmo da comunidade
supremo em matéria eclesiástica, afirmava que o poder político é fun- política em seu conjunto o direito suposto inalienável à propriedade
dado sobre o consentimento da sociedade civil inteira. Locke retomou de privada. Em suma, a conciliação da democracia sobre o modo de um
Hooker este tema da ilegitimidade de um poder político se ele não é governo da maioria e a garantia dos direitos "inalienáveis" não é exata, da
fundado sobre o consentimento comum. Democrata e liberal, enquanto mesma forma que parece muito problemática a impossibili
Hobbes era absolutista e favorável à monarquia, Locke justifica con- dade para um indivíduo no sistema lockiano de revogar um governo, que
sideravelmente em sua obra a evolução política da Inglaterra de seu não é mais que seu mandatário, assim como se supõe que todo o
tempo. Contra Hobbes, o ponto de partida lockiano consiste em sustentar edifício repousa sobre um caráter inalienável da esfera dos direitos do
que o homem é naturalmente social: o estado de guerra hobbesiano lhe indivíduo. Contudo, com Locke, a filosofia política e jurídica é animada:
parece imaginário. Na estrutura clássica do binômio estado seu telos não é mais a "segurança", quer dizer, a ordem, como em
de natureza e estado civil ou político, Locke começa por reinvestir o Hobbes, o que é uma espécie de inquietante tautologia (a ordem jurídi
estado de natureza de direitos fundamentais: à liberdade, ao trabalho, à ca teria por objetivo assegurar a própria ordem, chamada de "paz" na
propriedade privada, que não é outra coisa senão uma extensão da pro- perspectiva teleológica da lei de natureza hobbesiana); mas sim de visar o
priedade que tem cada um de seu corpo e do fruto do trabalho de seu máximo de liberdade para o indivíduo. Com Locke, parece se efetuar
corpo. O contrato lockiano tem então um objetivo fundamental de pre uma notável tomada de consciência da modernidade política por ela
servação: trata-se de garantir estes direitos naturais no direito positivo. mesma: o direito, que comanda, prescreve, limita etc., em sua própria
Para existir, uma autoridade pública deve ser investida. Mas esta se verá essência, tem também fundamentalmente por essência assegurar a
estreitamente ligada aos direitos que deverá garantir: se ela abusa do liberdade. Esta essência aparentemente antinômica vai atravessar
poder que lhe foi confiado, o povo conserva permanentemente a possi- doravante o pensamento político, mas também, em diversos graus, as
bilidade legítima de reconquistar sua soberania. Em Locke, tudo consiste instituições no desenvolvimento histórico do liberalismo político.
em uma bilateralidade da obrigação política: a obrigação dos súditos de
obedecer aos direitos positivos editados pelo Estado se afirma apenas na 8 W. Friedmann, Théorie générale du droit, op. cit., p. 76

obrigação do Estado de respeitar os direitos naturais dos

...
1 148 HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO
r A CONSTRUÇÃO DA MODERNIDADE
149

"
Z ROUSSEAU nica da sociedade com a noção de contrato social, o qual, quer sob a
I
1i forma absolutista ou democrática, quer empregado como explicação
A doutrina contratualista de Rousseau é ao mesmo tempo a mais histórica OU como construção hipotética da razão, é uma concepção
conhecida e a mais mal conhecida. Mesmo excetuando ao menos o erro
atOmista e individualista"9. Parece-nos que esta crítica procede, se con
muito freqüente que consiste em confundir o estado hipotético de na-
tureza com não se sabe qual paraíso perdido de bons selvagens, perma- siderarmos uma característica notável em Rousseau: em sua filosofia
nece ainda a questão de saber qual é a especificidade desta teoria do
política, a racionalidade nunca vai emparelhada com a individualida
contrato. Recordemos o desdobramento do método: o estado de natureza
é em primeiro lugar uma hipótese metodológica, que não corresponde à de, mas muito com a socialidade. A soberania não é outra coisa senão a
menor gênese histórica de um Estado e que responde à simples "razão pública"lo e a vontade geral é a razão pública. O Soberano é cons
necessidade racional de estabelecer o modo de constituição de um Estado tituído pelo conjunto dos cidadãos na medida em que possam fazer valer
e de um sistema de direito. O homem do estado de natureza não é uma vontade política. Esta idéia de que os cidadãos reunidos forma
verdadeiramente um homem: ele é apenas um animal cuja animalidade é
riam um "corpo moral" implica que o súdito político "coletivo" é
listrada por dois relâmpagos que farão o homem, a piedade e a
perfectibilidade. Associando-se com seus semelhantes no contrato (que doravante dotado de todos os atributos da pessoa moral individual:
não é pois um fato!), que representa a função reguladora ou deontológica, vontade, racionalidade, autonomia, responsabilidadell . "Que seja abso
o tipo universal de constituição política revelado à razão (e não pelos lutista, como em Hobbes, ou democrático, como em Rousseau, o con
fatos), o homem do estado de natureza confia por um instante hipotético a ceito moderno de soberania (u.] se estende pois como uma articulação
totalidade de seus direitos naturais à instância criada pelo contrato, o do direito ao poder.12" O indivíduo rousseauniano é concebido como
Estado, que lhe restitui imediatamente. Este ato hipotético, não histórico parte de um grande todo. Mais exatamente, ele abandona uma totali
e atemporal, tem qualquer coisa de uma transubstanciação: os direitos W. Friedmann, Théorie générale du droit, op. cit., p. 78. Não haverá nenhu
dade "natural", a do estado de natureza no qual é governado pela lei
9

naturais se tornam, pela razão do contrato, direitos civis. Pode-se dizer ma obrigação mútua entre indivíduos no pacto rousseauniano, como
natural, que não é outra coisa senão a necessidade que se impõe ao
ainda que o contrato é um procedimento dialético no qual a totalidade das pretende
liberdades individuais naturais converge para o Estado, que vai Friedmann? A fórmula é mesmo um pouco forte. Mas é verossímil que
redistribuí-Ias consagradas com o selo do direito positivo. Este pactum Friedmann
unionis, que parte de uma totalidade numérica de vontades individuais tenha em vista a concepção rousseauniana da soberania, originária do
e que atinge uma vontade geral é uma fundação da coletividade política contrato
por fusão. Friedmann sugere que esse procedimento se relaciona ao que a social que é o "ato pelo qual um povo é um povo" (O contrato social, I, V,) e a
jurisprudência alemã denomina korperschaftlichter Gesamtakt, "um ato plenitude coletiva do contrato que faz emergir a vontade geral própria aos "cor
coletivo conjunto, criando uma nova entidade mística, mas não um pos morais e coletivos" que é um "eu comum" da República, chamado de Estado
contrato de indivíduos comportando obrigações de dependência mútua. quando é passivo, de Soberano quando é ativo, e de Poder quando é comparado
Na verdade, a tese de Rousseau faz claramente ressurgir a a seus semelhantes (ibid., I, VI).
incompatibilidade de toda concepção orgâ \0 Rousseau, Économie politique, édition de Ia Pléiade, 249.
\1 Jean-Marc Ferry, Philosophie de Ia communication, II: ]ustice politique et
démocratie procédurale, Éd. du Cerf, 1994, p. 43.
... 12 Ibidem, p. 43-4.
"""11'

150
r A CONSTRUÇÃO DA MODERNIDADE
151

HISTÚRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO

mundo inteiro (VIII Carta da montanha). Nesse estado, o homem-animal tO de Genebra) uma forma humana. Rousseau não é jus naturalista no
vive só, no imediatismo, existindo por si e para si. Ele se toma homem sentido clássico, mas também não é juspositivista. Quanto à vertente
tomando-se parte de um todo diferente da Natureza: alçando-se
àconsciência da lei. política de seu pensamento, recordaremos apenas aqui que ele se opõe
Há, portanto, um dever-ser central no pensamento de Rousseau, que a tOda idéia de representação da vontade geral, o que implicaria aos
prefigura claramente o poder kantiano de obrigação imanente à razão. A
lei não terá sentido a não ser nesta passagem para o coletivo, mesmo ao olhos
orgânico, uma vez que, antes de ser cidadão, o homem de Rousseau de Rousseau uma partilha desta, causando um grave atentado à pleni
jamais foi verdadeiramente um indivíduo. Com toda a lógica, a lei será Somos seres humanos, isto é, nem deuses nem, pelo menos assim
marcada em sua forma pela generalização coletiva: ela é a marca da tUde indivisível da soberania do povo. O governo "democrático" con
esperamos, animais. A questão do direito, nos diz Kant, em
realização coletiva, e é a própria realização. Daí a "dupla generalidade" templado pela doutrina de Rousseau parece de imediato ser um
da lei segundo Rousseau: uma generalidade formal, que provém da 8. KANT
primeiro
"idealtipo", tão perfeito que não é adaptável aos homens: "Se houvesse
autoridade que institui, o que implica que a lei vinda de todos é lugar não pode ser colocada fora destes termos: com os animais nós
originariamente ligada à democracia; e uma generalidade material, que um povo dos deuses, ele se governaria democraticamente".
não
ressalta da coisa instituída, o que quer dizer que o telos da lei é o bem
saberíamos ter uma verdadeira relação jurídica, uma vez que os animais
comum. Em suma, o povo institui sobre todo o povo e para todo o povo.
Essa dupla generalidade constitutiva da lei tem pelo menos duas não têm nem direitos nem deveres; da mesma forma, não saberíamos
conseqüências: por um lado, sendo a lei um ato da vontade geral, não ter relação jurídica com Deus, que, se existe, teria somente direitos e não
pode se pronunciar sobre o particular, o que levará os juristas da Revo- deveres. Portanto, o problema do direito só pode se colocar entre seres
lução Francesa a consagrar a distinção entre uma lei e um simples de- providos igualmente de deveres e de direitos. Isto é muito simples. Por
creto; por outro lado, do próprio fato de que a lei se origina da vontade
conseguinte, essas observações nos colocam diante de uma profunda
geral, ela é imediatamente racional e legítima: a lei não pode errar. Todo
o edifício rousseauniano é habitado por um elo nomofílico intenso: so- característica do pensamento kantiano: ela não será um idealismo
mente a lei pode realizar o humano, pois é ela que forçará o homem a ser metafísico na sua maneira de pensar o direito, já que o que define o
livre e justo. Não há nenhuma exaltação do "direito natural" em humano é precisamente não ser divino, ou seja, é a sua finitude. Mas
Rousseau, mesmo que ele não negue o direito natural como tal: como diz ela também não será jamais um empirismo satisfazendo-se com a des
com acuidade Simone Goyard- Fabre, Rousseau não rejeita o direito
crição dos fatos humanos, e tentando transformar por uma misteriosa
natural, mas o transpõe. De um direito "naturalmente natural", original,
alquimia estes fatos em normas. Assim, nossa inocente observação sobre
imediato, ele faz um direito "analogicamente natural': no sentido de que
não poderia ter significação e validade senão através da razão pública e Deus e os animais contém já uma norma que não poderíamos ja
da lei civil. Em suma, é certamente apenas a lei civil que desempenha um mais deduzir da análise dos fatos empíricos, sobretudo na época de
papel salvador: ela dá às normas absolutas vindas de Deus (toda justiça Kant:
vem de Deus, somente Ele é a sua origem, diz o Manuscri se a única relação jurídica, quer dizer humana, em suma, digna do ho-
mem, só pode ter lugar entre seres providos ao mesmo tempo de deve
~ res e de direitos, toma-se imediatamente impensável qualificar como
ij jurídica uma relação entre seres com direitos e deveres e seres que Só

II
tivessem deveres e nenhum direito, isto é, os escravos. O direito terá
152
sentido somente entre pessoas livres,
HISTÓRIA ou melhor,
DA FILOSOFIA igualmente livres. Essa
DO DIREITO
153
A CONSTRUÇÃO DA MODERNIDADE

reciprocidade tem algo de imediatamente ideal: ela dá as costas para as


"
. desigualdades de fato que sempre constituem uma sociedade. É por isso de possibilidade do que nos é dado na experiência sensível. Kant
'I
não nega jamais o sensível: ao contrário, ele refletiu sem cessar sobre o
"
que o direito é um objeto extremamente privilegiado para entrar no
que pode torná-Io possível. Uma vez que nos é impossível recordar aqui a
pensamento kantiano: ele parece por definição implicar uma recipro longa e complexa instituição kantiana da idéia de transcendental e
cidade ideal, em suma, do ideal. Mas para compreender esse ideal, é de condição a priori de possibilidade, que está no coração do criticismo,
limitemo-nos a retraçar um breve exemplo que está longe de ser anódino,
preciso como preâmbulo tentar apreender o tipo muito particular de
já que fundamenta literalmente o raciocínio de Kant sobre o conjunto da
idealismo que é o de Kant, e que comanda todo o seu pensamento: o filosofia prática.
idealismo transcendental. Kant dizia de sua moral que ela não era nem O que é, de fato, o que é prático? O que é prático, diz o
Cânone da Crítica da razão pura, é o que é possível por liberdade.
da Terra nem do Céu: com efeito, Kant não via em nenhum caso a pos
Ora, a liberdade é um objeto fora de alcance para o conhecimento, o que
sibilidade de fazer derivar imperativos morais a partir de costumes e é o veredicto da primeira Crítica. Todavia, ela é um requisito absoluto
valores diversos disponíveis na Terra, porque sua própria variedade e para pensar a prática: sem ela, a prática seria insensata, e seria preciso se
suas contradições desencorajavam toda tentativa de descobrir aí o me satisfazer com um determinismo total. A liberdade no sentido kantiano é
nor princípio universal; inversamente, também em nenhum caso era então um ser estranho: é a única Idéia da razão que é também um fato de
razão. A liberdade torna possível tanto o dever quanto o direito. Temos
crível aos olhos de Kant tentar descer o Céu sobre a Terra e extrair de
que admitir! Mas o que, por sua vez, torna possível a própria liberdade?
uma existência indemonstrável de Deus princípios de moral, porque Nada! Esta última questão aparentemente judiciosa é, todavia, em seu
para ele trata-se, ao contrário, de partir da finitude do homem e con próprio fundo, esvaziada de sentido: a liberdade não poderia depender de
templar sua tensão em direção a uma perfeição simbolizada, e depois condições, porque seria contraditório com sua natureza. Não sendo causa-
garantida, pela existência postulada, como cada um sabe, de Deus. Ora, da, mas sendo ela própria uma causa, ela é uma causalidade
incondicionada, o que prova certamente que ela não é observável e em
partir da finitude humana é partir do que produz a finitude, quer dizer,
seguida conhecível; ela é, literalmente, extrafenomenal. Da mesma forma
da sensibilidade: o homem é especificamente um ser sensível, ao inver que o espaço é uma forma a priori, portanto extrafenomenal, que
so de Deus. Mas trata-se mesmo de partir do sensível, e não de nele torna possível a percepção sempre espacial do mundo que nos cerca, a
permanecer: na Crítica da razão pura, o transcendental não está além liberdade é de alguma forma o espaço da prática. Este é o sentido do
do sensível, mas de preferência aquém do sensível, o que o torna possí requisito absoluto da liberdade: a liberdade é a atmosfera do mundo
prático. Kant jamais esquece que nós vivemos também em uma outra
vel. Assim, para lembrar um raciocínio célebre, o espaço e o tempo são
atmosfera, a do mundo, que diremos aqui "real" para ser breve: o dos
os quadros não sensíveis que tornam possíveis nossa percepção do fenômenos aprisionados no encadeamento das causas e dos efeitos. O ser
mundo na sensibilidade. A idéia do transcendental está aí: é o que tor humano evidentemente faz parte, no mínimo por seu próprio corpo, do
na possível, é a condição de possibilidade. Kant fizera havia muito tem mundo fenomenal. Mas ele não é por ele escravizado, pois tem também
po essa descoberta, precisamente depois de seus escritos dos anos um pé no mundo inteligível pela liberdade, isto é, pela prática:
1768-1770 sobre o espaço, nos quais ele retomava Newton: o espaço ori
...
-.
154 HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO
r interna; a legislação jurídica é um constrangimento que age exterior

I1lente, in foro externo, já que, como enuncia o § 4 da Doutrina do direi


A CONSTRUÇÃO DA MODERNIDADE
155

to, "o direito está ligado à faculdade de coação". O direito realiza a

em suma, o homem está no mundo, mas ele não pertence ao mundo. liberdade mediante sua restrição. A lei natural em que se baseia a lei
Sabe-se que no vocabulário kantiano essa dupla natureza é designada por
positiva nada mais é que a liberdade, condição de possibilidade da moral
pares empírico ou sensível/inteligível e fenomenal/numenal. O homem é,
pois, fenômeno e númeno. e do direito, e a finalidade do direito, por sua vez, nada mais é que esta
O próprio direito será, como todo avatar do humano, empírico-
liberdade: em suma, a liberdade torna possível a coação que a realiza. É
inteligível. A doutrina do direito kantiano, como aliás o conjunto da
filosofia kantiana, tem como decepcionar todo mundo: para os empiristas, preciso sublinhar aqui o interesse da ordem de exposição dos argumen
a constituição transcendental do direito que Kant põe ao lado de sua tos de Kant: a Doutrina do direito parte do direito privado e passa ao
gênese histórica é insuportável; para os defensores de um purismo do
direito público ou político, depois ao direito cosmopolita que virá: tudo
inteligível que gostariam de uma idéia do direito e da justiça dando as
costas definitivamente para uma realidade muito imperfeita, a atenção ocorre como se o texto se elevasse do nível individual ao universal, pois
que Kant dá ao aspecto empírico é insustentável. A extrema dificuldade trata-se em última instância de um direito que regeria a humanidade
do criticismo sempre foi a de querer colocar juntas estas duas posições, e
inteira. Esta ordem de exposição sem dúvida não é a ordem das razões
de querer se definir por uma terceira, a da perspectiva transcendental,
quer dizer, a do exame das condições de possibilidade não empíricas das kantianas: de fato, os direitos do indivíduo, como o dos cidadãos, não
realidades empíricas. A idéia de crítica contida no criticismo remete a têm sentido a não ser na medida em que eles são primeiro fundados no
uma crítica mais reformista que revolucionária em sua forma política, universal. Há um duplo movimento: parte-se do universal, aquele da
mas definitivamente revolucionária em sua forma filosófica, da realidade
liberdade, condição pura de possibilidade, e vai-se em direção ao uni
empírica, ou histórica, do direito, em nome da condição pura de
versal, o da realização da liberdade em um direito cosmopolita.
possibilidade do direito, isto é, em nome da constituição transcendental
do direito. A relação que o criticismo kantiano estabelece entre moral e direi
Há em Kant um pensamento crítico do direito, isto é, uma crítica do to deve ainda ser precisada sobre um ponto particularmente
direito em nome da liberdade. Nesse caso, há em certa medida uma precioso,
crítica "moral" do direito, uma vez que é primeiramente na forma moral
a fim de compreender a forma de "autonomias cruzadas" dessas
do dever e do imperativo categórico que se exerce a liberdade. O
duas
problema do direito é então, pela própria declaração de Kant emA idéia de
uma história universal, o problema "mais difícil" e "aquele que será esferas.
resolvido por último pela espécie humana": este problema é o de asse- Sabe-se, com efeito, que a forma pura da moral requer somente (é
gurar o máximo de liberdade com um mínimo de restrições. Ora, tender a preciso dizer que isso é exorbitante) agir por dever, com a exclusão
esta maximização constante da liberdade é o imperativo do direito, sua
de
restrição moral interna, se podemos dizer. Isso não confunde o moral e o
jurídico: existe entre os dois domínios uma certa oposição quanto à todo motivo empírico: a moralidade da ação é puramente interna, de
forma da legislação. O dever moral é uma obrigação imperativa finida por uma estrita autonomia da vontade banindo toda
mas heteronomia.
~ No caso do direito, é tudo de outra forma: trata-se da legalidade das
, 156 HISTÚRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO
r A CONSTRUÇÃO DA MODERNIDADE
serviço da liberdade: para garantir esta, é preciso garantir paradoxal
157

mente uma autonomia do direito com relação à moral. Há, portanto,


conceituação cínica da autonomia do direito; e uma confusão do direito e
da moral, que acarreta uma dependência do direito com relação àmoral e para concluir esta observação, uma autonomia cruzada da moralidade
~ traz o risco do despotismo.
e do direito: uma ação só é moral enquanto dever perfeito, realizado
O primeiro desses dois pontos é estabelecido por Kant em SUa
I polêmica com Christian Garve, que opunha os deveres de direito aos por um dever interior que obriga absolutamente sem nunca coagir; nisto
I deveres de consciência, e daí tirava uma teoria da autonomia do direito e
do político com respeito à moral. Essa concepção da autonomia do direito
a moral é oposta ao direito. A ação legal é um dever imperfeito, uma
vez que a legalidade não pode fazer mais que coagir.
I é estigmatizada como amoral e pragmática por Kant: segundo ele, ela tem
o defeito proibitivo de constituir uma teoria política do direito, este Entre a autonomia moral do direito e a confusão politicamente
último tendo uma função de legitimar as decisões dos homens políticos. perigosa da moral e do direito resta uma terceira via: consiste em
O segundo ponto, aquele da sujeição total do direito à moral, é
tra
muito claro não na Doutrina do direito, mas em A religião nos limites da
simples razão. Falando da religião dos gregos, Kant sublinha a submissão tar a moral como doutrina do direito. Isso quer dizer que a primeira
"ilimitada" que ela acarreta e, ao contrário do que será o entusiasmo parte da Metafísica dos costumes estabelece uma teoria dos deveres,
romântico pelas religiões e éticas populares, ele estabelece claramente
ou
que confundir a obediência à lei e o servilismo absoluto, alimentado pela
proclamação de um assentamento moral-religioso da lei, só faria manter a seja, a parte racional e pura de uma ciência dos costumes que deve com
humanidade em um estado de minoria perpétua e servir à causa dos preender o direito. O direito e a virtude são apresentados como dois
déspotas. Confundir o político, o jurídico e a moral teria por efeito
ramos doutrinais da moral em sentido amplo. Os conceitos jurídicos
confundir a comunidade política e a comunidade ética, e rapidamente
transformar legisladores e magistrados em terroristas fanáticos da virtude, remetem, nesse sentido, aos conceitos práticos no sentido amplo, isto
como prova um certo número de países ou de grupos político-religiosos é, às leis da vontade descobertas por Kant na análise do dever moral. A
atuais, aliás assaz tragicamente. autonomia do direito e da virtude é preservada porque é cruzada, mas
Uma política autenticamente moral, nos termos de Kant, deve co- cruzada também quer dizer posta em relação, no sentido de uma úni
meçar por se proibir de aperfeiçoar os homens, a despeito deles. Mora- ca e mesma reflexão sobre a moral que se pode então designar como
lizar autenticamente a política não é, desde então, identificá-Ia com a
uma Ética (ainda que o vocabulário kantiano seja um pouco flutuante
ética, assimilando a moralidade a um bem político, mas sim compreender
no uso de "moral" e de "ética"). Direito e moral constituem juntos a Ética
a moral exclusivamente como uma doutrina prática do direito que
(Sittenlehre) no sentido de uma doutrina geral dos costumes, sen
subordina o exercício do poder a princípios universalizáveis: a moral é
do estes últimos ao mesmo tempo os fatos e as normas. Compreende
posta na forma (a da universalização) e não em um conteúdo (uma
doutrina moralizadora do Estado que seria veiculada por um direito se que oMonique
13direitoCastillo,
seja o ponto culminante
Kant, Vrin, e artigo
1997, e seu o mais no difícil do d' éthique
Dictionnaire

tornado um direito político). O direito segundo Kant só tem sentido et de phi/osophie


empreendimento mora/e,
kantiano, poisPUF, 1997, eéAlain
ele próprio fato eRenaut,
norma,Kant aujourd'hui,
elevando
a seAubier,
da natureza empírico-sensível do homem e de sua natureza racio
1997.
nal. Mas a norma não deriva jamais do fato, o que vamos ainda precisar
~ adiante13.
158 159
HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO A CONSTRUÇÃO DA MODERNIDADE

Se observarmos em primeiro lugar o encadeamento argumentativo absolutamente as duas partes, como faz o imperativo categórico in foro
da Doutrina do direito, certamente é preciso ter no espírito o interno: ele não é redutível a um simples acordo de vontades, um sim
círculo da ples consenso ocasional e condicional. Ele manifesta o incondicional, e
demonstração que sugerimos há pouco. O exame inaugural do o que é sem condição não pode ser fenomenal, mas somente numenal:
direito
o contrato é, se podemos dizer assim, um ato transcendental, pois ele
privado considera os indivíduos se associando voluntariamente,
manifesta o poder inteligível da vontade tanto quanto a faculdade
qUer legislativa da razão.
dizer, livremente por contratos, fora de seus elos civis ou políticos. O Passar do direito privado para o direito público, e depois ao direito
contrato de direito privado é um ato criador do direito, não no sentido de cosmopolita, não é uma gênese empírica do direito: todo o direito jáé
uma simples gênese empírica, como se o direito público fosse derivar do tornado possível pelo que torna possível o direito privado. Há aqui um
direito público por uma espécie de geração espontânea, mas no construtivismo kantiano que é o extremo oposto da ciência do direito dos
sentido da descoberta de uma fundação pura do direito pela descoberta juristas, que é um conhecimento empírico das leis positivas remetendo à
do aspecto puramente inteligível (e não pragmático e sensível) da idéia de que a origem da legislação é uma origem histórica: a de uma
relação contratual. Qual é, pois, com efeito, a forma pura do contrato? vontade empírica dominante que situou o sistema de leis positivas em
Kant responde a esta questão em sua observação do § 19 da Doutrina do um momento dado. Essa definição da ciência do direito seria absurda aos
direitol4: a forma do contrato é a da promessa recíproca. Ora, parece que olhos de Kant, uma vez que a uma tal teorização no
não é em virtude das condições empíricas do contrato (espaço, tempo, final puramente técnica que subordina o direito ao fato e aos móveis
circunstâncias factuais) que a promessa deve ser mantida, mas em virtude do poder, a Doutrina do direito opõe uma concepção racional prática,
da sua forma pura. Nisto o contrato procede de uma única vontade uma ciência pura do direito. Sua metodologia construtivista retém ape-
comum, na qual se exprime a faculdade legislativa, não empírico nas a forma das relações jurídicas, e não seus conteúdos, quer dizer, as
pragmática, mas pura da razão. Por minha promessa, eu me ligo ao outro simples relações externas entre liberdades franqueadas da facticidade
como me liga um imperativo categórico. E se jurisconsultos como dos conteúdos. Esse tratamento transcendental do direito, que vai mais
Mendelssohn, diz Kant, não puderam responder à questão de saber por tarde inspirar John Rawls em sua Teoria da Justiça (I, capo 3, § 24), tem
que eu devo manter minha promessa, é porque eles não souberam iden por objetivo isolar a origem pura da necessidade do direito: ''As vonta-
tificar nela este postulado da razão pura prática, formal e incondicional, des", comenta Monique Castillo, "reclamam puros princípios práticos
que apresenta como objetivamente necessária a ação que deve ser universais de ligação, incomensuráveis com os elos simplesmente an-
realizada e que faz dela absolutamente um dever. Em suma, há uma tropológicos que os sujeitassem à natureza. Na medida em que a Dou
pureza formal no contrato que torna possível sua realização empírica. trina do direito os faz derivar de princípios a priori imperativos, as leis
A natureza essencial do contrato não reside no diálogo temporal, sensí- não tiram sua força obrigatória a não ser de sua inteligibilidade prática.
vel, pragmático que parece se realizar, mas na possibilidade pura. Pelo De sorte que o direito natural (Naturrecht), compreendido em um sentido
contrato, nos explica ainda Kant, eu adquiro não alguma coisa, mas um normativo e não naturalista, não designa nada maisque a autono
ato de14 Sobre
outrem:
estasua promessa.
análise, A essência
retomamos do contrato
S. Goyard-Fabre, é então
Kant obrigar du
et ie probieme mia prática do puro conceito do direito, ou sua universalidade a priori
droit, Vrin, 1975, p. 157.
exigível".

~
160
HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO 161
A CONSTRUÇÃO DA MODERNIDADE

Já examinamos rapidamente a questão do contrato no direito pri matéria do direito público [...], ainda me resta a forma da publicação
vado. O que é ele no direito público? Não deve surpreender que seja da qual toda pretensão de direito contém a possibilidade [...]. Toda
usada a mesma argumentação. No direito político, a concepção do pretensão de direito deve poder ser susceptível de publicação [...].
contrato social não é histórica (ela se limitará a justificar simplesmente A composição seguinte é a fórmula transcendental do direito publico:
um estado de fato), mas puramente conceitual. O contrato é a Idéia de 'toda ação que tem traços do direito dos outros homens e cuja máxima
uma vontade geral que serve de modelo prático, ou de norma, para não é compatível com a publicação não é direito"'.
maneira pela qual um Estado deve ser constituído, governar e fazer A Idéia do direito não é, em nenhum caso abstrato, os próprios
respeitar as leis. O bem público de um Estado, como aliás o bem fenômenos jurídicos no que eles têm de empírico, isto é, de positivo. Ela
internacional público que é a paz no direito cosmopolita, não é jamais é, antes, aquilo que permite abstrair a forma da matéria, e é dada junto
pensado de maneira pragmática como o produto da prudência ou do com a diversidade das ações políticas humanas. A Idéia de direito precede
cálculo político, mas sempre de maneira transcendental, quer dizer, como transcendentalmente a diversidade dos afazeres humanos, em suma,
princípios de a idéia de direito precede o direito porque ela o torna possível. Falta
aplicação das regras. Uma das conseqüências dessa posição crítica, como agora tentar esclarecer brevemente a posição kantiana entre (ou além de)
nos faz observar Monique Castillo, é o imperativo de uma realização a doutrina do direito natural e a doutrina do positivismo jurídico com
política do direito, correspondente à ultrapassagem do direito privado Alain Renaut, do qual vamos retomar aqui a interpretação.
no direito público: é no Estado que o direito pode ser o objeto de uma De fato, Alain Renaut nos faz observar uma outra autonomia cru-
vontade pública de justiça. zada: a do direito privado e do direito público. Trata-se de duas relações
É possível aprender aqui sinteticamente uma maneira kantiana de diferentes com a liberdade. No caso do direito privado, a questão é:
"resumir" para definir o ponto de vista transcendental do direito? Podese o que é ser livre com respeito às coisas? Isso funda uma teoria da pro-
tentar retornando para os conceitos de matéria e de forma que prolongam priedade. No caso do direito público, a questão é: como as diversas li-
suas raízes na Crítica da razão pura. Se nós nos referimos, com efeito, berdades individuais podem acordar entre si, quer dizer, autolimitar-se?
ao famoso par de vocábulos kantianos, matéria (sensível, a O que Kant coloca é uma dicotomia do direito privado e do direito
posteriori) e forma (a priori), podemos observar o raciocínio seguinte: a público. Ora, uma tal dicotomia tem um alcance considerável, pois ela
matéria do direito é o diverso empírico constituído pelas diversas le- funda filosoficamente a distinção contemporânea da sociedade civil e do
gislações que regem os afazeres humanos no mundo, ou seja, o direito Estado. Em um vocabulário que ainda é o do jusnaturalismo, Kant fala de
positivo; mas qual é a forma dos fenômenos de direito? A resposta de "sociedade natural" para a esfera privada e de "sociedade civil" para a
Kant é notávep5: é a publicação (Offentlichkeit). O direito é primeiro esfera pública, o que para nós é o Estado.
uma Desse ponto de vista, sublinha Alain Renaut, a dicotomia da socie-
Idéia, mas sua forma é a publicação. Em seu opúsculo sobre A paz per dade e do Estado na Doutrina do direito marca uma guinada capital na
pétua, Kant apresenta esta fórmula muito sintética para explicar o ponto história da reflexão jurídico-política moderna, porque opera a síntese
de vista transcendental sobre o direito: "Se eu faço abstração de toda inédita de uma problemática moral e de uma problemática jusnaturalista.
15 Isto é sublinhado por Françoise Proust: "Kant et Ia liberté publique", in Ela situa o direito com relação à moral pura como sendo a encarnação
Philosophie pratique, n. 2, PUF, 1992. dela; assim fazendo, tendo em conta o empirismo, para re

Í\..
111

II

n
.
162 HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO
r A CONSTRUÇÃO DA MODERNIDADE
163

Certamente, Kant escreveu na Doutrina do direito que o direito só


I tomar as fórmulas de Alain Renaut, ela nos leva a distinguir de maneira
existe na passagem do estado de natureza ao estado civil, e que não
I puramente filosófica a sociedade e o Estado: nisto, ela se mostra muito
exatamente como o espaço onde se realiza a passagem das teorias do existe
direito natural moderno (reflexões sobre a legitimidade e a soberania) direito fora do Estado. Portanto, ele não rompe com o
111 I para as teorias políticas contemporâneas (reflexões sobre as relações da
jusnaturalismo e
sociedade e do Estado). A partir do par sociedade civil/Estado, três
modalidades de relações serão contempladas: não se inclina para o positivismo jurídico. A tese do positivismo
1. a redução da sociedade ao Estado, que funda filosoficamente o jurídi
projeto de um socialismo estadista; co é que não existe direito exterior e superior ao direito instituído pelo
2. a redução do Estado à sociedade, que funda o projeto anarquista
Estado; em Kant, trata-se apenas de afirmar que não há direito anterior
de uma supressão total do Estado a favor de uma sociedade que pudesse
ao Estado, o que é muito diferente.
ser harmoniosa por si mesma;
Em um primeiro momento, Kant reelabora duplamente o direito
3. a limitação recíproca da sociedade e do Estado, que funda a con-
vicção liberal de sua coincidência perfeita e impossível, e que a visão da natural:
unidade absoluta se evidencia em última instância inevitavelmente ca- 1. pensando a humanidade do homem pela construção transcen
tastrófica. dental, fora da designação a ele de uma natureza humana qualquer;
Sublinhemos de passagem que a limitação recíproca implica evi- 2. fazendo do direito natural o horizonte, e não mais a origem do di
dentemente uma limitação da esfera do Estado, que prefigura o que se reito positivo, o que sugere um papel ideal regulador e uma função
tornará no século XIX o pilar conceitual do Estado de direito: a auto- crítica.
limitação do poder do Estado; essa "auto" limitação não tem sentido Em um segundo momento, é preciso distinguir em Kant três, e não
senão por referência a uma esfera cuja autonomia deve ser protegida, a da apenas dois níveis de direito:
sociedade civil. A questão da limitação do poder do Estado está dire- . O que ele chama das natürliche Recht, o direito do homem natu
tamente ligada àquela de saber se há um direito anterior e superior ao do ral, o direito eventual ou hipotético do homem ao estado natural, ou
Estado: em suma, à questão do estatuto do direito natural no pensamento seja, o que seria o direito privado independentemente de sua inscrição
kantiano. Alain Renaut recorda a esse respeito a interpretação assaz em um sistema de direito publico: "seria", pois o estado de natureza é
tradicional que pretende ver Kant como o coveiro do direito natural. Este uma pura ficção metodológica produzida para abstração do Estado.
foi, por exemplo, o diagnóstico de Michel Villey em suas Leçons
d'histoire de Ia philosophie du droit. Villey declarou que Kant "livra os
. O Naturrecht, o direito natural propriamente dito, nível
metapositivo do direito que transcende o direito estabelecido e,
juristas do império das leis positivas, sem restrição nem condição"16.
consti
deiro superior ou anterior ao Estado"), mesmo que ela tenha depois amenizado
tuindo um Sollen, um dever, permite julgá-Io: é a função crítica da
esta interpretação radical em seu estudo La Philosophie politique de 1987 e a ver
moral sobre o direito que nós já estabelecemos há pouco e deixamos claro
são revisada de sua análise do problema do direito em Kant (La philosophie du
16 É também geralmente a primeira posição de Simone Goyard-Fabre em seu que
droit de Kant, Vrin, 1996, na qual ela retoma as objeções de A. Renaut, p. 69).
estudo de 1975, Kant et le probleme du droit ("Em Kant, não há direito verda
o ponto de reflexão crítica é puramente transcendental (a liberdade como
condição de possibilidade transcendental e ponto de mira transcendental
~ do direito).
164 165
HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO A CONSTRUÇÃO DA MODERNIDADE

. O direito público, direito civil ou direito político, das offentliche positivo, é a afirmação da liberdade das duas esferas, o assentamento
Recht, que designa o direito existente no Estado, o direito positivo, e que transcendental do direito segundo Kant em sua liberdade, isto é, sempre
se funda não empiricamente sobre uma gênese histórica do direito e do na forma da autonomia.
Estado, mas transcendentalmente, já que, como também estabelecemos, Para que Kant prepare o positivismo jurídico, seria preciso, como
offentliche designa aqui a Offentlichkeit, a publicação, que é a forma do escreve Alain Renaut:
direito que torna possível sua matéria (seu conteúdo contingente porque 1. que ele sustente que o direito do homem natural não existe por si
ligado a uma ou outra construção singular do direito positivo). mesmo e que não adquire verdadeiramente consistência fora de um
É verossímil que a maior parte das interpretações francesas de um sistema de direito público: é o que ele sustenta efetivamente, fazendo do
Kant positivo, como a de Villey, devem-se a uma infeliz ambigüidade das direito público a verdade do direito privado, como a Declaração de
traduções ( como a de Philonenko, que prefacia Villey): traduzir por 1789 faz dos direitos do cidadão a verdade dos direitos do homem;
"direito natural" tanto Naturrecht quanto das natürliche Recht, é auto 2. que ele negue toda consistência e toda função designáveis ao
rizar - já que Kant sustenta que o natürliche Recht não adquire consis- direito natural, ao Naturrecht: isso ele não faz, já que ele coloca tanto o
tência a não ser pelo direito público - a absurda mas tenaz lenda segundo direito do homem natural quanto o direito privado sob a dependência do
a qual Kant, submetendo o direito natural ao direito positivo, direito natural, ou seja, sob a dependência do puro conceito de direito que
prepara o positivismo jurídico de um Kelsen. Ora, o texto de Kant não os transcende como uma norma racional.
diz que o Naturrecht (o direito natural) não encontra sua verdade nos Esta interpretação de Alain Renaut não nos parece contraditória com
sistemas de direito positivo existente; muito pelo contrário, enquanto a que sugerimos aqui de uma "autonomia cruzada" das esferas públicas e
Sollen, função crítico-transcendental, ele permite julgá-Ias. privadas, natural e positiva: a "dependência" de que fala Renaut não é
A autonomia cruzada do direito privado e do direito público adquire uma heteronomia, mas o cruzamento crítico que coloca sempre o direito
então todo seu sentido: ela revela uma autonomia cruzada do direito em uma perspectiva universalista. Fundação universal: a função
natural (Naturrecht) e do direito positivo (das offentliche Recht), que transcendente da liberdade; teleologia do universal: o direito positivo
assume a originalidade e o poder do criticismo ao proclamar que a con- deve ser julgado e criticado em nome de uma realização da liberdade,
fusão dos dois seria uma dupla heteronomia de conseqüências políticas Sollen do direito. O ponto fraco desta doutrina, que faz com que a
funestas, que já encontramos no problema da dissociação ou da acusação de Villey não seja desprovida de importância, é que, embora o
confusão da moral e do direito. Dissociar direito e moral, direito natural criticismo possa ser definido como um "jusnaturalismo teó
e direito positivo, é correr o risco do amoralismo do direito e do rico", como propõe Renaut, a referência ao direito racional, à Idéia pura
político (não se poderia mais julgar as leis em um nível metapositivo, do direito, pode parecer muito longínqua para ter uma influência efetiva
problema neo-kelsiano). Confundir direito e moral, direito natural e sobre o império das leis positivas que ela pensou que podia criticar sem
direito positivo, é correr o risco político do despotismo, do Estado mo- parar. Nesse sentido, pode-se dizer que o kantismo chegou,
ralizador, da virtude estatizada, absolutamente contraditória com a li- involuntariamente, a um positivismo prático, e não teórico. Este último
berdade fundamental do sujeito prático. Ora, a liberdade é fundamental problema é sem dúvida muito central e muito difícil. Tem-se real
porque é transcendente: o cruzamento sem dissociação e sem confusão ~ente oprimido o pensamento de Kant! E isto, curiosamente, pela
do direito privado e do direito público, do direito natural e do direito Intromissão de duas críticas totalmente antitéticas.

~
166 167
HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO A CONSTRUÇÃO DA MODERNIDADE

Por um lado, reprovamos em Kant sua incapacidade de constituir França, em segundo lugar, coloca que "o objetivo da sociedade é a feli-
uma filosofia propriamente política, no sentido usado, por exemplo, cidade comum"]? Examinemos um pouco essas fórmulas, a fim de
por recolocá-Ias em seus contextos. A Declaração da Independência Ameri-
Leo Strauss, isto é, de uma pesquisa sobre o "melhor regime" ou cana de 1776 marca a ruptura dos colonos de origem britânica com
sobre o ideal de uma ordem política justa e boa. Kant, segundo Leo a coroa inglesa e se inspira, por suas fontes imediatas, no ensaio de
Strauss, teria desrealizado a instância do direito natural, livrando de vez o Thomas Paine, surgido no mesmo ano, intitulado O senso comum. Paine
direito da pura positividade. Politicamente, isso significa que o idealismo advogava a favor da secessão com a Inglaterra, apoiando-se sobre a
prático de Kant seria a máscara grosseira de um positivismo, de um realis- herança da filosofia inglesa, principalmente a de John Locke: princípio
mo brutal, até mesmo do ato de morte da fIlosofia política e de seu papel da liberdade individual, princípio da propriedade individual, definição da
político. legitimidade do poder pelo consentimento dos governados, direito de
Por outro lado, de Hegel em diante foi-lhe igualmente censurado resistência. Thomas Jefferson afirmava que a Declaração não era uma
um formalismo e um idealismo excessivos. Kant não seria mais que um "tese filosófica", e que se tratava de "pôr o senso comum do sujeito ante
utópico da pior espécie: um utópico teórico e perdido na abstração. Sua as considerações sobre a espécie humana". Esse senso comum, entretanto,
obsessão por uma visão da paz perpétua seria nesse sentido o sintoma é sim uma "tese" teleológica sobre a felicidade pública: a fórmula da De-
por excelência de uma má interpretação do político no sentido hegeliano, claração não fala da felicidade, mas da busca da felicidade. Ela visa um
da necessidade de um trabalho histórico do negativo. Depois de Hegel, é além da dimensão privada da existência individual, e afirma
telos
Carl Schmitt quem tomará as rédeas desta crítica radical, reconhecendo que o Estado não deve poder interferir na esfera dos direitos inalienáveis
em Kant o grande ancestral do pacifismo jurídico, o que era, como todos do indivíduo. O direito fundamental do ser humano, que era a proprieda-
sabem, o pior engano para este teórico do decisionismo e do político,
de na filosofia de John Locke, é transcrito sob a pena de Jefferson, via
pensado a partir da relação, para ele fundamental, da hostilidade.
Paine, pela "busca da felicidade": esta é antes de tudo individual, mesmo
que tenha um sentido público evidente; o sistema político existirásobre o
primado fundamental da liberdade individual, a felicidade pública será
9. A QUESTÃO DOS DIREITOS INALlENÁVEIS: AS uma coleção de felicidades privadas. O par conceitual fundamental
DECLARAÇÕES DOS DIREITOS HUMANOS parece ser aqui o da felicidade e da liberdade. Por seu lado, a
formulação francesa de 1793 parece, em contrapartida, sugerir a idéia de
Limitemo-nos aqui a algumas observações sobre a gênese fIlosófica que existiria um sentido coletivo na felicidade que incumbiria à so-
e em seguida sobre a arquitetura das Declarações do final do século ciedade realizar: a "felicidade comum". Contudo, não se deve confundir a
XVIII. Estas afirmações de direitos inalienáveis são as das Revoluções do Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, que implica
século XVIII: a americana e a francesa. A Declaração de Independência certamente a idéia de uma felicidade pública para a liberdade mas não
Americana de 1776 em primeiro lugar, porque ela estipula que OS
"homens são criados iguais, e são dotados por seu criador de direitos
inalienáveis; entre esses direitos se encontram a vida, a liberdade e a 17 Olivier Duhamel e Yves Mény, Dictionnaire constitutionnel, PUF, 1992, p.
91.
busca da felicidade': A Declaração dos Direitos do Homem de 1793 na

~
I
I 168
HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO A CONSTRUÇÃO DA MODERNIDADE
169

I faz menção a qualquer direito à felicidade, e a Declaração dos


no Émile, "é preciso optar entre fazer um homem ou fazer um cidadão".
Direitos do Homem e do Cidadão que abre a Constituição de 1793
I (precisamente:
As Declarações francesas tentam conciliar as duas orientações, fazendo
da conservação dos direitos naturais e imprescritíveis do homem o
o Ato Constitucional de 24 de junho de 1793), cujo art. 10 enuncia ex objetivo de toda associação política (art. 20 do texto de agosto de 1789). A
plicitamente que "o objetivo da sociedade é a felicidade comum'~ His lei civil, que é em essência positiva (ela é colocada artificialmente pelos
toricamente, no curso mesmo da Revolução Francesa, esta referência à homens), e que é uma conseqüência da obrigação política, "aparece desde
"felicidade comum" da Declaração dos Direitos do Homem corresponde, logo como a garantia dos direitos concebidos como fundamentalmente
sem dúvida, a uma inflexibilidade das idéias revolucionárias, passando da pré-políticos. Mas ela pode também, em uma outra perspectiva, ser
idéia de uma proteção das liberdades para o desejo de realizar antes de percebida como um entrave potencial ao gozo destes direitos. É o caso
tudo uma felicidade coletiva. O par conceitual tende aqui a ser de quando, distinguindo sociedade e governo, professa-se com Thomas
preferência o da felicidade e da igualdade. Paine, herói e propagandista da independência americana, que "a
Em suma, é preciso contemplar esquematicamente a articulação sociedade, seja qual for a sua forma, é sempre um benefício, mas que o
destes três termos - felicidade, liberdade e igualdade -, examinando, melhor governo não é mais que um mal necessário"19. Será preciso
em então, como fazem as Declarações americanas, marcar estritamente os
primeiro lugar, o que tornou possível as duas Declarações. As duas limites do poder do governo, no qual se verá uma ameaça potencial para
pro os direitos dos indivíduos, de preferência à garantia de sua efetividade.
clamam os direitos do homem, do que se pode, por generalização, Assim, a temática dos direitos do homem pode recobrir fIlosofias sociais
dedu e políticas profundamente diferentes, conforme se adota a ótica anti-
zir um "direito natural ou fundamental à felicidade", no sentido estadista dos pais fundadores americanos ou aquela, algumas vezes
aristotélico de que cada direito seria um direito em vista de outra coisa, qualificada como legicentrista, dos revolucionários franceses2o. Essa
enquanto que a felicidade seria o fim último do conjunto de direitos diferença notável entre as Declarações francesa e americana dizem
enunciados. Mas esta interpretação, precisamente porque seria uma respeito, antes de mais nada, à ligação da felicidade e da liberdade. Em
generalização, reduziria as diferenças entre as duas Declarações e esva- um sentido mais prosaico, a Declaração da Independência consagra
ziaria um pouco seu conteúdo. Trata-se de examinar a especificidade de sobretudo a liberdade de um "homem concreto", daquele homem que a
seus fundamentos, através de três questõesl8: quem é este homem de conquista em sua marcha para o Oeste em busca de vitória sobre a
quem se proclamam os direitos? Quem os proclama, em nome de quê? natureza, uma liberdade ligada à idéia da dignidade do esforço e do valor
Quais são estes direitos, e todos dispõem de uma mesma força probatório do sucesso. Não é a liberdade de um ser abstrato, mas a do
normativa? colono: de alguma forma, é uma concepção experimental da liberdade.
As Declarações
A primeira questão diz respeito à identidade do portador dos di-
reitos do homem: de que homem se trata? Uma alternativa se desenha
entre a idéia de um homem "natural': do qual se afirmarão os direitos
18 Jean- François
pré-políticos, e a deKervégan,
um homem "Les droits
"civil"de ou
l'homme': in Notions
político. de philosophie,
A distinção existe em 19Thomas Paine, Le sens commun, Aubier, 1983, p.
voI. 11, Gallimard, 1995, p. 638.
Rousseau, entre "o homem" e o "cidadão": como ele diz 59. 20 J.-E Kervégan, op. cit., p. 639-640.

~
francesas, ao contrário, se esforçam por destacar a figura ideal do ci~

II dadão e justificar por ele o poder. Trata-se antes de uma concepção


170
racionalista da liberdade21.
HISTÓRIA DA FILOSDFIA DD DIREITO 171
A CONSTRUÇÃO DA MODERNIDADE

li, A mesma oposição atravessa as respostas para a segunda questão:


quem enuncia os direitos do homem, e sobretudo de que homem se rimeiras Declarações, dirigidas contra a usurpação do Estado
:, II fala? fmonárquico mas Estado instituído pela Revolução americana) sobre a
esfera privada. Eles são a afirmação da idéia de um primado da
A resposta americana baseia-se essencialmente em fundamentos
felicidade privada, da liberdade essencial do indivíduo de usufruir de si
teoló
mesmo. Em contrapartida, os direitos-crença não significam mais
gicos. "Nós temos como evidentes por si mesmas as verdades "direitos de", mas "direitos a": as crenças que o indivíduo pode ter, relativas às
seguintes: prestações da coletividade a seu respeito que ele crê ter direito de esperar. A
formulação dos direitos-crença é, na história das Declarações, pos
todos o homens são seres iguais; eles são dotados pelo Criador de
terior àquela dos direitos-liberdade. Ela implica um papel ativo da esfera
cer pública na realização das felicidades privadas e, por conseguinte, da fe-
tos direitos inalienáveis...': idéias que têm sua fonte em Segundo Trata licidade pública.
do sobre o governo (II, 6 e V, 25) de J ohn Locke. O espírito das Declarações Os pressupostos dessas afirmações da felicidade terrestre pela de-
francesas é diferente. Estas obram sob os auspícios do "Ser supremo': e claração das liberdades fundamentais são numerosos. Não deve ser o
pela idéia partilhada pela maioria dos revolucionários de 1789 de que o caso de desenvolvê-Ios todos aqui, até porque eles se ligam
inevitavelmente às doutrinas: ora, a questão de saber se a influência dos
homem é uma criatura de Deus, mas o fazem em um sentido funda
filósofos do século XVIII foi determinante ou não na escrita das
mentalmente político: é o próprio homem em sua universalidade que
Declarações não é simples. Uma tese celebre, por exemplo, a de 1895 de
se declara titular dos direitos que sua natureza implica. G. Jellinek, tentava demonstrar que a Declaração francesa não era o
Quanto à terceira questão, relativa ao conteúdo e à hierarquia dos resultado das idéias emitidas pelos filósofos franceses, mas que sua fonte
direitos, ela encerra uma dificuldade essencial que agita o real devia ser procurada junto ao Bill ofRights do Estado da Virgínia.
pensamento A influência dos filósofos foi, contudo, pouco contestável, mesmo que
político até hoje: é preciso atribuir uma prioridade à igualdade ou se tenha de levar em consideração o aspecto absolutamente inaugural, e
à li não conclusivo, das escritas propriamente revolucionárias. Nós podemos,
berdade? Esta questão se lê na oposição relativa das Declarações contudo, examinar brevemente dois pontos, concernentes à influência da
problemática teológico-política cristã, seguida da transformação dela.
ameri
Qual foi a influência geral da teologia política cristã? As
cana e francesa, e também na evolução delas. A Declaração da
DeclaraÇões proclamam a idéia de um indivíduo cujos direitos
Independência Americana prolonga o pensamento de Locke. Para ele e
imprescritíveis épreciso respeitar. A novidade revolucionária das
para a tradição liberal, os direitos fundamentais do indivíduo são antes
Declarações deve certamente ser destacada. O que não impede que se reconheça
de tudo a vida, a liberdade, a propriedade de seu próprio corpo assim
urna filiação teórica: é o cristianismo, corno mostrou Hegel em sua
como os produtos do trabalho de seu corpo. As Declarações francesas Enciclopédia das ciências filosóficas (§ 482), que impôs a idéia de que "o
21 Jacques
conferem maisRobert, Droits de l'homme
importância et libertés
à igualdade fondamentales,
ao lado Montchrestien,
da liberdade. Mas em
col. Domat Droit Public, 1993, capo 1. indivíduo enqUanto tal tem um valor infinito". O cristianismo enquanto tal não
suas evoluções, os dois tipos de Declaração dão lugar a uma oposição é
notável entre os "direitos-liberdade': os freedoms from, e os "direitos
crença': os freedoms to. Os direitos-liberdade são os direitos fundamen ~
..,

" I
172 HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO
r A CONSTRUÇÃO DA MODERNIDADE

indivíduo de razão existindo como sujeito. [...] O direito natural, que é


173

I. i portanto a matriz dos direitos do homem22, mas ele introduz e desen-


volve um pressuposto indispensável, o do valor absoluto de cada ser o livre poder de cada um de existir e de subsistir segundo a constituição
humano. A Reforma acentuará ainda mais o valor da liberdade funda- da sua própria natureza, está no princípio da modernidade política
mental do indivíduo, por exemplo, na crítica calvinista da antiga doutrina
quando se contempla do ponto de vista de seu fundamento jurídico. A
da predestinação.
Qual foi a transformação da problemática cristã que se efetuou? idéia de que cada um dispõe por natureza, e segundo sua própria natu
Com as Declarações nós não estamos mais no domínio da teologia, reza, de um direito que é poder - potentia - de agir visando cuidar de
mesmo que a Declaração da Independência Americana se baseie em
sua própria natureza, de seu próprio ser, é fundamental porque ela funda
grande parte sobre um fundamento propriamente teológico. É certo que a
doutrina dos direitos do homem se enraíza igualmente nas convicções a capacidade do ser comum dos homens na liberdade de ser própria de
sobre o direito natural do ser humano, originárias das doutrinas de cada um. Essa é a essência do direito natural moderno, oposto ao direito
Grotius, Hobbes, Locke, Pufendorf, Wolff e Rousseau. Esta concepção do
natural antigo, para o qual a cidade não é ordenada ao cuidado de
direito natural emerge de uma dupla refutaçã023. Aquela, em primeiro
lugar, das representações medievais segundo as quais todo homem está cada um de nós, mas à existência da comunidade naturaI:'24 As Decla
ligado a um estatuto ou uma condição que determina inteiramente o que rações do século XVIII não entendem desenvolver até a excelência as
ele é. Aquela, em seguida, das concepções antigas de um direito natural
"co
que exprime a ordem universal com a qual o homem deveria se
conformar. A doutrina do direito natural propõe uma invenção maior do munidades políticas naturais", mas sim fundar sociedades políticas
pensamento moderno: a idéia de um homem em geral, de um indivíduo "artificiais" no sentido do construtivismo hobbesiano.
universal, do qual depois se terá o prazer de criticar a abstração. Esta A aplicação dos princípios é tão importante quanto sua colocação
crítica, de obediência marxista, tem um peso irrecusável. Mas ela não teórica. Entre os problemas que derivam de tomadas de posição teóri
deve nos fazer perder de vista o enfoque considerável da doutrina do cas das Declarações, selecionemos duas concernentes ao estabelecimen
direito natural, precisamente quanto à idéia de felicidade individual e to das condições de felicidade pública: primeiramente a comparação dos
coletiva. O direito natural moderno (para distinguir de suas formas métodos políticos de acesso a estas condições, que transparece na com
antigas) afirma a idéia de uma liberdade disponível para cada um de nós
paração das Declarações americana e francesa; em seguida, o conteúdo
de agir em vista de sua própria conservação. "O direito natural remete a
uma liberdade subjetiva definível como o poder de agir em vista da destas condições de felicidade pública. A comparação de método é de
satisfação. Estas três palavras - direito, poder, liberdade - são portanto licada de pensar: ela é fundamental mesmo sem corresponder a um
sinônimas. Elas formam e constituem o indivíduo moderno, o dualismo caricatural. Ela diz respeito aos atores da felicidade pública:
serão estes os próprios indivíduos ou o poder político que eles consti
tuíram? É fácil acentuar a oposição entre uma doutrina americana li
Gérard Mairet, Le principe de souveraineté, op. cit., p. 243-4. 25
24

22 J.-F. Kervégan, op. cito beral e uma doutrina francesa estadista. Contudo, é certo que há uma
Op. cit., p. 138-146, principalmente.
23 Ibidem. diferença notável de método entre as Revoluções americana e francesa
e seus assentamentos teóricos. Gérard Mairet, em seu estudo sobre Le
~ principe de souverainetf5, insiste nas análises de Tocqueville e sublinha
I
I
II~I

I
174
II I HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO
175

II f a disparidade das duas Revoluções: uma, a francesa, partiria


A CONSTRUÇÃO DA MODERNIDADE

i aristOtélico). A questão da felicidade pública corresponde em muito à do


essencial papel do Estado, mas sem que a partição passe forçosamente por uma
II
'I mente "do alto': do poder; a outra, a americana, mostraria melhor em osição diametral da França e dos Estados Unidos da América. Parece
I
~otável que este ponto da história possa designar a eventual impossibi
lillll
ato a idéia do contrato social: é o povo que funda a república, e não o
lidade de cada opção se sustentar em uma forma pura ou radical: uma
II'!!/
Estado que funda o povo. Mas a oposição é sem duvida mais complexa pura anarquia, considerando que todo governo é mau por natureza,
nos fatos, e não recorta dois campos homogêneos, um francês, o Outro suporia que a efetuação da felicidade pública poderia se fazer por pura e
'i!/III simples afirmação da liberdade; um puro estadismo, considerando que
americano, mas não é mais complexa que o fato de ela dizer respeito
",:",
somente o poder político pode assegurar a garantia dos direitos funda-
apenas à questão do primado do papel do povo ou do Estado. Jean mentais, suporia que a liberdade individual deveria ser finalmente in-
1I11

François Kervégan26 propõe de sua parte a análise seguinte: uma outra suflada em nome da igualdade, pelo menos de direito. Ora, a felicidade
pública, tal como aparece na problemática política do século XVIII,
diferença atravessaria as duas revoluções de maneira intrínseca, que impõe que pensemos esta natureza mista e aparentemente inconciliável
pesaria sobre o papel do poder político. De um lado, haveria aqueles de felicidade-liberdade e de felicidade-igualdade. Esta severa lição das
que julgam, com Robespierre, mas também com Jefferson e Thomas Revoluções coloca um dilema que agita sempre o pensamento filosófico
e político contemporâneo.
Paine, que "toda instituição que não supõe o povo bom e o magistrado
Para terminar, se abordarmos o conteúdo das Declarações, encon-
corruptível é viciada"27 e que, contrapondo-se à ordem dos direitos fun traremos os grandes princípios do pensamento de Hobbes, de Espinosa ou
damentais, concordam em considerar que é a instituição política en de Locke.
quanto tal que é um perigo maior para estes direitos. "Ao mesmo tempo,
. Em uma ordem mais lexicográfica que verdadeiramente
normativa, o "primeiro" dos direitos do homem é, com efeito, o direito à
contudo, ela pode lhes ser a salvaguarda. O governo, se lhe é lembrado
segurança, que é um dos pilares da doutrina de Hobbes. Nós já exa-
que os direitos do homem são a 'regra de seus deveres: pode garantir a minamos a doutrina de Hobbes. Recordemos aqui somente o que é mais
liberdade individual e a felicidade pública pela autolimitação; é assim, característico do pensamento de Hobbes: que o próprio motivo desta
como dirá Fichte, uma instituição de necessidade, agindo em vista de alienação salvadora que é o contrato social é a preservação da segurança
(o estado de natureza seria a negação das liberdades por elas mesmas e a
sua própria extinção.28" Por outro lado, haveria uma corrente que pen
ausência espantosa de qualquer segurança) e que a alienação despoja o
saria, ao contrário, que a organização do poder, na condição de ser exa indivíduo de todas as suas liberdades naturais, exceto o direito de
tamente pensamento, é a chave do respeito aos direitos humanos, aí segurança, como precisa expressamente Hobbes no capítulo XIV do
260p. cit., p. 673-4.
compreendidos também seus direitos naturais. É a perspectiva dos dou Leviatã. Será preciso que duas condições essenciais sejam retomadas
cito 27 Robespierre, Discurso de 24 de abril de 1793, citado por J.-F. para assegurar a segurança como direito do homem: que o poder político
trinários americanos do partido Federalista, e de Sieyes e de Condorcet
Kervégan, op.
28 J.-F. Kervégan, op. cit., grifo nosso.
não tenha de antemão direito de vida ou morte sobre os cidadãos, que ele
na França: Sieyes dirá que "a ordem é como uma seqüência, como um
não disponha mais do famoso jus vitae necisque do imperador ro
complemento da ordem natural" (aquela do direito natural no sentido
moderno, não de uma ordem comunitária .natural no sentido ~
176 177
HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO A CONSTRUÇÃO DA MODERNIDADE

mano ou do chefe da guerra; que o poder não seja uma propriedade e que . O segundo dos direitos inalienáveis do homem é o direito à liber
a relação entre soberano e súdito não seja de domínio, que ela não se dade de consciência, fundamento de todas as liberdades públicas. É neces
exerça pelo domínio mas pela lei. É precisamente para garantir o direito à sário agora sair da filosofia de Hobbes para pensar e lhe encontrar
segurança que é instaurado um Estado. Mas para que aquele não uma origem, já que acabamos de ver que, para ele, somente o direito à
venha a alienar este com a garantia que é seu objetivo, será preciso pen segurança escapa da alienação de meus direitos naturais3° no contrato so-
sar - o que será desenvolvido apenas mais tarde pelos teóricos consti- cial. É preciso, então, dirigirmos em direção a Espinosa e seu Tratado
tucionais alemães do século XIX - uma autolimitação do poder do teológico-político, no qual ele escreve que, certamente, a segurança é um
Estado: estaremos então verdadeiramente diante da idéia moderna "do motivo essencial do contrato social, mas que a instauração de um regime
Estado de direito". Observemos com Jacques Chevalier29 que a Declara político deve ter por objetivo a liberdade tanto quanto, ou ainda mais que
ção de 1789 será objeto de um debate de constitucionalistas na França a segurança: "Isto é o que visa tal sistema: liberar o indivíduo do medo
durante a lU República, entre aqueles que, como Duguit ou Hauriou, [...]; [mas] o objetivo da organização em sociedade é a liberdade!... Em
defendiam menos o conteúdo da Declaração que "a idéia de que o Esta outros termos, cada indivíduo renunciou a seu direito de agir segundo seu
do, como órgão da vontade dos governos, deve estar subordinado a uma próprio querer, mas ele nunca alienou seu direito de raciocinar nem de
ordem objetiva que ele próprio não criou" e ser baseado seja na "solida- julgar3!". Em suma, o direito à vida não é o único a ser inalienável na
riedade social" (Duguit), seja em uma "constituição social pré-existente" passagem do estado de natureza ao estado civil ou políti
(Hauriou); e aqueles que, ao contrário, como Carré de Malberg, estimam co: a liberdade de consciência também não é alienável. Não é a própria
que a Declaração perdeu todo o valor jurídico (mesmo que eles tenham vida do homem, em sua especificidade, que é um jogo? Tendo o homem
aderido à filosofia revolucionária) em nome do princípio de que "o uma vida "desdobrada" no sentido hegeliano, sua vida comporta como
Estado soberano não pode ser limitado a não ser pelas regras que ele
essência a presença da razão. Espinosa é tão sensível sobre essa questão
mesmo tenha criado". Esquematicamente, pode-se ver aí duas versões
que ele verá o regime democrático como o único capaz de respeitar a
sucessivas da doutrina da autolimitação do poder do Estado: a primeira,
liberdade de consciência, quer dizer, o homem, porque o homem é a
aquela que aparece nas entrelinhas nos Monarcômacos, de
razão. A igualdade decorre desta idéia: o regime democrático é digno do
pois na idéia de um direito natural dos indivíduos no pensamento da
homem porque é fundado sobre um pacto de associação e não de
Revolução Francesa; a segunda, que restringe o direito a ser apenas
submissão cega, e porque ele realiza a igualdade. Aqui ainda, não é pre-
positivo (positivismo jurídico) que aparece na filosofia alemã, depois
ciso ver na idéia de "liberdade de consciência" um simples civil right, no
no pensamento constitucional alemão, antes de penetrar o
sentido raso, mesmo que seja tão essencial quanto o direito de perma-
constitucionalismo francês, onde encontra uma certa resistência devida à
necer vivo, mas sim um fundamento da felicidade em uma antropolo
herança revolucionária, e que afirma que somente as regras positivas
podem restringir outras regras positivas.

30 Quer dizer aqui: os direitos que o homem teria em um hipotético estado


de natureza "anterior" ao estado "civil" instaurado pelo contrato ou pacto.
]acques Chevalier, L'État de droit, Montchrestien, 1994, p. 34, depois
29 31 Traité théologico-politique (1670), capo XX; a tradução mais atual de C.
14-22. APpuhn diz: "O fim do Estado é na realidade a liberdade", Garnier-Flammarion.

b.
178 HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO

gia filosófica que enuncia que a felicidade humana deve ser digna do ser
r A CONSTRUÇÃO DA MODERNIDADE

propriedade é uma extensão e uma e~ressão do di:ei.to natural. O pr?


179

dotado de razão que é o ser humano.


. O terceiro direito inalienável é o direito à propriedade, e ele se
prietário se torna de alguma forma o slmbolo do dIreito, e na França, a
imagem mesma que se faz do direito na Revolução Francesa"34. O que
deve a John Locke por tê-Io enunciado claramente como uma extensão
do direito à segurança: se um homem tem o direito inalienável de se proclama a propriedade privada é a existência de uma esfera de direito
apropriar de sua vida como sua coisa, ele detém, a fortiori, o direito de do indivíduo: possuir um bem simboliza para o indivíduo a possessão
se apropriar das coisas da natureza, mas não de outros homens, pois os de sua pessoa, e, desta maneira, "a idéia do direito pessoal se torna
homens não são coisas. Em seu Segundo Tratado do governo civil de com
1690, Locke precisará que na passagem do estado de natureza ao preensível a todos, ele desperta sentimentos que cada um prova em
estado civil, os homens entregam nas mãos da sociedade seus
si35".
privilégios naturais, mas com a intenção de conservar não somente suas
O que afirma também a idéia de propriedade é o direito a uma
pessoas e suas liberdades, mas também suas propriedades. A propriedade existe,
concepção privada da felicidade e a uma proteção desta contra as pos
para Locke, no estado de natureza, que é então um estado de estabilidade (e não
síveis intromissões do Estado. A idéia de propriedade privada é,
de instabilidade total como o é para Hobbes), no qual as necessidades
durante a Revolução, retomada do direito romano: "Para fazer valer a
humanas se harmonizam naturalmente com as produções da natureza. A
idéia de
legitimidade da propriedade repousa em grande parte sobre a idéia de trabalho:
liberdade no direito privado, o direito civil romano oferecia fórmulas
o que o homem produz lhe pertence. Observemos de passagem que a
todas prontas. Tratava-se de afirmar que nenhuma violação do direito
influencia de Locke sobre a Declaração de Independência americana, e
do indivíduo podia ocorrer, mesmo que fosse por parte do Estado, e
sobre o pensamento liberal por extensão, se encontra na afirmação
isto
central da legitimidade da propriedade privada e no princípio teológico
tanto do ponto de vista da independência que devia usufruir o indiví
que prevalece tão bem em Locke como na Declaração americana: Locke
duo, na esfera do direito, quanto da segurança na qual ele podia viver. Portanto,
concebe a lei natural como a própria lei de Deus tal qual nos é acessível,
não seria mais que estender a todos os particulares os direitos
não pelas vias da revelação, mas pelas únicas luzes da razão natural, e o
que o direito romano atribuía apenas a um pequeno número de cida
dever-ser que implica toda lei se entende aqui como aquele da criatura
dãos36". A liberdade é assegurada a cada indivíduo pelo direito de pro
imperfeita tentando escarnecer a perfeição do Criador32; a Declaração
priedade privada de sua pessoa e de seus bens. "O mesmo acontece
de Independência implica também a idéia de uma restauração de com a idéia de igualdade. O antigo direito civil romano parte do princípio
princípios transcendentes, as laws of nature, insufladas por um de que seus artigos devem ser igualmente válidos para todos os seus ci
monarca injust033. A idéia veiculada pelas Declarações é que a dadãos' contanto que se tratasse evidentemente de cidadãos romanos. Em
todo caso, a idéia de um direito igualmente aplicável a todos estava dada.
[...] Durante a Revolução
34 Bernard Groethuysen, Francesa,
Philosophie de laestende-se a todosGallimard,
Révolution jrançaise, os homens o
32 Alasdair MacIntyre, After Virtue. A study in moral theory, University of princípio1956,
do direito
reed. col.civil
Te1, p.romano,
237. assegurando a liberdade a todo pos
Notre Dame Press, 1981. 3S Ibidem, p. 237-8.
33 J.-F. Kervégan, op. cit., p.668. 36 Ibidem, p. 238-9

~
180 HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO
r A CONSTRUÇÃO DA MODERNIDADE

associação liberdade-igualdade, não é em definitivo uma contradição


181

suidor de bens.37" A esse respeito, pode-se notar o aparente paradoxo de


um espírito revolucionário nutrido por modelos antigos. Robert Mauzi vê flagrante? "Para que o binômio (liberdade e igualdade) não se deslo
nisto uma contradição mesmo: "Nada de mais contraditório que a que, para que um direito igual para todos à felicidade não permaneça
ambição fundadora do pensamento filosófico e seu apego às formas, às
uma fórmula jurídica, os homens do século XVIII ensaiaram diferentes
imagens, aos mitos hereditários da Antiguidade, transmitidos pelo
estratégias. Algumas foram talvez apenas verbais. Por exemplo, eles ajun
classicismo, pelo ensinamento dos jesuítas; sabeis a que ponto Diderot se
nutriu de Cícero e de Sêneca; sabeis que Montesquieu e Rousseau taram à liberdade que poderia ser um engodo e à igualdade que os fatos
sonham com a República romana..."38. O que quer que seja essa não confirmavam, um terceiro termo que é quase uma qualificação
mixagem do Antigo e do Novo na Revolução, a questão da propriedade é afetiva: fraternidade. Entre os filhos do mesmo pai, a fraternidade é um
essencial: ela permite assegurar, como um dado concreto, os princípios elo reconhecido pelo código, e ela pode até ser ácida se eles não estiverem de
de liberdade e de igualdade, de simbolizar o princípio de um direito acordo. Mas entre os homens que não têm a mesma origem fa
universal à felicidade privada (quer dizer, a uma definição subjetiva da miliar, a palavra fraternidade é um apelo ao amor, e o amor é um caminho
felicidade, desde que ela não saia da esfera privada), mas ela toca seguro em direção à igualdade na felicidade, se minha felici
também diretamente o limite econômico das definições jurídicas da dade não se dissocia mais daquela da pessoa que amo.39" A idéia de fraternidade
felicidade. Porque a propriedade privada é inevitavelmente a desi- pode levar àquela de solidariedade, mas ela permanece
gualdade. Somente uma intrusão violenta e coercitiva do Estado na esfera tanto quanto a felicidade pública se choca, com relação à questão da
privada poderia tentar transformar a desigualdade econômica em propriedade, às dificuldades da desigualdade.
igualdade: e somente tentar, pois a transformação da igualdade jurídica
em igualdade econômica tem todas as chances de ser uma pura quimera. 10. HEGEL
A idéia de aplicar à propriedade os princípios de liberdade e de
igualdade, levados às suas últimas conseqüências, devia além disso levar Se quisermos entrar na filosofia do direito de Begel por uma fórmula
a teoria da Revolução em direção a idéias socialistas, como as que simplificadora, há no mundo duas categorias distintas de ser entre os
defendia Babeuf. Voltaire tinha escrito, com uma cáustica ambigüidade, quais se deve pensar menos a oposição que a articulação: os sujeitos e as
em seu Dicionário filosófico, que "a igualdade é a coisa mais natural e ao coisas. As coisas estão enraizadas no imediatismo, na vacuidade
mesmo tempo a mais quimérica". A associação felicidade-igualdade seria ontológica que consiste apenas no sentido primitivo de ser "aí", como
então um mito fora da esfera jurídica na qual faz sentido? E a podemos dizer que esta árvore ou esta mesa estão "aí". Em suma, as coi
sas são desprovidas da consciência de si mesmas e do mundo: como diz
Begel no § 42 dos Princípios da filosofia do direito, "falta à coisa a subje

37 Ibidem, p. 239.
39 Corrado Rosso, "L' égalité du bonheur et le bonheur de l' égalité
38 Themes et antinomies du bonheur dans ia pensée du XVIII' siecle,
dans Ia pensée française du dix-huitieme siecle", in Studies on Voitaire and the
reunião
eighteenth century, col. CLV, Oxford, 1976.
de 23 de maio de 1970 da Sociedade Francesa de Filosofia, Bulletin de ia Société
française de Phiiosophie, 1970.

~
dade, porque ele é o momento da necessária objetivação da liberdade.183
A CONSTRUÇÃO DA MODERNIDADE
182 HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO
Os juristas mais positivistas poderão sempre dizer que Hegel não

tividade". O destino das coisas se revela contudo no universo jurídico apreende


porque em face dessas coisas há sujeitos, isto é, seres livres dotados d~
I
consciência que experimentam sua liberdade em um mundo de coisas o direito positivo em si: desse ponto de vista, eles terão razão no mais
ou como diz ainda Hegel, que devem "dar-se uma esfera exterior a su~ rofundo de seu erro, porque é precisamente o que Hegel não quer
I
liberdade". O sujeito é este ser que é capaz de colocar sua vontade em
~azer. O empreendimento hegeliano visa, ao contrário, mostrar que
qualquer coisa, que poderá assim tornar "a coisa" seu bem, sua proprie-
11]

dade. Há aí um duplo movimento de realização para Hegel: quando o não pode haver outro discurso que não seja profundamente filosófi
objeto se espiritualiza, o sujeito se objetiva, um e outro fazendo parte um
co sobre o direito, precisamente porque ele é por natureza o movi
do outro. É assim que todo o pensamento hegeliano tende a abolir o
dualismo clássico entre o sujeito e o objeto. Esta primeira análise, lu- mento de efetuação da liberdade, ou mais simplesmente: do ser
minosa e muito simples, tem três conseqüências importantes. A primeira humano frente às coisas. Desde então, deve-se compreender que não
é que, segundo Hegel, o sujeito que pode colocar sua vontade sobre
sendo a liberdade a de um "sujeito", mas um movimento que, da li
qualquer coisa não pode colocá-Ia sobre não-coisas, isto é, sobre sujeitos
- nesse sentido, Hegel considera como antijurídica a cláusula do direito berdade subjetiva, deve objetivar-se, Hegel é levado a modificar con
romano segundo a qual a criança era o "bem" de seu pai. A segunda é sideravelmente as teorias antigas e modernas do direito dito natural.
que, uma vez que a objetivação da vontade em uma coisa não depende Em um primeiro momento, ele se opõe ao modelo antigo de direito
senão dessa vontade particular, de um sujeito portanto, o caráter privado
natural, quer dizer, à concepção geral da Sittlichkeit da Antiguidade:
da propriedade é reconhecido por Hegel, que estima de passagem que
toda idéia de propriedade coletiva, no sentido platônico ou comunista, é nesse universo ético, o que faz falta é precisamente o "direito à parti
uma contradição nos termos. A terceira, mais geral, é de nos fazer cularidade do sujeito", quer dizer, "o direito à liberdade subjetiva". Em
compreender um traço sem dúvida característico da filosofia do direito de um segundo momento, ele rompe igualmente com as doutrinas do di
Hegel, que é a extensão considerável que ele dá ao campo do direito: o
reito natural moderno, que, sob múltiplas formas, de Hobbes a Fichte,
direito é "a liberdade enquanto idéia" (§ 29), o que implica que cada grau
de desenvolvimento da liberdade terá "seu direito próprio". passando por Rousseau e Kant, desta vez lhe parecia repousar sobre
Como compreender essa tese? É preciso sem dúvida apreendê-Ia uma concepção errônea da liberdade subjetiva. A crítica hegeliana do
como a vontade profunda do sistema hegeliano de recusar as oposições, direito natural moderno se fundamenta sobre dois argumentos liga
os dualismos, as segmentações: não há um direito "natural" oposto a um dos, dos quais retomaremos aqui a reconstrução na análise de Jean
direito "positivo", uma "moral" oposta ao "direito", uma filosofia oposta
François Kervégan40. O primeiro é de ordem meto do lógica: consiste
às instituições, mas uma única liberdade que se desdobra em graus
diversos. Para Hegel, o direito não é um domínio àparte que trabalha em refutar o próprio método das teorias clássicas do contrato social
sobre as limitações ou sobre as restrições da liberdade: ele é o momento que baseia a instituição contratual de uma ordem jurídica sobre o nada
Jean-François Kervégan, "Apresentação" de sua tradução de Principes de
crucial e necessário de uma filosofia da liber normativo
40
do estado de natureza, de onde surgiriam espontaneamente
Ia philosophie
vontades individuaisdu droit de Hegel,
e livres. "AoPUF, 1998, p. 28-9.
contrário", escreve J.-E Kervégan,
"convém para Hegel conceber a individualidade (a subjetividade mo
~ ral) e a forma jurídica da individualidade (a personalidade) como
T
historicamente, politicamente e socialmente constituídas. O indiVÍduo
,
184
e
HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO
A CONSTRUÇÃO DA MODERNIDADE 185
nquanto se entende por isso nada mais que a simples singularidade
b
cendente com relação a um positivo: ao contrário, ele é uma configuração
iológica, não existe por si mesmo, e é uma falha de método - que até ideal que regula de maneira imanente o direito positivo. Ou ainda, como
I
t/' escreve J.-F Kervégan: "O direito racional não é diferente do direitO
m
.

,
positivo, mas a razão é que está presente nele e que se revela e se realiza
esmo Rousseau cometeu, ele que é tão cuidadoso de não transpor
I1

11
1
historicamente. Em suma, o racional está alojado no coração da
!/
.1 1

I1I

ao homem natural as propriedades do homem social- deduzir as de positividade, e é no movimento do direito em si que é preciso tentar
1 terminações do direito e do Estado daquelas hipostasiadas da indivi apreendê-Ia". A filosofia do direito de Hegel implica, de parte a parte, em
uma crítica radical da ética dos Direitos Humanos, pelo menos se eles
dualidade 'natural: Em outras palavras, o homem, o indiVÍduo humano forem pensados sobre o modelo do jusnaturalismo clássico, o que
em sua abstração, é um produto da história, e não seu substrato não engloba ainda a filosofia do direito de Kant aos olhos de Hegel, que vê
I histórico". O segundo é de ordem especulativa: leva ao próprio Con nela a busca de uma transcendência do direito racional sobre o direito
positivo. Mas esta condenação é uma absolvição atribuída à violência da
ceito de liberdade. "As doutrinas jusnaturalistas", prossegue J.-F.
História? Ou ela é ainda uma apoteose do Estado prussiano? As con-
Kervégan, "fundando-se com efeito sobre um postulado, a liberdade denações severas se abateram sobre a filosofia da efetuação que parece
'natural' do indivíduo humano, são necessariamente conduzi das a dissolver os direitos do homem nos deveres do cidadão para com o Es-
abandonar ou a relativizar em seguida esta liberdade primeira, na tado, concebido como lugar alto da racionalidade da História. Assim éa
de Ernst Bloch, em Droit naturel et dignité humaine. Entretanto, podese
medida em que elas representam a ordem jurídica e política como uma
ler igualmente o pensamento de Hegel como uma doutrina da rejeição
restrição, ou rigorosamente como uma supressão; desse modo, a so não da própria idéia de Direitos Humanos, mas do humanismo abstrato
ciedade civil, tanto sociedade política quanto sociedade de direito, que eles podem veicular. Para Hegel, se a liberdade é o princípio do
aparece como sua efetuação. [...] No final das contas, o jusnaturalismo, direito, os direitos do homem não são mais que um momento relativo do
em razão de seu individualismo metodológico, desconhece a deter direito. O que importa para ele é promover a sua realidade para o homem,
concebido como membro da sociedade civil, e isto ocorre em dois níveis:
minação verdadeira desta liberdade que ele coloca em princípio, que por um lado, no âmbito de um Estado racional cujo princípio, diz Hegel,
é de ser processual e não substancial': é "o reconhecimento do direito da particularidade de encontrar, na
Em suma, todo o erro do jusnaturalismo recai sobre a ilusão de realização de seu dever substancial, a satisfação de seu Interesse
subjetivo"; por outro lado, "no seio do Estado propriamente dito, o
uma liberdade imediata do indivíduo, que ele teria de coordenar em homem enquanto tal, quer dizer, como indivíduo social, intervém
seguida por restrições, na forma de um contrato entre "vontades livres': enquanto cidadão, participando do poder legislativo. A sociedade civil
Ora, a liberdade não é um dado natural, salvo quando se considera consagra como imagem do Estado o momento essencial que ela constitui
para ele. O reconhecimento do homem e de seus direitos pelo Estado
como
racional mede bem, para Hegel, o poder deste, que se nutre do sentimento
Hegel que a liberdade é bem "natural': com a condição de se de um indivíduo liberado de ter em sua comunidade sua
compreen
der que sua naturalidade implica na instituição de uma segunda natureza,~
186 187
HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO A CONSTRUÇÃO DA MODERNIDADE

essência substancial':41 Toda a questão se resume a saber o que se ganha treComte e Kelsen pela mediação das sociologias de Durkheim,
ou o que se perde em pensar os direitos do homem de maneira "mais que se
concreta e mais verdadeira"42 com Hegel do que com Kant. inscreve na linha do primeiro, e de Max Weber, que se aproxima do se
undo. Trata-se igualmente de apresentar aqui, apenas brevemente, al
:uns dos movimentos de pensamento que trabalham o século XIX como
11. OS POSITIVISMOS
tantas outras formas de positivismo.
Sob diversas formas, que vamos esboçar aqui, desenha-se no curso
. Em primeiro lugar, é preciso sem dúvida evocar a escola da
exegese
do século XIX um movimento positivista, se entendermos como unidade
mínima do conceito de positivismo relativo ao direito a vontade de que teve seu momento de glória na França entre 1830 e 1880. O plano
excluir o justo da noção de direito. As duas formas mais célebres de de fundo desta escola é a codificação francesa: o código civil de 1804,
positivismo são, sem sombra de dúvida, primeiramente a formulada pela rapidamente denominado código de Napoleão, depois o código de pro
doutrina de Auguste Comte sobre o modo de uma filosofia geral, e em cesso civil de 1807, os códigos de comércio e de processo penal de
segundo lugar aquela que se liga ao direito do século XX pela doutrina de 1808, o código penal de 1810. A escola da exegese pretende excluir do
Hans Kelsen, que será estudada mais tarde. Há uma oposição entre o direito
positivismo dos filósofos e o positivismo dos juristas? Alain Renaut e qualquer filosofia: ela quer para si a garantia de uma estudo da ordem
Lukas Sosoe puderam mostrar a este respeito, contra "a lenda que jurídica positiva e codificada. Mas nesse mesmo gesto, ela veicula uma
pretende que não exista qualquer relação entre o positivismo filosófico filosofia estadista e juspositivista, liberando assim o Estado "dos limites
originário de impostos ao seu poder que o jusnaturalismo dos séculos XVII e XVIII
A. Comte e o positivismo jurídico sistematizado por Kelsen"43, que acreditava poder deduzir do que havia considerado ser o direito natu-
existe uma filiação principalmente através da sociologia durkheimiana. ral"44. A codificação, depois sua exegese, foram na França potentes
A evolução sem dúvida será para pensar em termos de estado de espírito motores a serviço do positivismo e do estadismo: o valor absoluto atri-
geral: em Auguste Comte, o positivismo não é desprovido de otimismo, buído outrora ao direito natural, nas doutrinas jusnaturalistas, encontrou-
mesmo de ingenuidade, estando o cientificismo ligado de uma vez ao se transferido para o direito positivo editado pela vontade soberana
progresso; com Kelsen, o cientificismo será tornado mais prudente, do Estado.
quase desencantado: não se crê mais, doravante, no caráter ilimitado do . Em segundo lugar, é preciso lembrar a evolução do pensamento
progresso nem no poder exorbitante da racionalidade científica para inglês da mesma época. Sabe-se que a corrente utilitarista foi determi-
resolver todas as questões que se apresentam à humanidade. Mas sobre a nante na filosofia anglo-saxônica. Seu inspirador, Jeremy Bentham
questão precisa do direito, a evolução não se limitaria aqui à filiação en (1748-1832), teve uma posição particularmente original no que concerne
à questão do direito: no universo anglo-saxão da common law, isto é, de
um sistema jurídico concedendo um amplo espaço à jurisprudência e ao
41 Bernard Bourgeois, Philosophie et droits de l'homme, PUF, 1990, p. 95-6.
42 Ibidem, p. 75. poder do juiz, ele desenvolveu uma crítica severa a Blackstone (do qual
A. Renaut e L. Sosoe, Philosophie du droit, PUF, 1991, p. 340. ele tinha sido aluno), que foi um dos mais entusiastas defensores da
43
44Guido Fasso, Histoire de la philosophie du droit, LGDJ, 1976, p. 11.
tradição da common law, e propôs uma doutrina da codificação.

