Introdução
O texto em tela propõe discutir como a perspectiva de “revolução” era expressa em
algumas músicas populares durante a ditadura militar no Brasil (1964-1985). Essa questão é de
suma importância, pois busca analisar as denúncias e contradições de um determinado contexto
social. No ensino de História, as canções, por vezes, têm sido abordadas de forma
fragmentária, seja porque analisa a “letra” sem harmonia com a “música”, o “contexto” isolado
do “conjunto da obra” e, não raro, o “autor” como um personagem descolado da “sociedade”.
O ideal seria que os vários estilos e manifestações musicais fossem estudados em seu conjunto
e, obviamente, considerados em seu momento histórico. As singularidades devem ser
respeitadas, ao mesmo tempo em que valores subjetivos ou gostos pessoais não devem se
sobrepor ao rigor crítico da história.
Para uma melhor avaliação da contribuição da música no ensino de História torna-se
necessário analisar, em um primeiro momento, algumas definições existentes sobre o conceito
de “revolução” e como ele pode ser identificado e compreendido nas letras musicais. Em
seguida, serão apresentadas as perspectivas historiográficas e didático-pedagógicas que
procuram incluir a música como um mecanismo alternativo à disciplina de História. A título de
exemplo será abordado o tema da “revolução” na Música Popular Brasileira (MPB), de
maneira especial nas canções de engajamento político em suas diversas variantes. Utilizadas
como forma de ludibriar a repressão proveniente do período ditatorial no Brasil, algumas
canções embutiram em sua composição ideias revolucionárias, especialmente em letras escritas
a partir de 1968, ano da aprovação do Ato Institucional nº 5.
Nesse caso, a apresentação de diversas letras musicais confeccionadas entre os “anos de
chumbo” (1968-1975) até o período em que se cogitou a “abertura” política (1976-1982) é
imprescindível para tentar compreender o conjunto de enigmas os quais se revelam por meio de
uma pesquisa categórica a partir da análise de suas letras, expondo, nas entrelinhas, denúncias
de torturas, mortes e conflitos resultantes da ação repressiva durante o recrudescimento da
Ditadura civil-militar no Brasil. O intuito não é cristalizar as delimitações temporais, sendo
utilizada tal cronologia de forma a se orientar no esforço de aproximação da realidade na qual
essas canções fizeram parte.
1
Doutora em História pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp/Assis-SP).
2
1. A análise didático-pedagógica do conceito “revolução” nas entrelinhas da Música
Popular Brasileira (MPB)
O uso constante do termo “revolução” provocou sua distensão e um consequente
esvaziamento conceitual a ponto de quase torná-la um clichê. Reinhart Koselleck (2006, p. 61)
afirma que o significado de tal expressão está mais próximo a “desordem, golpe ou guerra
civil, assim como a uma transformação de longo prazo, ou seja, eventos e estruturas que
atingem profundamente o nosso quotidiano”.
Historicamente, as definições conceituais para o termo “revolução” são múltiplas e
variadas. Os significados oscilam desde movimentos sangrentos, como golpes políticos e
sociais ou deposições forçadas, até inovações científicas. Embora seja considerado um conceito
geral, é importante reconhecer que a palavra “revolução” assume características próprias em
cada caso, seja de um país a outro ou de uma situação política a outra. Costuma-se denominar
os acontecimentos de 1789 na França de “revolução”, quando a burguesia usurpou o poder da
nobreza; assim como este conceito é utilizado para designar a transferência de processos
intelectuais a equipamentos e máquinas capazes de trabalhar de forma autônoma em um
processo que ficou conhecido como Segunda “Revolução” Industrial.
No Brasil, o movimento de 1964 levou a alcunha de “revolução” por setores
conservadores, os quais justificavam a ação militar de depor João Goulart e assumir o poder
como um ato preventivo à “revolução” socialista financiada por Moscou.
No entanto, a deposição de um presidente democraticamente eleito configurou-se em
quebra de ordem jurídica agravada pela instalação de um regime de exceção, legitimado pelo
cancelamento da Constituição de 1946, a qual foi substituída pelos sucessivos Atos
Institucionais. Tais mudanças foram acompanhadas da inauguração de instrumentos de
repressão e censura como o Serviço Nacional de Informações e o Destacamento de Operações
de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI).
Mais do que um golpe, ou quebra de ordem jurídica, o movimento de 1964 assumiu a
bandeira anticomunista no claro intuito de afastar futuros candidatos ao poder, como
guerrilheiros ou líderes sindicais. O temor dos militares, aparentemente simplista e sem
evidências concretas, era de que o Brasil se tornasse uma nova Cuba (em alusão à Revolução
Cubana de 1959) parece ter motivado a ação militar em 1964.