..,
188 HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO

Esse projeto de sistematização "contra-natureza" do sistema anglo-saxão


r vem, sobre fundo de utilitarismo, uma doutrina rigorosamente im

perativa, estadista e positivista do direito. Uma norma jurídica é carac189


A CONSTRUÇÃO DA MODERNIDADE

terizada por Austin como sendo uma norma imposta por um


mandamento soberano, e nela mandamento, sanção e dever são termos
liga Bentham ao projeto das Luzes, pelo menos quanto à vontade de inseparavelmente ligados. Em suma, todas as normas que não se apre
racionalizar a legislação, mesmo que ele recuse por outro lado a doutrina
dos direitos inatos desenvolvidos pelas Luzes. A doutrina de Bentham sentam como mandamentos de onde, por uma ameaça de sanção, deri
teve logo um destino contrariado: favoravelmente acolhida va um dever, não constituem direito45. Mas qual pode ser então a
pelos pensadores do Velho Continente, ela não encontrou, contudo , natureza destas normas não-jurídicas? Elas realçam, segundo Austin, a
q
positive morality, a "moralidade positivà', isto é, elas derivam de
ualquer sucesso prático, porque nenhuma das nações às quais Bentham
havia endereçado seu sistema de legislação a adotou. A Inglaterra per- opiniões
maneceu, de sua parte, hermética a esta vontade de importar a
comuns: as "leis" sobre a honra, a moda, o próprio costume, desde que
codificação continental no sistema da common law. Mas o verdadeiro
sucesso de Bentham está além: no fundo, ele foi o iniciador da teoria do não se tenham tornado obrigatórias pela autoridade soberana; enfim,
positivismo, uma vez que ele tentou depurar o conceito de direito de todo também o direito internacional, que é litigioso e coloca o positivismo
elemento extrajurídico a fim de construir uma ciência do direito
perfeitamente autônoma. Contudo, será essa tentativa positivista no jurídico, como diz G. Fasso, em grande dificuldade. Diferente de
sentido mais moderno do termo, no sentido da doutrina kelsiana, por Bentham, Austin não ataca de frente o sistema anglo-saxônico da
exemplo? Certamente não. A ambigüidade que destacamos na doutrina
common law. Ao contrário, ele tem a habilidade de articular seu
de Hobbes é reconduzida na de Bentham: certamente, a lei é o man-
damento daquele que tem poder sobre outrem, e o sistema de direito deve positi
ser um conjunto de "sinais" coerentes emanando do soberano; mas o vismo com o sistema jurídico específico da Inglaterra. Assim, reconhe
objetivo que uma lei deve visar é belo e bem definido por Bentham como ce o caráter jurídico da common law, especificando que o direito é
sendo o "bem público", em conformidade com o princípio de utilidade da
doutrina utilitarista. Desde então, essa teleologia utilitarista introduziu justamente o direito positivo, mesmo que ele não emane diretamente
um elemento claramente ético-político no empreendimento "científico" de autoridade soberana, mas só indiretamente, pelo viés de um poder
benthamiano, da mesma forma que o telos da paz e da segurança proibia conferido. O direito criado pelos juízes no sistema jurisprudencial per
ver na doutrina hobbesiana uma verdadeira forma de positivismo. manece como direito estadista, uma vez que deriva indiretamente do
De fato, a "via positiva" aberta na Inglaterra por Bentham somente
Estado soberano, que conferiu voluntariamente seu poder de decretar
será retomada realmente por seu célebre discípulo, o filósofo John Austin
(1790-1859). Austin tem uma importância capital na evoluçãO da o direito a tais juízes. Da mesma forma, Austin permanece no quadro
filosofia do direito anglo-saxônico: ele não apenas radicaliza o posi- da common law quando recusa a priori a idéia de um caráter exaustivo
tivismo de Bentham, mas lhe dá uma orientação "analítica", isto é, lógi- da ordem jurídica. Para terminar, ele tempera a idéia do que se pode
co-descritiva. Lectures on jurisprudence or the philosophy of positive law
fazer com uma G.
45 Segundo doutrina docit.,
Fasso, op. positivismo
p. 22. jurídico, introduzindo uma
de JohnAustin, publicadas após sua morte entre 1861 e 1863, desenvol
espécie de instância reguladora na ciência do direito: sem reintroduzir
~ o direito natural, que não recusa por princípio mas julga ser errado em
segundo ele, as leis e, forçosamente, os códigos, impõem uma rigidez
191
contra-natureza ao direito, que deve, ao contrário, seguir os mean
190 A CONSTRUÇÃO DA MODERNIDADE

~ HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO

dros da prática e do costume e permanecer como a expressão mais ime


deveria ser". Mas a legislação austiniana de nenhum modo reconduz ao diata possível da consciência jurídica de um povo. O romantismo de
"idealismo" dos jusnaturalismos clássicos: trata-se de construir uma ciên-
cia do direito a partir de uma realidade empírica, constituída pelo direito Savigny rejeita passo a passo a teoria de um direito natural imutável,
positivo racionalizado, e não partir de "abstrações" julgadas
como a de um direito positivo construído racionalmente. Se a "cons
inconsistentes.
. Em terceiro lugar, é preciso voltar-se para o pensamento alemão ciência jurídica popular" remete ao conceito romântico de Volksgeist
para apreender como o historicismo jurídico vai chegar, pelo
pandectismo, a uma "jurisprudência de conceitos" bastante próxima da (o "espírito de um povo"), o verdadeiro "direito natural" (do qual
"jurisprudência analítica" da escola austiniana. O historicismo alemão é Savigny torna preciso que ele não tem mais, evidentemente, nenhu
primeiro uma reação contra o racionalismo construtivista das Luzes,
concebendo o direito como a expressão da vontade do legislador e, ma relação com o sentido habitual da expressão) não é nada mais que a
paralelamente, contra o "mito" do direito natural. A escola historicista via histórica e espontânea do direito, que se manifesta em atos sim
opõe a essas duas teses a idéia de um direito originário de uma criação
bólicos coletivos e nos costumes.
popular espontânea e enraizada historicamente. Notarse-á que o precursor
À obra de Savigny deve ser associada a de Georg puchta, autor
da escola histórica alemã do direito, Gustav Hugo (1764-1844), foi
igualmente inspirador direto de uma parte do título da obra de John principalmente de Traité sur le droit coutumier, publicado entre 1828 e
Austin (Filosofia do direito positivo). Como Austin, Hugo considera que
1837. Em princípio, o historicismo, sob a forma que acabamos de
o direito positivo é originário de um único mandamento estadista, e a
partir disso exclui como ele o direito internacional da esfera do que pode evo
ser verdadeiramente o direito. O historicismo alemão aparece claramente car, se opõe ao positivismo. Contudo, a escola histórica do direito im
na polêmica entre Thibaut e Savigny. Anton Friedrich Justus Thibaut
plica sem dúvida em muito mais positivismo que a escola francesa da
(1772-1840) defende na Alemanha uma versão racional do
jusnaturalismo. Professor em Heidelberg, Thibaut pensava que era exegese ou a escola anglo-saxônica da jurisprudência analítica, no sen
preciso unificar todas as leis em vigor nos diversos Estados alemães e tido em que ela nega todo valor superior à história e no fundo reduz o
fundi -Ias em um único código. A inspiração pré-kantiana de seu
pensamento, que remete aos trabalhos de Wolff, desenha-se na idéia de direito ao próprio fato das normas em vigor. Aliás, a dimensão
que um sistema racional dos direitos naturais deve permitir constituir de positivista
maneira sistemática um sistema de direito positivo, sob a forma de um da escola histórica aparece em outros escritos de Savigny, e mais clara
código único ordenado de maneira lógico-sistemática. Friedrich Karl von
mente ainda nos de puchta, uma vez que ambos desenvolvem um mé
Savigny (17791861) se opôs a Thibaut, em 1814, em um célebre
opúsculo intitulado todo formalista visando fazer do direito um tipo de ciência pela
Da vocação de nosso tempo para a legislação e a jurisprudência. elaboração científica do direito em vigor (a ciência jurídica será, assim,
Savigny recusa claramente o próprio projeto de uma codificação do
uma fonte de direito). O conceito romântico de Volksgeist é
direito:
colocado a
~
192
HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO

cia dos conceitos" (Begrijfsjuridprudenz46). O positivismo jurídico fir


mou-se na Alemanha, portanto, pela via aparentemente desviada do
historicismo jurídico.
T ERCEi RA PARTE
--
A CRISE DO DIREITO NO SÉCULO XX
AqlAÉ MARyioli

O aporte de Puchta é nesse sentido exposto em detalhes por Alfred Dufour,


46

Droits de l'homme, Droit naturel et histoire, op. cit., p. 188.

~
.
,

As TEORIAS FORMALlSTAS 195

I
.
6
I
I
O primeiro objetivo da ciência do direito é a sistematização, operação
intelectual que constrói seu objeto de maneira que não impõe, do exterior, a
CApíTUlo
coerência interna necessária à esfera jurídica, mas tenta extrair essa coerência
dos materiais jurídicos, estando livre para ser às vezes conduzida a estabelecer,
por dedução, as regras jurídicas não explicitamente formuladas nos textos
normativos, tenham elas origem legal ou nos costumes I. É neste caso
AS TEORIAS FORMALISTAS necessário, como dissemos, que a ciência do direito constitua uma fonte do
direito para a Jurisprudência dos conceitos (Begriffsjurisprudenz). O
positivismo jurídico qualificado como positivismo científico é, por conseguinte,
distinto do positivismo da lei que conheceu o pensamento revolucionário e pós-
revolucionário francês. O pensamento jurídico alemão encontrará posteriormente
na obra de Karl Bergbohm (Jurisprudenz und Rechtsphilosophie, obra publicada
em 1892, quatro anos antes da codificação do código civil alemão) a expressão
por excelência do positivismo jurídico. Essa concepção assimilou no fundo o
direito em si ao direito do Império. O direito será assim identificado como
1. O PARADIGMA FORMALlSTA DE HANS direito positivo, e a obra de Karl Bergbohm tenta se separar da Jurisprudência
KELSEN dos conceitos, do positivismo conceitualista, inclusive qualificando este,
principalmente como foi expresso no trabalho de Puchta, como "direito natural
1.1 O contexto epistemológico de emergência do anônimo" 2.
normativismo . O segundo objetivo da ciência do direito é sua autonomia: "pen-
sar o jurídico a partir do jurídico", sem preocupação com as considera-
Na Alemanha do início do século XX, o positivismo jurídico ori- ções éticas, políticas, históricas, sociológicas ou psicológicas.
ginário da escola histórica do direito e do pandectismo encontra seus A sistematização e a autonomia do pensamento jurídico são então os
primeiros críticos. A escola livre do direito e a jurisprudência dos interes dois componentes do que se chamou na Alemanha de allgemeine
ses, dois movimentos de teoria jurídica que são com freqüência Rechtslehre (teoria, ou doutrina, geral do direito), que seguiu a publica-
qualifi ção, em 1874, da obra de Adolf Merkel intitulada Da relação entre filo
cados como correntes sociológicas, não impediram, contudo, a
busca de dois principais objetivos que o pensamento jurídico científico
fixou ao
longo de todo o século XIX: reunir de maneira sistemática o material
jurídico, ou seja, as regras jurídicas existentes, estabelecer relações en IOlivier Jouanjan, "Science juridique et codification en Allemagne (1850
tre essas regras de modo que elas revelem de que maneira umas condi 1900)", Droits, 27,1998, principalmente p. 72-6.
2 Olivier Jouanjan, op. cit., p. 73.
cionam as outras, reconduzir essas regras aos princípios jurídicos
existentes e, enfim, submeter esses princípios aos conceitos fundamen
tais a fim de pensar em uma autêntica autonomia da ciência do direito. ~
li"

196 197
HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO As TEORIAS FORMALlSTAS

sofia do direito e ciência do direito 3, querendo definitivamente pôr critica aquele que foi seu mestre em Heidelberg, G. Jellinek, e sua teoria
UIl1 fim em toda especulação filosófica no domínio jurídico.
do Estado e do direito.
Entretanto, o paradigma da ciência jurídica será revolucionado pelo
Georges Jel1inek diferenciou-se de Gerber e de Laband por não ver
pensamento de Hans Kelsen (1881-1973), autor da Teoria pura do direito
no Estado e em seus súditos (seus assujeitados) simples relações de força,
(Reine Rechtslehre) 4, publicada pela primeira vez em 1934, quando
as mesmas sobre as quais se apoiaram as teorias jurídicas do Estado de
Kelsen, depois de ter fugido da Alemanha nazista, vivia em Genebra. A
Gerber (teoria da dominação) e de Laband, às vezes mesmo contraria-
Teoria pura do direito, como seu nome indica, não se contenta COIl1
mente ao que os próprios textos legais estabeleciam de maneira explícita
uma teoria (ou doutrina) "geral" do direito que agrupe os conceitos e os 6. A dominação (Herrschaft) como critério de definição do Estado é um
princípios jurídicos de diferentes ramos do direito sob a égide de alguns conceito certamente necessário, segundo Jel1inek, mas insuficiente. Ele
conceitos fundamentais que pudessem ao mesmo tempo encerrar a reconhece, com efeito, que o indivíduo não é puro objeto do poder estatal,
palavra Direito e tornar manifesta sua unidade. É preciso bem mais, que permaneceria puramente passivo e não disporia de nenhum "direito
segundo Kelsen, que esses conceitos fundamentais, que reagrupam o público subjetivo" frente ao Estado. "O reconhecimento do indivíduo
conjunto dos outros conceitos jurídicos e se encontram no topo "de urna corno pessoa, afirma ele, é o fundamento de todas as relações
genealogia dos conceitos': para retomar a expressão familiar à escola jurídicas:'? Isso significa que o Estado deve, no mínimo, garantir o
histórica do direito, sejam depurados de toda consideração ético-política. desenvolvimento livre dos indivíduos, reconhecê-Ios como pessoas
É esta ausência de pureza no mais alto nível da construção teórica que ele autônomas, embora inferiores à personalidade jurídica do Estado 8. Os
constata no trabalho de seus predecessores. Kelsen, como ele "direitos públicos subjetivos" implicam, segundo os termos do autor,
mesmo reconhecerá no prefácio de Allgemeine Staatslehre, apóia -se so- apenas um status negativus: a não intervenção do Estado neste espaço de
bre o trabalho de três fundadores da escola alemã do direito público: liberdade autorizado pelo
Gerber, Laband e Jellinek 5. Sua tese de habilitação, intitulada Proble- próprio Estado. Em outras palavras, esse status negativus não é senão a
mas fundamentais da teoria jurídica do Estado (Hauptproblemen der conseqüência de uma situação positiva, de um status positivus estabeleci-
Staatsrechslehre, 1911), contém efetivamente o essencial daquilo que se do pelo próprio Estado. Contudo, a limitação do Estado pelo direito de-
tornará em seguida, com a Teoria pura do direito, o normativismo. riva da Vontade do próprio Estado, e não de direitos naturais existentes
Kelsen independentemente do Estado. Trata-se de uma autolimitação do Estado

6 A propósito de Gerber, ver Olivier Jouanjan, Carl-Priedrich Gerber et Ia


3 G. Fasso, op. cit., p. 145. constitution d' une science du droit public allemand, in La science juridique française et Ia
4 A primeira tradução francesa da Reine Rechtslehre (Teoria pura do direi science juridique allemande de 1870-1918, Anais da Faculté de Strasbourg, n. 1,1997, p.
to), por Henri Thévenaz, foi publicada em 1953. Uma segunda versão desta obra, 60.
modificada por Kelsen e publicada em 1960, foi traduzida em francês por 7 G. Jellinek, System der subjectiven offentlichen Rechte, Freibourg, 1982,
Charles Eisenmann, em 1962, para as edições Dalloz. Nós faremos referência a p. 5, citado por C.-M. Herrera, Théorie juridique et poli tique chez Hans Kelsen, éd.
este último texto doravante sob a abreviação TPD2. Kimé, 1997, p. 81.
5 S. Paulson, prefácio a Théorie générale du droit et de l'État de Hans Kelsen, 8 A. Manitakis, O Estado de direito e o controle judiciário de constitucionalidade (em

LGDJ, p. 2. grego), Atenas, 1994, t. I, p. 113-4.

~
198 199
HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO As TEORIAS FORMALlSTAS

pelo direito e não de uma heterolimitação, quer dizer, de uma limitação duto da construção jurídica" ll. O conceito da Vontade do Estado esta-
vinda do exterior (a Razão, a Natureza). Dessa maneira, a teoria da belecido pela teoria tradicional não chega a concluir o sistema jurídico,
autolimitação (Ihering, Jellinek) encontra sua última etapa na Vontade do e por isso não pode satisfazer a exigência de autonomia pela qual Kelsen
Estado, o que não é mais que uma transposição perfeita da autonomia definiu a verdadeira teoria do direito. Com efeito, a concepção tradicional nos
da vontade (contrato) que se encontra em direito privado. Assim, coloca diante das duas possibilidades seguintes: seja considerando o direito
serádireito tudo o que é "desejado" pelos órgãos ou os funcionários do como o produto da força, a do Estado, e neste sentido o direito será
Estado, contanto que estes ajam no quadro delimitado e finalizado de pensado em termos de poder e, portanto, em termos de fato; seja, se
suas funções legislativa, administrativa e jurisdicional. O objetivo quisermos temperar essa primeira concepção, obrigando-nos a pensar as
atribuído à administração é "a conservação da cultura do Estado por considerações ético-políticas como as da autonomia da vontade e da liberdade
oposição à legislação e à justiça, que têm por objetivo a criação e a individual, fundadoras da concepção liberal do século XVIII. Ora, o
proteção dos direitos dos indivíduos" 9. Cada uma dessas três funções, pensamento político e jurídico de Kelsen renega tanto
condicionada pelo objetivo específico que persegue, faz com que a vontade dos uma como a outra dessas duas possibilidades. Em suma, a concepção
titulares des normativista de Hans Kelsen se baseia em duas teses fundamentais: por
sas funções seja simultaneamente a Vontade do próprio Estado. Contudo, um um lado, enquanto teoria positivista do direito, ela defende a tese de uma
certo número de questões permanece sem resposta. Como é que se pode, por separação do direito da moral (o domínio jurídico é independente
exemplo, passar da vontade das "pessoas físicas': dos autores da lei ou dos dos preceitos morais do direito natural, isto é, independente de uma teoria
funcionários da administração, à vontade unificada do Es da justiça); por outro lado, a tese normativista propriamente dita, que
tado, pessoa jurídica, como quer a "teoria dominante" na época? O que quer distinguir o direito do fato (o direito é distinto do poder ou, como se
garante que a lei, e portanto sua validade, não poderão estar associadas escreve às vezes, do "direito-poder" 12). Assim, em virtude dessa últi ma tese, a
ao que os autores da lei desejaram subjetivamente - no sentido psicológico do derrubada da concepção jellinekiana e do positivismo jurídico tradicional
termo? 10 (de Benthan a Austin) que Kelsen vai operar é muito espetacular: será
Kelsen então vai criticar a posição de Jellinek como também a da considerado por ele como "desejado" pelos órgãos do Estado o que é
teoria racional (Gerber e Laband), estigmatizando a sua falta de "pureza" objetivamente e "realmente" válido. Em outras palavras, será imputado
e de cientificidade: o psicologismo e o pensamento teleológico são, ao Estado o que é estabelecido por uma norma jurídica objetivamente
segundo ele, elementos extrajurídicos que traem com isso a autonomia válida. Resta estabelecer com precisão os critérios pelos quais esta norma
do pensamento jurídico. "O conceito da vontade do Estado não tem será dita objetivamente válida. É nisso que consiste o
nenhuma relação", escreve ele, "com os fatos psicológicos da vontade. A objetivo primeiro da teoria pura do direito. A busca de objetividade da
vontade do Estado deve ser considerada exclusivamente como o
pro
9 G. Jellinek, L'État moderne, t. II, p. 317, citado por D. Boutet, Vers l'État de droit,

L'Harmattan, p. 178. Carré de Malberg, Contribution à la théorie générale de l'État, II H. Kelsen, Hauptproblem..., 2a ed., 1923, p. 184, citado e traduzido por
Sirey, 1920, t. 1, p. 263. C.
10 S. Paulson, op. cit., p. 13. l-Ierrera,op. cit., p. 80. Os itálicos são nossos.
12 Stanley Paulson, "Continental Normativism and its British
Counterpart:
l-Iow Different Are They?", in Ratio Juris, voI. 6, n. 3, dezembro de 1993, p. 231.
200
HISTORIA DA FILOSOFIA DO DIREITO

reflexão sobre o Direito (e por conseqüência, a "demanda de cientifici-


dade") é a peça-chave da Teoria pura do direito. A seguir, vamos primei
ro examinar as duas teses do normativismo de Hans Kelsen, para passar
r fatO daquilo
As TEORIAS FORMALlSTAS

que deve ter lugar de direito. Ora, a realidade do. direito é


rnuito diferente: o dever-ser de um comportamento pode ser mdepen
201

dente da significação subjetiva que lhe pode conferir o emissor de uma


em seguida aos postulados da sua concepção relativos à ciência do di- ordem. Em direito, o dever-ser tem um significado exclusivamente ob
reito.
jetivo, independente das considerações pessoais dos emissores das or
dens. Por essas primeiras considerações, a doutrina kelsiana consegue
esvaziar uma das dificuldades maiores que encontramos na concepção
1.2 Uma concepção anti-imperativista do direito irnperativista do direito, principalmente aquela de J. Austin. Lembre
mos aqui que, para ele, a validade do direito positivo, a validade das leis
A filosofia positivista do direito do século XIX, que remonta a do soberano, era tributária da obediência incondicional dos indiví
Bentham e a Austin, definia o direito como o ato de mandamento do duos ao legislador soberano provido de um poder ilimitado. A conse-
legislador combinado com a ameaça de uma sanção. Essa é uma con- qüência dessa concepção, não realçada pelo próprio Austin, era bem
cepção imperativista do direito, segundo a qual a norma jurídica é o ato desagradável: a substituição do legislador supremo por um outro devia
de vontade do legislador, que consiste em obter de outrem um com- ser seguida por uma mudança da própria ordem jurídica, porque não se
portamento determinado em uma situação precisa. Ela será criticada por obedecia às leis, mas à pessoa do legislador 14. Contudo, o im-
Kelsen na Teoria pura do direito e também em sua General Theory of perativo expresso na lei pela vontade do legislador deve, segundo
Law and State 13. Um ato de mandamento emitido por um agente, Kelsen, sobreviver ao ato de seu pronunciamento, mesmo quando ele
observa Kelsen nas primeiras páginas da Teoria pura do direito, com tenha deixado de existir. "Dizer", explica Hans Kelsen, "que o sentido
porta em si mesmo a vontade subjetiva do agente de obter de outrem um objetivo do ato é, ele também, um Sollen (quer dizer, alguma coisa que
comportamento determinado. É a significação subjetiva daquilo que deve deve ser) é exprimir a idéia de que a conduta que o ato visa a
ter lugar. determi
Contudo, observa ele, é uma condição necessária, mas não nar deve ter lugar não mais somente do ponto de vista do indivíduo que
suficiente, para que um ato de vontade como aquele do legislador coloca o ato, mas igualmente do ponto de vista dos terceiros de-
adquira uma significação jurídica. Se o mandamento do legislador se sinteressados; isso mesmo quando, na realidade, o querer que significa
esgotasse na significação subjetiva que atribui a seu ato, reflete Kelsen, subjetivamente um Sollen tenha deixado de existir. [...] Então o Sollen é,
retomando o exemplo canônico tirado da Cidade de Deus de Santo enquanto Sollen objetivo, uma 'norma' que vale, que 'está em vigor',
Agostinho, como se poderia distinguir os mandamentos do legislador das
ordens dadas
14 Cf. Joseph Raz, The Concept of a legal system, Oxford, Clarendon Press, p. 94-5.
por um bando de bandidos? Se fosse assim, em outras palavras, não se
É a razão pela qual C. Schmitt considera que o positivismo de Austin porta Um
saberia distinguir, nas duas situações evocadas, o que deve ter lugar de verdadeiro decisionismo, in Les trois types de pensée juridique, PUF, 1995, p. 103; ver
também: Neil MacCormick, "Legal obligation and the imperative fallacy", in A. W. B.
13 H. Kelsen, Teoria generale del diritto e deZ Stato, Milão, 1952, p. 31 (publi Simpson, Oxford Essays in Jurisprudence, Oxford, Clarendon Press, 1973, p. 100-
cado em inglês em 1945). 129.

~
Ir

202
HISTÚRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO As TEORIAS FORMALlSTAS 203

que liga o destinatário'~ 15 Os atos do legislador permanecem,


é superior, isto é, a Constituição. Trata-se então da formação do direito
sem dú por graus que constitui a aplicação da teoria de MerId. A questão que se
r I vida, sendo atos de vontade, escapando por conseqüência de toda justi coloca imediatamente é a de saber de que norma superior a Constituição
ficação fornecida pela Razão, mas com a condição, dirá Kelsen, de que tira sua validade e, conseqüentemente, sua força obrigatória.
esta Vontade está ligada a uma norma. Mas o que é a norma? Contrariamente às outras normas, essa norma superior à Consti-
tUição não é, afirma Kelsen, escrita ou colocada. É uma norma hipotéti-
1.3 O direito como sistema das normas hierarquizadas
ca, uma norma suposta pelo pensamento jurídico, chamada de norma
A norma é um esquema de interpretação da realidade. fundamental. Ela serve de fundamento de validade à Constituição, à
Quando pessoas em uma sala levantam a mão enquanto outras não norma do direito positivo que se situa no topo da ordem jurídica. A
levantam, é norma fundamental comporta de fato uma única prescrição: "deve-se
pelo viés da norma, que é assim um instrumento de compreensão da conduzir conforme a Constituição efetivamente instituída e eficaz" 16;
realidade: pode-se compreender que o que se passou nessa sala foi a em outras palavras, ela deve se conformar às normas do poder
votação de uma lei. Uma norma pode ordenar, habilitar ou permitir. constituinte. A norma fundamental não prescreve nada quanto ao
Dessa maneira, o legislador que prescreve uma conduta determinada conteúdo da Constituição estabelecida, que pode, por exemplo, ter
está habilitado por uma outra norma jurídica, que lhe confere origem nos costumes, como a da Grã-Bretanha. É a dimensão dinâmica
explici do sistema, relativa ao modo de criação de normas. A Constituição, por
tamente esta habilitação. Logo, obedece-se a normas jurídicas, e não a sua vez, pode simplesmente instituir as autoridades habilitadas a
simples mandamentos. Obedece-se ao direito, conjunto de normas, e estabelecer normas jurídicas ou, ao mesmo tempo, prescrever um certo
não ao fato (ato) de enunciação de ordens. Os mandamentos não terão o conteúdo ao qual devem se conformar as regras estabelecidas por essas
significado objetivo de um Sollen, isto é, o significado de um ato de di- autoridades. Um certo número de princípios, como aqueles da igualdade
reito, a menos que uma norma jurídica dê aos criadores dessas normas e da liberdade ou aquele da indivisibilidade da República, estabelecidos
jurídicas esse poder. Nos Estados modernos, a norma não é outra pela Constituição, será decisivo para o conteúdo das normas legislativas.
senão a Constituição, quase sempre escrita e, em princípio, superior às Esta é a dimensão estática do sistema, relativa ao conteúdo das normas a
outras normas. Da mesma forma, interpretar a assinatura por dois in criar, que se opõe à dimensão dinâmica do sistema. "O que caracteriza de
divíduos de um papel como a conclusão de um contrato, só é possível fato o tipo dinâmico': afirma Kelsen, "é o fato de que a lei fundamental
pelo viés de uma norma jurídica, o código civil, que confere aos indiví pressuposta não contém nada mais que a instituição de um fato criador de
duos a possibilidade de criar entre eles normas jurídicas (obrigações normas, a habilitação de uma autoridade criativa de normas ou - o que dá
contratuais) que se aplicam exclusivamente às partes contratantes. Tais no mesmo - uma regra que determina como devem ser criadas as normas
normas serão obrigatórias e, conseqüentemente, válidas somente se es- gerais e as normas individuais da ordem que se baseia nessa
tiverem de acordo com as normas superiores, ou seja, o código civil que
é a lei do legislador; esta, enfim, deve estar de acordo com a lei que lhe

15 TPD2, op. cit., p. 10-1.


16 TPD2, op. cit., p. 287.
~
204 205
HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO As TEORIAS FORMAlISTAS

norma fundamental".1? Um pouco mais adiante: "os sistemas de nor se situam fora da ordem jurídica positiva é supor, segundo ele, a
mas que se apresentam como normas jurídicas têm essencialmente Ulh existência de uma moral absoluta e única à qual se deveria conformar o
caráter dinâmico"1s. Apesar da ambigüidade que exprime este "essencial- direito
mente': podemos afirmar com Michel Troper que "o conteúdo da nor
positivo. Ora, isso vai evidentemente contra o relativismo moral e, mais
ma inferior a criar [u.] nunca é logicamente deduzido da própria lei
fundamental" 19. A norma fundamental não prescreve nenhum geralmente, o relativismo axiológico de que é prova toda ordem jurídica
conteúdo. Dessa forma, Kelsen pretende afastar a visão jusnaturalista do concreta e historicamente determinada. "Sublinhar a necessidade", afir
direi ma Kelsen, "de separar o direito da moral e, portanto, da justiça sobre o
to, que teria preferido que a norma fundamental, enquanto norma não fundamento de uma teoria relativista de valores" não significa que "o di
colocada (situando-se, portanto, fora do sistema jurídico positivo), com reito não tem nada a fazer com a moral". Isso "significa somente que ao
porte princípios de justiça, condicionando assim o conteúdo do direito julgar moral ou imoral, justa ou injusta uma ordem jurídica, indica -se a
positivo. Isso é inconcebível aos olhos de Kelsen, que reivindica com relação que há com um dos numerosos sistemas morais possíveis e não
firmeza a rejeição categórica do jusnaturalismo e, através disso, a sepa com a Moral [u.]; assim, a validade de uma ordem jurídica positiva é in-
ração do direito e da moral ou dos princípios de justiça2°. dependente da sua conformidade ou não conformidade com um sistema
moral qualquer".21 Fica claro que a posição kelsiana somente se
1.4 A rejeição do jusnaturalismo
concebe na perspectiva de uma teoria universal do direito e, por
o dualismo direito positivo/direito natural é, segundo ele, acréscimo, pura; em suma, aquela onde a unidade, para não dizer a
insustentável por uma razão simples mas fundamental: fazer depender a unicidade de toda or
validade dem jurídica positiva possível, não pode vir do conteúdo de uma ordem
de uma ordem jurídica de sua conformidade com preceitos de justiça que jurídica, mas de sua forma, ou seja, do mundo de criação de normas ju
rídicas. O jusnaturalismo do conteúdo é assim substituído, não importa o
que diga Kelsen, por um jusnaturalismo da forma. Seguindo os dois
17 Idem, p. 259. Kelsen se refere aqui tanto ao direito positivo quanto aos

sistemas normativos morais. As normas individuais são as normas cujos destinatários enfoques, que serão apenas aparentemente opostos, a validade do direito
são normalmente designados: "Dupont é condenado a três anos de prisão fechada': positivo deriva somente de princípios universalmente válidos: uns se re-
18 Idem, p. 261 (os itálicos são nossos). ferem ao conteúdo (teorias substanciais do direito natural), outros à for
19 M. Troper, Kelsen, "La théorie de l'interprétation et Ia structure de l'ordre ma (norma fundamental habilitando uma autoridade criadora das normas).
juridique': in Pour une théorie juridique de l'État, PUF, col. Léviathan, p. 91. Os O argumento kelseniano responde, de forma relativamente satisfatória, às
itálicos são nossos. teorias de direito natural universalistas substanciais. Mas seu argumento,
Hans Kelsen, "Law and Morality'; in Essays in Legal and Moral
20
que se deseja positivista, não responde em nenhum caso
Philosophy, editado por Ota Weinberger, Dordrecht, 1973, p. 90-3 e publicado pela
às teorias "jusnaturalistas" de conteúdo historicamente variável; pensase
primeira vez
em Estudios Juridico-Sociales. Homenaje ai professor Luiz Legaz y Lacambra, em aqui no enfoque da escola histórica do direito 22, segundo a qual o direito
1960; extratos reproduzidos em Le positivisme juridique (sob a direção de Michel Troper, positivo, longe de se esgotar na vontade arbitrária do legislador
21Idem.
Christophe Grzegorczyk e Françoise Michaut, LGDJ, 1993). Cf., do mesmo autor, 22Ele qualifica igualmente a escola histórica de "puro direito natural" pelo
Positivisme juridique et doctrine du droit naturel, in Mélanges Jean Dabin, p. 141.

~
fato
l 206 HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO
As TEORIAS FORMALlSTAS

ttlÍ seu objeto (o direito), mas, por um resvalo de sentido, ela se torna
207

instituído, corresponde ao espírito do povo (Volkgeist) como ele se ma- aO mesmo tempo uma propriedade essencial desse objeto (o Direito),
nifesta em uma sociedade historicamente determinada. Mas o fundo da
oU seja, a norma suposta da qual deriva a validade, quer dizer, a
argumentação kelseniana se inscreve bem na continuidade do positivismo
tradicional, que faz da Vontade 23 a fonte do direito. O direito é o produto exis
da Vontade do legislador e não da Razão. É preciso sem dúvida explicar
tência jurídica das outras normas. "Pela palavra 'validade"', afirma
aqui que esta última é, durante este período, duplamente desacreditada.
Primeiro porque as ciências exatas, em plena floração, acentuaram con- Kelsen, "nós designamos o modo de existência específico das
sideravelmente o aspecto empírico, técnico e calculador da Razão, apare-
normas:'25
cendo, por exemplo, no desenvolvimento que conheceu no início do
século XX o positivismo lógico; em seguida porque o próprio Em suma, "uma norma é válida se e porque foi criada de uma certa
historicismo filosófico concebia que nada mais neste mundo pode ser maneira, que determina uma outra norma"; "por sua vez, esta norma
colocado como universal, incluindo evidentemente o Direito,
também foi regulada por outras [u.] e este andamento regressivo ter
"reforçando" assim o positivismo jurídico 24. A posição de Kelsen se
inscreve, no final das contas, nessa tradição, ainda que traia o segundo mina finalmente na norma fundamental- norma suposta [u.] que
aspecto, uma vez que sua doutrina é universalista. funda e sela a unidade deste sistema de criação" 26. O direito é aqui

de
1.5 Validade e eficácia da ordem jurídica finido por sua forma, ou seja, pelo modo de produção de normas ju
Torna-se então indispensável tentar apreender bem o duplo sig- rídicas. A norma fundamental, em seu duplo significado, tanto
nificado que adquire a norma fundamental da ordem jurídica. Ela é o epistemológico quanto ontológico, confere a juridicidade, o caráter
pressuposto lógico-transcendental do pensamento jurídico que consti
jurídico às normas estabelecidas. Contudo, a problemática kelseniana
é igualmente "jusnaturalista" quanto a um outro aspecto estreitamente
de que esta escola fazia da ciência do direito uma fonte de direito, in Hans Kelsen, "Qu' ligado àquele que acabamos de ver. No sistema de Kelsen, é válida a
est -ce que Ia théorie pure du droit?': Droit et Société, 22-1992, p. 566-7.
Kelsen não pode conceber o direito de outra forma senão como
23
norma que obriga de maneira objetiva. Assim, quando Kelsen se in
produto da vontade, mesmo quando ele se refere à corrente de pensamento que terroga25sobre
TPD2,ap.força
13. obrigatória do sistema jurídico em seu con
faz da Natureza a fonte do direito. É necessária, segundo ele, uma norma
junto, em outras
26 Idem, palavras,
p. 299; quando
as palavras em ele coloca
itálico a questão
são nossas. da validade
Troper da
evoca justamente
fundamental instituindo uma autoridade criadora das normas porque "se a
vontade criadora da norma não está na vontade de Deus expressa na natureza, o
Constituição em que se baseia a validade de todas as regras da ordem
não há resposta para a questão de saber como essa vontade criadora de normas caráter exclusivamente epistemológico para afastar a acusação do jusnaturalismo,
jurídica, ele coloca de fato a questão da sua legitimidade.
entrará na natureza': in Positivisme et doctrine du droit naturel, op. cit., p. 143. em La pyramide est toujours débout! Réponse à Paul Amselek, Revue du droit
Também Hans Kelsen, What is Justice?, Berkeley, University of California A questão de fundo é, para dizer a verdade, fortemente tradicio
public,
Press, 1957. nal: por que eu deveria obedecer ao direito positivo? Na teoria positivista

~
Alain Renaut, Qu'est-ce que le droit? Aristote, Wolffet Pichte, J. Vrin, 1992, p.1I. 1978; para opinião contrária, Patrick Wachsmann, "Le kelsénisme est-il en cri
24
do direito tradicional, a do século XIX, que vai de Bentham a Austin,
se?" .
a questão da legitimidade
. , m Droits, 4,1986, p. 53. da ordem jurídica encontra sua resposta no
208
209
HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO As TEORIAS FORMALlSTAS

fato de que as regras jurídicas são aceitas pelos membros da socieda das da maneira habitual:'29 Seja em Kelsen, seja em Max Weber, a obediên
de, sem qualquer consideração de ordem ética. A eficácia das regras cia dos súditos ao direito não deve se basear exclusivamente na força, mas em
jurídicas, isto é, dos mandamentos do soberano, para falar COl11o sua adesão a um poder legitimado pelo sistema de regras previamente
Bentham e Austin, é suficiente para explicar, sobre o plano exclusiva estabelecidas. Em razão das dificuldades que apresentam a "crença
mente jurídico, a aceitação do direito positivo. É essa concepção que J. weberiana na legalidade" e o caráter híbrido que termina por adquirir na
Raz qualifica como "normatividade social" (social normativity). Em realidade essa terceira forma de dominação em Max Weber, torna -se plausíve1
contrapartida, a concepção jusnaturalista baseia a legitimidade do direito pensar que a posição de Kelsen acaba se aproximando aqui da con
positivo em princípios que tendem a justificar, de um ponto de cepção clássica (imperialista) do direito. A legitimidade da ordem jurídica
vista objetivo e universal, o dever-ser (o Sollen) das normas jurídicas. em seu conjunto, sua validade, afirmará Kelsen, é condicionada pela eficácia
É dessa concepção qualificada por Raz como "normatividade dessa ordem. ''A eficácia da ordem jurídica, sendo tudo': escreve ele,
justificada" (justified normativity) que se aproxima, segundo ele, a po "é condição de sua validade"; ele acrescentará que "uma ordem jurídica é
sição kelseniana 27. Com efeito, o dever-ser das normas jurídicas no considerada como válida se suas normas são eficazes, quer dizer, efetiva~ mente
sistema de Kelsen é dotado da significação objetiva de um ato de direito, obedecidas e aplicadas, grosso modo e de maneira geral". "E podese
que lhe confere, em última instância, a norma fundamental. Essa dizer", conclui ele, "que o princípio de legitimidade vê seu império
significação é puramente formal, porque é relativa exclusivamente ao limitado pelo princípio da efetividade".3O Kelsen afirma que as duas no
modo de criação das normas jurídicas. A questão da legitimidade da ções, eficácia e validade da ordem jurídica, não se identificam uma com a outra;
ordem jurídica em sua globalidade, a questão da validade em termos não é menos verdadeiro que sua concepção não parece chegar a evitar o
kelsenianos, é identificada com a legalidade de seu exercício 28. Desta erro cometido, segundo ele, pela teoria tradicional, a saber, que um fato
maneira, a posição kelseniana faz pensar, em uma primeira abordagem, naquela
se torna a condição da normatividade (objetiva) jurídica. O fato, "o
de Max Weber, em que a legitimidade do direito racional éidentifica da com a
simples fato, historicamente e sociologicamente verificável, como
nos faz observar Bobbio, de que as obrigações impostas [...] pelo po
legalidade deste. ''A forma hoje em dia mais seguida
der último são efetivamente obedecidas" se encontra por trás da norma
de legitimidade': afirmava Weber, "é a crença na legalidade, quer dizer, a
fundamental. "Pois bem, após essa explicação", prossegue ele, "a norma
disposição de obedecer a prescrições formalmente corretas e estabeleci
fundamental se torna perfeitamente supérflua".3l

27 Joseph Raz, "Kelsen's theory of the basic norm", in American ]ournal of 29 Max Weber, Wirtschaft und Gesellschaft, Tubingen, 1925, p.19, citado por S.

jurisprudence, 1974, p. 105, retomada em The authority oflaw, Oxford, Clarendon Cotta, "Éléments d'une phénoménologie de Ia légitimité", in Annales de philosophie
Press,1979.
politique, 7,1967, p. 63. Ver também Michel Coutu, Max Weber et les rationalités du
28 "O princípio de que as normas de uma ordem jurídica também valem por droit, LGDJ, 1995, p. 64 e 188.
tanto tempo que sua validade não tem fim de maneira que seja determinada por esta ordem 30 TPD2, p. 286-7, bem como a p. 281.
jurídica, ou que ela não dê lugar à validade de uma outra norma desta ordem, é o principio 31 Norberto Bobbio, "Sur le principe de légitimité", inAnnales de
de legitimidade"; H. Kelsen, TPD2, op. cit., p. 278. philosophie
POlitique, n. 7,1967; número consagrado à Idéia de legitimidade, p. 55.
1 211
210 HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO As TEORIAS FORMAlISTAS
I

I
Além disso, poderíamos acrescentar que, para poder encontrar a rídica de seu "primeiro período", doravante enfatiza mais o próprio ato
norma fundamental que valida todas as regras do sistema, é preciso de vontade que institui essas normas do que o significado (objetivo) con
observar, segundo Kelsen, os fatos pelos quais a ordem jurídica é criada e ferido a esse ato por uma norma superior. Isso, evidentemente, como
aplicada. É preciso já ter identificado sociologicamente a norma fun- vamoS ver, não fica sem conseqüência quanto ao estatuto da ciência do
damental efetivamente aceita tanto pelas autoridades que criam e aplicam direito. A posição kelseniana aparece, então, bastante próxima daquela
o direito quanto pelos cidadãos, para poder em seguida determinar seu dos realistas norte-americanos, cujo empirismo levado ao extremo é
37
conteúdo 32. Em suma, a norma fundamental da qual não se coloca .. KI op
jamais, segundo Kelsen, a questão da validade é antes de tudo "a quali- osto ao pnmeIro e sen .
ficação normativa de um fato sociológico" 33. Ela contribui
igualmente para definir o direito pela sua forma no sentido indicado '.6 As dificuldades internas do
anteriormente. Em sua obra póstuma, Teoria geral das normas 34, a norma normativismo
o que acabamos de ver nos leva a formular duas observações so
fundamental não aparece mais como o pressuposto lógico-transcendental
bre as dificuldades internas do normativismo.
pelo qual o pensamento jurídico puro, e não apenas o dos juristas, como
se diz muitas vezes, constitui seu objeto. Ela se torna doravante uma pura
. A primeira observação diz respeito às duas teses do normativismo.
Pode-se considerar, em primeiro lugar, que a tese que consiste em sepa
ficção 35 e se diferencia de seu estatuto anterior, o de ser uma
rar o direito do fato fracassa profundamente. É testemunha a tentativa de
hipótese lógico-transcendental, porque ela é "acompanhada pela
fundamentar a ordem jurídica de preferência sobre uma regra do que
consciência de que não corresponde à realidade': idéia que já estava
sobre o poder (summa potestas). Ora, contrariamente às pretensões
presente em um artigo que Kelsen escreveu em 196436.
kelsenianas, as condições de existência de uma ordem jurídica sejam tal-
Quanto às próprias normas jurídicas, Kelsen, mantendo durante esse
vez duas: sua positividade, o fato de ser instituída pelo poder constituinte
último período de sua carreira a estrutura piramidal da ordem ju
no momento de sua criação, e a eficácia quanto à sua continuidade e
permanência. A validade da ordem jurídica em seu conjunto se liga a
esta última. Em contrapartida, para o que concerne às normas do siste-
Hans Kelsen, General theory of Law and State, Harvard University Press, 1945 (
32
ma, suas condições de existência são três: a positividade (serem instituí-
o conteúdo da norma fundamental, explica Kelsen, "is determined by the facts through das), a validade (válidas desde que não sejam anuladas por não se
which an order is created and applied': citado por J. Raz, Kelsen's Theory of the conformarem às normas superiores) e, enfim, sua eficácia, porque
basic norm, op. cit., p. 98). não "se considera válida uma norma que nunca seja de fato obedecida ou
33 Philippe Coppens, Introduction à l'article de Hans Kelsen, Droit et Société,
aplicada" 38. A outra tese da teoria normativista, a de separar o direito
22-1992, p. 538.
34 H. Kelsen, La théorie générale des normes, ed. alemã, 1977; trad. fr., PUF, 1997.
35 Não escondamos, contudo, que as últimas concepções de Kelsen certamente
não são de uma clareza decisiva e definitiva sobre este ponto. Ver a este propósito a 37 Para uma apresentação detalhada da evolução do pensamento kelseniano, ver

introdução de M. Losano à edição italiana de A Teoria geral das normas, Einaudi, 1985. Mario G. Losano, Introduction à l'édition italienne de la Théorie générale des l1armes,
36 Ele escrevia isso já em 1964, em Die Funktion der Verfassung, in Die Wienef Einaudi, 1985, p. XVII-LXI.

~
rechtstheoretische Schule, Viena, 2 vol., citado por C. Herrera, op. cit., p. 70. 38 TPD2, op. cit., p. 298.
212
HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO 213
As TEORIAS FORMALlSTAS

da moral no sentido que recebe essa distinção na problemática do ju junto 41. O direito, afirma ele, é "uma ordem de constrangimento"
rista austríaco, isto é, aquele da distinção entre direito positivo e direito
(TPD2,
natural e, mais particularmente, entre direito positivo e uma certa Con-
149). Enfim, estabeleçamos isso no quadro de nossa reflexão
cepção da justiça, não é nada satisfatória. A separação do direto e da
sobre a
moral se baseia, no final das contas, no relativismo dos valores, concep
~~paração entre direito positivo e direito natural. O normativismo de
ção neokantiana muito difundida nessa época e particularmente con-
Hans Kelsen não realça, segundo o realista escandinavo Alf Ross, um
siderada por Max Weber39. Mas, repitamos aqui brevemente, Kelsen
verdadeiro positivismo jurídico e digno deste nome, uma vez que coloca
fundamenta a distinção entre direito e moral (justiça) sobre essa tese
as mesmas questões da problemática jusnaturalista: a do fundamento da
epistemológica sem, contudo, chegar a respeitá-Ia totalmente: ele recusa
obrigatoriedade das regras jurídicas (por que devo obedecer ao direito
o jusnaturalismo porque é fundado, segundo ele, sobre preceitos
positivo?). Kelsen está à procura do que, em direito, obriga de um ponto
universais ditados, seja pela Razão, seja por Deus. Não obstante, ele
de vista objetivo, real, autêntico. "A idéia de uma norma verdadeira ou
substitui o universalismo do conteúdo das normas, variáveis segundo as
de um dever objetivo", escreve Alf Ross, "é exatamente a que professa a
contingências históricas, pelo da forma, que é o do procedimento de
filosofia jusnaturalista".42 Neste caso, conclui ele, Kelsen é um quase-
produção das normas jurídicas pelo legislador competente. Em outras
positivista.
palavras, ele não apreendeu que o formalismo jurídico que ele preconiza
. A segunda observação diz respeito à questão da criação das
constitui também uma escolha axiológica, "una scelta politica" (uma
nor
escolha política), como dizia Umberto Scarpelli em Cos'e il positivismo
mas jurídicas. Constituindo um todo hierarquizado, a ordem jurídica se
giuridico 4°, não fosse porque essa concepção exclui qualquer outro modo de
apresenta, no sistema de Kelsen, como um processo contínuo de criação e
produção de normas jurídicas além daquele da autoridade habilitada, em
de aplicação das normas jurídicas. A criação de uma nova norma
último recurso, pela norma fundamental. A distinção entre direito e
implica a aplicação de uma outra norma à qual a nova norma deve ser
moral como distinção entre dois sistemas normativos, como quis o jurista
conforme para ser válida. Considerada deste ângulo, a ordem jurídica
austríaco, vai se basear finalmente no fato de que a sanção resultante da
constitui um processo dinâmico mais precisamente no sentido de que o
violação do sistema de direito é socialmente imanente e organizada; o
direito positivo regula ele mesmo a sua criação. "Regulamentando sua
que não vale para o sistema normativo da moral. Dessa
criação e sua aplicação", afirma ele, "as ordens jurídicas fixam o começo
maneira, ele retoma à concepção tradicional tendo como única diferença
e o fim da validade de suas normas" (TPD2, p. 278). O sistema jurídico
que a sanção não é um atributo essencial de cada norma jurídica tomada
se apresenta então como um sistema autopoiético e Kelsen se revela aqui
individualmente, mas da própria ordem jurídica em seu con
como M.umTroper,
41
precursor da teoria dos sistemas autopoiéticos de Niklas
"Vn systeme pur du droit. Le positivisme de Hans Kelsen", in La force
Luhmann e de
du droit, éd. Günther
Esprit, Teubner43.
p. 127; N. Bobbio, "Diritto e Forza", in Studi per una teoria
generali de! Diritto, Turim, 1970, p. 119.
39 C. Colliot- Thélene, Le désenchantement de l'État. De Rege! à Max Weber, 42 Alf Ross, "Validity and the conflict between legal positivism and
Minuit, 1992, p. 128.
natural
4°U. Scarpelli, Cos'e il positivismo giuridico, Ed Di Comunità, Milão, law", in Revista juridica de Buenos Aires, 1961, p. 78.
1965, 43 Ver infra. A esse respeito, François Ost, "Le droit comme pur systeme", in
capo VII.
La force du droit, éd. Esprit, 1991, p. 145.

~
214 215
HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO As TEORIAS FORMALlSTAS

1.7 Teoria pura do direito ou teoria do direito puro? O 1l1ento em direito deve partir do que é dado (factum) à ciência do direi-
dualismo irredutível do Ser e do Dever-Ser to, para remontar a seu princípio, que será sua condição de possibilidade.
Buscar as pressuposições epistemológicas da ciência do direito que
Atribui-se com freqüência como fonte de inspiração epistemológica tOrnam possíveis a própria experiência jurídica ou, para dizer de outra
da obra kelseniana o neokantismo, por suas duas escolas: a Escola de I1laneira, que tornam inteligível o objeto desta ciência que é o direito
Marbourg (Cohen, Natorp e Cassirer) e a Escola de Bade (Windelband e positivo é o objetivo principal da ciência do direito. E o que é imediata
Rickert). Sabe-se que o "retorno a Kant" 44, segundo a "palavra de or- I1lente dado à ciência do direito, seufactum, é o Sollen (o dever-
dem" dada por Zeller em 1862 em sua aula inaugural em Heidelberg ser). Assim se apresenta a teoria pura do direito: "Como teoria que
(Sobre o significado e a tarefa da teoria do conhecimento 45), foi a palavra- propõe um método específico de conhecimento de direito, ela encontra
mestra do neokantismo, em um momento decisivo da história intelectual problemas de lógica. Partindo do fato da ciência do direito, ela [u.]
alemã e européia, o da distinção fundamental operada durante esse estabelece as condições de possibilidade dos enunciados relativos às
período na Alemanha entre as "ciências exatas" e as "ciências do obrigações, aos direitos, à responsabilidade, aos sujeitos de direito, às
espírito", a qual encontra suas origens nas obras de Droysen, pessoas físicas e morais, aos órgãos, à competência e às outras coisas
Schleimacher e Dilthey. A busca de objetividade para a ciência do direi- desse tipo. Por esse meio, ela alcança o conceito central de todo
to, enquanto ciência do espírito, entendia não ser menor que aquela das conhecimento ju
ciências exatas. "O idealismo em geral", afirmava Cohen em O princípio rídico, o conceito de norma, que exprime a idéia de que qualquer coisa -
do método infinitesimal e sua história (1883), "reconduz as coisas aos quer dizer, um comportamento determinado - deva ser".48 Kelsen,
fenômenos e às idéias. Em contrapartida, a crítica do conhecimento dis- seguindo sobre este assunto Cohen (Ética do querer puro, 190449), separa de
seca a ciência nas pressuposições e nos princípios que são supostos em forma radical o ser (sein) do dever-ser (Sollen). Contudo, o que parece
suas leis e para elas. Como crítica do conhecimento, o idealismo tem paradoxal no seio de sua teoria é que o ser e o dever-ser são para Kelsen
menos por objeto as coisas [.u] que os fatos científicos".46 O factum da ao mesmo tempo dois modos de pensamento, em suma, duas categorias
ciência, ciência da natureza ou ciência do espírito, é o ponto de partida originais de pensamento que constituem o mundo, e duas realidades bem
"de um método transcendental que remonta de um dado à sua condição distintas. Em sua obra Hauptproblem, como nos faz observar Carlos
de possibilidade" 47. Encontram-se os traços dessa concepção na Herrera 5°, Kelsen afirma que o Sollen é um modo de pensamento de
construção kelseniana da Teoria pura do direito. A teoria do conheci estrutura lógico- formal equivalente àquele pelo qual se exprime o
presente, o futuro ou o passado, sem que forneça mais expli

44 Sobre os diferentes e sucessivos "retornos a Kant" no neokantismo e para uma

tipologia das escolas neokantianas alemãs, ver T.-C. Billier, Kant et le kantisme, Hans Kelsen, "Qu' est -ce qu'une théorie pure du droit?", in Droit et Société,
48

Armand Colin, 1998. 22, 1992, p. 552. Os itálicos são nossos.


45 A. Philonenko, L'École de Marbourg, Cohen-Natorp-Cassirer, Vrin, 1989, p. 9. 49 Idem, p. 68. Cohen se afasta assim da posição de Kant, cuja separação
46 H. Cohen, citado por A. Philonenko, op. cit., p. 8. entre a Razão teórica e a Razão prática não era mais que relativa e, além disso, para
47 Richard Assuied, "Hermann Cohen", in Dictionnaire des philosophes, proveito de um primado da Razão prática sobre a Razão teórica.
pUE 2a ed., p. 616. 50 Op. cit., p. 42.
cações quanto ao fundamento dessa concepção. Da mesma forma, na

Teoria
216 pura do direito, Kelsen se contentará em afirmar que a diferença
HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO
As TEORIAS FORMALlSTAS 217
entre sein e sollen é irredutível e que de fato "a diferença entre Sein e
Sollen, 'ser' e 'dever' ou 'dever ser' [... ] é dada à nossa consciência de a norma jurídica que prescreve uma conduta precisa, é aqui concebido de
maneira imediata" 51. O mundo do ser (sein) é submetido ao duas maneiras diferentes. Do ponto de vista sociológico, a norma é
apreendida como "causa ou efeito da conduta do homem agindo"; do
princípio da
ponto de vista jurídico, a norma é apreendida em sua normatividade pura,
causalidade e se exprime pela fórmula "se A é, B é ou será"; ao passo como imputação de um efeito normativo a um fato determinado (a
conduta prescrita). Mas nos dois casos devemos ressaltar que o objeto
que
como tal, isto é, o conteúdo da própria norma, permanece idêntico.
o mundo do dever-ser é submetido ao princípio da imputação, e se ex Assim, as ciências sociais não parecem construir, ab initio, seu objeto
prime pela fórmula "se A é, B deve ser': pelo viés de um método particular. Elas adotam, a cada vez, um ponto de
vista particular que modifica a perspectiva e o horizonte da pesquisa.
O que retém principalmente a atenção de Kelsen, durante todo o
Essas considerações e as fórmulas utilizadas por Kelsen - um método que
período que vai até a década de 1960, é a idéia de que o que ao mesmo tempo constrói e descreve seu objeto - tornam manifesta, se
não o caráter antinômico, pelo menos a ambigüidade de sua tese 54. Quando
diferencia
se fala da "criação de um objeto" e "conforme à teo ria do conhecimento de
as ciências da natureza das ciências sociais diz respeito Kant", explica Kelsen, é em dois sentidos precisos: introduzir ordem no
caos das percepções sensíveis (natureza) ou no caos da "massa das
essencialmente
normas jurídicas" (direito) (TPD2, p. 98-99). Sua posição reconduz então
ao método. Na Teoria pura do direito, as ciências da natureza a uma retomada ingênua de Kant, e parece assim se situar, como foi
constituem muitas vezes observado, entre o neokantismo e um positivismo
o que Hans Kelsen chama de ciência causal, que é explicativa e "primitivo" como aquele de Ernest Mach que, no início do século XX,
queria terminar definitivamente com o substancialismo metafísico. Os
descreve
elementos, os átomos, o mundo interior e o exterior se reduzem, segundo
seu objeto sob o domínio do princípio da causalidade ("se um metal é Mach, aqui próximo da concepção humiana, a um conjunto de relações
aquecido, ele se dilata"). Em contrapartida, a ciência do direito e a éti funcionais que novamente questiona o que a metafísica tradicional
ca, isto é, a ciência da moral, são ciências normativas. Elas descrevem concebia como coisa-substân
seu objeto, as normas jurídicas ou as normas morais, sob o domínio do
princípio da imputação ("se alguém cometeu um crime, deve ser puni
do" 52). As outras ciências sociais, a sociologia, a história, ou mesmo a
51 TPD2, op. cit., p. 7-8. 54 Esta ambigüidade é expressa por Michel Troper: "Ora as ciências da natureza e as

psicologia, podem descrever seu objeto sob o princípio da causalidade. ciências sociais descrevem seu objeto que lhes pode ser comum, cada Urna
52 Hans Kelsen, Théorie pure du droit, Dalloz, 1962, p. 118. Esta segundo o princípio que lhe pode ser próprio [...]; ora as relações de causal~dade e de
Elas serão também, pelo menos segundo Kelsen, exclusivamente cau
distinçãO imputação são concebidas como presentes no seio mesmo dos respectIvos objetos de
sais. Em seu artigo "O que é uma teoria pura do direito?': escrito em cada uma das ciências", in Les théories volontaristes du droit, em Paur une théorie
particular é relacionada por Herrera, op. cit., na obra de Windelband, fazendo a
1953 (entre as duas edições da Teoria pura do direito), Kelsen afirma juridique de l'État, op. cit., p. 62.
distinção entre "lei natural" e "norma':
que Op. cit., p. 555.
53

~
219
As TEORIAS FORMALlSTAS
218 HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO

pois a estrutura própria do direito (positivo) é unicamente aquela que


cia. Esta idéia de substituir os conceitos-substância por conceitos-função
vel11 de seu modo de existência específica, ou seja, de sua validade
é também aquela que exprimirá mais tarde um outro neokantiano ,
E baseada
rnest Cassirer (Substância e função), ao qual Kelsen se refere explicitamente
na norma fundamental. A insistência de Kelsen sobre o caráter episte
em Der soziologische und der juristiche Staatsbegriff, em 192255,
O Estado, escreverá igualmente Kelsen naqueles anos, não é um l11ológico desta última não chega a "depurá-Ia" dessa dimensão
poder-substância; ele deve de preferência ser definido em função das PelaOteoria pura do ciência
direito, escreve Kelsen, o"apoiando-se sobre por
uma
regras jurídicas que regem sua existência. O poder-substância é assim
ontológica
1.8 que ela
objeto da
confere do direito
ao "mundo jurídico": direito é definido

substituído, para tomar emprestada a expressão de C. M. Herrera, pela comparação


sua forma, de seu
quer dizer, todos os de
modo fenômenos
produção.considerados relevantes do
norma-função. O Estado (poder) e o direito não são duas entidades se- 'direito',
paradas. O ser (o poder) se separa do dever-ser (a norma jurídica). O
pode-se também buscar sua essência (do direito), sua estrutura
dualismo irredutível do ser e do dever-ser permanecerá intacto ao longo
da carreira do jurista austríaco, embora quanto ao fundamento desse própria
dualismo o pensamento de Kelsen seja progressivamente modificado. No
[u.)' Essa é a tarefa de uma teoria geral, quer dizer, de uma teoria não li
fundo, sua concepção se aproxima da concepção de Hume, que lhe serve
de suporte para a separação do ser do dever-ser. Não se poderá deduzir mitada a uma ordem jurídica particular. Ela deve determinar o método
dos fatos, afirmará Kelsen em seus escritos, uma proposição normativa. específico e os conceitos fundamentais através dos quais qualquer direito possa
Do ser não se pode deduzir um dever-ser (lei de Hume56). Seu ser concebido e descrito".58 A teoria pura do direito deve ser, conforme des
enfoque empírico será cada vez mais claro em suas obras posteriores,
tacamos anteriormente, uma teoria universal do direito que estabeleça a
principalmente em sua obra póstuma, Teoria geral das normas, a tal
ponto que o jurista austríaco rejeitará Kant, desta vez explicitamente: "Na estrutura do Direito, de todo direito positivo possível. A ciência do direi
filosofia de Kant, não se pode encontrar um dualismo entre o ser e o to poderá então descrever qualquer ordem jurídica positiva. A teoria
dever-ser. [u.] O conceito da razão prática (é) em si contraditório (porque pura do direito significa simultaneamente o fim de toda teoria geral do
ela) é ao mesmo tempo conhecimento e vontade".57 Em suma, o
direi
dualismo do ser e do dever-ser oscila, em Kelsen, entre a posição que
deseja que somente uma teoria pura do direito possa apreender o direito to. O empreendimento kelseniano se parece muito com aquele do pri
positivo, uma teoria "depurada" das considerações metafísicas, éticas e meiro Wittgenstein (Tractactus logico- philosophicus), que parece
políticas, e a que coloca o objeto do direito ontologicamente puro, encerrar
a própria possibilidade de um discurso filosófico. Contudo, as dificulda
55 Carlos M. Herrera, op. cit., p. 46-9. des internas da teoria pura do direito não param aí. Descrever um objeto
Ver, entre outros, em Positivisme et ia doctrine du droit naturei, op. cit., p. 58 Hans Kelsen, "Qu' est -ce qu'une théorie pure du droit?", in Droit et Société,
é descrever uma realidade, nesse caso a do direito positivo e das normas
56

147-8.
22,1992, p.
jurídicas. 552.
Mas de qual realidade se trata mais precisamente? Kelsen colo
57 Théorie généraie des normes, ed. italiana, p. 129.

~
ca então a distinção entre as normas jurídicas (Rechtsnormen), que são o
objeto da ciência do direito, e as proposições normativas (Rechtssãtze),
220

HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO


As TEORIAS FORMALlSTAS 221

pelas quais a ciência do direito descreve as normas jurídicas ". A ciência do


em vigor, somente uma das duas normas deveria ser válida. Isso eviden-
direito, afirma Kelsen, não terá mais que estabelecer normas juridica.s temente vai de encontro a todo "realismo jurídico" possível, pois um sis-
tema de direito pode, de fato, conter normas jurídicas antinômicas. A
ou prescrever o que deve ser, mas simplesmente descrever as normas do ciência do direito, contrariamente às declarações de Kelsen, não se con-
tenta com a descrição do que está em vigor no interior de um sistema de
sistema, em outras palavras, designar as normas válidas do sistema. Pode
direito positivo, mas ela pretende, além disso, eliminar as antinomias,
se apresentar o raciocínio kelseniano da seguinte maneira: se uma nOr "depurar" o sistema do direito positivo. Kelsen, justamente sobre o as-
sunto da ciência normativa do direito, escrevia que "na medida em que
ma é válida enquanto está conforme a uma norma superior, a proposição ela é um conhecimento 'puro' do direito, (ela é) conhecimento do direito
puro ou do Estado puro" 61. Além disso, a partir dos mesmos
que afirma a existência e a validade de uma norma jurídica deverá apoi
postulados, já que se pode deduzir uma proposição de direito de duas outras
ar-se sobre uma outra proposição, que afirmará a existência e a validade proposições seguindo as regras de inferência da lógica formal que lhes são apli-
cáveis, pode-se fazer o mesmo, sugere ele, a respeito das normas jurídicas
da norma superior, e assim por diante, até que se chegue à norma funda válidas do sistema (TPD2, p. 102). Deduzir das normas válidas do sistema outras
normas jurídicas, eis o que parece comprometer a "pureza" da ciência do direito
mental, cuja existência não pode ser afirmada, mas simplesmente pres kelseniana, mesmo porque o eminente jurista austríaco se irritou ferozmente
suposta. contra as operações de dedução da Jurisprudência dos conceitos 62. Enfim,
quanto ao objeto da ciência do direito, a tese kelseniana parece
Dessa maneira, como nos faz observar com razão Michel Troper6o, profundamente inconsistente do ponto de vista da teoria da interpretação
desenvolvida pelo autor, no final da Teoria pura do direito. A descrição
Kelsen não fornece em nenhum caso os critérios de verificação ou, de
das normas jurídicas necessita muitas vezes, explica Kelsen, de alguém
maneira mais geral, os critérios de aceitação das Proposições de direito que que apresente uma concepção e uma problemática eminentemente
contemporâneas para a teoria do direito, sua interpretação. A
descrevem as normas jurídicas válidas do sistema. Contudo, essas
interpretação das normas jurídicas efetuada pela ciência do direito (in-
Proposições são, segundo Kelsen, receptivas dos valores de verdade e de terpretação científica) - ou seja, o sentido das normas jurídicas destacado
pela ciência do direito - é com muita freqüência condicionada por outras
falsidade: elas serão verdadeiras quando descrevem as normas válidas do
normas que não fazem parte, segundo o autor, do sistema jurídico
sistema; elas serão falsas quando afirmam a existência de uma norma positivo. São as normas de moral, de justiça, como aquelas que parecem
jurídica que não faz parte do sistema de direito positivo. Dessa tese, Kelsen
59 TPD2, p. 1Ol.

tira sua condusão, dificilmente defensável aliás, de que os princípios da


60 Este raciocínio é estabelecido por M. Troper, "Contribution à une criti 61 Citado por C.-M. Herrera, ap. cit., p. 45.
lógica formal - no caso, o princípio da não-contradição e as regras de Hans Kelsen, "Qu' est -ce qu'une théorie pure du droit?", in Drait et Saciété,
62

que de Ia conception kelsénienne de Ia science du droit': in Paur une théarie 22, 1992, p. 566.
inferência que se aplicam a toda proposição receptiva dos valores de ver
juridique du drait, ap. cit., p. 48-9.
dade e de falsidade - se aplicariam diretamente às Proposições de direito

e indiretamente às próprias normas jurídicas (TPD2, p. 102). De duas


~
Proposições de direito contraditórias, somente uma deveria ser verdadeira.

Segue-se igualmente que, de duas normas jurídicas do sistema de direito


223
As TEORIAS FORMAlISTAS
222 HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO

sem querer admitir. Em primeiro lugar, porque "ele pertence à doutrina


veicular as expressões "interesse do Estado': "bem do povo", "interesse
geral" que figuram nos textos jurídicos e pelo viés das quais é determina- de compreender e de fazer compreender (no sentido corrente do termo)
do o conteúdo de uma norma jurídica a aplicar (TPD2, p. 460). A possi-
bilidade de encontrar o sentido exato ou correto de uma norma jurídica é teJdoS, decisões e conceitos. Mas também de compreender no sentido
excluída pelo autor. Entre várias significações possíveis, a ciência do di-
etimológico do termo (cum-prehendere: reunir, englobar), isto é, estru-
reito se contenta em estabelecer as significações possíveis da norma
em questão. Escolher uma delas não depende da teoria (ciência) do lUrar o universo jurídico, dando-lhe uma coerência lógica:'64 Neste tra
direito, mas da política jurídica.
balho de interpretação e de sistematização das normas jurídicas, não se
Em contrapartida, quando a interpretação é efetuada pelo órgão de
aplicação jurídica, como a jurisdição que aplica uma norma legislativa a poderá jamais afirmar com certeza absoluta que a lista de significados
um caso particular, a interpretação será autêntica (TPD2, p. 461). O ór-
gão de aplicação das normas jurídicas, jurisdição ou administração esco- das
lherá o significado mais "pertinente" entre aqueles que pode distinguir, e normas jurídicas estabelecida pela ciência do direito, como parece suge
assim vai criar o "novo" direito na medida em que a norma individual
emitida pelo órgão de aplicação ("Dupond é condenado a três anos de rir Kelsen, seja a única possível. Essa lista, evidenciando-se
prisão ou ao pagamento de uma multa") determinará, para o futuro, o condicionada
campo de aplicação da norma jurídica geral interpretada. Em outros casos
semelhantes a este que acaba de ser julgado, a norma geral será igual- pelos valores de justiça e de moral, quer dizer, por considerações ético-
mente aplicável. Neste último caso, admite Kelsen, a interpretação
políticas que, como veremos posteriormente, prejudicam todo raciocí
constitui tanto um ato de conhecimento, que consiste na determinação do
sentido de uma norma jurídica, quanto um ato de vontade, pelo qual uma nio jurídico, coloca-nos em face de uma interrogação essencial, que é
nova forma jurídica é assim criada. Por outro lado, a interpretação efetua-
justamente aquela da filosofia do direito contemporâneo: as considera-
da pela ciência do direito não constitui um ato de vontade, mas simples-
mente um ato de conhecimento que estabelece os significados possíveis ções ético-políticas do raciocínio jurídico constituem fatores extra
de um texto jurídico, sem ter de escolher nenhum. Dessa maneira, Kelsen
jurídicos
pensa ter preservado a tarefa exclusivamente descritiva da ciência jurídi-
ca. Isso, todavia, não pode constituir senão uma "pura" ilusão, na medida relevantes exclusivamente à subjetividade do intérprete, no caso o juiz
em que a ciência do direito, condenada aqui por Kelsen a não ser mais
encarregado de aplicar o direito do legislador instituído, ou então se ins
que uma versão da dogmática jurídica (doutrina) 63, faz política jurídica
crevem na ordem jurídica positiva, de modo que cabe sempre à comuni
64 PhiIippe Jestaz, "Déclin de ia doctrine?", Droits, 20,1994, p. 89.
dade jurídica, institucional ou científica, de as fazer "remontar à
63Ver, sobre este assunto, Michel Troper, "Contribution à une critique de Ia 65 Hugues Rabault, I:interprétation des normes: l'objectivité de Ia méthode
superfície':
conception kelsénienne de Ia science du droit", in op. cit., p. 50. herméneutique, L' Harmattan, 1997, p. 43.
de aplicá-Ias toda vez que a questão é tratada? Kelsen, como vimos, opta

~ pela primeira proposição dessa alternativa, aproximando-se assim da


corrente decisionista, que nega a possibilidade de "descobrir" os
princípios
de justiça aos quais parece subscrever uma ordem jurídica positiva qual
quer; segundo esta concepção, uma certa concepção de justiça veiculada
pelo discurso do juiz nos casos litigiosos que exigem uma interpretação
da lei a aplicar não é, no final das contas, senão a conseqüência da
decisão
subjetiva desse juiz 65.
Nesse sentido, seria falso considerar que o pensamento jurídico
poderia eventualmente se inclinar sobre a elaboração das regras ou
dos
224
HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO As TEORIAS FORMALlSTAS 22
5

métodos de interpretação, como tinha pensado o fundador da escola dicas em vigor é uma disciplina que não pode existir. Só existe para
histórica do direito, Savigny, a fim de oferecer as garantias de objetivi I(elsen uma sociologia da sociedade em geral. A disciplina que se faz
dade hermenêutica que reclama a aplicação do direito. Mas é justamente passar por uma. sociologi~ jurí~ica não é a seus olhos. mais que uma
a possibilidade de objetividade científica que é recusada por Kelsen em psicologia expenmental e mduttva, que estuda a maneira pela qual os
sua teoria da interpretação, porque a objetividade científica é implici indivíduos "imaginam" o conteúdo das normas jurídicas, para chegar ao
tamente concebida por esse autor por meio de um modelo ingênuo das motivo de sua ação. Nesse sentido, a sociologia do "direito" deve
ciências exatas: evidência lógica ou evidência empírica como critérios de absolutamente pressupor, segundo Kelsen, o conceito normativista de
cientificidade. Ora, esses critérios são impossíveis para a ciência do direito, aquilo-que-deve-ter-Iugar segundo as normas jurídicas em vigor,
direito, que evidentemente só pode ser uma ciência hermenêutica. É a para poder realizar esse gênero de pesquisas 67.
razão, aliás, pela qual Kelsen não chega a fornecer, como dissemos, os No último período de sua carreira, quando morava nos Estados
critérios de verificação de suas "proposições de direito': A tese kelseniana Unidos, Kelsen modificou profundamente sua concepção. Doravante, a
constitui também uma "pura" ilusão, porque as delimitações, as orien- juridicidade, este elemento ideal constitutivo da norma jurídica, nâo fez
tações de sentido, em suma, o saber veiculado pela doutrina jurídica, mais parte da definição dela. A norma jurídica, como ato de vontade
influenciará de uma maneira ou de outra a própria prática jurídica. dirigido a alguém a fim de obter deste o comportamento desejado, será
Apesar das reticências que experimentam em geral os praticantes do um fato. Nesse sentido, a norma não se destaca do ato que a criou ou que
direito diante dos escritos da doutrina, os setores jurídicos em plena a aplica. A ciência do direito terá por tarefa observar os fatos de criação e
floração, como o seguro social, a fiscalização, a empresa, não parecem de aplicação das normas jurídicas. Isso não se dá sem conseqüências para
ser indiferentes às posições e aos argumentos dos universitários, na a ciência do direito. Doravante, nenhuma relação lógica pode existir entre
medida em que estes, muitas vezes associados em um escritório de advo- as normas como produto dos atos de vontade, já que as relações lógicas
cacia de negócios, utilizam a doutrina na criação do direito só existem entre as proposições lingüísticas, não entre os fatos. Nenhuma
jurisprudencial66.A posição de Kelsen, contudo, será categórica até operação de dedução será mais possível enquanto um ato de vontade não
1965. Querendo fazer da ciência do direito uma ciência exclusivamente tiver ocorrido 68. Essa posição aproxima Kelsen do realismo jurídico norte-
descritiva das normas jurídicas, Kelsen amolda a ciência do direito de americano, que no início do século XX se levantou contra o formalismo
acordo com o modelo das ciências exatas, desejando com isso abolir jurídico e, mais precisamente, contra suas operações de dedução lógica,
definitivamente a distinção fundamental operada, depois de Dilthey, afirmando que o direito não é senão a pre
entre as
Naturwissenschaften e Geisteswissenschaften. Ele afirmará inclusive,
primeiro de maneira categórica, em seguida um pouco mais moderada,
contra seus contemporâneos G. Jellinek e Max Weber, que a sociologia 67 N. Bobbio, "Max Weber e Hans Kelsen", in Diritto e Potere. Saggi su Kelsen,
do direito orientada para a prática social (o "Sein") e, mais precisamente, Nápoles, Esi, 1992, p. 159-177. Ver também Agostino Carrino, "Max Weber et
para o modo de agir dos indivíduos condicionados pelas normas jurí Bans Kelsen", in Le droit, le politique. Autour de Max Weber, Hans Kelsen,
Carl Schmitt, (dir.) C.-M. Herrera, ed. L'Harmattan, 1995, p. 185.
68 Hans Kelsen, Law and Logic, publicado em 1965, in Forum e reproduzido in
66 Idem, p. 94. Essays in legal and moral philosophy, Dorderecht, Holanda, D. Reidel, 1973, p. 246.

l.
226 227
HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO As TEORIAS FORMALlSTAS

dição da solução jurídica que será enunciada pelos juízes em um caso cas e também filosóficas entre os dois países. O positivismo alemão, puro
foduto da escola histórica do direito, que ferozmente se opusera à fi
litigioso concreto. O direito positivo, nessa versão extrema do realismo
, iosofia das Luzes e a seu conseqüente individualismo, corrente aliás do
n
ão existe nem sob a forma das regras gerais escritas (síntese continen minante na época da formação do pensamento constitucionalista
t francês, foi construído, ao longo do século XIX, em torno da teoria do
al) nem sob a forma das regras (ratio decidendi) tiradas das soluções Estado - pessoa jurídica -, em torno da tese segundo a qual o Estado é um
jurídicas precedentes (direito jurisprudencial no sistema da Common sujeito autônomo que tem vontade própria: ele não se identifica com
Law), porque ele é novamente e a cada vez criado pelo juiz por ocasião qualquer aparelho monárquico e burocrático, mas sim constitui uma
de um litígio concreto. entidade separada da sociedade, inclusive superpondo-se a esta e dis-
2. CARRÉ DE MALBERG OU O POSITIVISMO pondo de órgãos que "velam" e agem em seu nome. A teoria do Estado-
ESTADISTA FRANCÊS pessoa jurídica e a teoria do Estado-sujeito de direito colocaram
consecutivamente o problema das relações do Estado e do direito: como
2.1 O contexto de emergência da doutrina de Carré de o Estado que não pode mais ser identificado com a força é submetido ao
Malberg direito que ele mesmo criou? A teoria da auto limitação do Estado pelo
direito, elaborada por Ihering e Jellinek, constituía a resposta positiva ao
No início do século XX, os intercâmbios intelectuais no domínio da problema levantado. O Estado constitui um Estado de direito desde que
teoria do direito, principalmente entre os publicistas franceses e alemães, ele se submeta voluntariamente às regras jurídicas que ele mesmo criou.
ocorrem em um único sentido: somente os publicistas franceses lêem e A teoria positivista da personalidade jurídica do Estado parecia, aos
comentam, para elogiar ou criticar, os trabalhos de seus homólogos olhos dos teóricos do direito da Terceira República, ao mesmo tempo
alemães. Estes, desde o fim do século anterior, mesmo se interessando sedutora e problemática. Ela parecia problemática (Duguit, Berthélemy),
pela teoria publicista estrangeira, como testemunham as resenhas de porque o dualismo do Estado e da nação que supõe a teoria alemã - o
obras italianas ou francesas publicadas por Jellinek e Laband, estavam Estado engloba em seu seio a vontade da nação, e faz do corpo eleitoral
"persuadidos de sua superioridade científica'~ e "o processo de recepção e do parlamento órgãos do Estado - estava aUsente da tradição
do positivismo alemão que se engendrou na França, mas também na revolucionária e pós-revolucionária francesa. O Estado, segundo a
Itália, confortaram-nos nessa atitude" 69. Todavia, a recepção na França do tradição constitucionalista francesa, era a própria nação, e um tal
positivismo alemão, tão sedutor aos olhos dos franceses, chocou-se dualismo teria como conseqüência, segundo Esmein, submeter a Vontade
contra as dificuldades relativas às diferenças de tradições políti da nação ao Poder do Estado 7°. Ora, segundo esse

69 Christoph Schõnberger, "Penser l'État dans l'Empire et Ia République:


- 70 Cf. os artigos de P. Brunet, F. Linditch, C. Schõnberger contidos no volume Consagrado aLa
critique et réception de Ia conception juridique de l'État de Laband chez Carré de Science juridique française et ia science juridique allemande (18701918),op. cito A
Malberg", in La science juridique française et ia science juridique allemande de 1870 à bibliografia sobre este assunto é abundante; M. Troper, L'histoire cOnstitutionnelle
1918, op. cit., p. 256. française et ia séparation des pouvoirs, LGDJ, 1980, p. 123.
228
HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO As TEORIAS FORMALlSTAS 229

autor, as duas noções não podem se confundir. Todavia, a teoria alemã


justas e nocivas".71 O direito, deve-se sublinhar, é mais que a lei,
era sedutora porque, se não permitia sufocar a hegemonia parla
doravante fazendo desta um dos elementos de uma ordem jurídica
mentar francesa, que constituía um obstáculo maior para os governos
hierarquizada que comporta, abaixo da lei, as regras criadas pela ju-
sucessivos da época, pelo menos poderia enquadrá-Ia em uma instituição, a do
risprudência, o poder regulamentar autônomo da administração nos
Estado, e fazer do parlamento um órgão do Estado Como seriam eventualmente
domínios em que esse poder existe e as opiniões expressas pela doutrina
as outras autoridades instituídas pelas leis constitucionais de 1875. Carré de
72; além da lei, embora não haja um direito superior ao direito positivo,
Malberg foi aquele que, o mais fielmente possível, transcreveu a teoria alemã da
pelo menos existem os preceitos de justiça contidos em um texto escrito
personalização e da auto limitação do Estado, fazendo uma adaptação à tradição
francesa: o Estado é a nação juridicamente organizada e o parlamento, enquanto
que não foi incluído na Constituição da Terceira República, isto é, a
expressão da vontade geral, justamente a da nação, é o órgão supremo do
Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789. É daí que
Estado. provém a controvérsia entre aqueles que, como Esmein e Carré de
Malberg, pensavam que a Declaração não tinha valor jurídico e de força
obrigatória para o legislador instituído, propondo então inscrever
esse texto na Constituição da Terceira República, e aqueles que, como
2.2 A submissão do Estado ao direito M. Hauriou e L. Duguit, eram de opinião contrária 73. Todavia, a
idéia que se tornou dominante na doutrina dessa época é que o Estado é
A doutrina positivista e estadista de Carré de Malberg se inscreve submetido ao direito. No contexto da época, essa submissão reveste os
nesse contexto; depois do fim do século precedente, os teóricos do direito dois aspectos seguintes: primeiro, o da heterolimitação do Estado, no
se puseram a contestar, na hierarquia jurídica, a superioridade da lei, isto sentido de que há um direito superior ao direito positivo criado pelo
é, da regra votada pelo parlamento e que é, por este fato, a expressão da Estado. Encontra-se essa idéia principalmente na doutrina de Duguit, que
vontade geral segundo o art. 6° da Declaração dos Direitos do Homem e evoca a superioridade de um direito objetivo cujas regras são em essência
do Cidadão de 1789. Nessa época, quer dizer, no início do século XX, inspiradas em um princípio de justiça fundado sobre a solidariedade
que via uma verdadeira proliferação doutrinária (Hauriou, Duguit) quanto (regra de solidariedade). Mas encontramos novamente a mesma idéia na
ao novo papel que devia assumir o Estado diante das reivindicações tão teoria de M. Hauriou, na qual o dinamismo da ação própria a toda
opostas dos conservadores (liberais) e dos "revolucionários", a lei deixou instituição está no fundamento do direito produzido pelo Estado, que é a
de ser considerada a única fonte de direito. A lei, o ato jurídico adotado "Instituição das instituições". O outro aspecto da submissão do Estado ao
pelos representantes, deveria ser direito é o da teoria da autolimitação de Carré de Malberg, muito
submetida à justiça, sustentavam aqueles que se intitulavam positivistas inspirada na teoria alemã.
I (Esmein, Artur). "Não é verdade': sustenta Esmein, "que a lei seja
necessária e simplesmente a expressão direta e imediata da vontade
geral, formulada de uma maneira precisa pela maioria dos cidadãos. Ela
1 71 A. Esmein citado por M.-J. Redor, De l'État IégaI à l'État de droit. L'évoIution
1 é antes de tudo uma regra de justiça e de interesse público. Se ela tem des conceptions de Ia doctrine pubIiciste française 1879-1914, Economica, 1992, p. 296.
1
, necessariamente em sua base a autoridade do soberano, ninguém 72 M.-J. Redor, op. cit., p. 300.

ousaria dizer que o soberano poderia livremente editar leis in 73 J.-Chevallier, L'État de droit, 2" éd., Montchrestien, 1994, p. 32.