No que se refere ao ensino de História, desde os anos de 1980, os debates apontam para
a concepção de que o desenvolvimento do conhecimento histórico no ambiente escolar implica
na noção que os alunos possuem do passado, bem como na compreensão de mudanças e
permanências ao longo do tempo. Para que eles consigam interpretar fontes históricas diversas,
como a música, o professor deve valer-se de procedimentos metodológicos que lhes permitam
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tirar suas próprias conclusões e avaliá-las. Como linguagem alternativa no ensino de História, a
música popular poderá enriquecer o conteúdo da disciplina, desde que as representações sociais
de autores e intérpretes sejam contextualizadas e, trabalhadas dessa forma, possam transformar,
em situações formais de aprendizagem, “conceitos espontâneos em conceitos científicos”,
resultando em efeitos sociais. (ABUD, 2005, p. 309)
Tais efeitos sociais de aprendizagem em história se consolidam na “consciência
histórica”, a qual, na visão de John Rüsen é a forma de consciência que está relacionada à vida
prática. A “consciência histórica” pode ser caracterizada como a “soma das operações mentais
com as quais os homens interpretam sua experiência da evolução temporal de seu mundo e de
si mesmos, de forma tal que possam se orientar, intencionalmente, sua vida prática no tempo”.
(RÜSEN, 2001, p. 57)
A produção cultural e midiática se manifesta por meio de diferentes linguagens,
transformando-se em evidências, as quais, tratadas como finalidades pedagógicas, tornam-se
importantes mecanismos para o desenvolvimento de conceitos nas aulas de História. Nessa
perspectiva, é importante notar como a concepção de mudança revolucionária estava presente
em músicas populares, sobretudo as canções compostas por autores engajados, durante o
regime militar. Com o devido encaminhamento didático torna-se possível verificar nas letras de
músicas populares a ideia de “revolução”, embutida em um desejo de transformação e crítica
ao Estado autoritário. Tais fontes são representações que longe de se constituírem em um
discurso neutro identificam como uma determinada realidade social é pensada, edificada e
como diferentes grupos constroem múltiplas configurações intelectuais da mesma realidade
social.
Visto como registro histórico e linguagem alternativa a Música Popular Brasileira
(MPB) transforma-se em instrumento para o desenvolvimento de conceitos históricos, como o
de “revolução”. A análise das letras também se completa com a avaliação da base acústica,
como fonemas e entoações. A fala se torna autônoma em shows, nos festivais, nas exibições
inéditas, onde até gestos e comportamentos dos intérpretes incomodavam a censura. Enquanto
a canção, autores e intérpretes enviavam recados e criavam polêmicas, depoimentos e demais
evidências registraram o que ocorria na vida do sujeito que escreveu e interpretou a obra
cancioneira.
Nos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) da disciplina de História, na
modalidade de Ensino Fundamental o conceito de “revolução” é abordado no quarto ciclo, no
eixo temático “História das representações e das relações de poder”. Em consonância com o
documento, o objetivo é “destacar estudos sobre contatos e confrontos entre povos, grupos
sociais e classes e diferentes formas de lutas sociais e políticas, guerras e revoluções”. A
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proposta é, na realidade, “sensibilizar os alunos para estudos do passado e suas relações com
questões atuais”. (BRASIL, 1998, p. 67-68)
A aprovação de Lei n. 11.769 em agosto de 2008 tornou obrigatória a música na grade
escolar do Ensino Fundamental e Médio. O artigo 26 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional (LDB n. 9.394/96) passou a vigorar acrescido do §6, o qual determina que “a música
deverá ser conteúdo obrigatório, mas não exclusivo do componente curricular”. A legislação
estabelece que a canção seja trabalhada de forma integrada aos conteúdos, decisão que
reconhece a importância da música no cotidiano dos alunos e como ela pode ser aproveitada
como parte do processo de ensino-aprendizagem.
Desde os anos de 1980 o ensino de História no Brasil vem incorporando novas
metodologias, como a música, filmes, teatros dentre outras formas variadas de produção
cultural. Também neste período houve reflexões acerca de uma renovação curricular baseada,
fundamentalmente, em duas matrizes teóricas: a Nova História Francesa e a Historiografia
Social Inglesa. De acordo com Selva Guimarães Fonseca (1993, p. 93), em meio a essas
discussões que envolviam o ensino e a prática histórica, a “política, ‘campo de luta de classes’,
deixa de se localizar na superestrutura, para se situar em lugares diversos permeados por
relações de dominações e resistências”.