~
230
HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO As TEORIAS FORMALlSTAS 231

Se o estabelecimento do Estado, afirma Carré de Malberg, constitui


Estado será sancionado unicamente de um ponto de vista jurídico: o
um puro fato não suscetível de receber qualquer qualificação jurídi
Estado-pessoa jurídica, titular de direitos mas também de obrigações,
ca 74, o que não vale para as outras pessoas jurídicas porque recebem
será perseguido diante de seus próprios tribunais 77. A definição de Es-
do Estado sua qualificação jurídica, não é menos verdade que a exis-
tado se quer assim mais jurídica que política. Carré de Malberg, reto-
tência do Estado se identifica com o ato que o institui, isto é, a Cons-
mando a análise de Jellinek, vai afirmar que o Estado é, por definição e
tituição e os órgãos de que dispõe o aparelho estatal em virtude desse
necessariamente, limitado pelo direito, visto que ele não pode "nascer e
ato constituinte original 75. Pelo fato desta organização, o Estado, subsistir a não ser intermediando o estabelecimento e a aplicação de uma
afirmou ele, é levado à unidade. regra jurídica. [..,] (o Estado) é forçosamente um poder limitado pelo
Carré de Malberg se situa no extremo oposto da teoria kelseniana,
direito" 78. Curiosamente, podemos constatar que a teoria do jurista
já que por trás do direito, e mais precisamente por trás da organização
alsaciano se aproxima, e apenas desta perspectiva, da teoria de Kelsen, uma vez
jurídica do Estado, há um fato e não uma norma. Isso não impede de
que para ambos o Estado é indissociável de sua organização jurídica. O
considerar, destacou ele, que o Estado é uma organização jurídica. O
Estado, dizia Kelsen, identifica-se com o direito, e a noção do Estado de
Estado e seus órgãos se identificam com a organização jurídica conforme
direito é um pleonasmo, pois o Estado é o poder público juridicamente
é estabelecido na Constituição. É justamente dessa consideração que
organizado. Ele denunciava assim o dualismo do Estado e do direito
provém sua teoria de autolimitação. Os dois nomes aos quais está asso- estabelecido pela teoria tradicional 79. Mas as semelhanças entre os dois
ciada a teoria da auto limitação do Estado pelo direito, que Carré de teóricos param aí: se Kelsen concebe a ordem jurídica como uma
Malberg toma em sua consideração, são, como dissemos, os de Ihering e hierarquia de normas jurídicas, Carré de Malberg a concebe como uma
de Jellinek. O primeiro tinha considerado que o Estado é submetido ao hierarquia de órgãos, adaptando assim à tradição francesa a teoria
direito, inicialmente porque ele concebe que é de seu "interesse" respeitar alemã. O parlamento será este órgão supremo que exprimirá a vontade da
por vontade própria o direito que ele produz, mas também porque as nação.
forças sociais o incitam a isso. O segundo, em quem a doutrina de
Carré de Malberg mais se inspirou, considera que o Estado não pode
querer respeitar o direito sem negar a si mesmo 76. A teoria de Ihering
aplica a sanção do Estado sobre o plano político, reunindo as teorias do
contrato social e do direito de resistência dos sujeitos de direito quando
77 M.- J. Redor, op. cit., p. 305. É necessário precisar que o direito em Ihering e
o Estado não respeita o direito. Segundo a doutrina de Jellinek, o
também em outros autores alemães do século XIX não provém de forma alguma
de um contrato social; Cf J. Q. Whitman, "Ihering parmi les Français de 1870-
1918", in La Science juridique française et Ia science juridique allemande, op. cito A
reação francesa ao pensamento alemão deste período a respeito das origens do
74 Raymond Carré de Malberg, Contribution à Ia théorie généraIe de I'État,
direito é conhecida sob o título de "a crise alemã do pensamento francês", que
Sirey, 1922, p. 62. lhe tinha dado Claude Digeon.
75 R. Carré de Malberg, op. cit., p. 66. 78 R. Carré de Malberg, Contribution à Ia théorie générale de I'État (C.
76 Von R. Ihering, L'évoIution du droit (1877), Paris, 1901; G. Jellinek, L'État
T.G.E.),
moderne et son droit (1900), Paris, 1911.
Sirey, 1922, v. I, p. 229, citado por Jacques Chevallier, op. cit., p. 35.
79 Hans Kelsen, TPD2, op. cit., p. 410.
." 11

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I.
'I 232 233
I
As TEORIAS FORMALlSTAS
1:1 HISTORIA DA FILOSOFIA DO DIREITO

II!!!I

2.3 A ordem jurídica: hierarquia dos órgãos, das hierarquia de órgãos. Serão qualificados como verdadeiros órgãos
normas ou das funções? do Es
tado aqueles que deverão "fornecer ao Estado sua vontade primeira e
A hierarquia das normas em Kelsen é uma repetição da teoria de inicial" 84, ou usando suas palavras, "os representantes da nação, segun-
Merkl relativa à formação do direito por graus (Stufentheorie), à qual Carré de do a terminologia francesa" 85. Indo de encontro à teoria da
Malberg consagra um livro para criticá-Ia dois anos depois da publicação separação
de A lei, expressão da vontade geral 80 . A ordem jurídica kelseniana, na dos poderes de Montesquieu, o jurista alsaciano estabelece
aplicação da Stufentheorie, comporta pelo menos três camadas de normas umagradação de poderes 86: segundo ele, a unidade do Estado é
81: primeiro, normas de produção de normas que permitem determinar e comprometida quan
modificar o conteúdo das outras normas; em seguida, normas gerais e do nenhum órgão dispõe "de um poder de decisão mais alto que faça dele
abstratas, como as normas legislativas; e por fim normas individuais e o órgão predominante". "A unidade do Estado e de seu poder, assim como
concretas, como são as normas judiciárias. As duas primeiras classes de a impossibilidade de equalizar entre eles todos os seus órgãos se afirmam
normas correspondem à distinção que estabelecerá posteriormente H. L. já na superioridade do poder e do órgão que o constituem [...]. Essa
A. Hart, entre normas secundárias, que se referem à reprodução da ordem desigualdade dos orgãos deve assim se reencontrar na ordem dos poderes
jurídica, e normas primárias, que se referem ao comportamento constituídos; [...] tal é o caso na França, onde
regulamentado dos particulares 82. O edifício normativo kelseniano, o órgão supremo é o parlamento. 87" O parlamento será o órgão predo-
construído em um sistema de graus em que cada norma comunica sua minante procurado pelo autor em continuação a Jellinek, uma vez que
validade à norma inferior, é criticado por Carré de Malberg nestes ele "pode praticar sozinho os atos de poder legislativo; isso quer
termos: "No fundo, os defeitos da Stufentheorie, ou dizer que só ele pode tomar medidas iniciais que não se reduzem à
melhor, os excessos que a tornam criticável, provêm de que ela raciocina execução administrativa de uma lei anterior, assim como somente ele
puramente sobre as regras, sem levar em consideração preliminar os pode imprimir a uma decisão estatal o valor estatal, em particular o valor
órgãos ou as autoridades de quem as regras emanam" 83. Em vez de legislativo" 88. A gradação dos órgãos se inscreve diretamente em uma
uma hierarquia de normas, Carré de Malberg estabelece, como gradação dos poderes, quer dizer, em uma hierarquia de funções. Estas
dissemos, uma últimas são definidas pelo autor de um ponto de vista unicamente formal,
isto é, do ponto de vista do valor jurídico do ato jurídico produzi
80 R. Carré de Malberg, Confrontation de ia théorie de ia formation du 84 R. Carré de Malberg, C. T. C.E., op. cit., t. 11, p. 395. Os itálicos são nossos.
droit par degré avec ies institutions et ies idées consacrées par ie droit positif français 85 Idem, op. cit., t. 11, p. 407. Sobre a polissemia das noções do

relativement à sa formation, Sirey, 1933, citado por Otto Pfersmann, "Carré de Malberg órgão e do representante em Carré de Malberg, P. Brunet, "Entre représentation
et 'Ia hiérarchie des normes"', in Science juridique française, op. cit., p. 298. et nation: le concept d' organe chez Carré de Malberg", in Science juridique française, op.
cit.,
81 Idem, p. 301- 2. S. Paulson trabalhando sobre Merld soube destacar as três principalmente p. 282-293.
camadas de normas. 86 Idem, op. cit., t. I, p. 110.

82 H. L. A. Hart, Le concept de droit (1961), Bruxelas, 1976. 87 Idem, op. cit., t. 11, p. 55 e p. 110. Os itálicos são nossos.
83 Citado por o. Pfersmann, op. cit., p. 298. 88Idem, op. cit., t. I, p. 113. A análise do autor se funda sobre o
regime
~ constitucional da Terceira República. Os itálicos são nossos.
235
234 As TEORIAS FORMALlSTAS
HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO

do pelo titular da função; a lei votada pelo parlamento, seguindo Um encadeada pelas leis constitucionais. Com mais razão, não é possível
procedimento particular, é superior à regra da administração que a eXe- dizer que ela proceda executivamente92". Todavia, esse argumento não é
cuta. É assim "que os 'graus de poder formal' são tanto graus de poder de de modo algum conclusivo sobre a ausência de hierarquia entre as nor
atos quanto graus de poder de órgãos" 89.
mas constitucionais e as regras legislativas. A hierarquia das normas da
Contudo, o grau de poder dos órgãos, e por conseqüência sua hie-
rarquia que vem aqui substituir a hierarquia das normas kelsenianas, não escola vienense não impede que as normas inferiores (as normas
se aprecia somente segundo a força jurídica de seus atos jurídicos, mas legislativas) não sejam efetivamente conformes às normas superiores
também segundo o caráter inicial da função exercida 90. O caráter
I
(normas constitucionais). As primeiras procedem de qualquer forma
li/I]
inicial designa, segundo os próprios termos do autor, a função que não se
reduz à execução de uma lei. Mas a inicialidade da função pode receber pela aplicação das últimas. Sendo apenas para constatar a violação, mes
um enfoque mais geral no seio da doutrina malberguiana e designar a mo sem poder sancioná-Ia, das prescrições das normas superiores pe
função cujo exercício não é condicionado pela existência de uma norma
las normas inferiores, a hierarquia constitui, para uma ordem jurídica,
jurídica; é a função, que não constitui aplicação de uma norma jurídica.
uma propriedade necessária e não uma propriedade contingente, como
Tratar-se-á neste caso do órgão que, no exercício de suas funções,
constitui um verdadeiro centro de incitação e de decisão definitiva, tentou demonstrar a crítica malbergiana 93. A Constituição da
inteiramente livre e independente do direito positivo; tratar-se-á, em Terceira
suma, de um órgão soberano. Definitivamente, é essa a base do pensa- República enquadra o legislador ordinário apenas do ponto de vista do
mento de Carré de Malberg, que deseja assim refutar a concepção da
procedimento de produção legislativa - a composição do órgão e o pro
escola vienense relativa à hierarquia das normas. Ele considera, mais
cedimento a seguir; nesse sentido, a lei "executa" a Constituição 94.
particularmente, que não há nenhuma relação hierárquica entre a lei e a
A hierarquia das normas, não a hierarquia dos órgãos, essa é a tese
Constituição da Terceira República 91, não só porque nenhum controle de
constitucionalidade das leis era previsto por essa Constituição, mas à qual nos levam os postulados da teoria malbergiana: se de fato,
também porque tanto para a revisão dessa Constituição quanto para o como
voto de uma lei ordinária são as mesmas autoridades e as mesmas maio- afirma a teoria da autolimitação do jurista alsaciano, a constituição
rias de voto que são exigidas. "Nessas condições': afirmou ele, dos
"realmente não parece que a regra legislativa seja efetivamente dominada órgãos estatais coincide, até mesmo se identifica com o
e
estabelecimen
to92das regras jurídicas que atribuem o estatuto estatal a eles e lhes
R. Carré de Malberg citado por O. Pfersmann, op. cit., p. 312. Os itálicos
89 D. de Bechillon, Hiérarchie des normes et hiérarchie des fonctions normatives con
são nossos.
de l'État, Economica, 1996, p. 207.
ferem competências,
93 Cf as observações "resulta disso
de Otto que a ordem
Pfersmann, jurídica não pode se
op. cito
90 Ibidem, op. cit., p. 207.
91 Cf as objeções de M. Waline, La gradation des normes juridiques, resumirIbidem,
a uma
94 op.hierarquia
cit., p. 321. dos órgãos. Se não há órgãos sem direito, é o
Ibidem, op. cit., p. 315.
direito que hierarquiza primeiro os órgãos, os últimos não podendo
95
R.D.P.,
1934, p. 525-6.
~ hierarquizar senão impondo regras por sua vez (em linguagem
kelseniana) ao produzir as normas95". Nesse sentido, a teoria kelseniana
236
HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO

é mais conseqüente consigo mesma do que a teoria do jurista alsaciano.


Se consideramos, enfim, que os órgãos estatais são definidos em SUa
doutrina pelos atos jurídicos que eles produzem no exercício de suas
funções, a doutrina de Carré de Malberg resulta em uma verdadeira
CApíTUlo
-
7
hierarquia de funções. Entre as diferentes funções estatais, isto é, as fun-
ções legislativa, administrativa, jurisdicional e constituinte, a única "fun-
ção" cujo titular pode exprimir a vontade do Estado com um poder inicial AS TEORIAS ANTIFORMALISTAS
no sentido indicado, quer dizer, sem qualquer constrangimento e sem
qualquer impedimento tanto de fundo quanto de procedimento, será a
função constituinte original que produz a Constituição e estabelece a
ordem jurídica como tal 96. Mas, nesse caso, segundo os postulados
dessa teoria, não se está mais no mundo do direito, mas no mundo dos fatos.

1.0 DECISIONISMO DE CARL SCHMITT

A doutrina de Carl Schmitt pode ser definida mais pelo que ela nega
e denuncia do que pelo que ela afirma. Ou melhor, as afirmações de sua
doutrina são fruto das críticas que ele dirige ao normativismo defendido
por seu contemporâneo Hans Kelsen e também à concepção liberal do
Estado de direito. As duas concepções se tocam, aliás, na medida em que
elas defendem o "reinado da lei" (norma) em lugar do "reinado dos
homens". "Em certo sentido': observa J.-F. Kervégan, "é sem dúvida o
antinormativismo que caracteriza de maneira mais exata e mais constante
a doutrina de Schmitt1". A controvérsia entre os dois teóricos começa a
partir da década de 1920 e dura até a revogação de H. Kelsen

96 Poder-se-ia incluir a função constituinte derivada (revisão da Constitui-


ção) desde que se aceite não fazer distinção entre estas duas funções. O executivo (o
Presidente da Terceira República e os ministros) não é um verdadeiro órgão do Estado,
sendo qualificado pelo autor como "funcionário nacional" (C. G. T.E., 1. lI, p. 409). O I T.-E Kervégan, "La critique schmittienne du normativisme", in Le droit,
parlamento não é somente o orgão supremo do Estado, mas o único órgão do Estado.
ie POlitique. Autour de Max Weber, Hans Kelsen, Carl Schmitt, ed. C.-M
Herrera, L'Barmattan, 1995, p. 231.

~
239
As TEORIAS ANTIFORMAUSTAS
238 HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO

da cadeira que ele dirigia em Colônia, em 1933. Schmitt, que aliás não 1.1 A crítica do normativismo
quis assinar a petição contra a revogação de Kelsen, manifestou clara-
mente sua hostilidade e também seu anti-semitismo a respeito do jurista Sua crítica a respeito do normativismo é essencialmente de ordem
austríaco por ocasião de uma conferência organizada pela Liga dos
epistemológica. É inconcebível, segundo Schmitt, que uma norma pro
Juristas Nacionais-Socialistas, da qual era presidente e que ocorreu em
1936. Ele afirmou então que "um autor judeu não tem para nós qualquer duza de si mesma as condições de sua "realização", de sua "efetuação".
autoridade, nem mesmo uma autoridade cientificamente pura 2': As
"com efeito, uma lei não pode ser aplicada, utilizada ou executada
posições políticas de Carl Schmitt, se não são necessariamente
implicadas por suas posições teóricas, pelo menos estão em perfeita por
coerência com elas. Sua crítica, tanto a respeito do normativismo quanto a si mesma; ela não pode interpretar a si mesma nem se definir, nem
respeito do Estado de direito liberal, traduz a tese fundamental de sua doutrina: a
interferência entre o político e o jurídico, e até mesmo o primado do político mesmo sancionar-se:'s O que o normativismo omite é que não há nor
sobre o jurídico. O que ele combate com animosidade é precisamente a ma sem a intervenção de uma pessoa que decide. A decisão tomada
degeneração do político preconizado pelo liberalismo e pelo
por
normativismo kelseniano 3. Este último nega o político (o Sein) pela
construção de uma ordem jurídica fechada sobre si mesma, uma vez que uma autoridade torna possível a existência de uma norma, em suma,
é fundada sobre uma norma (Sollen) que se deseja hipotética. Acontece o o
mesmo na doutrina do Estado de direito, quer dizer, do liberalismo
segundo Schmitt, que se interessa apenas pela luta contra o poder do próprio fato da norma. A dissociação kelseniana entre a validade de uma
Estado "favorável à liberdade individual e à propriedade, que não visa norma, que já dissemos constituir o modo de existência de uma
senão fazer do Estado um compromisso, transformar suas instituições em norma,
válvula de segurança", o que está longe, segundo ele, de nos dar a
e sua efetividade, ou seja, sua aplicabilidade, faz pouco sentido para o
verdadeira definição do político. "Não e: afirma ele, "mais que uma
crítica liberal da política, mas não é política liberal sui generis".4 Exami- decisionismo. A decisão do juiz, por exemplo, não é em sua
nemos as duas vertentes de sua crítica para melhor definir suas posições integralidade
doutrinais.
jamais deduzida de uma norma, da mesma maneira que "o conteúdo
de uma lei não pode ser deduzido, enquanto tal, das disposições cons
titucionais" 6. O modelo da pirâmide jurídica kelseniana que aplica a si
e Schmitt, Les trois types de pensée juridique, PUF, 1995, p. 74.
mesma (auto-aplicação), uma vez que a criação de toda norma é a apli
5

2 eM. Herrera, op. cit., p. 215. 6 J.-E Kervégan, op. cit., p. 32.
3 J.- E Kervégan, Hege~ Carl Schmitt. Le politique entre spéculation et positivité, cação de uma norma superior, indo assim do juiz ou da administração
7 e Schmitt, Théologie poli tique (citada TP), Gallimard, 1988, p. 41.
PUF, Léviathan, p. 325.
ao legislador e mesmo"La
8 J.- F. Kervégan, aocritique
poderschmittienne
constituinte, constitui umaop.
du normativisme", "pura"
cit., p.ilu
239.
4 e Schmitt, La notion de politique, Flammarion, 1992, p. 115.

~
são. "A idéia do direito", dirá Schmitt, "não pode se efetuar por si
pró
pria"7. A crítica schmittiana remete assim ao que causa a maior
dificuldade no seio da doutrina kelseniana: "Se a eficácia (em Kelsen) é
uma condição da validade sem ser o fundamento, pode-se manter o
axioma da autonomia da esfera das normas?"g Ela remete também ao
caso geral de aplicação de uma norma em uma situação concreta, que
240
HISTÚRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO
As TEORIAS ANTIFORMALlSTAS 241

comporta, dirá Schmitt, os dois componentes: a norma (Sollen) e a de


conteúdo desta. O que acontece, então, quando sobrevém um caso ex-
cisão de uma autoridade (Sein). O elemento decisório inerente à apli cepcional, anormal, não previsto pela ordem jurídica? É preciso pensar
cação do direito a um caso concreto representa o que nós qualificamos aqui na questão das lacunas do direito. Tais lacunas não existem segun do
como poder discricionário, que pertence ao órgão de aplicação; eSSe a concepção normativista de Kelsen; aplicando o princípio segundo
o qual "tudo o que não é proibido pelo direito é permitido': o jurista
poder muitas vezes não lhe é atribuído de maneira explícita por Uma
austríaco constata, recusando a posição da teoria tradicional do direito,
norma. É, aliás, o que revelou a teoria da interpretação em Kelsen. Se que é logicamente impossível que um sistema jurídico comporte lacunas
não se pode dissociar o ser (decisão) do dever-ser (norma) na ocasião 11. O argumento kelseniano parece de uma lógica incontestável,
da aplicação de uma norma, ainda menos se poderá fazê-Io quando se com a condição evidentemente de que se tenha determinado de maneira
incontestável "o que é proibido ou permitido pelo direito': Somos então
remontar aos fundamentos da ordem jurídica, à questão, em termos
levados à problemática da interpretação e do "poder" discricionário do
kelsenianos, da validade (legitimidade) da ordem jurídica tomada em
órgão de aplicação. Mas a situação de exceção assume igualmente um
sua totalidade. No topo da ordem jurídica, afirmará Schmitt na Teolo segundo significado que desta vez interessa mais ao direito público e à
gia política, não se encontra nenhuma norma, menos ainda uma nor filosofia do direito e confere doravante uma conotação metafísica à
ma fundamental hipotética. No fundamento da ordem jurídica, não se crítica schmittiana do normativismo. É o caso do regime de exceção
descobre senão a decisão do soberano. "A ordem jurídica, como toda ("estado de exceção", "estado de sítio" ou outras expressões equivalentes)
ordem, repousa sobre uma decisão e não sobre uma norma." É a deci que permite a suspensão, talvez até em sua totalidade, da ordem jurídica,
são do soberano. "É soberano': afirma Schmitt, "aquele que decide so na hipótese de que a existência do Estado esteja em perigo (o extremus
bre o 1.2 Adeexceção
estado no
exceção"9. fundamento do decisionismo necessita tis causus) 12. A questão de saber "quem decide efetivamente" para
suspender a validade de uma ordem jurídica e produzir assim o direito
A exceção é justamente, segundo Schmitt, o que melhor revelaria
(novo) concerne diretamente, segundo Schmitt, à problemática da
ao mesmo tempo a face oculta e a inconsistência do normativismo. A
soberania. Do ponto de vista da teoria publicista, o regime do estado de
noção de situação excepcional assume aqui um duplo significado ID. exceção pode ser previsto pelo direito positivo sob a forma de uma
Primeiro o da imprevisibilidade: o que não é previsto pela ordem jurí disposição constitucional que estabelece a autoridade competente e as
dica. A qualidade intrínseca de toda norma é a de ser aplicada. Ela nas condições factuais para esse regime entrar em vigor (por exemplo, o
ce para ser aplicada. Uma norma pressupõe, por definição, uma situação art.16 da Constituição da V República). Nessa hipótese, a própria ordem
normal, aquela que é justamente prevista pela norma e que constitui jurídica prevê sua própria suspensão e, nesse sentido, na visão
o normativista das coisas, a questão da decisão não se coloca. É

9 Carl Schmitt, TP,op. cit., p. 20 e 15.


li TPD2, p. 330, "...quando a ordem jurídica não estabelece ao indivíduo a
10 J.-E Kervégan, "La critique schmittienne du normativisme Kelsénien';
obrigação de adotar uma certa conduta, ela permite o contrário':
op. cit., p. 239. Também em Hegel, Carl Schmitt, op. cit., p. 33.
12 TP,op.cit.,p.17.

~
242 243
HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO As TEORIAS ANTIFORMALlSTAS

sempre uma norma que prevê a suspensão de outras normas. De qualquer decisão soberana é começo absoluto, e o começo (aqui compreendido
forma, é preciso sublinhar que nessa hipótese as disposições do direito 00 sentido de arkhé) não é nada mais que uma decisão soberana. Ela
positivo, "prevendo" a imperiosa necessidade que permite "o estado de jorra de um nada normativo e de uma desordem concreta"16. O autor
exceção", contentam-se com formulações tão gerais - "ameaça grave", encontra a origem do pensamento decisionista nos teóricos da sobera
"saúde pública" - que elas conferem à autoridade competente uma certa oia, em Jean Bodin (Os Seis Livros da República), mas sobretudo
margem de liberdade com respeito à qualificação dos fatos constitutivos em Hobbes. A fórmula de Hobbes - "é a autoridade, não a verdade que
das condições de aplicação de um regime de exceção, conferindo-lhe, faz a lei" (Auctoritas non veritas facit legem) - representa, segundo
conseqüentemente, uma relativa liberdade de agir 13. O componente Schmitt, o tipo puro do pensamento decisionista. A "pureza" de seu
decisionista permanece assim intacto. Norma e decisão parecem ser decisionismo está, segundo o autor, no fato de que apenas a vontade do
complementares. Trata-se, segundo a qualificação que dá J.-E Kervégan, soberano basta
da "formulação moderada" do decisionismo schmittiano. para conferir autoridade ao seu poder. De certa maneira, há uma fusão
Contudo, do ponto de vista da filosofia do direito, que constitui para entre summa potestas e auctoritas. O soberano hobbesiano não terá que
o decisionismo um ponto de vista metafísico, a exceção levanta respeitar outros preceitos apreendidos pela razão (ratio) além daqueles
igualmente a questão do que constitui a fonte do direito, o fundamento, que derivam de sua própria vontade. A fórmula Voluntas et non ratio facit
ou em termos schmittianos, a questão da validade do direito, porque "não legem, para parafrasear a fórmula que citamos, poderia traduzir
existe norma que se possa aplicar a um caos. É preciso que a perfeitamente, aos olhos de Schmitt, o pensamento de Hobbes. Ela se
ordem seja estabelecida para que a ordem jurídica tenha um sentido"14. opõe, segundo ele, àquela de Grotius, já que para este o soberano tem a
Assim, do ponto de vista da instauração da ordem jurídica enquanto tal, obrigação ou, pelo menos, é de seu interesse e também do interesse da
o normativismo e o decisionismo "traçam orientações opostas" 15. A sociedade civil respeitar e fazer respeitar um "direito pré-estatal dotado de
palavra grega arkhé, que significa tanto "começo" como "mandamento': um conteúdo determinado". Schmitt afirma que "o primeiro sistema
está aqui no âmago da problemática schmittiana: "Para o jurista de tipo (Grotius) parte do interesse relativo a certas concepções da justiça,
decisionista", afirma Carl Schmitt, "não é o mandamento enquanto quer dizer, parte de um conteúdo da decisão, enquanto que para o ou
mandamento, mas a autoridade ou a soberania de uma decisão últi- tro (Hobbes) não há interesse senão no fato de que urna decisão seja
ma, dada com o mandamento, que constitui a fonte de todo 'direito', ou tomada" 17. A vontade soberana põe fim ao estado de guerra e de desordem,
seja, de todas as normas e de todas as ordens que dele derivam. [u.] A assegurando por seus mandamentos que se tornam lei a segurança e a paz
na societas civilis. É justamente aí que a exceção schmittiana

13 TP (1922), trad. grega, ed. Léviathan, Atenas, 1994, p. 19. Segundo o 16 C. Schmitt, Les trois types de pensée juridique, op. cit., p. 81 e p. 83.
art. 16 da Constituição francesa atual, um verdadeiro poder de interpretação é atribuído, 17 C. Schmitt, Diktatur, citado por J.-F. Kervégan, Regel, Carl Schmitt, op.

segundo Troper, ao Presidente da República; M. Troper, "La ConstitUtion cit., p. 36-7. Os itálicos são do autor. "Os atos, afirmava Grotius, a respeito dos quais a
et ses représentations': in Pouvoirs, 1978, n. 4, p. 70. razão nos faz valer esses decretos, são obrigatórios ou ilícitos por si mes1110s", in De
14 TP,op. cit., p. 23. jure be/li ac Pacis, citado por A. Dufour, Grotius et le droit naturel, op. cit., p.

1
15 J.-F. Kervégan, Regel, Carl Schmitt, op. cit., p. 35. 64.
245
244 As TEORIAS ANTlFORMALlSTAS
HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO

encontra sua plena significação. Do latim excipere, que significa literal- são não é exterior ao direito, ela lhe é inerente. Nesse sentido, a exceção
mente "tirar de", "tomar de': a decisão soberana consiste em se abstrair serve de mediador entre o fato (a decisão) e o direito (a norma). Toda
da desordem e se subtrair do nada negativo para passar a uma ordem de
direito. Essa é definitivamente a leitura schmittiana de Hobbes. Podese, via, a exceção no sentido da criação de uma ordem jurídica, seja pelo
contudo, interrogar sobre a pertinência dessa interpretação, na medida soberano no sentido de Hobbes, seja pelo poder constituinte qualquer
em que Hobbes não dissocia a lei natural e o direito positivo da
que seja sua origem, revolucionária ou não, dissocia a norma da deci
sociedade civil. O poder soberano tem como finalidade garantir nosso
direito natural à conservação de nossa vida (direito de segurança), o que são na medida em que a decisão toma o passo sobre a norma. A norma
constitui um verdadeiro limite, ainda que minimalista, às decisões do pressupõe a decisão. As condições de efetividade e de validade do direi
soberano. ''A lei da natureza e a lei civil': escrevia Hobbes, "pertencem
tO não são mais contempladas sob o ângulo da complementaridade, mas
uma à outra e são de igual extensão"18. É dessa maneira que o
poder recebe a autoridade de agir sobre nós de forma legítima. A da prioridade: a divisão política (do soberano) está no fundamento da
oposição entre normativismo e decisionismo que Carl Schmitt acreditou validade do direito. "O caso de exceção revela com maior clareza a es
encontrar nos dois autores, Grotius e Hobbes respectivamente, está longe sência da autoridade do Estado" no sentido da decisão derradeira do
de ser indiscutível. soberano que "garante a ordem jurídica em sua totalidade"; e" é aí", pros
A exceção, enquanto estado de exceção, ditadura ou precedente que
segue ele, "que a decisão se separa da norma jurídica" 22, sem que a de
faz jurisprudência, constitui no seio da doutrina schmittiana o pano de
cisão se torne exterior ao direito. O direito está baseado na decisão. A
fundo da norma: a situação normal não faz sentido se ela não excluir a
situação anormal, excepcional. "Ela (a exceção) é esta situação anormal decisão lhe permanece imanente. Antonio Negri ressalta que Carl
que, como tal, institui a norma e lhe confere seu valor de norma:'19 Ou, Schmitt "vê (a decisão) percorrer toda a extensão da ordem jurídica,
para retomar a elegante fórmula do italiano Giorgio Agamben: ''A nor ma formando-a e sobredeterminando-a; (ela) representa o máximo de
se aplica à exceção em se desaplicando dela, em se retirando dela" 20. A exceção, factualidade: ela é lançada na ordem jurídica como um fato de imanência
desde que não seja sem relação com a norma, confirma a re gra, como absoluta:>23 E é aqui que os dois sentidos de exceção, discernidos
sublinhava Carl Schmitt em sua Teologia política 21, e faz assim aparecer, por
de encontro à teoria kelseniana, a imanência no direito do elemento razões analíticas, se reúnem: o estado de exceção enquanto
decisionista sem o qual a norma seria impensável. A deci possibilida
de de suspensão da ordem jurídica revela o fundamento derradeiro do
direito. "A condição derradeira da validade normativa", ressalta J.-K
18 T. Hobbes, Léviathan, Sirey, 1972, trad. Tricaud, p. 295.
22 TP,op.
Kervégan, "é ocit.,
poder da afirmação dessa validade" 24. Na Teoria da Cons
p. 23.
23 Antonio Negri, Le pouvoir constituant. Essais sur les alternatives
J.-F. Kervégan, Hegel, Carl Schmitt, op. cit., p. 45.
19 tituição, Schmitt torna operatório o pensamento decisionista pela dis
20 Giorgio Agamben, Homo Sacer, le pouvoir souverain et la vie nue, Le de la
tinção entre a vontade política do poder constituinte, que toma a
Seuil, modernité,global
"decisão PUF, 1997, p. 11-2.
concreta sobre o gênero e a forma concreta da existência
1997, p. 25.
21 C. Schmitt, TP, op. cit., p. 23.
política própria", e as normas jurídicas que traduzem essa vontade.
~.-F. Kmégw. H,gel. Ca'Z S,hm;u. op. dt.. p. 34.
246
HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO 247
As TEORIAS ANTIFORMAlISTAS

Schmitt coloca assim a distinção entre "Constituição" e "leis constitu


abnente na obra de G. Renard, discípulo daquele. A neotomista "natu
cionais': indo de encontro à teoria kelseniana que identifica os dois ter ~eza objetiva das coisas" se revela aliás pouco compatível com o volkgeist
mos. A Constituição é, em Kelsen, "a norma das normas" 25. da germanidade sobre a qual se inscreve a ordem concreta. Ele rejeita também o
termo "instituição': preferindo usar ordem concreta ou organização concreta
1.3 O decisionismo, O normativismo e O para dar ênfase ao caráter dinâmico que segundo ele é ausente na palavra
institucionalismo
Instituição 27. A ordem concreta de fato não é senão uma
"microcomunidade" no sentido da comunidade orgânica de T õnnies, que
o dualismo entre normativismo e decisionismo que Schmitt ado
diferenciava "sociedade" e "comunidade': Segundo Tõnnies, uma socie-
tou será mais tarde abandonado em favor de uma distinção ternária:
dadeé centrada em torno do indivíduo e do acordo firmado entre indiví-
normativismo, decisionismo e institucionalismo. Em 1934, quando duos livres e autônomos, ao passo que em uma comunidade o indivíduo forja
já ti uma identidade pela sua própria presença em uma coletividade que lhe
transcende, como seria o caso da substância orgânica e racial do povo alemão 28.
nha aderido ao nacional-socialismo, ele publicou Os três tipos
Assim, segundo Schmitt, as ordens concretas são subordinadas a
de pensa uma unidade política incorporada pelo Fürher do Movimento, que as-
mento jurídico. Schmitt aderiu explicitamente ao institucionalismo, segura, por plebiscitos, a mediação entre o Estado e o povo. As próprias
isto é, ordens concretas são igualmente estruturadas em torno de um "chefe",
a corrente de pensamento representada na França por Maurice porque se baseiam na idéia de uma Direção e nos princípios de fideli-
dade, obediência, disciplina e honra. O decisionismo do período anterior
Hauriou
não está jamais ausente, embora daqui em diante a noção de ordem
e na Itália, por Santi Romano. Mas a instituição de Carl Schmitt tem um
concreta pretenda estar no fundamento do direito. Contudo, sendo as
sentido particular: o da ordem concreta. A teoria da ordem concreta se ordens concretas consideradas superiores ao mesmo tempo às leis, às
situa mais precisamente entre a influência da teoria da instituição sobre
seu pensamento e o prolongamento de sua própria tese, aquela da trans
formação dos direitos do homem em "garantias institucionais': Os direi
tos do homem não são mais considerados naturais e imprescritíveis, mas
se inscrevem sobre uma ordem concreta, uma Instituição que é a do Es 1926. De qualquer forma, é preciso ressaltar que, mesmo que a Instituição no
sentido de Hauriou necessita do "entendimento das vontades sob a direção de
tado. Pode-se sem dúvida acrescentar que o pensamento segundo a or Um chefe", este último não é de forma alguma concebido na forma de um
dem concreta reflete a ideologia nazista que se articula em torno dos três Führer schmittiano.
pólos: o povo, o Movimento, o Estado. Schmitt se declara influenciado
25 Carl Schmitt, Théorie de ia Constitution (1928), trad. fr., 1993, Paris, p.
27 Les trais types, op. cit., p. 107.
Christian Graf von Krockow vê na obra de Schmitt a influência de Tõnnies,
pela teoria de Maurice
21l-2, citado por C-MoHauriou quando
Herrera, op. cit., p. retém
197. em essência da doutrina
28

in Die Entscheidung. Eine Untersuchung über Ernst Jünger, Cari Schmitt, Martin
deste26 M.
a idéia geral
Hauriou, de quedu "são
Aux sources droit: as instituições
ie pouvoir, que
l'ordre et fazemCaen,
ia iiberté, a regra de IJeidegger, Frankfurt, 1990, citado por D. Séglard, Présentation, de Trois types de pensée
Centre de philosophie juridique et politique, 1986, p. 128, reedição dos textos de
direito, juridique, op. cit., p. 54.

e não as regras de direito que fazem as instituições" 26. Todavia, ele rejeita o
neotomismo que resulta da teoria institucionalista de Hauriou princi ~
248
HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO
As TEORIAS ANTIFORMALlSTAS 249

regras e às decisões, "a teoria concreta da ordem desaparece completa


islador, no qual a racionalidade da lei é apreciada unicamente segundo
mente uma vez que seja reduzida a seus elementos normativos e ~ríticas formais, isto é, a competência da autoridade e o procedimento
decisionistas" 29. Enfim, cada um desses três tipos de pensamento que foi seguido. A legalidade então se torna, como dizia Max Weber,
um princípio de legitimação que leva à superioridade dos representantes
repre
da "vontade do povo", quer dizer, do parlamento. A "lei" torna-se assim
senta, aos olhos de Carl Schmitt, um período histórico determinado 3°: sinônimo da "justiça". O Estado legislador se baseia na separação da
o século XVII corresponde ao período do decisionismo do absolutismo sociedade civil do Estado. O fato dessa separação é bem
estabelecido na segunda metade do século XIX, apesar do atraso de
do príncipe, e é seguido pelo período do normativismo do direito racio
expansão que em geral conheceu a indústria capitalista na Alemanha, ao
nal no século XVIII, enquanto o século XIX é o período do positivisrno passo que o valor dessa separação corresponde ao ideal liberal da não-
que associa o normativismo e o decisionismo, como todo positivismo intervenção do Estado na vida social, principalmente em sua
manifestação econômica. Entretanto, neste ponto Schmitt se revela um
que se queira coerente consigo mesmo, segundo o autor. Trata-se mais
dos primeiros a ter observado com perspicácia a transformação profunda
precisamente do período em que a lei se apresenta como uma regra da sociedade liberal: o Estado liberal não é mais o que era, ele se
"objetiva" e racional de si própria, atrás da qual se encontram de algu transformou no que chamamos de "Estado social" ou "Estado
providência". O Estado se tornou, segundo Schmitt, desde a década de
ma forma a vontade e, portanto, a decisão do legislador. Enfim, o pen
1920, mas sobretudo depois da Segunda Guerra Mundial, um Estado
samento da ordem concreta e da organização concreta corresponde ao
total, uma vez que intervém em todos os "domínios da existência
Estado alemão da Alemanha na época de Schmitt, caracterizada pela humana, não somente na economia [...] mas também nas coisas culturais
interpenetração do Estado e da sociedade a que caminhou o Estado de e sociais" 32. Ele não é mais neutro: torna-se árbitro que tenta conciliar os
direito liberal do século XIX. É o período do Estado quantitativamente diversos interesses reivindicados por grupos sociais tornados autônomos,
1.4 A crítica do liberalismo como as associações e os sindicatos, no nível da sociedade civil, ou as
total que designa a profunda transformação do Estado liberal parlamen
entidades "políticas" descentralizadas que representam o Estado ao
tar naquilo quede
O Estado chamamos de Estado
direito, noção social,
atribuída pelamas que acaba
ciência sealemã
política transfor
na
mesmo tempo que rivalizam o poder com ele. O resultado dessa
segunda
mando, metade
aos olhos do séculoem
de Schmitt, XIX,
um principalmente nas obras total,
Estado qualitativamente de Robert
transformação consiste na "socialização" do Estado, na interpenetração
von
alinhando-se assim com a ideologia fascista 31. do Estado e da sociedade e na perda, no final das contas, do sentido do
Mohl e de Lorenz von Stein, é o que Carl Schmitt chama de político. Isso se manifesta, na época da República de Weimar, no nível
Estado le mais alto do Estado, que segundo a concepção liberal, é o parlamento.
Este se tornou o "lugar
29 Ernst Frankel, The dual State (1941), reed. 1969, p. 149, citado por D.
Séglard, op. cit., p. 56.

30 C. Schmitt, Les trois types de pensée juridique, op. cit., p. 114.


J.-E Kervégan, op. cit., p. 83.
32 C. Schmitt, Verfassungsrechtliche Aufsiitze aus den ]ahren 1924-1954, citado por
31
J.-E Kervégan, op. cit., p. 87.

~
251
As TEORIAS ANTIFORMALlSTAS
250 HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO

brio, como dizia Montesquieu, não faz mais que caucionar o princípio
dos partidos" e, por isso, um "lugar de compromisso" entre
interesses antagônicos, transformando o Estado em "Estado de partidos". da publicidade. Ora, Schmitt prefere ao Estado parlamentar pluralista
O parlamento não exprime mais a "vontade geral", mas as vontades
de sua época, e sem nenhuma dúvida em geral- o Estado total por fra
particulares. É isso que nos põe diante da questão do político. O político,
segundo Schmitt, não é definido por um domínio de atividade particular, queza, dizia ele - em plena crise da República de Weimar, o Estado pre
quer ela seja econômica, social ou moral, nem pela pluralidade dos
sidencial plebiscitário (o Estado total pela força). "O sentido da
interesses que estão presentes no seio de uma sociedade, mas pela
unidade política de um povo. "O termo política'~ afirma Schmitt, "não expressão
designa um domínio de atividade própria, mas somente o grau de 'vontade plebiscitária' não é a edição de normas", ressalta Schmitt, "mas,
intensidade de uma associação ou de uma dissociação de seres humanos,
CoUlO exprime de forma adequada o termo 'plebiscito', a decisão por
cujos motivos podem ser de ordem religiosa, nacional (no sentido ético
ou no sentido cultural), econômico ou outro [u.]. A distinção específica uma
do político, à qual podem se relacionar os atos e os motivos políticos, é a 2. O REALISMO
vontade AMERICANO
[...]. A legitimidade plebiscitária é o único modo de legitimação
discriminação do amigo e do inimigo"33. Inimigo significa hostis, não Se o que,
do Estado antiformalismo
atualmente,do continente
deveria europeu se exprimiu
ser universalmente principal
reconhecido
inimicus no sentido amplo. O inimigo não poderia ser outro que não o
CoUlOmente 36 .
válido" pelos escritos de Gény e dos representantes da escola do
inimigo público e exterior ao Estado, que vai de encontro a um povo. Se
o político consiste na designação do inimigo, e mais precisamente, "na direito li
possibilidade de provocar a morte física de um homem"34, a possibilidade da vre, o pensamento realista e antiformalista conheceu um importante
guerra é o horizonte com base no qual será determinada a política do Estado. desenvolvimento nos Estados Unidos, por volta das décadas de 1920 e
Mesmo a questão de saber se essa situação existe realmente não pode ser fruto de 1930. Ele marcou profundamente a reflexão jurídica crítica e se
uma deliberação parlamentar, mas de uma decisão. Schmitt se opõe assim à
estendeu
ética da discussão sobre a qual se baseia, segundo ele, o liberalismo
com o movimento Law and Society. A partir da década de 1960,
(Constant e Guizot) A idéia liberal com que se chega à verdade pelo viés
35.
essa re
da discussão pública é perfeitamente ilustrada pelo lugar da discussão que
flexão fez nascer o movimento dos Criticallegal studies,
constitui o parlamento. A idéia, em seguida, de que o princípio da separação
dos poderes, no sentido de uma "balança" dos poderes legislativo e executivo
principalmente
que realiza um equili associados aos nomes de Dunkan Kennedy e de Roberto Mangabeira
Unger, em um contexto político agitado pela guerra do Vietnã e pelo fra
casso das políticas de integração realizadas pela administração Johnson.
Carl Schmitt, La notion de politique, Flammarion, 1992, p. 77 e 64. O movimento realista engloba em seu seio as personalidades de Karl
33 36 C. Schmitt, Légalité et Légitimité, citado por J.-F. Kervégan, op. cit., p. 62.
34 Ibidem, p. 71. Llewellyn, John
37 Morris R. Chipman Gray,
Cohen, Law and Felix Cohen
the social (filho
order. do filosófo
Essays in legal Morris
philosophy,
35 Ibidem, p. 117. C. Schmitt, Parlementarisme et démocratie, 1988,
Cohen, que muito se interessou pela filosofia do direito 37), Thurmond
G.B.
J.-F.
e N.Y., 1982.
Amold, Jerome Frank, para citar apenas os mais importantes. Elas de
Kervégan, op. cit., p.118.
~
252
HISTÓRIA DA FilOSOFIA DO DIREITO
As TEORIAS ANTlFORMAlISTAS 253

senvolvem, cada uma à sua maneira, as intuições de Oliver WendelI


ue dizem respeito à alocação de recursos disponíveis. O direito não se
Holmes, que é considerado, junto com Pound, o fundador da ;eduz a um conjunto de regras e de conceitos deduzidos d~ alguns prin
Sociological cípios primeiros, como quer a teoria formalista do direito. E suficiente
se debruçar, dizem os realistas americanos, sobre a resolução dos litígios
Jurisprudence, freqüentemente assimilada ao realismo americano. 'l\s levados diante dos tribunais e, mais particularmente, sobre a natureza do
raciocínio elaborado pelos juízes, como nos é proposto em todo caso pela
predições do que farão os tribunais e nada mais pretensioso do que isso';
teoria formalista, para então constatar que esse raciocínio é bem circular.
dizia Holmes, "são o que eu entendo por direito"38. Essa idéia será substi A doutrina formalista considerou inicialmente, por exemplo - para citar
apenas este exemplo entre tantos outros apresentados pela literatura rea-
tuída pela definição do direito como ciência dedutiva e lógica, definição
lista, que é abundante a este respeito -, que a proteção jurídica dos nomes
que reflete principalmente a concepção de LangdelI, fundador nos Esta comerciais (trade names) visam a proteção dos consumidores. Mas a
dos Unidos do case-method e da ciência jurídica dedutiva e lógica. A sis
extensão de proteção que esse domínio conheceu quando mais
nenhum perigo de confusão por parte dos consumidores era possível
tematização das decisões judiciárias passadas, a construção dos grandes levou tanto a doutrina quanto os tribunais a retomar suas considerações e
princípios sobre os quais vêm se inserir as decisões dos juízes e o afirmar que, além da apelação comercial de um produto, sua forma
particular, de fato, sua embalagem, assim como outras características do
ensinamento do direito em essência construído sobre as decisões judi
produto às quais os consumidores estão habituados, constituem para o
2.1que
ciárias melhortese
Primeira ilustram os grandes princípios executados, essas são fabricante um valor econômico e, conseqüentemente, um direito de
as idéias de Holmes, nomeado em 1870 professor de direito em Harvard 39. propriedade que necessita de proteção jurídica com respeito a terceiros. E
A concepção instrumentalista ou funcionalista do direito, é justamente sobre esse ponto que se constata a circularidade do
As idéiasa dos realistas americanos, apesar das diferenças por vezes
segundo raciocínio judiciário, já que esse raciocínio simula fundar a proteção
impor jurídica sobre um direito de propriedade preexistente, ainda que este
38qual
O. W. o direito
HoImes, "Theserve
Path ofcomo meio ';para
the Iaw (1897) satisfazer
Harvard as v.diferentes
Law Review, 10, p.
seja determinado exclusivamente em função da proteção que lhe é acordada
políticas
tantes
461,que podemos
reed. constatar entre
em CollectedLegal eles, podem
Papers, conduzirVer
1920, p.172-3. a quatro te W.
também
pelos tribunais 41. Segue-se que os juízes, na resolução de casos a julgar, não
Twining,Karl
ses 40(politics)
que convémestabelecidas pelo governo
desenvolver sucessivamente. de um país, principalmente resgatam um direito de propriedade preexistente para deduzir as regras
Llewellyn and the Realist Movement, Londres, 1973; F. Michaut, L' école de Ia jurídicas, como sugere a teoria formalista, mas criam um novo direito.
aquelas
Assim, eles participam diretamente da redistribuição dos recursos
"sociological jurisprudence" et le mouvement réaliste américain. Le rôle du juge et Ia
econômicos, (re)produzindo tanto o status quo econômico quanto os
théorie du droit, tese de Estado, Universidade de Paris X - Nanterre, 1985.
modos de vida estabelecidos. O direito, em suma, existe apenas em
39 F. Michaut, "Les réalistes américains et Ia codification'; in Droits, função dos julgamentos judiciários
27,1998,
p.49.
41 Felix S. Cohen, "Transcendental nonsens and the functional approach", in

40 Andrew AItman, "Legal Realism, CriticaI Legal Studies and Columbia Law Review, v. XXX, n. 6, junho de 1935, p. 814-6.

Dworkin'; in
Philosophy and Public Affairs, v. 15, n. 3, p. 206, n. 4. ~
255
As TEORIAS ANTIFORMALlSTAS
254 HISTÚRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO

regraS, às vezes contraditórias, são aplicáveis a um casu concreto. H. L.


concretos, e não das regras. Ou melhor, as regras e os conceitos jurídicos não
são mais que modelos (patterns) de decisões judiciárias 42. Nessa Versão A. Bart, em Positivism and the separation of Iaw and moraIs, como em
dita moderada da teoria realista, o ceticismo relativo à natureza das
regras jurídicas não consiste apenas em negar toda autoridade possível sua obra The concept oflaw, publicada em 1961, quis equilibrar a posi
reconhecida nessas regras, mas principalmente em sublinhar seu caráter
indeterminad043. Como nos faz observar Karl Llewellyn, "as regras são ção realista quanto à incerteza relativa à aplicação da regra juridica. Ele
importantes na medida em que nos ajudam a predizer o que os juízes vão
fazer. É nisso que reside a importância delas, à parte o fato de que consti- reconhece que a regra jurídica, formulada de maneira geral e abstrata,
tuem belos brinquedos" 44. Em contrapartida, os realistas radicais como
J. Frank, Bingham e Arnold concebiam que, por trás das decisões dos tri bunais, possni uma textura aberta, como, aliás, qualquer outro enunciado
não há nada além da escolha arbitrária dos juízes. O niilismo destes
lingüístico. Toda regra jurídica possui, ao lado de um "núcleo de senti
últimos será retomado pelos desconstrucionistas contemporâneos, como
Stanley Fish. Isso nos leva diretamente à segunda tese realista, que está do" claro cuja aplicação não traz dificuldades (easy cases), uma
no centro dos debates atuais da filosofia do direito.
margem

importante de incerteza em certos casos, que torna difícil essa aplica


2.2 Segunda tese
ção (hard cases) 46. A posição realista, conclui ele, só se relaciona a esses
O caráter indeterminado das regras jurídicas (indeterminacy thesis),
segundo os realistas, está antes de mais nada estreitamente ligado à existência de últimos casos, os "casos difíceis". Em seguida, a tese de indeterminação
termos vagos nas regras a serem aplicadas, que tornam problemática sua
se relaciona com a teoria dos precedentes no sistema da Common Iaw.
aplicação em casos concretos 45. Isso ocorre quando várias
Segundo essa teoria, uma certa autoridade é conferida às regras pelas

quais os juízes reconheceram a existência dos assuntos submetidos a eles


42 Idem, p. 842.
E. Hunter Taylor, H. L. A. Hart's concept oflaw in the perspective of american
43
anteriormente. Contudo, como afirmam os realistas, é impossível de
legal realism, Modern L. R., v. 35,1972. p. 616.
44 Karl Llewel1yn, The Bramble Bush. On our Law and its Study, 2" ed., 1951, p. duzir de um precedente existente uma regra identificável, porque o pre
14 (1" ed. 1930), cito trad. em H. L. A. Hart, Le concept du droit, trad. fr., 46 H. L. A. Bart, Le concept de droit, Bruxelas, 2" ed., 1980, p. 159 (no origi
Bruxelas, 1980, p. 172 (no original, p. 135-6). Dos moderados faz igualmente
cedente pode ser o objeto de duas leituras contraditórias, uma extensiva
nal p.124); "Positivism and the separation oflaw and moraIs", Harvard Law
parte John Chipman Gray, que distingue o "direito criado" pelos juízes de e outra restritiva, e pode então nos conduzir a duas soluções contradi
"fontes de direito" como os materiais jurídicos, sustentando assim, segundo Revicw,
Morris Cohen (op. cit., p. 355), uma tese profundamente contraditória. tórias. Eles questionam assim a possibilidade de distinguir com preci
45 K. Llewel1yn, The Bramble Bush. On Our Law and its Study, Oceana publ., v. 71, 593, 1958, p. 606-7.
são o holding of the case (ratio decidendi) e as dieta, como sustentava a
N.Y., 1989, p. 59-77. 47 K. Llewel1yn, Brooking Institutions. Essays on research in the Social Sciences
teoria dominante. É impossível distinguir, em outras palavras, o que é
(1931), publicado igualmente em Jurisprudence. Realism in Theory and
~ essencial para a decisão tomada pelo juiz, que adquire assim uma força
Practice,
obrigatória diante
Chicago, dasp.outras
1962, jurisdições, e o que não está no funda
91, n. 8.
mento da decisão tomada (comentários concernentes, por exemplo, a
uma disposição legislativa ou mesmo às opiniões dos juízes a quem não
interessa diretamente o assunto julgado) 47. Na ocasião da aplicação do
256
HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO 257
As TEORIAS ANTIFORMALlSTAS

direito, uma ampla margem de apreciação é deixada aos juízes que in


há também aqueles que criticaram vivamente essas posições ditas ex-
terpretam o direito. É curiosamente à mesma conclusão que chega a tremas (LlewelIyn), preconizando para a análise das decisões judiciárias
posição de H. L. A. Hart, que reconhece ao juiz um verdadeiro que se tomasse em consideração todos os determinantes sociais, eco-
nômicos, éticos ou políticos, além das características individuais da
Poder
personalidade do juiz; segundo F. Cohen, isso ocorre apenas por causa de
discricionário de apreciação por ocasião da resolução dos "casos difí um certo número de princípios institucionais precisos e identificáveis que
ceis': diferentemente de realistas como Felix Cohen, que atribuem Ul11a dão uma orientação à decisão a tomar e a predizer. Entre esses princípios
verdadeira responsabilidade ética ao juiz na aplicação de um preceden ele cita, por exemplo, a autoridade reconhecida para as regras de decisões
passadas (a teoria dos precedentes) 51. O behaviorismo adquire então, no
te 48, enquanto H. L. A. Hart se atém a uma constatação pura e seio deste movimento, um significado amplo e uma posição geral que
sil11ples remete a uma inspiração empírica. Concretamente, "o que fazem os
do poder discricionário. Isso estará, aliás, na origem do conflito que vai tribunais e quais são os efeitos de suas decisões?" 52, eis a máxima que
guia a pesquisa dos realistas. Ela encontra sua fonte de inspiração
opor H. L. A. Hart ao seu homólogo norte-americano, Ronald Dworkin.
primeiramente no pragmatismo norte-americano, o de Charles Sanders
O direito, concluem os realistas, não vive nas palavras do legislador,
2.3 Terceira tese Peirce, de William James e de Dewey. "Considerar", dizia C. S. Peirce,
nel11 "quais são os efeitos práticos que pensamos poder ser produzidos pelo
O behaviorismo,
nas coletâneas ou comportamentalismo,
da jurisprudência, deve ser dos
mas nas ações concretas utilizado com
tribunais objeto de nossa concepção. A concepção de todos os efeitos é a
precaução quando nosdos
e no comportamento referimos ao fazem
juízes que realismo norte-americano,
o direito. umaà vez
O que nos leva concepção completa do objeto"53. Mas ela se inspira igualmente nas
que esse termo abriga várias tendências no
terceira tese do realismo norte-americano. seio do movimento, às vezes obras daquele que foi o inspirador do empirismo lógico, L. Wittgenstein,
até mesmo antinômicas. Alguns realistas americanos consideram que a que, no Tractactus logico-philosophicus, afirmava que toda proposição
decisão judiciária é o resultado das instituições pessoais de cada juiz to que não pode ser confirmada pela experiência é desprovida de qualquer
mado individualmente 49, ou, como Jerome Frank 5°, baseiam sua análi significação. Qualquer questão metafísica é, desse ponto de vista, des
se unicamente na psicologia, afastando assim todo fator social que possa
ter influenciado a decisão judicial. Em ambos os casos, a decisão do juiz,
contrariamente ao postulado do juiz Holmes, torna-se imprevisível. Mas
51 F. S. Cohen, Transcendental nonsens, op. cit., p. 844. O autor se refere às

"uniformidades de comportamento" das autoridades que aplicam o direito, as quais


tornam previsíveis suas decisões. Essas uniformidades correspondem de fato ao que nós
qualificamos aqui como "princípios institucionais':
48 F. S. Cohen, "The ethical basis of Legal Criticism': Yale Law Journal201,
52 K. Llewellyn, "Brookings Institutions': in Jurisprudence. Realism in theory and
215 (1931). '.
practlce, op. Clt., p. 81.
49 Cf. Hutcheson, "The judgement Intuitive: The Function of the 53 C. S. Peirce, Comment rendre nos idées claires, trad. J. Chenu, in Textes
'hunch' in anticartésiens, Aubier-Montaigne, 1984, p. 297. J. -P. Cometti, Le pragmatisme: de
Judicial Decisions': 14 Corno L. Q., p. 274, 1929. Reirce à Rorty, in La philosophie anglo-saxonne, dir. M. Meyer, PUF, 1994, p. 387.
50 Jerome Frank, Law and the Modern Mind, Brentano's, 1931.

~
258
HISTORIA DA FILOSOFIA DO DIREITO As TEORIAS ANTIFORMALlSTAS 259

provida de sentido. É preciso citar, enfim, uma outra fonte de inspira


reais motivos das decisões proferidas pelos juízes. Tudo porque a teoria
ção: os trabalhos de Russell e do Círculo de Viena (Schlick, Carnap) que formalista do direito não quer admitir que os conceitos jurídicos não são
estenderam as teses do primeiro Wittgenstein, fazendo da verificação nem política nem axiologicamente neutros: servem de suporte a modos
empírica de uma proposição o critério de sentido 54. Esse ecletismo de vida veiculados pelas regras jurídicas. Conseqüentemente, há no seio
epis da teoria formalista do direito uma fusão entre a questão do ser (o que é o
temológico, que leva a teses verdadeiramente incompatíveis - por exel11 direito) e aquela do dever-ser (o que ele deveria ser), entre o fato e o
pIo, em que a abdução do pragmatismo de Peirce é compatível COl11 o valor 55. Ela não chega a distinguir a componente descritiva da reflexão
postulado fundamental do Círculo de Viena? -, não traz apesar de tudo jurídica de sua componente prescritiva. Para o método realista, o
qualquer dificuldade aos olhos dos realistas, porque o que eles retêl11 anticonceitualismo comporta dois aspectos: de acordo com o primeiro,
desses modelos epistemológicos é, sobretudo, o repúdio comum a toda como acabamos de dizer, a reflexão jurídica deve permanecer o mais
reflexão dita metafísica, seja sob a forma de pesquisas filosóficas relati- próximo possível dos modelos de comportamento impostos pelo
vas à justiça e à ética, seja sob a forma mais modesta de conceitos abs- julgamento dos tribunais ou pelas outras autoridades que aplicam o
tratos definidos no seio de um sistema concebido de maneira direito, evitando assim as conceitualizações jurídicas inúteis; conforme o
independente da realidade social, como sustentava a ciência formalista segundo aspecto, a reflexão jurídica não deverá exprimir nenhum
julgamento de valor a respeito desses modelos, e menos ainda elaborar
do direito. Certos realismos advogam então a favor de uma reorientação
uma teoria de justiça. O reinado dos valores está fora de alcance para a
da reflexão jurídica, que doravante se desejará ao mesmo tempo
teoria do direito. As posições dos realistas a respeito dos valores são de
descritiva e crítica das decisões judiciárias. É o teor da quarta tese, ligada
qualquer modo muito divergentes. Há realistas como Thurman Amold
ao anticonceitualismo.
2.4 Quarta tese que adotam um enfoque emotivista: os valores são simplesmente as
manifestações das emoções humanas, e por conseguinte, não estão
o anticonceitualismo traduz o apego dos realistas aos fatos contidos suscetíveis a uma justificação racional. Elas não interessam à teoria do
nos assuntos julgados pelos tribunais, contra a própria idéia de considerar direito. Há também aqueles que, como F. Cohen e K. Llewellyn, são no
as decisões judiciais essencialmente como fatos que têm repercussões fundo favoráveis à idéia de enumerar as avaliações axiológicas, e
sociais. A teoria formalista, que desejava ver nas decisões jurídicas a principalmente as avaliações éticas, para uma justificação racional
aplicação de conceitos jurídicos que podiam estar ligados, por sua vez, a possível 56. Não obstante, a separação do fato e do
alguns princípios fundamentais que supostamente regiam o sistema
jurídico, engendra razões circulares, como mostra
muito claramente a primeira tese. Esses raciocínios não chegam, se
gundo os realistas, a nos dar uma verdadeira explicação quanto aos 55 K. Llewellyn, "Brookings Institutions': em Jurisprudence. Realism in Theory
and Practice, op. cit., p. 84.
O mais preocupado com o domínio da ética foi Felix S. Cohen; ver vários de seus
56

artigos em L. K. Cohen (ed.), The legal Conscience: Selected papers of Felix


;ohen, New Haven: Yale University Press, 1960. Cf também K. Llewellyn, "One
54 F. S. Cohen, Transcendental nonsens, op. cit., p. 822. realist's' view of naturallaw for judges", em Notre Dame Lawyer, 1939-1940.

~
260
HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO As TEORIAS ANTIFORMALlSTAS 261

valor adquire uma conotação bem particular aos olhos de certos rea suma, se o dever-ser jurídico efetivamente ocorreu 59. É nesse sentido,
listas, fazendo mesmo pensar na distinção weberiana entre o julga concluía Cohen, que o componente descritivo da teoria realista do direito
se associa com o componente crítico 6°. Contudo, permanece a questão de
mento de valor e a referência aos valores. Pelo primeiro, dizia Weber
, saber se o componente crítico da teoria comporta em si mesmo um
a sentido prescritivo.
valia-se favoravelmente ou desfavoravelmente as idéias, as situações
f
actuais, as ideologias. O julgamento de avaliação baseia-se exclusiva 3. O REALISMO ESCANDINAVO
m
ente em uma escolha puramente subjetiva. A referência aos valores 3.1 As teses dos realistas escandinavos
é
O dinamarquês Alf Ross retoma e prolonga as teses dos fundadores
, em contrapartida, o que condiciona, de um ponto de vista
do realismo escandinavo (escola de Uppsala), ou seja, as teses dos três
epistemológico, a construção do objeto em ciências sociais. A
pensadores suecos Axel Hagerstrõm (1868-1939), Vilhelm Lundstedt
forma
(1882-1955) e Karl Olivecrona. O que liga esses três filóso
do saber em ciências sociais é apenas parcial e jamais exaustiva, por
fos entre si e também com o último representante desta escola, Alf Ross,
que está fundada sobre a seleção de certos aspectos do objeto a conhecer
é a idéia de que o direito constitui antes de tudo um fenômeno psíquico: a
que representam o ponto de vista do pesquisador. Ora, isso não
normatividade jurídica é um constrangimento psicológico. Essa tese
impede que o conhecimento científico seja objetivo. Basta que o
encontra as origens nos trabalhos do principal inspirador do realismo
sábio
escandinavo,Axel Hagerstrõm, que empreendeu uma crítica sistemática
não exprima nenhum julgamento de valor a respeito do objeto a co
do idealismo e da metafísica. Sobre o plano mais específico da filosofia
nhecer. Encontra-se essa concepção em certos realistas. O jurista teó
prática, Hagerstrõm considerava que os próprios valores não são mais
rico que se deseja realista, dizia F. Cohen, terá que selecionar as
que "avaliações psicofisiológicas que asseguram, em última instância, a
conseqüências sociais das regras jurídicas e das decisões judiciais que
equivalência de todas as representações morais na ausência de um
lhe pareçam ser as mais importantes. O critério do que é importante
príncipe capaz de decidir sobre o valor dos valores: a moral será tão
será variável conforme se tratar da satisfação dos interesses materiais
livre que renunciará à pretensão de um fundamento objetivo dos valores,
das mulheres e dos homens ou da realização de seus ideais de justi
que deixará de crer que uma 'autoridade absoluta', seja aquela da
ça 57. Mas, em todo caso, dizia ele, o teórico realista não poderá com
consciência, liga-se a nossas representa
preender os fatos 58 - outra idéia que faz lembrar Weber - se ele não se
colocar a questão de saber se e em que medida as expectativas e as as
pirações sociais, sejam quais forem e como forem executadas por ele,
são realmente satisfeitas pelo direito. Ou, para retomar os próprios
57 F. S. Cohen, Transcendental nonsens, op. cit., p. 848.
termosIdem.
58 de Karl Llewellyn, a pesquisa realista consiste em examinar em 59 K. Llewellyn, Jurisprudence. Realism in Theory and Practice, op. cit., p. 85. 60 F. S.

que medida as políticas, as expectativas sociais, os próprios princípios Cohen, op. cit., p. 849.

de conteúdo moral que se supõe serem veiculados pelas regras e pelos


conceitos jurídicos, são efetivamente respeitados na realidade, em ~
262 263
HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO As TEORIAS ANTIFORMAlISTAS

ções" 61. Do direito, ele dirá o mesmo alguns anos depois: nós não empréstimo foi acordado, então o pagamento será efetuado na data do
saberíamos dizer nada se isso não se tratasse de vantagens que os indi- vencimento" 63. A verificabilidade de uma proposição é o critério de
víduos podem tirar das normas jurídicas a despeito de qualquer sentido da proposição, segundo a famosa máxima do empirismo lógico
referência a alguma idéia de justiça 62. A rejeição da metafísica que constitui também para o realismo escandinavo uma tese fundamental.
desse filosófo, bem como de seus sucessores, vai além da denúncia da Os realistas, em apoio a essa tese, vão criticar as doutrinas positi-
axiologia cognitiva e, de maneira mais geral, da concepção jusnaturalista vistas da analytical jurisprudence, aquelas de Austin e de J. Bentham,
do direito, para chegar a uma concepção filosófica próxima do empirismo uma vez que os dois filósofos substituíram o conceito jusnaturalista da
lógico do Círculo de Viena. E. Pattaro constata uma "analogia de vontade de Deus pelo conceito da vontade do soberano que dirige a seus
desenvolvimento" entre a filosofia sueca do início do século e a filosofia destinatários as ordens escolhidas de sanções 64. A doutrina positivista
inglesa de Bernard Russell, leitor atento do Wittgenstein do primeiro alemãda Staatswille e a doutrina francesa da vontade geral não escaparão
período (do Tractactus logico-philosophicus) e inspirador como ele das dessa mesma crítica. São noções metafísicas porque elas não
idéias do Círculo de Viena. Com efeito, as duas correntes, correspondem a nada de verificável65. O direito, mais precisamente,
desenvolvendo-se de maneira independente uma da outra, propagam a afirma Karl Olivecrona em Law as a fact, é composto de "imperativos
eliminação dos problemas metafísicos por meio de um enfoque científico, independentes" percebidos como obrigatórios pelos cidadãos. Esses são
que será o da análise lógica da linguagem: assim, faz tanto tempo que aos os imperativos que não se reduzem à vontade de uma instância qualquer,
conceitos jurídicos não corresponde nada de real, no sentido estritamente seja aquela de .um soberano no Estado, como concebiam as teorias de
empírico do termo, que se tratará, segundo eles, de entidades metafísicas. Bentham e de Austin, seja aquela do Estado enquanto entidade abstrata.
As noções de justiça, de direitos subjetivos, de obrigações, de Quando se acompanha os teóricos da analytical jurisprudence, os
responsabilidade, são desprovidas de sentido, sustentava Vilhelm mandamentos do soberano de um Estado são desprovidos de toda
Lundstedt (1882-1995), o mais radical dos realistas escandinavos, na obra obrigatoriedade, a
A falta de caráter científico na ciência despeito das relações concretas que ele pode ter com os destinatários de
jurídica (1932-1936). Esses conceitos não podem ser objeto de ciência. O seus mandamentos. Sublinhemos aqui o parentesco dessa argumentação
mesmo vale para Alf Ross, que foi aluno de Hans Kelsen. Ross dirá: "Se crítica com aquela dirigi da por Kelsen à concepção imperativista
um empréstimo é concedido, então nasce um crédito"; o crédito "não é
um objeto real, [u.] não é absolutamente nada além de uma palavra vazia
de qualquer referência semântica". Esta proposição não faz realmente 63 AlfRoss, "Tu- Tu", Harvard Law Review, v. 70, 1957, p. 818. Alguns extratos são

sentido se não for formulada desta maneira: "Se um traduzidos e reproduzidos em Le positivisme juridique, sob a direção de C. Grzegorczyk,
F. Michaut e M. Troper, LGDJ, p. 195. É o bastante comparar as propostas de Ross com
o que dizia Carnap a respeito da proposição ''A primeira liÇão tratava da metafísica':
Segundo ele, essa era uma pseudofrase e deveria ser COrrigida assim: ''A primeira lição
61 Olivier Cauly, Les phiIosophies scandinaves, PUF, col. "Que sais-je?", continha a palavra 'metafísica"'j in Pierre Jacob,
1998, L'empirisme logique. Ses antécédents, ses critiques, Minuit, 1980, p. 105-6.
p. 119. A. Hagerstrõm, De Ia vérité des représentations moraIes, Estocolmo, 1911 64 A. Hagerstrõm, Inquiries into the Nature ofLaw and Morais, 1953.
62 "La question d'un concept objectif de droit", I, La théorie de Ia volonté, 65 Karl Olivecrona, Law as a fact, sego ed., 1971 (1 a ed. 1939).
1917, citado por O. Cauly, op.cit., p. 120.
264 265
HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO As TEORIAS ANTIFORMALlSTAS

do direito, parentesco que se desdobra ainda mais quando Olivecrona dos jogadores como reações dotadas de sentido e, assim, predizê-Ias".68
sublinha a inconsistência da tese imperativa que sustenta que o soberano Seguindo a primeira das duas teses, conforme as distinguimos aqui, são
de um Estado, detentor do poder, é independente da ordem jurídica, uma válidas as normas jurídicas que, uma vez experimentadas como obri
vez que o Estado, afirma ele, não é mais que a organização jurídica do gatórias, são aplicadas pelos tribunais. A validade do direito é então de
poder 66. Em contrapartida, reduzir o direito à "vontade do Estado" é finida pela efetividade de sua aplicação, quer dizer, pela sua eficácia.
defender simplesmente uma tese fictícia. Em oposição a seus homônimos Por esta definição, A. Ross respeita o postulado epistemológico de sua
norte-americanos, que em essência relacionam a idéia do direito às doutrina, isto é, aquele de definir os conceitos jurídicos, como a
decisões dos tribunais, os realistas escandinavos sustentam que o direito é validade, em termos empiristas. Ross, aluno de Kelsen, recusa a
antes de tudo um conjunto de normas. A dimensão normativa das regras dissociação efe
jurídicas, em outras palavras, a força obrigatória dessas regras, é o tuada por este entre eficácia (sein) e validade (sollen) do direito.
elemento essencial que diferencia os realistas escandinavos dos realistas Kelsen
americanos, que se recusam a levar isso em conta. É a razão pela qual o é a seus olhos um quase-positivista. Ross, dez anos mais tarde, aceitou
italiano Enrico Pattaro qualifica o realismo escandinavo como que os princípios da lógica formal, principalmente as inferências e o
normativismo realista e o realismo americano, como empirismo princípio da não-contradição, podem ser aplicados aos enunciados ju-
reducionista (o direito reduzido às decisões dos tribunais) 67. "Um sistema rídicos. O dilema de Jorgensen, segundo o qual os princípios da
jurídico nacional, considerado como sistema válido de normas, pode lógica são aplicáveis somente às proposições que podem receber os
conseqüentemente ser definido", escrevia Ross, "como um conjunto de valores do verdadeiro e do falso, para Ross não é mais um obstáculo
normas que sejam realmente operacionais no espírito do juiz, porque para a construção de uma lógica deôntica, uma lógica das normas, com a
elas são percebidas por ele como socialmente obrigatórias e, portanto, condi
obe ção, entenda-se bem, de que os conectores lógicos e as inferências "que
decidas. O teste de validade dessa hipótese - ou seja, quando se aceita o intervêm no discurso diretivo não sejam interpretados como funções e
sistema das normas como esquema de interpretação - consiste no fato de valores de verdade". A validade estritamente empírica e a validade lógi
que nós podemos apreender as ações do juiz (as decisões dos tribunais) ca se colocam doravante lado a lado 69. De acordo com a segunda tese, os
como reações dotadas de sentido em certas condições. Podemos tam- enunciados relativos à validade das normas jurídicas são predições do
bém, dentro de certos limites, predizê-Ias, como podemos fazer num que vão fazer os tribunais. Esses enunciados consistem em predizer as
jogo de xadrez, cujas regras nos autorizam a compreender os condutas judiciárias.
movimentos 68 A. Ross, On law and justice, op. cit., ext. trad. em Le positivisme
juridique, op. cit., p. 203. É preciso observar que em Towards a realistic jurisprudence
(1946), Ross considerava que as regras jurídicas só eram válidas porque eram percebidas
66 Law as a fact, op. cit., p. 67. O autor se refere mais precisamente aqui à Como obrigatórias pelos cidadãos. Agora a eficácia do direito se aprecia segundo a
concepção de J. Bentham. efetividade de sua aplicação pelas autoridades, principalmente pelos juízes. Os itálicos
67 E. Pattaro, Validité et pouvoir, in Droit et pouvoir, dir. F. Rigaux e G.
são nossos.
Haarscher, Story Scientia, Bruxelas, 1987, p. 145. Do mesmo autor, "Définir le 69 A. Ross, Directives et norms, Londres, 1968, ext. trad. em Le
droit", in Droits, 11, 1990, p. 47. positivisme juridique, op. cit., p. 205.
267
266 As TEORIAS ANTIFORMALlSTAS
HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO

3.2 Crítica ao realismo de Alf Ross leto como o direito romano clássico. De maneira geral, explica H. L. A.
Bart, os enunciados relativos às regras sociais são de duas ordens: de um
As teses do filósofo dinamarquês são freqüentem ente comentadas e lado, os enunciados de fato externos estabelecidos por um observador ex
criticadas pelos filósofos do direito, e por isso nos deteremos aqui
terior ao grupo social e que indicam que os membros deste grupo têm
somente às criticas mais essenciais. Vamos começar pela noção da vali-
dade em si, para em seguida passar aos enunciados de validade. certas condutas uniformes e reagem com hostilidade aos desvios, mas o
O normativismo realista de Alf Ross faz a validade das regras jurídi- próprio observador não aceita e nem toma em consideração essas regras
cas, e por conseguinte sua existência jurídica, depender da utilização (ponto de vista externo); de outro lado, os enunciados internos pronuncia
normativa particular que dela fazem os juízes. A utilização normativa
dos pelos membros do grupo que aceitam essas regras como modelos para
consiste, mais precisamente, nos "sentimentos de constrangimento" que
a crítica das condutas (ponto de vista interno), mas "o caráter interno des
podem sentir os juízes diante das diretivas impessoais e heterônomas que
constituem as normas jurídicas. Contudo, observa H. L. A. Hart, a utili- ses enunciados não se resumem ao simples fato de que o orador experi
zação normativa das regras não se esgota na experiência psicológica à menta certos 'sentimentos de constrangimento'" 71. Os julgamentos sobre
qual se refere o conceito de validade do filósofo dinamarquês. Podemos a validade das regras jurídicas, principalmente os emitidos pelos juízes,
perfeitamente, afirma o filósofo inglês do direito, aplicar regras jurídicas são do último tipo: para reconhecer a validade de certas regras jurídicas
e, de maneira mais geral, regras sociais sem obrigatoriamente nos sentir- (regras primárias), os juízes se apóiam em regras que fornecem os critérios
mos "psicologicamente constrangidos" por elas. Esse é o caso quando uti- de validade das outras regras (regras secundárias) 72. Se, além disso, os
lizamos as regras jurídicas para criticar nossas próprias condutas, ou enun
mesmo as condutas dos outros, com relação aos modelos de comporta- ciados de validade não passam de predições do que vão fazer os tribu
mento expressos pelas regras que aceitamos como modelos, como crité- nais, nós nos colocamos diante de uma situação bem paradoxal: os
rios de julgamento. Isso não se reduz aos "constrangimentos enunciados dos juízes relativos à validade das regras jurídicas serão, eles
psicológicos" que podemos sentir quando utilizamos essas regras. A também, predições; o juiz terá que predizer o que ele vai fazer. Mas um
utilização normativa das regras é múltipla e, como conseqüência, a juiz "não pode, no momento em que decide um caso, somente predizer o
existência das normas jurídicas não é condicionada, pelo menos não que ele faz; ele faz" 73. Se, enfim, nós procedemos a uma análise interna
exclusivamente como concebia Ross, por sentimentos de obrigação 71 Idem. Cf. também H. L. A. Hart, Le concept de droit, op. cit., p. 86 e 113-4
7°. É isso que testemunha a utilização das expressões normativas do original.
contidas na linguagem 72 Cf. infra para melhor desenvolvimento, principalmente para considerar o
jurídica: os enunciados relativos à validade das regras jurídicas, afirma ponto de vista externo que se refere ao ponto de vista interno enquanto meio de aná
ele, não são mais que predições. Se fosse o caso, nós jamais poderíamos lise. Sobre esse assunto, cf. E. Bulygin, "Norms, normative propositions and legal
nos pronunciar sobre a validade das regras de um sistema jurídico obso statements", in Contemporary legal philosophy. A new survey, Londres, 1982, p.138 e
J. Raz, "Legal validity and legal obligation': Yale Law ]ournal, v. 80, 1970-1.
73 K. Makkonen, Zur Problematik der juridischen Entescheidung, p. 59,
70 H. L. A. Hart, "Scandinavian Realism", Cambridge Law ]ournal, v. 17, 1959, cita
extr. trad. em Le positivisme juridique, op. cit., p. 210. do por A. Aarnio, Le rationnel comme raisonnable. La justification en droit,
LGDJ,
~ 1992,55. H. L. A. Hart, Scandinavian Realism, op. cito
268
HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO As TEORIAS ANTIFORMAlISTAS 269

dos enunciados de predição, da maneira como são concebidos por Alf juiz a se dirigir ao corpo legislativo cada vez que tivesse dúvidas sobre a
Ross, esbarramos em dificuldades bem desagradáveis, uma vez que o interpretação da lei. Esse procedimento foi definitivamente abolido em
que 1837. Porém, se os críticos do positivismo exegético se multiplicavam
principalmente a partir do fim do século XIX, o primeiro que foi bem-
é realmente necessário predizer não é nem o resultado da decisão COIl}
sucedido ao ir além das críticas negativas e demonstrar uma verdadeira
relação a um caso concreto nem as motivações da decisão, mas o fato exposição positiva 76 do que deveria ser doravante a nova concepção, com
de respeito tanto às fontes do direito quanto à metodologia jurídica, foi F.
que a norma N fará parte da ideologia dos juízes. Para fazer isso, é Gény. Sua obra antecipa um pouco a tendência alemã que também vai de
necessá encontro ao positivismo legalista e à Begriffsjurisprudenz (jurispru-
rio se apoiar na análise dos enormes conteúdos de um texto jurídico, nas dência dos conceitos). A escola alemã do direito livre anuncia igualmen-
técnicas de interpretação aceitas, nos trabalhos preparatórios, nos prece te, principalmente através dos escritos de Herman Kantorowicz, Ernst
dentes, nos princípios jurídicos (padrões) que serão provavelmente es Fuchs e de Hermann Isay, o pluralismo das fontes de direito e a "busca
livre do direito" como uma nova via para a metodologia jurídica 77. A
colhidos pelos juízes a fim de tomar sua decisão; em suma, é preciso
livre pesquisa científica do direito como alternativa à hermenêutica
apoiar-se sobre o sistema de regras dominante em uma sociedade. Tudo
exegética vai, em seguida, abrir a via à sociologia do direito que encontra
issoFRANÇOIS
4. GÉNY
só é possível pelo viés deEinterpretações,
A ESCOLA nãoDO DIREITOno sen
por observações
suas origens na escola do direito livre, depois nos escritos do alemão
LIVRE
tido estritamente empirista. As predições de Ross, afirma Aulis Aarnio,
Eugen Ehrlich, cuja doutrina é muitas vezes assimilada àquela do direito
de fato constituem enunciados de interpretação 74.
livre, e por fim nos escritos de Roscoe Pound.
François Gény (1861-1938) foi aquele que criticou
radicalmente a escola da exegese estreitamente ligada com os postulados do
pensamento 4.1 O pluralismo das fontes de direito
revolucionário: a soberania do legislador e a natureza da função
A crise da lei na França veio principalmente da industrialização da
jurisdicional reduzida, como quis Montesquieu, à "nulidade" e à
sociedade que precedeu de longe o legislador, que tenta trazer para os textos de
"invisibilidade" 75. A lei, mais precisamente, obra do soberano
lei as mudanças necessárias a fim de responder às novas necessidades. Ela se
represen acentua com o aumento do papel da Corte de Cassação e com a criação de uma
tante do povo é, segundo esta concepção, a única fonte do direito. O
verdadeira jurisprudência após a abolição do referendo legislativo. Ela
juiz, desprovido inicialmente de toda margem de interpretação e de culmina, enfim, com a crítica que F. Gény dirige ao mono
apreciação, devia aplicar ao pé da letra o ato que emana da vontade do
soberano, como testemunha a instituição do referendo legislativo esta
74 A.
belecido Aarnio,
pelas leis Le rationnel
de 16 e de 24comme raisonnabIe,
de agosto op. convidavam
de 1790, que cit., p. 209. o 76 Léon Husson, Nouvelles études sur Ia pensée juridique, Dalloz, 1974, p.
189.
75 Montesquieu, De I'esprit des Lois, livro XI, capo VI, De Ia Constitution 77 A obra de Oscar Bülow, Gesetz und Richteramt (Lei e função de julgar),

d'AngIeterre. 1885, anuncia o Preirecht.

~
271
As TEORIAS ANTIFORMALlSTAS
270 HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO

do e de comprovar o mérito intrínseco e a verdade durável" 82. O direito


pólio da lei. Em Método de interpretação e fontes em direito privado positivo.
Ensaio
crítico (1899), Gény denuncia de imediato a "plenitude da lei escrita" 78 se define na dinâmica dos atos e das instituições humanas, e não em ob.
no método exegético, quer dizer, a idéia de que o direito se esgota nas leis
jetOS ideais. Por meio dessas duas críticas, Gény denuncia tanto o mono
editadas pelo legislador, que, dessa maneira, não comportam nem lacunas
nem contradições, formando um conjunto completo e coerente. Os pólio da lei, verdadeiro corolário da soberania do legislador, quanto o
princípios da integridade e da coerência, no sentido da consistência lógica
do direito, estavam excelentemente expressos na disposição do art. 4 do 11l0delo silogístico de subsunção 83 no qual a função jurisdicional se re
código civil, que torna o juiz culpado de negar justiça quando se recusa a duzia a deduzir, do conjunto das regras escritas, a totalidade das soluções
julgar sob o pretexto do silêncio, da obscuridade ou da insuficiência da
lei 79. Gény denuncia em seguida as construções lógicas jurídicas às jurídicas aplicáveis aos sistemas concretos. Assim, ele vai de encontro ao
quais se recorre quando as soluções jurídicas não provêm diretamente da segundo postulado do pensamento jurídico tradicional tomado da Re
lei escrita. Precisamente a sistematização do código civil pela construção
dos conceitos e dos princípios gerais dos quais se poderia deduzir regras voluçãO, a respeito da natureza da função jurisdicional; doravante, segundo
particulares, a exemplo do que constituiu a "jurisprudência dos Gény, também ela deve realizar, e sob certas condições, uma obra de cria
conceitos", tinha sido elaborada na França pelos dois conselheiros da
Corte de Cassação, Aubry e Rau, que revolucionaram o método exegético ção do direito. Ele conclui que a lei "admite, ao lado dela, outras fontes
com a publicação dos Cursos de direito civil segundo o método de formais de direito positivo, na falta das quais resta ainda um lugar neces
Zachariae8°. Doravante, a interpretação lógico-sistemática da lei procedente da sário à livre pesquisa científicà' 84. Ao lado da lei, tem então lugar o costu
regra do sistema - recorre-se a outros textos legais a fim de esclarecer o sentido Martial et Billard, 1897. Quanto aos diversos modos de interpretação, ver H.
do texto da lei - ultrapassa a tendência subjetivista que consiste em buscar a
me, a jurisprudência, a doutrina jurídica, aos quais se juntam as fontes
Rabault, I:interpretation des normes: l'objectivité de Ia méthode herméneutique,
vontade do legislador pelo viés dos textos extralegais (trabalhos reais oriundas da "livre pesquisa científicà' 85. As fontes reais "nutrem o
Ed. L'Harmattan, 1997, p.65-87. De qualquer forma, existe uma diversidade no
preparatórios, debates parlamentares) 81. Todavia, observa Gény, o direito,
seio da eEscola
elas da
apenas tornam
Exegese; o edireito
F. Ost M. Vanverdadeiro" quando
de Kerchove, Entre l'são aceitas
esprit et Ia
sistema de construções lógicas e abstratas, sugerindo soluções jurídicas, "é
pelas
lettre.
incapaz, por si só, de demonstrar o bem - fundamenta
Les directives
fontes formais d'interprétation en droit,
do direito. Sobre Bruxelas,
esse ponto, 1989. de Gény se dife
a doutrina
82 François Gény, Méthode d'interprétation et sources en droit privé positif,
rencia da sociologia jurídica que, desde Ehrlich, "rejeita a identidade fun
ed. de 1954, I, p. 129, citado por G. Fasso, op. cit., p. 160.
781. Husson, op. cit., p. 187.
83 O recurso ao silogismo tinha sido defendido pelos racionalistas do sécu
79 Cha"im Perelman, Logique juridique. Nouvelle rhétorique, 2" ed., 1979,
lo XVIII; cf. Cesare Beccaria, Des délits et des peines, Flammarion, 1991.
Dalloz, p. 25-6.
80 O primeiro a realizar um estudo lógico sistemático do código de Napoleão foi o
84 F. Gény, Méthode d'interprétation, 2" ed., I, p. 267.
alemão Charles Salomon Zachariae, ligado ao formalismo e ao racionalismo 85 Precisemos aqui que, em Méthode d'interprétation et sources en droit positif,
kantiano, Handbuch des franzosischen des Rechts (1808). Seu trabalho foi conti-
Gény afirma que a jurisprudência, sem constituir por si uma fonte formal de
nuado pelos pandectistas; G. Fasso, op. cit., p. 45.
81 Charles Aubry e Charles- Frédéric Rau, Cours de droit civil français, Paris,

LO po,;uvo, dov' oon"" ",n'" ., autmidad" m,;' pod,,"'""", 1. lI, p. 53.


273
272 As TEORIAS ANTIFORMALlSTAS
HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO

Voltamos a encontrar a tese da pluralidade das fontes de direito na


damental do direito com algumas de suas fontes formais" 86. O tema das
fontes do direito será retomado e aprofundado por F. Gény em Ciência e técnica tendência alemã do Preirecht (direito livre). Hermann Kantorowicz,
em direito privado positivo, publicado em quatro volumes entre 1913 e 1924. O o
autor, demonstrando neste trabalho um ecletismo que associa ao mesmo tempo o principal representante desse movimento, combate em A luta para a
intuicionismo bergsoniano e o empirismo sociológico, classifica as fontes de
ciência do direito os mesmos inimigos que F. Gény: o positivismo
direito em quatro categorias: os dados reais que
legalista, a jurisprudência dos conceitos, o modelo silogístico da
constituem as realidades sociais, econômicas, físicas e também morais , subsunção 89. Ele afirma que o direito estatal, isto é, o direito formal, é
s
obre as quais se inscrevem as regras jurídicas; os dados históricos que oriundo do direito livre, que corresponde às crenças dos membros da
constituem a tradição, a história institucional e tudo o que se liga à história sociedade e também às decisões judiciárias e às opiniões doutrinárias 90.
particular de um país; os dados racionais que constituem tudo o que se refere à O direito livre, como "direito vivo" em uma sociedade, está na fonte do
"natureza das coisas ou do homem': a sua essência, apresentando as direito formal: ele lhe é anterior, e termina por se "cristalizar" no direi
características da necessidade, da imutabilidade e da universalidade, em suma,
to formal 91 . Entretanto, em oposição ao seu homólogo francês, H.
que constituem "o irredutível direito natural"; os dados ideais que correspondem
Kantorowicz - assim como os outros membros do movimento - não
às aspirações mais profundas do homem 87. Se as duas primeiras categorias
está de forma alguma em busca de um direito natural universal, mas
correspondem às circunstâncias de fato, as duas últimas correspondem aos
simplesmente em busca de um equilíbrio entre a prática jurídica, as
preceitos normativos que devem inspirar a obra do legislador, do magistrado e
idéias de justiça predominantes na sociedade e as regras jurídicas esta
do teórico do direito. As condições de fato são acessíveis ao conhecimento pelos
tais. H. Kantorowicz se deseja herdeiro do direito positivo da forma
métodos positivistas das ciências sociais. Os preceitos normativos, destacados de 4.2 A livre pesquisa do direito
circunstâncias de fato, serão objeto da elaboração científica do direito. Os
como era identificado pela Escola Histórica do direito 92.
As duas versões da livre pesquisa científica, a francesa e a alemã,
preceitos, dirá mais precisamente F. Gény, dependem da noção do justo, noção
unem-se em torno de um objetivo comum: preencher as lacunas e re-
irredutível e indefinível que compreende, além dos preceitos de atribuir a cada
solver as ambigüidades e as antinomias da lei. Mas elas divergem quanto
um o que é seu e de não causar dano a ninguém, a idéia de um "equilíbrio entre
aos meios colocados à disposição do legislador, do juiz e do teórico
os interesses em conflito': Essa noção do justo, afirma ele, distingue-se tanto da
religião como da moral 88 . São os preceitos do irredutível direito natural.

89 Hermann Kantorowicz (Gnaeus Flavius), "Der Kampf um die


Rechtswissenschaft", em Rechtswissenschaft und soziologie ( 1906), ed. T. W
86 Jean Carbonnier, Plexible droit, LGDJ, 2a ed., 1971, p. 17. Os itálicos são
ürtenberger, Karlsruhe, 1962. Obras em inglês: Legal science. A summary of its
do autor.
methodology (1928),
87 F. Gény, Science et technique en droit privé positif, 1913-1924, t. 11, p. 380.
Some rationalism about realism (1934), The definition of law (1958).
88 F. Gény, Science et technique en droit privé positif, op. cit., t. I, p. 49-50. ef.
90 H. Kantorowicz, La lutte pour Ia science du droit, in H. Rabault, op. cit., p. 34. 91
sobre esse assunto a crítica de J. Dabin, Théorie générale du droit, Dalloz, 1969,
Ibidem, p. 34.
p. 335-344; ele recusa a distinção moral-direito natural.
92 Ibidem, p. 38.

~
274
HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO 275
As TEORIAS ANTlFORMALlSTAS

do direito para sua realização. François Gény, como observa H. Rabault qual os textos de lei são separados da intenção de seus autores "de ma-
opta definitivamente por um dualismo metodológico, o da interpreta~ neira a fazer entrar em seu quadro [..,] as soluções de acordo com as
ção propriamente dita da lei e da livre pesquisa científica. No níVel necessidades e as aspirações da época" 98. O texto recebe seu sentido racional
jurisdicional, por exemplo, "o juiz opera ora pela interpretação ora pela do contexto social do próprio intérprete. Essa técnica de interpretação
livre pesquisa científica" 93. "Interpretar puramente a lei': escreve aproxima-se da que tinha sido escolhida pelo movimento do direito livre
na Alemanha sob o nome de interpretação objetiva. "O que
Gény,
denominamos a vida do direito", disse H. Kantorowicz, "sua adaptação
"não é outra coisa senão pesquisar a vontade do legislador"94. F. Gény
ininterrupta aos elos sociais constantemente mutáveis, enraíza-se antes de tudo
sustenta aqui a tese da interpretação subjetiva, que consiste em buscar a no método objetivo evocado"99. Kantorowicz insistiu principalmente na
vontade do autor do texto, "a intenção do legislador': perseguindo assim a contribuição da sociologia, pelo viés da qual o juiz poderáir ao encontro das
posição tradicional da Escola da Exegese que atribuía à lei um "concepções jurídicas dominantes no povo". Ele reúne assim as idéias de Ehrlich
fundamento puramente psicológico 95. A exatidão da interpretação não se que sustentavam que uma norma "somente é aplicável enquanto e na medida em
apreciará segundo sua racionalidade ad hoc, mas segundo sua "cor que persiste seu pressuposto social". Dessa maneira, a aplicação pressupõe,
respondência" com a "vontade do legislador': Os meios disponíveis para segundo a versão alemã do direito livre, a livre interpretação.
detectar essa intenção autêntica do legislador vão da letra da lei ou dos A diferença das perspectivas metodológicas traçadas pelas duas ten-
trabalhos preparatórios ao contexto histórico da edição da regra jurídica dências desse movimento revela a divergência entre as duas concepções do
nos aspectos econômico, social e moral que ele conhece 96. A livre direito. O direito livre é, de alguma forma, mediado pelo direito formal.
pesquisa científica ou livre interpretação do direito começa finalmente Não se pode ter acesso ao direito livre a não ser pelo direito formal, uma vez que
para o juiz onde termina a interpretação propriamente dita. Mesmo na a concepção de F. Gény introduz uma cisão entre as regras jurídicas estatais e as
hipótese de um conflito entre o resultado da livre pesquisa científica e a regras sociais, ou aquelas oriundas do direito natural, de modo que as segundas
vontade do legislador, hipótese evocada pelo próprio autor, a prioridade têm um efeito corretivo sobre as primeiras 100. A divergência metodológica entre
é dada a esta última 97. Raymond Salleilles, aliás comentando as idéias de as duas tendências provém ainda da diferença entre os dois modelos
F. Gény, critica a técnica subjetiva de interpretação no prefácio que epistemológicos escolhidos. O intuicionismo bergsoniano em Gény
escreveu para a segunda edição do Método de interpretação e fontes em tem pouca afinidade com a crítica nietzscheniana da racionalidade do
direito positivo privado, e advoga a favor do outro método segundo o positivismo legalista, na qual se ba

93 Ibidem, p. 36.
94Méthode d'interprétation et sources en droit privé positif, I, p. 315, cit. por
H. Rabault, op. cit., p. 34.
95 H. Rabault, op. cit., p. 65-87. 98 L. Husson, op. cit., p. 191. Cf. para os diferentes modos de interpretação F.

96 F. MüIler, Discours de Ia méthode juridique, PUF, col. Léviathan, 1996, p. Müller, op. cito e H. Rabault, op. cito
57. É a razão pela qual Friedrich MüIler lhe dá o nome de interpretação 99 H. Kantorowicz, Rationalistiche Bemerkungen über Realismus, citado em

genética, B. Rabault, op. cit., p. 84.


a fim de distingui-Ia da interpretação histórica propriamente dita. 100 Cf. H. Rabault, op. cit., p. 34; cf. também F. MüIler, op. cit., p. 131.

1.
97 H. Rabault, op. cit., p. 84-5.
276
HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO As TEORIAS ANTIFORMALlSTAS 277

seia O movimento do direito livre 101. Este, pelo viés da Vontade subjetiva do do dado e do construído no estabelecimento das regras jurídicas, não pôde
intérprete, visa à uniformidade do direito, formal e livre. Isso adquire escapar da crítica. ]ean Dabin, o filósofo neotomista do direito,
proporções tais que certos representantes do movimento adotam posi contestará a distinção entre "dado" e "construído". O dado, diz ele, "for-
ções radicais, como H. ]say que, comentando o "subjetivismo filosófico e nece a regra e o princípio': citando aqui François Gény, "mas que, em
o intuicionismo epistemológico': admite que toda decisão jurídica é o razão da 'exceção' possível, não deixa menos lugar a uma escolha,
resultado de um processo irracional fundado essencialmente sobre o "sen- o que destrói a idéia de um dado". E não se pode mais subscrever,
timento jurídico" 102. Em contrapartida, a concepção epistemológica de prossegue ele, a opinião de Albert Brimo, que considera que a "técnica
F. Gény é totalmente diferente, já que o intuicionismo de inspiração (em Gény) é justamente escolha, isto é, eleição entre os dados que se
procura adaptar ao objetivo". Sendo assim, conclui Dabin, "o que resta
bergsoniana se conjuga com a crença do autor, em parte na objetividade
do irredutível direito natural"105 que constitui a peça mestra de sua
do conhecimento, em parte na objetividade intrínseca da realidade so-
doutrina?
ciallo3. Em Ciência e técnica em direito privado positivo, o autor faz
uma
distinção entre ciência e técnica em direito que corresponde à distinção
5. A SOCIOLOGIA DO DIREITO
entre dado e construído. A ciência do direito tem por objeto o "dado': a
matéria, isto é, a realidade social que, como dissemos, engendra em si 5.1 Da jurisprudência dos interesses à
mesma os preceitos do direito natural imutáveis, necessários e universais sociologia jurídica
apreendidos pela razão intuitiva. Ela é qualificada como "dado" porque
"éintegralmente legível e conhecível': Ela não se oferece ao legislador 5.7.7 A jurisprudência dos interesses
mais do que ao magistrado ou ao teórico, que interpretam livremente o
direito Relaciona-se a origem da Interessenjurisprudenz ao segundo perío-
quando as fontes formais se evidenciam insuficientes. Em contrapartida, do da obra de Rudolf von Ihering, que se situa um pouco antes da pu-
a técnica em direito consiste no fato de que o jurista constrói a regra li- blicação de O objetivo no direito (Der Zweck im Recht), publicação que
vrada pela atividade científica, formatando-a com a vontade de a "mode- se estende de 1877 a 1883. Sua obra foi publicada na França em 1901
lar sobre as necessidades da ordem jurídica" e de tornar operacional sua com o título A evolução do direito, o que exprime melhor a influência
aplicação na realidade 104. F. Gény, por mais que afirmasse a exercida sobre ele pelo evolucionismo de Spencer e suas idéias sobre o
interferência progresso e a adaptação permanente do indivíduo ao seu meio. Aquele
Idem, p. 38.
que foi um dos primeiros teóricos da Begriffsjurisprudenz, como teste-
101

102 H. Jsay, Rechtsnorm und Entscheidung, 1929, citado por H. Rabault, op.

cit., p. 36-8. Por essa razão, certos autores reprovam o Freirecht do realismo americano,
munha sua obra monumental O Espírito do direito romano, deseja
como W. Friedmann, Théorie générale du droit, LGDJ, p. 302-3. doravante estudar o direito unicamente de um ponto de vista teológico
103 C. Atias, "Philosophie du droit: les enjeux d'une fin de siecle': in L' évolution

de Ia philosophie du droit en Allemagne et en France depuis Ia fin de Ia seconde guerre


mondiale, PUF, 1991, p. 253.
104 F. Gény, Science et technique, t. III, p. 17.
---
105 J. Dabin, Théorie générale du droit, Dalloz, 1969, p. 183 e p. 184, n. 1.

1.
278 279
HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO As TEORIAS ANTIFORMAlISTAS

e realista: os "objetivos" a que se supõe servir o direito correspondem à seja sua natureza, pública ou privada, material ou ideal, constituem para
proteção de tudo o que é necessário para a afirmação da "personalida philippe Heck "fatos sociológicos observáveis do exterior que
de" do homem na sociedade, principalmente nos aspectos ligados à engendram
"honra" e à "propriedade", como testemunha a história das origens do a norma jurídica segundo um processo de causa e efeito" lIO. Não obstante,
direito 106. Ele ressalta de certa maneira a nova orientação tomada pelo o processo de formação das normas jurídicas é, segundo os propósitos do
direito, que consiste naquilo que a qualidade da "pessoa" humana im próprio Heck, mediado pela avaliação do legislador, que consegue harmo
plica sobre seus direitos de propriedade 107. Não se tratará, para Ihering, nizar os interesses antagônicos pelas limitações mútuas que ele traz. Os critérios
de defender a tese dos "direitos imprescritíveis" inerentes à natureza do axiológicos do legislador, como por exemplo os de segurança jurídica OU de
homem, mas, segundo sua fórmula, a tese "dos interesses juridicamente eqüidade, necessários à estimativa dos diversos interesses que tam bém
protegidos": os interesses imanentes à sociedade de que toma parte o Estado e representam interesses sociais comuns e imanentes ao real social, "cons
dos quais este garante a proteção pelo viés da coerção 108. O alcance da tituem o ideal jurídico do legislador (e eles) implicam de sua parte que a
regra do direito se mede então segundo sua finalidade e sua aptidão em poder própria avaliação dos interesses realizados pela norma jurídica seja 'justa''' 111.
conciliar os interesses individuais com os da socie Karl Larenz critica justamente nesse ponto a concepção de P. Heck, por
dade. Os principais representantes da Jurisprudência dos interesses, Philippe ter
Heck e Max von Rümelin 109, fazem sua essa tese e a estendem. confundido, segundo ele, a avaliação subjetiva do legislador com os cri-
Eles também vêem nos interesses antagônicos dos membros da socie- térios axiológicos objetivos de sua avaliação 112. De qualquer forma, o que
dade a fonte imediata das regras jurídicas. Os interesses, qualquer que importa para a aplicação do direito é fazer do juiz, dizia Heck, um "adjunto do
legislador" que presta atenção "às avaliações do direito, mesmo para situações
que o legislador não tenha especificamente regulamentado, examinando ele
próprio os interesses em jogo"; para fazer isso, principalmente quando ele não
106 J. Q. Whitman, "Ihering parmi les Français 1870-1918", in La consegue identificar os julgamentos em que se inspirou o
science juridique française et Ia science juridique allemande de 1870 à 1918, op. cit., p.
legislador, ele deverá apoiar-se não sobre as deduções lógicas preconizadas pela
152. Ihering é considerado por este autor como uma "criança da Alemanha hegeliana"; R.
Begrijfsjurisprudenz, mas sobre "sua avaliação pessoal" 113. A jurispru-
Ihering, além das idéias de Spencer, evoca também as teses de Charles Darwin em
Kampf ums Rechts (A luta pelo direito), 1872. dência da avaliação (Wertungsjurisprudenz) - corrente atualmente domi
107 Ihering escrivia em 1891: "formerly high valuing of property,

lower valuing of the person; now lower valuing of property, higher valuing of the 110 N. Poulantzas, Nature des choses et droit. Essai sur Ia dialectique du fait et de
person", citado por Roscoe Pound, Law finding through experience and reason. Three Ia valeur, LGDJ, p. 201, se referindo à obra de P. Heck, Begriffsbildung und
lectures, University of Georgia Press, 1960, p. 12. Interessenjurisprudenz (1932).
108 Sua obra, sendo muito marcada pela idéia do Estado-força, foi muitas \11 Idem, o autor se refere mais precisamente a Westerman, Wesen und
vezes criticada; ver N. Bobbio, Diritto e forza, op. cito Grenzen der richterlichen Streitentscheidung in Zivilrecht.
109 P. Heck, Das Problem der Rechtsgewinnung (1912), Gesetzauslegung ll2 N. Poulanzas, op. cit., p. 203, referindo-se a K. Larenz, Methodenlehre der

und Interessenjurisprudenz (1914), Begriffsbildung und Interessenjurisprudenz; M. VO~ Rechtswissenschaft.


Rümelin, Gerechtigkeit (1920), Die Billigkeit im Recht (1924), Die Rechtssicherhett 113 P. Heck, Gesetzesauslegung une Interessenjurisprudenz (1914), citado por
(1924).

~
W. Friedmann, op. cit., p. 292; também G. Fasso, op. cit., p. 153.

!
280
HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO
As TEORIAS ANTIFORMALlSTAS 281

nante no seio da metodologia jurídica alemã ao lado daquela que prega llIna
A escola da sociological jurisprudence teve origem, a exemplo do realismo
volta às regras metodológicas de F. C. von Savigny (E. Forsthoff) e da teoria jurídico norte-americano, na obra de Oliver Wender Holmes, que definira
estruturante da concretização da norma jurídica de F. Müller - pode se situ
o direito, vale lembrar, como as predições do que vão fazer os tribunais 117.
Dean Roscoe Pound segue a linha traçada por o. W. Holmes, que foi o primeiro
ar no prolongamento das teses da jurisprudência dos interesses 114. COI11 a querer substituir a lógica jurídica formalista (Reason) pelos estudos empíricos
respeito à norma jurídica, freqüentem ente desprovida de um sentido e históricos (experience). Ele insere assim em quase todos os seus escritos o
estudo histórico do direito, seguindo as idéias de O. W. Holmes, que afirmava
unívoco em sua aplicação a um caso concreto, a jurisprudência da avalia
que "o estudo racional do direito é em grande parte o estudo da história" 118. Isso
ção contesta a neutralidade da decisão judiciária e afirma que no funda lhe valeu uma grande reputação nos Estados Unidos, mas ao mesmo tempo
mento dela se encontra um julgamento de valor que introduz elementos rendeu críticas relativas à pertinência de suas leituras históricas 119. Em The
extralegais e extrapositivos na aplicação do direito 115. spirit of the common law, composto por quatro ensaios precedentes e
RoscoePound, durante este mesmo período que vê alnteressenju~ publicado em 1922, ele retraça de certa maneira a história da common law,
dando ênfase aos fatores que tornaram, segundo ele, a common law norte-
difundir-se na Alemanha, forja nos Estados Unidos uma concepção do di
americana particularmente individualista. Se a concepção filosófica dos direitos
reito como meio de controle social e define o conhecimento jurídico como uma do homem que prevalece no curso dos séculos XVII e XVIII e os valores liberais
técnica social (social engineering) que visa, também ela, à satisfação do "laisser-faire" foram determinantes para a formação do direito moderno, tanto
5. 7.2 Nas origens da sociologia do direito: concepções nos Estados europeus quanto nos norte-americanos, o puritanismo 120 e as
dos interesses
européias sociais. Ele denominará sua própria doutrina de sociological
e anglo-saxônicas condições de vida no Novo Mundo, tão pouco povoado em
jurisprudence.
Dean Roscoe Pound nos Estados Unidos e Eugene Ehrlich na Eu
ropa são as duas grandes personalidades fundadoras da sociologia
jurí ll7Ver supra sobre o realismo americano.
dica, disciplina que coloca o direito no seio da sociedade e estuda 118 O. W. Holmes, The path of the law, op. cit., 186.

suas 119 Ver a crítica de Morris R. Cohen, Law and the social order, op. cit., p.
relações com os outros componentes da realidade social. "O centro 327.
120 Movimento de reforma social a favor de pequenas comunidades
de
teocráticas fundadas sobre a eleição de membros do clero por todos os membros da
gravidade do desenvolvimento do direito, em nossa época [...]", comunidade. Ele se dirigiu contra a Igreja católica romana e seu sistema eclesiástico e
escre litúrgico, e também atacou a escolástica e o aristotelismo que serviam Como sistema de
via Eugene Ehrlich, "como de todos os tempos, não deve ser buscado justificação ao catolicismo. Suas fontes remontam ao platonismo da Renascença, em
114 N. Poulantzas, op. cit., p. 204. particular a Pierre Ramus (1515-1572). Este movimento introduzido na Nova Inglaterra
nem na legislação, nem na doutrina, nem na jurisprudência, mas na foi a base para a constituição das comunidades políticas independentes, onde o clero
própria sociedade"1I6.
115 Cf. H. Rabault, op. cit., p. 38-40; ver principalmente a crítica de F. MüIler, perdia seu poder e pouco a pouco se elaborava um novo tipo de independência que
op. comportava uma mistura de idealismo platônico e cristão com prosperidade comercial
cito
yankee. H. W. Schneider, Histoire de la philosophie américaine, Gallimard, 1955, p. 13-

~
1I6E. Ehrlich, Grundlegung der soziologie des Rechts,1913.
21.
283
As TEORIAS ANTIFORMAUSTAS
282 HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO

plos expressivos 124. Este último momento, que corresponde ao século XX,
relação à imensidão de seu espaço, foram particularmente determinantes
segundo ele, para as características individualistas da common law norte~ é o objeto da sociologia jurídica que aborda de maneira funcionalista,
americana 121. Tão controvertidas quanto possam parecer suas
leituras históricas - Morris Cohen 122 se interroga, por exemplo, sobre a afir
natureza individualista do direito germânico primitivo, designado por Pound
1Ila ele, as instituições, os preceitos e as doutrinas jurídicas, examinando
como fator que também contribuiu para a formação da common law-, os grandes
panoramas históricos relativos à evolução do direito e aos métodos que 1Ilais precisamente sua adaptabilidade às exigências e aos interesses so
prevaleceram no curso dessa evolução estavam sempre presentes em sua obra
ciais mutáveis. "Eu me contento em pensar o direito", escrevia Pound,
123. R. Pound, a fim de desacreditar as concepções absolutistas que estão à
procura de grandes verdades, põe à frente o relativismo histó rico e apresenta a "como uma instituição social destinada a satisfazer as necessidades
evolução do direito através de quatro momentos (stages) que, sem se dar
sociais,
de maneira linear em uma ordem cronológica, freqüentemente se
encontram superpostos uns aos outros no curso da evolução histórica do [...) satisfazendo-as com o menor sacrifício possível"125. Com isso, ele
direito. O primeiro momento é aquele do direito estrito (strict law); o
reúne o que está no coração da filosofia utilitarista do direito que
direito, como meio de controle social que visa à ordem e à segurança,
aqui se diferenciou definitivamente dos outros meios de controle, como a remonta
religião, e estabeleceu procedimentos formais de resolução dos conflitos. a Jeremy Bentham. Ele até classifica os interesses em interesses públicos
O formalismo desse período foi seguido pelo da Eqüidade e do direito
natural, em que a ética age substancialmente sobre o conteúdo do direito. (Estado), individuais (personalidade, fortuna, família) e sociais
O terceiro é um momento de maturidade, em que o conhecimento 124 É uma
(moralidade sociedade
social, segurançaque responsabiliza
social, civilmente
progresso social), os agentes
demonstra um por
jurídico se quer independente da filosofia política e ética, em que os dois atos não
princípios que servem de base para a ordem jurídica são a segurança e a verdadeiro desejo de ultrapassar os valores do liberalismo clássico 126.
intencionais e não "desejados", contrariamente ao direito civil clássico. Cf. as di
igualdade, esta última baseada na liberdade contratual e no direito de Sua concepção do direito como meio de controle social faz parte
ferentes fases do direito em R. Pound, Law Making and Law Finding, em Law
propriedade (século XIX). Enfim, o quarto momento é o da socialização dos estudos elaborados durante esse período pelos sociólogos norte
do direito, caracterizado pelo questionamento dos valores clássicos do Finding Through Experience and Reason. Three lectures, op. cit., p. 13-2l.
americanos 127: a sociedade pode ultrapassar os conflitos internos
liberalismo: as limitações impostas à propriedade e à liberdade contratual 125 R. Pound, An introduction to the philosophy of law (1921-1922), trecho
e a instauração da responsabilidade civil sem erro são exem so
traduzido em C. Grzegorczyk, M. Troper, F. Michaut, Le positivisme juridique, op.
mente pelo viés das regulamentações sociais, que absorvem as tensões
cit., p. 97.
e apaziguam os conflitos
126 Embora (a mágica, ados
a classificação educação, a moralidade,
interesses, a reli
tão freqüentemente
121 Cf. Morris Cohen, op. cit., p. 328. modificada
gião, a arte, o direito). Essas regulamentações constituem "controles
122 Idem, p. 332. pelo autor, tenha a este respeito dado lugar a controvérsias. Cf. W. Friedman, op.
m R. Pound, Interpretations oflegal history (1922); R. Pound, Law Finding sociais". Elas são hierarquizadas em função da importância que cada
cit., p. 294.
Through Experience and Reason. Three lectures, Univ. of Georgia Press, 1960.

... 127 Trata-se dos trabalhos de E. A. Ross, Dowd, Landis, citados por G.
Gurvitch, Problemes de sociologie du droit, em Traité de sociologie, t. lI, PUF, 1968, p.187.
um dos procedimentos adquire no seio da sociedade. O direito, escre
284
ve Pound, "tornou-se no mundo contemporâneo o principal tipo de
HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO
As TEORIAS ANTIFORMALlSTAS 285

controle social" 128. Contudo, como observa G. Gurvitch, tanto seu


o "direito em ação" (law in action) e o "direito no papel" (law in books) 132. O
COn
"direito em ação" é, segundo Pound, aquele que é efetivamente aplicado pelas
ceito de controle social quanto o de direito "não são claramente preci autoridades de aplicação, de administração, pelos corpos judiciários ou por
outras autoridades oficiais, opondo-se assim ao "direito no papel': É a famosa
sados': O conceito de controle social é freqüentemente confundido tese do realismo americano. As distinções estabelecidas pelos dois autores são,
contudo, muito diferentes e traçam perspectivas de pesquisa divergentes. As
"com os meios de realização (indo do constrangimento à persuasão e
"normas de decisão" de Ehrlich se referem tanto ao "direito em ação" corno
à exaltação)': Nesse sentido, podemos acrescentar, os controles sociais ao "direito no papel" 133. "É porque", escreve Ehrlich, "não é

suficiente pesquisar se o que foi promulgado pelo legislador [...] é ou não


são concebidos pelo sociólogo norte-americano mais como mecanis aplicado por um tribunal [...]. É preciso também examinar se tudo isso
é efetivamente praticado e vivido:'134 A distinção de Ehr1ich não se
mos eficazes que permitem à sociedade preservar sua coesão do que
inscreve somente sobre o registro de urna prática de aplicação de direito,
como processos de integração social interiorizados pelos membros dos corno faz aquela concebida por Pound, mas se inscreve também sobre o
registro da própria sociedade, que aquém e além do direito estatal
grupos sociais. Quanto ao direito, prossegue Gurvitch, ele "é concebi
continua a produzir o direito. As "normas de decisão': normas que
do do ponto de vista do jurista, ligado aos tribunais, de preferência os tribunais devem aplicar quando as partes recorrem à justiça, são
contempladas em urna perspectiva de unidade com o "direito vivo': Este
integrados ao Estado" 129.
contém tanto as regras editadas pelo legislador corno aquelas que são
A concepção de Eugene Ehrlich, de quem o Grundlegung der produzidas no interior dos agrupamentos sociais, às vezes até divergentes
do direito estatal mas consideradas apropriadas pelos membros desses
Soziologie des Rechts (1913) foi traduzido em inglês e publicado em
agrupamentos para construir suas relações mútuas. Em qualquer caso, o
"direito em ação" de Roscoe Pound não se refere às normas que os
1936, cidadãos consideram apropriadas às suas relações e menos ainda às nor
apresenta-se um tanto diferente. Roscoe Pound, em sualntroduction a essa

obra, assim como em outros escritos, identifica sua própria concepção

com128aR.de Ehr1ich 13°. Outros sociólogos norte-americanos fizeram o


Pound, Social control through law (1942), citado por G. Gurvitch, op. 132 R. Pound, Law in Books and Law in Action, American Law Journal, 1910. 133

cit.,
mes p. 188. Tomamos conhecimento do direito vivo, escrevia Ehrlich, primeiramen
te nos textos jurídicos, mas também na observação direta da vida, do comércio, dos usos
mo 129As três últimas
A célebre
131. citações
distinÇão tomadas em
estabelecida porG. Gurvitch,
Ehr1ich entreop. cit., p. 188.
o "direito vivo'; e dos costumes e de todas as associações, mesmo aquelas que não são reconhecidas
pelo direito; em PrincipIes of Sociology of law, 1936, p. 493, citado em D. Nelken,
é, R.
isto 130 Pound, Stare
o conjunto Decisis,relativas
de regras in Three às
Lectures, op.interindividuais
relações cit., p. 31. Cf. também
e interD.
op. cit., p. 165.
nas aos"Law
diversos agrupamentos 134 E. Ehrlich, Grunglegung der Soziologie des Rechts, 1913, trechos traduzidos em
Ne1ken, in action or living sociais,
law? Backe asto"normas de decisão':
the beginning of theisto é, as of
sociology
Le positivisme juridique, op. cit., p. 91. O itálico é de nossa parte.
normas
law': Legalque devem4,1984,
Studies, ser aplicadas pelos tribunais para a resolução dos con
p. 159-60.
flitos131em caso deop.
D. NeIken, litígio, é 159,
cit., p. desastrosamente
cita os nomes assimilada
de K. Zeigertpor Pound
e de na dis
J. O'Day. ~
contratual consagrada pela décima quarta emenda da Constituição
287
Fe As TEORIAS ANTIFORMAUSTAS
286 HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO

deral!37. L. D. Brandeis apoiou sua defesa - célebre por constar de uma


mas obrigatórias. Mas, além dessas distinções, os enfoques dos dois fundadores
centena de páginas que alegavam somente fatos sobre os relatórios dos
da sociologia jurídica manifestam outras diferenças. Em primeiro lugar, como
observa D. Nelken, se o direito é um meio de controle aos olhos de Pound, para comitês de higiene, dos escritórios de estatísticas e dos inspetores da in
Ehrlich ele é o resultado de um processo social 135. O direito não é um
instrumento, mas uma vivência. São as regras nascidas no interior dos dústria. Esses relatórios ressaltavam os efeitos nocivos que poderiam
agrupamentos sociais particulares (família, escola, locais de trabalho) e
acar
no seio das associações que, como gostava de dizer Ehrlich, constituem
não apenas lugares de aprendizagem social para o indivíduo, mas também retar para as mulheres as longas jornadas de trabalho industrial. A idéia
fornos de produção de normas, de organizações normativas. O indivíduo,
escrevia Ehrlich, vê-se assim determinado pelo local e pela função que de engenharia social, técnica particular à qual se liga o conhecimento ju
possui no seio das organizações. Em contrapartida, a concepção de rídico segundo pound, acomoda-se perfeitamente ao tipo de pesquisa so
sociedade de Pound não escapa, apesar de seus esforços, ao indivi-
dualismo metodológico da antropologia liberal que construiu o conceito ciológica dirigida por Brandeis, que se baseia defmitivamente mais no
de sociedade em torno do indivíduo, de sua ação e de sua vontade exame minucioso de fatos e no parecer dos peritos do que nos argumen
136. As conseqüências derivadas dessas duas concepções serão igualmente dife-

rentes. Pound se interessa pela adaptação permanente do direito formal ao tos que permitem alcançar a "justiçà' da solução procurada. Como ob
"direito em ação': isto é, pelas decisões dos órgãos de aplicação do direito,
serva F. Michaut !38, isso se situa "no extremo oposto das idéias de O. W.
porque somente o direito em ação reflete realmente os interesses a proteger e as
mudanças sociais que o legislador não pôde levar em consideração. Ele relega à Holmes". Os conceitos de "direito vivo" e de organização social em
decisão da função judiciária a questão de saber se, na adjudicação de um caso
Ehr1ich
concreto, o direito formal ("direito no papel") será ou não aplicável. O enfoque
de Pound assim preconiza o intervencionismo estatal, aquele do Congresso e da produzem uma visão diferente. O "direito vivo" é ilustrado, por exemplo,
Corte Suprema, como
Corte
testemunha a defesa de um jovem advogado dessa época e futuro juiz da pelas práticas da província de Bucovina onde ele vivia, no antigo
137 F. Müller Cf Oregon 208 U.S. 412 (1908), citado em Wallace D. Loh,
Suprema, L. D. Brandeis, cujas idéias, como aquelas de B. N.
impérioSocial research in the judicial processo Cases, Readings and Text, Russel Sage
Cardozo, ligam -se diretamente à sociological jurisprudence. L. D.
Brandeis sustentava, diante da Corte Suprema, a constitucionalidade da austro-húngaro.
Foundation,Essas
N. Y., p.práticas
84-90. habituais, próprias das múltiplas etnias
lei do Estado de Oregon, que limitava as horas de trabalho para as que 138 F. Michaut, "Sociological jurisprudence", in Dictionnaire encyclopédique
mulheres; segundo a teoria dominante da época, isso não parecia de théorie et de sociologie du droit, op. cit., p. 563.
conforme à liberdade tinham se agrupado, refletem o pluralismo normativo pelo qual Ehr1ich
139 Cf. D. Nelken, op. cit., p. 167-74. Em relação às relações

muito se interessou
comerciais, por 139. Ele parece mais preocupado com a intrusão do
135 D. Nelken, op. cit., p. 162. 136 direito estatal vindo de Viena, que iaem
acabar com a espontaneidade daspor si
exemplo, as pessoas preferiam, vez de recorrer à justiça, resolver
Idem, p. 164.
ordens
mes normativas existentes, do que com a adaptabilidade do direito
À estatal naslitígios.
mas seus transformações sociais sobrevindas. Ele também vai propor a
289
As TEORIAS ANTIFORMAUSTAS
288 HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO

o homem ocupa na história (Ensaios sobre a teoria da ciência); trabalhos


tes, sua concepção se assemelha àquela da teoria institucionalista do
italiano Santi Romano, que vamos examinar mais adiante. As críticas exclusivamente históricos; trabalhos de sociologia da religião (A
dirigidas contra as idéias de Ehrlich provêm, em primeiro lugar, do ética protestante e o espírito do capitalismo); e, enfim, a obra de referên
campo dos juristas "puros': como Kelsen, que lhe censuram por não ter
sido capaz de distinguir entre o que é (na realidade) e o que deve ser (em cia quase universal intitulada Economia e Sociedade, cujo capítulo VII
direito), em suma, entre o descritivo e o normativo. Elas provêm também comporta o essencial de sua sociologia do direito, escrita entre 1911 e
do campo dos sociólogos do direito, como Georges Gurvitch, que lhe
1913 e publicada em 1922. Max Weber inspirou amplamente os traba
censura, entre outras coisas, por não ter sido capaz de distinguir entre
regras sociais e regras jurídicas, regras de moral e regras de direito. Em lhos de Hans Kelsen e Carl Schmitt. O primeiro foi levado inclusive a
outras palavras, Ehrlich não teria sido capaz de nos fornecer um critério reconhecê-Io explicitamente no prefácio da primeira edição de sua tese
claro de juridicidade, uma vez que isso não mais se encontra, como de habilitação sobre os Hauptproblemen der Staatslehre, enquanto a
vimos, nas
obra
regras emitidas pelo Estado. Ehrlich considerou, quanto a isso, que era
suficiente "comparar o sentimento de revolta que se segue a uma violação de CarI Schimtt era às vezes considerada um prolongamento das teses
do direito com a indignação que se segue a uma violação da lei moral': weberianas. Com efeito, na ocasião do XV Congresso dos Sociólogos
para poder distinguir as regras jurídicas das regras morais. Mas essa Alemães em Heidelberg, 1964, Habermas observou que CarI Schmitt
solução "prática': que diz mais respeito à psicologia, é bastante
era "um discípulo legítimo" de Max Weber, antes de qualificá-Io mais
insuficiente. Enfim, observa Gurvitch, Ehrlich confunde, sob o termo
direito, o direito extra-estatal da sociedade global, o direito interno aos radicalmente como "filho natural" dele 141. Trabalhos ainda mais recen
5.2. 7 O formalismo normativista de Max Weber
agrupamentos sociais e o direito entre os grupos, sem tomar o cuidado de tes tentam
A tese demonstrar que apode,
weberiana concepção do direito weberiano
na verdade, se situacomo
ser qualificada
estabelecer distinções claras. entre o normativismo
normativista de Hans
no sentido Kelsendoe otermo,
kelseniano decisionismo político
na medida em que de aCarI
forma
Schmitt
que o di142.
5.2 O enfoque sociológico do direito de Max Weber
reito adquiriu, pelo menos no mundo moderno ocidental e, diga-se,
Max Weber nasceu em Erfurt em 1864. Obteve seu diploma de continental ao longo do processo de sua racionalização, é aquela, se
jurisprudência em 1886 em Berlim e, após ter sido sucessivamente pro-
gundo o autor, de uma ordem fechada, composta de regras jurídicas
fessor em Friburgo e Heidelberg, interrompeu por razões de saúde as
atividades de ensino, retomando-as somente em 1919, um ano antes da hierarquicamente ordenadas e estabelecidas conforme um procedi
morte. Sua obra imensa pode ser subdividida em quatro tipos de trabalho mento também previamente definido por outras regras. É o direito
14°: estudos epistemológicos e metodológicos em ciências sociais
\4\ C. Colliot - Thé1ene, Le désenchantement de l'État. De Hegel à Max Weber,
conjugados à filosofia, porque foram conduzidos com base no lugar que
Minuit, 1992, p. 234.
\42 Michel Coutu, Max Weber et les rationalités du droit, ed. Droit et Société,
140 R. Aron, Les étapes de la pensée sociologique, Gallimard, 1967, p. 499. 1995, p. 206.

...
290
HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO As TEORIAS ANTIFORMALlSTAS 291

formal racional, cujas características essenciais revelam o parentesco


do direito, baseada na interpretação lógico-lingüística das regras jurídicas
das concepções de Hans Kelsen e de Max Weber. Entre essas caracte para determinar seu campo de aplicação, está estreitamente ligada, tanto
rísticas, podemos distinguir 143 em primeiro lugar a coerência lógica e em Max Weber quanto em Hans Kelsen, à neutralidade axiológica que
a completude do sistema jurídico, em seguida o raciocínio dedutivo do constitui para ambos a principal qualidade de um verdadeiro trabalho
juiz que está em busca da solução jurídica de um litígio que lhe é de científico 148. O formalismo característico do direito moderno encontra
ferido e, enfim, a sistematização da ordem jurídica pela ciência do di evidentemente seus limites 149: a interpretação das regras jurídicas em
reito. Com efeito, "a unidade lógica da ordem jurídica" 14\ assim Kelsen que, como vimos, subtrai muitas vezes o juiz e a administração do
Como "automatismo" da aplicação das regras, tendo como conseqüência a
"a relação de todas as prescrições jurídicas elaboradas pela análise de criação do novo direito; e a materialização do direito em Weber,
modo que elas formam entre elas um sistema lógico claro" 145 fazem com ou seja, o fato de que as exigências materiais são dirigi das ao direito
que o sistema do direito seja um sistema isento de contradição em parte pelos interessados (principalmente a classe trabalhadora), em
(isento de antinomias). A ordem jurídica é igualmente uma ordem parte pelas ideologias do direito que exigem um
completa, isto é, sem lacunas. A ausência "de falhas" no seio de uma
ordem jurídica 146 constituía, aos olhos de Weber, mais um
postulado necessário da racionalidade formal do direito do que uma
propriedade real deste. O que não é o caso, vale lembrar, com Kelsen,
tenta decidir o litígio não com regras gerais aplicáveis a um caso concreto, mas
que defendia a impossibilidade lógica da existência de lacunas. A
com base em casos anteriormente julgados, os precedentes, que parecem ser si-
terceira característica da ordem jurídica consiste em que a solução
milares ao caso a julgar. Ver Max Weber, Sociologie du droit, p. 144. O famoso
jurídica de "caso inglês" colocou problemas aos sociólogos quanto à credibilidade da tese
um litígio depende da subsunção de uma situação concreta (um fato) sob weberiana segundo a qual a emergência do capitalismo está estreitamente ligada
uma regra jurídica, geral e abstrata, pelo viés de um raciocínio à previsibilidade (calculabilidade) do direito, que é assegurado por um sistema de
dedutivo. A decisão do juiz, mais precisamente, é a conclusão de um direito codificado comportando regras gerais e abstratas como aquela da Europa
silogismo perfeito em que a regra geral constitui a maior parte do ra- continental. Weber soube trazer respostas ao "caso britânico" dando ênfase prin-
cipalmente sobre a continuidade histórica assegurada pela força obrigatória dos
ciocínio, uma vez que a situação concreta submetida à regra constituirá a
precedentes, o formalismo processual (writs), o dualismo do direito inglês entre tribunais
menor parte 147. Enfim, a sistematização do direito pela ciência
143 Cf. M. Coutu, op. cit., p. 66. de paz que aplicam a justiça de cadi e os tribunais reais, acessíveis apenas às camadas
abastadas e situadas favoravelmente com respeito aos interesses do mercado. M. Coutu,
144 Hans Kelsen, TPD2, op. cit., p. 273.
op. cit., p. 161.; David M. Trubek, "Max Weber on law and the ris e of the capitalism", in
145 Max Weber, Économie et Société, Plon, 1971, p. 41, citado por M. Coutu, Wisconsin Law Review, n° 3, 1972, p. 746.
op.
148 A distinção weberiana entre julgamento de valores e referência aos valores é
c
i bem conhecida. A idéia de referência aos valores é emprestada da filosofia
t neokantiana de Heinrich Rickert, da qual Weber acabou por se diferenciar, uma
o Vez que o "politeísmo dos valores", a "guerra dos deuses", é para ele irredutível
146 M. Weber, Sociologie du droit, PUF, 1986, p. 43. a uma justificação objetiva possível. Cf. C. Colliot- Thélene, op. cit., p. 127-9.
O sistema da common law (o sistema britânico) é muito diferente do
147 M. Coutu, op. cit., p. 70.

..
149

direito continental codificado. De fato, o paradigma do raciocínio judicial não é


o do raciocínio dedutivo, mas o de um raciocínio por analogia em que
se
292
HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO As TEORIAS ANTIFORMAlISTAS 293

direito social baseado em postulados éticos ("justiça", "dignidade hu- 5.2.2 A racionalidade weberiana do direito
mana"). Isso põe o formalismo do direito em questão 15°. Em suma,
o Em princípio, parece muito claro que a generalidade, o caráter
abstrato da regra jurídica assim como outras qualidades formais do
tipo ideal do direito, ou seja, a construção teórica ideal que é obtida direito expostas "eram a seus olhos o fundamento de sua racionalida de"
,
d 153. Weber qualificará as normas do direito material racional como
iz Weber, acentuando certos traços particulares do objeto observa "normas qualitativamente diferentes daquelas obtidas pela generalização
d lógica de interpretações abstratas significantes", como aquelas do direito
o 151, neste caso aqueles do direito, e que melhor representam a racional formal 154. Mas isso significa que, em um sistema do direito
realidade do direito moderno ocidental, é portanto aquele do direito racional formal, as máximas políticas ou éticas consistem, aos olhos de
racional formal. Este se distingue tanto do direito material quanto do Weber, em elementos extrínsecos à ordem jurídica positiva "por oposição
direito irracional. Não se poderia assimilar a racionalidade do direito à à lógica jurídica intrínseca característica do direito formal" ?155 Em
sua formalidade, uma vez que, paralelamente ao direito racional formal, outras palavras, que lugar ocupam doravante as máximas políticas, éticas,
existe de um lado o direito material racional (ou irracional) e de outro econômicas, entre outras, no direito racional formal? Parece inegável que
lado, o direito formal irracional. O direito material racional é aquele em as qualidades formais da ordem jurídica, causadas pelo trabalho dos
que o legislador e o juiz tomam suas decisões em função "profissionais" do pensamento jurídico especializado, aumentam sua
dos princípios éticos, das máximas políticas ou religiosas que consti autonomia sistemática 156: quanto mais a ordem jurídica for completa
tuem formulações gerais (o legislador que estabelece regras confor- ("sem falhas"), mais os critérios de decisão, para a aplicação de uma
mando-se com os preceitos do Corão, por exemplo). O direito material regra jurídica a uma situação concreta, serão internos ao sistema. Nesse
irracional é aquele em que as decisões são tomadas em função dos sentido, a adjudicação de uma situação particular será independente
valores de ordem ética, política ou mesmo religiosa, mas, em oposição
(diferenciada) dos critérios que se referem a outras esferas de atividade,
ao caso anterior, "não são regras gerais, mas avaliações concretas do
no caso a moral ou a política. Não obstante, se isso diz respeito
caso particular que determinam a decisão" (a justiça do cadi ou
indubitavelmente ao processo de aplicação do direito a um caso
aquela do juiz de paz inglês) 152. O direito formal irracional, enfim, é
particular, o mesmo acontece para o processo de criação das regras ju-
aquele em que tanto o legislador quanto o juiz fundamentam suas
rídicas? A racionalidade (formal) do direito moderno ocidental não se
decisões sobre a revelação, sobre os oráculos ou sobre outras práticas
esgota, mesmo aos olhos de Weber, em suas qualidades lógico-formais,
irracionais equivalentes. A tipologia dos sistemas jurídicos estabelecidos
mas integra ainda mais os elementos de racionalidade prática (racio
por Weber, que fez correr muita tinta, coloca certas dificuldades quanto à
possibilidade de definir, com mais precisão, a noção de racionalidade
formal do direito.
153 J. Habermas, Droit et moraIe, Tanner Iectures (1986), Le SeuiI, 1997, p. 20. 154
150 M. Weber, Sociologie du droit, op. cit., p. 225. ln Sociologie du droit, op. cit., p. 42-3.
151 M. Weber, Essais sur Ia théorie de Ia science, PIon, 1965, p. 81. 152
155 M. Coutu, op. cit., p. SI.
M. Weber, Sociologie du droit, op. cit., p. 43.
156 D. Trubek, op. cit., p. 729.

~
294 As TEORIAS ANTIFORMALlSTAS 295
HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO

nalidade da ação). Carl Schmitt foi um dos primeiros leitores de Weber de Weber, que um sistema de direito que obedece a imperativos
atentos o bastante para constatá-Io 157. "Para os interessados no éticoreligiosos ou políticos só pode entravar o progresso econômico, que
mercado", escrevia Weber na Sociologia do direito, "a racionalização e a tem necessidade de certas condições materiais como livre mercado, traba-
sistematização do direito significam em geral [.u] uma previsibilidade lho livre, ausência de monopólios outorgados ou voluntários. Esses são
crescente do funcionamento da jurisdição, que é uma das condições mais OS imperativos econômicos do direito racional formal. Na Sociologia do
importantes para a existência [u.] das empresas capitalistas que têm direito, Weber parece ser um partidário inflamado do liberalismo
necessidade da 'segurança jurídica do comércio'"158. A economia do li- econômico, inquietando-se diante do fenômeno da materialização do di-
vre intercâmbio segue então emparelhada com a segurança que pode reito que, considerando as realidades econômicas concretas, estabelece
oferecer um sistema de direito que garante por regras gerais o espaço da novas regulamentações que quebram a igualdade formal do direito e o
liberdade individual e a propriedade contra qualquer intervenção formalismo jurídico. Essa posição deve de certa forma ser amenizada 16°, não
injustificada. A universalização dos direitos à liberdade, principalmente o apenas em razão das posições políticas que Weber adotou com re
reconhecimento da liberdade contratual a cada um e, conseqüentemente, lação aos interesses da classe operária, mas sobretudo em razão de sua
a generalização do uso do contrato-função em oposição ao contrato- vontade de preservar a autonomia do direito com respeito aos outros
estatuto do passado, em suma, a igualdade (formal) reconhecida a todos sistemas sociais como a economia, a política ou a moral. A autonomia do
pelo direito moderno ocidental é "a obra das duas grandes forças direito é, a seus olhos, ameaçada pelo intervencionismo utilitarista da
racionalizantes: a extensão da economia do mercado e a burocratização administração, que não se baseia mais na legalidade, mas na
da atividade orgânica das comunidades" 159. As relações entre direito e utilidade e na necessidade, como dirá mais tarde Carl Schmitt a
economia são, aos olhos de Weber, relações de interação, mas também de propósito do Estado administrativo.
tensão entre duas esferas de atividade relativamente independentes uma
da outra, as quais partilham, todavia, a mesma lógica sistemática: mestria 5.2.3 Para uma crítica das teses weberianas
técnica e previsibilidade. A questão de saber se as qualidades formais
do direito moderno estão em conexão necessária com a emergência do Weber foi censurado por ter examinado a relação entre as qualidades
capitalismo industrial recebe uma resposta negativa da perspectiva do formais do direito e a emergência do capitalismo em termos puramente
sistema da common law, que não corresponde ao tipo ideal do direito funcionalistas 161, no sentido de que as qualidades formais do direito
continental formalmente lógico e sistemático. Na common law, sendo um contribuem unicamente para o funcionamento eficaz da economia de
"sistema" de precedentes, o raciocínio judiciário procede por analogia e mercado, realçando assim uma racionalidade instrumental que visa
não por dedução. Mas é inegável, aos olhos justamente a uma adaptação refletida dos meios ao fim a alcançar e às
conseqüências da ação (é "o agir racional com finalidade", segundo

157 Carl Schmitt, Théologie politique, trad. gr., trad. P. Kondilis, Léviathan,
Atenas, 1994, p. 50. M. Coutu, op. cit., p. 48. 160 M. Coutu, op. cit., p. 236.
158 M. Weber, Sociologie du droit, op. cit., p. 223. 161 J. Habermas, Théorie de ['agir communicationnel, I, Fayard, 1987, p. 186-7

159 Idem, p. 79. assim Como em Tanner Lectures, op. cit., p. 23-4.
296
HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO As TEORIAS ANTIFORMALlSTAS 297

Weber). Weber teria posto de lado os princípios de conteúdo moral sobre seus olhos, "simplesmente a conseqüência lógica do caráter geral da
os quais parece repousar a ordem jurídica moderna, realçando Urna norma", e esse princípio não é "uma exigência da justiça, mas da lógi ca"
racionalidade prático-moral. O ceticismo epistemológico de Weber a 165. Deduz-se das proposições de Kelsen que o sistema britânico,
respeito do "mundo dos valores" não lhe permite atribuir qualquer sendo de base casuística (common law), constitui uma ordem jurídica
credibilidade a esta forma de racionalidade prática que conferiria urn ilógica. Mas se assim é, o Direito não tem nada a ver com a Lógica. Não
obstante, se a esse respeito a posição de Weber permanece funcionalista,
valor objetivo aos preceitos de conteúdo moral. Ora, isso não impede
éporque Weber, como dissemos, diante do pluralismo dos valores que
que as qualidades weberianas do direito racional formal impliquem essas
manifestam o desencantamento do mundo, isto é, diante da perda de um
avaliações éticas, porque elas pressupõem justamente os princípios de
cosmos unificado, recusa a idéia de um direito investido por uma lógica
conteúdo moral. Basta se apoiar sobre o caráter geral da lei para perce unicamente moral ou mesmo puramente econômica e política. Ele quer
ber que "sem a cláusula da generalidade (da lei)': como observa J.- preservar a qualquer preço a autonomia do sistema jurídico. Mas a que
F. preço? Será justamente aquele, contra sua própria vontade, de avalizar o
Kervégan em referência à crítica schmittiana da noção do Estado de direito, "a ideal do laisser-faire do liberalismo clássico?
igualdade perante a lei seria desprovida de sentido já que, dian
te de uma disposição concreta particular, os indivíduos são necessariamente
5.2.4 O Estado de direito e o decisionismo weberiano
desiguais" 162. Supõe-se que a generalidade da lei satis
faz o princípio de justiça, qualificado como princípio de "justiça for Entretanto, as afinidades mais profundas e certamente as mais es-
mal" ou "de igualdade formal': segundo o qual "os seres de uma mesma senciais entre Weber e Kelsen consistem no fato de que as duas doutrinas
categoria essencial devem ser tratados da mesma maneira" 163. Éo fundamentam o direito sobre as leis, e não sobre os homens. O "reino das
prin leis" e não "o reino dos homens': principal adágio do Estado legislador,
cípio da igualdade diante da lei (isonomia) na aplicação da máxima geral de como dizia Carl Schmitt em seus panfletos contra o liberalismo do
justiça, "tratar os casos semelhantes de maneira semelhante e os casos diferentes século XVII e ainda do século XIX 166, é o que mais os aproxima.
de maneira diferente': Desde que esse princípio seja res Lembremos que o último dos três tipos de dominação (Herrshaft) que Weber
peitado, o sistema jurídico será dotado de órgãos "regulares" e previsíveis em distinguiu, a dominação legal, identifica a legitimidade do poder com a
seus julgamentos, e o sistema jurídico garantirá então a segurança legalidade de seu exercício. Se a situação de poder (Macht) é aquela em que se
jurídica. A forma das leis gerais e abstratas pode ser justificada como sendo tem oportunidade de impor sua vontade a outrem, mesmo em condições de pura
racional somente à luz dos princípios que tenham um conteúdo moral 164.
desigualdade, a dominação é aquela em que o mestre (Herr) tem o poder "de
Sublinhemos aqui que a posição de Kelsen inverte o esquema que acaba obter a obediência daqueles que, em teoria,
de ser apresentado: o princípio da igualdade diante da lei é, a
162 J.-F. Kervégan, Hegel, Carl Schmitt. Le politique entre ia spéculation et
positivité, op. cit., p. 54.
163 H. Perelman, Justice et Raison, Bruxelas, 1972, p. 26.
165 H. Kelsen, Justice et droit naturel, PUF, 1959, p. 52.
164 J. Habermas, Droit et morale. Tanner Lectures (1986), trad. fr., 1997, p. C. Schmitt, Légalité et légitimité, op. cit.; J.-F Kervégan, op. cit., p. 62;
166
24-5.

J.
C.
CoIliot- Thélene, op. cit., p. 230.
298
HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO 299
As TEORIAS ANTlFORMALlSTAS

devem a ele" 167. A dominação legal-racional se distingue então das duas Assim, tanto em Weber quanto em Kelsen, o poder do Estado se
outras pela sua natureza essencialmente impessoal: a obediência não identifica com o direito. Se o Estado não é mais que o poder público
organizado juridicamente, o dualismo do Estado e do direito ao qual
resulta do caráter sagrado de que o detentor do poder está investido pela
aderiu a doutrina tradicional já não faz qualquer sentido. O Estado, dirá
tradição (dominação tradicional) nem de seu carisma pessoal (domina Kelsen, identifica-se com a ordem jurídica, cujas normas se aplicam a
toda pessoa que se encontra no interior do território do Estado, que
ção carismática), mas da crença na validade formal das regras jurídicas
, constitui o campo de aplicação dessa ordem. O Estado, enquanto ordem
is jurídica normativa, é uma ordem de constrangimento. O Estado, afirma
Weber, dispõe do monopólio do constrangimento legítimo porque ele se
to é, da crença no tipo de validade que deriva não do conteúdo das
baseia na legalidade de seus atos (a dominação legal racional). Direito e
n Estado identificam-se um com o outro. Conseqüentemente, a noção de
ormas e de suas qualidades substanciais, mas de seu modo de edição "Estado de direito" constitui, aos olhos de Kelsen, um pleonasmo: todo
(procedimento e autoridade habilitada) e de suas qualidades formais Estado é forçosamente um Estado de direito, uma vez que por definição o
Estado se expressa por meio das regras jurídicas. O mesmo ocorre em
(
Weber, para o qual a noção de Estado de direito é afetada pelo mesmo
generalidade e caráter abstrato da lei). Todavia, a questão de saber "de descrédito, mas por razões diferentes. A dominação racional legal que
onde a crença deve tirar a força de legitimação, se a legalidade significa permite a identificação do Estado e do direito constitui, no seio da
simplesmente o acordo com uma ordem de direito existente e se esta doutrina weberiana, apenas um modelo ideal que se encontra sempre em
defasagem com a realidade social. Na realidade, a dominação legal
legalidade é inacessível a uma justificação moral prática [.u], permane
racional se alia freqüentem ente a uma das duas formas de dominação, a
ce em Weber não elucidada" 168. Com efeito, em Weber, como vimos, o
dominação carismática ou a dominação tradicional. A democracia
"politeísmo dos valores" é irredutível a qualquer justificação objetiva parlamentar do Estado constitucional liberal pode assim se associar à
possível 169. Dessa maneira, "a própria forma da legalidade, isto é, o res democracia plebiscitária, mais precisamente às tendências da
peito às regras explicitamente codificadas, é aqui creditada a uma capa "democracia de massa': que Weber qualificava de "cesaristas': O detentor
cidade de legitimação imediata, sem que seja colocada a questão dos do poder adquire sua autoridade da confiança pessoal que as massas
Raymon Aron, Les étapes de Ia pensée sociologique, op. cit., p. 553.
167

princípios que comandam sua instituição [u.]. A legitimidade da do colocam sobre ele (legitimação carismática). O caráter im
168 Paul Ladriere, "Le conflit entre rationalité cognitive-

minação legal coincide


instrumentale et inteiramente com sua legalidade, de modo que
rationalité
não se sabemorale-pratique
o que permitedans Ia sociologie
fazer du entre
a distinção droit de Max Weber':
a utilização in Normes
justa eo jurídica, que determina o campo de aplicação real de uma ordem jurídica, enquanto que a
abuso deet poder,
juridiques uma
régulation vez que
sociale, sob aodir.
poder
de F.se reveste
Chazel de formasLGD
e J. Commaille, legais"
J, 1991,
170. doutrina jurídica determina o campo de aplicação ideal dessa ordem segundo o sentido
prescritivo das regras jurídicas. Trata-se, nesse último caso, da validade ideal (jurídica).
p.270.
Em suma, a validade (empírica) da ordem jurídica em Weber corresponde
Weber, afastando-se assim de Kelsen, segue a linha traçada por G. Jellinek, o primeiro a
à eficácia
Ver,da
169 ordem
sobre esse jurídica kelseniana
assunto, S. Mesure e 171.
A. Renaut, La guerre des dieux, Grasset, estabelecer os dois pontos de vista, jurídico e sociológico, a partir dos quais pode ser

1
1996, e P. Bouretz, Les promesses du monde, Gallimard, 1996. examinado o mundo do direito e do Estado.
170 C. Colliot- Thélene, op. cit., p. 230.
171 A validade empírica constitui, aliás, segundo ele, o objeto da sociologia
300 301
HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO As TEORIAS ANTIFORMALlSTAS

pessoal e objetivo da norma, válida sobre o plano típico ideal da a doutrina clássica da democracia e da soberania popular (autogoverno
legitimação racional legal, inclina-se para as decisões que devem ser do povo), uma vez que ela não considerava, segundo ele, o fato de que
tomadas pelos chefes carismáticos com relação às situações concretas. tOda dominação, qualquer que seja sua forma, é de fato exercida por
É a razão pela qual Weber, que, segundo Carl Schmitt, foi Com F. uma oligarquia. "Qualquer idéia [...] de eliminar a dominação do ho
Naumann e H. Preub um dos "pais da Constituição de Weimar': quis mem sobre o homem por uma forma tão elaborada como a democra
cia" era a seus olhos uma utopia 175. "Seguramente", ressaltava Weber, "as
fundá-Ia sobre dois princípios de legitimação: em parte sobre a legalidade
grandes decisões políticas, precisamente também em democracia, são
formal do Estado legislativo parlamentar, em parte sobre a legiti
obra de alguns poucos: essa circunstância inevitável condiciona o fato
midade carismática do presidente do Reich, eleito diretamente pelo
de que a democracia de massa, desde o tempo de Péricles, obtém seus
povo 172. O Estado de direito é, a seus olhos, uma forma de sucessos ao preço de importantes concessões ao princípio cesarista de
dominação seleção dos chefes"176. O parlamento de um Estado é somente o lugar
política que permitiu, com base nas teorias do direito natural e dos di- de seleção dos chefes. Ora, nem Kelsen nem mesmo Schmitt subscreve-
reitos do homem, a emancipação da classe liberal burguesa; no entan ram a idéia de redução do parlamento a um meio técnico de seleção
to, mais tarde a contribuição das teorias socialistas e as novas condições dos chefes. Mais particularmente, se Weber era a favor da combinação
da sociedade industrial solaparam profundamente, segundo ele, a força dos dois princípios de legitimidade, legalidade racional (parlamento)
convincente de seus fundamentos. Os séculos XVII e XVIII por um lado, legalidade carismática (plebiscito) por outro, Schmitt re
correspondem, mais precisamente, ao "estágio" do direito natural for- tinha exclusivamente a segunda, enquanto Kelsen se pronunciava a favor
mal baseado na idéia de que é legítimo o direito cujo conteúdo não es do tipo de ordem estatal em que todas as autoridades, inclusive o
teja em contradição com a concepção de uma ordem razoável, no sentido povo, eram consideradas órgãos do Estado submetidos ao respeito da
inglês do termo, ou seja, do que é "útil na prática" 173. Essa ordem se baseia nos norma que se situa no topo da ordem jurídica piramidal (controle de
acordos livres que reconhecem os direitos à liberdade (principalmente a constitucionalidade em um Estado parlamentar) 177. As diferenças entre
liberdade contratual). Esse "estágio" foi seguido por aquele do direito Weber e Schmitt, se não são mais numerosas, pelo menos são tão
natural material, cujos postulados são contribuição das teorias socialistas
que contestam a legitimidade dos direitos adquiridos pela via
contratual ou mesmo sucessória e ligam a aquisição desses direitos às
175 Carta a Michels de 4 de agosto de 1908, citada por W. Mommsen, op. cit.,
condições materiais do trabalho. Por causa do conflito entre direito
p.492.
natural formal e direito natural material, mas também por causa da
176 M. Weber, Parlament une Regierung, citado por M. Coutu, op. cit., p. 228. A
"relativização de todos os axiomas metajurídicos [u.], a axiomática ética da responsabilidade relativa à "racionalidade em finalidade" se opõe assim
jusnaturalista caiu em um profundo descrédito" 174. O mesmo vale para à ética da convicção relativa à "racionalidade em valor", pela qual se age em
172 W. Mommsen, Max Weber et la politique allemande. 1890-1920, PUF, 1985, função dos valores sem considerar as conseqüências da ação sobre o plano
p. 487; M. Coutu, op. cit., p. 217. C-Mo Herrera, op. cit., p. 193. social.
173 M. Weber, Sociologie du droit, op. cit., p. 212.
S. L. Paulson, Arguments conceptuels de Schmitt à l'encontre du contrôle
177
174 Idem, p. 217.

i
de constitutionnalité et réponses de Kelsen, in Le droit, le politique. Autour de Max
Weber, Hans Kelsen, Carl Schmitt, op. cit., p. 243.
303
As TEORIAS ANTIFORMALlSTAS
302 HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO

violêncià', e por conseguinte "a monopolização da violência significa


Importantes quanto as eventuais semelhanças que podemos encontrar
entre as duas doutrinas. O decisionismo de Carl Schmitt é de origern c0111 efeito sua institucionalização em um sistema de regulação (o..]
metafísica: a decisão consegue introduzir ordem no mundo, que sai assim que é o próprio direito, ou seja, a justificaçãO da violência através das
do caos e do nada normativo. Em contrapartida, o decisionisrno
weberiano encontra origem na concepção epistemológica do relativisrno pró
axiológico: toda avaliação, sendo irredutível a uma justificação objetiva, prias formas em que ela se exerce" 181. Toda comunidade política,
encontra seu fundamento na escolha (decisão) arbitrária do indivíduo.
Mais ainda, "a livre decisão, em Weber, deve obrigatoriamente ser mes
informada pela ciência e se curvar aos imperativos da ética da respon- 1110 não estatal, é, seguindo as proposições de Colliot- Thélene, um
sabilidade" 178, aquela que tem em conta precisamente as conseqüências
Estado em poder. Convém ressaltar aqui, à guisa de conclusão, que as
sociais da ação, enquanto que a decisão no sentido schmittiano do termo,
ainda que não imotivada, é irredutível a uma racionalidade normativa 179. contribuições das doutrinas kelseniana e weberiana do direito, isto é, a
De qualquer forma, o que separa profundamente as duas doutrinas é que quase autoprodução dos sistemas jurídicos de um lado, a diferenciação
"o Estado total" schmittiano, em direção ao qual se encaminhou
entre as esferas de atividade social de outro, antecipam de alguma ma
inevitavelmente o Estado liberal, resultou na interpenetração do Estado e 5.3 As teorias do pluralismo jurídico
da sociedade e, por conseguinte, na impossibilidade de distinguir o neira a teoria de autopoiese dos sistemas sociais de N. Luhmann e G.
público do privado. Em contrapartida, a posição de Weber a esse respeito Teubner,
5.30ainda quede
7 A idéia essa última teoria
pluralismo reivindique uma filiação muito
jurídico
é muito diferente, uma vez que ele deseja a qualquer preço preservar a diferente,
Se a em
teseessência aquela das
do pluralismo das fontes
reflexões oriundas
do direito quedaevocamos
biologia pro
ante
autonomia do direito acentuando o formalismo deste e manter assim
postasriormente questionava a "plenitude da lei" ligada ao positivismo
por Varela.
intacta a distinção entre a sociedade e o Estado. Enfim, freqüentemente
temos que observar que a monopolização do constrangimento físico pelo legalista,
Estado, a ultima ratio em Weber, traduz-se em última instância pela uma nova era se abre para a filosofia do direito com a problemática
possibilidade de designar o inimigo, o que constitui o critério do político do
em Carl Schmitt 18°. A distinção schmittiana amigo-inimigo pluralismo jurídico. Não se trata apenas de questionar o postulado da
corresponderia assim ao critério do político em Weber. De qualquer
completude do direito, a ausência "das falhas", como dizia Max Weber,
forma, a diferença essencial entre as duas doutrinas se liga ao fato de que
a definição da comunidade política pela violência é, em Weber, mas de enfraquecer ainda mais o que está no coração do positivismo da
estreitamente ligada à "reivindicação do direito à lei e, de maneira mais geral, o que está no coração do positivismo jurí
dico estadista: a uniformidade e a uni cidade da ordem jurídica estatal.
Quando as conseqüências da industrialização da sociedade se tor
naram perceptíveis, antes mesmo do fim do século XIX, primeiro se
178 Mo Coutu, op. cit., p. 212. 179 Jo-F. 181 C. Colliot-Thélene, op. cito, p. 2150 O político é, em Weber, identificado

1
Kervégan, op. cit., p. 1290 180 Mo ao estatal em C. Schmitt, La notion de politique, op. cit., p. 193, n. 2.
Coutu, op. cit., po 209.
304
HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO 305
As TEORIAS ANTIFORMAlISTAS

questionou a uniformidade das soluções jurídicas estabelecidas pelo


universalista Sua aplicabilidade doravante diz respeito a categorias
183.

direito positivo e aplicadas, sem qualquer exceção, a todos Os sociais menos amplas do que as do Estado liberal clássico (patrão/assa-
lariado, consumidor/comerciante).
jurisdicionáveis. O direito positivo, criticava-se, baseia-se unicamente
É assim que um certo número de regulamentações vai progressi-
em uma concepção individualista do direito que parte da idéia de que o vamente afetar domínios até então considerados intocáveis. Primeiro a
indivíduo, membro de uma sociedade, nasce livre e autônomo: livre para liberdade contratual, que se vê sancionada por regulamentações relativas
se engajar nas obrigações contratuais que deseja, com a condição, deve à proteção do assalariado: o contrato de trabalho necessita de uma
regulamentação particular, uma vez que patrão e assalariado estão, por
se dizer, de que não infrinja o que está estabelecido pelas leis; e, em prin
seus lugares sociais e econômicos efetivos, em uma relação de
cípio, autônomo para poder trabalhar e tomar conta de si mesmo. Essa desigualdade. Em seguida, o domínio da responsabilidade civil por
concepção era criticada por perceber as relações jurídicas através de descuido será profundamente modificado: a concepção estabelecida pelo
categorias muito abstratas e, por conseguinte, muito redutíveis para código civil de 1804, que obrigava toda pessoa a indenizar os prejuízos
que tenha causado, será substituída pela responsabilidade sem culpa. A
apreender a complexidade das relações sociais. As categorias jurídicas,
maior complexidade das situações relacionada com a industrialização
como aquelas do comprador e do vendedor, do credor e do devedor ou
da sociedade multiplicou os riscos de acidente, e não era mais
até mesmo, para sair do campo contratual, aquela de uma pessoa que possível identificar, entre tantos outros fatores, a culpa direta de uma
prejudicou alguém por seu comportamento faltoso, não refletem de pessoa para obrigá-Ia a reparar o dano causado. Mas também não era
forma alguma a realidade das situações particulares nas quais se encon possível deixar sem qualquer proteção as vítimas, principalmente aquelas
tram pessoas concretas que pertencem a meios sociais muito diferentes cuja situação social e econômica ia piorar por causa do prejuízo sofrido.
uns dos outros. Querer apreender toda categoria social pelo viés das A questão não é mais, escrevia R. Saleilles, "de quem é a culpa", mas
"sobre qual patrimônio iria recair em última instância a perda definitiva".
categorias jurídicas é aplicar as mesmas soluções jurídicas a pessoas que
A vida moderna, escrevia ele, "é uma questão de riscos: quem deve
somente são iguais de maneira formal, mas materialmente desiguais.
assumi-Ios? Forçosamente, por razão e por justiça, épreciso que seja
"Socializar o direito': escrevia J. Charmont em 1903, "é torná-Io mais aquele que, agindo, assumiu a seu encargo as conseqüências de seu ato e
compreensível, mais amplo do que era, estendê-Io do rico ao pobre, do de sua atividade" 184. A primeira lei social foi então
abastado ao assalariado - do homem à mulher - do pai à criança; para
dizer tudo, é admiti-Io em proveito de todos os membros da socieda
de"182. Por meio desse tipo de proposta, um grande número de juristas 183 Pode-se estabelecer um paralelo entre essas críticas sociológicas do indi-
vidualismo abstrato das categorias jurídicas e, mais tarde, aquelas dos
criticou os valores do liberalismo que serviam de base para a ordem ju "comunitaristas" americanos (P. Selznick, M. Walzer, M. Sandel, C. Taylor,
rídica estatal. Eles preconizavam o estabelecimento de novas categorias principalmente) contra a "ficção metodológica" do individualismo liberal em
aptas aJ.-Charmont,
apreenderLadesocialisation
maneira eqüitativa e, sobretudo, realista os filosofia política, ressuscitado em 1971 por John Rawls em sua Theory of
182 du droit, in Revue de Métaphysique et de
]ustice.
particularismos econômicos
Morale, 1903, e sociais,
p. 380. O itálico de tal modo livres que as novas
é nosso.
184 R. Saleilles, Les accidents de travail et Ia responsabilité civile, A. Rousseau,
categorias jurídicas perdem, quanto à sua aplicabilidade, seu caráter

~
Paris, 1897, citado por F. Ewald, L'État providence, Grasset, 1986, p. 353.
307
306 HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO As TEORIAS ANTlFORMALlSTAS

aquela relativa aos acidentes de trabalho (1898), permitindo ao Operário cos e das vantagens sociais que não podem ser calculados previamente.
ser indenizado em todas as circunstâncias, independentemente da culpa O único meio de sair dessa dificuldade é "mutualizar esses riscos e essas
do empregador. Mas uma sociedade de riscos deve encontrar os meios de vantagens, o que implica admitir previamente que os riscos serão assu
se assegurar contra todo risco social- aposentadoria, doença, desemprego midos em comum e o acesso às diferentes vantagens será aberto a to
-, tomando a seu encargo o indivíduo desde o nascimento até a morte.
dos" 185. "A vida social", escreve ele, "não é mais apenas a vida em que se
Assim será colocada a idéia de uma sociedade de solidariedade.
respeita o direito dos outros [...]; ela é algo mais. Só existe vida social na
A sociedade de solidariedade foi inicialmente pensada por Émile
Durkheim e baseia-se na idéia da divisão do trabalho social, que consti- medida em que esse tipo de segurança mútua contra os riscos sociais
tui o título de seu grande livro, o primeiro, publicado em 1893. Segundo for consentido e aceito por todos"186. A técnica asseguradora pública
ele, as sociedades modernas são fundadas sobre a diferenciação das ou
tarefas e das funções que cada um de seus membros exerce. Os indiví- privada servirá de meio para a realização da idéia de solidariedade ou
duos, além das necessidades similares cuja satisfação é obtida pela vida
de interdependência social.
comum, têm necessidades diferentes e, sobretudo, aptidões diferentes.
A ideologia solidária tenta com isso ultrapassar duas visões: por
Cada indivíduo, pela função que é chamado a exercer na coletividade,
um lado, a dos liberais que reclamavam um Estado fiador
terá forçosamente que contribuir para a satisfação das necessidades do
unicamente
outro; e ele terá, inversamente, que receber os benefícios de uma outra
das regras do mercado; por outro lado, a dos revolucionários, os
função exercida por mais alguém. O consenso em uma sociedade desse
coletivistas, como dizia Duguit, que desejavam construir a
tipo, sua coerência e sua unidade, resulta justamente dessa diferenciação.
sociedade
Uma verdadeira interdependência tece a ação social e muito se as-
contra qualquer lógica de mercado 187. A progressiva adoção de
semelha àquela de um ser vivo, em que cada órgão exerce uma função
leis so
diferente dos outros mas todos os órgãos contribuem juntos para a vida
ciais relativas a todo risco social (aposentadorias, doenças,
do ser. É a solidariedade orgânica. A concepção da sociedade como
invalidez), o
interação e interdependência substitui aquela de uma sociedade composta
Estado encarregando-se dos interesses da coletividade sob a forma de
de indivíduos livres e autônomos cujas relações repousam sobre o
serviços públicos assegurados pelo Estado (ensino, transporte, comuni
intercâmbio contratual. O laço social não nasce das relações de indivíduo
cação, condições de higiene) modificam cada vez mais o papel no qual
a indivíduo como concebia a teoria liberal clássica, mas daquilo que é
socialmente preestabelecido e no seio do qual tem lugar e se orienta este se enquadrava até então: não é mais um Estado passivo que zela
185 L. Bourgeois,
pelo exercício Applications
sem entraves de Ia solidarité sociale,
de direitos-liberdades Revue politique
dos indivíduos, maset
quanto às funções que realiza cada indivíduo. O social predomina sobre o
parlamentaire,
um Estado ativot. 31,1902, p. 7, citado
que intervém poreconômica
na vida F. Ewald, op. cit., p. 370.
e social. Chega-se
individual. 186 L. Bourgeois in Essai d'une philosophie de Ia solidarité, obra coletiva,
A solidariedade ou interdependência social tornou-se uma doutrina assim a uma concepção social do direito que revela a transformação da
Pa
racionalidade jurídica, já que as relações jurídicas serão doravante me
política quando foi retomada por Léon Bourgeois, homem de Estado, ris, Alcan, 1902, citado por F. Ewald, op. cit.; L. Bourgeois, La solidarité, 1896.
filósofo e membro do partido radical-socialista da Terceira República. Há 187 J. Donzelot, L'invention du social. Essai sur le déclin des passions politiques