No âmbito historiográfico, o colapso de experiências revolucionárias nos anos de 1970
permitiu que o “reformismo e a moderação se apresentassem como alternativas aos projetos de
revolução e movimentos de contestação radical” (CAPELATO, 1996, p. 161). A reação a
formas determinadas de poder passou a ser analisada sobre as múltiplas dimensões do social e
os estudos sobre a resistência, antes restritos a ações concretas e lutas armadas,
experimentaram um alargamento, a ponto de se permitir falar em “resistência cultural”. De
certa forma, algumas canções populares compostas em meio à Ditadura civil-militar no Brasil
(1964-1985) se tornaram símbolos na luta contra a opressão do regime e, em muitos casos,
convidavam o povo a ir às ruas reivindicar por direitos, democracia e um tratamento mais
humano.
A implantação da Ditadura civil-militar no Brasil sinalizou um período conturbado, de
cassação dos direitos civis e inibição de pensamentos oposicionistas em todas as esferas
sociais. No meio cultural a repressão foi marcada de forma direta, seja pela censura (amena
entre 1964 e 1968, integral após essa data) que inibia a livre manifestação das artes e de ideias,
como por meio da coação física, caracterizada em prisões e torturas. Muitos artistas foram
exilados, torturados ou presos provisoriamente, atemorizados pela polícia e organismos
militares incumbidos de refrear suas atividades culturais. As críticas, a partir de 1968, eram
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imediatamente tomadas como “subversiva e comunista”, portanto, consideradas
“revolucionárias” e puníveis sem qualquer avaliação mais cuidadosa. (RIDENTI, 2010, p. 72)
O golpe de Estado que levou os militares ao poder em 1964 não intimidou setores
sociais e artísticos a empunhar armas no combate ao regime militar. Se não eram armas físicas,
perfuráveis como as de fogo, eram menos perceptíveis pelos censores, muito embora seus
efeitos surtissem um resultado mais eficaz do que a utilização de qualquer apetrecho bélico. A
efervescência cultural em vigor entre 1964 e 1968 substituiu a ideia de uma contrarrevolução
armada. Essa ebulição pode ser considerada uma continuidade do movimento de massas de fins
de 1950, marcado pela modernização capitalista e desenvolvimento industrial, mudanças
identificadas por Eric Hobsbawm (1995, p. 253-258) como o início da “Era de Ouro”. Tais
transformações foram acompanhadas pelo surgimento da Bossa Nova, dos compositores da
MPB (Edu Lobo, Chico Buarque etc) o Cinema Novo, o Teatro de Arena, o Teatro Oficina,
além dos Centros Populares de Cultura (CPCs), vinculados à União Nacional dos Estudantes
(UNE) e do Movimento Popular de Cultura em Pernambuco (MPC), que utilizava o método
crítico-pedagógico de Paulo Freire, dentre outras manifestações culturais que se estenderam, de
forma expressiva, até 1964. Mesmo com o golpe civil-militar, as mobilizações de natureza
cultural não foram completamente ceifadas. Marcelo Ridenti (2010, p. 73) afirma que a
princípio os organismos ditatoriais foram incapazes de controlar os espaços culturais
resistentes. Incluso em um contexto de agitação que ultrapassou fronteiras, os brasileiros viram
nas ações e organizações culturais um caminho alternativo à guerrilha.
Na década de 1960 repercutiu nos setores “progressistas” a ideia de que o país se
aproximava de uma inevitável “Revolução Brasileira” 2. Mesmo com o golpe de 1964 e o
recrudescimento provocado pelo AI-5 essa visão de mundo perpetuou, ainda que o
endurecimento do regime em dezembro de 1968 tenha provocado algumas perturbações. Esses
acontecimentos foram utilizados para distorcer o sentido atribuído à “Revolução Brasileira” e
modificar as formas de luta dedicadas a sua concretização. O Partido Comunista Brasileiro
(PCB), baluarte de uma luta nacional-democrática ou burguês-antiimperialista da “Revolução
Brasileira”, era considerado no início dos anos de 1960 o principal representante da “esquerda
revolucionária”. No entanto, perdeu terreno para outras organizações, a exemplo da Ação
2
O sentido de “revolução” utilizado no contexto dos anos de 1960 pode ser melhor compreendido pela definição
dada por Luciano Martins em um artigo publicado somente após o Golpe de 1964, embora tenha sido escrito em
1963. Em sua opinião: “A Revolução Brasileira, como as revoluções de inúmeros outros países hoje empenhados
em esforço de desenvolvimento, corresponde ao processo histórico pelo qual – embora em outras circunstâncias e
de formas substancialmente diversas – já passaram todos os países atualmente constituídos em potências
mundiais. A Revolução Brasileira deve ser compreendida, pois, como a fase histórica que se caracteriza pela
reorientação dos recursos nacionais e a adaptação das estruturas do país às novas formas de produção, de
tecnologia e de progresso de nosso século, tendo em vista a satisfação de determinadas necessidades e aspirações
sociais internas e tendo em vista a melhoria da posição relativa do país no conjunto da economia e das decisões
mundiais”. (MARTINS, 1965, p.15)
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Libertadora Nacional (ANL), a qual defendia um projeto nacional-popular, ou seja, a
implantação de mudanças no capitalismo sob a liderança do proletariado e da luta armada
como meio revolucionário.