1
que se fazer, escrevia L. Bourgeois, uma repartição dos ris (1984), Le Seuil, 1994, p. 73; P. Rosanvallon, L'État en France de 1789 à nos
jours, Le Seuil, 1990, p. 167.
308 309
HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO As TEORIAS ANTlFORMALlSTAS

diadas pelo que parece ser necessário para a preservação da coesão so grUPOS sociais prontos a defender seus interesses coloca, mais precisa
cial, de fato tão comprometida no final do século XIX. O indivíduo terá mente, juristas como L. Michoud, L. Duguit e M. Hauriou, mas também
dívidas para com a sociedade, da mesma forma que esta terá as SUas Jeze e Berthélémy, diante da realidade dos fenômenos coletivos: eles
C0111 deverão procurar estabelecer sob um novo dia as relações que essas
relação a ele. A socialização do direito, que deve ser aproximada da entidades coletivas podem eventualmente manter com o Estado. O de-
Constatação weberiana da materialização do direito positivo, bate, por exemplo, entre juristas partidários da teoria da ficção da per
corresponde na verdade à primeira das duas significações do pluralismo sonalidade moral (jurídica) e seus oponentes, partidários da teoria da
jurídico, de realidade, de fato traduz uma questão de natureza política. Dirá respeito
acordo com a distinção para a teoria do direito feita por Jean-Guy exclusivamente ao Estado a atribuição da personalidade moral (jurídica)
Belley 188 e que tem como conseqüência, já dissemos, um novo questio- das entidades coletivas, como sustentavam os primeiros, uma vez que só
namento da uniformidade das soluções jurídicas. é sujeito de direito aquele que dispõe de uma verdadeira vontade,
Mas com relação às transformações sociais que estão a ponto de enquanto que a vontade de uma coletividade não pode ser senão fictícia?
serem produzidas no fim do século XIX, os indivíduos se constituem Ou então encontramos, no fundamento desta atribuição, a realidade dos
cada vez mais em associações, a fim de melhor defender seus interesses. interesses coletivos que, no final das contas, impulsiona o Estado a
Associações mutualistas, profissionais, artísticas, científicas, literárias es reconhecer os agrupamentos coletivos, como sustentavam os
tão a ponto de se multiplicar no final do século XIX. Elas demandam ao segundos?189 Além das controvérsias doutrinais, observou Duguit, "foi
Estado que as reconheça como entidades coletivas relativamente au- necessário se render à evidência. A proteção jurídica da atividade cole-
tônomas e que disponham, como todo sujeito de direito, de capacidade tiva não pode depender da arbitrariedade do governo; é preciso neces
jurídica. Em outras palavras, elas demandam ao Estado que as reconheça sariamente que toda a coletividade, e somente se ela possuir um objetivo
como pessoas jurídicas com vontade própria - não associada à de seus lícito, possa se constituir livremente e encontrar no direito objetivo a
membros -, podendo agir juridicamente em tudo como as pessoas físicas. proteção de seus atos" 19°. Mas as controvérsias não param aí. Interrogase sobre o
Isso ressuscitou imediatamente o velho espectro do corporativismo. Se a tanto de autonomia que terão essas entidades coletivas na produção de
supressão do corporativismo que existia sob o Antigo Regime foi a seu direito interno. Também se coloca a questão de saber se essas
"grande obra" da revolução de 1789, instaurando um regime que atingia entidades coletivas podem tornar-se verdadeiros interlocutores
com sanções a formação de qualquer associação com mais de vinte do Estado e desempenhar eventualmente um papel direto na produção do
pessoas sem autorização do Estado, a pressão dos fatos levou o Estado a direito, da qual o Estado detém o monopólio. Duguit, por exemplo,
votar a lei sobre os sindicatos (1884), sobre as sociedades de socorro propunha instituir ao lado da câmara dos representantes dos indivíduos
mútuo (1898) e, por fim, a consagrar pela lei de 1901 a liberdade de as
sociação que só teve valor constitucional na França a partir de 1971.
As transformações sociais não deixam indiferentes os economistas
189 Ver sobre esse assunto F. Linditch, Recherche sur Ia personnalité moraIe
nem os juristas quanto às novas formas de organização social e aos en droit administratif, pref. de J.-A. Mazeres, LGDJ, 1997, p. 23-9.
novos aspectos institucionais que o Estado deve cobrir. A formação dos 190 L. Duguit, Les transformations généraIes du droit privé depuis Ie code
188 Dictionnaire encyclopédique de théore et de sociologie du droit, op. cit., p. 446 .
Napoléon, Paris, Alcan, 1912, p. 66-7.
uma segunda câmara, "uma câmara composta pelos eleitos dos grupos
sindicais" que pudesse mesmo ser eleita, segundo ele, em representação
310
proporcional 191. Todas essas interrogações remetem,
HISTÓRIA DA FILOSOFIA digamos brevemen
DO DIREITO
As TEORIAS ANTIFORMALlSTAS 311

te, a uma dupla articulação: de um lado, o interesse geral, o interesse de


todos buscado pelo Estado; de outro lado, os interesses coletivos busca- Antecipemos um pouco a seqüência e estabeleçamos desde agora o
dos pelas comunidades (associações profissionais, empresas) no seio da problema fundamental que coloca a doutrina de Maurice Hauriou: se o
Estado e as outras entidades coletivas são, como pensa Hauriou,
sociedade e sua conciliação possível em uma reconstrução institucio
InstitUições, privadas ou públicas, no interior das quais se produzem
naI.
regras de direito, o Estado não seria a única e exclusiva instituição pro-
É nesse contexto que devemos situar as doutrinas de Léon Duguit, dutiva de direito. A ordem jurídica estatal não poderá mais pretender a
unicidade. A sociedade se verá assim composta de várias instituições se
Maurice Hauriou e a doutrina do direito social de Georges
posicionando ao lado ou até contra a instituição do Estado. Não obstante,
Gurvitch,
sem jamais perder de vista a idéia de valor que está encarnada pela ins-
que entrou em cena posteriormente. O que as une é a idéia de tituição do Estado e o fato do enfraquecimento de sua autoridade que está
criticar a a ponto de se iniciar na passagem para o século XX, o decano Hauriou se
concepção individualista do direito. O que as separa são as interroga sobre o fenômeno do pluralismo jurídico, como
perspectivas pertinentemente demonstrou Jacques Donzelot: "Como fundar o exer-
cício da autoridade nos múltiplos serviços e agrupamentos associativos
de reflexão sobre a reconstrução institucional do direito estatal
que estão a ponto de se produzir no final do século XIX? Como fundar a
traçada autoridade de uma comunidade - por exemplo, uma empresa - sobre seus
por suas doutrinas. membros, mas também definir os limites dessa autoridade? Como fundar
Duguit e Hauriou retomam a teoria tradicional da soberania do a autoridade do Estado sobre essas comunidades que compõem a
Estado e dos direitos subjetivos dos indivíduos. O primeiro o faz sociedade, ao mesmo tempo evitando sua submissão ao Estado?"I92. Eis
as três questões que resumem o fundo de seu pensamento, que não parou
para
de se desenvolver até o fim de sua vida. Sua doutrina não visa a suprimir
desconstruí-Ia, depurando-a, segundo seus propósitos, das noções o Estado e seu poder, como ensaiou fazer Léon Duguit. Ela se situa
metafísicas que são o direito subjetivo e a soberania do Estado, e melhor em uma tentativa de harmonizar o "pouco de Estado" de uns
para como o "mais de Estado" que reclamavam os outros. A dinâmica da ação,
própria do processo institucional global que, segundo Hauriou, engendra
propor novas formas de organização do poder dos "governantes"
em si mesmo tão bem o que já é uma aquisição, os direitos naturais dos
construídas em torno da regra da solidariedade. O segundo o faz indivíduos, que o que está a ponto de advir, o fenômeno da socialização
para do direito, é pensado por ele em uma perspectiva que faz do Estado o
ultrapassá-Ia, em uma perspectiva que quer conciliar a autoridade fiador último do bom funcionamento das instituições.
do
Estado, os direitos subjetivos dos indivíduos e as entidades coletivas
L. Duguit, Le da
droit social,de
le instituição.
droit individuelAmbos
et la transformation de l'État,

j.
existentes
191
através noção desejam pensar o di 192 Jacques Donzelot, L'invention du social. Essai sur le déclin des passions
Paris, Alcan, 1908, p. 128.
reito na perspectiva das novas condições sociais. Mas se a doutrina de Politiques (1984), Le Seuil, 1994, p. 96.
Duguit chega a substituir os direitos subjetivos dos indivíduos em um
Estado liberal pelo direito objetivo da solidariedade cujo intérprete ex
313
As TEORIAS ANTlFORMALlSTAS
312 HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO

o Estado não é uma das instituições que compõem a sociedade, mas "a reitO de integração do conjunto desses ordenamentos e o coloca na pers
Instituição das instituições': aquela que engloba todas as outras e tenta pectiva5.3.2 O direito
de uma objetivo
coexistência segundo
pacífica. Léon de
Ele retém Duguit
Léon Duguit a idéia
realizar a ordem e a justiça.
A teoria institucional de Maurice Hauriou se distingue assim da- de umaFoi a partir de 1901
superioridade que Léon
do "direito Duguit isto
objetivo", (1859-1928), decano
é, do direito da facul
engendra
quela de seu homólogo italiano, Santi Romano que, alguns anos depois
dodade
pelade direitosociedade,
própria de Bordeaux,
mas aderiu explicitamente
as idéias a Émile não
de Maurice Hauriou Durkheim
per e
dele, também vai propor uma teoria institucional do direito. Mas Santi
ao positivismo sociológico de Auguste Comte em rÉtat, le droit objectif
Romano contempla de forma diferente o fenômeno do pluralismo ju- manecerão sem influência sobre ele. A noção de "fato normativo"
rídico. Para o teórico italiano, as instituições não constituem fontes de et Ia loi positive (1901), e também em rÉtat, les gouvernants et les
adotada por Gurvitch como elemento estrutural e constitutivo dos or
direito às quais deve acomodar-se o direito estatal, como pensava M. agents
Hauriou, mas verdadeiras ordens jurídicas coexistentes com aquela do denamentos sociais se compara com a definição da instituição de M.
(1903). Esses trabalhos, seus artigos e as conferências que ele deu ao lon
direito estatal. É sobre este ponto preciso que encontramos a segunda
Bauriou.
significação que reveste a noção do pluralismo jurídico, tal como ela é go de sua carreira resultaram em uma síntese final, com a publicação do
destacada pelo sociólogo do direito Jean-Guy Belley: a pluralidade das Traité de droit constitutionnel em cinco volumes, cuja primeira edição
ordens jurídicas. Enfrentar diretamente esse fenômeno e, mais precisa-
saiu em 1911. Durante toda sua vida, seguindo nisso o modelo
mente, as relações que essas ordens jurídicas mantêm entre elas constitui
o jogo maior da doutrina institucional italiana. Diferentemente da teoria epistemológi
institucional francesa, Santi Romano não se preocupa jamais com uma co de Auguste Comte, Léon Duguit será um oponente fervoroso dos con
teoria da justiça. A pluralidade das ordens jurídicas - a comunidade
ceitos e das hipóteses dos raciocínios dedutivos, que escapam, segundo
internacional, a Igreja, as coletividades locais - constitui um fato.
Acontece o mesmo com o Estado que não representa a seus olhos nada seus propósitos, à "observação direta dos sentidos".
mais que o fato de uma organização, da mesma forma que as outras or- Os postulados do liberalismo do século XVIII preconizam a liber
dens jurídicas. Assim, é essencial examinar no seio dessa doutrina o que dade do indivíduo, sua autonomia de vontade e seus direitos subjeti
nos permite identificar uma ordem jurídica como tal. Os conceitos de
vos. Ao longo de todo o século XIX, as mesmas idéias, transpostas
instituição, de ordem jurídica, de organização social, são todos equiva-
lentes aos olhos de Santi Romano, mas mesmo assim merecem ser exa- pelo
minados mais profundamente. Retomaremos mais adiante a esse positivismo jurídico para a teoria do Estado, fazem deste uma pessoa
problema cmcial. moral (jurídica) autônoma, soberana, que se submete ao direito por sua
Enfim, a doutrina do direito social de Georges Gurvitch se situa
própria vontade - teoria da auto limitação do Estado pelo direito - e que
claramente na perspectiva do pluralismo jurídico contemplado em sua
segunda significação. Sua doutrina é considerada mais precisamente uma dispõe do direito subjetivo do mandamento. Contudo, observou Léon
verdadeira sociologia. De fato, Gurvitch prolonga as idéias de Eugene Duguit, esses postulados servem de premissas a raciocínios dedutivos que
Ehrlich relativas ao "direito vivo" que assegura a ordem interna de cada
são desmentidos pelos fatos. Da mesma forma, as definições dos
grupo da sociedade. Ele concebe o direito social como um di
conceitos jurídicos dadas pelos textos de direito não correspondem mais
. à realidade dos fatos sociais.
A liberdade individual, por exemplo, que segundo a Declaração dos
314
Direitos de 1789 constitui um direito que vale para todos sem
HISTORIA DA FILOSOFIA DO DIREITO
As TEORIAS ANTIFORMALlSTAS 315

exceção

e permite que cada um disponha de sua vida como desejar e "POSsa fazer lador impondo limites ao exercício desse direito tornava-se cada vez mais
necessária, seja em proveito de um interesse geral como a saúde pública, seja em
tudo o que não prejudique a liberdade de outrem" - art. 4° da De proveito do livre exercício de outros direitos-liberdade, como a liberdade de
culto que acabava de ser consagrada na França pela lei de 1905194. Essas
claração de 1789 -, já está em oposição com as obrigações que em certos
limitações destinadas ao direito de propriedade não dão, em
países europeus, como a França, são impostas por outros textos de lei contrapartida, qualquer direito a indenização como em caso de ex-
propriação, pois não se trata de remediar um dano contra um direito dito
quando não há nenhum perigo para a liberdade de outrem. A obriga absoluto, mas de condicionar o exercício do direito e de torná-Io
ção do ensino, mas também a obrigação de previdência - ou seja, a obri compatível com o exercício de outros interesses sociais que estão em
jogo. A noção de abuso do direito, que vai conhecer igualmente uma
gação de se assegurar - são manifestações concretas. Elas nos incitam, expansão considerável, ressalta a mesma problemática. Diante dessas
segundo Duguit, a modificar a concepção subjetivista, individualista e transformações sociais, Léon Duguit adota uma posição radical: os
direitos subjetivos, dirá ele, não existem. A noção do direito subjetivo
liberal que temos da liberdade civil. "A liberdade não é um direito sub como "poder de vontade de se impor" deverá ser abandonada, porque
jetivo, mas a conseqüência da obrigação imposta a todo homem de de nenhuma vontade pode ser superior às outras. Ela deve ser substituída
pela noção de função social. A propriedade-direito subjetivo se torna,
senvolver o mais completamente possível sua individualidade, isto é,
segundo ele, propriedade-função social, pois "se a afetação de uma coisa
Sua para a utilidade individual é protegida, é antes de tudo por causa da
utilidade social" 195. O patrimônio individual deve ser gerado de modo que
atividade física, intelectual e moral, a fim de cooperar o máximo possÍ contribua, além do enriquecimento pessoal do proprietário, para a
vel para a solidariedade realização de uma certa função útil para a coletividade (enriquecimento
social."193
da coletividade, produ
O mesmo vale para a propriedade, que constitui a esfera de auto
nomia por excelência na qual se exerce, desenvolve e floresce a 194 Idem, op. cit., p. 172. O direito de propriedade comporta três núcleos: o
liberdade direito de se servir da coisa (usus), o direito de detectar e de empregar os rendimentos da
coisa (fructus) e o direito de dispor da coisa (abusus) como se deseja, vendê-Ia ou
individual. A propriedade é definida pelos textos como um direito sub destruí-Ia, por exemplo. A lei de separação do Estado e da Igreja faz do Estado o
jetivo; "direito inviolável e sagrado': anuncia o artigo da Declaração de proprietário dos prédios de culto; mas o Estado (departamentos ou comunidades)
não é livre quanto ao uso de "seus bens". Esses bens são deixados, segundo a lei de 1907,
1789, enquanto que os artigos do código de Napoleão a definiam como "à livre disposição dos fiéis e dos ministros de culto para a prática de sua religião". Uma
"o direito de gozar e de dispor das coisas da maneira mais absoluta, des fratura é introduzida no que constitui a própria essência do direito de propriedade, pois o
193 Léon Duguit, Les transformations générales du droit privé depuis le cade Estado é desprovido do direito de se servir da coisa.
de que não se faça delas uma utilização proibida pelas leis e pelos regu-
Napoléon,op. cit., p. 37. 195 Idem, op. cit., p. 159.

lamentos". Ora, essas definições estão igualmente em flagrante


contradição com o que decidem o legislador e os tribunais, por exem ~
316
ção de materiais ou de serviços, criação de empregos). Não poderia Ser
HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO
As TEORIAS ANTIFORMALlSTAS 317
de outra forma, já que a sociedade é composta por indivíduos e por en-

tidades coletivas que contribuem, pela execução dos diferentes trabalhos de então considerada jurídica toda norma social para a qual "a massa das
consciências individuais chegou a compreender que a sanção ma terial desta
que têm de realizar, pela divisão do trabalho no sentido de Êmile norma pode ser socialmente organizada" 198. É próprio do direito, então,
Durkheim, para o progresso e o desenvolvimento dessa sociedade. Os não o que é sancionado oficialmente pelo Estado, mas o que é
compreendido como sendo socialmente necessário. O autor, fiel além
membros da coletividade não têm de reivindicar direitos, mas executar disso aos postulados epistemológicos do positivismo de Auguste Comte,
rejeita a noção durkheimiana da "consciência coletiva" e opta pela noção
obrigações: aquelas que resultam precisamente da situação social na
de "massa de consciências individuais", porque esta lhe parecia mais
qual concreta e mais empírica que a precedente.
O Estado em uma sociedade baseada na diferenciação deve conse-
eles se encontram. Haveria assim, para os detentores das riquezas, por
qüentemente ir além do papel no qual era confinado pela teoria tradi-
exemplo, a obrigação de não as deixar inexploradas. cional da soberania.
"E nisso': afirma ele, "aparece muito claramente o fundamento so- O Estado, observa ele inicialmente, não existe sob a forma de poder
público ou de soberania. São conceitos vazios, desprovidos de qualquer
cial da regra de direito, do direito objetivo. Ele é ao mesmo tempo realis
referência semântica, por trás dos quais há a diferenciação dos
ta e socialista: realista porque se baseia no fato da função social governantes e dos governados. Em segundo lugar, a idéia da soberania do
observada Estado parece, segundo ele, cada vez mais caduca diante de suas
obrigações internacionais.
e constatada juridicamente; socialista porque se baseia nas próprias
Os governantes, mais precisamente, não se submetem voluntaria-
condições da vida social. A regra jurídica que se impõe aos mente ao direito, mas necessariamente, sob pressão dos fatos e pela ne-
homens não cessidade imperiosa de legitimar seu poder. Os princípios de justiça, tais
como as regras da solidariedade, condicionam o exercício desse poder e
tem por fundamento o respeito e a proteção de direitos individuais
impõem aos governantes um certo número de funções a realizar 199. Estas
que196 Idem, op. cit., p. 25-6. Os itálicos são nossos. funções, contudo, vão além do que a teoria tradicional designava sob o
não 197
existem [...].positivo
O direito Ela se baseia no fundamento
é, segundo da estrutura
Duguit, composto social, a
de regras
termo de "funções régias do Estado": a polícia, a diplomacia, a guerra e a
organização da justiça. As obrigações dos governantes consistem em
necessidade de manter coerentes entre eles os diferentes elementos
normativas
consolidar o espaço da ação social interdependente e em permitir tanto
quesociais
se dirigem a todo homem e que impõem uma certa ação ou, ao contrário,
aos grupos coletivos como aos indivíduos o exercício sem
uma certa
pela abstenção;da
realização mas o direitosocial
função positivo comporta
que incumbetambém regras
a cada construti
indivíduo, a cada
vas que asseguram
grupo. Assim, éo respeito e a aplicaçãouma
verdadeiramente das regras normativas.
concepção Isso corresponde
socialista do direito
mais à distinção de Hart entre regras primárias e regras secundárias do que à L. Duguit, Traité de droit constitutionnel (1911), t. I, 1927, p. 81.
que substitui a concepção individualista tradicional"196. O direito obje 198

distinção estabeleci da por F. Gény ente o dado e o construído. O próprio Duguit


199 L. Duguit, "Les obligations des gouvernants", in Le droit social, le droit
tivo é o direito produzido pela ação social. Ele está no fundamento do individuel et Ia transformation de l'État, op. cit., p. 63.
direito
quis positivo
se distanciar

deretomado
197. Ele não
explicitamente

e sancionado
droit constitutionnel,
se tornará
dessa direito
assimilação

op. cit., p. pelos


105.
com apositivo
distinçãoenquanto não
de Gény. Traité for
governantes. Em contrapartida, será des J.
se tOrna normalmente mais freqüente porque somente eles podem reali
319
318 HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO
zar isso que é a civilização"203.
As TEORIAS ANTIFORMAUSTAS

Mas o que é ainda mais surpreendente no seio dessa doutrina é


entraves de suas diferentes atividades para atingir seus objetivos. Isso
que a diferenciação das funções exercidas por grupOS e indivíduos
significa, concretamente, assumir a obrigação do Estado em relação a um
certo número de serviços "indispensáveis à realização e ao desen- se
volvimento da interdependência social" 200. Quais são, mais precisamente,
as atividades que constituem para os govemantes uma obrigação de serviço presta pouco às controvérsias. Os conflitos que podem ser causados
público? Sobre essa questão não há, afirma ele, uma resposta fixa (sic) 201. Toda
eventualmente pela diferença nas funções exercidas pelos atores sociais,
atividade que parece ser vital para a vida social e cuja realização ninguém
poderia dispensar poderá ser objeto de um serviço público. O ensino, os coletivos ou individuais, ou nos meios que utilizam para atingir seus
transportes, mas também a segurança contra o desemprego e a assistência
figuram entre as obrigações que recaem sobre os govemantes. É verdade, objetivos, não são objeto de análise. A interdependência parece cami
acrescenta ele, que entre todos esses interesses assumidos pelo Estado nhar por si mesma e acabamos por nos perguntar qual é a natureza exata
não há os que não tenham seu fundamento na idéia de solidariedade no
das relações que ligam os atores sociais. São relações de complementa
sentido indicado, mas também no sentido de "sentimento de piedade para
com o sofrimento humano. Sentimento adquirido ou sentimento inato, ridade, de compensação, de oposiçãO? A diferenciação, em oposição ao
pouco importa, é um dos mais belos apanágios do homem civilizado no
que o nome poderia sugerir, praticamente não comporta verdadeiros
século XIX; ele deve encontrar lugar em nosso regime político positivo,
que deve apreender o todo do homem" 202. diferenciais. Ela se torna, ao contrário, seu catalisador. A diferenciação
De qualquer forma, é paradoxal constatar que alguém que de tal
dos governantes e dos governados, a diferenciação das funções que são
forma se opôs ao poder do Estado e à sua soberania acabasse retomando ao
Estado sob a forma de serviços públicos que serão assegurados sob sua exercidas pelos atores sociais acaba por se tornar uma espécie de "mão
autoridade: e "tudo o que se pode dizer", acrescentava ele, "é que, na
invisível" pela qual é regulada uma sociedade de solidariedade. Será
medida em que a civilização se desenvolve, o número de atividades sus-
cetíveis de servir de suporte aos serviços aumenta e o número de serviços porque a dinâmica da ação e, mais particularmente, a dinâmica da ação
públicos cresce da mesma forma. [...] A intervenção dos governantes normativa dos autores sociais, dos "governantes" e dos "governados",
assim como sua interferência estão ausentes em sua obra? Em todo caso,
é sobre este aspecto de sua doutrina que incide, entre outras, a crítica
de seu contemporâneo Maurice Hauriou. Este acusa Léon Duguit de
200 L. Duguit, Droit constitutionnel, 1907, p. 416. ter pensado o direito segundo um esquema estático, sem levar em con
Idem, op. cito Cf do mesmo autor, Les transformations du droit public,
201

Armand Colin, 1913, capo II, "Le service public", p. 33-72.


sideraçãoL.oDuguit,
203 Droitque
processo constitutionnel, op. cit., p. normativa.
anima a produção 417. É também a ra
L. Duguit, Le droit social, le droit individuel et Ia transformation de l'État, 204 M. Hauriou, Le point de vue de l'ordre et de l'équilibre (1909), Recueil de
202
zão pela qual a regra da solidariedade, que segundo Duguit deve guiar
op. cit., p. 67-8. Législation, t. V, citado por J. Donzelot, op. cit., p. 97.
a ação normativa dos "governantes", parece se impor aos conjuntos so
. ciais do exterior, como critica Hauriou 204. Ora, essa crítica revela uma
320
HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO 321
As TEORIAS ANTIFORMALlSTAS

social ou aquela dos direitos subjetivos e da regra da solidariedade, não


elechama de "morfologia jurídica': A sociologia jurídica "interpreta
são de forma alguma levadas em consideração. Elas são simplesmente essas condutas e essas manifestações materiais do direito, segundo as
ignoradas 205. Pensar essas antinomias em termos de equilíbrio e de significações internas que lhes inspiram, passando de símbolos como as regras
fixadas de antemão, os procedimentos e as sanções, o direito organizado, às
dialética é justamente o enfoque da sociologia jurídica de Georges regras flexíveis, ao direito espontâneo; daí, ela passa aos valores e às idéias
Gurvitch. Este compartilha com Léon Duguit a concepção jurídicas que as exprimem e, por fim, às crenças e entendimentos coletivos que
antiindividualista do direito, assim como a rejeição da idéia estadista do aspiram a esses valores e apreendem essas idéias, e que se manifestam nos 'fatos
normativos' espontâneos, fontes das fontes da validade, isto é, da positividade do
direito que era o apanágio dos positivistas. Em Gurvitch, como em
direito"206. Eis, pois, o método proposto para a sociologia jurídica:
Duguit, proceder etapa por etapa e por patamares sucessivos. Mas o mesmo
5.3.3 Odopensamento
será próprio direito o quedeé Georges Gurvitch
experimentado e vivido como tal pelas procedimento, visto sob um esquema invertido, constitui a seus olhos o
açõesGeorges
sociais. Gurvitch,
Mas as semelhanças entre os dois autoresinstalou-se
param aí. de próprio processo de produção do direito.
depois de ter deixado a Rússia,
finitivamente em Paris em 1925. A revolução russa marcou-o
profun
5.3.4 O fato normativo segundo Gurvitch
damente e muito cedo ele se interessou pelo funcionamento dos
conselhos de auto gestão operária, que vão exercer uma influência No fundamento do direito se encontra não a racionalidade do
con legislador ou a vontade do Estado, mas um fato normativo vivido e
siderável sobre sua concepção de direito social. Durante sua vida, experimentado como tal pelos membros de uma sociedade (uma nação,
seu por exemplo), pelos membros de um grupo social, incluindo
trabalho foi ignorado pelos sociólogos, pelos filósofos e também cooperativas, sindicatos, famílias, empresas ou partidos políticos, e enfim
pelos pelos membros de uma sociedade global como a comunidade
internacional. O fato normativo, como seu próprio nome indica, remete
juristas. É significativo ressaltar a esse respeito que, quando se pensou
ao fato de constituição de uma comunidade qualquer baseada, em
em introduzir no cursus da faculdade de Paris o ensino da sociologia essência, sobre uma comunidade de interesses 207; esse fato é normativo
jurídica, sociólogos da Sorbonne foram consultados, enquanto que porque ele encarna, junto
Georges Gurvitch não foi. Perto do fim da vida, ele próprio se qualifi
cou como "excluído da horda dos sociólogos e dos filósofos': embora 206 G. Gurvitch, Éléments de sociologie juridique, ed. 1940; trechos reprod. in Droit

Jean Carbonnier sustente que sua exclusão se deve principalmente à et société, n° 4, p. 345.
207 "Há comunidades que por um único e mesmo ato engendram o direito e
complexidade de seu método sociológico. De fato, seu método comporta
fundam sua existência sobre ele, comunidades que criam seu ser engendrando o
vários níveis de análise dos fenômenos sociais, desde as manifestações direito que lhes serve de fundamento. [...] As comunidades em que a constitui-
mais 205
superficiais até as camadas mais profundas que as geram. Aconte ção pelo direito e a geração de um direito coincidem são precisamente fatos
J. Donzelot, op. cit., p. 98.
ce o mesmo para a metodologia da sociologia jurídica, que segundo normativos." ln G. Gurvitch, L'idée du droit social, Sirey, 1932, p. 19.
Gurvitch deve partir do que é exteriormente observável, isto é, as "con
dutas coletivas efetivas" e as instituições jurídicas que constituem o que 1
322 323
HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO As TEORIAS ANTIFORMAlISTAS

com sua própria existência, um valor aprovado e reconhecido pelos mem O Estado, a comunidade internacional, as associações profissionais
bros do grupo. Na fundação de um sindicato, por exemplo, seus mem são "fatos normativos". Mas outros grupos sociais podem também ser
bros "reconhecem-na intuitivamente como um 'fato normativo' cuja fatos normativos a partir do momento em que engendram em si próprios
própria existência encarna parcialmente a justiça" 208. Certos os três elementos seguintes: quando a formação do grupo representa
membros dessa organização podem desaprovar os estatutos sobre os para seus membros uma autoridade qualificada e impessoal; quando a
quais foi fundada sua organização ou a maneira com que são geridos seus autoridade não pode ser qualificada senão quando encarna um valor,
negócios, e eles podem por isso tentar produzir modificações, até por uma que consiste em realizar a justiça cujo conteúdo é historicamente
"revolução", mas "eles evitarão destruí-Ia ou abandoná-Ia': Romper variável 210; quando, enfim, a autoridade é dotada de uma eficiência real.
totalmente com essa organização, deixar de ser um membro dela, por Entre esses três elementos, afirma Gurvitch, há uma perfeita
exemplo, é uma questão moral, afirmou ele, e não jurídica. A coincidência, porque cada um deles não saberia existir sem pressupor os
moralidade de uma ação é dois outros. "Uma autoridade qualificada [...] garante, pelo seu caráter de
relacionada pelo autor à autonomia do sujeito, à sua intuição moral indi- fato, a eficiência real do direito resultante [...]; uma autoridade não
vidual, enquanto que a juridicidade da ação diz respeito à reciprocidade eficiente", escreve ele, "não seria mais precisamente um 'fato normativo',
das relações que ligam este assunto aos outros e ao conjunto da comuni- porque os 'fatos normativos' encontram sua justificação no próprio fato da
dade. Seguindo em parte os ensinamentos do polonês Petrazicky, cujo existência (eficiência) de um meio que realiza os valores, e esse fato
nome está associado a uma filosofia intuitiva do direito, Gurvitch consi- realiza em si mesmo um valor jurídico positivo e serve àrealização da
dera que a reciprocidade dos direitos e das obrigações, que liga os Justiça"21I. A definição do "fato normativo" se revela aqui muito
sujeitos entre si ou com o todo da coletividade, está no fundamento de próxima da definição da instituição dada por Maurice Hauriou. A
toda experiência jurídica. Em moral, a experiência é individual e instituição também comporta três elementos similares àqueles que
unilateral (imperativa); em direito, a experiência é coletiva e multilateral são propostos por G. Gurvitch: a idéia de uma obra a realizar (o
(imperativa atributiva). "O direito': escreve ele, "tem um caráter bilateral valor), um poder organizado (a eficiência da autoridade) e a adesão
ou multilateral porque encadeia as pretensões de uns aos deveres dos dos membros da comunidade (autoridade qualificada para os
outros; esse caráter 'imperativo atributivo' do direito tem por efeito ao membros da comunidade) .
mesmo tempo a delimitação de suas exigências e a necessidade de sua Não se poderia, por conseguinte, qualificar somente como direito
imposição pela autoridade de um fato normativo"209. tudo o que é ordenado por um órgão competente do Estado, como pen-
sou o positivismo. É necessário buscar além da ordem jurídica do
Estado, que constitui em si um "fato normativo': a existência de outros
"fatos normativos" que também estão na origem do direito.
208 G. Gurvitch, L'expérience juridique et Ia phiIosophie pIuraIiste du droit,
Pedone,1935,p.68.
G. Gurvitch, ProbIêmes de socioIogie du droit, op. cit., p. 189. A maneira pela
209

qual Georges Gurvitch chega a diferenciar a normatividade da moral e a 210 Ver infra.
normatividade do direito faz pensar muito na concepção do neokantiano italiano 211 G. Gurvitch, L'expérience juridique et Ia phiIosophie pluraliste du droit,

1
Giorgio Del Vecchio. Ver infra. op. cit., p. 122. O que está entre parênteses é de G. Gurvitch.
325
324 HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO As TEORIAS ANTIFORMAlISTAS

Os fatos normativos, explica ele, comportam por um lado um direito serve de meio de coordenação da ação interindividual. Mas as relações
organizado 212, ou seja, as regras, os órgãos competentes e os proce dimentos - é jurídicas entre os membros de uma comunidade não se esgotam nesta
a camada superficial do direito -; por outro lado, o direito espontâneo - é forma. As relações de "fusão parcial comum" ligam entre si os mem
a camada mais profunda -, intimamente ligado ao que pode gerar o bros de uma comunidade. Em meio a essas relações, os membros de uma
direito e conseguir assim modificar até o direito organizado. O direito coletividade social se referem ao "Nós" da comunidade: da sociedade,
espontâneo é, para retomar os termos do autor, a "fonte da fonte" da do grupo, da classe social de que fazem parte. Isso pode implicar para
validade do direito, isto é, de sua positividade. Trata-se principalmente OS membros da entidade coletiva a execução de ações concretas ou sua
das condutas coletivas "efervescentes" e renovadoras que escapam da abstenção de certas atividades, cuja finalidade nos dois casos é a mani
qualificação jurídica que lhes poderia dar o direito organizado e que festação da "totalidade", assim como a preservação dessa totalidade. Isso
parecem inspiradas em um "sentimento de justiça". Essas condutas pode implicar também que o direito interindividual se enquadre docil
podem ser a manifestação dos valores e das idéias coletivas de justiça, mente no seio da entidade coletiva respectiva. Sob essas duas formas, as
que correspondem a estados mentais coletivos que são elevados por relações são regidas pelo direito social e, em todos os casos, afirmou ele,
Gurvitch à categoria de fonte primária do direito 213. o direito social é a condição de existência do direito individuapl4. O
direito social, definiu ele, "é o direito autônomo de comunhão pelo qual
5.3.5 O direito social segundo Gurvitch se integra de maneira objetiva cada atividade concreta e real que encarna
um valor positivo, direito de integração (ou se preferirmos, de desor-
No seio de uma comunidade organizada, ou seja, dotada de uma dem), também distinto do direito de coordenação (ordem de direito
"regulamentação fixa" ou dotada simplesmente da "capacidade virtual de individual) como o direito de subordinação" 215.
organização", as relações jurídicas revestem concretamente duas formas. Se as formas de coordenação interindividuais, como o contrato,
A primeira diz respeito às relações com o outro, ou seja, as relações implicam a multiplicidade e a diversidade das relações estendidas no
bilaterais de indivíduo para indivíduo; é o direito interindividual, cujo espaço social, o direito social como direito de integração os reconduz à
ícone por excelência é o contrato. É esta forma que foi privilegiada, unidade. O direito social é, por assim dizer, "a expressão das forças
afirma Gurvitch, pelo estadismo individualista do século XIX. Ela centrípetas, enquanto que o direito individual traduz a direção para a
multiplicidade, isto é, as tendências centrífugas" 216. As convenções cole
tivas de trabalho, por exemplo, são a expressão do direito social gerado
212 Entre os fatos normativos, há aqueles que são organizados e aqueles que não
de maneira espontânea pelos agrupamentos particulares dos assalaria
são. Estes últimos possuem, de qualquer forma, segundo o autor, "a capacidade virtual de
se organizar, de se dar uma regulamentação fIxa, de se envolver, por assim dizer, por uma
esfera signifIcativa direta"; serão assim excluídas as "comunidades de amor e de
214 G. Gurvitch, L'expérience juridique et Ia philosophie pluraliste du droit,
amizade", que não podem se organizar e são, assim, "estéreis de direito"; in G. Gurvitch,
L'expérience juridique et Ia philosophie pluraliste du droit, Pedone, 1935, p. 72. op. cit., p. 75.
213 J.-G. Belley, "Georges Gurvitch et les professionnels de Ia pensée 215 G. Gurvitch, L'idée du droit social, op. cit., p. 14-5.

juridique': Droit et société, n° 4,1986,358. G. Gurvitch, L'expérience...,op. cit., p. 69. 216 A. Garapon, "L'idée du droit social: Georges Gurvitch", in Laforce du droit,

dir. P. Bouretz, 1991, p. 218.

.1
326 327
HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO As TEORIAS ANTIFORMALlSTAS

dos e dos patrões e que, como direito de integração, triunfa sobre o esse processo parece em princípio afetar o conjunto de foros jurídicos
estadismo individual liberal. Podemos mesmo considerar que a luta entre que constituem as comunidades. É nesse sentido que o direito social qua-
os dois agrupamentos, patronal e operário, manifesta além de um lificado pelo sociólogo como direito de fusão parcial ou de
simples conflito entre duas ordens jurídicas espontâneas, um conflito interpenetração encontra sua significação plena. A organização do
entre duas visões divergentes da justiça conhecidas, observa ele, pela Estado, por exemplo, não se apresentava na origem sob a configuração que
oposição entre o "direito proletário" e o "direito burguês" 217. O conhecemos, ou seja, como uma entidade multifuncional política sobretudo, mas
mesmo vale para outros agrupamentos particulares - as diversas também econômica e social. Ela não era, na origem, senão uma "comunidade
associações, as cooperativas de produtores e de consumidores - que, política subjacente não organizada [...] funcional, cuja função precisa é
antes de serem integrados no direito estatal, podem ser considerados manter a territorialidade e a vizinhança" 22°. O Estado, sob a forma de
como manifestações de uma ordem de direito espontânea que preconiza o um "bloco dos agrupamentos de localidade" e apoiado nos princípios de
estabelecimento de uma nova ordem de justiça. Uma vez que toda coletividade manutenção territorial e do constrangimento incondicional exercido
se baseia necessariamente nos dois tipos de direito, ela organiza em seu seio o sobre os indivíduos - cujos laços refletiam unicamente o fato de perten-
"combate entre a coordenação e a integração" e atinge através dessa dinâmica o cerem a um espaço comum -, conseguiu apesar de tudo adquirir a sobe-
equilíbrio que assegura sua ordem interna. Georges Gurvitch prolonga aqui as rania política, isto é, o monopólio do constrangimento 221. Nesse período
teses de seu predecessor, Eugene Ehrlich, segundo o qual "o direito vivo" de toda de transição que é a passagem para o século XX, a ordem jurídica do Estado
comunidade, distinto das "normas de de cisão" estatais, realiza exatamente a adquiriu, ele admite, funções suplementares, sociais e econômicas, que lhe eram
mesma função 218. até então desconhecidas (Estado-providência).
Não obstante, os grupos particulares - um sindicato profissional, por Todavia, além dessa esfera propriamente política, além ainda das funções
exemplo - sentem a necessidade, segundo Gurvitch, de se expandir e sociais e econômicas do Estado, o direito social dos grupos de atividade
de se integrarem um "todo mais amplo': compartilhando com este um econômica, dos agrupamentos religiosos, da comunidade internacional
"interesse comum" e continuando a exercer a mesma função que permanecem, senão independentes, pelo menos relativamente autônomos em
anteriormente, mas em uma escala mais global219. Essas comunidades - relação à ordem jurídica do Estado. Essa consta
atualmente, podemos citar os sindicatos europeus nos quais se reagrupam tação, feita por Georges Gurvitch, atinge toda a sua extensão diante da autonomia
os sindicatos nacionais, tendo uma função bem determinada - também difícil de controlar de que são prova atualmente os grandes grupos econômicos.
sentem, em sua experiência jurídica, a necessidade de se integrar em entidades Da mesma constatação, em outras palavras, resul tam os estudos recentes 222

ainda mais vastas - os sindicatos mundiais, por exemplo. Seja qual for a natureza relativos aos agrupamentos econômicos
funcional da comunidade - econômica, religiosa, social-,

220 Idem, op. cit., p. 147.


Cf. a este respeito J.-G. Belley, Georges Gurvitch et les professionnels
221

217 G. Gurvitch, 1'expérience juridique..., op. cit., p. 78. de Ia


218 Ver supra. pensée juridique, op. cit., p. 365.
219 G. Gurvitch, 1'expérience juridique et Ia phiIosophie pluraliste du droit, m Jean-Philippe Robé, L'entreprise et Ie droit, PUF, co1. Que sais-je?, 1999; o
op. cit., p. 79. autor prolonga principalmente as teses de M. Despax, L' entreprise et Ie droit, tese, 1956.

1
328
HISTÚRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO As TEORIAS ANTIFORMALlSTAS 329

mundiais, como as grandes empresas que, do ponto de vista da ordel11 rídica - ora ao direito da Igreja, ora ao direito da família, ora ao direito do
jurídica estatal, não existem. As empresas não constituem, para a ordel11 Estado, ora ao direito dos agrupamentos econômicos; essas comunidades
jurídica do Estado, unidades (organizacionais), pois não dispõem de per compartilham entre si o exercício de múltiplas funções: essa éa soberania
social. A hierarquia criada assim espontaneamente nos dásociedades
sonalidade jurídica. Elas existem sob a forma jurídica de sociedades que
diferentes umas das outras (sociedades teocráticas, patriarcais, sociedades
exercem, no seio de vários territórios estatais, suas diversas atividades do capitalismo organizado, sociedades de base tecnoburocrática).
econômicas fundadas na liberdade contratual e nos direitos de proprie Como se deve pensar, de um ponto de vista de organização demo-
dade que lhes são próprios, e tomam suas decisões conforme os proce crática da sociedade, a hierarquia dos ordenamentos jurídicos, produto
dimentos estabelecidos pelo direito estatal concernente (direito das espontâneo no seio da sociedade global? Como se deve pensar a questão
da justiça? Essas são as duas questões que Georges Gurvitch se coloca
sociedades). As normas de regulação estatais adotadas com respeito às
para terminar. A justiça, afirma ele, não pode ser pensada em termos de
repercussões econômicas e sociais (licenciamentos massivos, poluição)
interesse geral que supostamente o Estado deveria perseguir. O interesse
causadas pelas atividades desses agrupamentos econômicos não chegam
geral, mais precisamente sob a forma de "interesse idêntico de todos os
a contê-Ios de maneira eficaz: ora essas normas afetam apenas uma parte indivíduos e de todos os grupos': não existe. A justiça não pode ser pen-
desse grupo de sociedades (uma de suas filiais, por exemplo, espalhadas sada fora dos termos de um equilíbrio dos interesses contrários. O
no espaço econômico mundial), ora elas são facilmente desmanchadas sociólogo, seguindo as reflexões proudhonianas sobre a dialética das
pelas suas empresas (deslocamento) 223. Diante do desafio da globalização antinomias imanentes no seio da sociedade, impróprias para serem
da economia, a ordem jurídica do Estado parece impotente, enquanto transpostas por sua inclusão em uma entidade superior que opere sua
que esses agrupamentos econômicos se tornam "soberanos': Se consi síntese, como era o Estado em Hegel, coloca em primeiro lugar o
derarmos o Estado como detentor do monopólio de produção de direito, princípio democrático, nestes termos: "o princípio democrático procura
"somente confundindo': explica Gurvitch, "a soberania política (que encontrar o equilíbrio no conflito perpétuo, na tensão que opõe o
não passa de um monopólio da coação incondicional pelo Estado) com organizado e o espontâneo de um grupo; ele se propõe a garantir a
abertura da superestrutura organizada com relação à influência da
a soberania jurídica por um lado (que aparece sempre na sociedade glo
comunidade espontânea subjacente; ele garante a infiltração do direito
bal), e com a soberania social por outro (que é dividida entre os agrupa
não organizado no direito organizado" 225. Diante do caráter
mentos econômicos, o Estado, as classes sociais, a sociedade global e os
multifuncional que o Estado acabou por alcançar, a hierarquia dos
diferentes agrupamentos internacionais) é que se pode acreditar que o
ordenamentos jurídicos não pode ser pensada senão inserindo a ordem
Estado decide na hierarquia das múltiplas ordens do direito que lutam jurídica estatal em uma ordem jurídica suprafuncional,
e se equilibram em uma nação" 224. É então o sistema de direito espon
tâneo223daJ.-P.
sociedade global que atribui uma primazia - é a soberania ju
Robé, op. cit., principalmente p. 34-5, 85-92, 100. Do mesmo
autOr, L'ordre juridique de l'enterprise, Droits, v. 25,1997.
225 G. Gurvitch, L'expérience juridique..., op. cit., p. 135. As palavras em itá lico

224 G. Gurvitch, Problemes de sociologie de droit, op. cit., p. 195-6. As são do autor. Sobre a dialética, G. Gurvitch, Dialectique et sociologie, ed.

.l
palavras Flammarion, 1962, p. 127-53 e 245-83.
em itálico são do autor.
330 331
HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO As TEORIAS ANTIFORMALlSTAS

isto é, a ordem jurídica internacional que por sua vez também exerce vá É a partir de 1906 que Maurice Hauriou contempla o
rias funções - econômica, política, social 226. desenvolvi
mento de uma teoria completa da instituição, da qual o primeiro
enfoque nos é dado em seu artigo intitulado "A instituição e o direito
5.3.6 A teoria institucionalista do direito de Maurice Hauriou estatutário", naquele ano. Ela será retomada e revista em seus
escritos
Evoca-se freqüentemente, quando se expõe a teoria institucional
posteriores, embora em substância a idéia permaneça a mesma:
de Maurice Hauriou, sua oposição à teoria sociológica e objetivista de seu
"Uma
contemporâneo Léon Duguit. Uma verdadeira polêmica de fato se
desenvolveu entre o decano da faculdade de Toulouse, Maurice Hauriou, organização social", escreve ele, "torna-se durável, ou seja, conserva sua
e o decano da faculdade de direito de Bordeaux, Léon Duguit. Mas essa forma específica, a despeito das renovações continuadas da matéria
querela não deve ocultar a autêntica estima que eles tinham um pelo humana que ela comporta, quando ela é instituída, quer dizer, quan
outro. Também se evoca freqüentemente, sobre a teoria institucional de do, por um lado, a idéia diretriz que está nela desde o momento de sua
M. Hauriou, o caráter interdisciplinar de sua doutrina, marcada por fundação pode subordinar o poder do governante, graças a equilíbrios
influências filosóficas muito diversificadas que vão de PIa tão e São To- entre os órgãos e o poder, e quando, por outro lado, este sistema de
más a Bergson. Maurice Hauriou definia-se "como um positivista idéias e de equilíbrios de poderes se torna consagrado em sua forma,
comtista que vai utilizar o conteúdo social moral e jurídico do dogma pelo consentimento dos membros da instituição e também do meio
católico" 227. Suas análises exprimem a vontade de estar em contato per- social"228. Esses são os três elementos da instituição que já evocamos.
manente com a realidade social e positiva, mesmo que ele faça muitas A idéia diretriz em primeiro lugar, ou, como ele diz em outra passa
vezes referência a São Tomás ou ao direito natural clássico. Considera- gem, a "idéia da obra a realizar", comporta em si mesma um elemento
mos aqui que o duro cerne dessa doutrina consiste no fato de que ela estático, a idéia, e um elemento dinâmico, a obra a realizar pela ação. A
tenta tornar compatíveis as antinomias que já evocamos: direito positivo idéia-ação representa a dinâmica interna da instituição 229. A organi-
do Estado/direito da sociedade, vontade do legislador/fato social, direitos zação do poder baseia-se em seguida, segundo ele, na separação dos
subjetivos/direitos objetivos de interdependência social. Não se trata de órgãos e das competências, porque somente quando os poderes são
suprimir um dos dois termos dessas antinomias, como fez Duguit, mas separados, como dizia Montesquieu, e controlados mutuamente é que o
de oferecer um espaço em que todos os termos do debate, incluindo os despotismo pode ser evitado. Ressaltemos aqui que, desde o início,
mais conflituosos, poderão confrontar-se. Esse espaço recebe o nome de Maurice Hauriou concebe a instituição como uma organização social
instituição corporativa. isenta de dominação. É isso que exprime, aliás, o terceiro elemento da
definição, já que o exercício desse poder está ligado a sua legitimidade: a
idéia a serviço da qual o poder se coloca bem como a realização dessa
idéia devem obter um consentimento por parte dos membros da insti-
226 Idem, op. cit., p. 149-50.
M. Hauriou, Principes de droit publique, 2. ed., cito por G. Marty, "La
227
tuição228e M.
do Hauriou,
meio social.
Précis de droit constitutionne/, Sirey, 2. ed., 1929, p. 73. 229
théorie de l'institution", in La pensée du doyen M. Hauriou et son influence, Journées I
D. Salas, "Droit et institution: Léon Duguit et Maurice Hauriou", in
Hauriou Toulouse 1968, Pedone, 1969, p. 42. La

~
I

force du droit, op. cit., p. 206.


332 333
HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO As TEORIAS ANTIFORMALlSTAS

A instituição, escrevia Maurice Hauriou desde 1906, "constitui aS linhas gerais de sua organização" 232. O direito estatutário do Estado,
por afirma ele, comporta os direitos dos indivíduos em relação ao Estado, da
si mesma um estado de direito" 23°, porque estar dentro de uma mesma maneira que o estatuto das sociedades ou das associações
institui comporta os direitos do acionista ou do associado em relação à socie-
ção é desde já se implicar em uma situação de direito. A instituição dade ou à associação; esse tipo de direito estabelece também os proce-
gera dimentos relativos à tomada de decisões, fixa os órgãos e suas
mais precisamente regras de direito que não são unicamente competências, seja no seio do Estado (a Constituição) ou no interior de
oriundas da autonomia de uma vontade legisladora, como concebia a outra instituição qualquer (os regulamentos internos). O direito
doutrina liberal subjetivista que criticava Léon Duguit, porque a vontade estatutário "representa o interesse individual dos membros da institui-
está submetida à preservação de uma "idéia diretriz"; mas essas regras de ção", uma vez que estabelece as condições de exercício do poder e, nesse
direito não serão mais unicamente o produto das regras sociais (a sentido, oferece garantias que asseguram a liberdade dos membros das
instituições. Este estado de direito que representa, aos seus olhos, toda
regra
instituição é então pensado pelo autor à imagem do Estado de direito
de solidariedade) como concebia Duguit, porque não são regras que
moderno, que comporta a separação dos poderes, as garantias das li-
criam as instituições, mas as instituições que engendram as regras de
berdades individuais e o regime representativo. Os dois tipos de direi
direito. A regra precisa de uma sanção e ela deve ser emitida por uma
to, acrescenta ele, "equilibram-se um com o outro, e este equilíbrio dos
autoridade.
direitos é um elemento de equilíbrio total das forças que sustentam a
"A instituição" - escreve ele em 1907 na sexta edição de seu
Précis de droit administratif - "pertence ao direito de duas maneiras: em
instituição" 233.
A análise institucional de M. Hauriou visa então tanto à instituição
primeiro lugar, porque é nela e por ela que se produz a transformação
do Estado quanto às outras instituições, públicas ou privadas, que
dos estados de fato em estados de direito; em seguida, porque ela é a
segregam os dois tipos de direitos evocados. Ele se opõe, por essas refle-
fonte das duas formas de direito, o direito disciplinar e o direito
xões, à tese da teoria jurídica dominante, uma vez que a origem e a cria-
estatutário"231. Pelo direito disciplinar, a instituição decide, ordena e
ção das instituições (e isto vale para todas as instituições, o Estado, a
reprime; a disciplina, tão necessária à preservação da ordem interna,
sociedade anônima, a associação) não devem ser pensadas em todo caso
corresponde ao con
unicamente através da figura do contrato que constitui um ato de von
junto das obrigações às quais estão submetidos todos os membros da
tade e, portanto, um ato subjetivo, mas através da realidade objetiva que
instituição e "representa o interesse do grupo". É assim o direito do Es-
constitui uma instituição. E a "situação jurídica" constituída por essa
tado, mas também o direito disciplinar que se encontra nos estabeleci
realidade não se esgota no conjunto dos direitos subjetivos das pessoas;
mentos coletivos. O direito estatutário fixa, em contrapartida, o estatuto
pelo contrário, estas são submetidas à realização de uma obra em função
dos órgãos e dos outros membros da instituição, as competências de uns
e os direitos de La
230 G. Marty, outros,
théorieporque a "disciplina
de l'institution, op. cit., é
p. um
34. poder contra o qual são
necessárias garantias
M. Hauriou,
231 Précis deedroit
que tem necessidade
administratif degénéral,
et de droit public uma Paris,
definição, assim
Larose et Tenin, 1907,
como precisam § 3, citadoospor
ser definidos F. Rovillois,
objetivos gerais Ledadroit. Textes choisis,
instituição e 232 Idem, op. cito
Corpus Flammarion, p. 96.
233 Idem, op. cito
334 335
As TEORIAS ANTIFORMALlSTAS
HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO

da qual serão determinados justamente seus direitos e suas obrigações do liberalismo), e também realizar ajustiça (moderação dos valores li-

respectivas. Mesmo o estatuto de instituições como uma associação Ou


berais pelo princípio de solidariedade). O objeto da justiça, escreve ele, é

uma sociedade anônima, afirma ele, "não se remete completamente ao


o aequum e o bonum, isto é, explica ele, o estabelecimento de uma
contrato, (mas) este estatuto se desprende progressivamente das insti igual
tuições vivas [...] nos usos que se estabelecem pelo seu funcionamen dade proporcional ao usufruto do bem. E o bem que merece, a seus

to': De maneira mais geral, afirma ele, os estatutos das instituições, uma
olhos,

vez estabelecidos, podem igualmente ser modificados pelas assembléias


a maior proteção é certamente o usufruto da liberdade individual: por
deliberantes das instituições (o parlamento, os conselhos de adminis
um lado, uma proteção da liberdade política que se traduz pela partici
tração das empresas), mas também pelas práticas internas às institui pação do cidadão no exercício do poder governamental; por outro lado,
ções, isto é, os usos concretos dos "estatutos escritos", as práticas uma proteção da liberdade econômica que se traduz pelo livre exercí
costumeiras e, para se referir às instituições estatais, as práticas gover cio do direito de propriedade e do "comércio jurídico" pronto a corri
namentais, constitucionais e as jurisprudências discricionárias. Essas gir os excessos de seu serviço. O Estado terá deveres frente à sociedade
práticas são igualmente fontes de direito. A concepção institucionalista assim como frente às múltiplas instituições que o compõem. Maurice
de Maurice Hauriou vai de encontro às teses subjetivistas, incluindo as Hauriou faz do Estado o fiador último de seu funcionamento. Já em
positivistas, que colocam a autonomia da vontade legisladora na fonte 1907, no prefácio de seu Précis administratif, ele escrevia:
do direito: a regra de direito não pode se identificar com a regra codifi "Assim, che
cada. Mas ela se opõe também a todos aqueles que, como Duguit, sus- gou o momento de considerar o Estado não mais como uma soberania,
tentam os princípios de uma sociologia da solidariedade e não mais como uma lei, mas como uma instituição das instituições"236.
denunciam Diante das múltiplas instituições privadas ou públicas intermediárias
5.3.7 O ínstítucionalísmo de Santí Romano
o Estado como excesso de poder. Se estes últimos, mais precisamente, entre o indivíduo e o Estado, este último vela por todas as instituições
propõem "socializar o Estado" e, nesse sentido, redistribuir os poderes que compõem a sociedadedoedireito
A teoria institucional corrigedeseus
Santiexcessos
Romano eventuais
(1857-1947)
237.

para a sociedade de solidariedade, permitindo-lhe se opor a tudo o toma corpo e substância em sua obra fundamental L' ordinamento
que giuridico, cuja primeira edição data de 1918238. Ela se situa
possa ser nocivo à idéia de solidariedade 234, a teoria da instituição coloca explicitamente fora dos campos filosófico e sociológico, embora as
nas mãos do Estado somente a autoridade e designa-lhe o dever de doutrinas de Gierke,
manter os princípios de justiça já consagrados tanto pela sua
duração 236 M. Hauriou, Précis de droit administratif et de droit public général, 1907. 237 No
quanto pela aprovação do meio social 235. A teoria da instituição propõe prolongamento do pensamento de M. Hauriou, encontram-se as
não apenas os princípios de solidariedade, mas também os princípios do obras de tendências muito diversas de G. Renard, La théorie de l'institution et Ia
liberalismo individualista, e traduz o cuidado por parte do decano technique juridique, 1930; J.- T. Delos, La théorie de l'institution, A. P. D. , 1931; Le
Hauriou desupra
Ver
234 atingir
sobreo Léon
equilíbrio J. princípios antinômicos: preservar o
Duguit.entre
235
Fur, Les grands problemes du droit, 1937.
que está estabelecido
Donzelot, e com isso manter a ordem (valores
op. cit., p. 104. S. Romano, L'ordre juridique, Dalloz,
238

1
1975.
337
As TEORIAS ANTIFORMALlSTAS
336 HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO

sos, é O fato desta organização que implica relações, que as torna possí
na Alemanha, e a de Maurice Hauriou, na França, não deixem de eXercer
sua influência sobre ele. Um certo número de críticas que lhe foram veis, não o inverso 241. A organização deve, em seguida, constituir uma
dirigidas, incluindo as mais recentes como aquela formulada pela teoria unidade estável e permanente e, nesse sentido, sua identidade não é aba
neo-institucionalista de Ota Weinberger e de Neil MacCormick, cen-
lada pelas mutações que ocorrem em um dos elementos que a constituem
suram muitas vezes o caráter pouco claro e às vezes mesmo tautológico
dos conceitos que ele emprega 239. Todavia, é preciso fazer justiça à (as pessoas, o patrimônio ou suas regras). Em outras palavras, a ordem
incontestável originalidade da doutrina de Santi Romano, que soube interna dessa organização "oferece uma aquisição de personificação" e lhe
desenvolver-se em uma época em que os enfoques sociológicos do di-
reito estavam quase totalmente ausentes na Itália e quando Kelsen estava permite apresentar-se como uma individualidade com vontade própria 242.
a ponto de forjar sua concepção normativista. Uma organização que possui todas essas características constitui uma
O direito, afirmava Santi Romano, não se reduz a um conjunto de instituição, isto é, escreve ele, uma ordem jurídica. "Toda ordem jurídica
normas, mas estas se inscrevem antes em uma ordem jurídica, isto é, em
é
uma organização em que as normas "representam antes o objeto e até o
instrumento de sua ação do que um elemento de sua estrutura uma instituição e, inversamente, toda instituição é uma ordem jurídica:
[...]: o direito, antes de ser norma, antes de traçar uma ou várias relações há entre os dois conceitos uma equação necessária e absoluta."243
sociais", escreve ele, "é um pouco mais que isso, é organização, es- Desde a publicação de L ordinamento giuridico, a doutrina
trutura, atitude da própria sociedade na qual ele está em vigor e que por positivista considerou que essa definição constitui uma tautologia e que
ele se erige em uma unidade, em um ser existente por si mesmo" 24°.
os elemen
Essa organização deve, para ser mais preciso, possuir algumas
tos da instituição - seu caráter objetivo e unitário - fornecidos por
características fundamentais. Em primeiro lugar, ela deve constituir uma
entidade objetiva, ou seja, efetiva, real, engendrando em seu seio uma Santi
certa ordem que não se reduz a certos tipos de relações estabelecidas Romano não permitem identificar com precisão uma instituição, ou
entre as melhor, uma ordem jurídica 244. Um dos três elementos que compõem
pessoas; podem ser relações de igualdade ou de desigualdade, relações de a noção de instituição em M. Hauriou é justamente aquele da organi
dominação, relações ligadas a uma forma personalizada de poder ou, ao
zação do poder assentada sobre o princípio da separação dos poderes.
contrário, a uma forma legal de poder. Ela não se reduz também às rela-
ções estabelecidas entre as pessoas e as coisas; pode ser que estas Georges Gurvitch, 25 anos mais tarde, qualifica como comunidade or
relações sejam fundadas sobre a propriedade privada ou coletivista, sobre ganizada aquela que é dotada de uma "regulamentação fixa". Critérios
241 Idem, p. 48-56.
o dominius do monarca em um Estado patrimonial, mas, em todos os ca desse tipo estão de
242 Ibidem, op.fato
cit.,ausentes
p. 58. Ena teoria
isto institucionalista
é independente italiana.
do fato de esta
Não obstante, se em seu "predecessor" francês M. Hauriou o poder
organização
239 O. Weinberger, "Les théories institutionnalistes du droit': in Controverses
inscrito
dispor emdeuma
ou não instituiçãojurídica.
personalidade está na origem do direito, Santi Romano se
autourde l'ontologie du droit, (dir.) P.Amselek e C. Grzegorczyk, PUF, 1989, p. 74. afasta243desse esquema
Idem, op. cit., p. 19.e faz da instituição um poder em si, até porque
240 S. Romano, L'ordre juridique, op. cit., p. 10.
244 Ver as críticas citadas pelo autor na segunda edição de sua obra, idem, a
op. instituição
cit., p. 30. pode engendrar em seu seio toda forma de poder (democrá
1
338 339
HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO As TEORIAS ANTIFORMALlSTAS

tico, despótico, carismático, patriarcal etc.) e permite toda forma de pro- A constatação da pluralidade das ordens jurídicas tem como
dução normativa, enquanto que a instituição em seu homólogo &ancês é con
concebida à imagem do Estado de direito moderno, excluindo formas seqüência que a ordem jurídica estatal não pode pretender à
personalizadas de poder e produções normativas fundadas sobre o arbi- exclusivi
trário. A instituição adquire assim uma significação e um alcance mais dade, não mais que qualquer outra ordem jurídica. Entre duas
amplo do que o que lhe havia dado Maurice Hauriou. A instituição não ordens
constitui, escreve ele contrariando o último, uma fonte de direito, pela jurídicas bem distintas, a ordem jurídica estatal e a ordem jurídica da
única razão de que a instituição é o próprio direito, isto é, a ordem jurí- Igreja, por exemplo, há assuntos que dizem respeito unicamente a uma
dica no seio da qual as matérias a que se referem suas prescrições, Sua das duas ordens: as matérias espirituais são em princípio irreIevantes
autoridade, sua coercibilidade, sua força podem ser tanto econômicas para a ordem jurídica estatal. O poder normativo da Igreja em matéria
quanto sociais ou morais. O direito é uma "forma (e) sua existência e seu espiritual e disciplinar não vem do Estado, escreve ele, mas lhe é próprio
conteúdo são independentes de seu conteúdo material" 245. Dessa desde a origem, porque a ordem da Igreja era jurídica antes mes mo que
maneira, a comunidade internacional, o Estado, a Igreja, as escolas, os sua autonomia fosse explicitamente reconhecida pelo Estado 247.
estabelecimentos públicos ou privados, a família, as associações e qual- Às vezes, situações de fato dizem respeito às duas ordens jurídicas, mas
quer outra instituição que não seja reconhecida pelo Estado - que não elas recebem então uma qualificação jurídica diferente. Se o Estado na
obteve do Estado a personalidade jurídica -, inclusive aquelas declaradas Itália pôs fim à obrigação de pagar o dízimo, assim mesmo este conti
ilícitas pelo Estado, constituem, segundo ele, ordens jurídicas. A ilus- nua a constituir, segundo o direito eclesiástico, uma obrigação imposta
tração perfeita da teoria institucional italiana nos é fornecida pela ordem aos fiéis, e não um simples dever moral. Seu pagamento pode ser qua-
interna da empresa que evocamos anteriormente. A empresa não pode lificado como doação ou obrigação natural pela ordem jurídica do Es-
reduzir-se ao grupo de sociedades que a compõem - a sociedade-mãe e tado, mas esta qualificação não corresponde àquela dada pelo direito da
suas filiais que lhe servem de suporte jurídico 246. Não dispondo da Igreja. Acontece o mesmo com as decisões de uma sociedade, que
personalidade moral, a empresa não dá nascimento a uma nova pessoa constituem intrinsecamente decisões da empresa da qual essa sociedade
autônoma independente do grupo de sociedades. De qualquer forma, ela faz parte, enquanto que, do ponto de vista de uma ordem jurídica estatal,
constitui nos fatos uma unidade organizacional: suas decisões internas trata-se unicamente de decisões da dita sociedade tomadas confor
que, vistas do exterior, parecem decisões de uma de suas sociedades, são me ou, ao contrário, em oposição ao direito estatal estabelecido. Em
de fato decisões tomadas pela empresa, ou seja, por aqueles que contro- suma, a relevância (rilevanza) ou, inversamente, a irrelevância de uma
lam em definitivo a sociedade-mãe. ordem jurídica com respeito à ordem jurídica do Estado é, no seio de sua
teoria institucional, o conceito-chave segundo o qual se apreciam as
relações que essas ordens jurídicas mantêm com o Estado: relações de
independência, de coordenação ou de subordinação 248. Conseqüen-
245 Idem, p. 32. temente, conclui ele, está errado o princípio segundo o qual uma ação ou
246 A sociedade é definida como um contrato. Cf. supra, J.- P. Robé, L' é imposta pela
247 Idem, op.ordem jurídica do Estado, ou é interdita ou, enfim,
cit., p. 84.248

entreprise Idem, op. cit., p. 106.


et le droit, op. cit., p. 31-7.
1
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HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO As TEORIAS ANTIFORMALlSTAS

entra na esfera da liberdade e por isso é permitida, porque "nenhuma podem ser compreendidas nem por si mesmas nem pela suposta evo
outra ordem teve jamais a pretensão de submeter todos os comporta- lução geral do espírito humano, mas ao contrário, elas tomam suas raízes
mentos dos indivíduos, cada uma limitando-se àqueles que interessam a nas condições materiais de existência das quais Hegel compreende o con
seus fins" 249. Assim, o que é permitido por uma ordem jurídica junto [...] sob o nome de 'sociedade civil', e que a anatomia da socieda
pode evidentemente ser proibido por outra. de civil deve ser procurada por sua vez na economia política. [...] O
Giovanni Tarello, teórico realista do direito, denuncia em Santi resultado a que cheguei pode ser brevemente formulado assim: na pro-
Romano o panjuridismo de sua teoria 25°. De acordo com a dução social de sua existência, os homens entram em relações determi-
concepção de S. Romano, observa, nenhuma manifestação da vida social nadas, necessárias, independentes de sua vontade, relações de produção
pode ser qualificada como pré-jurídica ou extrajurídica. Desse ponto de que correspondem a um grau determinado de suas forças materiais
vista, prossegue ele, sua teoria institucional se aproxima da concepção produtivas. O conjunto dessas relações de produção constitui a estru
normativista kelseniana, para a qual nada escapa ao direito: todo ato ou é tura econômica da sociedade, a base concreta sobre a qual se eleva uma
permitido ou é proibido. Também é esse, acrescenta ele, o aspecto mais superestrutura jurídica e política e à qual correspondem as formas de
ideológico da teoria, uma vez que os conflitos políticos e sociais são consciência social determinada. O modo de produção da vida material
mascarados por serem considerados conflitos jurídicos entre ordens condiciona o processo de vida social, político e intelectual em geraL Não
jurídicas, cuja coerência e unidade podem, apesar de tudo, ser assegu- é a consciência dos homens que determina seu ser; é inversamente seu
radas. Em suma, conclui ele, pode-se constatar um certo paralelismo ser social que determina sua consciência"251. Essa famosa passagem,
entre o formalismo da teoria kelseniana e o formalismo da teoria insti- tão freqüentem ente citada e comentada, produziu interpretações muito
tucional de Santi Romano. Com efeito, em Romano o jurídico repre- diversas entre as quais figuram principalmente aquelas que quiseram
senta um universal formal que contém a matéria tanto do político quanto salvar o pensamento marxista de toda "simplificação". Marx não escreveu
do social, assim como em Kelsen o Sollen (dever-ser), embora radical- apenas, dizia-se então, que a estrutura econômica da sociedade é o fator
mente separado do Sein (ser), pode a qualquer momento assenhorearse de terminante da produção social, mas também que o conjunto dos
de todos os aspectos deste (econômico, social ou político). fenômenos sociais e as instituições que são sua concretização constituem
uma totalidade organizada e estruturada. A estrutura dessa totalidade
5.4 As teorias marxistas do direito social se refere tanto às condições materiais de produção e
distribuição de riquezas quanto às condições de produção política, ju-
"Minhas pesquisas'~ escrevia Karl Marx, "chegaram ao resultado de rídica e ideológica 252. A última condição determina a configuração po-
que as relações jurídicas - assim como as formas de Estado - não lítico-jurídica de uma sociedade, ou seja, os tipos de instituição existentes
e sua configuração ideológica, isto é, as representações e as explicações

249 Idem, op. cit., p. 152.


G. TarelIo, "'Sistema Giuridico', 'Ordinamento Giuridico',
250 251 K. Marx, Contribution à Ia critique de l'économie politique, 1859, Paris,

1
Lezioni", in Giard, 1928, p. 4.
Introduzione teorica allo studio deI diritto, dir. S. Castignone, R. Guastini, G. TarelIo, 252 L. Althusser, in Lire le Capital, t. 1, Maspero, 1965.
Genova, 1979,p. 113.
I
343
342 HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO As TEORIAS ANTIFORMALlSTAS

A questão de saber se é possível uma análise marxista do direito


que os indivíduos se dão quanto a seu lugar na sociedade. A metáfora
e de qualquer outro fenômeno social- que não permita ser tachada
dos três níveis utilizada por Marx - o nível econômico sendo a base dos
outros dois níveis, que são a superestrutura daquele - não deve ser to- de
mada, segundo essa interpretação, "ao pé da letra" 253, porque as três economista ou de simplista certamente permanecerá aberta nos limites
instâncias se beneficiam de uma certa autonomia uma em relação à deste trabalho. Mas ao menos podemos, baseados no que precede, distinguir os
outra. Não basta considerar que a base, o modo escolhido de produção dois momentos que o marxismo soviético conheceu: o primeiro, que vai de 1918
econômica, determina os outros dois ou, o que dá no mesmo, que a a 1936, é mais orientado para a infraestrutura da vida social, ou seja, a base
superestrutura é o simples reflexo da base porque cada instância engen- econômica. A escola de Pasukanis, seguindo as teses de Karl Marx e de
dra as próprias condições de produção e de reprodução e participa, com Engels, examina as analogias entre o pro
seus próprios mecanismos e suas próprias instituições, do funcionamen- cesso de produção econômica e o processo de produção político-
to global da sociedade. Não podemos ter uma idéia da "produção social" jurídica.
em sua totalidade se não tivermos em conta o agenciamento global das Pasukanis não se contenta com a afirmação de que o sistema de normas
três instâncias distintas em uma sociedade concreta. É portanto errônea jurídicas reflete os interesses da classe dominante, mas também tenta
a versão economista do marxismo, que remete o todo da produção social, explicar por que o direito toma a forma que conhecemos. O segundo
intelectual, ideológica, jurídica e política às condições materiais de produção, momento, representado pela escola de Vychinsky, segue a edição da
isto é, aos meios de produção (materiais, má quinas, usinas) e às relações constituição stalinista, em 1936, e representa o momento de adaptação da
existentes entre as forças de produção (a organização do trabalho teoria marxista do direito à realidade do Estado stalinista.
produtivo), como se as determinações ideológicas, políticas e jurídicas, Pasukanis foi o primeiro e certamente o mais importante teórico do
artísticas derivassem delas diretamente em uma relação de causa e efeito. Aliás, direito soviético. Ele retomou as análises de Marx relativas à circula
nessa versão do marxismo há lugar apenas para a ciência econômica; todas ção e à troca de mercadorias para esboçar, em A teoria geral do direito e
as outras ciências sociais se tornam automaticamente inúteis. É o marxismo, uma teoria crítica dos conceitos jurídicos "burgueses"
255. Segundo ele, da mesma maneira que a troca de mercadorias faz abstra
igualmente errônea a interpretação inversa do marxismo, chamada de
voluntarista, que tem, em contrapartida, superestimado as superestruturas ção das relações reais de produção, as categorias jurídicas "da ideologia
por considerar mais precisamente que as instituições políticas e jurídicas, burguesa" fazem igualmente abstração das determinações sociais reais
uma das três instâncias da estrutura social, sejam a expressão da das relações jurídicas. A propriedade primordial de uma mercadoria
vontade da classe dominante 254. consiste no fato de ela conter trabalho humano qualificável e
comensurável, cujo padrão universal, como para qualquer outra mer-
cadoria, é o dinheiro. Graças ao dinheiro, todo bem se torna
253 M. Miaille, Une introduction critique au droit (1976), Maspero, 1982, p. mensurável e comparável com qualquer outro bem, e isso sem
80; contrário às interpretações "economistas", cf. E. Balibar, "Sur les concepts ef. a crítica
255 relação comque Marx dirige às diversas Declarações de direitos (direitos
a quali
fondamentaux du matérialisme historique", in Lire le Capital, 1970, e também N. liberdades), in Question juive; segundo Marx, o homem é concebido como uma
Poulantzas, À propos de Ia théorie marxiste du droit, A. P. D., 1967. mônada isolada e um ser egoísta, concepção necessária para um modo capitalista
254 Sobre esse assunto, ver N. Poulantzas, À propos de Ia théorie marxiste du I de produção; cf. L. Ferry e A. Renaut, Philosophie politique, 3, PUF, 3. ed., 1922, p.

dmit"p. cito ~.
da de intrínseca da mercadoria e menos ainda com sua utilidade
(troca
344
HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO
de utilidade) na satisfação das necessidades. O dinheiro permite a acu As TEORIAS ANTIFORMALlSTAS 345

mulação do capital e conseqüentemente a realização do lucro. A


Eugene Pasukanis não deixou de denunciar a concepção de Hans
segunda propriedade da mercadoria tem a ver com sua Kelsen, cujo formalismo lógico-sistêmico o impede de ver que "o direito
capacidade de ser como conjunto de normas não é nada mais que uma abstração sem vida"
257.Seguindo as críticas dirigi das à concepção normativista, uma
trocada com outras mercadorias; esse processo de troca depende
verdadeira polêmica se engajou entre os dois teóricos do direito. Kelsen
da respondeu in extenso a essas críticas nos Archiv für Sozialwissenschajt und
vontade dos proprietários dos bens, com a única condição de que Sozialpolitik, em 1931. O autor da Teoria pura do direito censura
Pasukanis por querer criticar a ideologia jurídica burguesa pelos mesmos
esses
dualismos que essa ideologia preconiza, no caso os dualismos entre direitos
bens sejam apropriados e alienáveis. Ora, o conceito jurídico de subjetivos/direito objetivo e direito privado/direito público. Kelsen
sujeito também critica que, assim como a teoria liberal afirma a prioridade dos direitos
subjetivos sobre o direito público do Estado, com o segundo protegendo e
de direito - pessoa jurídica que possui direitos subjetivos -
garantindo os primeiros, a teoria de Pasukanis afirma a prioridade dos interesses
constitui pre privados e dos direitos subjetivos que o Estado, como ordem de constrangimento,
cisamente, segundo ele, o par conceitual da mercadoria: assim faz em seguida respeitar. Com efeito, escrevia Pasukanis, a obrigação não passa
como de um simples "reflexo do direito subjetivo" Considerando que todos os
258.

o processo de troca oculta, sob o mecanismo do preço das fenômenos jurídicos somente exprimem os interesses materiais privados,
o conceito de direito do fisósofo soviético acaba por conter unicamente o
mercadorias
direito privado. Nesse sentido, observa Kelsen, Pasukanis adere à ideo-
(seu valor), o processo real da produção, ou seja, o lucro que o proprietá logia burguesa, porque ela também considera que o verdadeiro direito é
rio dos meios de Produção tira da quantidade de trabalho efetivo justamente o direito privado. Essa crítica se junta à crítica geral dirigida
investida sobre o produto (teoria da mais valia), a categoria por Kelsen ao pensamento marxista que, segundo ele, cai em um
jurídica de sincretismo meto do lógico porque confunde o ser e o dever-ser. O
erro epistemológico desse pensamento consiste, segundo Kelsen, no fato
um sujeito de direito, que como qualquer outra pessoa dispõe da capa
de que a "base" econômica determinaria de maneira causal a "superestru-
cidade jurídica e dos direitos subjetivos (direito de propriedade e liber tura", o direito, o político e o ideológico. Ora, a causalidade, como cate-
dade contratual), oculta a desigualdade social que existe entre os goria do entendimento, aplica-se apenas ao ser, isto é, à natureza, e não
homens, embora estes sejam, segundo o direito, iguais. "É porque ao
mesmo tempo em que o produto de trabalho reveste as
propriedades
256 E. B. Pasukanis, Théarie générale du drait et le marxisme, 1924, trecho
da mercadoria e torna-se portador de valor, o homem se torna sujeito
reprod. em Le pasitivisme juridique, C Grzegorczyk, M. Troper, F. Idem, citado por C-Mo Herrera, ap. cit., p. 166.
jurídico e portador de direitos."256 As formas jurídicas, nesse caso aque 257
Michaud, ap. Idem, in C-Mo Herrera, ap. cit., p. 169.

1
258
las utilizadas no direito privado, "refletem" a realidade das relações so
cit., p. 102.
ciais relativas à troca de mercadorias. O teórico soviético, seguindo aqui
347
As TEORIAS ANTIFORMALlSTAS
346 HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO

correspondentes ao constrangimento do Estado e a serviço de todo o povo


ao social. Em contrapartida, todos os fenômenos sociais e, portanto
tanto a "base" quanto a "superestrutura" fazem parte, segundo Kelsen' do soviético. É precisamente esta última tese que será igualmente criticada
que é construído, ou seja, da ideologia e do normativo (Sollen). 259 ' por Kelsen, e será qualificada por ele como ficção ideológica por susten
Com a tese do desaparecimento do Estado e do direito que SUsten-
tava a escola de Pasukanis sendo desmenti da pelos fatos, a escola de tar, exatamente como "a ideologia burguesa" denunciada pelos marxis
Vychinsky retoma a teorização de seu predecessor. As condições histó- tas, que o direito protege e garante os interesses de todos os indivíduos e
ricas da década de 1930, a emergência da "teoria do envolvimento capi-
que ele é conforme a sua vontade.26O
talista" e o reforço do Estado soviético não permitiam mais sustentar que
o direito e o Estado pereceriam com a abolição da luta de classes. 6. OS TÓPICOS JURíDICOS
Pasukanis, que foi denunciado como um antimarxista por Vychinsky, a Para apreender a idéia de tópico jurídico, basta tomar como pon
exemplo de Stucka e Reisner, retomou, a partir de 1929, às suas primeiras
to de partida a noção aristotélica de tópico. Em seus Tópicos, o
posições teóricas relativas à teoria do enfraquecimento do Estado e do
direito. Mas apesar das autocríticas e mesmo tendo participado da filósofo
elaboração da constituição da União Soviética, Pasukanis foi considerado grego distingue dois tipos de silogismo. O primeiro diz respeito à de
um "inimigo do povo" e faleceu em 1936, em condições não elucidadas
monstração da verdade das proposições utilizadas no raciocínio,
oficialmente.
Daqui em diante, segundo as teses da escola de Vychinsky que são a enquan
nova ortodoxia marxista, o direito e o Estado não constituem unicamente to que o segundo pertence à dialética, à arte do diálogo que nos ensina
"formas burguesas". O direito é a expressão da vontade da classe domi- a buscar a solução de um problema específico quando as respostas e as
nante, que Vychinsky identifica, para o direito soviético, ao povo da soluções que podem ser levantadas são contraditórias. É uma técnica
URSS. Ao lado do Estado e do direito capitalista, existe um Estado e um
que nos permite partir das opiniões aceitas pelo senso comum e estabe
direito socialista. Se o Estado capitalista é a ditadura da burguesia, o
Estado originado pela revolução socialista realiza a ditadura do lecer as proposições que parecem abordar da forma mais persuasiva
proletariado, do qual Marx sustentava a necessidade, pelo menos por um possível o problema em questão. Cícero qualificava a dialética como
período transitório, na Crítica ao programa de Gotha. O "direito inventio ou ars inveniendi, porque ela consiste essencialmente em esta
socialista" será então considerado por Vychinsky não mais um belecer todas as primeiras proposições constitutivas de um topos (lu
instrumento de exploração a serviço de uma classe e, portanto, uma
gar, e também lugar-comum) sobre o qual serão fundadas em seguida
ditadura, mas um conjunto de normas
as formas dialógicas de raciocínio, com troca de argumentos, de opi
259 Cf sobre este assunto C-Mo Herrera, op. cit., p. 147. Este argumentO de I niões e260deH.pontos
Kelsen,de vista.
The Gian Battista
communiste theory Vico
oflaw,fez o elogio
citado do método
por C-Mo ~errera,.op.

Kelsen coloca, contudo, uma dificuldade: como pode ser perfeitamente compatí- Ii dialético
cit., 171.em oposição ao trechos
métodocríticos
cartesiano, quepor
parte de um primum
do p.di"ito,Ver também
d"do' os
,m L, pMUivi,m, dirigidos
juddiqu" Kelsen
,di"do à teona
p"' M. marxIsta
T<op", C.
verum, isto é, de uma proposição cuja verdade é incontestável, para de
v<l wm 'ua d,finição da.< ciênci" ,ooiai> wmo ""u,"i,"? Cf. iafra. V" H. ]{e""', \ ~:';
Sono/mau, uad Staat, l. ,d., 1920. ~,gO"'Yk' F. Miduut, op. cito
.
duzir as outras proposições resultantes. É o método dedutivo ou, segundo
outra denominação, o método axiomático.
348
É na década de 1950 HISTÚRIA
que seDA manifesta pela
FILOSOFIA DO primeira vez na metodo
DIREITO 349
As TEORIAS ANTIFORMALlSTAS

logia do direito a vontade de retomar ao método dialético. A obra de


Theodor Viehweg, publicada em 1953 sob o título de Topik und tópica confere à autoridade judiciária os meios necessários para enfrentar
dificuldades de aplicação/interpretação dos textos jurídicos.
Jurisprudenz, constitui uma reação ao positivismo legalista porque qUes
Inspiremo-nos aqui na problemática de F. MüIler relativa à con-
tiona o caráter exclusivamente dedutivo do raciocínio jurídico. As solu cretização da norma jurídica - e cuja amplitude dificilmente pode ser
ções jurídicas que podem ser dadas aos litígios não são todas dedutíveis apresentada nos limites deste texto - para nos indagarmos sobre o alcance
de textos jurídicos. Os textos jurídicos apresentam muitas vezes proble exato do método tópico. As reflexões de F. Müller juntam o que está no
mas de interpretação, lacunas ou antinomias que comprometem a coração do pensamento hermenêutico (Heidegger, Gadamer), do qual,
aliás, ele procura se distinguir advogando em favor de uma metodologia
aplicabilidade "mecanicista" do direito. Contra a idéia positivista de uma
estruturante do direito 262. Se os topoi apresentados pelos partidários
aplicação do direito "rígida e irrefletida': o método tópico propõe, para da tópica jurídica constituem pontos de vista ou mesmo argumentos que
quando a aplicação do direito for problemática, recorrer a lugares especí se podem utilizar por ocasião da "aplicação" do direito, não se deve de
ficos, isto é, a argumentos que nos permitam chegar a soluções qualquer forma perder de vista que todo conceito ou princípio jurídico,
portanto os próprios topoi jurídicos, não adquirem verdadeiramente
eqüitativas
sentido sem um contato permanente com a realidade dos fatos. O
e razoáveis. O método tópico não se opõe, como observa Chaün
emprego dos princípios jurídicos, das máximas e dos adágios, como
Perelman, aqueles que são designados pelos tópicos jurídicos, só seria realizado em
à idéia de um sistema do direito, mas sim à idéia de um sistema de função do problema concreto que é colocado diante de uma jurisdição, ou
direito melhor, em função da maneira com que se "problematiza" de um ponto
"fechado': Mais concretamente, Theodor Viehweg, e também o mais im de vista jurídico uma situação factual concreta. Todavia, verifica-se que
portante de seus sucessores, Gerhart Struck, puderam designar os lugares os pontos de vista jurídicos adotados para esquadrinhar uma situação
jurídicos aos quais se pode recorrer nos "casos difíceis': como dizem os factual qualquer, ou seja, a concatenação dos conceitos e das categorias
anglo-saxões (hard cases). Gerhart Struck, em sua obra publicada em jurídicas utilizados para a apreensão da situação, não se nutrem desses
1971 fatos de que estamos precisamente tratando. Da mesma forma que os
textos de normas jurídicas não param de se "transformar" ao contato com
e intitulada Topische Jurisprudenz, fez o catálogo dos tópicos (argumen
os fatos, não permitindo que sejam do
tos) jurídicos que se pode empregar. Eles podem assumir seja a forma de
princípios gerais de direito, seja a forma de simples máximas ou mesmo
de adágios. Seu número aumenta para 64 na obra de G. Struck, mas nós
mencionaremos aqui, a título indicativo, apenas alguns: a lei posterior 262 F. Müller quer ir além dos conceitos puramente hermenêuticos

derroga a lei anterior, o que é uma das técnicas de revogação implícita como os da "pré-compreensão" , da "interpretação dos textos jurídicos" ou mesmo da
"relação entre o todo e a parte", e designar para o direito, mais particularmente para o
das regras de direito; uma lei especial derroga uma regra geral; na dúvi direito constitucional, estas componentes que fazem a especificidade do campo jurídico
da, decidir-se-á em favor do acusado; cada indivíduo é presumido ino constitucional. F. Müller, Discours de Ia méthode juridique, Berlim, 1993, trad. fr. Olivier
cente; C.
não
261 Perelman,
se podeLogique juridique,
ser juiz em causaNouvelle rhétorique,
própria; op. cit.,
o direito p. 88. o que é
favorece Jouaujan, PUF, Léviathan, 1996, p. 41.
legítimo (no domínio da prova e da interpretação)
maneira, a
261. Dessa
.1
350 HISTORIA DA FILOSOFIA DO DIREITO

tados de um sentido fixo, os topoi jurídicos não poderiam escapar da


tlexibilidade desse mesmo processo. Alguns desses topoi deveriam ser
modificados ou mesmo abandonados em proveito de outros - argumentos
CApíTUlo B
ou princípios - criados ao longo do processo "de aplicação" do direito.
Com a reserva dessas últimas observações, podemos de qualquer forma
afirmar que o método tópico consegue tlexibilizar a rigidez de um
sistema de direito que se desejava "logicamente fechado" e torna-o um AS TEORIAS IDEALISTAS DO DIREITO
método complementar ao método "sistemático dedutivo" que preconiza o
positivismo legalista.263
Deve-se mencionar aqui a obra de Cha'im Perelman (1912-1984),
diretor do Centro Belga da Lógica Judiciária e crítico de uma lógica
jurídica não formal, em outras palavras, de uma lógica jurídica que não
seja exclusivamente dedutiva. No raciocínio judiciário, observava ele,
tudo se opera no nível da escolha das premissas do raciocínio, que devem
ser justificadas pelo viés dos procedimentos de argumentação. A lógica
da argumentação, isto é, a nova retórica aplicada ao domínio do direito, 1. O NEOKANTISMO DE DEL VECCHIO E DE
consiste em encontrar "os meios de persuadir e de convencer através do STAMMLER
discurso, de criticar as teses do adversário, de defender e de justificar as
suas próprias teses com a ajuda de argumentos mais ou menos fortes" 264. A crise do positivismo jurídico 1 na Itália se manifestou no fim
Ressaltemos que, para Perelman, trata-se menos de chegar a uma solução do
jurídica eqüitativa e aceitável por todos os participantes do que de século XIX com as obras de Icilio Vanni 2 (1855-1903) que
realizar um processo em que a força de persuasão se sobrepõe à
advogavam
argumentação na busca pelo consenso.
a favor do que este autor chamava de "positivismo crítico", doutrina que
consistia em tirar dos fatos e do relativismo empirista os preceitos mo
rais segundo os quais deveria ser apreciado o direito positivo. Ela teve
1 O principal representante do positivismo italiano foi Ardigo de
seqüência com as obras de Petrone3 (1870-1913), considerado aquele
Casteldidone, do qual é preciso citar La morale dei positivisti (1878-1879).
2 L Vanni, "La teoria de Ia conoscenza come induzione sociologica e exigenza

critica del positivismo" (1902), in Saggi di filosofia sociale e giuridica, 11, Bolonha, 1911.
263 F. Müller, op. cit., p. 129.
3 Petrone, La filosofia dei diritto allune dell'idealismo critico (1896); Il valore
264 C. Perelman, Logique juridique, Nouvelle rhétorique, Dalloz, 2. ed., p. 2.
Os itálicos são nossos. ed illimiti di una psicogenesi della morale; os dois ensaios foram publicados no

1 volume intitulado Problemi dei mondo morale meditati da un idealista, 1905.


352 353
HISTÚRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO As TEORIAS IDEALISTAS DO DIREITO

que lançou a verdadeira batalha antipositivista e relançou na Itália a correspondente ao ideal do direito que ressalta de uma pesquisa
filosofia do direito idealista. Petrone preconiza um "idealismo crítico" deontológica. Ao lado desses dois tipos de pesquisa, há também lugar
cujas premissas se encontram nas obras de Fichte e também nas pes~ para uma pesquisa "fenomenológica" (no sentido de Del Vecchio, não
quis as psicológicas sobre a consciência pessoal do americano J. M. de Husserl), que observa o fenômeno do direito de um ponto de vista
Baldwin. Entretanto, ele chega a construir seu próprio sistema, afirmando puramente histórico e sociológico. Segundo ele, os sistemas jurídicos
a necessidade de uma concepção capaz de atingir "a natureza emi- manifestam, na sua evolução, uma adequação progressiva ao ideal da
nentemente espiritual e moral do direito" 4. O direito é, segundo ele, o justiça que foi, tanto para Kant quanto para Fichte, a realização e o de
produto da sociabilidade do homem, cujo fundamento se encontra na senvolvimento da liberdade da pessoa humana. "Agir não como meio
intersubjetividade -limitação mútua do ego e do alter - inerente a SUa OU como veículo das forças da natureza, mas como ser autônomo, tendo
natureza. Petrone tira dessa dialética ideais morais e jurídicos supremos e qualidade de princípio e de fim."6 A famosa máxima kantiana torna-se,
torna-se o iniciador do que Giorgio Del Vecchio (1878-1970) qualificou, para o autor italiano, o princípio ético geral que rege a conduta
para a filosofia do direito, como escola crítica ou neocrítica. DeI de todo homem, tanto em sua ação como sujeito moral quanto em sua
Vecchio definia-se como um dos continuadores dessa escola, mas ele fez ação como sujeito jurídico. O imperativo categórico kantiano, que se
mais que isso. Como observa G. Fasso, ele também foi aquele que dirige ao sujeito moral e o impele a agir de maneira que "o princípio de
provocou "a crise definitiva da filosofia do direito positivista na Itália" e (sua) conduta possa valer como princípio de legislação universal", tem
fez renascerem na Itália os estudos filosóficos em matéria jurídica. para Del Vecchio uma significação puramente subjetiva ou moral no
Giorgio Del Vecchio tentou, com efeito, uma crítica neokantiana do po- sentido estrito do termo: ele se dirige precisamente à consciência indi-
sitivismo jurídico, fazendo eco à obra de Stammler na Alemanha 5. Mas, viduaL Deste princípio, que constitui para todos um dever, deriva, as
de qualquer forma, é muito curioso constatar que ele não faz em seus sim como em Kant e em Fichte 7, o direito para todo homem "de se fazer
trabalhos nenhuma referência às teses de Stammler, e que ele elabora sua
respeitar como tal por todos, e lhe atribui o poder de não ser detido ou
doutrina independentemente daquela de seu homólogo alemão. Contudo,
ignorado na prática pelos outros nessa qualidade"8. Esse último princípio
assim como Stammler, ele faz uma distinção entre o conceito de direito,
constitui, então, um princípio ético-jurídico que tem um significado
objeto de uma pesquisa puramente lógica, e a idéia do direito,
objetivo, porque ele se aplica às relações entre pessoas. Nesse último caso
- situação de bilateralidade - o sujeito será um sujeito de direito desde que
corresponda a seu direito subjetivo uma obrigação que incumbe a
outrem. O princípio de justiça a que corresponde o ideal de direito
4 G. DeI Vecchio, Philosophie du droit, Dalloz (1. ed. na Itália em 1930, e na
França em 1936), 1953, p. 171. Do mesmo autor, lustice, Droit, État, Sirey,
1938. Cf. também G. Fasso, Histoire de Ia philosophie du droit, XIX' et XX!
siecles, op. cit., p. 132-8 e 178. 6 G. DeI Vecchio, Philosophie du droit, op. cit., p. 429.
G. DeI Vecchio, I pressuposti filosofici della notione dei diritto, Bolonha, 1905, li
5 7 A. Philonenko, Théorie et praxis dans Ia pensée morale et politique de Kant
concetto dei diritto, 1906, Il concetto della natura e il principio del diritto, 1908; esses et de Pichte en 1793, Librairie J. Vrin, 1976, p. 115; o autor se refere à obra de
trabalhos foram publicados em inglês sob o título The formal bases of law, The Boston Fichte do primeiro período.
Book Company, 1914. 8 G. DeI Vecchio, Philosophie du droit, op. cit., p. 432.

1.
354 355
HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO As TEORIAS IDEALISTAS DO DIREITO

manifesta, por conseguinte, a possibilidade para todos os seres humanos jetivo de agir é sempre acompanhado da obrigação de um outro sujeito de
de não serem impedidos no exercício de sua liberdade. O imperativo de não o impedir. Em sentido jurídico, afirma ele, as determinações do agir
justiça se enuncia nestes termos: "Não estendas tua vontade a ponto de são sempre bilaterais e coordenadas: "a possibilidade existe de um lado,
impô-Ia a outrem, não procures submeter a ti o ser que, por sua natureza, desde que exista a obrigação correspondente do outro (o dever de não
não se submete senão a si próprio"9. Como em Kant e em Fichte, trata-se impedir) e vice-versa" 11. Já em moral, no sentido estrito do termo,
do respeito à liberdade, e não à satisfação das necessidades e dos desejos as determinações e as apreciações são unilaterais e necessárias, porque
dos homens, porque o direito não tem por função nos conduzir à elas dizem respeito unicamente ao sujeito que age 12. Por essas
felicidade, mas sim tornar disponível para o homem o espaço de últimas reflexões, Giorgio DeI Vecchio designa os critérios de distinção
liberdade que lhe é necessário, e até mesmo vital, para se desenvolver entre o direito e a moral. E quanto a isso, sua doutrina se distingue
como ser autônomo. igualmente da de Kant. A distinção entre direito e moral não se baseia
Mas se DeI Vecchio, com relação ao ideal do direito, evidencia-se nos caracteres da ação - adesão interior à lei moral, conformidade da ação
muito próximo da concepção kantiana, ele se distingue de Kant no que aparente e exterior ao direito, como quis Kant -, justamente porque o
concerne ao conceito de direito. O conceito de direito, escreve ele, não direito também se interessa, afirma Del Vecchio, pelos caracteres internos
deve ser definido por seu conteúdo, isto é, as idéias e os valores de jus de um ato (intencionalidade da ação em matéria penal, e também civil) 13.
tiça que ele veicula, mas por sua forma, que deve ser universal, referin A distinção entre as duas instâncias, direito e moral, se encontra,
do-se assim a todos os sistemas jurídicos existentes e também aos segundo o autor, mais além. O direito, mais precisamente, permite o que
sistemas jurídicos possíveis. Essa definição será objetiva porque será é prescrito pela moral, mas em nenhum caso dirá o que é o dever moral.
universal. Conseqüentemente, ele repudia a definição kantiana do con- O direito significa a possibilidade de uma ação, e não sua necessidade.
ceito do direito, segundo a qual "o direito é o conceito do conjunto de Da possibilidade de coordenar as ações dos seres livres que o direito
condições às quais o arbítrio de um pode concordar com o arbítrio de exprime "não se pode inferir a necessidade (do direito moral), ao passo
outro segundo uma lei universal da liberdade" 10. Essa definição que da necessidade se pode inferir a possibilidade" 14. É nesse
pode corresponder somente a um ideal do direito. O conceito de direito sentido preciso, conclui ele, que o direito e a moral constituem, um para o
se refere, em contrapartida, ao ponto de vista do qual são apreciadas as outro, instâncias complementares.
ações humanas: uma vez que as ações de um sujeito sejam avaliadas Não se poderia esquecer, nos limites deste texto, os trabalhos do
segundo sua compatibilidade ou, ao contrário, sua incompatibilidade filósofo do direito Rodolphe Stammler (1856-1938), neokantiano alemão
com as ações dos outros sujeitos, entra-se no domínio do direito. Este diz cujas obras precedem de muito pouco a doutrina de seu homólogo
respeito, e independentemente de seu conteúdo, à ação de diversos I

sujeitos, às suas relações intersubjetivas, e pressupõe que o direito sub I

I
Idem, op. cit., p. 270. O texto em parênteses é de G. DeI
11

~
Vecchio. 12 Idem, p. 270.
Idem, op. cit., p. 433. Nós modificamos a tradução. Idem, op. cit., p. 272.
I

9 10 13

G. DeI Vecchio, Philosophie du droit, op. cit., p. 119. 14 Idem, p. 271. O que está colocado entre parênteses é nosso.
356 357
HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO As TEORIAS IDEALISTAS DO DIREITO

italiano. Aderindo ao neokantismo da Escola de Marbourg - Cohen


, 2. A FENOMENOLOGIA DO DIREITO
N
atorp e Cassirer -, Stammler está em busca do que torna possível a 2.1 Edmund Husserl e o método fenomenológico
e
xperiência jurídica e, portanto, em busca do princípio constitutivo, o O fundador da fenomenologia foi Edmund Husserl, cujo filho
conhecimento jurídico. Uma vez que a experiência jurídica é, por SUa Gerhart Husserl e o discípulo deste, A. Reinach, foram os primeiros a
natureza, idêntica à experiência do que torna possível a vida comUm em aplicar as teses fenomenológicas no domínio jurídico. A tese fundamental
sociedade, uma definição do direito universal só pode ser puramente da fenomenologia consiste em dizer que o mundo não existe senão para
lógica, dedutiva e completamente independente de fatores históricos ou uma consciência. Todos os objetos do mundo são fenômenos para a
sociológicos de uma ordem jurídica particular. Nesse sentido, o conceito consciência, que pode tomar conhecimento disso com a condição de que
de direito é o objeto de uma ciência "pura" do direito, como será também adote certa atitude particular que os fenomenólogos chamam de epokhé,
para o normativista Hans Kelsen 15. O direito, como forma universal de termo grego que significa colocar em suspensão os objetos do mundo,
organização social, é segundo ele uma Vontade inviolável (constran- "colocar entre parênteses", como dizia E. Husserl, para poder apreender
gedora), autônoma (soberana), coordenadora (combinatória) da ati sua essência, seu eidos (tipo, essência). O eidético fenomenológico
vidade dos homens, seja qual for o conteúdo dessa atividade 16. A idéia do baseia-se assim nesta convicção, assumida por Husserl desde suas
direito, ou seja, os ideais de justiça, é igualmente definida por Stammler Pesquisas lógicas de 1900, de que há uma "realidade" da essência
de maneira formal. O ideal de justiça para toda comunidade (Wesen) .18 Para compreender igualmente o método husserliano, pelo
social comporta, segundo ele, os dois princípios seguintes: por um lado, menos em sua intuição central, é preciso apreender que, segundo a
o princípio de respeito à personalidade de cada um, no sentido preciso de fenomenologia, cada uma de nossas experiências tem uma forma
que a vontade de um homem não poderia ser submetida nem mediatizada específica que lhe é prescrita por seu objeto. É analisando a estrutura de
pela vontade arbitrária de nenhum outro; por outro lado, o princípio de nossa experiência que podemos apreender a estrutura do objeto.
participação, no sentido de que o homem não poderia ser excluído de Contrariamente a Kant, Husserl pensa que podemos intuir a priori as
uma comunidade social legalmente instituída e da qual ele faz parte. Em estruturas universais e necessárias sob a forma de "leis de essência"; em
suma, esses dois princípios, cujo caráter vago e incerto suma, uma consciência intuitiva, desafiando a condenação kantiana da
será criticado, retomam a definição kantiana do direito justo - a liber- "intuição intelectual': pode apreender de maneira imediata a essência dos
dade de cada um pode concordar com a de todos -, visam à instauração objetos, materiais e ideais, enquanto que a evidência é, para esta mesma
de uma "comunidade de homens que desejam livremente" e constituem, consciência, a prova da existência desses objetos e de sua estrutura
dada a variabilidade das condições empíricas, o que esse autor chama de eidética. Se as análises husserlianas da consciência e do conhecimento
"direito natural de conteúdo variável" 17. foram abundantemente estudadas e comentadas, em contrapartida o
mesmo não acontece para
15 R. Stammler, Theorie der Rechtswissenschaft, Halle, 2. ed. 1911.
16 R. Stammler, Lehrbuch der Rechtsphilosophie, 1922.

17 R Stamm1er, WirtschaftundRechtnach der materialistü.:hen Geschichtsauffsassung, 18 Esta renovação da problemática "platônica" das essências é bem explicada, por

1896 (é o titulo do § 33 desta obra). exemplo, por Jean Beauffret, Leçons de philosophie, t. 2, Le Seuil, 1998, p. 331.
359
358 HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO
As TEORIAS IDEALISTAS DO DIREITO

suas análises da sociedade, do Estado e do direito. Ora, antes dos traba- prisão, não se faz contrabando, é contrário aos 'bons costumes'."21 A re
lhos de seu filho Gerhart, Edmund Husserl tinha desenvolvido ele próprio flexão sobre o direito de Husserl, pelo menos o aspecto que lhe é aces-
uma reflexão sobre a essência da sociedade, que trata do direito ainda sível pelo estudo de René Toulemont, parece não incidir sobre uma
que parcialmente 19. análise das estruturas jurídicas efetivas, mas sobre a forma geral da obe-
Segundo Husserl, o direito está fundamentalmente ancorado em um diência ao direito: esta é designada como uma obrigação vinda de fora.
"hábito jurídico", e comporta numerosos elementos habituais. Contudo, Há um certo "kantismo", pelo menos neste estágio, uma idéia muito ge
se a simples "tradição" de uma comunidade humana refere-se a essa ralmente kantiana (ou simplesmente muito geral?): o direito é o que
coletividade de maneira relativamente indeterminada, o direito tem uma nos obriga in foro externo.
fonte determinada: a vontade do Príncipe, a vontade de uma assembléia,
a vontade do Estado. Além disso, o direito tem uma finalidade racional: 2.2 As análises de A. Reinach e de Gerhart Husserl
"ele não é aprovado apenas porque é tradição, sendo tradicionalmente
aprovado sob esta forma regular; ele é aprovado e exigido devido à Para A. Reinach e G. Husserl, a estrutura eidética do direito se en contra
exigência de uma vontade imperativa, que dispõe de um poder de essencialmente nos caracteres aprióricos e necessários dos conceitos
coação': escreve Husserl2o. Desse modo, o membro de uma comunidade jurídicos. Sem esses caracteres a priori, os conceitos jurídicos utilizados
em que o direito está em vigor se curva conscientemente diante dessa pelo direito positivo não seriam nem mesmo pensáveis. As reflexões de A.
vontade: a execução da regra jurídica se faz "sob a forma de uma Reinach, contidas nos Fundamentos a priori do direito civil (Die
subordinação consciente e voluntária". Entretanto, comenta Toulemont, apriorischen Grundlagen des bürgerlichen Rechtes, 1913), tra
"quando se considera a maneira pela qual o direito é observado de fato, zem exemplos concretos a esse respeito, como aquele da propriedade ou o da
pode-se vê-Io novamente aproximar-se da tradição ao mesmo tempo em obrigação nata de uma promessa. O autor tenta "constituir progres-
que anuncia a moralidade. As diferentes partes do direito não são sivamente o sentido desses conceitos, aceitar uma gênese de sentido" 22
igualmente bem observadas em todas as camadas de uma mesma que lhe permita extrair sua estrutura eidética. A promessa, por exemplo,
coletividade global, e essa diversidade tem seu fundamento nas tradições da
que regem os meios sociais: na boa sociedade, não se vai para a qual T.-L. Gardies oferece uma análise notável, situando-se na perspec
tiva de A. Reinach, "é um ato social que se dirige a outrem [...], que
chama um ciclo de acontecimentos posteriores [...] mas que,
19 As análises husserlianas da essência da sociedade e do direito são, por diferentemente da ordem, visa a um comportamento daquele que faz e dá,
exemplo, apresentadas no corpus francês dos estudos husserlianos por René Toulemont, e não daquele que recebe" 23. A promessa se distingue assim dos atos que
in L' essence de Ia société selon Husserl, PUF, 1962, e, em menor escala, por Yves lhe são
Thierry, in Conscience et humanité selon Husserl, PUF, 1995. Lembremos uma
dificuldade própria aos estudos husserlianos: o corpus completo das obras de Husserl está 21 R. Toulemont, op. cit., p. 206.
sucessivos de "Husserliana",
sempre, até hoje, e traduzido
em curso de publicação sob em francês
a forma de maneira ainda muito in-
de volumes 22 N. Poulantzas, Nature des choses et droit. Essai sur Ia diaIectique du fait et
I

wmp1,ta. I d, Ia va1M, op. cit., p. 29, n. 39.

W Citado p"' R. Tou1,mont, op. cit., p. 206. -L U J. -L. G,,,Ji,,, ú droi, /'0 pri"" !';moginaire et /' <X/'""",,,A. P. O., 1%2, p.173.
360
HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO As TEORIAS IDEALISTAS DO DIREITO 361

vizinhos, como a ordem e o mandamento, que são atos de vontade. Ela do direito e a questão é então saber se um direito positivo "deve"
26,

possui sua própria estrutura eidética, e não constitui de maneira algu conformar-se com sua essência eidética a priori. Essa interrogação evoca, de
ma a comunicação de uma simples intenção ou uma declaração de Von maneira mais geral, a relação entre o fato - quer dizer, uma ordem jurídica
tade, como concebe a doutrina positivista, dirigindo-se a outrem e positiva qualquer - e seu valor - o "dever-ser" desta ordem. Sobre esse
sancionada eventualmente por uma ordem jurídica positiva. A promessa ponto, tanto a posição de G. Husserl quanto a de A. Reinach são pouco
possui uma validade que lhe é inerente e irredutível, porque ela "traz satisfatórias. Para G. Husserl, o fundamento axiológico das normas
jurídicas parece encontrar-se na efetividade delas, ou seja, no fato de que
em si o que faz dela o ato jurídico da promessa" 24. Uma promessa
as normas jurídicas existentes são efetivamente seguidas por seus
revogável constitui uma contradição nos termos, porque seus caracteres
destinatários. Em meio a essa efetividade, os princípios aprióricos e
eidéticos e a priori consistem precisamente em que a promessa é, por eidéticos do direito - o da propriedade, por exemplo, cuja essência
essência, irrevogável. O enfoque fenomenológico, procedendo por re eidética evoca para os fenomenólogos do direito a propriedade privada,
dução progressiva dos objetos à sua estrutura interna, poderá ser utili mas jamais sua forma coletivista - revestir-se-ão de um caráter axiológico
zado para destacar a estrutura eidética dos conceitos e das instituições 27. A. Reinach aceita em um primeiro momento que a questão de "o que
jurídicas, tornando assim manifesta a estrutura a priori do domínio do deve ser" seja completamente estranha à questão do que
direito, domínio irredutível aos outros domínios da experiência huma é"ontologicamente", mas acaba por se contradizer, admitindo "que
na, como a religião, a moral ou a economia. O direito possui sua pró estáfora de questão negar que um ser apriórico, considerado puramente
pria estrutura eidética apriórica. A. Reinach e G. Husserl25 admitem que em si, apresenta paralelamente um caráter de dever-ser" 28. Essa
as normas jurídicas, objetos da consciência, constituem seres ideais mas última reflexão reúne, em certa medida, as reflexões de G. Husserl. Em
reais, dos quais será preciso estudar a essência eidética, a estrutura in outras palavras, se as essências eidéticas constituem estruturas imanentes
terna. A fenomenologia jurídica advogará assim a favor de uma tese ao mundo real das quais participam os objetos desse mundo, o direito
ontológica: o ser da norma residirá na normatividade, em seu caráter positivo, por participar, segundo essa visão, da estrutura apriórica do
ontológico de "dever-ser" que se enuncia, como em Kelsen, pela propo direito, será então "válido" e "justiftcado" 29.
sição "A deve fazer B': Convém então, segundo essa concepção, estudar A crítica que se pode formular contra esses primeiros enfoques
a lógica interna da normatividade jurídica independentemente do con fenomenológicos é a de extrema abstração, o que não ftca isento de iro
teúdo e do fundamento axiológico das normas jurídicas. Esta concepção
resulta, em outras palavras, em uma Normlogik que estuda as relações
lógicas entre as normas jurídicas.
As ftlosofias do direito fenomenológicas aceitam que pode existir 26 Cf. N. Poulantzas, Notes sur Ia phénoménologie et l'existentiaIisme
juridiques, A.P.D., 1963, p. 217.
um desvio do direito positivo com relação à estrutura eidética a
27 N. Poulantzas, Nature des choses et droit, op. cit., p. 63.
priori 28 A. Reinach, op. cit.; citado por N. Poulantzas, op. cit., p. 223.
24 S. Goyard-Fabre, Les fondements de l'ordre juridique, PUF, 1992, p. 298-9.
29 Segundo N. Poulantzas, esta visão resulta em um positivismo "análogo
2S G. Husserl, Rechtskraft und Rechtsgeltung, 1925; do mesmo autor, Recht
ao do pensamento hegeliano", já que tudo o que "é" parece justificado, in Nature des
und Zeit, 1955.
choses et droit, op. cit., p. 64, n. 70.
362
HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO As TEORIAS IDEALISTAS DO DIREITO 363

nia quando se recorda que a palavra de ordem de Husserl em filosofia mente ligado à sua atividade, sua experiência e sua existência concreta
era "o retorno às coisas em si': Assim ocorre quando Reinach proPõe no mundo. A existência, afirmam os existencialistas, precede a essên-
um direito a priori, cujo ser ideal definitivamente não passa de um ob cia. Para o homem, não se trata mais de tomar conhecimento das es-
jeto de consciência que participa, como bem diz S. Goyard-Fabre, do sências eidéticas e aprióricas, como propunham os fenomenólogos,
"caráter enigmático do ego transcendental" 3°. A esse respeito, na Fran porque o mundo só é o que é pela ação do homem; nesse sentido, a ex-
ça o pensamento de Paul Amselek 31 se destaca explicitamente daquele periência do homem, assim como o conhecimento que ele pode ter do
de Reinach, evoluindo para um uso essencialmente epistemológico do mundo, estão irremediavelmente ligados a sua atividade prática, a seus interesses
e a seus valores 32. A esfera do ser (a do fato) reúne a do deverser,
e no
método fenomenológico para a análise das categorias jurídicas,
dissociado dos aspectos ontológicos ou antropológicos complexos vei-
fundamento da experiência axiológica do homem se encontra, para
culados pela doutrina husserliana. os existencialistas, a livre escolha do sujeito. É nessa perspectiva que é
Não obstante, se as considerações fenomenológicas que preciso situar a problemática do existencialismo jurídico, cuja expansão
precedem parecem pouco abordar a questão das relações entre ser (o participa do renas cimento do direito natural no dia seguinte à Segunda
fato) e de Guerra Mundial.
ver-ser (o valor), esta está no âmago da problemática existencialista As filosofias do direito de Coi:ng e de Fechner são diretamente ins-
que piradas pelas filosofias dos valores de dois fenomenólogos, M.
se inspira, entre outros, nos trabalhos dos "filósofos dos valores" M. Scheler e N. Hartmann 33. Scheler, criticando o formalismo ético
kantiano, concebe os valores como quantidades objetivas das
2.3e O
Scheler N. existencialismo
Hartmann. jurídico
coisas (dos objetos, das ações humanas), a priori e hierarquizadas. Elas
A corrente existencialista, cujas origens remontam a Kierkegaard, são apreendidas por um ato fundamental do espírito que inclui, de
vem diretamente questionar a redução fenomenológica, em outras pa- encontro ao que pensava Husserl e também Kant, os sentimentos e as
lavras, a "colocação em suspenso" dos objetos do mundo de que uma emoções. Os valores, situando-se no mundo das coisas, são
consciência intuitiva toma conhecimento. Esse enfoque, criticavam os "concretos e materiais" e "enraízam-se na personalidade de um sujeito
existencialistas, pressupõe a independência fundamental do homem para com o que não é o eu puro e isolado de Kant, mas que é o ato de uma
mundo, alguma forma de anterioridade deste com relação àquele. Ora, para os experiência ao mesmo tempo individual e comunitariamente aprovada em
existencialistas o homem está exatamente agora no mundo (Heidegger) e o uma simpatia comum" 34. Mas a concepção de Scheler é muito ambígua,
conhecimento que ele pode ter está estreita uma vez que por um lado os valores se

32 N. Poulantzas, Notes sur Ia phénoménologie et l'existentialisme juridiques,


op. cit., p. 224.
30 S. Goyard-Fabre, Les fondements de l'ordre juridique, PUF, 1992, p. 303. 31 33 M. Scheler, Le formalisme en étique et I'étique matérie/le des valeurs (1913), 2.
Paul Amselek, Méthode phénoménologique et théorie du droit, LGDJ, 1964;
ed. 1955; N. Hartmann, Les principes d'une métaphysique de Ia connaissance, Aubier.
"La phénoménologie et le droit': artigo in Archives de philosophie du droit, n°
Cf. C. Grzegorczyk, La théorie des valeurs et le droit, LGDJ, 1982, p. 69-80.
10,
34 J.- P. Resweber, La philosophie des valeurs, PUF, col. Que sais-je?, 1992, p. 82.
1972.
.1
364
HISTÚRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO 365
As TEORIAS IDEALISTAS DO DIREITO
dão à consciência como objetos intencionais, e por outro lado parecelh

existir independentemente dessa consciência, não necessitando da es


JIloso adágio nietzscheneano do "eterno retorno do mesmo" parece
colha livre de um sujeito criador. A filosofia de N. Hartmann se apre corresponder a esta versão da fIlosofia da natureza das coisas.
senta, em contrapartida, de maneira menos ambígua. Ela se situa elh Contudo, novamente encontra-se no seio de sua concepção a mesJIla
dificuldade que ressaltamos na concepção de M. Scheler, como observa
uma perspectiva mais realista - o objeto conhecido não se reduz a Ulh
N. Poulantzas: "Considerando este mundo dos valores em princípio
simples fenômeno - e sustenta que os valores são qualidades ideais que independente na origem ao mesmo tempo da escolha humana - mundo de
valores de Scheler - e da natureza das coisas - campo de realização dos
se manifestam nas coisas reais, e são o objeto de uma consciência valores independentemente da escolha humana - como CoYng pode
axiológica. chegar a uma escolha 'criadora' dos valores? De fato, ele só conclui o
papel criador dessa escolha em razão de sua concepção segundo a qual
Baseado na idéia segundo a qual os valores são qualidades essen
essas são as tendências fundamentais do homem que constituem o
ciais das coisas, o existencialismo jurídico de CoYng preconiza a fundamento dos valores jurídicos. Com efeito, [...] não énecessário mais
que um passo para concluir que foi ele quem os criou" 37 .
exis
A concepção de Fechner responde, de fato, à dificuldade que aca-
tência de valores absolutos que estão no fundamento dos princípios bamos de assinalar em CoYng. A natureza das coisas consta em Fechner
de duas componentes: uma puramente factual, que contém a estrutura do
jurídicos supremos. Entre esses valores absolutos, o autor coloca na
real, do social, do político, do econômico e mesmo do biológico
primeira linha, de maneira evidentemente polêmica com a funesta ex- (fatores reais); e outra ideal, que contém os valores, a razão, os sentimen-
periência do nacional-socialismo, a dignidade da pessoa humana. Em um tos religiosos (fatores ideais). O indivíduo, como observa N. Poulantzas,
breve ensaio, publicado em 1947 e intitulado Die obestern Grundsiitze torna-se o ponto de encontro entre os fatores reais e os fatores ideais: ele é
parte integrante da natureza das coisas. Ele existe tanto para a estrutura
des Rechts, tendo por subtítulo "Ensaio de criação de um novo direito
factual do real quanto para a transcendência do mundo dos valores.
natural': CoYng afirma a prioridade do valor da dignidade da pessoa Acrescentemos que a transcendência dos valores é concebida por Fechner
humana, da qual ele deduz os princípios jurídicos supremos: a liberda - muito influenciado aqui pelo existencialismo de Karl Jaspers - como um
de de expressão, que se adianta às outras liberdades, como a liberdade Deus oculto 38. É essa transcendência que orienta a escolha do indivíduo
econômica e a liberdade da vida privada, porque aquela trata de uma que, apoiando-se sobre a artificialidade do mundo, nele "descobre" os
valores e os preceitos do direito natural, mas permanece de alguma forma,
liberdade espiritual e moral 35 . Esses valores são universais e estão na base
segundo Fechner, livre e criador em sua decisão e sua escolha. "Nesse
do que CoYng chama de situações sociais típicas, isto é, situações
caso não se trata", escreve Fechner, "nem
sociais
35 K. KüIh, "Le droit naturel et Ie droit de Ia raison': in L' évoiution du droit et

~
que
de se repetemdusem
ia phiiosophie droitcessar na história
en Allemagne da humanidade.
et en France É ia
depuis ia fin de dizer que, por
Seconde
trás demondiaie,
Guerre certas situações
PUF, 1991,sociais
p. 58. fundamentais recorrentes na história 37N. PouIantzas, Nature des choses et droit, op. cit., p. 161-2. 38

N. PouIantzas,
humana (as questões
36 Nature des choses etdos
da repartição droit, op. cit.,
bens, da p.união
161. dos homens e Idem, op. cit., p. 155.

das mulheres, por exemplo), encontram-se valores atemporais, que


correspondem às tendências constantes da natureza humana 36. O fa
367
As TEORIAS IDEALISTAS DO DIREITO
366 HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO

certa atitude conforme àquela que é "sugerida" pela situação concreta,


de um direito natural cujo conteúdo é dado, nem de um direito natural de
conteúdo variável, mas de um direito natural de conteúdo 'que se faz', na pela "natureza" dessa situação. A exigência de se conformar ao que de
criação da qual o homem toma uma parte decisiva"39. A intervenção da manda a situação torna-se assim, para cada uma das partes que estão
escolha individual consiste assim em atualizar de alguma forma os
valores transcendentes do direito natural. implicadas, constitutiva de seus direitos e de seus deveres respectivos. E
É no cruzamento desses dois tipos de fontes do direito, por um lado é essa exigência que estará então no fundamento dos valores e das nor
as fontes reais, por outro as fontes ideais, que se situa a pesquisa em fi-
losofia do direito, como testemunha o título de sua obra, Sociologia e mas do direito positivo: fazer de toda relação jurídica a manifestação
metafísica do direito: aos dados factuais, adquiridos através de uma pes- "autênticà' da existência individual, que é originalmente aquela de es
quisa sociológica, acrescenta-se a busca metafísica dos valores. Trata-se
também da famosa separação entre o fato (sein) e o valor (o dever-ser, o tar com-os-outros. A análise de Ma'ihofer não é certamente concebível
sollen), tão firmemente defendida pelo positivismo normativista. Essa se não se admite que existem relações, e conseqüentemente situações
separação implica também, para o domínio da filosofia do direito, em
jurídicas que permanecem as mesmas, idênticas em todos os lugares e
uma questão recorrente, a questão de saber se uma pesquisa sociológica
pode não ser condicionada por valores: sejam as que são imanentes ao em todos os tempos 41. Essa idéia vem finalmente se juntar à tese do
real - o que parece esquecer a posição de Fechner -, sejam aquelas que
fi
veicula o sábio, como dizia Weber, e condicionam sua reconstrução do
reaL lósofo Co'ing relativa "às situações típicas" que se reproduzem no tem
Mas o filósofo do direito que mais soube explorar as aquisições do po e no espaço de uma maneira cíclica. Tratar-se-ia, em Ma'ihofer, das
existencialismo filosófico e as aplicar no domínio do direito foi sem "situações ontológicas típicas".
dúvida Werner Ma'ihofer. Inspirando-se diretamente na idéia da "au-
tenticidade do ser" de Martin Heidegger, Ma'ihofer concebe que o ver
dadeiro fundamento do direito reside na autenticidade das relações
jurídicas concretas 4°. Nas relações jurídicas bilaterais mais precisamente, como
aquelas do vendedor-comprador, médico-paciente, credor-devedor, cada
um se apresenta ao outro à imagem do papel e da função que ele deve
realizar em uma relação particular. Ele "espera" do outro uma

r
39 E. Fechner, Rechtsphilosophie, Soziologie und Metaphysik des Rechts, 1956;

cito por N. Poulantzas, idem, op. cit., p. 156.


41 N. poulantzas, Notes sur Ia phénoménologie et l'existentialisme juridiques,
40 W. Malhofer, Recht und Sein, 1954; do mesmo autor, Die Natur der Sache,

A. R. 5.,1958; Le droit naturel comme dépassement du droit positif, A. P. D., 1963.

cit.,p229
o RENASCIMENTO DO DIREITO NATURAL 369

9
Em continuação a Heidegger, do qual havia seguido os cursos, da
CApíTUlo mesma forma que seguira os de E. Husserl, Leo Strauss vai tomar como
ponto de partida o diagnóstico de uma crise da modernidade. Se o projeto
da modernidade consistia, com efeito, na construção de nações
independentes, compostas de mulheres e homens livres e iguais entre si,
para Leo Strauss este projeto chegou a um revés. E ainda pior: segundo
o RENASCIMENTO DO ele, o pensamento da modernidade teria engendrado dois novos
DIREITO NATURAL males, que são, por um lado, o historicismo e, por outro, o positivismo.
O historicismo retém como "bom" e justo o que é consagrado e
validado historicamente, o que não permite nenhuma dissociação entre o
ser e seu ideal (dever-ser). O pensamento hegeliano é, nesse sentido, a
manifestação por excelência da dissolução do ideal, do dever-ser, no ser.
"O real é o racional': escrevia Hegel: eis precisamente o que Leo Strauss
denuncia sob o vocábulo de historicismo. Ele considerou aliás como
precursores do pensamento hegeliano tanto Maquiavel, Hobbes e
1. LEO STRAUSS E A CRíTICA DA Rousseau quanto Kant. Certamente, um pensamento filosófico empirista
MODERNIDADE como o de Maquiavel e de Hobbes pode, em última análise, ser
considerado como preparatório para o acontecimento do historicismo.
Leo Strauss nasceu em 1899 na Alemanha, onde estudou filosofia, Mas o pensamento kantiano, como observam Alain Renaut e Lukas
matemática e ciências naturais. Pesquisador em um instituto de estudos Sosoe, serve muito mal a essa leitura. Se a separação epistemológica
judeus, ele decide deixar a Alemanha em 1932, em razão da kantiana entre a Razão teórica e a Razão prática levou seus sucessores a
agitação política que reina no país e do clima deletério de anti-semitismo uma tese ontológica, a da separação entre o ser e o dever-ser, entre o Sein
que ali se e o Sollen, é de qualquer forma "simplificar e deformar
instala. Após algumas estadas na França e na Inglaterra, instala-se consideravelmente", segundo os termos que empregam Alain Renaut e
definitivamente nos Estados Unidos em 1938. Ensina sucessivamente na Lukas Sosoe, a filosofia kantiana da história.2 A reflexão de Kant sobre a
New história não é isenta de diversas interpretações possíveis. Se o "desenho
School for Social Research, na Universidade de Chicago, no da natureza", que Kant sustenta no Projeto de paz perpétua, pode fazer
Claremont pensar na tese hegeliana de uma "astúcia da razão" avant Ia
Men's College e em Saint John's College até sua morte em 1973. A maior
parte de suas obras foi escrita em inglês, e somente seus três primeiros
livros foram escritos em alemão, que era sua língua materna. Sua obra de trad. fr., Droit naturel et histoire, Plon, 1954. Outras obras em francês do mesmo
referência para a filosofia do direito é Direito natural e história. 1 autor: De Ia tyrannie, 1948, La philosophie politique, 1963.
I L. Strauss, Natural Right and History, Chicago University Press, 1953, e eJI1 2 A. Renaut e L. Sosoe, Philosophie du droit, PUF, 1991, p.121-2.
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HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO o RENASCIMENTO DO DIREITO NATURAL

lettre, é inegável que a Idéia de uma historia universal de um ponto de da modernidade - esta começa a seus olhos com Maquiavel e, passando
vista cosmopolítico publicada em 1784 remete mais à idéia de uma li- por Hobbes, Locke, Rousseau e Kant, chega às teses hegelianas,
berdade essencial do homem que torna pensável e possível o próprio nietzchianas e heideggerianas - é assim extremamente problemática. Em
campo da prática.3 Estamos então longe da idéia hegeliana de uma lógica que, por exemplo, Rousseau prolonga as teses de Maquiavel? Se este
interna da história que proíbe, em última instância, mesmo a pos- último foi o pensador da eficácia em matéria política e jurídica, a refle
sibilidade de um julgamento moral de tipo kantiano sobre a história. Mas xão rousseauniana sobre esse mesmo assunto é, por excelência, um pen
o que parece ainda mais paradoxal é que Leo Strauss considera que a tese samento da legitimidade. Como se poderia daí constatar uma
epistemológica kantiana relativa à distinção entre razão teórica e razão "continuidade" entre Maquiavel e Rousseau? A "vontade geral", observa
prática engendra, também ela, o segundo avatar da modernidade, que é o Leo Strauss, não "pode errar" em Rousseau e, conseqüentemente, ela é
positivismo jurídico. Este sustenta, afirma Leo Strauss, que em matéria necessariamente conforme ao ideal; dessa maneira, prossegue ele,
jurídica, ética ou política, nenhum julgamento objetivo, nem mesmo Rousseau revogará toda dissociação possível entre o ser e o dever-ser e
universal, é possível. Há, segundo a visão positivista, muitos sistemas de anunciará assim o historicismo hegeliano. Strauss tem então o conjun
valores equivalentes uns aos outros na soma, e os julgamentos que daí to dos filósofos da modernidade como os primeiros responsáveis pela
decorrem definitivamente não são mais que resultados de decisões crise do que aparece em plena luz do dia, segundo ele, no século XX.
subjetivas e arbitrárias. Segundo ele, a separação epistemológica kantiana Ele denuncia o conjunto da tradição filosófica que vai de Maquiavel às
leva diretamente ao positivismo jurídico. teses de Nietzsche e de Heidegger. O historicismo irracionalista desses
Esta tese de Leo Strauss será ainda defendida posteriormente na últimos torna igualmente operatória a seus olhos a dissolução do dever-
França pelo filósofo do direito Michel Villey.4 Leo Strauss encontra a ser no ser. Leo Strauss advogará assim a favor de um retorno à filosofia
confirmação de sua tese na obra de Max Weber, cujas fontes de inspira- dos Antigos, querendo romper definitivamente com a filosofia dos
ção são de um lado o neo-kantismo da escola badoise (W. Windelband, Modernos.
H. Rickert)5, de outro lado a problemática decisionista nietzschiana. Os dois desvios da modernidade que L. Strauss denuncia nos
Mas, além das teses weberianas, não há nenhuma dúvida de que o Modernos, o positivismo e o historicismo, encontram sua origem, segundo
julgamento ético em Kant não seja o produto de decisões ou de opiniões ele, no lugar que ocupa nos Modernos o sujeito, o Ego cogitans, para
arbitrárias, mas sim da Razão prática, cujas condições de exercício retomar a fórmula que ele emprega em A cidade e o homem. Em lugar do
levam, como se disse, ao postulado de uma liberdade fundamental do cosmos finalizado e hierarquizado dos gregos, os Modernos introduziram
homem. A continuidade que Leo Strauss afirma constatar nos desenhos a subjetividade que constrói o mundo que o circunda. O direito natural
dos filósofos antigo remete à relação do sujeito com o mundo no qual ele está. O sujeito
tem como dever a realização do que deve ser em função do que é, ou seja,
do lugar que ele ocupa nesse mundo ordenado e hierarquizado. Seus
direitos não preexistem a seus deveres. O que per
3 Ibidem. tence a cada um, seus direitos, será determinado com relação à ordem e à
4 Michel Villey, Leçons d'histoire de ia phiiosophie du droit, Dalloz, 1962. 5 Max finalidade desse mundo. Em contrapartida, o pensamento dos Modernos
Weber aliás se diferenciou da concepção axiológica objetivista de modifica radicalmente essa visão. O mundo sendo doravante
Rickert, in C. Colliot- Thélene, op. cit., p.129.
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HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO o RENASCIMENTO DO DIREITO NATURAL

concebido como infinito, na continuação das reflexões galileanas, a "lei pouco caso da história, no sentido de que parece extraordinariamente
natural" dos modernos é a da natureza do homem, isto é, de seus direitos improvável que esse "retorno" seja possível, ou pelo menos
subjetivos. Estes constituem, por conseguinte, o dado preexistente simplesmente
necessário em função do qual serão determinados os deveres de pensável, no quadro simples mas indiscutível da seta de um tempo his
cada um. A visão dos Antigos é, desse ponto de vista, o inverso. No
tórico irreversível. Essa crítica nos leva à segunda questão: Leo Strauss
modelo grego, pelo menos da forma como o concebe Leo Strauss, as
recusou verdadeiramente o postulado do liberalismo da modernidade,
limitações impostas pelo direito à liberdade do homem são "determinadas
que é aquele de uma igual liberdade para todos? O "retorno à Antigui
verticalmente, uma vez que a liberdade é aí limitada de maneira
dade" que professa sua doutrina deve ser tomado ao pé da letra, como
heteronômica, pela consideração do que cabe a cada homem, em virtude
acabamos de fazer em nossa crítica precedente? Defendendo explicita
de SUa natureza, no seio de uma ordem do mundo que transcende toda
mente um retorno à filosofia política clássica, Leo Strauss ainda assim
vontade humana"; ao passo que, com os Modernos, todos os limites
precisa seu pensamento desse modo: "O retorno à filosofia política clás
impostos à liberdade humana "procedem de uma limitação horizontal, de
sica é ao mesmo tempo necessário e hipotético ou experimental. [...]
uma limitação recíproca das liberdades [...]" 6. Essa limitação é
Somente nós, que vivemos hoje, podemos encontrar uma solução para os
necessariamente horizontal e recíproca, já que na visão liberal do mundo
problemas de hoje".7 Strauss foi um defensor da democracia liberal,
moderno os homens são nascidos livres e iguais. Duas questões ligadas
junto à qual encontrou ainda a proteção que lhe era necessária contra o
entre si surgem aqui. A primeira é colocada por A. Renaut e L. Sosoe: em
nazismo. Mas o que ele denunciava na modernidade era a instauração
que medida esta nostalgia do direito natural antigo professada por Leo
dessas "democracias de massa", em que a formação de uma verdadeira
Strauss
opinião individual se torna, segundo ele, cada vez mais impossível. O
é compatível com a própria idéia da liberdade, seja ela moderna ou não? O
retorno à Antiguidade visa principalmente à formação, com os meios que
homem pode ser verdadeiramente livre, quer dizer, autônomo, se
nos pode oferecer a democracia liberal, de uma opinião individual
gundo a visão substancialista do direito natural antigo? No contexto ao
autêntica, não submetida ao que Tocqueville qualificava de "tirania da
mesmo tempo social e teórico da cidade e do naturalismo antigo, a idéia
maioria". ''A educação liberal", escrevia Strauss, "é o antídoto da cultura
moderna de liberdade concebida como uma autonomia do indivíduo é,
de massa [...], a escada pela qual tentamos nos elevar da democracia de
no fundo, impensável. Sendo o homem antigo fundamentalmente um
massa para a democracia entendida no sentido original, isto é, uma aris-
membro do todo orgânico da cidade, seria anacrônico atribuir-lhe as
tocracia ampliada ao ponto de se tornar uma aristocracia universal".8 A
características do indivíduo da modernidade. A ambigüidade essencial
retomada da tradição socrática visa assim à restauração do espaço pú-
da posição de Leo Strauss, que permite taxar sua posição de
blico' que permitirá ao homem da modernidade se tornar um cidadão
antimodernista, consiste sem dúvida em um desejo mais ou menos ex-
plícito de "retomar" para um modelo antigo, portanto aquém da mo-
dernidade; daí o paradoxo deste novo "naturalismo", que parece fazer 7 L. Strauss, La Cité et l'Homme, op. cit., p.19, citado por N. Tarcov e T.
Pangle, Épilogue: Leo Strauss et l'histoire de Ia philosophie politique, in Histoire de Ia philosophie
politique, sob a dir. de L. Strauss e J. Cropsey, PUF, 1994, p. 1034.
8 L. Strauss, Le libéralisme ancien et moderne (1965), trad. fr. 1990, PUF,

6 A. Renaut e L. Sosoe, Philosophie du droit, op. cit., p.124. citado por N. Tarcov e T. Pangle, op. cit., p.1037.
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HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO o RENASCIMENTO DO DIREITO NATURAL 375

ativo, tomando consciência de que as questões relativas à "vida em co


cismo almejado pode fazer duvidar deles". 10 As contribuições
munidade" são todas e sem exceção questões eminentemente políti teóricas de Gustav Radbruch, e também as de Arthur Kaufrnann 11,
cas que retomam a questão fundamental, como colocavam-na os formam -se para1elamente a uma construção jurisprudencial muito
homens da Antiguidade: "Qual é o melhor regime para toda uma dada importante na Alemanha Ocidental no pós-guerra. Os tribunais de justiça
sociedade?': fundavam seus julgamentos sobre princípios de direito natural, chegando
até a pronunciar a ilegalidade da ordem jurídica nazista por não ter
respeitado os ditos princípios. Essa prática vem reunir outras reflexões
2. O RENAS CIMENTO DO DIREITO NATURAL NA
de Gustav Radbruch, afirmando que "se há leis que renegam
ALEMANHA intencionalmente o desejo de justiça, por exemplo... recusando os
direitos do homem de uma maneira arbitrária aos homens, falta a essas
O renascimento do direito natural na Alemanha após a Segunda leis a validade, o povo não é obrigado a obedecê-Ias, e os juristas devem
Guerra Mundial não é de forma alguma espantoso. Com a queda do Terceiro encontrar a coragem de lhes recusar o caráter jurídico" 12. O debate está
Reich, diversos teóricos do direito, inclusive alguns que antes defendiam o assim aberto, e a questão de saber se as autoridades responsáveis por "aplicar"
positivismo, consideraram que a necessidade de postular a existência de o direito devem respeitá10 unicamente porque ele é emitido pelo legislador
valores jurídicos, principalmente aqueles que estivessem ligados à competente, mesmo quando é manifestamente contrário aos valores
dignidade da pessoa humana, era doravante imperiosa. Os nomes de fundamentais, até mesmo aos direitos do homem, ampliou os termos de um
HeImut Coi'ng e de Werner Mai'hofer, o primeiro inspirado pela filosofia debate que vai ultrapassar as fronteiras da Alemanha. Juristas do mundo anglo-
axiológica de M. Scheler e de N. Harmann, o segundo pelo saxão, como H. L. A. Hart e Lon L. Fuller, engajaram-se explicitamente nisso. H.
existencialismo, estão diretamente associados a esse renascimento 9. L. A. Hart, adotando a tese positivista de separação entre o direito e a moral,
Mas são sobretudo as reações pioneiras de Gustav Radbruch que critica as posições de Radbruch. A questão da validade das regras jurídicas,
contribuíram de maneira decisiva para a revitalização dos debates afirma ele, é completamente independente de sua avaliação moral. Uma regra
relativos ao lu jurídica, mesmo moralmente iníqua, pode ser válida. "Se adotamos o ponto de
gar que deve ocupar o direito natural em uma ordem jurídica vista de Radbruch': escreve Hart, "e se, com ele e com as jurisdições alemãs, nós
positiva. Alguns meses depois do fim da guerra, G. Radbruch escreveu protestamos contra o mal no direito, afirmando que certas regras não são do
isto no jornal de Rhein-Neckar: "Há princípios que são mais fortes que direito em razão de sua iniqüidade moral, nós enfraquecemos, por tornar confusa,
todo estatuto jurídico... Esses princípios são chamados de direito natural uma das formas mais poderosas,
ou direito da razão. Certamente eles não estão isentos de dúvidas, se
examinados em detalhes, mas o trabalho de diversos séculos elaborou,
todavia, um número constante e o reuniu nas declarações chamadas dos
10 G. Radbruch, citado por K. Kühl, Le droit naturel et Ie droit de Ia raison,
direitos do
op. cit., p.42. O trecho citado está contido em Fünf Minuten RechtsphiIosophie,
homem e direitos cívicos, sendo o acordo tão geral que somente um ceti
em apêndice da 4. ed. de sua obra, RechtsphiIosophie.
11 A. Kaufmann, Naturecht und GeschichtIichkeit, 1957. 12

9 Ver supra, sobre o existencialismo jurídico. Citado por K. Kühl, op. cit., p.42-3.
377
376 HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO o RENASCIMENTO DO DIREITO NATURAL

porque é a mais simples, da crítica moral [...]': Podemos perfeitamente te.14 É suficiente observar, diz ele, a prática jurídica e a utilização que as
criticar moralmente as regras de uma ordem jurídica positiva, mas "se autoridades competentes fazem da regra de reconhecimento, para consta
ao contrário, formulamos nossa objeção dizendo que as coisas más nã~ tar tanto a existência dessa regra quanto os critérios de validade que ela
são do direito, é uma asserção na qual muitos não acreditarão, e se esti- estabelece. Em contrapartida, a crítica moral do direito ressalta a dimensão
vessem dispostos a contemplá-Ia, isso pareceria demandar a solução de normativa do discurso jurídico, e nesse sentido ela não estabelece mais
numerosos problemas filosóficos antes de poder ser aceito. [...] Também" que proposições "filosóficas discutíveis".ls
,
c A polêmica na qual se engajou Lon L. Ful1er 16 com o professor H. L.
onclui ele, "a lição mais importante a reter é utilitarista: quando ternos à A. Hart revela outros aspectos da tese de separação positivista que
nossa disposição os recursos imensos do discurso simples, não devemos tra
fazer a crítica moral das instituições, a apresentação de proposições filo- zem dificuldades. "A verdadeira questão", escreve Lon L. Fuller,
sóficas discutíveis': 13 A proposição filosófica que assimila a validade das regras "que se
jurídicas à sua moralidade, no caso a tese de Radbruch, é, ou parece, para os professores Hart e Radbruch é a seguinte: como colocar o
segundo Hart, mais discutível filosoficamente que a separação entre as problema? Qual é a natureza do dilema ao qual somos confrontados? [...]
duas questões: validade jurídica e crítica moral do direito. Uma proposi-
O postulado fundamental do positivismo, segundo o qual o direito deve
ção se torna filosoficamente discutível a partir do momento em que ela
não é suscetível de receber uma única resposta. Somente as proposições ser rigorosamente distinto da moral, parece negar a necessidade de uma
descritivas e verificáveis podem assim ser consideradas como proposi- passarela entre a obrigação de obedecer ao direito e as outras obrigações
ções filosoficamente indiscutíveis. Com efeito, a questão da validade das morais. Eu não penso que seja inexeqüível censurar a filosofia positivista
regras jurídicas diz respeito, segundo a posição hartiana e conforme a de jamais ter dado qualquer significação coerente à obrigação moral de
tradição positivista em geral, à dimensão descritiva do discurso sobre o obediência ao direito". 17 A tradição positivista, identificando o direito com
direito. H. L. A. Hart afirma mais precisamente, em The concept oflaw, a a ordem jurídica estabelecida, seja sob a forma dos mandamentos do so
existência da regra de reconhecimento último, que estabelece os critérios berano (Bentham, Austin), seja sob a forma de um sistema de normas
da validade das regras jurídicas: são critérios descritivos de jurídicas que tiram sua validade de uma norma fundamental (Kelsen),
"constatabilidade" das regras jurídicas válidas. Eles se referem essencial- jamais atribuiu um caráter moral à obrigação de obedecer ao direito.
mente aos procedimentos e às autoridades competentes para criar regras Certamente os positivistas citados, e também todos os que se situam no
jurídicas. Não se coloca jamais, explica Hart, a questão da validade nem
prolongamento das teses do normativismo (H. L. A. Hart e Raz), aceitam
da invalidade; ela não é também "suposta" pelo raciocínio jurídico como 14 H.ordem
L. A. Hart, Le concept du droit, op. cit., p.137
que toda jurídica estabelecida engendra em si (no original,
mesmo p.106). 15
as regras
a norma fundamental em Kelsen. A regra de reconhecimento exis Sobre esse assunto, ver infra sobre as metamorfoses do positivismo jurí
dico.
13 H. L. A. Hart, "Positivism and separation of Law and Morals", Harvard 16 Lon L. Fuller, "Positivism and Fidelity to Law. A Reply to Professor Hart",
Law Review, voI. 71, 1958, p.593-629. Trechos reprad. em Le positivisme juridique, sob Harvard Law Review, v.71, 1958, p.630-72. Trechos reprod. em Le positivisme
a dir. de M. Troper, C. Grzegorczyk, Fr. Michaut, op. cit., p. 497. Os itálicos são nossos. juridique, op. cito
17In Le positivisme juridique, op. cit.,
p.498.
378
HISTORIA DA FILOSOFIA DO DIREITO
o RENASCIMENTO DO DIREITO NATURAL 379

morais, quer sejam regras de origem divina, como pensava Austin, Hart dá prioridade à primeira. A segurança jurídica constitui um valor em
qUer sejam muito simplesmente regras socialmente aprovadas, como si; não se pode ser verdadeiramente livre a não ser quando se conhece as
conseqüências de suas ações; estas devem então ser determinadas em
pensava
função de um conjunto de disposições jurídicas claras e, em princípio,
Hart. Este último sustentou mesmo a tese do "conteúdo mínimo de di não- retroativas. Assim, como poderíamos optar sem nenhuma hesitação
reito natural" que todo sistema de direito positivo necessariamente deve pelos valores morais se estão em oposição com a segurança jurídica e a
ordem jurídica estabeleci da? É sem dúvida sob a influência desta proble-
conter e que é composto são, explicava ele, das "formas mínimas de pro
mática que Radbruch, no início de sua carreira e antes de sua conversão
teção das pessoas, da propriedade e das promessas que são igualmente ao jusnaturalismo, subscreveu às mesmas teses positivistas: diante dos
componentes indispensáveis do direito nacional': "É sob esta forma que quatro elementos que constituem a idéia do direito, ou seja, o elemento
nós respondemos à tese positivista segundo a qual 'o direito pode ter de justiça (igualdade formal de tratamento), o elemento de finalidades
concretas perseguidas pelo legislador, e os da ordem e da segurança jurí-
qual
dicas, Radbruch também dava prioridade ao último elemento.21 Ora, di-
quer conteúdo: 18" No entanto, a obrigação de obedecer ao direito não ante dessa tese, a posição de Fuller é categórica: "Buscando a ordem,
comportava, a seus olhos, qualquer caráter morall9, porque a obrigação podemos frutiferamente nos lembrar de que a própria ordem não nos
moral não age senão sobre o "foro interno" do agente que realiza uma servirá de nada se não for boa para alguma coisa. Procurando tornar
ação, quando as motivações da obrigação jurídica são muito variáveis; elas nossa ordem boa, podemos lembrar que a própria justiça é impossível
sem ordem, e que não devemos perder a própria ordem tentando torná-Ia
vão do medo da sanção à satisfação dos interesses puramente materiais.
boa':22
Hart, como muitos outros positivistas, faz sua a tese kantiana da separa
ção do direito da moral: eu ajo moralmente, para pensar como Kant, quan
3. O ANTIMODERNISMO DE MICHEL VILLEY
do ajo unicamente por dever, segundo uma regra colocada in foro interno
e jamais in foro externo.
Há no pensamento de Michel Villey (1914-1988) uma obscura
Lon L. FulIer, sem subscrever à idéia de Radbruch quanto à existência de proximidade com os esforços filosóficos de Heidegger.23 Obscura, por
um "direito superior" - sua concepção se atém mais à idéia de uma
18H. L. A. Hart, Le concept du droit, op. cit., p.239 (no original, p.195). 21 G. Radbruch,Rechtsphilosophie, 1932, § 2, 2, citado por K. KüW,op.
cit.,p.45. moralidade interna do direito, baseada em definitivo sobre uma antro
pologia que tem o homem como um ser livre e responsáveFo -, compar
19 H. L. A. Hart, Legal and Moral obligation, in A. I. Melden (ed.), Essays in 22 Lon L. Fuller, op. cit., trecho trad. em fr. e reproduzido em Le
tilha de qualquer forma a idéia de uma escolha que se deve fazer quando
positivisme
se estáPhilosophy,
Moral diante de leis iníquas,
Seattle, que não ofWashington
University devem nem serPress,
aceitas pelos
1958, cida
p.89. juridique,op. cit., p.499.
dãos 20nem
Lonser
L. aplicadas
Fuller, Thepelas autoridades
morality oflaw, competentes.
New Haven e Em contraparti
Londres, rev. ed., 1978, p. . 23 Sobre essa proximidade: Alain Renaut e Lukas Sosoe, Philosophie du
da, a problemática hartiana termina por optar pela escolha inversa: entre
droit,
a segurança jurídica e os valores morais que se gostaria de não sacrificar,

157. -L:F, 1991, p.153.


que o ilustre historiador da filosofia do direito, uma figura marcante

do desenvolvimento dessa disciplina na paisagem intelectual e univer


380
HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO
sitária francesa, não elucidou jamais ele próprio essa proximidade COm o RENASCIMENTO DO DIREITO NATURAL 381

um filósofo em quem ele não se inspira diretamente e de quem ele ja


a "natureza das coisas". Antes de nos debruçarmos sobre o sentido a dar a
mais examina as teses em sua obra. Mas uma perturbadora conVergên essas "coisas': examinemos a rejeição do direito subjetivo. Sob a pena de
cia de perspectivas permite aproximar Villey e Heidegger, pelo menos Villey, uma certa equivalência é colocada entre as noções de indivíduo e
de sujeito, o que não se dá necessariamente sem problemas para a
em relação a uma intuição filosófica central: a modernidade seria um coerência de sua teoria, salvo para assumir, como ele faz, uma rejeição
declínio, o último avatar da história de um esquecimento das origens. em bloco do sujeito prático kantiano e do indivíduo tal como foi dese-
nhado no pensamento político depois do nominalismo de Ockham atéas
Da mesma forma que a história da filosofia seria o lugar de esqueci
figuras do individualismo contemporâneo. Retraçando ele próprio uma
mento do Ser segundo Heidegger, a história do direito e da filosofia do história do indivíduo, Villey o mostra destacando-se por fases sucessivas
direito seria, segundo Villey, um esquecimento do próprio direito. A con de uma parte do pensamento teológico cristão e do humanismo, antes de
se impor nas doutrinas de Hobbes, Locke, Rousseau e Kant, e de chegar a
vergência de perspectivas entre esses dois diagnósticos extremamente
uma espécie de apoteose na doutrina dos direitos do homem. Ora, o
críticos a respeito da modernidade e a condenação comum da figura individualismo é o pecado original da modernidade, segundo Villey: ele
do "sujeito': alto lugar teórico do pensamento metafísico clássico e das estaria baseado em uma prioridade aberrante dada ao elementar que apaga
a idéia de uma sociabilidade natural dos homens, em um voluntarismo
teorias do direito "subjetivo': encontram contudo um limite: Heidegger
racionalista, em uma confusão da ordem do direito e do que é político,
visa um recurso do pensamento autêntico em origens gregas e pré antes de atingir uma conexão ainda pior do direito com a moral, como se
socráticas; Villey, ainda que fascinado pelo modelo aristotélico da aná o direito tivesse a possibilidade e a missão de intervir na ação dos
indivíduos, como uma espécie de diretor das condutas dos justiciáveis.
lise do direito, tem uma preferência por uma origem romana, vendo no
Todos esses caprichos, os quais se constata serem denunciados ao preço
próprio direito romano o lugar por excelência da manifestação do que de críticas verticais que não poupam nem o positivismo jurídico nem as
é "autenticamente" o direito. doutrinas modernas do direito natural, nem, sobretudo, a doutrina dos
direitos do homem, arruinariam a essência autêntica do direito, segundo
Villey opõe o objetivismo e o realismo que ele crê descobrir no
Villey. O ponto central do conjunto das críticas de Villey, além do sujeito
modelo romano do direito ao nominalismo e ao individualismo do e do indivíduo, permanece sendo a idéia segundo a qual o próprio homem
di seria "o fim do direito", e que estipula que não poderia haver relações
jurídicas senão entre homens. O antropocentrismo que se desdobrou no
reito moderno, todo maculado que é pela figura central do sujeito.
pensamento moderno do direito deve então ser revogado: é um engodo
Não que é preciso ultrapassar retornando aquém do homem para o direito
enquanto tal, assim como é preciso retornar para o Ser em Heidegger, e
se pode imaginar um pensador mais antikantiano que Villey: desde
reativando, à maneira da conduta de Leo Strauss, o pensamento político e
nhando a proibição kantiana de descobrir o mínimo universal no jurídico antigo contra a modernidade.
empírico, ele defende a idéia de um direito que seria um "universal in
re': De passagem, ele nega igualmente o princípio que anima o positi
vismo de Kelsen, segundo o qual não se poderia derivar o Dever-Ser do
Compreende-se assim a dupla rejeição de Villey. Por um lado, ele

382
pode se levantar contra o positivismo jurídico, insistindo na idéia de
HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO
um direito que não pode ser colocado pelo homem, mas que lhe o RENASCIMENTO DO DIREITO NATURAL 383

preexiste, inscrito como seria na natureza das coisas. Por outro


de críticas análogas àquelas dos comunitarianos no pensamento político
lado, para americano contemporâneo: seria um ser descomprometido, abstrato,
Villey trata -se igualmente de denunciar o direito natural moderno cama inexistente, porque separado arbitrariamente de uma inscrição natural na
sociabilidade. Villey não parece reconhecer nessa matéria a originalidade
a segunda figura possível do antropocentrismo: esse direito pretende do kantismo, que permite fazer gravitar o direito em torno do homem,
ser aquele do sujeito, anteriormente a toda inscrição nas regras positi não em um sentido individualista, mas em um sentido universalista, a
partir da idéia central de que a liberdade é a condição de possibilidade
vas, e decorre também absurdamente do homem pelo intermédio de
da prática, e que será possível julgar o direito positivo em nome do
hipóteses como aquelas do "estado de natureza': A descentralização pro direito racional, isto é, não de um direito "abstrato e vago" como o supõe
posta por Villey é uma espécie de revolução copernicana ao contrário: Villey, mas de uma concepção ao mesmo tempo do homem e do direito
tendo sentido apenas na liberdade e pela liberdade. A doutrina de
o homem deve gravitar em torno do direito, e não o direito em torno
VilIey é, muito ao contrário, aquela de uma sujeição do homem a "uma
do homem. Contra o conjunto do pensamento moderno, Villey defen ordem das coisas".
de assim um retorno ao naturalismo antigo, que deve ser cOmpreendi .Em segundo lugar, para dizer a verdade, essa "ordem das coisas"
nos deixa perplexos. Que o direito seja "universal in re" também não
do, segundo ele, como um realismo.
passa sem colocar certas dificuldades teóricas graves. Em suma, podemos
Limitar-nos-emos a indicar aqui duas críticas possíveis contra o nos perguntar nos dois casos se não há uma confusão entre uma ordem
conjunto de posições de Villey. das coisas instituídas historicamente e uma suposta ordem natural, assim
como entre o direito romano e o direito in re. "Creio", declara VilIey,
. Em primeiro lugar, pode-se suspeitar que Villey confunde as no "que a necessidade de um retorno à filosofia clássica do direito natural se
torna cada vez mais evidente... A única pista que entrevejo [...] é a de se
ções de indivíduo e de sujeito, ao preço, por exemplo, de uma
reconsiderar até a ordem natural cósmica: eu entendo essas relações
possível implicadas na ordem da natureza... Torna-se indispensável para os
má compreensão da doutrina kantiana do direito. Em seu empreendi juristas reconhecer a presença de um direito nas coisas':24 Essa
mento de defesa de um realismo jurídico inaugurado por Aristóteles, declaração é particularmente clara: trata-se de retomar ao naturalismo
antigo, ou seja, à primeira versão do direito natural fundada em uma
depois desenvolvido pelo direito romano e por São Tomás, no fundo, harmonia cósmica. Tal posição parece comportar três fraquezas não
Villey deve absolutamente poder acusar Kant de levar a um ponto cul elucidadas por VilIey. A primeira remete de alguma ma
minante a idéia clássica de um direito natural do indivíduo: o criticismo
não seria senão um jusnaturalismo "teórico': cuja conseqüência para
Michel Villey, "Le droit dans choses': in Paul Amselek, Controverses autour
doxal, pela invocação de um direito racional impraticável que seria a 24

de l'ontologie du droit, PUF, p.25; S. Goyard-Fabre, Les fondements de l'ordre


forma abstrata do direito natural, seria o positivismo jurídico. A possi juridique, PUF, 1992, p.229.

bilidade de uma fundação transcendental do direito, que em Kant per


385
384 HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO
o RENASCIMENTO DO DIREITO NATURAL

e ao realismo jurídico romano, ele assume uma estrita separação do


neira ao idealismo histórico: como pretender que uma importação do
direito e dos direitos do homem, pensando o primeiro contra os segun
naturalismo antigo possa ser possível no mundo contemporâneo?
dos. Como escrevem Alain Renaut e Lukas Sosoe, "trata-se de um anti-
Seria preciso que este pudesse reduzir sua história intelectual e
humanismo jurídico resoluto e assumido como tal".26 Por outro lado, a
institucional e retomar aquém de si mesmo. Vê-se mal sobre que
crítica do humanismo é aqui jurídica, o que implica que o que é rejeitado
bases poderia se dar crédito a um direito natural fundado em uma
por Villey na esfera da teoria do direito pode coexistir com um reco
"harmonia cósmica': sem que haja uma efetiva partilha geral de valores
nhecimento dos valores do humanismo em uma esfera propriamente ética.
antigos, o que implicaria, por exemplo, em uma amnésia científica e na
Ora, é precisamente a confusão dessas duas esferas que Villey pretendia
conversão geral de nossos contemporâneos a uma visão estóica da
combater, o que dá à sua posição características tão originais
Natureza como organismo harmonioso e divino, por exemplo. A segunda
quanto paradoxais: assim como o positivismo jurídico que ele quer re
fraqueza diz respeito precisamente à própria ambigüidade de todo
futar, ele rejeita a confusão da ética e do jurídico, mas contra o positi-
naturalismo, principalmente o da Antiguidade: para a modemidade, é
relativamente claro que qualquer discurso sobre a natureza não poderia se vismo, ele o faz em nome de um realismo naturalista; ora, este, pelo
fazer passar por um discurso da própria natureza. A ideologia naturalista menos em nosso sentido, talvez não seja extraível dos universos grego,
romano ou tomista sem sua componente ética.
sempre se baseia sem dúvida sobre esta obscuridade essencial: ela possui,
dizia Clément RosseeS, o mais seguro, porque o mais silencioso
dos referenciais. A natureza, como todas as testemunhas mudas, não trai
jamais... Afirmar que existe uma "ordem natural cósmica" resulta em 4. FINNIS
dizer que há em uma teoria da natureza a possibilidade de colocar uma
É em Natural Law and Natural Rights27 que o filósofo John Finnis
ordem natural cósmica, que não se poderia de outra forma atribuir à
defende, contra todo ceticismo, a existência de uma realidade moral
própria natureza sem paralogismo epistemológico. Com Michel Villey,
independente à qual todo sujeito conhecedor pode ter acesso. Esse
trata -se de retomar não para a natureza, mas para um tipo de discurso
realismo moral, considerado como uma postura filosófica superior àquela
sobre a natureza que foi aquele de uma sociedade desaparecida há muito
da modemidade, é defendido por Finnis até seus últimos escritos. Tal
tempo. Com isso, a terceira fraqueza ressalta dessa assimilação do
realismo moral comporta, com efeito, segundo ele, um certo número
"universal natural" para uma sociedade bem precisa, mais a de
de valores fundamentais deduzidos pela razão prática a partir dos "prin
Roma que a de Aristóteles no espírito de Villey. A "natureza das coisas"
não é aqui senão a natureza das instituições romanas, e não, como parece
pretender Villey, a natureza-verdadeira do direito, descoberta pela
teoria e pela prática romana do direito? Essas críticas possíveis não 26 Alain Renaut e Lukas Sosoe, Philosophie du droit, PUF, 1991, p.145.
devem, contudo, empurrar para a sombra as posições por demais 27 J. Finnis, Natural Law and Natural Rights, Clarendon Press, Oxford, 1980.
matizadas e conseqüentes de Villey. Endossando os efeitos de seu Do mesmo autor: Fundamentais of Ethics, 1983a, Clarendon Press, Oxford;
retorno ao naturalismo Fundamentais of Ethics, 1983b, Georgetown University Press, Washington. Tam
bém entre os trabalhos mais recentes: Aquinas. Moral, Political and Legal
Theory, Oxford University Press, 1998, Oxford.
25 Clément Rosset, L'Anti-nature, PUF, 1973, cal. Quadrige, 1995.
386 HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO

10
cípios de base" comuns a toda sociedade, e que seriam nesse sentido in-
contestáveis. São assim, segundo Finnis,princípios evidentes (self- CApíTLlo
evident) como a proteção da Vida e o cuidado imanente do ser humano
com a Verdade que podem ser apreendidos intelectualmente por meio de
uma espécie de "intuição", que não deixa de lembrar a intuição platônica
das Essências. Os princípios evidentes constituem assim o ponto de parti- AS METAMORFOSES DO
da para a razão prática que, seguindo os ensinamentos dos filósofos
gregos, só pode ser racional (pratical reasonable), levando a deduzir ou- POSITIVISMO JURíDICO
tros valores fundamentais sobre os quais repousa o Bem-estar, o Eu Zein
aristotélico, de urna vida em comunidade. O princípio de justiça, por
exemplo, é, segundo ele, deduzido do princípio segundo o qual toda
pessoa deve contribuir de maneira ativa ao Bem-estar da comunidade de
que faz parte. Conseqüentemente, ele não poderia ser identificado ao
"tratamento igual de todos", pois o bem-estar da coletividade tem
absoluta primazia sobre os bens individuais, no nível dos quais serão
classificadas as liberdades fundamentais do indivíduo. Mas, conforme 1. A DESIGNAÇÃO DOS MODELOS
replicou Habermas28, como esta filosofia pode justificar de um ponto de
vista epistemológico o realismo moral que ela defende? O caráter "evi- Nós nos inspiramos aqui em um artigo de Robert Alexy, publicado
dente" (self-evidence) de princípios morais que ela sustenta constitui uma em uma revista italiana de filosofia do direito, para agrupar em cinco
prova suficiente da existência de tal reino de valores? Além disso, como modelos as teorias que foram dominantes em filosofia do direito. Os
essa mesma filosofia pode tornar compatível o postulado ontológico da componentes de certos modelos se entrelaçam muitas vezes, mas rete
existência de um reino de valores fundamentais comuns a toda sociedade mos aqui aqueles que parecem ser predominantes em seus limites.l
e o próprio fato do pluralismo axiológico que cada um pode constatar no O primeiro modelo é o modelo dedutivo, cujas origens remontam à
seio dessas mesmas sociedades? Por outro lado, o retrocesso à concepção Begrijfsjurisprudenz (a jurisprudência dos conceitos) que conheceu uma
antiga do Bem e o primado da sociedade sobre o indivíduo são grande floração na Alemanha entre o fim do século XIX e o início do
dificilmente compatíveis com um certo número de sociedades modernas século XX, e influenciou a escola da exegese na França. A solução jurí-
que existem de fato empiricamente e que, quando adotaram globalmente dica relativa a um litígio é, segundo esse modelo, deduzida logicamente
as teses do liberalismo político, tenderam, pelo menos idealmente, a das regras jurídicas válidas, e também dos conceitos jurídicos confor
atribuir a todos um direito igual na busca da boa vida segundo
concepções privadas do Bem.

I R. Alexy, Legal Argumentation as Rational Discourse, Rivista Internationale di


Filosofia dei Diritto, 1995, p.167.
28 J. Habermas, A Short Reply, in Ratio Juris, v.12, nA, 1999, pA46-7.
388 As METAMORFOSES DO POSITIVISMO JURíDICO 389
HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO

me são definidos pela dogmática jurídica (modelo de subsunção). A retomada dessa conduta pela teoria do direito consiste em ques-
Já pudemos constatar os limites desse modelo contra o qual as tionar o dualismo preconizado pelo positivismo legalista entre
críticas não cessaram de se multiplicar desde o começo do século XX} criação e aplicação do direito. A autoridade jurisdicional, ainda que
O segundo modelo é oriundo da hermenêutica, principalmente da- não dotada da prerrogativa de criação do direito, produz novo direito
quela que foi desenvolvida por H. G. Gadamer na Alemanha e E. Betti na cada vez em que está na situação de interpretar/aplicar os textos jurídicos.
Itália, durante a segunda metade do século XX.3 Os trabalhos de J. Esser, de A. O intérprete dos enunciados jurídicos contidos nos textos das normas
Kauffmann e de M. Kriele4 inspiram-se diretamente neste modelo. Mas escritas, nas coleções da jurisprudência ou ainda nos pareceres da doutrina
quem não reconheceria que uma grande parte do pensamento teórico não aborda jamais esses textos sem ter, preliminarmente, uma idéia
jurídico contemporâneo, principalmente depois de H. L. A. Hart, levou preconcebida do que "demanda" o caso concreto a ser decidido (pré-
em consideração as aquisições da hermenêutica? Designemos aqui compreensão). A própria escolha dos textos jurídicos a aplicar
brevemente as teses que guiaram o trabalho de numerosos filósofos do mostra -se guiada
direito e que são, como todas, construí das em torno do famoso pela hipótese que o intérprete faz quanto à solução que a situação litigiosa
círculo hermenêutico relativo ao conhecimento que um sujeito parece demandar. A própria formação da hipótese que guia sua pesquisa
(teórico do direito, juiz, advogado, partes) pode tomar de seu objeto de não é estranha à concepção que o intérprete faz dos princípios e das
estudo (textos de normas jurídicas, prática jurisprudencial, comentários regras jurídicas que ele considera pertinentes, isto é, aplicáveis à situação
da doutrina). "O objeto não pode ser apreendido", escrevia J. Ladriere a concreta. Portanto, em caso de conflito entre as regras jurídicas a aplicar,
propósito da conduta hermenêutica, "senão pelos instrumentos de com- ele terá de operar uma escolha que conduz à solução que parece tanto
preensão fornecidos pelo sujeito, mas a maneira pela qual o sujeito ela- estar em conformidade com a ordem jurídica quanto ser razoável e
bora estes instrumentos é ela mesma determinada pelo conjunto da eqüitativa com relação aos princípios de justiça que ela supõe veicular. O
situação; ora, é esta situação que constitui precisamente o objeto estu- processo de aplicação/interpretação do direito caminha lado a lado, como
dado, que nos esforçamos por compreender': 5 observa R. Alext, com a troca de argumentos evocados por todos os
participantes do processo, a autoridade jurisdicional e as partes. A
argumentação permite aos participantes, em todo caso até o fim do
processo, questionar os critérios com base nos quais eles optam para a
2 Cf. supra. solução jurídica que propõem, se indagar sobre os pontos de vista que
3 H.G. Gadamer, Wahrheit und Method, Tübingen, l.ed., 1960, (trad. fr. escolheram, até eventualmente os modificar e, nesse sentido, "compre
Vérité et méthode, Le Seuil, 1976); E. Betti, Teoria generale della interpretatione, ed. ender a situação" como aquele que está aí implicado e que, por sua ação
Dott. A. Giuffre, Milão, 1955. que interfere na dos outros, chega a formar um julgamento. Desse modo,
4 J. Esser, Vorvestitndnis und Methodenwahl in der Rechtsfindung, 2.ed., Frank- um dos postulados do círculo hermenêutico é aquele da auto
furt am Main, 1972; M. Kriele, Recht und Praktische Vernunft, Gottingen, 1979;
A. Kauffmann, "Problemgeschichte der Rechtsphilosophie", in A. Kauffmann e
W. Hassemer (ed.), Einführung in Rechtsphilosophie und Rechtstheorie der
Gegenwart, 5.ed., Heildeberg, 1989.
5J. Ladriere, L'articulation du sens, t.1, Éd. du Cerf, 1984, p.46. 6 R. Alexy, op. cit.,
p.168.
390 391
HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO As METAMORFOSES DO POSITIVISMO JURíDICO

reflexividade, OU seja, esta atitude crítica que os autores podem ter rência. As tendências no seio desse modelo são diversas e polêmicas
Com respeito à sua pré-compreensão.7 entre si. Pode-se, em primeiro lugar, mencionar aqui a teoria da
A segunda idéia ligada ao círculo hermenêutico é a relação entre o integridade (integrity) do filósofo americano Ronald Dworkin, mas
"todo" e as "partes". Não se poderia tomar conhecimento de uma norma também a teoria neo-institucionalista de Neil MacCormick e de Ota
jurídica - uma proposição ou um enunciado qualquer - sem situáIa na Weinberger, sem esquecer os trabalhos de Bernard Jackson que optam
ordem jurídica em que ela se inscreve, da mesma maneira que a por um enfoque semiótico, e os do finlandês Aulis Aarnio e do sueco de
identificação da ordem jurídica não seria independente dos enunciados origem polonesaAlexy Peczenik. Uns, como Ronald Dworkin, dão-se os meios
normativos jurídicos que a compõem. O "vai-e-vem" permanente entre a de pensar como critérios últimos que permitem tornar uma ordem jurídica
"parte" (o enunciado normativo) e o "todo" (a ordem jurídica) quanto à coerente. O filósofo americano advoga assim a favor de uma racionalidade
identificação do sentido dos enunciados normativos implica um jurídica substancial que tornará uma ordem jurídica coerente. Os outros, como
condicionamento recíproco, da mesma maneira que o sentido de uma os neo- institucionalistas Ota Weinberger e Neil MacCormick, fazem da
situação particular, a "parte" na hermenêutica gadameriana, é con- coerência unicamente um ideal que deve atingir uma ordem jurídica,
dicionado pela tradição cultural, isto é, o "todo" que a "precede", uma enquanto que Aarnio e Alexy consideram que é unicamente pelo viés dos
vez que este não faz sentido fora do presente histórico concreto. Um procedimentos de argumentação entre os societários jurídicos que uma
segundo postulado derivado do círculo hermenêutico para a filosofia do direito é ordem jurídica positiva pode satisfazer os postulados da coerência e da
que o "todo" e a "parte" constituem uma unidade, ou seja, que todo enunciado legitimidade.8 Esses últimos se opõem às teorias substanciais da racionalidade
jurídico faz parte de uma ordem jurídica coerente. jurídica e advogam a favor de uma racionalidade jurídica processual.
O postulado da coerência torna-se então o elemento predominante A hermenêutica abriu uma passagem em teoria do direito a novas
para um terceiro modelo que, aliás, recebe este nome: modelo da coe vias de legitimação de uma ordem jurídica, tornadas necessárias depois do
desmoronamento da identificação weberiana da legitimidade de uma ordem
jurídica com sua legalidade. A conduta hermenêutica, para dizer de forma breve,
questiona a distinção entre criação e aplicação do direito de maneira ainda mais
radical do que as críticas formuladas com respeito ao positivismo legalista no
7 Mencionemos desde já o desacordo que há entre Gadamer e Habermas,
início do século XX.9 Com efeito,
este último inscrevendo-se na posteridade da hermenêutica gadameriana. A hermenêutica
de Gadamer permanece, segundo Habermas, exclusivamente ligada às idéias da tradição,
da autoridade e do prejulgado, recusando por isso a possibilidade de a razão criticar a
tradição e as ideologias que esta veicula. A experiência hermenêutica gadameriana visa
assim à reinterpretação, à reapropriaçãO de alguma forma da tradição cultural no presente
histórico, enquanto que a pragmática habermasiana advoga a favor de uma crítica das 8 A. Aarnio, A. Alexy, A. Peczenik, "The foundation of legal reasoning", in
ideologias da tradição, fundada sobre uma ética da discussão. Cf. J. Habermas, "La Rechtstheorie, 1981, p.133-88, 257-79, 423-48. Alexy se inspira na teoria comunicacional
prétention à l'universalité de l'herméneutique", in Logique des sciences sociales, PUF, de K. O. Apel e de J. Habermas, enquanto que Aarnio e Peczenik se aproximam mais da
1987. J.M. Ferry, Habermas, l' éthique de Ia communication, PUF, 1987, p.125-42; P. nova retórica de Perelman e de sua noção do "razoável': B. Jackson, Fact, Law and
Ricoeur, Du texte à I'action. Essais d'herméneutique II, Le Seuil, 1986, p.351-62. Narrative Coherence, Londres, 1988.