O clima “pré-revolucionário” vivido pela esquerda no início dos anos de 1960 acentuou
a conscientização política e se refletiu na produção artística. A arte era vista como um
mecanismo revolucionário, uma estratégia que seguia critérios definidos e possuía uma
finalidade. Para os setores da esquerda a arte possuía o critério básico do “engajamento”, ou
seja, seria um mecanismo cujo ponto inicial era a análise da realidade brasileira e das vivências
dos cidadãos. Se, por outro lado, a arte era inspirada pela subjetividade de seu criador, então a
obra era classificada como “alienada”, isto é, que afastaria o povo da politização de seus
interesses de forma a “desviá-lo” da participação na “revolução”. O objetivo era ressignificar a
produção artística aproximando-a dos anseios políticos. A “Opção Preferencial pelo Povo”
inspirou vários projetos culturais na década de 1960, como as peças de Gianfrancesco
Guarnieri e Augusto Boal (COELHO, 1989, p. 160). No campo da música Sérgio Ricardo,
Geraldo Vandré, Chico Buarque e, mais tarde, João Bosco e Aldir Blanc, para não citar outros
compositores, produziram hinos pela liberdade e símbolos contra a opressão e recrudescimento
do regime militar no Brasil.
Independente de suas variantes, a música de engajamento produzida por vários
compositores na década de 1960, representava uma possibilidade de intervenção política do
artista no contexto de mudanças sociais no país, contribuindo para uma realidade que
consideravam ser a mais justa. Alguns compositores, tais como Edu Lobo e Carlos Lyra
aproximaram-se de intérpretes, intelectuais (geralmente vinculados aos Centros Populares de
Cultura (CPCs), Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB) e alguns departamentos das
Universidades), visando incutir, por meio de suas canções, algumas práticas revolucionárias.
Para isso, utilizaram representações nacionais, com elementos genuinamente pátrios, tais como
o violão, moda-viola, frevo e urucungo 3. (CONTIER, 1998, p. 2)
O ofício musical de alguns artistas no início dos anos de 1960, a exemplo de Edu Lobo
e Carlos Lyra, internalizaram, de forma consciente ou inconsciente, a ideia de uma provável
“revolução social”, a qual, de acordo com o marxismo-leninismo introduziria uma nova “fase”
ou “etapa” de movimentos sociais capazes de transformar a trajetória da história brasileira. O
projeto de nacionalização das artes levado a cabo por esses artistas, influenciou alguns músicos
que se prendiam a essa concepção de “evolução”. Em consonância com Arnaldo Daraya
Contier (1998, p. 3), vários escritos de Capinam, Gianfrancesco Guarnieri, Ruy Guerra,
Oduvaldo Vianna Filho, Cacaso e Chico Buarque de Holanda, que contaram com a
3
Instrumento de origem africana mais conhecido como berimbau.
7
contribuição sonora de Edu Lobo e Carlos Lyra, “prendiam-se a essa ideia de evolução ou de
progresso consoante uma concepção teleológica da História”. Muitas letras, ainda, assumiram
a função de crítica política, como a canção “Beto bom de bola”, composta por Sérgio Ricardo e
que denunciava o mercado futebolístico e seus empresários. Tal canção marcou presença no
Festival da Record de 1967, mas foi desclassificada do certame:
Além de Edu Lobo e Carlos Lyra, também Sérgio Ricardo se distanciou, entre os anos
de 1960 e 1970, das posturas políticas mais tímidas de Chico Buarque e passou a ser
considerado um militante político de “esquerda”, com o objetivo de despertar, por meio de suas
músicas, transformações político-culturais e socioeconômicas no Brasil. Em conjunto com
Chico Buarque, Sérgio Ricardo procurou romper com o “elitismo” bossanovista e direcionar
seu discurso artístico para o “povo”. Ao integrar vários concursos musicais, como os diversos
Festivais de Música Popular Brasileira, organizados pela TV Record (1967) e o Festival da
Canção de Protesto (promovido na Bulgária, onde suas músicas foram interpretadas por
Geraldo Vandré), Sérgio Ricardo marcou presença entre os novos compositores no processo de
“politização do signo e da poética” e contribuiu para a ampliação de um mercado consumidor e
da proposta chamada de “música de protesto”. (CONTIER, 2013, p. 342-343).
Além de Edu Lobo, Carlos Lyra e Sérgio Ricardo, outros compositores e artistas, a
exemplo de César Roldão Vieira, Geraldo Vandré, Sidney Miller, Marcos e Paulo César Valle,
dentre outros, foram influenciados pelas ideias em circulação nos Centros Populares de Cultura
(CPCs), no Teatro Arena de São Paulo e pelas discussões realizadas pela União Nacional dos
Estudantes (UNE). Levados pelo engajamento social e político da música, muitos desses
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artistas escreveram canções para shows organizados por Diretórios Acadêmicos das
Universidades, divulgaram seus trabalhos em Festivais Nacionais realizados por emissoras,
como a Record, Globo e Excelsior e abrilhantaram as trilhas sonoras de filmes, peças de teatro
e shows teatrais, como: a abertura e conclusão do filme “Deus e o diabo na terra do sol”, de
Glauber Rocha; a composição de “Esse mundo é meu”, uma parceria entre Sérgio Ricardo e
Geraldo Vandré para o filme “A hora e a vez de Augusto Matraga”, de Roberto Santos. No
teatro, os destaques musicais foram: “Borandá”, de Edu Lobo; “Opinião”, de Zé Keti;
“Carcará”, de João do Vale, e “Zelão”, de Sérgio Ricardo entre outras, apresentadas no show
“Opinião” e música composta por Edu Lobo para a peça “Arena conta Zumbi”, escrita por
Gianfrancesco Guarnieri, em 1965. (CONTIER, 2013, p. 343)
Marcado como o período dos festivais, o início do regime militar em 1964 até o ano de
1968, lembrado pela implantação do AI-5, foi significativo para a produção cultural brasileira,
sempre atuante na utilização de metáforas para ironizar e criticar a Ditadura civil-militar. Em
consonância com Contier (2013, p. 344), o que caracterizou a chamada “música de protesto”,
confeccionadas por vários poetas e compositores nos anos de 1960 e, em menor grau, na
década de 1970, foi a “possível intervenção do artista na realidade social do país e a busca de
uma sociedade mais justa e mais democrática”, por isso, muitas composições desse gênero
musical estavam embebidas de críticas sociais e alusões a uma “revolução” oposicionista ao
regime militar.
Desde 1962 são visíveis as mudanças de temas romantizados e a idealização da mulher,
típicos das canções bossa-novistas, para temas marcados por críticas e enaltecimento do “povo
brasileiro”. As obras cancioneiras e os representantes iniciais dessas transformações foram:
“Marcha da quarta-feira de cinzas” (Vinicius de Moraes e Carlos Lyra, 1962); “Upa neguinho”
(Gianfrancesco Guarnieri e Edu Lobo, 1965); “Corisco” (Glauber Rocha e Sérgio Ricardo, em
1973). Muitos desses compositores abraçaram novas práticas musicais, interiorizando valores
vinculados à “revolução” e concepções voltadas para a ideia de transformação social e política
no cenário brasileiro. Por isso, é comum verificar nessas músicas, noções de brasilidade e
união, como a conclamação de um manifesto para repensar e alterar possíveis insatisfações no
contexto de mudanças brasileiro. Contier (2013, p. 344) condensa, em poucas linhas, uma
definição desse estilo musical:
Também no ano de 1968 ocorreu o III Festival Internacional da Canção (FIC), no qual
saíram vencedores, pela fase nacional, Tom Jobim e Chico Buarque com a música “Sabiá”. O
resultado não agradou ao público, que em meio a vaias e protestos, manifestou preferência pela
canção “Caminhando” ou “Para não dizer que não falei das flores”, de Geraldo Vandré. De
forma mais explícita, esta conclamava os brasileiros a lutarem juntos contra a opressão, em
uma espécie de engajamento revolucionário. No mesmo ano o sucesso da canção resultou na
gravação em compacto simples de Geraldo Vandré em duas versões: de um lado, a gravação
em estúdio e, em outro, a audição da exibição ao vivo no III FIC. “Caminhando” tornou-se um
hino emblemático do incitamento revolucionário e opositor ao regime militar, a ponto de se
tornar símbolo das lutas de 1968 e um chamado à guerrilha. Era comum ver pessoas entoando a
canção de Vandré “nas passeatas estudantis de 1977, nos enterros das vítimas da ditadura,
como no do jornalista Herzog em 1975 e no do operário Santo Dias em 1979, e até mesmo nas
campanhas das ‘Diretas, já!’ em 1984 e pelo impeachment de Collor em 1992”. (RIDENTI,
2010, p. 79). Na década de 1980 a cantora Simone regravou este sucesso de Vandré e até
políticos conservadores chegaram a cantá-la em propagandas eleitorais veiculados por
programas televisivos. O caráter revolucionário embutido na composição não foi apenas
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momentâneo, se estendendo décadas depois de seu lançamento e em situações variadas.