I 1 9 Ver supra.
392
HISTORIA DA FILOSOFIA DO DIREITO As METAMORFOSES DO POSITIVISMO JURíDICO 393

não se trata mais de constatar apenas que um sistema de direito COm lecionam os aspectos factuais dessa situação à luz dos conceitos jurídicos
porta lacunas, antinomias ou, enfim, que as regras jurídicas suscitam utilizados. Antinomias e lacunas não existem nem em si nem fora de
muitas vezes dificuldades de interpretação, mas trata-se, bem mais pro- qualquer "aplicação" concreta do direito. A "descrição circular" coloca
também em primeiro plano o processo de aplicação do direito e torna
fundamente, de se indagar sobre a confiabilidade do modelo da
mais problemática a distinção entre a criação do direito e sua aplicação.
subsunção de um caso concreto sob uma regra jurídica tal como é pre Essa "descrição circular" não indica unicamente um problema
conizado pelo positivismo jurídico, isto é, pelo "convencionalismo': metodológico, mas também um problema político importante, aliás cada
como dizia Ronald Dworkin. O que o enfoque hermenêutico evidencia vez mais tematizado pela teoria e pela filosofia do direito: o risco de um
mais precisamente é que tanto o estado de coisas a julgar (os fatos) corno governo dos juízes, na medida em que o princípio da separação dos
a regra jurídica a aplicar se constituem e se esclarecem mutuamente poderes sobre o qual repousa as ordens jurídicas democráticas ocidentais
quanto ao seu sentido. "Uma norma': escreve J. Habermas a propósito é questionado, principalmente quando o controle de constitucionalidade
do enfoque hermenêutico, "não 'apreende' uma situação complexa do das leis (e, portanto, do legislador) ganhou cada vez mais importância
institucional nos países ocidentais. Nessas circunstâncias, como se
mundo vivido senão de uma maneira sempre seletiva, com base nos pon
poderia continuar a identificar a legitimidade de uma ordem jurídica com
tos de vista que ela considera preliminarmente como pertinentes, en
a legalidade do exercício do poder, até mesmo do poder legislativo, como
quanto que o estado de coisas que se constitui por meio dela não esgota
considerava outrora o positivismo jurídico tradicional? O pensamento
jamais o conteúdo de significado vago de uma norma geral mas, ao
jurídico contemporâneo está à procura das novas vias de legitimação da
contrário, coloca-o em valor de maneira seletiva. Essa descrição circu
ordem jurídica que estão estreitamente ligadas ao processo judiciário de
lar indica um problema metódico que toda teoria do direito tem que aplicação da lei. Todos os modelos de coerência citados aqui dizem
esclarecer': 10 Um estado de coisas não se constitui se não for respeito essencialmente à questão de saber sob quais modalidades se
descrito nos conceitos de uma norma, enquanto que esta se concretiza à poderá doravante assegurar o respeito àlei: em outras palavras, em um
medida que se aplica a esse estado. 11 A "descrição circular': como a caso difícil, em que diversas soluções jurídicas são contempladas, como
qualifica se poderá considerar que uma decisão judiciária será justificada e, nesse
Habermas, de qualquer maneira esclarece sobre este ponto, a saber, que sentido, conforme a lei? Mas o princípio de legalidade diz respeito, além
constatar a existência de lacunas e de antinomias em direito depende de ao juiz e ao administrador, ao próprio legislador que age nas missões e
inteiramente da maneira pela qual as autoridades de aplicação nos limites que lhe são fixados constitucionalmente. Assim, esse princípio
10 J. Habermas, Droit et Démocratie. Entre faits et normes (I 992), Gallimard,
"problematizam"
1997, p.220. uma situação litigiosa - da maneira pela qual elas se "comanda também toda regra jurídica, acompanhando essas ações e
II De qualquer forma, devemos ressaltar que a esta idéia não subscrevem decisões para se inscrever no sistema geral do direito público, em
conformidade com as normas de classe superior e com os princípios
todos os representantes deste modelo apesar de sua afiliação ao paradigma
gerais que têm valor cardinal na hierarquia das normas. Segue-se que,
hermenêutico. Testemunha disto é a distinção entre coerência normativa aparentemente, a autoridade pública chamada a dizer o direito deveria, de
(entre uma maneira ou de outra, referir-se inicialmente ao que nele possui a mais
as normas jurídicas) e coerência narrativa (entre os fatos alegados pelas alta generalidade, a fim
partes no
curso de um processo) que faz Neil MacCormick. Ver infra.
394
HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO As METAMORFOSES DO POSITIVISMO JURíDICO 395

de assegurar a coerência racional de suas medidas, segundo o princípio


de legalidade". 12 holistas e universalizantes como a de R. Dworkin quanto as teses críticas
dos CLS. Segundo ele, trata-se nos dois casos de defender a idéia de uma
Em reação aos representantes do modelo da coerência, uma parte Razão jurídica que venha ou para dar as respostas objetivamente justas às
do pensamento jurídico teórico contemporâneo questiona a questões litigiosas - é o caso da "one right answer" de Ronald Dworkin -
possibilidade de contemplar a ordem jurídica de maneira global e ou para descobrir por detrás dos casos litigiosos os jogos ideológicos da
universalizante. concepção liberal e, sobretudo, os interesse protegidos por essa ideologia,
como pretendem os fundadores dos CLS, uma vez que uma crítica assim
A idéia de reconduzir as regras jurídicas a alguns princípios
radical é, a seus olhos, impossível porque se inscreve na mesma
superiores racionalidade que quer criticar.
e fundamentais que asseguram a coerência do sistema se baseia, Certos representantes do modelo da coerência consideram, como já
segun dissemos, que razões substanciais podem justificar as decisões das
autoridades chamadas a dizer o direito. Outros optam, em contrapartida,
do essa fração do pensamento jurídico teórico, em uma concepção
por uma racionalidade processual do direito baseada em procedimentos
utó
de argumentação. Entre esses últimos, além dos trabalhos de R. Alexy e
pica. A esfera jurídica, afirma-se, é atravessada por princípios
de A. Aarnio, devemos igualmente classificar os de K. Günther, de
contraditórios cuja conciliação por um princípio superior e unificado r não inspiração habermasiana.
é jamais considerável. Essa idéia é principalmente defendida pelo
A racionalidade jurídica processual se reveste, além disso, de uma
movimento dos Estudos jurídicos críticos (Cri ti cal Legal Studies,
outra significação no teórico da autopoiese, Gunther Teubner, que adapta
CLS),
para o domínio do direito a teoria sociológica da autoprodução dos sis-
desenvolvido nos Estados Unidos na década de 1970 por Roberto Unger temas sociais elaborada na Alemanha pelo sociólogo Niklas Luhmann.
e Duncan Kennedy, de qualquer forma ocupando o lugar do realismo Uma vez que, a sociedade é composta de diversos sistemas autônomos-
jurídico americano que também contesta, no início do século XX, o como a política, o direito, a economia, a moral -, capazes de se auto-
formalismo jurídico. A idéia de um princípio unificado r da ordem ju regular, torna-se caduco segundo essa concepção refletir sobre o direito
rídica como aquele da integrity defendida por Ronald Dworkin é subs- com os critérios da racionalidade da modernidade, a saber, a instauração
tituída, no movimento dos CLS, por uma crítica radical da concepção de um regime representativo que absorve os conflitos sociais pelo viés
liberal sobre a qual estão fundadas as ordens jurídicas. Esta crítica con das regras substanciais emitidas pelo poder político. O direito deve,
siste precisamente em tornar manifestas as contradições fundamentais e segundo a mesma concepção, organizar procedimentos para harmonizar
também irreconciliáveis em que se baseiam as ordens jurídicas oci- as relações entre os diferentes sistemas.13
dentais. Assim, em vez do empreendimento de reconstrução de uma
ordem jurídica que propõem certos representantes do modelo da coe
rência12 T.-M.
- Dworkin e Weinberger,
Ferry, "Narration, por exemplo
Interprétation, -, o movimento
Argumentation': in Histoire de dos
Ia CLS
defende, ao contrário, a necessidade de sua desconstrução.
phiIosophie poIitique, sob a dir. de Alain Renaut, t. V, Les phiIosophies poIitiques
O movimento(após
contemporaines de 1945),
desconstrução
Calmann-Lévy,se radicaliza
1999, p.275, ainda
nA7. mais com os
13 Ver
"desconstrucionistas", como Stanley Fish, que critica tanto as teses infra.
397
As METAMORFOSES DO POSITIVISMO JURIDICO
396 HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO

2. A Não
CRíTICA DO
se poderia POSITIVISMO
apresentar TRADICIONAL
o ponto de vista que H. L. A. Hart de
Temos a concepção processual do direito para um modelo à parte,
reagrupando as duas tendências que mencionamos. Será nosso quarto PORsenvolveu
H. L. A.sobre
HART o direito se a leitura da obra do filósofo inglês não

modelo, chamado modelo de processualização do direito. for feita em paralelo com a da obra de J. Austin. De fato, O Conceito de
Enfim, um último modelo é aquele do decisionismo. AB diversas Di
tendências no seio desse modelo se reúnem sobre a tese fundamental de reito, obra publicada em 1961, corresponde quase ponto por ponto
uma decisão primeira da autoridade chamada a dizer o direito de uma às
maneira ou de outra. É nela que se baseia em último caso a validade do idéias positivistas defendidas pelo autor de The province oflurisprudence
direito. Tão opostas que sejam, estas tendências vão da concepção
Determined.
normativista de Hans Kelsen - que atribui ao juiz, nos casos difíceis e
As condições necessárias e suficientes para a existência de um sis
duvidosos, um poder discricionário absoluto - às idéias expressas
pela escola do direito livre ou por certos representantes da escola realista tema jurídico positivo devem-se, segundo John Austin, à existência
americana. 14 É à mesma conclusão decisionista que chega a solução de de
Herbert L. A. Hart, que foi, contudo, o primeiro a dar uma reviravolta um soberano político, ou seja, de uma pessoa ou de um grupo
hermenêutica à teoria contemporânea do direito, criticando as posições do político
positivismo jurídico do século XIX, de Austin e de Bentham, para quem a a cujo comando os cidadãos obedecem habitualmente. A idéia de um
validade do direito se baseava, em último caso, nas decisões do soberano. "hábito de obediência" aos mandamentos do soberano, observava Hart
Antes de examinar melhor todos esses modelos, comecemos por em O Conceito de Direito, leva em consideração a "continuidade que se
apresentar o ponto de vista de H. L. A. Hart, que possibilitou à teoria do
observa em todo sistema jurídico normal quando um legislador sucede a
direito uma reviravolta decisiva, da mesma maneira que Austin e
outro".IS Os hábitos de obediência não podem conferir a um novo le
Bentham haviam feito no curso do século XIX: à reviravolta positivista
do século XIX sucede, no fundo, o que os anglo-saxões chamam de re- gislador que sucede ao antigo qualquer direito de dar ordens. Hart,
viravolta hermenêutica do século XX. situando-se na continuidade do normativismo kelseniano, dá priori
dade à regra jurídica que confere a um legislador o poder legal de emi
tir as ordens. No topo de um poder legal encontra-se a regra e não o
comando do soberano.
A obediência às regras também não seria explicada pelos hábitos
dos membros de um grupo social. Obedecer a uma regra não é de for
ma alguma idêntico a um hábito, mesmo se, nos dois casos, assiste-
se,
do ponto de vista de um observador exterior, a uma prática social ge
neralizada que comporta ações repetidas de maneira regular pelos
14 Ver OS primeiros capítulos da terceira parte. mem 15 H. L. A. Hart, Le concept de droit, op. cit., p.76 (no original, p.53).
bros de um grupo social. O que distingue uma regra social de um hábito
é que "a regra social possui um 'aspecto interno' que se junta ao aspecto
398
HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO As METAMORFOSES DO POSITlVISMO JUR[DICO 399

externo que ela partilha com o hábito social, e que consiste no compor- desengajamento com relação a um modelo de comportamento trans-
tamento uniforme regular do qual qualquer observador poderia tomar formado em regra social e aceito pela comunidade de um grupo social.
parte': 16 O aspecto interno de toda regra social consiste em que o MacCormick precisa mais ainda suas análises distinguindo dois aspectos
Com no ponto de vista interno do ator. Em primeiro lugar, um aspecto
cognitivo, que consiste na faculdade do ator de avaliar se uma certa
portamento regular dos atores sociais se baseia na atitude reflexiva e
maneira de agir está ou não em conformidade com o modelo de com-
crítica destes mesmos atores. Em outras palavras, todo comportamen
portamento socialmente aceito, ou se certas ações constituem instâncias
to que não está em conformidade com o modelo de comportamento particulares do modelo de comportamento em questão. O segundo aspecto
veiculado por uma regra social conhece a desaprovação dos membros é, segundo MacCormick, o aspecto volitivo, que corresponde à vontade
do grupo social. Obedecer a uma regra social não se baseia no hábito, do ator de se conformar com o modelo de comportamento socialmente
mas na aceitação deliberada da regra pelos atores sociais. estabelecido. Quando se adota o ponto de vista hermenêutico, tenta-se
Por estas primeiras observações, Hart combate a tese do positivis representar o ponto de vista interno do ator em seus dois aspectos, sem se
mo tradicional de Bentham e de John Austin.17 E pelas mesmas obser engajar a favor ou contra os modelos de comportamento aceitos. Em
vações, ele introduz a famosa distinção entre o ponto de vista interno, outras palavras, a neutralidade axiológica do observador faz parte do
que corresponde ao ponto de vista do ator que se conforma com o ponto de vista hermenêutico.
modelo de comportamento estabelecido por uma regra e a aceita como Contudo, o ponto de vista hermenêutico apresenta alguns problemas.
O sentido da hermenêutica, como é interpretado por MacCormick e, aliás,
tal, e o ponto de vista externo, aquele de um observador exterior que
aprovado posteriormente pelo próprio Hare9, poderia se integrar aos
registra as práticas sociais generalizadas, ou seja, as regularidades de
modelos hermenêuticos conhecidos pelos continentais, seja o dos
comportamento. Mas o filósofo inglês não se contenta com essa distin
fundadores da hermenêutica (Schleiermacher, Di1they) ou o da
ção. Junto com o ponto de vista interno e o ponto de vista externo, ele
hermenêutica ontológica (Heidegger, Gadamer) ou, enfim, o modelo da
faz referência implicitamente a um terceiro ponto de vista que, de acor
hermenêutica sociológica tal como é elaborada por Max Weber? Sabemos
do com as análises de Neil MacCormick, pode ser qualificado como pon
que os fundadores da hermenêutica conferiam um alcance exclusivamente
to de vista hermenêutico. 18 O ponto de vista hermenêutico, sobre o qual
psicológico à compreensão que devia ter o historiador dos fenômenos
Hart não se deteve, é o ponto de vista daquele que tenta compreender o estudados. O historiador, a fim de compreender o significado que os
sentido de uma ação, ou mais precisamente, o sentido que o autor atri atores atribuíam aos acontecimentos, devia de alguma maneira reviver o
bui à sua ação. Para fazer isso, explica MacCormick, é preciso que o que os atores tinham vivido. É nesse sentido que devia ser compreendida
observador exterior possa compreender o ponto de vista interno do ator a empatia - transferência para a vida de outrem -,
sem no entanto partilhar de seu engajamento ou, eventualmente, de seu
16 Ibidem, op. cit., p.78, e no original, p.55.
17 Quanto às criticas que ele fez ao realismo jurídico tanto norte-america
no como escandinavo, ver supra.

18 N. MacCormick, H. L. A. Hart, cal. Jurists: Profiles in Legal Theory, ed. W. 19 M. Jori, "Hart e analisi dellinguagio", in Saggi di Metagiurisprudenza,

Twining, 1981, p.39. Milão, 1985, p.4-102.


401
400 HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO As METAMORFOSES DO POSITIVISMO JURIDICO

salientada por Schleiermacher em seus últimos escritos, depois retomada por rá, segundo a proposta de Neil MacCormick e de ata Weinberger, uma
Dilthey na época do famoso artigo Die Entstehung des Hermeneutikem 1900. A pesquisa que eles próprios qualificarão como sociológicao21 Mais
interpretação de MacCormick nos distancia consideravelmente deste preci
modelo. Sabemos também que tanto a compreensão ontológica quanto a samente, "a reconstrução racional do sistema jurídico que caracteriza a
compreensão sociológica - a de Max Weber - são ambas caracterizadas teoria analítica do direito deve também levar em consideração as estru-
pela tentativa de corrigir a tendência "psicologizante" de Schleiermacher turas complexas relacionadas à existência dos princípios jurídicos po-
e de Dilthey, colocando todo fenômeno estudado em conjuntos mais sitivos e dos planos de retaguarda teleológicos do sistema jurídico. Nesse
vastos em que faça sentido: compreender o "espírito" de uma reforma caso, essa teoria se evidenciará também mais fecunda sobre o plano
jurídica, por exemplo, será assim construir o "conjunto" histórico, social e metodológico" 22. Esta análise normo-Iógica do sistema jurídico
cultural ao qual ela pertence e no interior do qual ela se torna inteligível. deve ser
Certamente as orientações e os meios epistêmicos de que as duas complementada por uma pesquisa sociológica, da qual tanto o método
abordagens se utilizam em sua busca hermenêutica são divergentes - em quanto o teor permanecem em ambos os autores muito pouco deter-
um caso, revelação pela linguagem20 da verdade de nossa parte histórica, minados.23 O enfoque sociológico adquire aqui um sentido minimalista.
no outro, explicação compreensiva de um fenômeno em que a Ele consiste essencialmente no que se deve ter em conta na práticasocial
compreensão dos motivos das ações humanas se junta à explicação pela tal como é condicionada pelo dispositivo das regras jurídicas em um
causalidade. Neil MacCormick, atacando aqui o enfoque hartiano, faz quadro institucional concreto. A validade das regras jurídicas será então
as retificações que lhe parecem necessárias para defender, junto com de algum modo posta à prova pelos fatos.
ata Weinberger, um enfoque que não se liga nem à primeira nem à A análise do ponto de vista hermenêutico efetuada por N.
segunda dessas duas versões da compreensão. a teórico do direito MacCormick deve antes ser situada na problemática de uma filosofia da
conhecido por adotar o ponto de vista hermenêutico está essencialmente ação à qual deram acesso as reflexões do segundo Wittgenstein e de J. L.
preocupado, segundo eles, com a análise lógico-lingüística dos conceitos Austin por volta dos anos entre 1955 e 1960. A discussão relativa à ação
e das normas jurídicas, que consiste em pôr em evidência a estrutura de levou, como observa Paul Ricoeur, às mesmas aporias e às mesmas
um sistema jurídico à maneira, por exemplo, do que fez Hart, como se pesquisas epistemológicas contra as quais investira cinqüenta anos antes
verá, com a distinção entre regras primárias e regras secundárias, ou o pensamento alemão, no que concerne à diferença entre explicar e
mesmo Kelsen, pelo viés de um outro enfoque, a construção piramidal compreender. A pluralidade dos "jogos de palavras"
da ordem jurídica. A este tipo de análise se junta wittgensteinianos
21 O. Weinberger e N. MacCormick, An Institutionnal Theory of Law. New
approaches to legal positivism, Reidel, 1986, pol0S-6.
22 Ibidem, trad. fro, po124.
23 Para uma crítica quase idêntica, cfo Mo Ao Barrere Unzueta, Neo
20 Ho Go Gadamer defende o caráter universalmente linguageiro da expe-
institutionalism, Legal Dogmatics and The Sociology of Law, Ratio Juris, Vo 7, n.3,
riência humana, mais precisamente no sentido de que a compreensão de si tanto
dezembro de 1994, p.363. Cf. também 00 Weinberger, Law, Institution and Legal
quanto a propriedade histórica passa pela leitura (a interpretação) dos signos, das
Politicso Fundamental Problems of Legal Theory and Social Philosophy, Kluwer
obras, dos textos, ou seja, pela palavra e a escrita em que se "desvenda" o ser do
Academic Publishers, Reidel, 1991, poI83-S.
mundo. Nesse sentido, a linguagem é o mundo.
402
HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO 403
As METAMORFOSES DO POSITIVISMO JURíDICO

e a irredutibilidade desses jogos introduziram a mesma cisão que a


c1etas das crianças, aos patins ou mesmo ao tanque que é colocado para a
pro memória dos mortos da guerra, às vezes suscita, dependendo do caso a
duzida inicialmente pelo pensamento alemão: não é necessário, nesse julgar, problemas de interpretação. Nesse caso, a questão de saber se a
caso e no sentido wittgensteiniano, confundir o jogo de palavras "ex regra é aplicável depende, no final das contas, dos objetivos perseguidos
plicar': que comporta noções como causa, fato, lei, explicação, com o pelo legislador que estabeleceu a regra. Dependendo da finalidade da
jogo "compreender': em que se fala de intenções, de razões de agir e de regra, pode-se determinar se esses casos são cobertos pela regra. Nesses
casos, e apenas nesses casos, as formas lingüísticas utilizadas pelas regras
motivos.24
2.1 A definição do direito como textura aberta jurídicas apresentam uma sombra de dúvida, uma textura aberta que torna
sua aplicação problemática uma vez que não teria em conta o objetivo
Freqüentemente se apresenta a concepção de direito de H. L. A. geral do legislador. Hart refinou ainda mais sua posição, aceitando em
Hart evocando a transformação lingüística que este soube dar à teoria do seus escritos posteriores que a clareza de uma regra jurídica, a extensão
direito contemporâneo. Em sua pesquisa por uma definição do direito, o de seu "núcleo de certeza", não diz respeito apenas à precisão da
jurista e filósofo inglês retoma em consideração as teorias da formulação lingüística empregada26 - seja ela puramente descritiva
lingua ("veículo"), seja de avaliação ("razoável") -, mas também, e talvez prin-
gem comum. A tese de Friedrich Waissman dedicada à "textura cipalmente, depende do contexto de aplicação da regra (organização do
aberta" da linguagem comum será globalmente retomada e aplicada ao processo, estabelecimentos dos fatos, constituição das provas). Em outras
direito por Hart. Segundo esta tese, nossas enunciações indicam muitas palavras, a mesma regra jurídica que em certo caso é clara, precisa e não
vezes com precisão as características do mundo às quais elas se referem, traz nenhuma dificuldade de interpretação, pode não ser assim em um
mas às vezes pode ser que persista uma dúvida quanto ao que dizem caso diferente.27
nossas Entre o formalismo estrito do positivismo jurídico tradicional, que
palavras.25 Da mesma forma em direito, afirmará Hart, há casos claros defendia exclusivamente o modelo silogístico para a aplicação do direito,
de aplicação das regras jurídicas, principalmente quando elas não apre e o ceticismo expresso pelos realistas em relação à "natureza" das regras
sentam, segundo as convenções semânticas e sintáticas utilizadas, ne- jurídicas, Hart traçou uma via mediana que, pela textura aberta das regras
nhuma dúvida real. A regra jurídica, por exemplo, que enuncia que "todo jurídicas, conduz à distinção entre os casos fáceis e os casos difíceis de
veículo é proibido no parque" se refere sem nenhuma dúvida aos auto- julgar. São difíceis os casos para os quais nenhuma solução
móveis. Mas a questão de saber se esta regra também se refere às bici

24 P. Ricoeur, "Expliquer et comprendre", in Du texte à l' action, Le Seuil,


1986, p.161. Ver também infra. 26 É, aliás, uma das primeiras críticas que lhe foram dirigi das principal-
25 F. Waissman, Verifiability, Proceedings of the Aristotelian Society, v. sup. 20,
mente por L. Fuller, "Positivism and Fidelity to Law: A Reply do Professor
1946, citado por N. MacCormick, La texture ouverte des regles juridiques, in Hart", Harvard Law Review, v.71, p.630-72. Cf. sobre esse debate A. Marmor,
Interpretation and Legal Theory, Clarendon Press-Oxford, 1992, p.129-35.
Controverses autour de l' ontologie du droit, sob a dir. de P. Amselek e C.
27 H. L. A. Hart, Essays in ]urisprudence and Philosophy, Oxford, 1938, p. 7 -8,
Grzegorczyk,
citado por N. MacCormick, op. cit., p.112.
PUF, 1989, p.llO.
405
404 HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO As METAMORFOSES DO POSITIVISMO JURíDICO

jurídica parece se apresentar ao juiz, nem pelos textos de lei nem pela distingui-Ias tanto das fontes jurídicas imperativas ou formais corno a lei
jurisprudência (lacunas, antinomias, dificuldade de interpretação). Mas como das fontes históricas ou materiais" 29, uma vez que não se trata sim
ainda é sobre essa distinção que incide a maior parte das críticas. Se a plesmente de influências causais ou materiais que condicionam o julga
clareza das regras jurídicas depende essencialmente, como se disse, do mento judiciário, mas essencialmente de "boas razões" sobre as quais o
contexto de aplicação do direito, a distinção que faz Hart entre os casos juiz pode se apoiar para basear sua decisão. Essas fontes não fazem parte
claros e os casos difíceis não se sustenta em grande parte.28 do sistema do direito, pois elas não estão contidas na regra de reconheci-
Não obstante, segundo a visão hartiana, é exatamente nos casos di- mento que estabelece os critérios da validade.
fíceis que as autoridades de aplicação de direito são chamadas a fazer uso Para além das normas jurídicas que compõem urna ordem jurídica
de seu poder discricionário, a fim de determinar o sentido da regra e positiva, tanto em Hart corno em Kelsen nós encontramos o decisionismo
designar assim o campo de sua aplicação. H. L. A. Hart se aproxima aqui do juiz, que agirá corno um verdadeiro legislador, ainda que desprovido
da concepção normativista de Hans Kelsen, já que este também de toda legitimidade. Essa tese encontra sua melhor expressão no código
considerou que, quando as normas jurídicas provocam problemas de civil suíço, que no primeiro artigo afirma que quando as fontes formais
interpretação, a solução jurídica do caso a julgar depende exclusivamente de direito forem insuficientes para resolver um li
dos critérios subjetivos da autoridade que dá sua sentença. Em outras tígio, o juiz deve tornar sua decisão em função da regra que ele
palavras, os julgamentos da autoridade de aplicação do direito não emitirácomo se fosse o legislador.
poderiam respeitar a imparcialidade e a neutralidade da função judiciária Certamente todos aqueles que se situam no prolongamento da tese
porque são fundados sobre princípios extra jurídicos, ou seja, hartiana (N. MacCormick, J. Raz) tentam adequar a assimilação entre as
julgamentos de valor com conteúdo social, político ou econômico. Ao duas funções. Eles afirmam que, mesmo nesse caso, a função judiciária
lado de fontes formais de direito, observa Hart, há fontes que não se parece de forma alguma com a função legislativa.3O Em primeiro
"poderíamos qualificar corno facultativas para lugar, porque a margem de liberdade de que dispõe a autoridade
judiciária não é da mesma ordem que a do legislador. Nenhum juiz poderá
tornar urna decisão em contradição com as regras válidas e os princípios
28 A. C. Hutchinson e J. N. Wakefield, A Hard look at "Hard Cases": The de um sistema de direito positivo (princípio de consistência); além disso,
Nightmare of a Noble Dreamer, OFLS, 1982. Há inclusive entre os corno afirma Neil MacCormick31, sua decisão deve estar em perfeita
contestadores da distinção entre casos difíceis e casos fáceis aqueles que
coerência com os valores e os padrões da ordem jurídica posi
sustentam que mesmo uma disposição jurídica inteiramente redigida em termos
descritivos pode levantar problemas de interpretação. A disposição do art. 2° da
Constituição federal americana, por exemplo, que enuncia que é preciso ter pelo
menos 35 anos para ser Presidente dos Estados Unidos poderia muito
simplesmente significar que é preciso ter a maturidade do individuo médio de 35
anos. É a tese que defenderam os defensores da crítica desconstrucionista do 29 H. L. A. Hart, Le concept de droit, op. cit., p.295 (no original, p.247).
direito, como G. Peller, "The Metaphysics of American Law", California Law 30 Faz-se referência aqui ao sistema britânico, em que o parlamento exer
Review, 73, 1985, p.1l51 e Cf M. Tushnet, "A Note of the Revival of Textualism cendo a função legislativa é soberano na ausência de um controle de constitucionalidade.
in Constitutional Theory", Southern California Law Review, 58, 1985, p.683, 31 N. MacCormick, Legal reasoning and Legal Theory, Clarendon
citados por R. A. Posner, Droit et Littérature, PUF, 1996, p.255. Press,
Oxford, 1978, cap.5.

J.
407
406 HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO As METAMORFOSES DO POSITIVISMO JURfDICO

tiva (principio de coerência). Não poderia ser diferente, porque um Es- outro lado, as regras de reconhecimento que determinam os critérios de
tado de direito que respeita a liberdade dos cidadãos é essencialmente validade jurídica assim como as regras de mudança e de decisão devem
fundado sobre os valores da previsibilidade e da segurança jurídicas: o ser efetivamente reconhecidas por suas autoridades como constitUintes
direito positivo sanciona apenas os atos para os quais regras claras e dos modelos públicos e comuns da conduta que elas assumem. A
precisas são preliminarmente emitidas por uma autoridade competente. É primeira condição é a única que os cidadãos comuns devem necessa-
daí que vem também o princípio da não-retroatividade, segundo o qual riamente satisfazer: eles podem obedecer-lhe [...] por qualquer motivo
nenhuma regra jurídica se aplica em princípio a acontecimentos ocorridos que seja. [...] Eles reconhecerão a obrigação de obedecer-lhe, ou mes
antes da edição da regra. Como então os juízes poderiam criar um novo mo farão remontar esta obrigação à obrigação geral de respeitar a Cons-
direito sem qualquer relação com esses princípios ou até em desacordo tituição. Quanto à segunda condição, somente as autoridades que
completo com os princípios jurídicos preestabelecidos, sem atribuir a pertencem ao sistema devem igualmente respeitá-Ia".33
menor justificação ao seu julgamento? Esse é o conjunto dos As regras que compõem um sistema de direito são, segundo Hart, de
constrangimentos que pesa sobre o aparelho jurídico. Além disso, a de- dois tipos. Por um lado, existem regras primárias que estabelecem
cisão judiciária só pode visar os assuntos futuros que tenham semelhan- modelos de comportamento que devem ser seguidos; por outro, regras
ças com o caso a julgar no presente. O juiz não poderá jamais visar uma secundárias "que determinam a maneira pela qual as regras primárias
reforma global do domínio da ação que encerra o caso a julgar. Seu podem ser definitivamente identificadas, editadas, revogadas ou
horizonte é assim limitado com relação às perspectivas que inspiram o modificadas, e o fato de sua violação definitivamente estabeleci
trabalho do legislador. Por todas essas razões, os partidários desta tese do".34 Há então regras de reconhecimento, que estabelecem os critérios
recusam-se a assimilar as decisões judiciárias tomadas nos casos difíceis de validade das regras jurídicas (sua criação), regras de mudança (mo-
àquelas do legislador.32 dificação ou revogação) e regras de decisão, que instauram as compe-
tências de jurisdição. Não obstante, todas as regras válidas do sistema
são definitivamente reconhecidas à luz de uma regra de reconhecimento
2.2 A estrutura do sistema de direito último, que fornece os critérios de validade de todas as regras do
sistema e que não é nem válida nem inválida, estando no fundamento de
À luz do que acabamos de ver, Hart enuncia a estrutura do sistema
toda ordem jurídica.3s Nunca se coloca, acrescenta ele, a questão da
do direito da forma seguinte: "Por conseguinte, existem duas condições validade desta regra jurídica, assim como em Kelsen não se questiona a
mínimas necessárias e suficientes para que exista um sistema jurídico. validade da norma fundamental. Contudo, Hart inverte a COllS
Por um lado, as regras de conduta que são válidas segundo os critérios
últimos de validade do sistema devem ser geralmente obedecidas, e por

33 H. L. A. Hart, Le concept de droit, op. cit., p.145-6 (no original, p.l13). 34


Ibidem, p.1l9-20 (no original, p.92).
32 J. Raz, "Law and Value in Adjudication", in The Authority of Law, 3S Ibidem, p.137, 133 (no original, p.106, 102). Sobre os três tipos de

Oxford, 1979, p.199-201; J. Bell, Policy Arguments in Judicial Decisions, Clarendon regras
Press, 1983, p.17-21 e 228-9. secundárias e as dificuldades que apresenta a análise hartiana, ver N. MacCormick, H. L.
A. Hart, op. cit., p.108-11.
409
408 As METAMORFOSES DO POSITIVISMO JURíDICO
HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO

davia, se a regra de reconhecimento não é uma condição necessária


trução piramidal kelseniana ao afirmar que a regra de reconhecimento
último não constitui uma pressuposição nem uma ficção, mas um para a existência de um sistema jurídico, ela não poderá sê-Io tam
fato social. A pirâmide pode de agora em diante ser visualizada ao in- bém para a existência de um direito válido.3? Nesse sentido, levando a
verso, de cabeça para baixo. A regra de reconhecimento último que, reflexão um pouco mais longe, poder-se-ia afirmar que nos sistemas
segundo a passagem citada acima, pode conduzir a uma regra última de
jurídicos em que essa regra existe, a conformidade com essa regra não
obediência à Constituição é geralmente obedecida, assim como as outras
regras primárias do sistema. À semelhança de Kelsen, a validade da será mais uma condição necessária para a existência de um sistema de
ordem jurídica conduz igualmente à sua eficácia. O mesmo vale direito válido.38 Mas, sendo assim, a construção hartiana se mantém
igualmente, segundo a mesma passagem, para as outras regras secun- de pé?
dárias, às quais devem obedecer efetivamente as autoridades de aplicação
2.3 Incerteza quanto à regra de reconhecimento
do direito. Hart deixa aberta a questão da justificação da ordem jurídica, a
questão da legitimidade, e desloca esse problema para a interrogação "A regra de reconhecimento", afirma Hart, "não existe senão sob a
sobre as condições necessárias e suficientes de um sistema jurídico forma de uma prática complexa, mas habitualmente concordante,
válido. Dentre as duas condições necessárias, a segunda condição consiste que
em que as regras secundárias do sistema devem ser efetivamente seguidas consiste no fato de que os tribunais, os funcionários e os simples
pelas autoridades chamadas a dizer o direito de uma maneira ou de outra. particulares identificam o direito em relação a certos critérios. Sua
Ao fornecer os critérios de validade de um sistema jurídico - no essencial,
existência é
procedimentos e autoridades competentes para dizer o direito -, a regra de
uma questão de fato".39 Sem dúvida é possível que, do ponto de
reconhecimento constitui uma condição necessária para a existência de
um sistema jurídico, embora Hart afirme ainda que é possível imaginar vista da
uma sociedade desprovida de legislador, de tribunais e de autoridades quele que se situa no exterior de um sistema de direito (ponto de vista
públicas de toda espécie, ou seja, desprovida de regras secundárias. É "um externo), a utilização dos critérios de validade estabelecidos pela regra de
erro", afirma ele nas últimas páginas de sua obra, "supor que a presença
reconhecimento constitui um fato e, nesse caso, as questões relativas à
de uma regra fundamental ou de uma regra de reconhecimento constitui
regra
uma condição necessária para a existência de regras de obrigação ou de
de reconhecimento podem ser tratadas como questões de fato. Mas do
regras 'obrigatórias"'.36 Em contrapartida, segundo o enfoque hartiano, o
que constitui uma condição necessária para a existência de um sistema ju- ponto de vista do que se situa no interior do sistema (ponto de vista inter
rídico é que ele comporta regras e, principalmente, regras válidas. To no), a regra de reconhecimento implica igualmente colocar questões de
direito (quid juris?) relativas aos critérios de validade estabelecidos por
esta regra. Não é o caso aqui de as autoridades instituídas, e por acrésci
37 R. Sartorius, The Concept ofLaw, ARSP, v.1966 LIl/2,
mo competentes, interrogarem-se sobre a necessidade de uma revisão
p.ISO.
eventual da regra de reconhecimento último e, por conseguinte, dos cri
36 Ibidem, p.277 (no original, p.229). 38 Ibidem, p.IS!.
térios de
39H.validade
L. A. Hart,estabelecidos por op.
Le concept de droit, estacit.,
regra
p.l3S.- como quando os titula
res do Poder Constituinte querem proceder a uma revisão da Constitui

ção -, mas é questão de saber se a regra de reconhecimento suscita


410
HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO
proble As METAMORFOSES DO POSITIVISMO JURíDICO 411

mas de interpretação. Esta possibilidade é, com efeito, contemplada pelo


uma leitura descritiva (objetiva) do que é a regra de
próprio Hart. Ele admite que a regra de reconhecimento último levanta reconhecimento? As leituras às vezes divergentes que se pode ter da
questões relativas, por exemplo, ao alcance exato do princípio de regra de reconhecimento não surgem unicamente das questões de fato.
Elas realçam uma problemática de ordem normativa, aquela relativa à
sobera organização dos poderes públicos no seio do Estado, por exemplo,
nia do Parlamento britânico ou à repartição das competências entre as conforme atesta a decisão da Corte Federal americana, estreitamente
ligada a uma concepção política da organização do Estado de direito. Por
jurisdições e o legislador; em suma, questões relativas às fontes de conseguinte, as respostas dadas às interrogações levantadas por uma regra
direito.
que está no fundamento da ordem jurídica podem ser apenas normativas,
relacionadas ao que deve ser a organização de poderes públicos no seio de
A regra de reconhecimento é assim, a exemplo das outras regras jurídi um Estado de direito. Elas deverão assim ser justificadasY No fundo,
Hart parece aqui aderir totalmente à teoria pragmatista da verdade na sua
cas, dotada de uma textura aberta. Mas em todos os casos, observa
forma mais enganosa, que pode ser associada a uma ideologia tipicamente
ele, americana de engenheiros e de comerciantes: o verdadeiro é o que "faz': o
que tem "efeitoS':44 Hart sustenta então que "quando os tribunais
não se tratará das questões de direito e, mais precisamente, das
resolvem questões que não tinham sido contempladas antes pelas regras
questões constitucionais mais fundamentais, eles se atribuem o poder de resolvê-
normativas que demandam da autoridade competente uma resposta so Ias depois que as questões são colocadas e que a decisão tenha sido
tomada. Nesse caso, o único resultado é o sucesso':45
bre o que a regra de reconhecimento deve ser, mas sim de questões de
As dificuldades do enfoque hartiano que acabamos de mencionar
fato cujas respostas dizem respeito ao que é a regra de reconhecimento estão ligadas a sua tese geral, que é talvez intrinsecamente paradoxal. De
acordo com essa tese, o caráter "obrigatório" da regra de reconheci-
último. ''Ainda que se trate': observa ele, "de uma questão relativa a
mento procede unicamente do fato de sua aceitação. Em suma, a regra de
uma reconhecimento não constitui por si mesma uma regra obrigatória, como
regra que se encontra no fundamento da ordem jurídica, é ainda uma era o caso da norma fundamental kelseniana. Hart até critica Kelsen em
relação ao fundamento do direito internacional, quando este
questão de fato à qual em todo momento, sobre certos pontos pelo me
nos, pode haver uma resposta inteiramente dara':40 Tais problemas de in
terpretação relativos à regra de reconhecimento foram apontados com

freqüência. Este
40 Ibidem, foi o caso quando a Corte Suprema dos Estados Unidos
p.184. 43 R. Sartorius, The Concept of Law, op. cit., p.187.
44 P. Engel, La vérité. Réflexions sur quelques truismes, Hatier, 1998, p.29. 45 H. L.
colocou a questão de saber se ela poderia se autorizar o exercício de um
41 Marbury v. Madison, 1 Cranch, 137,2 L. Ed. 60 (1803). A. Hart, Le concept de droit, op. cit., p.187-8 (p.149). Os itálicos são
controle de constitucionalidade
42 London Street Tramways v. L.sobre
C. c.,as1898
leisA.
(statutes)
C. 375. votadas pelo Con nossos.

gresso.41 Ou então quando a House of Lords britânica levantou a questão


412
HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO
As METAMORFOSES DO POSITIVISMO JURfDICO 413

afirma que a norma fundamental de direito internacional se enuncia


austríaco ata Weinberger, publicaram os resultados dos trabalhos que
assim: "Os Estados devem se conformar com as regras estabeleci das haviam desenvolvido separadamente de 1970 a 1985.47 Neil
MacCormick se situa na tradição da analytical jurisprudence de H. L. A.
pela
Hart e inspira-se largamente nas análises de linguagem elaboradas pelos
prática costumeira e reconhecidas como obrigatórias por estes mesmos filósofos G. E. M. Anscombe e J. Searle. Os trabalhos de ata Weinberger
se situam, em contrapartida, na tradição do normativismo kelseniano que
Estados': "Esta norma': replica Hart, "contenta-se somente em afirmar o teórico austríaco retoma para ir além das insuficiências que encontrou.
que aqueles que admitem certas regras devem igualmente observar Uma Os neoinstitucionalistas se consideram em primeiro lugar
antijusnaturalistas, porque segundo eles o direito não se baseia em valores
regra em cujos termos as regras devem ser observadas. Isto constitui e princípios universais aos quais deveria corresponder uma ordem jurídica
Uma positiva. A rejeição do jusnaturalismo não é acompanhada, entretanto,
pela tese anticognitivista que sustenta que, sendo os valores de ordem es-
simples repetição inútil do fato de que um conjunto de regras são ad sencialmente simbólica e por acréscimo subjetiva, ninguém pode pre-
tender adquirir daí um conhecimento objetivo. O relativismo axiológico
mitidas pelos Estados como regras obrigatórias':46
ao qual aderem os neo-institucionalistas não lhes parece incompatível
Não obstante, se a regra de reconhecimento constitui para Hart com a pesquisa dos meios epistêmicos adequados para a resolução das
o núcleo do conceito de direito, a análise acima tenta demonstrar que questões axiológicas que se colocam no seio de uma ordem jurídica po-
sitiva. "Estou certo': escreve Weinberger, "de que é possível argumentar
essa definição não está isenta de uma certa concepção normativa do racionalmente sobre a lege ferenda, mas somente em ligação com pres-
suposições axiológicas".48 A argumentação é, a seus olhos, o único meio
3.direito (do que o direito deve ser) e, mais precisamente, de uma con
O NEO-INSTITUCIONALlSMO:
que pode permitir a todos os interessados chegar a um consensus quanto
cepção moral e política do direito. Isto será a tese fundamental do fi
NEIL MACCORMICK E OTA WEINBERGER às escolhas axiológicas que terão de realizar. Para fazer isto, eles afirmam
lósofo americano do direito Ronald Dworkin, que se oporá a seu que é necessário levar em consideração as premissas axiológicas e
O neo-institucionalismo é essencialmente caracterizado pela von também factuais com base nas quais se estabelece um raciocínio.49 Tra
homólogo inglês assim como a todos aqueles que se situaram no pro
tade de superar a oposição que marcou o pensamento jurídico do
longamento de suas teses. Referimo-nos essencialmente aqui às teses
sécu
neo-institucionalistas
lo XX entre os normativistas
defendidas por
e os
Neil
jusnaturalistas.
MacCormickÉe ata
em meados da
Weinberger.
década 47 D. N. MacCormick e O. Weinberger, An Institutional Theory of Law. New
approaches to legal positivism, Reidel, 1986.
de 1980 que dois teóricos do direito, o escocês Neil MacCormick e
48 Ota Weinberger, Les théories institutionnalistes du droit, in Controverses
o 46 H. L. A. Hart, Le concept de droit, op. cit., p.278 (p.230 no original). D. N. autour de l'ontologie du droit, op. cit.) p.8i.
49 D. N. MacCormick e O. Weinberger, An Institutional theory of Law, op.
MacCormick, H. L. A. Hart, op. cit., P.1l4.
cit., trad. fr., p.130.
415
As METAMORFOSES DO POSITIVISMO JURíDICO
414 HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO

vas das proposições descritivas, ou seja, inferir o dever-ser do ser.51


ta-se igualmente de uma postura muito próxima da atitude reflexiva com
relação à pré-compreensão defendida pelo enfoque hermenêutico. Mas,
Os neo-institucionalistas criticam em seguida o purismo do ao contrário do normativismo kelseniano, eles consideram que, no plano
normativismo kelseniano porque eles compartilham a convicção de que
da ação social e somente nesse plano, a interferência do ser (social) e do
toda ordem jurídica positiva se baseia não em um dever-ser constituindo
uma pura construção teórica, uma hipótese de raciocínio, como dizia dever-ser é necessária. As considerações do normativismo kelseniano
Kelsen, mas em fatos institucionais nos quais se inscreve a ação social. causam, a seus olhos, uma confusão, porque o ser do mundo "natural",
Enquanto os fatos brutos, explicam os neo-institucionalistas, se inscre-
do mundo dos fatos brutos, é substancialmente diferente do ser da ação
vem no tempo e no espaço de maneira independente de toda intervenção
humana, os fatos institucionais são, em contra partida, verdadeiros social. Os neo-institucionalistas se inspiram aqui nas análises de
artifícios que devem sua existência às convenções humanas - convenções Elisabeth Anscombe relativas à teoria da ação.
sociais, jurídicas, morais -: não se poderia tomar conhecimento dos fatos Em sua obra Intenção, publicada em 1957, seguindo as considera
institucionais (fatos sociais, fatos jurídicos) fora do viés das regras
ções do segundo Wittgenstein (Philosophical Investigations) relativas
51 N. MacCormick faz ainda assim algumas retificações à problemática
sociais, morais, jurídicas. Por mais discutível que possa ser a oposição
dos fatos institucionais aos fatos brutos, sobretudo depois que se aceitou àpluralidade dos
humeana "jogos
quanto de linguagem"
ao caráter dedutivo do eraciocínio
as considerações de J. L. em
normativo (jurídico), Austin
sua
que mesmo os fatos "naturais" não são mais que fenômenos resultantes de relativas aos
obra Legal atos de linguagem
Reasoning performativos,
and Legal Theory, ClarendonElisabeth Anscombe
Press, 1978, p.3, 24, 32-
diversos paradigmas utilizados pela comunidade científica e que,
pre
5. Os
conseqüentemente, a intervenção humana (Kuhn, G. H. von Wright) é
nos dois casos necessária, esta oposição constitui o pivô das análises conizaneo-institucionalistas
também a irredutibilidade desses
se diferenciam jogoS.52
da posição O argumento
de J. Searle que tenta, ésobre
em o
operadas pelos neo-institucionalistas.5o substância
exemplo daopromessa,
seguinte: nãoosedever-ser
inferir está nodomesmo
ser in J. jogo de linguagem
R. Searle, quan
Les actes de langage.
Os neo-institucionalistas aderem como Kelsen ao princípio de base doEssai
se fala de acontecimentos
de philosophie produzidos
du langage (1969), op. cit.,na natureza
p.230. e da
Os dois neo-ação dos
institucionalistas vão
de Hume, segundo o qual não se pode derivar as proposições normati
homens. Noobservar
justamente primeiro
que caso, estamos
a inferência na do
(lógica) ordem de causalidade
dever-ser do ser não é pos(why); no

sível porque a instituição "fazer promessa" comporta em si mesma desde já um


núcleo normativo, ou seja, o dever de realizar a promessa. Ou, para retomar os
50A distinção entre fatos brutos e fatos institucionais foi estabelecida por G. E. M. termos de P. Ricoeur, "como passar da obrigação constitutiva da promessa à obri
Anscombe, "On Brute facts", Analysis, 18, 1958, e J. L. Searle, Les actes de
langage. Essai de philosophie du langage, Herman, 1972, p.91-4. É gação segundo a qual é preciso cumprir suas promessas", P. Ricoeur, "Les
provavelmente sobre esta distinção que os dois neo-institucionalistas admitem a implications de Ia théorie des actes de langage pour Ia théorie générale de l' éthique",
possibilidade de haver no domínio da teoria do direito proposições descritivas da
realidade jurídica, isto é, proposições não condicionadas pelos paradigmas in Théorie des actes de langage, éthique et droit, dir. P. Amselek, PUF, 1986,
utilizados pela comunidade dos juristas. Isso foi contestado por R. Dworkin. Ver
p.96; d.
T. S. Kuhn, La structure des révolutions scientifiques (1962), Flammarion, 1983;
G. H. von Wright, Explanation and Understanding, Londres, Routledge e Kegan N. MacCormick e O. Weinberger, An Institutional theory of Law, op. cit., p.21-4.
Paul, 1971. 52 E. Anscombe, Intention, Oxford, Basil
Blackwell, 1957.
416
HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO 417
As METAMORFOSES DO POSITIVISMO JURfDICO

segundo, estamos na ordem da motivação (because Of).53 São dois jogos critérios de validade estabelecidos pela regra de reconhecimento hartiano,
de linguagem heterogêneos. No mundo da ação, não podemos separar mas também, e sobretudo, de normas resultantes das operações lógicas
o projeto do motivo, a intenção da ação. Há entre eles uma implicação inferenciais efetuadas sobre a base de outras normas do sistema57, da
(lógica) que lhes é inerente. Por certo nem sempre se poderia explicar a interpretação destas regras que farão os societários jurídicos, dos objetivos
passagem do sentido descritivo de uma ação a seu sentido normativo54, e, enfim, das finalidades expressas por estas mesmas regras, as quais
mas é à luz desta problemática que se deve conceber a relação entre o ser constituem os motivos da ação. "O sistema de direito positivo", afirmam
e o dever-ser na concepção neo-institucionalista do direito. A norma eles, "engloba igualmente os princípios jurídicos e o plano de fundo
jurídica é tanto o motivo quanto o fator determinante da ação social; é ao teleológico da ordem jurídica".58 O neo-institucionalismo introduz, na
mesmo tempo, afirmam eles, uma entidade ideal, isto é, um objeto de concepção positivista clássica, a dinâmica da prática jurídica, que às vezes
pensamento, uma representação da ação na realidade que motiva a ação, e transforma, até mesmo secretamente, as normas jurídicas válidas de uma
uma entidade material (real) perceptível pelos sentidos (os ele ordem jurídica. "É porque", escreve Weinberger, "a validade de um sis-
mentos factuais constitutivos da ação). Ora, uma vez que estes dois ele- tema de direito é justamente sua institucionalização; isso significa que um
mentos compõem a noção da norma, o elemento ideal e o elemento sistema de normas é um sistema de direito em vigor se e somente se ele
material se conjugam de tal maneira que "a realidade da norma existe na formar o cerne de informações práticas das instituições do Estado". 59 O neo-
esfera da consciência humana".55 institucionalismo se situa, por conseguinte, além da concepção
A ordem jurídica é um fato institucional composto essencialmente positivista clássica que só considerava as normas resultantes dos atos
por regras jurídicas56 que constituem para os autores sociais o que de vontade explícitos - aquelas do legislador, por exemplo -, mas aquém
Weinberger qualifica como informações práticas (valores, objetivos, da sociologia jurídica, que não visa unicamente os agentes das institui-
normas, preferências) que são necessárias para a determinação de suas ções do Estado, mas todo ator social, individual ou coletivo, que tem em
ações. É sobre essa base que o neo-institucionalismo ampliou a conta as normas do sistema. Farão assim parte do sistema do direito
problemática válido, segundo a concepção institucionalista, tanto as regras jurídicas
positivista clássica, tanto a de Kelsen como a de H. L. A. Hart. A ordem estabelecidas pelas autoridades competentes quanto todas as outras regras
jurídica não será composta apenas de regras jurídicas que satisfazem os ou princípios jurídicos "criados" pelas autoridades de aplicação do
direito, que tanto Kelsen quanto Hart atribuíam unicamente ao poder
discricionário absoluto das autoridades.
53 Cf.
também P. Ricoeur, "Expliquer et comprendre", in op. cit.,
p.168-76. 54 O. Weinberger, Law, Institution and Legal Politics. Fundamental
Problems
ofLegal Theory and Social Philosophy, Kluwer Academic Publishers, 1991, p.95-9. A separação 57 Assim, em oposição ao segundo Kelsen, a aplicação ao direito da lógica
entre "ser" e "dever-ser" é aqui semântica e não ontológica, como em Kelsen.
formal é possível.
55 N. MacCormick e O. Weinberger, Pour une théorie institutionnelle du droit, 58 N. MacCormick e O. Weinberger, Pour une théorie institutionnelle du droit,
trad. fr., pA2. trad. fr., op. cit., p.123.
56 Cf. os três tipos de regras (institutivas, de conseqüência e regras de
59 O. Weinberger, Les théories institutionnalistes du droit, op. cit., p.80. Os
extinção) em sua obra Pour une théorie institutionnelle du droit, p.52.
itálicos são nossos.
418 As METAMDRFOSES DD PDSITIVISMD JURíDICO 419
HISTÓRIA DA FILOSDFIA DD DIREITO

Também diferentemente do institucionalismo clássico, principal- 4. RONALD DWORKIN: CRIAÇÃO E APLICAÇÃO


mente o de Maurice Hauriou, o neo-institucionalismo não poderia DO DIREITO
conceber a existência de uma instituição independente das normas que a
compõem. ''A instituição", escreve Weinberger quanto à concepção de Se uma das primeiras metamorfoses do positivismo consistia em in-
Maurice Hauriou, "ainda que possa ser considerada como realização de verter a pirâmide kelseniana - era a posição do filósofo do direito inglês,
uma idéia diretriz, não é uma entidade primária com relação às normas; H. L. A. Hart, para quem a regra de reconhecimento de um sistema de re-
não é uma entidade que poderia existir por si mesma, independentemente gras jurídicas constitui doravante um fato socialmente aceito -, a segunda
das regras normativas".60 É então pelo viés das regras jurídicas que se metamorfose do positivismo jurídico consiste em alargar as fronteiras de
chegará a identificar a idéia diretriz de uma instituição, para falar como uma ordem jurídica positiva: esta será composta tanto pelas regras
Hauriou, ou em outras palavras, que se chegará a identificar uma certa emitidas pelo legislador competente como pelos princípios de justiça cuja
concepção de justiça, e não o inverso. designação pela autoridade de aplicação não depende de seu poder dis-
É exatamente pelo mesmo tipo de reflexão que Neil MacCormick se cricionário absoluto. Esses princípios são parte integrante de toda ordem
oporá à problemática dworkiniana, segundo a qual o viés de uma teoria jurídica. Por conseguinte, o princípio de autonomia de um sistema jurí-
global da justiça é o que leva à identificação do sentido das normas jurí- dico sobre o qual se apoiou o positivismo jurídico, mesmo na versão de
dicas e dos princípios jurídicos que subentendem as instituições do Esta- Hart, é aqui profundamente modificado: as questões éticas - questões de
do. Segundo a concepção neo-institucionalista, ao contrário, é com base justiça propriamente ditas ou mesmo aquelas relativas à organização da
nas regras jurídicas válidas que compõem a ordem jurídica institucional boa vida - não se colocam unicamente a montante do trabalho legislativo,
que se poderá estabelecer os princípios jurídicos a saber, segundo esta mas também em favor deste, já que toda decisão de aplicação do direito
concepção, bem como o que, depois de Austin, é qualificado como nos casos ditos difíceis também deverá ser justificada. Esta é uma das teses
"moral positiva" inscrita nas instituições com que as políticas (policy) fortes do pós- positivismo (neo- institucionalistas, Aarnio, Peczenik,
determinadas respondem à satisfação do interesse geral e à realização da Alexy,
justiça. K. Günther). Esta é também uma das teses fortes da concepção de Ronald
A doutrina dworkiniana vai assim se opor tanto à concepção clássica Dworkin, que colocamos aqui no centro deste debate, pois as outras con-
do positivismo jurídico quanto às versões chamadas de pós-positivistas de cepções de direito (Critical Legal Studies, J. Habermas e K. Günther,
que pode fazer parte a concepção neo-institucionalista do direito. desconstrucionistas) propõem precisamente respostas diversas para esse
problema. Em suma, a dificuldade de distinguir entre criação e aplicação
do direito em conformidade com o princípio da separação dos poderes,
que está no fundamento de toda ordem jurídica democrática, está no
centro dos debates da filosofia do direito contemporâneo.
4.1 A interpretação construtiva do direito

No debate que o opôs a Neil MacCormick, Ronald Dworkin criticou


60 Ibidem, p.SO. a definição do direito como fato constitucional. O direito é, segun
420 HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO As METAMORFOSES DO POSITIVISMO JURíOICO 421

do ele, um fato interpretativo.61 No primeiro caso, na visão institucionalista , rência. A teoria da verdade-correspondência dos "fatos" com o real
o éassim substituída por aquela da verdade-coerência. Não obstante, o
direito é o produto de uma história contingente feita das práticas cos- processo de estabelecimento dos fatos (a parte menor do raciocínio
tumeiras e de decisões tomadas por instituições buscando objetivos jurisdicional) se evidencia, no seio de sua doutrina, de natureza hete-
precisos. O sentido do direito é aqui resgatado das regras jurídicas, com rogênea no processo de estabelecimento da regra a aplicar (a parte maior).
base nas quais, em caso de dificuldade - antinomias, lacunas ou Isto que nos parece estar pouco em conformidade com os ensinamentos
outros problemas de interpretação -, pode-se "inferir" os fins visados pelo do enfoque hermenêutico que MacCormick quis aplicar à teoria do
legislador. A interpretação teleológica servirá assim de guia para a solução direito: este consiste, como já dissemos, em considerar a in-
jurídica a adotar. "O Professor MacCormick", observa Dworkin, "sugere que terferência entre os dois processos.64 Nos casos difíceis, afirmará o pró-
conhecer os fins do legislador é mais uma questão de fato histórico do que, no prio MacCormick, a coerência normativa de uma ordem jurídica
sentido que descrevi, de fato interpretativo. Ele estima que se pode inferir os fins seráassegurada, por exemplo, pela busca de princípios jurídicos, ou,
do legislador pelas palavras utilizadas no contexto. Ora, duvido que este seja o
segundo sua definição, normas gerais que subentendem as regras jurídicas
caso se repararmos no sentido estrito do verbo inferir".62 Certamente, a crítica
particulares - princípio de liberdade ou de igualdade, por exemplo.
que Dworkin faz da obra de seu homólogo escocês parece severa. Mas não é
Os critérios de sua identificação são resultado das avaliações subjetivas
menos verdade que o jurista escocês permanece, em certo sentido, próximo das
baseadas nos "direitos do indivíduo" (liberdades fundamentais) ou nas po-
teses do positivismo jurídico. Isso é atestado, entre outras coisas, por sua análise
líticas públicas (public policies) aptas a satisfazer o interesse
do caráter dedutivo do raciocínio judiciário, que ele descreveu em Legal
gera1.65
Reasoning and Legal Theory e em seus trabalhos posteriores. Em Legal
Completamente diferente é o processo de justificação proposto por
Reasoning and Legal Theory, ele opõe a coerência normativa, ou seja, a
Ronald Dworkin. O direito, antes de ser um exemplo de regras que se
coerência da decisão judiciária com os valores e os princípios que são
aplicam ora de maneira mecânica (easy cases), ora de maneira
conhecidos por reger um sistema jurídico particular63, à coerência nar-
"refletida" nos casos difíceis, é mais a atitude interpretativa de uma
rativa relativa ao estabelecimento dos fatos no curso de um processo: a
comunidade que realiza a justiça. Antes do direito como sistema de regras
veracidade das alegações das partes será aqui apreciada à luz de sua coe
existe a idéia de direito, o direito como justiça. Uma regra jurídica
em todos os

64 Ver supra, na seção sobre a designação dos modelos em filosofia do direito


contemporâneo, a breve referência que fizemos quanto ao enfoque hermenêutico a este
61 Ver os artigos dos dois autores contidos na obra coletiva Controverses autour de l' respeito.
ontologie du droit, op. cit., p.1 09-35: N. MacCormick, La texture ouverte 65 N. MacCormick, Legal Reasoning and Legal Theory, op. cit., p.252-3. Essas
des regles juridiques, p.109; R. Dworkin, La complétude du droit, op. cit., p.l29. avaliações de ordem mais subjetiva, como nos sugerem as reflexões do jurista escocês em
62 R. Dworkin, La complétude du droit, op. cit., p.131. outras passagens de sua obra (quanto às conseqüências por exemplo que uma decisão
63N. MacCormick, Legal Reasoning and Legal Theory, op. cit., jurídica pode ter), não se harmonizam perfeitamente com as reflexões de Ota Weinberger,
p.106; do co-autor da obra que eles publicaram juntos: Pour une théorie institutionnelle du droit, op.
mesmo autor, "Coherence in legal justification", in Theorie der Normen. Festgabe für Ota cit.; ver supra.
Weinberger, Berlim, Duncker und Humblot, 1984, p.37.
422 423
HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO As METAMORFOSES DO POSITIVISMO JURfDICO

casos faz sentido porque ela corresponde à satisfação de um interesse metáfora de um romance escrito por diversos autores, no qual cada "ro-
material, a um valor, a um fim ou a um princípio.66 A aplicação de toda mancista parcial", participando de um trabalho em cadeia, acrescenta um
regra a uma situação concreta não se faz jamais de maneira irrefletida. novo capítulo ao romance já começado por outros antes dele. Assim como
Uma regra jurídica a aplicar fará sentido tanto à luz da situação no pre- o romancista deve dar uma visão coerente da intriga em sua globalidade -
sente quanto à luz da história de uma prática social que, com o passar do o tema do romance e os personagens -, o juiz e qualquer outra instância
tempo, forjou uma certa concepção da justiça. O conceito de direito, de aplicação do direito - personificado aqui sob o nome mítico de
afirmará Dworkin, nunca é independente de uma concepção do direito e Hércules - deve proceder a uma reconstrução coerente e global da história
da justiça. Nunca é independente da concepção do direito que têm os jurídica passada. "O princípio de unidade de direito", escreve Dworkin,
participantes dessa mesma prática. A doutrina do filósofo americano se "como princípio de decisão se dirige aos juízes e a outras autoridades
liga ao enfoque hermenêutico que, com relação à aplicação do direito, encarregadas de aplicar as normas públicas de comportamento de uma
considera a dimensão da história (as decisões judiciárias anteriores, os comunidade política. Esse princípio prescreve que eles leiam e
trabalhos preparatórios de legislação) para aplicá-Ia no presente, uma vez compreendam essas normas em toda a extensão do possível, como se
que isso serve de guia para melhor compreender e até mesmo melhor se fosse a obra de um único autor, a comunidade personificada, exprimindo
apropriar do passado. Segundo ele, trata-se aliás de uma hermenêutica uma concepção coerente da justiça e da eqüidade. Daí resulta o seguinte
crítica, porque a atitude interpretativa a respeito de "o que exige esta critério do que faz o direito: uma proposição de direito é verdadeira se ela
prática, a conduta que ela indica, não é necessariamente ou aparece como a melhor interpretação do processo jurídico na sua
exclusivamente a de continuar o que sempre se fez, em todos os detalhes, integralidade, compreendendo ao mesmo tempo o conjunto de decisões de
mas é, ao contrário, a de examinar seu sentido, de maneira que as regras fundo já tomadas e a estrutura institucional, ou ainda se ela decorre de
devem ser compreendidas, aplicadas, estendidas, modificadas, precisadas uma tal interpretação".69 É certamente daí que resulta a definição do
ou limitadas em função desse sentido".67 A aplicação do direito consiste direito como coerência narrativa, isto é, a retomada ininterrupta da
em um empreendimento bem particular: a interpretação da história história jurídica passada e sua reconstrução interpretativa que, nesse
jurídica passada se dá ao mesmo tempo que sua reconstrução (crítica) de sentido, não trai nem o conteúdo dessa história, nem sua estrutura
forma que, como observa Dworkin, chega-se a mostráIa "sob uma luz institucional. Tratar-se-á sempre, dirá Dworkin, de interpretar uma
bem melhor que anteriormente".68 A interpretação construtiva da história história passada, não de inventar uma nova. O filósofo americano fornece
jurídica passada é ilustrada por Dworkin pela então duas regras sob as quais é exercida a prática interpretativa do
direito.
A primeira regra é a da conveniência - o direito que convém
(fit) -, segundo a qual as autoridades de aplicação reúnem o conjunto de re-
66 R. Dworkin, "La théorie du droit com me interprétation", Droit et Société, gras precedentes e princípios que sejam concernentes ao caso a tratar
n.1, 1985, p.87. O autor se refere por analogia às regras de cortesia.
67 Ibidem, p.87.

68 R. Dworkin, "La chaine du droit", in Droit et Société, n.1, 1985, p.64. O

trecho reproduzido nesta revista corresponde ao cap.7 da obra do autor, Law's Empire
(1986), trad. fr., L' empire du droit, PUF, 1994. 69 Ibidem, p.5I.
424
HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO As METAMORFOSES DO POSITIVISMO JURfDICO 425

para fazer a lista de todas as soluções jurídicas que parecem caber. Cer
autonomia individual.72 Um Estado liberal intervém pouco, ou em todo
tamente, estas devem assegurar a coerência e a unidade do direito da
caso, tanto quanto necessário para fazer respeitar a idéia de autonomia,
melhor forma possível. A segunda regra é a do valor, segundo a qual, que é um valor em si. Além disso, um Estado liberal não decide o bem-
uma vez estabelecida a lista de interpretações possíveis, será preciso es estar de seus cidadãos, porque a idéia do bem ressalta exclusivamente da
colher aquela que esteja em conformidade com a moral política, isto é, esfera privada e, por conseguinte, das decisões individuais. A idéia de
com uma teoria global da justiça, isenta até mesmo ao se escolher uma justiça, na concepção liberal, tem prioridade absoluta sobre a idéia do
interpretação baseada em um princípio que nunca tenha sido explici bem. Ora, a idéia do filósofo americano tomou um caminho decisivo em
tamente reconhecido.7O A conduta interpretativa, em sua dupla dimensão seus escritos posteriores.73 Reconhece que há uma ligação necessária
- da conveniência e do valor -, consiste em assegurar a integridade entre a idéia de justiça e a idéia do bem. De outro modo, seria possível
do direito, sua unidade, e a tornar a prática jurídica tão boa quanto pos para o indivíduo ter sucesso na vida e levar uma vida boa se o Estado não
sível. Salientemos aqui ainda assim que, mesmo sob o constrangimento lhe assegurasse um mínimo de condições que vão além daquelas que
da conveniência, a conduta interpretativa não é inteiramente estranha aos respeitam sua autonomia individual apenas? Em outras palavras, o
ditames da moral política escolhida: a seleção do material jurídico e o "segundo" Dworkin reconhece que a idéia do bem não éexclusivamente
estabelecimento das soluções jurídicas são em grande parte determinados de ordem privada, mas também de ordem pública, aderindo assim às teses
por esta moral política, que impõe em uma segunda etapa a escolha da do filósofo canadense Will Kymlicka.74 Os dois filósofos inovam no
melhor interpretação possível.71 Em que consiste, então, a teoria da debate que opõe os liberais - prioridade do justo sobre o bem - aos
moral política de Dworkin, a moral que tem a função decisiva de permitir comunitarianos - prioridade do bem sobre o justo -, pela distinção que
uma única resposta justa (one right answer) aos casos controversos?
fazem entre uma concepção pública e mínima do bem e as concepções
privadas do bem.
A organização justa de uma sociedade será aquela que, sem defender
4.2 O liberalismo dworkiniano uma concepção particular do bem, reivindica para os mesmos indivíduos,
dos quais defende ainda o respeito da autonomia privada, a possibilidade
Ronald Dworkin é originalmente um liberal. Ele defendeu inicial- de debater no espaço público concepções diferentes de vida boa. Com
mente a concepção tradicional do liberalismo, que coloca no fundamento essa tese, R. Dworkin abre com W. Kymlicka uma terceira via que,
da organização democrática de uma sociedade o valor "kantiano" da mesmo defendendo a neutralidade do Estado, não fecha todavia a

72 R. Dworkin, Liberalism, 1978, cujos trechos estão traduzidos em Libéraux et


70 R. Dworkin, "La chaine du droit", op. cit., p.6S: ver a este respeito a crítica de N. Communautariens, sob a direção de A. Berten, P. De Sylveira e de H. Pourtois,
MacCormick, Dworkin as pre-Benthamite, in Ronald Dworkin and PUF, 1997, p.51-86.
Contemporary ]urisprudence, Duckworth, 1984, p.179-82. 73 R. Dworkin, "Liberal Community" (1989), trad. em Libéraux et
71 E. A. Christodoulidis, The Suspect Intimacy between Law and
Communautariens,op. cit., p.337-S8, e do mesmo autor, Tanner Lectures (1990).
Political Community, A. R. S. P., 1994, Heft 1, p.5.
74 Libéraux et Communautariens, op. cit., p.SO.
426
HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO As METAMORFOSES DO POSITIVISMO JURíDICO 427

porta a suas intervenções: uma redistribuição mais justa dos recursos drão que determina um fim a atingir, como um progresso para a cole-
pode assegurar uma vida boa. A justiça, sem ser uma componente de tividade de um ponto de vista econômico, político ou social, por exemplo
nosso bem-estar, é contudo a condição de sua possibilidade.75 [...]. Chamo de princípio um padrão que deve ser observado, não porque
Quando uma comunidade política se constitui, o ato constitutivo permita realizar ou alcançar uma situação econômica, política ou social
de fundação significa que os cidadãos se reconhecem em um julgada desejável, mas porque ele constitui uma exigência da justiça ou da
sistema eqüidade ou então de uma outra dimensão da moral".76
de direitos que lhes asseguram uma autonomia privada e pública. É a respeito da distinção entre princípios e políticas que a concepção
Igual de Dworkin suscitou o maior número de críticas. Por que colocar,
respeito e igual atenção, esta é a norma fundamental da moral questionou Neil MacCormick, na aplicação do direito nos casos difíceis,
política dworkiniana. Assim, situando-se inteiramente no quadro em primeiro plano os "direitos dos indivíduos" e não "os polítiCOS"?77
institucional do liberalismo tradicional que é o da separação dos dois A resposta do filósofo americano consiste em fazer valer a existência de
poderes - de um lado, o poder legislativo de criação do direito, de outro, o um direito subjetivo (jurídico) sobre a base de um direito moral
poder preexistente. Em Taking Rights seriously (Levando os direitos a sério),
jurisdicional de aplicação do direito -, Dworkin efetua as retificações Dworkin define assim sua tese: "A man has a moral right if for some
que lhe parecem necessárias, a fim de responder às novas demandas de reason the state would do wrong to treat him in a certain way, even
legitimação do direito que são colocadas ao Estado de direito pós-mo- though it would be in the general interest to do so". "But on that account",
derno.4.3 Princípios e políticas
replica N. MacCormick, "the definition is viciously circular. A person has
Apenas o legislador, afirmará Dworkin, cria livremente o direito. a right if he has a right such that a state would wrong by taking away.
Ele traduz sua política (politics) pela edição de regras jurídicas conside- True, but what is right?"78
radas satisfatórias para o bem da comunidade como um todo. Ele cria A crítica de N. MacCormick dirigida ao homólogo americano revela
direitos e obrigações para o futuro que se impõem sob a ameaça da a fragilidade epistemológica do projeto dworkiniano: a moralidade do
coerção. Em contrapartida, os juízes não são livres na aplicação do di- julgamento judiciário e de qualquer outro julgamento de aplicação do
reito. Ou pelo menos não o são da mesma maneira que o legislador. As direito não decorre, como pretende Dworkin, da estrutura interna do
decisões jurisdicionais nos casos difíceis não devem se basear em
argumentos de política (politics) que surgem de uma problemática de
objeti
vos a realizar em uma comunidade - o crescimento econômico, por
exemplo -, mas em argumentos de princípio pelos quais as autoridades
76 R. Dworkin, "Le positivisme", in Droit et Société, n.l, 1985, p.36.
de aplicação do direito fixam os direitos subjetivos das partes no mo-
77 N. MacCormick, Dworkin as pre-Benthamite, op. cit.; cf. também, de um
mento dos fatos. "Chamo de político", escreve Dworkin, "o tipo de pa
outro ponto de vista, a crítica de A. Aarnio, Taking Rights seriouly, A. R. S. P., 1986, bem
como aquela de R. Guastini, "Théorie et ontologie du droit chez Dworkin", in Droit et
Société, n.2, 1986, p.lS.
75 Ibidem, p.47. 78 N. MacCormick, Dworkin as pre-Benthamite, op. cit.,
p.193.
428
HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO As METAMORFOSES DO POSITIVISMO JURfDICO 429

direito tomado em sua totalidade, mas ela lhe é imposta no final das con
cípio de justiça defendido pelo filósofo americano, recordemo-Io, con-
tas com base no exterior, isto é, por uma teoria de justiça cujo critério de
siste em exigir um igual respeito e uma igual atenção para cada um.
identificação é a rights thesis (principles). É à luz dessa teoria que é inter- Coincide, observa Habermas, com o primeiro dos princípios de justiça
pretado o material jurídico. Dworkin deixa aparecer aqui uma certa in- propostos por Rawls, que exige que cada um tenha um direito a iguais
consistência de sua doutrina tanto com seus postulados epistemológicos liberdades subjetivas de ação.81 Todos os homens e todas as mulheres,
de base quanto com as teses que ele quer combater. Recordemos breve- escreve Dworkin, dispõem "de um direito natural [...], direitos que pos-
mente aqui que o filósofo tenta traçar para a teoria do direito uma terceira suem como seres humanos que têm a capacidade de fazer projetos e de
via que superasse por um lado as teses positivistas (o convencionalismo), exercer a justiça': 82 A teoria da justiça do filósofo americano, todavia,
por outro as teses do pragmatismo e também do jusnaturalismo.79 Ele não escapa à crítica de J. Habermas quanto ao lugar que ocupa seu juiz
combate a tese positivista que reduz o direito a um conjunto de regras ideal (Hércules), que dispõe de um acesso privilegiado à Verdade. No
contidas nos jornais oficiais e nos sumários de jurisprudência, porque a lugar dessa concepção deontológica (embora, paradoxalmente, substan-
teoria de interpretação que ela propõe se baseia em avaliações subjetivas cial) e mono lógica da justiça, o filósofo alemão vai tentar instituir uma
das autoridades de aplicação - seu poder discricionário - e não na mora- concepção processual e dia lógica.
lidade política estrutural e interna ao direito contemplado em sua
globalidade. Ele combate por razões similares as teses do pragmatismo
(realismo americano), que solicita ao juiz a busca de regras que seriam as 5.A RECONSTRUÇÃO HABERMASIANA DO
melhores para o futuro, sem qualquer consideração pelo passado. O
DIREITO
pragmatismo propõe, a exemplo do que fazia outrora o jusnaturalismo do
século XVIII, uma teoria de interpretação e de justificação do julga
O objetivo de J. Habermas e de seus discípulos, dentre os quais reteremos
mento jurídico fundada sobre um princípio exterior no material jurídico,
como o critério utilitarista do bem-estar máximo da comunidade. aqui a personalidade de Klaus Günther, consiste em elaborar uma teoria
Em suma, a conduta do filósofo americano pressupõe um metanível crítica do direito situada no prolongamento das teses da Escola de
de princípios de justiça do qual será deduzida a solução jurídica nos Frankfurt, que propunha também uma teoria crítica da sociedade em seu
casos difíceis. É pelo menos o que aponta a maior parte das críticas conjunto. Coloquemos de uma só vez os dois objetivos filosóficos do
dirigidas contra a teoria dworkiniana da interpretação.8O O prin projeto habermasiano.
O primeiro objetivo consiste em acreditar na idéia de uma Razão
(crítica) face ao relativismo do historicismo. A esse respeito, o filósofo
alemão retoma em consideração as aquisições da hermenêutica
79 John Mackie, The third Theory ofLaw, Philosophy and PublicAffairs, v.7,
n.l,1977,p.I-16.
80 A. Altman, Legal realism, Critical Legal Studies and Dworkin, Philosophy and
81 J. Habermas, Droit et démocratie. Entre faits et normes, Gallimard, 1997,
Public Affairs, v.15, n.3, 1986; Altman diz: "Dworkin's conception about the
p.224.
soundest theory assumes that there is some metalevel principIe for determining
82 R. Dworkin, Prendre les droits au sérieux, PUF, 1995, p.273,
the appropriate weight to be assigned to different principIes': p.216-7.
citado por
Habermas, op. cit., p.224.
430
HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO As METAMORFOSES DO POSITIVISMO JURfDICO 431

gadameriana, mas lhe parece necessário fazer frente ao que ele pensa regra de argumentação que se enuncia assim: "Toda norma válida deve
serem suas lacunas. Todavia, ele não pretende "superar" a hermenêutica satisfazer a condição de que as conseqüências e os efeitos secundários,
que (de maneira previsível) provêm do fato de a norma ter sido univer-
ontológica de H. G. Gadamer. Ele se inscreve, ao contrário, em sua pos
salmente observada na intenção de satisfazer os interesses de cada um,
teridade.83
podem ser aceitos por todas as pessoas concernentes (e preferidos às
Gadamer identifica erradamente, ressalta Habermas, a razão com repercussões das outras possibilidades conhecidas de regulamento)".86 É
o principio de Universalidade (U) em que se baseia a ética da discussão
a tradição e sua autoridade.84 A razão se encontra desde então
que Habermas desenvolveu na seqüência de K. O. ApeI. 87 A ética da discussão
incapaz
é, assim, uma ética processual e universalista.
de se desligar do contexto da tradição. A pesquisa científica, segundo Habermas denuncia igualmente na hermenêutica ontológica uma
Habermas tão pouco considerada pela hermenêutica gadameriana, pro segunda identificação operada por H. G. Gadamer: do "ser do mundo" na
vou contudo a aptidão da razão para elaborar uma verdadeira obra crí linguagem e, mais precisamente, "a limitação do campo da ação à
tica face à tradição. Acontece o mesmo para o domínio prático da compreensão lingüística".88 Certamente, a experiência hermenêutica
validade das normas. Também aí, a reflexão racional não parece estar como "revelação da verdade", ou seja, de nossa participação em uma
ancorada na substancialidade da tradição, como pensa Gadamer. Ela história que nos é comum, é adquirida unicamente pela compreensão
chega, ao contrário, a ultrapassar a particularidade do contexto da tra lingüística. Não obstante, observa Habermas, há domínios de ação em que
dição e pretende mesmo à universalidade do que ela anuncia. A capaci- apenas a compreensão lingüística se revela insuficiente para elucidar
dade da razão prática, sob a forma de pretensão à universalidade que a formação da experiência humana. Esses domínios possuem uma con-
lhe atribui Habermas, não se baseia em uma faculdade interior do sujeito figuração particular. "Sua configuração", observa J. De Munck, "não passa por
que em seu foro interior decide de maneira monológica a validade da conexões 'gramaticais' do sentido, mas também por violência, dominação,
máxima de ação a realizar. A solução kantiana lhe parece, em outras causalidade, em suma, por conexões empíricas".89 Dois desses campos
palavras, bem inadequada para a justificação das normas morais. Jürgen de ação, que são também lugares de aprendizagem social, serão em
Habermas situa o fundamento das normas morais em uma ética da dis- Habermas objeto de um tratamento particular. Trata-se, por um lado, do
cussão. Ao critério formal do imperativo categórico kantiano, Habermas campo da dominação política (o Poder), por outro, do trabalho (a
substitui um princípio processual de discussão (D) segundo o qual "só
podem pretender à validade as normas que são aceitas (ou que poderiam
sê-Io) por todas as pessoas concernentes, desde que participem de uma
discussão prática':85 No curso da discussão, as pessoas concernentes
decidem sobre a validade das normas a aceitar, tendo como guia uma 86 Ibidem, p.87.
83 J. De Munck, L'institution sociale de l'esprit, op. cit., p.lS7.
87 K. O. Apel, Sur le probleme d'une fondation rationnelle de l'éthique à l'âge

84 J. Habermas, Logique des sciences sociales et autres essais, PUF, 1987. J. Habermas,
85
de Ia science. L'a priori de Ia communauté communicationnelle et les fondements de
"Notes programmatiques pour fonder en raison une éthique
l'éthique, Lille, Presses Universitaires de Lille, 1987.
de Ia discussion", in Morale et Communication. Conscience morale et activité
88 J. De Munck, L'institution sociale et l'esprit, op. cit., p.lS6.
communicationnelle, Éd. du Cerf, 1986. p.114.
89 Ibidem, p.lS6.
433
432 HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO As METAMORFOSES DO POSITIVISMO JURiDICO

direitos sociais), daquilo que M. Weber denunciava como


moeda). A experiência humana é, a seus olhos, formada pela tripla arti-
culação do Poder, do Dinheiro e da Linguagem. "materialização
Da mesma forma que o modo de ação é essencialmente determinado do direito", modificando assim a configuração dos sistemas jurídicos de
pelo poder ou dinheiro, a racionalidade da ação pode ser instrumental, ou tipo ocidental. Habermas censura Weber por não levar em considera
seja, a "finalidade da ação é determinada: a) independentemente dos ção as aquisições do Estado social e por querer defender uma concep
meios postos em jogo; b) como um estado que trata de produzir
casualmente; c) no mundo objetivo".9O Os agentes sob o domínio da ção do direito muito formalista e positivista. Ele se opõe em seguida ao
racionalidade instrumental podem utilizar os outros como meios, e não enfoque sistemático de N. Luhmann, o teórico fundador da
como "fins em si", para retomar o vocabulário de Kant. Eles desenvolvem autoprodução dos sistemas sociais no seio dos quais o subsistema do
assim um agir estratégico. direito constitui um sistema funcional especializado que se refere uni
A economia de mercado, sobre a qual estão fundadas as relações de
camente ao seu próprio código, aquele do legal/ilegal. O direito se dis
produção (trabalho) e o poder do Estado na maior parte de suas
manifestações, principalmente o poder administrativo, induz a um com- tinguiria assim, segundo Luhmann, dos outros sistemas sociais, por um
portamento baseado em um cálculo estratégico. Habermas chama essa lado do subsistema da moral, por outro dos projetos políticos. Ora, a
forma de sociabilidade de "sistema" e a opõe à outra forma de sociabi- distinção luhmanniana entre o que é legal e o que é ilegal coincide com
lidade em que os atores visam ao entendimento comunicacional pelo viés a distinção classicamente binária entre o justo e o injusto. A esse respei
da linguagem. É o "mundo vivido", onde os agentes podem desdobrar um
to, a 5.1
concepção
Um modeloluhmanniana permanece também ligada à posição
de justiça processual
agir comunicacional e chegar a um consenso. O poder e o dinheiro
positivista de uma racionalidade jurídica axiologicamente neutra.
impedem com freqüência a manifestação de um agir comunicacionaP' Aos dois tipos de racionalidade nos quais se inscreve a ação hu
O segundo objetivo do projeto consiste em superar os dois grandes mana, a racionalidade instrumental e a racionalidade
sistemas de racionalidade jurídica propostos sucessivamente pelos so- comunicacional,
ciólogos alemães Max Weber e Niklas Luhmann.
correspondem dois tipos de regulação social que são operados pelo
Habermas se opõe à concepção formalista de Max Weber92, que
quis preservar a autonomia da racionalidade diante das mudanças do fim di
do século XIX que prepararam o surgimento do Estado social (e dos reito.
Do primeiro tipo faz parte o direito como meio. Ao segundo tipo
corresponde o direito como instituição.93
90 J. Habermas, "Actions, actes de parole, interactions médiatisées par le O direito como meio tem um papel puramente funcional, mais pre
langage et le monde vécu", in La pensée métaphysique. Essais cisamente no sentido de que suas normas servem para estabilizar as
philosophiques, Armand Colin, col. Théories, 1993, p.68, citado por J. De
relações de troca econômica e dizem respeito ao agenciamento admi
Munck, op. cit., p.1S9.
91 K. Pschopedis, Regles et antinomies du Politique (em grego), Polis, Atenas, nistrativo ou mesmoThéorie
93 J. Habermas, burocrático da sociedade.
de l'agir Sua função
communicatione/, é de ordem
t.I, lI, Fayard, 1987, t.lI,
1999, p.540. pAOO.
92 Ver supra.
434
HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO As METAMORFOSES DO POSITIVISMO JURIDICO 435

sistêmica, pois consiste em assegurar a reprodução do sistema econô


clássicas (os direitos "à liberdade, à vida,
não se realizariam se as liberdades
mico e do sistema administrativo tornados amplamente autônomos nas à propriedade") que asseguram a autonomia privada das pessoas não
sociedades contemporâneas. O direito como meio serve de instrumen fossem garantidas. "Dessa maneira': escreve Habermas, "a autonomia
to para a coordenação da ação social sem recurso direto às instituições privada e a autonomia pública se pressupõem reciprocamente, sem que
normativas dos atores. uma possa reivindicar o primado sobre a outra':97 Como conseqüência, o
modelo processual habermasiano ultrapassa, de um lado, o liberalismo
Contudo, mesmo consideradas sob este ângulo "sistêmico': suas que afirma a prioridade dos direitos clássicos sobre os direitos políticos,
normas não são desprovidas de toda legitimidade. Sua justificação não e de outro, o Republicanismo que dá prioridade aos direitos
vem de seu conteúdo normativo, isto é, dos valores morais que estão políticos.
inscritos nelas, mas dos procedimentos de sua adoção considerados le Mesmo quando o direito é utilizado como um instrumento (o direito
gítimos pelos indivíduos. Não se poderia, por conseguinte, assimilar a como meio) para a reprodução dos sistemas autônomos, o elo entre o
legitimidade dessas normas apenas à forma jurídica do procedimento direito e a moral está bem presente, precisamente, como aqui, de
de adoção definido no interior de um sistema de direito, como concebe maneira indireta (racionalidade dos procedimentos de edição das normas
a teoria da autopoiese.94 Sua justificação está ligada à racionalidade dos jurídicas).
procedimentos de edição e de aplicação das normas. Confome escrevia Habermas na Teoria do agir comunicativo,
A racionalidade desses procedimentos será ainda mais aprofundada faz parte do segundo tipo de regulação o direito como instituição. É
por Habermas em sua obra recente, Direito e democracia. Entre preciso subentender "nos procedimentos as normas jurídicas que
poderiam achar uma legitimação suficiente na revisão positivista. Neste
facticidade e validade9S, e será reduzida ao procedimento da formação
aspecto, são típicos os fundamentos do direito constitucional, os
racional da vontade política do Legislador tal como ele se concretiza de
princípios do direito penal e do procedimento penal, assim como todas as
um ponto de vista institucional no quadro dos princípios de um Estado
regulamentações dos fatos penais relativos à moral (como o assassinato, o
de direito: princípio da soberania popular (direitos políticos dos cida
aborto, o estupro etc.). Como a validade dessas normas é questionada na
dãos como direitos de participação na formulação da vontade política,
prática corrente, a referência a sua legalidade não é suficiente. Elas
eleições, referendum etc.); princípio da proteção jurídica do indivíduo,
exigem uma justificação material, porque pertencem às ordens sociais
princípio de legalidade da ação administrativa, controle parlamentar e
legítimas do próprio mundo vivido e constituem, com as normas
jurisdicional desta ação e, enfim, o princípio da separação do Estado e
informais da ação, o plano de fundo do agir comunicacional".98
da
Mas também sobre esse ponto, apesar do fato de que o lugar entre o
sociedade civil. 96 De qualquer forma, ressaltemos aqui a título de parên
direito e a moral se refere ao conteúdo (a materialidade) dessas nor
teses que, na visão do filósofo alemão, os direitos políticos dos cidadãos
94 H. Pourtois, Théorie sociale et jugement juridique. À propos de]. Habermas
et de K Günther, A. P. D., 1992, t.37, p.307.
95 J. Habermas, Droit et démocratie. Entre faits et normes, Gallimard, 1997. 97 Ibidem, p.486.
96 Ibidem, p.189.
98 Ibidem, p.402.
436
HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO
As METAMORFOSES DO POSITIVISMO JURíDICO 437

mas, sua justificação não seria percebida independentemente dos pro


normativo é neutralizado. Com isso, os dois sistemas chegam a se re-
cedimentos de sua edição aplicados pelo Legislador racional no quadro
produzir. É certo que o direito intervém para "corrigir" os excessos de
dos princípios do Estado de direito. "As instituições do direito 'anco autonomia para os quais eles tendem. Mas ainda assim, a justificação
dessas regulações pontuais se refere ao procedimento da formação ra-
ram' o sistema do direito inteiramente no seio do mundo vivido."99 E,
cional da vontade política do Legislador. A tese do filósofo alemão
nas sociedades modernas, a justificação dessas normas não seria deri pode então ser resumida assim: "Certamente, um direito que, nas so-
vada de uma ordem normativa superior, mas sim dos procedimentos ciedades modernas, assume como essencial a carga de integração social
fica exposto à pressão profana dos imperativos funcionais emitidos
de uma argumentação prática que exigem que todo indivíduo interes
pela reprodução social; mas ele é ao mesmo tempo submetido à
sado possa tomar parte de maneira livre e igual (ética da discusSão). necessidade idealista, por assim dizer, de os legitimar".102 O modelo de
À distinção entre direito como meio e direito como instituiçãolOo, uma justiça processual para as sociedades democráticas atuais necessitará
de gerenciamentos institucionais que, sem questionar o modelo institu-
Habermas prefere, em Direito e democracia, uma conceituação um pouco
cional da modernidade (separação do Estado da sociedade civil, sepa-
diferente, designada nesta mesma obra pela distinção entre a ração dos três poderes), vão de qualquer forma colocá-Io em maior
artificialidade do social e a validade à qual pretende a ordem jurídica conformidade "com esta idéia da auto constituição de uma comunidade
de pessoas livres e iguais".103 O filósofo considera que toda questão
considerada em sua globalidade. O direito como meio de
relativa ao novo gerenciamento institucional do espaço público não pode
integração so ser tratada senão por um jogo combinado entre imaginação institucional e
cial é aqui comprimido entre a força do factual e sua pretensão à vali- prudente experimentação. 104
dade. A força do factual provém essencialmente destes dois sistemas
autônomos e diferenciados do mundo vivido que são o sistema do
mer 5.2 Justificação e aplicação do direito: Klaus Günther
cado e o sistema administrativo. A integração social se torna aqui
A tentativa de K. Günther de resolver a questão da aplicação
operacional, como dissemos, de maneira "sistêmica': pois a coordena
do
ção daH.ação socialop.não
Pourtois,
99 cit.,sep.309.
faz por meio dos esforços de comunicação e direito nos casos difíceisl05 se situa no quadro da problemática
de consciência dos participantes, mas objetivamente, ou seja, "com seu
100 Cf. sobre este assunto principalmente a crítica de U. K. Preuss,

conhecimento': "A mão invisível do mercado': escreve Habermas, "é des


"Rationality 102Ibidem, p.55.
potentials ofSmith
de Adam o exemplodistributive
Iaw - Allocative, clássico desse tipo de regulação':
and communicative 101
rationality': in 103 Ibidem, p.493.
104 Ibidem, p.470. O autor anuncia isto a respeito da "democratização da
Nos dois sistemas de ação que acabamos de indicar, a linguagem
Criticallegal thought: an american-german debate, C. Joerges e D. M. Trubek Administração".
utilizada pelos atores serve para transmitir informações ou para 105 K. Günther, Justification et application universalistes de ia norme en
(eds.),
exer droit
Baden-Baden, 1989, p.525.
eten moraie,A. P. D., 1992, t.37, p.269.
cer
101
influências,
J. Habermas, e nesta troca "comunicacional" o ponto de vista
Droit et démocratie. Entre faits et normes, op. cit., p.54.
438
HISTÓRIA DA FilOSOFIA DO DIREITO As METAMORFOSES DO POSITIVISMO JURíDICO 439

habermasiana. O discípulo de Jürgen Habermas tenta pensar uma dis


Dworkin, que também considera que, nos casos difíceis, os princípios não
tinção entre justificação e aplicação do direito. No momento da criação são criados pelas autoridades de aplicação, mas são tirados de uma
de uma norma jurídica, afirma K. Günther, será preciso encontrar os história jurídica passada. Em suma, para Dworkin, como para Habermas e
Günther, as lacunas de direito não existem. Mas isso, prossegue Lenoble,
critérios de sua justificação. A norma não será justificada e, conseqüen só seria aceitável caso se supusesse que o sistema do direito contém um
temente, não será válida se não satisfizer o critério de universalização princípio de tal generalidade que pode engendrar soluções julgadas
dos interesses (o interesse de cada um). Sendo esse critério a priori "apropriadas" a todo caso considerado novo. Desse modo, a idéia de
completude do sistema seria preservada, mas ela teria o estatuto de uma
indeterminável, a validade de uma norma acaba por depender de um
idéia reguladora, porque seu conteúdo deveria ser redefinido sem cessar.
procedimento de argumentação por natureza infinita.106 Mas a
Tais princípios, afirma ele, que permitem a abertura e autoretlexividade
indeterminação que permeia a aplicação do direito, afirmam J. do sistema, com efeito fazem parte dos sistemas jurídicos
Habermas e K. Günther, é de natureza diferente. No momento da apli contemporâneos. São os princípios da liberdade e da igualdade
cação do direito, a autoridade dispõe de normas válidas aplicáveis à si constitutivos dos direitos do homem. Contudo, escreve ele, "se o sistema
contém um princípio que permite que apenas com sua aplicação se
tuação a julgar. A indeterminação provém do fato de que a situação
redefina seu conteúdo, isso significaria que sua aplicação é 'paradoxal', ou
particular é suscetível de receber a aplicação de normas válidas concor
seja, que é no momento de sua aplicação ao caso particular que ele se
rentes. Essas normas válidas são prima facie aplicáveis à situação em define". 109 Mas se é assim, ainda se pode considerar que se está sempre
questão. Diante de tal situação, a autoridade de aplicação se questiona em um discurso de aplicação do direito? A resposta dada por K. Günther
sobre a pertinência da aplicação da norma à situação a julgar e, mais a este tipo de objeção é a seguinte: "Todavia, não existe nenhum ponto de
precisamente, se "a norma introduzida para legitimar um imperativo vista externo a partir do qual se poderia determinar objetivamente que
da ação para esta situação particular é moralmente apropriada para esta uma norma seria 'nova' com relação ao conjunto de todas as normas
válidas que constituem nossa práxis moral. Também, na medida em que
situação, todas as coisas bem consideradas': 107 Na aplicação do
possamos justificar uma norma por uma interpretação completa e
direito,
coerente de nossa práxis moral, pode-se afirmar que ela jápertencia a esse
é preciso então proceder a uma descrição exaustiva do caso a julgar e modo de agir. Assim, 'o que poderia ter sido' pertence igualmente à nossa
levar em consideração todas as características da situação que são per práxis moral. Aquele que deseja contestar que uma 'nova' norma é
tinentes às normas prima facie aplicáveis. A justificação do imperativo constitutiva de nosso agir moral, não pode fazê-Io senão de um ponto de
singular escolhido baseia-se sem dúvida em uma interpretação coeren vista imanente à práxis. A via está aberta ao discurso de justificação". 1 10
te do conjunto das normas prima facie aplicáveis. Ora, contrapõe Jacques
Lenoble, isso pressupõe
106 J. Lenoble, "Droit etaCommunication:
completude doJ.sistema de direitolO8
Habermas': e, droit,
in La force du nesse
op. cit., p.185.
sentido, o enfoque de Habermas e de Günther se parece com o de
107 H. Pourtois, op. cit., p.3lO. K. Günther, op. cit., p.284. 109 Ibidem, p.186.
108 J. Lenoble, op. cit., p.186. 110 K. Günther, op. cit., p.292.
A noção de autopoiese vem dos trabalhos científicos de H.
Maturana
440 e de F. Varela, que desenvolveram uma teoria mecanicista do
HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO
As METAMORFOSES DO POSITIVISMO JURfDICO 441
vivente. Todo
organismo vivente pode ser explicado apenas por sua organização
6. A TEORIA DA AUTOPOIESE E O DIREITO cipalmente na forma que ela adquire nas sociedades ocidentais, constitui
inter
um processo historicamente contingente. Mas esse mesmo processo
na, a única que está na origem de sua autoprodução, de seu funciona
aparece ao mesmo tempo no seio desta teoria como um processo
mento e, sobretudo, de seu relacionamento com o meio ambiente. A
logicamente inevitável, já que a constituição do social, qualquer que seja
visão
sua forma, é o resultado de uma seleção entre diversos mundos possíveis;
autopoiética da constituição do mundo biológico foi em seguida
em outras palavras, é o resultado de um ato originário de diferenciação.
introduzida nas ciências sociais por Niklas Luhmann, para a Do ponto de vista da formação e da gênese lógica do social, o agir
sociologia humano consiste em introduzir, em um espaço em que faltam limites e
geral, e depois, ao preço de algumas variações com relação ao modelo marcas, o primeiro passo de uma demarcação possível que "põe fim à
luhmanniano, por Günther Teubner para a sociologia do direito. Contu indeterminação do indiferenciado': 112 Todo ato humano, explica
do, a transferência dos conceitos autopoiéticos do domínio das ciências Luhmann, seguindo aqui a lógica de Spencer Brown, é sempre uma es-
da natureza, no caso, a biologia, para o domínio das ciências sociais não colha entre diversas possibilidades de agir. Por este primeiro ato, ato
implica, a seus olhos, um enfoque biológico da constituição e do funcio logicamente originário, o indivíduo faz uma escolha entre diversas pos-
namento do social, e ainda menos a submissão dos processos psíquicos e sibilidades de agir, e sua escolha interpela a resposta da outra parte, que
comunicacionais à lógica da biologia. As noções de sistema, de auto-refe vai por sua vez agir de maneira seletiva, optando seja pela aceitação seja
rência e de evolução devidas aos dois biólogos que acabamos de evocar pela recusa do modo de agir que lhe é proposto. Essa interpelação cons-
titui uma comunicação e, como conseqüência, o primeiro sopro de ordem
adquirem assim, no seio da teoria sociológica da autopoiese, uma
social é assim introduzido na desordem (caos) originária da infinidade
conotação em princípio depurada de qualquer reducionismo biológico.
dos possíveis. O mundo social "nasce" da interconexão seletiva dos
Podemos de início colocar que a teoria da autopoiese, como teoria
modos de agir, que tornam real o que não passa de possível, ao mesmo
da formação e do funcionamento do social, substitui a diferenciação das
tempo excluindo, por definição, outros modos de agir. As primeiras
funções durkheimianas quanto à divisão do trabalho social por uma di
distinções operacionais, as primeiras diferenciações e, por isso, a
ferenciação dos sistemas sociais - tais como o direito, a economia, a configuração do social assim se estabelecem. É nesse sentido que de-
política e a moral- que asseguram, cada um deles e segundo sua lógica vemos compreender que os sistemas sociais nascem da "fatalidade do
interna, a redução da complexidade social que nas sociedades modernas acaso" (die Fatalitat des willkürlichen).
segue de maneira crescente. Cada um dos subsistemas sociais que compõem o espaço social ca-
A diferenciação que se observa entre o direito, a moral e a econo naliza a atividade humana e reduz, por conseguinte, a complexidade so
mia é fruto de um "acaso de evolução que leva': afirma Teubner, "à
emer
gência de certas distinções que se impõem graças ao
desenvolvimento in Journal M, n.44, fevereiro de 1991.
ll2 J. A. Garcia Amado, "lntroduction à }' oeuvre de Niklas Luhmann",

de théorie
círculos
III "La
auto-referenciais
des systemes fundados
auto-poi:étiques/interview sobre
de Günther discursos
Teubner': Droit
especializados et Société, n.11-12, 1989, p.16.
442 443
HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO As METAMORFOSES DO POSITIVISMO JURíDICO

cial. Da mesma forma, cada um dos subsistemas sociais se baseia em um seado no que pertence somente a ele (por exemplo, seu código legal!
código binário. Ao direito cabe a distinção binária entre o legal e o ilegal, ilegal). Se fosse o caso, tratar-se-ia de um sistema simplesmente
à economia, a do lucro e do não-lucro, à estética, a distinção entre o feio e tautológico e não de um sistema autopoiético. Certamente, é o direito
o belo, à moral, a distinção entre o que é moral e o que éimoral, à política, que diz o que é o direito; em outras palavras, que fixa os critérios de
a oposição poder/não-poder. A função desta inclusão estrutural é dupla. validade do direito: nada fora deste sistema pode "valer" como direito.
Consiste em informar a ação humana, e também permite que o sistema Contudo, o fechamento normativo do sistema não impede sua abertura
"filtre" toda informação que lhe "vem do exterior" e, nesse sentido, que se cognitiva, ou seja, a comunicabilidade desse sistema com seu ambiente
autoproduza. Cada subsistema social (autopoiético) é fechado e auto- ou até com os outros subsistemas sociais, a política, a moral ou a eco-
referencial porque não pode "ler" e tratar as informações (sociais) senão nomia, precisamente porque, como observa Günther Teubner, "os ele-
por seus elementos, aqueles que o compõem, e sua lógica intrínseca. mentos constitutivos dos subsistemas são inicialmente idênticos aos
Enfim, nenhum desses subsistemas sociais pode aplicar seu código a si elementos da sociedade. Eles permanecerão presos em uma relação de
mesmo. Essa é uma das conseqüências dos teoremas de "limitação" dos conexão potencial". 115 O código binário sobre o qual está fundado
sistemas formais entre os quais figura principalmente o teorema de Gõdel o sistema jurídico constitui o critério de delimitação desse sistema, princi
(1931).113 O subsistema de direito, por exemplo, não poderia se palmente diante dos outros subsistemas sociais, que é exclusivamente
pronunciar sobre a questão de saber se é legal ou ilegal existir o código um critério de sentido, isto é, o critério de seleção dos elementos e das
legal/ilegal. O fundamento de cada sistema auto-referencial, fechado e possibilidades com base em um ambiente mais complexo. Teubner ob
autônomo se mostra assim serva que o mesmo acontecimento - um contrato, por exemplo - é ao
paradoxal. 114 mesmo tempo um ato de comunicação econômica, na medida em que
O sistema autopoiético do direito - como qualquer outro subsistema constitui um ato de pagamento, e um ato de comunicação jurídica, pois
social- não constitui, portanto, apenas um sistema fechado que constrói modifica a posição jurídica dos contratantes pela criação de obrigações.
seus elementos com base em seu fundo e se reproduz ba Novas comunicações jurídicas podem eventualmente se articular no
caso de um recurso de apelação. Mas, ao mesmo tempo, este ato jurídico
constitui um ato de comunicação social que afeta outras esferas sociais, a
família, a cultura e, de maneira mais geral ainda, observa Teubner, aquilo
113 Mas um subsistema social não é um sistema formal! É claro que esse tipo de
que Habermas designava como o "mundo vivido". "As componentes de
referência ao teorema de Godel cairia sob o golpe de virulentas críticas feitas por
Jacques Bouveresse em Prodiges et vertiges de l'analogie (Ed. Raisons d'Agir, compreensão e de informação (isto é, a mesma seleção, mas
1999) contra os usos múltiplos, mas sempre analógicos feitos em ciências sociais operada com base em contextos de seleção diferentes) diferem em fun
do teorema de incompletude de Godel: esse célebre teorema, que demonstrou ção da referência sistêmica, conforme se considera a sociedade ou o
que nenhum sistema formal é capaz de representar adequadamente a direito:'116 Nesse sentido, podemos igualmente dizer que em um mes
integralidade dos procedimentos suscetíveis de nos levar a reconhecer como
verdadeira uma proposição matemática, pode ser exportado de maneira legítima
fora das ciências formais e matemáticas? 115 G. Teubner, "La régulation de Ia société par le droit réflexif", in Le
G. Teubner, "Et Dieu rit..:', in Le droit, un systeme autopoi"étique, PUF, col. Les
114
droit,
voies du droit, 1993, p.1I. un systeme autopoi"étique, op. cit., p.l3S.
1\6 Ibidem, p.139. Nós colocamos as palavras em itálicos.