Mesmo assim, “Caminhando” não escapou do jugo de círculos conservadores que, ao utilizá-la
para sua promoção política não deixaram de reconhecer as lutas libertárias dos anos de 1960:
Também no ano de 1968, Sérgio Ricardo compôs “Aleluia”, que foi premiada no
Festival da Bulgária. A canção era uma homenagem explícita a Ernesto Guevara de La Serna,
mais conhecido como “Che” Guevara, um dos ideólogos e comandantes da Revolução Cubana.
Sérgio Ricardo exalta a imortalidade das ideias do revolucionário, manifestando um claro
desejo da América Latina cantar o que “Che” pregava. Como forma de burlar a censura, esta
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música foi lançada em compacto simples, divulgado por uma pequena gravadora. Mesmo
assim, o disco foi proibido de circular, sendo recolhido das lojas e apreendido:
Quatro anos antes Chico Buarque já fazia referência ao “milagre econômico” na canção
“Bolsa de amores”. Gravada por Mario Reis, a música foi integralmente vetada sob a
justificativa de desrespeitar a mulher brasileira, mas na realidade, a composição ironizava a
especulação financeira criada pelo “milagre”:
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Como crítica à censura Chico Buarque, em parceria com Gilberto Gil, escreveu a letra
de “Cálice”. A princípio, a música havia sido confeccionada para exibição no show Phono 73,
promovido pela gravadora Phonogram na capital paulista, em 1973. Mesmo com a proibição da
letra, os dois compositores cantaram a melodia da canção, utilizando somente a palavra
“cálice”, uma analogia ao “cala-se” (do verbo “calar”) imposto pela censura. Temendo
represálias, a Phonogram cortou o áudio dos microfones. Somente em 1978 a música foi
gravada por Milton Nascimento e a banda MPB4:
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A parceria entre João Bosco e Aldir Blanc iniciou-se na década de 1970 e intensificou-se a partir de 1974, com a
gravação do disco “Elis”. No repertório do trabalho foram incluídas três músicas de autoria da dupla: “O mestre
sala dos mares”, “Dois pra lá e dois pra cá” e “Caça à raposa”, esta última daria título ao disco de João Bosco,
lançado em 1975 e composto por músicas de autoria de Aldir Blanc. Disponível em:
<http://www.joaobosco.com.br/bio.asp?bio=1>. Acesso em: 12 fev. 2014.
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Caracterizado por seu chapéu-coco, calças largas, casaco apertado, sapatos enormes e uma bengala o
personagem Carlitos merece um estudo à parte, algo que não é o nosso objetivo nesse texto. Vale ressaltar, no
entanto, que a interpretação de Chaplin como Carlitos foi apresentada ao público pela primeira vez em 1914, com
a exibição de “Corrida de automóveis para meninos”, de apenas 11 minutos. Entre os filmes marcados pela
presença do personagem, podemos citar: O Garoto (1921), O Circo (1928), Luzes da Cidade (1931) e Tempos
Modernos (1936), última atuação de Carlitos.
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Chaplin, ícone da classe artística e que havia falecido em 1977, dois anos antes da composição
da música. Em entrevista ao Jornal O Globo, Aldir Blanc afirmou que a ideia era “misturar a
morte de Chaplin com a anistia”, ambos momentos marcados pela tristeza de artistas e
intelectuais. (BLANC; BOSCO, 2003)
O fio tênue da democracia que tentava se sobressair em meio ao contexto de incertezas
que marcaram o regime ditatorial de fins dos anos de 1970, remete à figura da “equilibrista”. O
povo brasileiro, semelhante a essa personagem, se mantinha em pé mesmo estando em uma
corda bamba. Mantinham o equilíbrio apesar das circunstâncias adversas daquele momento.