~
444
HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO As METAMORFOSES DO POSITIVISMO JURIDICO 445

mo "acontecimento" - por exemplo, a cobrança de impostos - ressal refere à "realidade" dos outros sistemas sociais autopoiéticos (econômico
tam contextos diferentes: econômico (receita do Estado), político (cál ou político). Mas, por outro lado, seria preciso igualmente pensar que
culo eleitora!), jurídico (obrigação). É desta maneira que se deve conceber essa construção constitui ao mesmo tempo uma "comunicação social
a perspectiva do construtivismo epistemológicoll7 na qual se geral': 118 Por trás dessas construções epistêmicas operadas pelos
situa a autopoiese de cada subsistema social- neste caso, a do sistema sistemas auto-referenciais, não deveria haver um denominador comum
jurídico -, que leva seus teóricos a distinguir, para cada subsistem a so que permitisse traduzir uma comunicação econômica, por exemplo, em
cial, um código binário de seus programas, sendo estes últimos, para o comunicação jurídica?1l9 Ora, isto iria ao encontro da visão que quer
sistema de direito, as normas e os atos jurídicos. O código legal/ilegal defender a teoria da autopoiese. "Uma relação de tradução", observa
permanece intacto, mas a "programação" do sistema muda em função Habermas, "(faria) estourar o fechamento recursivo dos ciclos de co-
do "fluxo comunicacional social": entre outras, a não realização de cer municação, impenetráveis uns nos outros". 120 Em todo caso, todo fenô-
tas políticas legislativas, que demandam assim uma revisão, a resolução meno de comunicação interferencial entre os sistemas autopoiéticos,
do conflito entre valores antinômicos, a ocasional recuperação pelo como aquele que mencionamos com o exemplo do contrato, não implica,
direito das construções sociais operadas no seio de outras esferas sociais na visão autopoiética, a participação de um subsistema social àautopoiese
(por exemplo, as técnicas científicas para a modificação dos pro- de outro.121
cedimentos jurídicos em matéria do direito das provas). Mas é preciso A interferência entre o direito e os outros subsistemas sociais gera,
não perder de vista que toda modificação levada à programação do sis- muito freqüentem ente, conflitos intersistêmicos.A economia, por exem-
tema só é operacional pelos processos e pelos elementos do próprio sis- plo, que constrói sua realidade na linguagem dos preços, dos custos e do
tema jurídico. Esta última operação é ao mesmo tempo um modo de o que pode constituir um lucro, não toma o direito como um conjunto de
sistema de direito observar a si mesmo (reflexividade), a fim de manter normas constrangedoras, mas como um "fator de custo", incitando os
intactas suas fronteiras com relação a outros sistemas autônomos e pre atores econômicos à infração quando a amplitude da sanção lhes parece
servar assim sua autopoiese. menos custosa que o lucro a ganhar.122 Dessa maneira, o que é
Contudo, pode-se desvendar algumas dificuldades internas no
construcionismo jurídico tal como é concebido principalmente por
G. Teubner. Como é possível conciliar dois enfoques que parecem tão
con
118 G. Teubner, "La régulation de Ia société par le droit rétlexif': in op. cit., p. 138.
traditórios? Por um lado, com efeito, levam-nos a pensar em um sistema 119 É isso, aliás, que nos deixam compreender as proposições de G. Teubner
social fechado que constrói baseado em suas componentes, e apenas com quando ele se refere ao "mesmo evento" ou à "mesma seleção': mas também quando nos
base em suas componentes, a "realidade social" mesmo quando se faz observar que a interferência de tipo estrutural entre o direito e a sociedade "se
apresenta quando há imbricação de expectativas da sociedade em geral
e de expectativas jurídicas"; ibid. p.142.
120 J. Habermas, Droit et démocratie. Entre faits et normes, op. cit., p.68.

121 G. Teubner, "La régulation de Ia société par le droit rétlexif': in op. cit., p. 140.
G. Teubner, How the law thinks: towards a constructive epistemology of
117
122 Id., "Le droit des contlits intersystémiques", in Le droit, un systeme
law, Florence, 1989.
autopoi'étique,op. cit., p.122 e 163.

"
447
446 HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO As METAMORFOSES DO POSITIVISMO JURíDICO

economicamente eficaz pode não ser legal. A questão que se coloca assumissem a comunicação entre os subsistemas autônomos ("comu
é a de saber que tipo de regulação jurídica evoca o conflito entre nicação via organização"). Destas entidades organizacionais participa
os sistemas autopoiéticos, uma vez que toda primeira função do riam atores coletivos diversos (parlamento, sindicatos, empresas, por
direito consiste tanto em prevenir quanto em regrar os conflitos já exemplo) e que teriam a competência de resolver os conflitos entre
engendrados. Poder-se-ia evocar a intervenção direta do direito subsistemas sociais (forma quase jurisdicional?) ou até de prevenir a
na esfera econômica por uma regulamentação substancial? criação de tais conflitos (forma quase legislativa?). Assim, o sistema de
Segundo Teubner, isso só pode conduzir ao fracasso, porque vai direito não teria agido por uma regulação de caráter substancial, mas
comprometer o caráter autopoiético do direito. Há, aliás, três por
razões para este triplo fracasso (regulatory trilemma)123: uma uma regulação de caráter processual. É unicamente dessa maneira, ob
regulamentação direta da economia operada pelo direito seria serva Teubner, que poderemos falar de um direito reflexivo, ou
inconcebível porque os critérios jurídicos não são pertinentes para a seja, de
"realidade econômica". O direito não poderá jamais dizer como uma um "direito que identifica a si mesmo como um sistema
empresa pode ser eficaz. Em suma, há incongruência entre o direito, a autopoiético, elemento de um mundo constituído de sistemas
economia e as outras esferas sociais. Em segundo lugar, uma autopoiéticos, e que tira disso as conseqüências operacionais".125
regulamentação direta pode levar à "juridificação" das esferas sociais, Não obstante, esse tipo de regulação evocada por Teubner permi
isto é, ao que J. Habermas denunciava sob o vocábulo de "colonização do te-nos escapar das interrogações que implica o modelo de uma
mundo vivido". Enfim, a "socialização" do direito, ou seja, sua "adap- regula
tação" aos critérios das outras esferas sociais, impede a autoprodução dos mentação substancial? Podemos evocar aqui o mesmo tipo de
elementos normativos do sistema. O direito seria assim "colonizado" pela argumento que levantaram as CLS a respeito dos defensores do pensa
política, pela moral ou pela economia. Enfim, não é possível resolver o mento formal e liberal do direito: como poderíamos
conflito intersistêmico pela edição de regras jurídicas que se destinassem estabelecer as com
a responder, de forma global, às grandes necessidades da sociedade. A petências e os procedimentos das entidades organizacionais que
solução do problema de regulação, observa Teubner, consistiria em pudessem
encontrar os mecanismos de organização que deixassem intacta a assumir a interação dos sistemas auto-referenciais sem prejulgar as es-
autoprodução dos sistemas sociais. 124 Para tanto, seria suficiente estabelecer os colhas substanciais que se terá de fazer tanto a respeito da distribuição
procedimentos adequados e instaurar as organizações que dos poderes entre os atores coletivos quanto a respeito do tipo de con
flitos em que as organizações poderão valer? Podemos igualmente evo
car aqui a reflexão de U. K. Preub, que observa que os sistemas
autopoiéticos não poderiam se comunicar entre si a não ser que saibam
que podem comunicar: em outras palavras, quando eles têm em comum a
G. Teubner, "After legal instrumentalism? Strategic models of post
123
compreensão das premissas
125 G. Teubner, de sua
La réguiation comunicação.
du droit par ie droitDessa maneira,
réj1exif, op. cit., pros
p.110. Cf.
regulatory law", in Diiemmas of iaw in the Welfare State, de Gruyter, 1988, p.311.
124 Para outras problemáticas a respeito do modo de procedimento do di
segue
tambémele,do"legal
mesmo structure itselfetmust
autor, Droit allow communication
réj1exivité. L'auto-référence enabout
droitthe
et dans
reito, ver Diiemmas of iaw in the Weifare State, op. cito conditions
i'organisation,of communication.
LGDJ, 1992. This is not merely proceduralisation
in
448
HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO As METAMORFOSES DO POSITIVISMO JURíDICO 449

the sense that it renders patterns of self-regulation available. This teoria pragmática da linguagem faz com que as regras
requires [...] a common public standard [...]. This common public metodológicas de um enfoque jurídico científico devam adaptar-se
standard is [...] to be seen in the conditions which allow the acceptance à pluralidade, até mesmo à heterogeneidade das práticas
of this rule of recognition through the members of public politic".126 discursivas, ou seja, à diversidade dos usos que se faz dos termos e
conceitos jurídicos no interior de uma prática jurídica.127 A primeira
Em vista disso, a teoria da autopoiese pode continuar a identificar
tendência é representada pelo ramo normativista da escola analítica
o justo ao legal e escapar assim da problemática ética do ato
italiana, que definiu como trabalho disciplinar o estudo formal do sistema
constituin do direito entendido como um conjunto abstrato de significados
te do corpo político? normativos; a segunda tendência érepresentada pelo ramo realista, que
Z A EVOLUÇÃO DA TEORIA ITALIANA DO privilegia o estudo pragmático do discurso jurídico, ou seja, os efeitos do
DI REITO E A CRíTICA DO POSITIVISMO uso da linguagem jurídica, os aspectos contextuais das enunciações
JURíDICO jurídicas em um quadro e em uma perspectiva de pesquisa sociológica. 128
O que é particularmente característico da teoria italiana do direito é
Um dos principais interesses da teoria italiana do direito é sem dú que ela muito cedo se situou sobre um plano epistemológico. A questão
vida a maneira pela qual ela conjuga as duas tradições culturais que de saber o que é o direito pressupunha então fundamentalmente apreender
as condições sob as quais se pode tomar conhecimento do direito. É
mar
disso, aliás, que vem o grande interesse que levou a teoria ita
caram a teoria do direito: uma continental, que tem sua fonte
na Teoria
pura do direito de Hans Kelsen e no modelo epistemológico do
empirismo 127 Cf. a este propósito M. Jori, "Hart e l' analisi dellinguaggio", in Saggi di
lógico; outra anglo-saxônica, que tem origem na filosofia analítica Metagiurisprudenza, Milão, 1985, p.109-203.
da lin 128 É verdade que a noção de pragmática recebe várias conotações no inte-

guagem e mais precisamente na versão pragmática da análise da lingua rior da teoria analítica do direito italiano: ora se refere a um estudo disciplinar
factual de tipo sociológico, talvez até mesmo "behaviorista", ora se refere às re-
gem desenvolvida, em seguimento ao "segundo" Wittgenstein, por J. L.
gras que regem todo ato de comunicação sem forçosamente proceder a um estu-
Austin, G. Ryle, R. M. Hare, J. D. Urmson e, para o direito, H. L. do sociológico, mas muito mais em um sentido lógico-lingüístico. A polissemia
A. Hart. de "pragmática" é bem descrita por Françoise Armengaud, La pragmatique,
O resultado deste encontro cultural acaba por criar uma situação inte PUF, 1985. Cf. também V. Villa, Conoscenza giuridica e concetto di diritto
positivo. Lezioni di filosofia del diritto, ed. G. Giappichelli, 1993, p.302-6. Este
lectual um pouco paradoxal. Por um lado, a objetividade do conheci
distingue entre pragmática 1 e pragmática 2. Ambas constituem disciplinas
mento científico preconizada pelo modelo do círculo de Viena faz com
lingüístico-discursivas, mas a primeira leva em consideração os efeitos
que a126
"linguagem jurídica':"Rationality
U. K. Preub, isto é, a do legislador,
potentialsdoofjuizlaw.
ou dos teóricos
Allocative, ilocutórios de um ato de linguagem, enquanto a segunda, os efeitos perlocutórios
distributive and ser
do direito, deva communicative':
estudada comoin Critical Legal Thought.
um sistema fechadoAn queAmerican-German
obedece a da enunciação. A pragmática 2 chega a uma concepção "behaviorista". Segundo
Debate, Baden
um certo número de regras metodológicas. Por outro lado, o modelo da Villa, a concepção de Tarello representa, por exemplo, a pragmática 2.
Baden, Nomos, 1989, p.552-3. Os itálicos são nossos.
450 451
HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO As METAMORFOSES DO POSITIVISMO JURíDICO

liana do direito ao estatuto e à natureza exata de giurisprudenza, quer retomando dessa maneira as teses do empirismo lógico, principalmente a
dizer, da ciência do direito. tese do divisionismo que consiste em distinguir entre linguagem de
Desde a década de 1930, no momento em que a Teoria pura do descrição (o ser) e linguagem de prescrição (o dever-ser). Mas como a
direito foi traduzida para o italiano por Renato Treves e a obra do jurista ciência do direito não pode ser uma ciência empírica, porque, como
alemão começa a ser difundida, o positivismo lógico e a análise lógico- observava Bobbio, ela não se aplica sobre os fatos, mas sobre os enuncia-
sistemática da linguagem, junto com o normativismo kelseniano, vão dos do legislador, seu valor será apreciado segundo o rigor de seu método
ganhar os teóricos italianos do direito. Bobbio e Scarpelli são as duas e de sua linguagem, e não segundo sua correspondência com os fatos.
grandes figuras deste primeiro período do positivismo jurídico de Será apenas um pouco mais tarde, a partir de meados da década de
tendência analítica que conheceu a teoria italiana do direito. Se, como 1960, época do segundo período do positivismo jurídico italiano, que
observa Mario Jori, em Kelsen a norma jurídica deixa de ser concebida unica- Bobbio e Scarpelli vão mostrar explicitamente os limites do modelo
mente como o produto de um ato de vontade, o ato do soberano, como concebia epistemológico herdado dos grandes manifestos do Círculo de Viena. Eles
a teoria impera ti vista do direito (Austin, Bentham), fazendo parte chegam assim a revisar os pressupostos epistemológicos que defendiam
doravante de uma ordem jurídica objetivamente válida, a filosofia analítica da anteriormente. É em 1965, no famoso Cos' e il positivismo giuridico,
linguagem vai inaugurar um outro enfoque da norma jurídica, concebida antes de que Scarpelli revisa a tese de um enfoque não~avaliativo do direito.
tudo como sentido e justificação, ou até como discurso que manifesta as Enquanto se estiver no interior de um sistema jurídico, observa ele,
aspirações de uma certa realidade social. A norma se torna uma entidade referindo-se nessa mesma obra ao "ponto de vista interno" de H. L. A.
semântica prescritiva, que pode ser o objeto da ciência do direito. Mas, sob a Hart, toda proposição relativa à validade das regras jurídicas consti
influência da pirâmide kelseniana, passa-se de uma microteoria da norma tui ao mesmo tempo um julgamento de valor baseado em uma escolha
concebida como objeto singular e autônomo para uma macroteoria que consiste política (una scelta politica) que é precisamente a do Estado de
em considerar um complexo de normas constitutivo da ordem jurídica 129 e direito. E nenhuma proposição relativa à validade das normas jurídicas,
as relações entre elas. O direito é assim essencialmente composto dos sustentará ele, poderia não ser fundada sobre os dois princípios
enunciados do legislador (discursos) que tratam de esclarecer - a fundamentais do Estado de direito: o princípio de legalidade e o princípio
purificação da linguagem legislativa estando ao lado de uma interpretação de
lógico-gramatical da norma jurídica - a fim de determinar as condições constitucionalidade. Certamente, de um ponto de vista estritamente
factuais de aplicação, de preencher as lacunas e de sistematizar os enunciados lógico, não se poderia derivar o dever-ser (a validade das regras) do ser
para formar um todo consistente (eliminação das antinomias). As obras de (eficácia do sistema). Um hiato lógico existe entre os dois tipos de pro-
Bobbio e de Scarpelli durante esse primeiro período do positivismo jurídico posições, entre as que dizem respeito à validade de um sistema jurídico e
consistem essencialmente em construir para o direito um modelo de ciência que as que, às vezes também expressas de um ponto de vista puramente
seria a cópia exata do modelo das ciências naturais, externo, se referem a sua eficácia. Todavia, o hiato lógico que existe entre
os dois tipos de proposições pode ser completado pelo viés de um outro
tipo de proposição, que nos permite passar da eficácia do sistema à sua
validade: seja fazendo da eficácia do sistema jurídico uma razão de
129 N. Bobbio, Teoria de l'ordinamento giuridico, Turim, 1960. justificação de aceitação do princípio fundamental, em outras pala-
vras, da escolha política última em que se baseia todo sistema jurídico;
452 453
HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO As METAMORFOSES DO POSITIVISMO JURíDICO

seja encontrando outras razões éticas para justificar esta aceitação. Isto, da ciência jurídica. Uma proposição, afirma ele, é descritiva ou
afirma ele, é indispensável, porque os julgamentos de validade não po- prescritiva em função da utilização (uso) que se fazl32 e do contexto de
dem de forma alguma ter lugar em um sistema de direito ineficaz. sua enunciação. Portanto, o critério de distinção não será mais semântico,
130 mas pragmático. E Bobbio defende ao mesmo tempo a idéia de uma
Durante este mesmo período, e mais precisamente em 1967, em uma metateoria (metagiurisprudenza) do direito que leva em consideração a
comunicação apresentada no colóquio internacional de Gardone e doutrina do direito do ponto de vista da função que ela é chamada a
intitulado Essere e dover essere nella scienza giuridica, Bobbio também exercer no seio de um sistema jurídico: os efeitos da doutrina sobre os
questiona as teses que havia defendido outrora.131 Diferentemente de destinatários do sistema, sua contribuição ao desenvolvimento e à trans
Scarpelli, Bobbio não se apóia sobre a estrutura do objeto (o sistema de formação do direito em vigor; é isto que será doravante o objeto da
direito) para formular a distinção entre julgamentos de fato (discurso de metagiurisprudenza descrittiva.133 Todavia, poderíamos então indagar,
descrição) e julgamentos de valor (discurso de avaliação), como tinha como defender a idéia de uma metateoria descritiva do direito sem cair
feito anteriormente, mas sobre a atividade cognitiva do próprio sujeito que em uma regressio ad infinitum?
toma conhecimento de seu objeto: o direito. Em todos os casos, observa É precisamente na seqüência desse colóquio em Gardone que o
ele, não se poderia defender o caráter puramente descritivo do debate na Itália será animado em torno da questão de saber de que forma
conhecimento jurídico porque o jurista, não importa se juiz, advogado ou distinguir, no seio de uma filosofia analítica, entre discurso descritivo e
teórico do direito, opera exatamente da mesma maneira que um discurso prescritivo.134 E é espantoso observar, como observa
historiador. Se este último escolhe entre os documentos e os fatos aqueles corretamente A. Pintore135, que a orientação empírica, pragmática
que lhe parecem pertinentes (rileventi), acontece o mesmo para o jurista (Tarello) e até sociológica (R. Treves r36 que assume cada vez mais a teoria
que terá de escolher dentre as normas existentes aquelas que lhe parecem italiana de direito, resultará, no final das contas, em mais
pertinentes para a qualificação jurídica de um fato. Um julgamento
jurídico constitui ao mesmo tempo um julgamento de avaliação. Não se
poderia, por conseguinte, defender a objetividade do conhecimento
jurídico e ainda menos a idéia de que este possa se considerar 132 Id., p.162. 133

Id., p.168.
conhecimento científico. Dessa maneira, Bobbio critica as posições
134As comunicações feitas neste colóquio foram publicadas na
kelsenianas quanto ao caráter descritivo da ciência do direito. Uma vez
Rivista
que o sollen (dever-ser), explica ele ao encontro de Kelsen, tem em internationale di filosofia dei diritto, 44, 1967. Ver, entre outras, as contribuições de U.
uma proposição da doutrina uma conotação descritiva, não se poderia Scarpelli, Le ''proposizioni giuridiche" come precetti reiterati, de L. Ferrajoli, Linguaggio
deduzir o caráter inteiramente descritivo e, por conseguinte, objetivo assertivo e linguaggio precettivo, de G. Tarello, Discorso descrittivo e discorso
precettivo, em que o autor retém da teoria dos atos de linguagem de J. L. Austin os efeitos
perlocutórios; enfim, a contribuição de Gianformaggio, Significato e forza.
135 A. Pintore, "Sur Ia philosophie italienne du droit de tendance analytique",

130 U. Scarpelli, Cos'e il positivismo giuridico, op. cit., p.86-7. Droit et Société, 23/24,1993, p.210.
13l N Bobbio, "Essere e dover essere nella scienza giuridica", in N. Bobbio, 136 O ano de 1974 será considerado o ano de uma nova disciplina, a saber, a
Studi per una teoria generale dei diritto, Turim, 1970. sociologia do direito.
454
HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO As METAMORFOSES DO POSITIVISMO JURíDICO 455

normativistas ainda mais convencidos, como Bobbio e Scarpelli, do que Scarpelli, que parte da mesma constatação que Bobbio, ou seja, de
aqueles que se intitulavam antiformalistas e realistas. que o conhecimento jurídico não pode ser objetivo, inspirando-se prin-
Bobbio e Scarpelli assumem em seguida orientações muito diver-
cipalmente nas posições do fIlósofo da linguagem, R. M. Hare, substituiu,
gentes. Bobbio opta por um enfoque funcionalista do direito, interes
como se disse, o positivismo científico do primeiro período pelo que se
sando-se mais particularmente pelas funções que supõe cumprir uma
chamou de positivismo ético-político. Ele vai se pronunciar pos-
ordem jurídica positiva, como testemunha sua obra intitulada Dalla
teriormente a favor de uma metateoria do direito, cujo objeto consiste em
struttura alla funzione, publicada em 1977.137 Ele vai considerar cada
justificar de um ponto de vista ético universal e a priori as proposições
vez mais as transformações ocorridas nas ordens jurídicas de tipo ociden
normativas de (toda) ordem jurídica possível.139
tal, passando de funções repressivas baseadas nas sanções para as
A teoria italiana de direito da nova geração vai conhecer, principal-
funções
mente nos escritos de R. Guastini e V. Villa, uma expansão e um desen-
promocionais fundadas sobre normas de caráter cada vez mais técnico.
volvimento muito importantes. 140 Esses dois teóricos do direito, nutridos
Trata-se da transformação radical do Estado liberal de direito em Estado
intelectualmente no contexto dos novos desenvolvimentos que conheceu a
social.
teoria analítica (pragmática) da linguagem, mas também no contexto de
Deve-se ressaltar aqui as análises tão eruditas quanto límpidas que
uma teoria de direito rica de ensinamentos dos fIlósofos do direito ita-
Bobbio, professor da universidade de Turim até 1984, fez tanto a respeito
lianos (Bobbio, Scarpelli, Tarello), vão também tentar fixar o estatuto que
dos acontecimentos da atualidade - do movimento estudantil ao movi-
deve adquirir, segundo eles, o conhecimento jurídico.
mento terrorista - quanto a respeito das grandes mutações que engen-
R. Guastini, de tendência mais jusrealista, tenta suprir as deficiên-
draram as democracias socialistas e não-socialistas.138 Seus ensaios, e cias de um enfoque dos fenômenos jurídicos, seja puramente
também a crítica que formulou contra os marxistas e principalmente normativista, seja puramente realista. Ele não opta por nenhuma das duas
contra P. Togliatti, testemunham seu cuidado de tornar compatíveis os tendências, mas tenta, ao contrário, conciliá-Ias. O direito é, segundo ele,
princípios de liberdade (liberalismo) e os princípios de igualdade (socia composto de enunciados do legislador, do juiz, do administrador, que
lismo), de acomodar o centralismo de uma política de liquidação das produzem o (novo) direito toda vez que são chamados a enunciar de uma
desigualdades com a autonomia social e os direitos individuais. Ele está maneira ou de outra. É uma tese antinormativista (realista), já que o
convencido de que o socialismo e o liberalismo podem ter lugar em uma direito como conjunto de "normas" não preexiste à prática jurídica (as
democracia em que o pluralismo e a dissensão são possíveis. autoridades de "criação" e também "de aplicação" do direi

137 N. Bobbio, Dalla struttura alla funzione, Milão, Communità, 1977, p. 63


123.
139 U. Scarpelli, La teoria generale deZ diritto: prospettive per un trattato, in
Retemos aqui as seguintes obras: Quale socialismo?, (1976); L'avenir de
138
La teoria generale deZ diritto. Problemi e tendenze attuali, Milão, 1983, p.281-340.
Ia démocratie, trad. em grego, Ed. Paratiritis, Atenas, 1993; Destra e sinistra. Sobre esses dois teóricos do direito, ver A. Maryioli-Billier, Le statut
140
Ragioni épistémologique de Ia connaissance juridique dans Ia théorie contemporaine du droit: R. Guastini
e significa ti di una distinzione politica (1994), trad. em grego, 2.ed. 1996, Ed. et V. Villa, R. I. E. J., 37,1996, p.45-69.
Polis; Egualianza e Libertà (1995), trad. em grego, 1998, Ed. Polis, Atenas, 1998.
457
456 HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO As METAMORFOSES DO POSITIVISMO JURíDICO

por um lado, a análise lógica da linguagem legislativa (que inclui a aná


to), que somente ela produz.141 Poder-se-ia aproximar sua tese das de
Michel Troper na França, que também defende uma concepção realista do lise estrutural do sistema de direito); por outro lado, a análise lógica da
direito. Ambos sustentam, com efeito, que só pode se considerar autor de uma linguagem dos juristas (mas também da linguagem dos outros opera
norma seu intérprete: o legislador que interpreta as disposições dores jurídicos, especialmente os juízes)".144 Esta segunda tese é clara
constitucionais, o juiz da lei, e assim por diante.142 Todavia, mente anti-realista.145
segundo Guastini, isso não significa que somente a prática decide "o que Villa tenta, em contrapartida, forjar uma concepção pós-analítica do
é o direito válido': Em outras palavras, ele aceita a possibilidade de direito. Ele deseja superar as dicotomias estabelecidas por seus pre-
desenvolver um (meta)discurso teórico e, por acréscimo, crítico sobre o decessores, como aquelas entre o ser e o dever-ser, o fato e o valor, a
que é o direito válido, embora ele admita que esse discurso teórico não descrição e a prescrição, a linguagem e a metalinguagem, o
seja suscetível de se atribuir valores de verdade e de falsidade.143 A realismo e o
metametalinguagem da teoria do direito, escreve ele, é "uma normativismo, pelo viés de um modelo epistemológico de
reflexão crítica sobre o discurso dos juristas [...] que articula dois setores construtivis
de pesquisa: mo, inspirado principalmente nas obras do segundo Wittgenstein e tam
bém nas contribuições de N. Goodman, D. Davidson e H. Putnan.146
Antes de ser a constelação de significações normativas em um
141 R. Guastini, "Disposizione vs. Norme", in Giurisprudenza Constituzionale,
conjun
XXXIV, 1989. to de enunciados, como são os enunciados do legislador, do juiz ou
142 Todos os enunciados relativos à validade das normas jurídicas são, se- mesmo do teórico do direito, o direito é uma prática social
gundo Guastini, enunciados de interpretação ou, seguindo um outro termo do autor, discursiva
enunciados legiferantes; ver R. Guastini, Production of rules by means of rules, (language-game) que forja uma certa concepção de racionalidade
Rechtstheorie 17, 1986. M. Troper defende uma tese similar em muitos de seus trabalhos;
jurí
cf. M. Troper, "Kelsen, Ia théorie de l'interprétation et Ia structure de l' ordre juridique",
dica, ou mesmo de justiça.147
Revue internationale de Philosophie, 1981, n.136, p.518. Michel Troper teve a 144 R. Guastini, Dalle fonti alle norme, ed. Giapichelli, 1993, p.307; a
oportunidade de expressar ainda mais suas posições na controvérsia que o opôs a Denis de palavra
Béchillon. Ver D. de Béchillon, Réflexions critiques (trecho de sua tese de doutorado,
publicado sob o título Hiérarchie des normes et hiérarchie des fonctions normatives de
em itálico é nossa.
145 Para tanto, o realismo jurídico reduz, no essencial, o direito às predições
l'État, op. cit.) e a resposta de M. Troper, Réplique à Denis de Béchillon; os dois artigos
publicados na Revue de recherche juridique. Droit prospectif, 1994, p.245. do que vão decidir os tribunais. Sobre este realismo jurídico, tanto
143 R. Guastini, A tentative analysis of two juristic sentences, A. Peczenik et alo americano
(eds.), A Theory of legal science, D. Reidel Publishing Company, 1984. O teórico
como escandinavo, ver supra.
italiano distingue mais precisamente entre três níveis de discurso: a linguagem do
146 Cf. V. Villa, Conoscenza giuridica e concetto di diritto positivo. Lezioni di
legislador, a metalinguagem da giurisprudenza (da jurisprudência e da doutrina
filosofia deZ diritto, ed. Giapichelli, Turim, 1993; do mesmo autor, ver Teorie della
do direito, o termo giurisprudenza permite um duplo emprego em italiano) e,
enfim, a meta-metalinguagem da teoria do direito. scienza giuridica e teorie delle scienze naturali. Modeli e analogie, Milão, Giuffre,
1984.
147 Cf. V. Villa, Conoscenza giuridica e concetto di diritto positivo, op. cit., capo
8,9,10.
458
HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO As METAMORFOSES DO POSITIVISMO JURfDICO 459

8. O QUESTIONAMENTO RADICAL DO
Unger explica que, com efeito, o pensamento jurídico liberal, cujas
POSITIVISMO JURíDICO
origens remontam a Hobbesl49, promete a realização de dois objetivos
contraditórios: por um lado, a ordem social, por outro, a liberdade in-
8.1 A crítica desconstrucionista do direito: o dividual, isto é, a autodeterminação dos indivíduos que decidem por si
mesmos sobre as finalidades de suas ações e, de maneira geral, sobre o
movimento dos Critical Legal Studies
gênero de vida que querem levar. Todavia, interroga-se Unger, como é
O realismo jurídico e o movimento dos Estudos Jurídicos Críticos possível estabelecer a ordem numa sociedade em que os indivíduos, ani-
(Critical Legal Studies, CLS) podem reivindicar, para o mundo mados de egoísmo e paixão, desenvolvem entre si uma verdadeira batalha
anglo a fim de satisfazer seus interesses? Se a ordem jurídica intervém para
saxão, a paternidade de uma teoria crítica do direito. Os CLS, impor aos indivíduos um modo de vida e uma certa concepção da vida
herdeiros boa, ou em outras palavras, para lhes impor objetivos precisos a seguir e
dos realistas e do movimento Law and Society, radicalizam o valores a realizar, estaria em contradição consigo mesmo, uma vez que
projeto dos viria restringir a autodeterminação que deseja conceder. O sistema de
direito liberal é, por conseguinte, assentado sobre uma ideologia frágil e
primeiros e censuram os segundos por não se engajarem no debate
instável, porque é importunada por dois objetivos inconciliáveis.
político.
Isso repercute em parte sobre a estrutura institucional do sistema. Os
Em um estudo consagrado ao movimento dos CLS, Olivier de procedimentos de adoção e de aplicação do direito, as regras secundárias,
Schutter distingue no seio deste movimento dois grandes segundo H. L. A. Hart, são percebidos como técnicas axiologicamente
momentos. 148 O primeiro momento, qualificado de estruturalista, vai neutras, sem prejulgar a escolha política a fazer. Elas constituem unica-
de 1975 - data mente um quadro dentro do qual acontece o debate relativo às políticas
de publicação da primeira obra de Roberto Mangabeira Unger, o famoso que serão perseguidas pelo legislador. Isso é errado aos olhos dos CLS,
Knowledge and Politics - a 1984, ano em que o movimento, principal porque todo procedimento consiste em repartir entre as forças envolvidas
mente pela iniciativa de R. Unger, dá uma guinada decisiva: este segun o poder de impacto que elas podem ter sobre a decisão a tomar.
do momento dos CLS será qualificado de pós-estruturalista. O movimento dos CLS, portanto, assumiu a tarefa de tornar mani-
O momento estruturalista consiste em pôr em destaque os elemen festo tanto quanto possível o conjunto de contradições fundamentais às
tos contraditórios presentes em toda ordem jurídica liberal.
Segundo
os CLS, esses elementos resultam da estrutura do sistema e
pertencem
149 Segundo Unger. É evidente que ele pretende ver uma origem da
de maneira objetiva a todo sistema de direito liberal. Anuncia-se
problemática da conciliação em uma ordem jurídico-política dos interesses
desde egoístas individuais concorrentes, já que se trata de pensar as origens do
já umaO.
148 de Schutter,
primeira "Les 'Critical
contradição queLegal Studies'.
veicula Le structuralisme
o discurso jurídicoet liberal:
au-deIà': ele
liberalismo político e jurídico no sentido mais central de uma defesa da liberdade
in Les Cahiers du centre de philosophie du droit, U. C. 1., n.12, 1993.
não pode pretender à coerência e à unidade do que ele anuncia. Ele é individual pelo direito positivo; é bem certo que é preciso se voltar em direção a
em si contraditório, porque o pensamento jurídico liberal não chega a Locke.
realizar o que promete.
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HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO As METAMORFOSES DO POSITIVISMO JURfDICO

quais se reduzem painéis inteiros do direito liberal. O famoso artigo de bulo o mais exaustivamente possível. A segunda opta, em contrapartida,
Duncan Kennedy intitulado Form and Substance in private law pelo standard (princípios jurídicos) que confere uma maior flexibilidade
Adjudication ilustra perfeitamente esta tese. ISO Em direito privado, escrevia ele, à aplicação das disposições legislativas, porque permite adaptá-Ias à
há por exemplo duas concepções contraditórias de justiça que pretendem flexibilidade das situações sociais. Ela corresponde, por conseguinte, à
no fundo ser igualmente válidas. Uma, individualista, põe em destaque a concepção de justiça altruísta, em que o princípio de reciprocidade vai de
iniciativa privada, a autonomia da vontade individual, o princípio da encontro à idéia de um contexto de ação não muito rígido.
liberdade contratual, a segurança jurídica. A outra, altruísta, prefere não a Dessa maneira, para os CLS do primeiro momento estruturalista,
proteção dos interesses privados, mas a inserção comunitária trata-se de mostrar progressivamente o conjunto das contradições fun
de cada indivíduo; nesse sentido, a partilha de bens e mesmo o sacrifício damentais de fundo (a materialidade das normas jurídicas) ou de forma
que uns podem realizar para os outros são valores sobre os quais se apóia (regras de procedimento) que comporta toda ordem jurídica liberal.
um certo numero de instituições. A ordem jurídica comporta assim prin- Conseqüentemente, os CLS preconizam nessa época uma crítica radical e
cípios e contraprincípios impossíveis de englobar sob um só princípio global do discurso jurídico liberal.
unificador. As teorias jurídicas que, por exemplo, propõem a liberdade Olivier de Schutter compara, no estudo citado anteriormente, a
contratual e as que preconizam a proteção da confiança no direito dos visão da primeira geração dos CLS com o Curso de lingüística geral de
contratos relevam respectivamente essas duas concepções contraditórias Saussure, já que em ambos os casos cada elemento do sistema,
de justiça que mencionamos acima. Contudo, contrapõe Klaus Günther, lingüístico ou jurídico, só faz sentido, isto é, só constitui um significante
"a contradição censurada por Duncan Kennedy não é tal como se uma (segundo a terminologia saussuriana) na medida em que se diferencia de
destas duas teorias tivesse uma pretensão totalizante para todas as situa- um ou
ções. Mas quase não houve ordem jurídica moderna de tipo ocidental que tro elemento do mesmo sistema. No caso do sistema de direito, consistirá
tenha afirmado essa pretensão. Em geral, é mais fácil encontrar um ou precisamente nos princípios e contraprincípios jurídicos que, tomados
outro princípio com pesos diferentes': ISI isoladamente, não têm valor positivo. Em outras palavras, eles
Mas em todo caso, a aplicação das duas concepções de justiça evo- não se deduzem de algum princípio "primeiro", mas valem no quadro de
ca, aos olhos dos CiS, duas técnicas legislativas distintas. Uma opta pela um sistema de diferenças; em suma, eles não tiram seu valor senão pelo
"regra': que explica e detalha o quadro da ação individual e corresponde, efeito de suas diferenças.152 E é sobre esse ponto que a primeira geração
por conseguinte, à concepção de justiça individualista em que cada um, dos CLS encontra a mais importante das dificuldades teóricas que vão
para a realização de seus objetivos, não conta senão consigo mesmo e em contra o objetivo a que ela se propôs: como querer elaborar uma crítica
que, para este efeito, o quadro de ação deve ser definido no preâm radical do discurso jurídico liberal quando ela se inscreve desde já em um
"jogo de linguagem" do qual ela não pode se abstrair? Essa crítica,
afirmava Stanley Fish, é impossível, precisamente porque
ela vai utilizar os conceitos da racionalidade que ela quer precisamente
150 D. Kennedy, "Form and Substance in Private Law Adjudication", Harvard
Law Review, v.89, 1685, 1976, p.I713.
151 K. Günther, Justification et application universalistes de Ia norme en droit

et en morale, op. cit., p.294-5. 152 O. De Schutter, op. cit., p.18


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462 HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO As METAMORFOSES DO POSITIVISMO JURíDICO

criticar.153 É em apoio a esse tipo de crítica que o movimento dos CLS vem na perspectiva de uma "democracia radical", que aspira a aplicar a auto crítica
abandonará seu objetivo de origem para se pronunciar a favor de um permanente da sociedade; deste ponto de vista, os quatro tipos de direitos subjetivos
programa de "reforma revolucionária", que se situa no oposto de uma que R. Unger estabelece consistem em proteger não as estruturas
crítica radical: no oxímoro da expressão "reforma revolucionária': fica institucionais existentes (inclusive a propriedade), mas sim os indivíduos
claro que é o primeiro termo que importa doravante, é o novo objetivo a contra toda forma de sujeição: política, econômica ou social. A rigidez
que se dedica R. Unger em Politics.154 Tratar-se-á doravante - esse é institucional é substituída por Unger pela
o segundo momento, chamado pós-estruturalista - de agir na racionali- ~
plasticidade e pela mobilidade sociais.156 Trata -se, em primeiro lugar,
dade contextualizada, ou seja, na lógica interna de um contexto preciso, dos
constitutivo de uma certa prática institucional. O novo programa visa a "immunity rights", que são os clássicos direitos-liberdades adequados
uma crítica parcial das instituições, uma vez que os elementos para a segurança da existência.157 Esses direitos são em seguida
constitutivos de todo contexto são, segundo Unger, relativamente in- complementados pelos "solidarity rights", que corrigem os excessos às
dependentes uns dos outros. Proceder a reformas institucionais concretas vezes gerados pelo exercício dos direitos do primeiro tipo, e
(ultratheory) sem revisar de maneira global nosso quadro de vida correspondem assim a um ideal comunitário. Os "market rights" cons-
(supertheory), eis o novo ideal político a que se dedica o "segundo" R. tituem o terceiro tipo, que permite a cada indivíduo ter acesso aos re-
Unger. A esse respeito, ele se pronuncia a favor do que ele mesmo qua- cursos econômicos de um país sem que o direito de propriedade
lifica como "superliberalismo", uma vez que consistirá, entre outras coi- constitua um obstáculo. Enfim, os "destabilisation rights" permitem
sas, em dotar os indivíduos de direitos subjetivos que se acrescentam aos "desmantelar" as instituições e as práticas sociais que se tornaram au-
direitos clássicos (os direitos-liberdades).155 Esses direitos se inscre tônomas e que reproduzem as hierarquias sociais. Esses últimos pro-
longam os direitos- imunidades, porque protegem a liberdade do sujeito
"contra a petrificação social".158 Certamente, o programa de "reforma
revolucionária" situa a organização do Estado de direito na multiplicação
153 S. Fish, Doing what comes naturally: change, rhetoric and the practice of theory dos poderes de controle, que vão além do princípio da separação dos
in literary and legal studies, Clarendon Press, 1989. poderes da modernidade, de forma que a fronteira entre sociedade
154 Três volumes vêm precisar o conteúdo de Politics, A work in Constructive civil e Estado é apagada o máximo possível. Os quatro tipos de direito
Social theory publicados todos pelo mesmo editor: Social theory: its situation,
consistem, assim, em reforçar o poder político de todos, porque querem
its task; Plasticity into power: comparative-historical studies on the institutional
garantir a participação permanente de todos no processo democrático.159
conditions of economic and military success; Palse necessity. Anti-necessitarian
social theory in the service of radical democracy, Cambridge University Press,
Cambridge, 1987. Essas obras são precedidas de Passion. An essay on
156 J. -M. Ferry, "Les limites du principe de plasticité au sens de Roberto
personnality (1984). Esses temas são igualmente tratados em The Critical Legal
Studies Movement, Harv. University Press, 1986 (sob esse mesmo título, ver seu Unger", Carnets du Centre de Ia Philosophie du droit, U. C. 1., n.14, 1993.
artigo publicado na Harvard Law Review, v.96, 564, 1983). As referências 157 J. De Munck, "Figures d'indétermination. À propos de Roberto
citadas foram tomadas em O. De Schutter, op. cit., p.2I. Mangabeira Unger", Carnets du Centre de Ia Philosophie du droit, n.9, p.23.
158 Ibidem.
155 Pode-se ter uma primeira leitura destes quatro tipos de direitos subjeti vos

em seu artigo, The Critical Legal Studies Movement, op. cit., p.597. 159 Sobre esse assunto, ver a crítica de J. De Munck no artigo supracitado.
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HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO AS METAMORFOSES DO POSITIVISMO JURfDICO 465

o movimento dos Critical Legal Studies em sua segunda versão fez ção entre o real e a linguagem, entre a prática e a teoria, como se esta
nascer dois outros movimentos que contestam o monopólio que até então última consistisse em interpretar uma realidade extralingüística. Ora, o
o movimento dos CLS possuía. Tratava-se, de um lado, do movimento da real, afirma Fish, é permanentemente construí do porque é interpretado
Peminist lurisprudence, e de outro, do movimento da Critical Race sem parar pelo viés das convicções e das opiniões veiculadas pela
Theory, que pretende melhorar o estatuto das minorias étnicas, linguagem que utilizamos e para as quais nenhuma justificação poderia
denunciando o discurso ocidental-centrista do qual os CLS eram suspeitos
provir do exterior do jogo de linguagem em que nos encontramos. Assim,
de ainda participar. 160
afirma ele, não se poderia de maneira alguma aceitar as distinções que
propõe Ronald Dworkin entre "interpretar a história jurídica passada" e "a
partir daí inventar uma nova': ou mesmo as distinções relativas aos
8.2 O ceticismo desconstrucionista de Stanley Fish
constrangimentos de interpretação que, segundo Dworkin 161, pesam de
A crítica de Stanley Fish tanto aos "reconstrucionistas", entre os maneira desigual sobre aqueles que têm de interpretar o direito. Para
quais situamos a abordagem de Ronald Dworkin, quanto aos Dworkin, esses constrangimentos ocorrem de maneira crescente partindo
"desconstrucionistas", como o movimento dos CLS, é essencialmente de do primeiro "romancista" aos "romancistas" posteriores, como se eles se
ordem epistemológica. Ela incide sobre a possibilidade de se achar boas aumentassem do titular do poder constituinte que propõe uma
razões e boas justificações para nossas crenças ou nossas afirmações e, de Constituição escrita àqueles que a aplicam em seguida (legislador, juiz
maneira mais geral, para todo discurso que descreve, tenta esclarecer ou constitucional). Ora, para Fish esta última afirmação é tão errada como
explicar um campo qualquer da ação humana, seja para recusá-lo e lhe a precedente, porque o começo de toda história já é uma história que
opor um outro modo de funcionamento, seja para aceitá10 como taL O se faz e uma interpretação que a continua, da qual não se saberia designar
modelo de reconstrução do direito proposto por Ronald Dworkin, por nem o fundamento nem a origem. 162 É desta maneira que Dworkin acaba se
exemplo, é ilusório segundo Fish, porque é construído sobre juntando, como conclui Fish, às teses que critica: por um lado, às teses do
pressuposições epistemológicas erradas: a possibilidade de basear o realismo jurídico segundo as quais a autoridade que aplica e interpreta
raciocínio judiciário em uma teoria moral política que nos dê os critérios o direito só é condicionada por escolhas de ordem puramente subjetiva
de uma "justa" interpretação do material jurídico implica a separa - a exemplo do primeiro roman

160 Para a teoria Feminista e a bibliografia, ver W. Kymlicka, Les théories de 161 R. Dworkin, "Law as interpretation", in The politics of interpretation,

justice. Une introduction, La Découverte, 1999, p.255-308. Para o movimento de Chicago Press, 1986, p.262.
CRT, ver R. Delgado, "The Ethear Scholar: Does Critical Legal Studies Have 162 S. Fish, "Working in the chain gang: Interpretation in law and litterature", Texas

What Minorities Want?", 22 Harv. CR.-C Lib L. Rev. 301, 312 (1987); K. Law Review, v.60, 1982. Em outros artigos, o autor critica as posições de R. Dworkin:
Crenshaw, "Race, Reform and Retrenchement: Transformation and Legitimation Still wrong afier all these years, Law and Philosophy, v.6, n.3, 1987; "Dennis Martinez
in Andiscrimination Law':Harvard Law Review, v.101, 1331, 1360, 1988; P. and the Uses ofTheory", Yale Law Journal, v.96, 1987; Doingwhat comes naturally,op.
Williams, "Alchemical Notes: Reconstructing IdeaIs from Deconstructed cito E a resposta de R. Dworkin, "Please don't talk about objectivity any more", in The
Rights", 22 Harv. CR.-C Lib. L. Rev. 401,1987. politics of interpretation, Chicago Press, 1983.

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466 As METAMORFOSES DO POSITIVISMO JURíDICO 467
HISTORIA DA FILOSOFIA DO DIREITO
r
cista na metáfora dworkiniana -, e por outro às do positivismo jurídico, da idéia de "destruição" (o termo é de Heidegger) da metafísica e do
segundo as quais as autoridades de aplicação do direito - agora a exemplo racionalismo. A esse respeito, o irracionalismo derridiano se inscreve na
dos escritores posteriores - serão condicionadas por uma história órbita de uma crítica geral da racionalidade: a única postura que per-
previamente escrita. manece "legítima" é a da "desconstrução"; em outras palavras, aquela de
Fish se reconhece163 explicitamente no projeto de desconstrução de um discurso que reivindica sua capacidade de se colocar como uma al-
Jacques Derrida, do qual vamos somente relembrar a tese central.l64 ternativa ao discurso da racionalidade "fundadora" ou "corretiva". Podese
Antes de mais nada, o que é manifesto em Derrida, como em outros escrever de maneira um pouco lapidar que o pensamento de Derrida não
filósofos franceses "pós- modernos" da mesma época, como Deleuze ou era outro senão o de Heidegger somado ao estilo de Derridal6s: pen-
Lyotard, é a vontade de escapar de todo empreendimento racional, da samento da repetição, o pensamento de Derrida talvez seja igualmente um
idéia de um "controle" qualquer da racionalidade sobre si própria e sobre pensamento simplesmente repetitivo que não pára de desenrolar os
o mundo: este controle seria um dos últimos avatares de uma metafísica faustos de um aparelho metafórico (a diferença, o vestígio, o hímen etc.)
em falência após a intervenção heideggeriana. Derrida quis radicalizar o destinado a fazer as múltiplas facetas possíveis da diferença ontológica
próprio Heidegger, fazendo da "diferença ontológica" heideggeriana uma heideggeriana: a idéia de fundo da ontologia de Heidegger é que o Ser se
diferança com um "a", que é o encerramento de toda forma de retira na medida em que se desgarra do ente, que toda "manifestação" é
racionalidade, e desenvolvendo cada vez mais em sua obra a busca pelo um "acobertamento", que o "ser-descoberto do ente presente baseia-se na
"vestígio" que não é nem "fundo, nem fundamento, nem origem", mas o cobertura do consentimento de presença". Em Derrida, essa temática é
movimento da "diferança", principalmente na escrita, para ele lugar de bem desenvolvida no campo da linguagem: o signo seria o "suplemento
destaque da subversão permanente contra todo racionalismo e toda de origem" que mata a presença viva. Filosoficamente, consiste na es-
metafísica que ainda persistisse. É preciso apreender a especificidade do colha profunda de não fundar: o "fundo" do Ser é um "sem-fundo" ou um
movimento intelectual que Derrida abandona: trata-se da escola muito "abismo" em Heidegger (Ab-grund), e a prática intelectual da fundação
"continental" da fenomenologia, que, depois de ter preconizado a grande será negada por Derrida; o "vestígio" ou o "suplemento" de origem torna-
possibilidade de uma "fundação" última do discurso filosófico com se o estigma dessa fundação "originária" sempre impossível.
Husserl, voltou-se contra a própria idéia de fundação com Heidegger, que Jacques Derrida exprimiu sua posição a respeito do direito em pelo
ilustra um irracionalismo pós-nietzschiano profundamente negador da menos um texto: Força da Lei: O fundamento místico da autoridade. 166

herança das Luzes. A "radicalização" do pensamento de Heidegger por Criticando um pouco a "timidez" e as "aproximações"167 dos Critical Le-
Derrida deve ser entendida no prolongamento gal Studies, Derrida lembra o "radicalismo" de seu próprio projeto de

Luc Ferry e Alain Renaut, La pensée 68, Essai sur I'anti-humanisme


165

163 S. Fish, "With the compliments of the Author: reflections on Austin and
contemporain, Gallimard, 1985, p.167.
166 Jacques Derrida, "Force of Law: The Mystical Foundation of Authority",
Derrida", in Doing What Comes Naturally, op. cit., p.36-67.
164 Também La grammatologie, 1967, e Marges de philosophie, 1972, publicados
artigo editado em inglês e em francês na Cardozo Law Review, v.11, "Deconstruction and the
pelo mesmo editor, nós fazemos referência principalmente a "La structure, le signe et le possibility of ]ustice", Julho/Agosto 1990, n.5-6, p.919-1 038.

jeu", in L'écriture et Ia différence, Le Seuil, 1967. 167 Ibidem, p.932.

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HISTORIA DA FILOSOFIA DO DIREITO As METAMORFOSES DO POSITIVISMO JURíDICO 469

desconstrução. É notável observar que esse projeto chega muito rapida- mas é sim um alvo "desconstrutivo" do discurso e da instituição do
mente, ao menos neste texto, a assimilar a "origem" do direito a um misto direito. Deixaremos então o leitor meditar sobre o resumo que Jacques
de linguagem e de força. Comentando longamente o pensamento célebre Derrida dá de seu empreendimento desconstrutivo do direito e da justiça:
de Pascal ("É justo que o que é justo seja seguido, é necessário que o que "1. A desconstrução do direito, da legalidade, da legitimidade ou da
é mais forte seja seguido"), Derrida chega a designar o momento da "ori- legitimação (por exemplo) torna a desconstrução possível. 2. A
gem" ("faltante" por definição em sua filosofia) como um fundamento indesconstrutibilidade da justiça também torna a desconstrução possível, e
"místico" no sentido wittgensteiniano, ou seja, como um momento "mu- até se confunde com ela. 3. Conseqüência: a desconstrução tem lugar no
rado no silêncio': "Aquilo que não se pode falar, é preciso calar': diria en- intervalo que separa a indesconstrutibilidade da justiça e a
tão o Wittgenstein do Tractatus. Desde então, sem temer a contradição desconstrutibilidade do direito, da autoridade legitimante ou legitimada".
performativa, Derrida contudo chega ao discurso deste silêncio: o "silên- Não se poderia ser mais claro.
cio murado na estrutura violenta do ato fundador"168 é interpretado como Esta reivindicação de "exterioridade" do discurso desconstrutivo, no
"força" (Derrida parece não fazer distinção aqui entre violência e força). sentido em que ele fugiria radicalmente da alternativa dos discursos
Invocando o próprio Stanley Fish, Derrida enuncia sua posição da fundacionistas ou antifundacionistas sobre o direito, reúne certamente
seguinte maneira: ''A origem da autoridade, a fundação ou o fundamento, muito das preocupações de Fish, que em seu próprio universo intelectual
a posição da lei, uma vez que por definição só podem apoiar-se censurava, por exemplo, nos CLS o fato de não poderem sair de um
finalmente sobre elas próprias, são elas próprias uma violência sem círculo vicioso de uma racionalidade liberal criticada por ela mesma.
fundamento. O que não quer dizer que elas sejam injustas em si, no Pode-se notar que, tanto em um caso como em outro, essas posturas têm
sentido de 'ilegais'. Elas não são nem legais nem ilegais em seu momento algo de desconcertante: elas reivindicam a possibilidade de estar fora da
fundador". Esta afirmação, que pretende superar a oposição entre tradição (filosófica, política) que elas criticam, afirmando ao mesmo
"fundacionismo" e "antifundacionismo" a respeito do direito, é em tempo ser o ponto culminante da evolução (há uma quase filosofia da
seguida longamente relacionada a uma análise de Walter Benjamin sobre história da filosofia em Heidegger como em Derrida, que convida a
a idéia de violência como lugar originário do direito. Fazemos certas aceitar a idéia de um naufrágio definitivo da "metafísica" e do
críticas a Derrida por contemplar essa violência de origem de maneira "racionalismo"; há uma radicalização da radicalização crítica intraliberal
"crítica': precisamente na linha do discurso da teoria crítica da primeira em Fish, que em nenhum caso defende outro modelo de sociedade
Escola de Frankfurt, da qual Walter Benjamin foi um ilustre política além do liberalismo, que é apenas "desconstruído"). Em suma, S.
representante. Contudo, observa-se uma proximidade não elucidada neste Fish se pronuncia a favor de um enfoque desconstrutivo derridiano que
texto entre a posição de Derrida e a de Carl Schmitt. Mas, no fundo, é consiste na preservação da estranheza frente a todo texto escrito ou
espantoso? O irracionalismo heideggeriano parece sempre ter como falado, ou seja, na impossibilidade de atingir a autotransparência de uma
vertente "prática" uma forma de decisionismo. Esse decisionismo sem consciência que se debruça sobre si mesma e se reflete: a origem é, como
dúvida não tem de forma alguma em Derrida o valor profundamente o sujeito em Lacan, "barrada" na tradição derridiana.169 Não obstante,
fundador que existe em Carl Schmitt,
169 S. Fish, "Critical self-consciousness ar can we know what we're doing", in
168 Ibidem, p.942. Doing what comes naturally, op. cit., p.436-467.

1
470 HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO AS METAMORFOSES DO POSITIVISMO JURíDICO 471

lembremos aqui, as reflexões do filósofo americano são estranhas a uma vel), fosse ela formal, dos seres humanos entre si. No final das contas, o direito é feito
tradição filosófica continental e, por acréscimo, heideggeriana: no fundo, para o homem comum, o que o coloca no extremo opos to da filosofia eminentemente
elas se aproximam bem mais do pragmatismo filosófico do qual R. Rorty aristocrática de Nietzsche. "Não é senão onde termina o Estado que começa o
é porta-voz para o mundo anglo-saxão contemporâneo.17o A homem", proclama ele em Assim falava Zaratustra (I, Do novo ídolo):
indecidibilidade, isto é, a impossibilidade de se pronunciar sobre a via- pode-se deduzir também que é onde começa o direito que termina a
bilidade de todo discurso de fundação ou de não-fundação - como a filosofia nietzscheana. Para justificar essa afirmação, basta lembrar dois
impossibilidade de fundar de um ponto de vista epistemológico os jul- princípios fundamentais da filosofia de Nietzsche. Em primeiro lugar, a
gamentos em direito - é assim fortemente defendida por S. Fish. Todavia, afirmação de um vitalismo, sobre o qual Nietzsche não pára de nos alertar
pode-se indagar sobre a viabilidade do tipo de discurso que ele próprio que ele não teria nada em comum com o plano biológico: o Ser é a Vida,
defende. Se não existe o "ponto de vista de nenhuma parte", para falar com seu cortejo de metáforas contra o imobilismo eleático que ele crê ver
como Nagel, o que Fish também sustenta, de onde vem então o ponto de triunfar na ontologia platônica e em seguida em todas as metafísicas. Em
vista "exterior" à racionalidade clássica que é o seu? Pode-se sugerir a segundo lugar, a Vida é a afirmação da Vontade de poder; em outras
possibilidade de uma ancoragem muito clássica do pensamento de Fish palavras, um esforço essencial para adquirir sempre mais poder. Uma
em uma herança simplesmente relativista e cética, a exemplo daquela do paciente glosa moderna tentará igualmente nos demonstrar que todas estas
pensamento de Richard Rorty. fórmulas não deveriam ter mais que um sentido "ético", embora este
adjetivo seja sem dúvida impróprio para designar a contribuição de um
autor que votava a moral ao desprezo, ao mesmo tempo em que adulava
8.3 O neonietzscheísmo de Michel Foucault
os moralistas franceses do século XVII no seio de um projeto destinado a
Nietzsche observa na Gaia Ciência (§ 43) que em Roma a legislação criar uma pequena tribo de ascetas dionisíacos que se tornariam assim o
estipulava que as mulheres eram culpadas em duas circunstâncias: beber novo sal da Terra. Em princípio, Nietzsche estaria então isento de toda
vinho e cometer adultério. Em seu grande empreendimento de liberação suspeita retroativa: aqueles que viram em sua filosofia um apelo à
das pulsões dionisíacas da vida dos jugos cruzados do moralismo e do destruição dos Estados de direito em nome do Poder e uma caução levada
legalismo (e, sem dúvida, sem o objetivo de se ater a qualquer dominação à autoproclamação de uma raça superior deveriam ser leitores medíocres.
masculina), ele infere que o direito é um perverso empreendimento Todavia, pode-se indagar sobre a responsabilidade em sentido amplo de
destinado a transmitir e a manter o vírus da culpabilidade, este uma obra que, recusando por princípio fugir das fórmulas contraditórias e
envenenamento da vida. Não parece fazer parte da geografia intelectual das liberdades estilísticas, abre uma porta escancarada a todas as leituras,
de Nietzsche que o direito possa ter qualquer valor positivo de inclusive as mais funestas. Houve, pois, um Nietzsche desviado e
emancipação depois da equalização (idéia que lhe parecia desprezí recuperado pelo nazismo, embora isso tenha ocorrido mediante textos
manipulados por sua irmã, depois um Nietzsche celebrado por uma parte
da intelligentsia de esquerda francesa nas décadas de 1960 e 1970, que é
sem dúvida infinitamente mais próximo do projeto original da obra
170 R. Rorty, Conséquences du pragmatisme, 1982. Cf. também sobre Fish, C.
Norris, "Law, deconstruction and the resistance to theory", Journal of Law and nietzscheana que o primeiro. O que poderia haver de
Society, v.15, n.2, 1988, p.166-87.

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472 As METAMORFOSES DO POSITIVISMO JURíDICO 473
HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO

profundamente nietzscheano e ao mesmo tempo profundamente comum foucaultianos, não é nem mesmo pensável colocar uma diferença de
entre as leituras "de esquerda" e as leituras "nacional-socialistas", mesmo natureza profunda entre a concepção "legalista" do poder e a concepção
que fossem para os últimos abjetas e trabalhadas por contrasensos "repressiva".
profundos, é precisamente a idéia de que o direito não é em nada um Nessa perspectiva, é coerente (ainda que muito lastimável para nós)
antídoto à força, mas é ao contrário um meio para perenizar uma relação que Foucault não conceda nenhuma atenção particular ao próprio direito e
de forças em benefício dos fortes. Em suma, o direito, o que quer que ele às teorias do direito. Concordaremos, portanto, sem dificuldade com
se pretenda, não seria nunca nada mais que o direito do mais forte: as François Ewald172 que "em nenhuma parte, em sua obra, Michel
mais funestas leituras puderam se felicitar disso, as mais vitalistas e Foucault trata do direito". A originalidade da tese foucaultiana consiste
"subversivas" viram nisso um apelo ao combate eterno da Vida contra a efetivamente em propor, segundo Ewald, uma "história das relações de
Norma. Assim, Michel Foucault pôde perseguir o propósito nietzscheano poder no Ocidente resolutamente franqueada pelo modelo jurídico que a
ilustrando-o com abundância pelos trabalhos sobre a "disciplinação" em domina habitualmente". A força crítica do enfoque foucaultiano do direito
obra na sociedade, cujo estatuto "genealógico" (emprestado do método e não deve, portanto, ser subestimada e, sem dúvida, nem superestimada.
do vocabulário de seu mestre alemão) e "arqueológico" faz com que não Referimo-nos aqui, por exemplo, à idéia de Foucault segundo a qual o
se saiba se é preciso considerá-Ios relevantes para a história ou para a direito deve ser abordado como um conjunto de práticas de julgamento.
filosofia, já que também eles pretendem no fundo superar os dois. Essa tese contém ao mesmo tempo uma componente bem clássica, que
O propósito de Foucault sobre o direito se baseia em um desloca- consiste em encarar o direito na categoria de julgamento e não do
mento essencial: para Foucault, a verdadeira questão não é a do direito, constrangimento, e uma componente mais original, que consiste em
mas a do poder.l?l A esse respeito, o direito não é mais que um avatar das refletir sobre o direito não a partir de suas definições filosóficas ou
relações de poder onipresentes no corpo social. Como observa Alain doutrinárias, mas a partir das práticas jurídicas que são práticas de
Renaut, há aqui uma conservação global dos temas da crítica marxista do julgamento. Utilizando-se de um "nominalismo" metodológico, Foucault
direito: este não passa de uma forma institucional do direito do mais forte, recusa que os conceitos de "direito" ou de "poder" tenham uma essência:
que exprime a pura e simples violência dos fortes sob o disfarce das leis, e estes não são para ele mais que universais abstratos de que se deve
não se poderia jamais ser investido da menor exterioridade com respeito desconstruir a falsa evidência e demonstrar a dependência com respeito às
às correntes conflitantes de poder. Portanto, se o direito não passa de uma práticas plurais que os realizam, e não que os manifestam. Contudo, a
maneira de exercer a violência, o Estado de direito, como conseqüência recusa de todo essencialismo e a vontade declarada de partir da
evidente, é totalmente desvalorizado: sua definição moderna, pluralidade das práticas não se dá sem dificuldades em Foucault, pois não
principalmente pelo princípio de uma autolimitação do poder do Estado é descoberta nenhuma prática particular que refutasse o diagnóstico ao
pelo direito, não é mais que uma lorota. Em termos mesmo tempo inicial e final: o poder é uma relação de forças, o direito é
uma instância de repressão. Em La volonté de savoir

171 Para um exame crítico da noção de poder em Foucault, ver Jean-Cassien 172 François Ewald, Pour un positivisme critique: Michel Foucault et Ia
Billier, Le Pouvoir, Armand Colin, 2000. philosophie du droit, Droits, 3,1986, "La Coutume", p.13?

i
474 HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO As METAMORFOSES DO POSITIVISMO JURíDICO 475

(Gallimard, 1976, p.135), Foucault fala de uma "estratégia da guerra em confrontação de suas análises com essas doutrinas sem dúvida teria sido
ato": as regras jurídicas são apenas técnicas de dominação. Na linha direta frutífera para nos explicar, por exemplo, pelo que substituir então o di-
de Nietzsche, o direito, pensado ou como positivo ou como natural, é reito, uma vez hipoteticamente destruído pelas forças dionisíacas da Vida
denunciado como uma ilusão perversa, porque antivital: desde então, levantadas contra a normatividade repressiva. Em segundo lugar, parece
como Nietzsche, "Foucault só pode encarar o direito como um edifício a que a posição foucaultiana aparece em suas escolhas como "historiador".
destruir".l73 Podemos nos interrogar retrospectivamente sobre o método Certamente, sua obra é extremamente esclarecedora quanto a uma prática
foucaultiano: para chegar a um veredicto tão radical (atémesmo repressiva constitutiva da sociedade liberal francesa do século XIX, e ela
caricatural), esse método parte efetivamente da pluralidade das práticas é um ponto de ancoragem muito rico para pensar os limites e as incertezas
sociais para remontar genealogicamente em direção ao que as da função repressiva no seio de uma sociedade (como punir? Todo modo
subentende? Ou então, ela parte de um a priori nietzscheano (o direito é de punição não é a parte da sombra de um sistema judiciário, mesmo
um engodo repressivo) que teria passeado ao longo de toda a história para democrático?). Mas sem dúvida ela procede por simplificação histórica, a
fins de ilustração? Foucault certamente se defende dessa possível mesma que lhe foi censurada por G. Swain a propósito de sua História da
acusação. Em Surveiller et punir (Gallimard, 1975, p.28), enunciando os Loucura: Foucault escolheu deliberadamente abordar indiretamente o
princípios metodológicos de sua obra, ele afirma "não centrar o estudo direito pela via do penal, e o penal pela via do carceral, do "suplício".
dos mecanismos punitivos sobre seus efeitos 'repressivos', sobre seu lado Uma outra história, paralela, teria sido possível: aquela do direito a partir
de 'sanção' apenas, mas substituí-Ios em toda a série dos efeitos positivos das lutas sindicais que permite a invenção, a aplicação e o respeito de
que eles podem induzir, mesmo que sejam marginais à primeira vista". direitos sociais. Por exemplo, a lei que autoriza a greve na França é uma
Não é certo que essa regra metodológica abrandada seja verdadeiramente lei "repressiva" assim como, segundo Foucault, o próprio direito é por
respeitada por Foucault, cuja qualidade inegável é a de nos obrigar a natureza? A lei que permite às mulheres na França o acesso ao direito de
considerar o direito na realidade de sua aplicação, no curso de uma longa voto é repressiva? Trata-se ainda de um suplício? Essas questões não
história repressiva de que não se vê jamais sob sua pena muitos "efeitos encontram, pelo menos para nós, uma resposta clara em Foucault, que
positivos". Vamos sugerir aqui duas observações finais. Em primeiro parece evitá-Ias por princípio.
lugar, parece que há uma espécie de presunção de originalidade absoluta
no método foucaultiano, que parece atribuir-se a invenção de um enfoque
do direito pelo viés das práticas jurídicas e das práticas sociais de
"disciplinaridade". É lastimável que Foucault pareça não ter se
interessado pelas teorias do direito que tentaram pensar o direito como
instituição, para defendê-Io ou criticá-Io, do institucionalismo francês ao
movimento americano dos Critical Legal Studies. Uma

173 Simone Goyard-Fabre,Les fondements de l'ordre juridique, PUF, 1992, p.


212.
CONCLUSÃO 477

com efeito, ter a função de uma máxima de prudência com respeito a toda
"reconstrução racional" excessiva.
CONclusÃo
Richard Rorty propôs há pouco tempo distinguir quatro maneiras de
fazer a história da filosofial: a reconstrução racional, a reconstrução
histórica, a história do espírito, no sentido hegeliano, e a doxografia.
Cada uma dessas maneiras de fazer a história da filosofia contém suas
próprias armadilhas. Não é impossível que este livro se dedique
alternativamente às quatro tentações, já que ele tenta às vezes
reconstruções históricas, como a respeito do pensamento grego, mas que
são igualmente "racionais" por pretender reconstruir um sentido dessas
doutrinas antigas para o leitor de hoje e para a história da filosofia do
direito em geral, da mesma forma que há evidentemente uma re-
construção interpretativa na designação das fundações greco-romana e
judaico-cristã para o pensamento ocidental sobre o direito. Aqui se
assumirá, portanto, a parte de interpretação que habita este livro, mesmo
O breve percurso que acabamos de realizar na história da filosofia que ela seja conduzida pelo cuidado de apresentar materiais de reflexão,
do direito não pretendia atingir, como já anunciava a introdução, nem uma em vez de uma história pensada e totalmente racionalizada da história da
exaustão absoluta nem uma neutralidade axiológica totalesses dois filosofia do direito. A incomensurabilidade da doutrina não nos parece
extremos foram afastados por serem em si irrealizáveis e evidentemente sustentável até o fim, mas a racionalização retrospectiva absoluta nos
pelos limites deste livro. Resta, portanto, a visão pedagógica, que não é parece igualmente uma quimera. Entre os dois extremos, permanece o
estranha a uma tomada de posição filosófica. Pode-se, com efeito, estímulo à reflexão pela relação interpretativa, o que é modestamente
considerar que abismos separam a apreensão do direito pelos gregos proposto aqui. Esse tipo de postura diante da história da filosofia em geral
antigos e aquela que é proposta por pensadores tão diferentes quanto e do direito em particular destaca-se do argumento empregado por
Kant, Kelsen ou Dworkin. O próprio fato de que todos esses enfoques Donald Davidson quanto aos esquemas conceituais2: "O raciocínio de
sucessivos do direito pertencem a universos intelectuais e históricos Davidson se baseia na análise que este autor propôs de
diferentes é um truísmo. Desses afastamentos, poder-seia inferir a idéia de
uma incomensurabilidade de todas estas doutrinas, no sentido que
entendia para as ciências a epistemologia de Thomas Kuhn ou de Paul
Feyerabend: uma vez que os filósofos do passado, por razões evidentes, 1 Richard Rorty, "Quatre manieres d' écrire l'histoire de Ia philosophie", trad. E.
Pacherie e B. Puccinelli, in G. Vattimo (dir.), Que peut faire Ia philosophie de son
não habitavam o mesmo mundo que nós, suas doutrinas não teriam por
histoire?, Le Seuil, 1989, p.58-94.
isso literalmente nenhuma medida comum com nossos debates
Donald Davidson, "Sur l'idée même de scheme conceptuel", in
2
contemporâneos. Essa visão, ruim para a história da filosofia, tem contudo Enquêtes sur Ia vérité et l'interprétation, trad. P. Engel, ]acqueline Chambon
um valor de antídoto: ela pode, ed., 1993, p. 267-289.
478 HISTÓRIA DA FILOSOFIA DO DIREITO

nossas práticas habituais de interpretação intersubjetiva. Interpretar


outrem, segundo ele, consiste em atribuir-lhe crenças, desejos e intenções.
Ora, isso só pode ser conseguido com um grau suficiente de precisão se o BiblioqRAfiA
intérprete entende corretamente a linguagem do outro. E ele só a
compreende corretamente quando pode traduzi-Ia em si próprio. O que
significa dizer que, para que uma seqüência oral ou escrita seja para nós
da ordem da linguagem e para que seu locutor possa ser para nós um
agente racional, é preciso que ela nos seja, pelo menos em princípio,
compreensível, e que seja traduzível em nossas próprias categorias. A
conclusão é que não poderiam existir em direito esquemas conceituais
radicalmente incomensuráveis com o nosso. Isso é algo como uma con-
dição a priori de nossos procedimentos de interpretação".3 A interpre-
tação que podemos dar deste argumento é que a própria leitura dos
enfoques do direito da alta Antigüidade ao fim do século XX nos ensina
que o que é interpretável permanece portanto compreensível.
Os estudos especializados que abordam os autores ou as doutrinas
são citados nas notas de rodapé. Esta bibliografia conterá apenas as obras
gerais sobre história da filosofia do direito.

BATIFFOL Henry, La Philosophie du droit, PUF, call. Que sais-je ?, 8" édit., 1989.
BRIMO Albert, Les grands courants de Ia philosophie du droit et de I'État, A. Pedone, 3" édit., 1978. DABIN
jean, Théorie générale du droit, Dalloz, 1969.
DEL VECCHIO Giorgio, Philosophie du droit, Dalloz, 1953.
DUBOUCHET Paul, La pensée juridique avant et apres le code civil, aux éditions L'Hermes, 4" édit.,
1998.
FASSO Guido, Histoire de Ia philosophie du droit aux XIx" et xx" siecles, L.G.D.j., 1976. FRIEDMANN W., Théorie
Générale du Droit, L.G.D.j., 1 '" éd. 1960, trad. de I'anglais à partir de Ia
4" édition (1964).
GOYARD-FABRE Simone, Les principes philosophiques du droit poUtique moderne, PUF, 1997.
- Les fondements de I'ordre juridique, PUF, 1992.
GOYARD-FABRE Simone et S~VE René, Les grandes questions de Ia philosophie du droit, PUF, 1986.
GRZEGORCZVK Chr., TROPER M. et MICHAUT F., Le positivisme juridique, L.G.D.j., 1993.
HUSSON Léon, Nouvelles études sur Ia pensée juridique, Dalloz, 1974.
OPPETlT Bruno, Philosophie du droit, Dalloz, 1999.
RENAUT Alain et SOSOE Lucas, Philosophie du droit, PUF, 1991.
TRIGEAUD j.-M., Essais de philosophie du droit, édit. Biere, 1987.
3 Claude Panaccio, "Philosophie analytique et histoire de Ia philosophie': in Précis
- Philosophie juridique européenne, édit. Biere, 1990.
de philosophie analytique, direção de P. Engel, PUF, 2000, p.335.
480 HISTÓRIA DA FilOSOFIA DO DIREITO

TROPER Michel, Paur une théorie juridique de {'ttat, PUF, 1994.


VILLEY Michel, Leçans d'histaire de Ia philasaphie du drait, Dalloz, 1962.
- La formatian de Ia pensée juridique moderne, Montchrestien, 1975. - Réflexions
sur Ia philasaphie et le droit. Les carnets, PUF, 1995.

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