Não obstante os reveses sofridos pelo regime militar e a pressão para a abertura democrática,
os anos que encerraram a década de 1970 sentenciaram o desgaste da popularidade do governo
que insistia em se manter duro e firme. As dúvidas quanto ao retorno da democracia persistiam,
abafando vozes que ousavam criticar o regime. “O bêbado e a equilibrista” carrega a bagagem
da denúncia em relação às truculências da ditadura e esperança de implantação democrática,
características típicas do período da “canção da abertura”, por isso a ideia de “revolução” não é
tão marcante como nas canções do início dos “anos de chumbo”. (NAPOLITANO, 2010, p.
391)
A crítica ao “milagre econômico” e às truculências praticadas no interior do DOI-CODI
também estava implícita na letra de “O bêbado e a equilibrista”. Nas primeiras passagens da
canção (“Caía a tarde feito um viaduto/E um bêbado trajando luto/Me lembrou Carlitos”) há
uma referência ao fim do progresso impulsionado pelas grandiosas construções financiadas
com o “milagre econômico”. O viaduto mencionado na música é uma alusão ao desabamento
sob pedestres, carros e ônibus de parte do Viaduto Paulo Frontin, ocorrido no Rio de Janeiro no
primeiro mês de 1971. Assim como outros acidentes em obras sustentadas com recursos
financeiros do “milagre econômico”, essa tragédia não foi amplamente divulgada pela mídia da
época. As vítimas e seus familiares raras vezes eram amparados legalmente pelo governo ou
responsáveis por tais edificações. Essa crítica une-se à expressão “caía a tarde”, certamente
remetendo ao horário em que as sessões de tortura iniciavam-se nas dependências do DOI-
CODI.
Em linguagem figurada, Bosco e Blanc procuram denunciar a corrupção de políticos em
nome de interesses particulares. A “lua” assume o papel de “dona do bordel”. Sem luz própria,
ela depende das “estrelas” para brilhar. Tal fulgurar falso representa os políticos que se
venderam ao regime militar em troca de benesses pessoais com recursos furtados do país.
Sempre associado à noite e ao mundo subterrâneo das sombras, o regime militar se apresenta
como um sistema que suga vidas, pratica censuras, exílios, desaparecimentos e dilacera
famílias utilizando a pedagogia do silêncio. Por isso, os torturadores eram comparados a
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“nuvens” intocáveis e as instituições “eliminadoras”, tais como o DOI-CODI, funcionavam
como “mata-borrão”, instrumento utilizado para absorver o excesso das canetas tinteiro e,
portanto, responsável por apagar os erros e marcas da sociedade. As “manchas” poderiam ser
compreendidas como os rebeldes, torturados no interior do “mata-borrão” (DOI-CODI) pelas
“nuvens” (torturadores).
A referência aos presos políticos exilados é lembrada pelo sonho de retorno “do irmão
do Henfil”, uma menção ao sociólogo Herbert de Souza, o Betinho, exilado em 1971 para o
Chile e que retornou apenas em 1979, amparado pela Lei da Anistia, a qual aprovou o retorno
ao Brasil de presos políticos exilados em outros países, bem como foi utilizada também para
eliminar a culpa de membros de governo acusados de tortura. Betinho se tornou bastante
popular nos anos de 1990 por organizar a campanha “Ação da Cidadania contra a Miséria e
Pela Vida”, cujo principal objetivo era combater a fome e a miséria. Henrique de Souza Filho,
chamado de Henfil, se destacou como um dos cartunistas que se empenharam na oposição ao
regime militar. A partir de 1969 integrou “O Pasquim” e ganhou projeção criando novos
personagens (como os Fradinhos, Bode Orelana, Graúna e Zeferino) compelidos em satirizar o
governo opressivo.
Blanc e Bosco abusaram da ironia ao citar uma frase do hino nacional em meio aos
prantos de tristeza da nação brasileira (“Chora a nossa pátria mãe gentil”). Em uma contradição
aparente do período, a “pátria mãe gentil” que deveria proteger era quem torturava.
“Marias e Clarisses”, com destaque para o plural, simbolizam as mães, esposas, irmãs,
noivas e demais mulheres as quais, independentes do nível de parentesco, sofreram por alguém
torturado, exilado, desaparecido ou morto pelo regime militar. A escolha desses dois nomes
não foi feita ao acaso: “Maria” era como se chamava a esposa do operário Manuel Fiel Filho,
enquanto “Clarisse” se referia à viúva do jornalista Wladimir Herzog, ambos falecidos nas
dependências do DOI-CODI, em razão das torturas que sofreram em 1975.
Com a Lei da Anistia, de agosto de 1979, os acusados de “crimes políticos e conexos”
foram liberados de acertos judiciais, concedendo a exilados o direito de retorno ao Brasil,
contemplando, também, vários torturadores, criminosos e assassinos pelo excesso de poder
(CAMPOS, 2008, p. 158). A fim de celebrar a Lei da Anistia, foi composta a letra “Tô
voltando”, uma produção conjunta de Maurício Tapajós e Paulo César Pinheiro, uma canção
que pode ser utilizada em sala de aula para compreender as mudanças do período:
Considerações finais
A ressignificação de saberes na contemporaneidade é algo extremamente necessário.
Para se ensinar História deve-se levar em consideração que, de certa forma, não existem
verdades absolutas, pois há um constante renovar por meio de pesquisas, por exemplo. A
música enquanto uma das metodologias do ensino de História deve ser utilizada pelo professor
de maneira a conduzir o aluno à participação, à crítica social dos conteúdos e, principalmente,
incentivá-los a produção intelectual ao invés de se limitarem a ouvir e repetir (FREITAS;
PETERSEN, 2016). O período da Ditadura civil-militar no Brasil é rico em evidências, com
destaque para as fontes que surgiram em meio aos círculos artísticos. A música, em particular,
desperta valores e maneiras de sentir capazes de condensar as mudanças e permanências no
interior de uma sociedade (PARANÁ, 2008). Como tal, a musicalidade foi utilizada para
legitimar ou contrapor o regime ditatorial (NAPOLITANO, 2001). As músicas populares,
apresentadas nos festivais, diretórios acadêmicos e shows diversos que agitavam a população
em todo o país, se tornaram símbolos de crítica em relação ao sistema vigente.
O conceito de “revolução”, em que pese suas diversas definições, foi aqui
compreendido como um conjunto de mudanças profundas (KOSELLECK, 2006, p. 61) que,
em alguns casos, inspirou composições musicais. Em síntese, o sentido de “revolução”
configurou-se de maneira mais forte entre os anos de 1968 a 1975, no período conhecido como
“anos de chumbo”. Em contrapartida, a repercussão de temas revolucionários ocorreu de forma
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menos intensa entre os anos de 1976 a 1982, momento no qual despontou a “canção da
abertura”. Entretanto, independente do recorte cronológico, em tempos de Estado autoritário
torna-se importante salientar que a música tornou-se um importante meio de resistência, seja
num primeiro momento aludindo lutas sociais e revolucionárias ou, posteriormente, criticando
a censura e opressão financiada pelo aparato militar que estava no poder.
Inseridas no bojo de mudanças teóricas e metodológicas iniciadas nos anos de 1980 em
relação ao ensino de História, a resistência cultural promovida por artistas e intelectuais, se
constituiu como uma alternativa à guerrilha e a luta armada. Entre suas principais vantagens
estava à camuflagem de pensamentos, quase sempre escondidos em letras de múltiplos sentidos
e que permitiam variadas interpretações. Nesse sentido, a produção cultural transforma-se em
evidência quando deixa sua condição de material original, ou seja, de produção sem finalidades
pedagógicas e se transforma em um mecanismo para o desenvolvimento de conceitos na aula
de História, permitindo ao aluno a formação de uma consciência histórica por meio de
aproximação de pessoas que viveram no passado. O professor de História deve assumir uma
postura que veja o seu aluno como alguém capaz de considerar o aluno um sujeito pensante e
reflexivo, capaz de criar e aprofundar conceitos. Assim, a reflexão e a capacidade crítica serão
exercitadas, contribuindo para a formação de um cidadão atuante e consciente, o qual possa
compreender que o conhecimento histórico não é algo pronto e acabado, mas está sujeito a
questionamentos, investigações e descobertas.
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BLANC, Aldir. Elis Regina. São Paulo: PolyGram, p1998, 1 CD, faixa 02, série Millennium (gravação
de 1979).
BUARQUE, Chico. Bolsa de Amores. Intérprete: Mário Reis. In: BUARQUE, Chico. Mário Reis – 2
em um. Rio de janeiro: EMI, p1993, 1 CD, faixa 24 (gravação de 1971).
BUARQUE, Chico. Apesar de você. Intérpretes: Chico Buarque e MPB4. In: BUARQUE, Chico.
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GIL, Gilberto; CAPINAM. Miserere Nobis. Intérprete: Gilberto Gil. In: Diversos. Tropicália ou Panis
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