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GRUPO DE ESTUDOS ARTE&FOTOGRAFIA

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CAP-ECA-USP 2015

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Dora Longo Bahia, série Desastres da Guerra, 2012.

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GRUPO DE ESTUDOS ARTE&FOTOGRAFIA
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2015

Departamento de Artes Plásticas da Escola de


Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo

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Universidade de São Paulo Contato


Reitor: Marco Antonio Zago Departamento de Artes Visuais da ECA/USP
Vice-reitor: Vahan Agopyan (55) (11) 3091-4430
Pró-reitor de Graduação: Antonio Carlos Hernandes artefotografia@usp.br
Pró-reitora de Pós-Graduação: Bernadette Dora © 2015 dos autores
Gombossy de Melo Franco GEArte&fotografia / ECA / USP / 2009.
Pró-reitor de Pesquisa: José Eduardo Krieger Impresso no Brasil
Pró-reitora de Cultura e Extensão Universitária: Maria ISSN 1981-1349
Arminda do Nascimento Arruda
Coordenação Editorial
Escola de Comunicações e Artes Domingos Tadeu Chiarelli
Diretora: Margarida Maria Krohling Kunsch Eliane Pinheiro
Vice-Diretor: Prof. Dr. Eduardo Henrique Soares
Monteiro Identidade gráfica baseada em projeto de
Fábio D’Almeida
Departamento de Artes Plásticas
Chefe: Sônia Salzstein Diagramação
Vice-Chefe: Luiz Claudio Mubarac Marianne Farah Arnone
Secretaria: Aparecida Regina Landanji, Solange dos
Santos, Stela Maria Martins Garcia, Raul Cecílio Capa
a partir de obra de Dora Longo Bahia, da série Desastres
Centro de Pesquisa Arte e Fotografia da ECA/USP da Guerra, 2012
Professores Coordenadores: Tadeu Chiarelli, João Musa,
Mario Ramiro Revisão
Alexander Gaiotto Miyoshi, Eduardo Luis Araújo de
Grupo de Estudos do Centro de Pesquisa Oliveira Batista, Eliane Pinheiro, Fernando Oliva,
Arte&Fotografia da ECA/USP Frederico Fernando Souza Silva, Marco Fabio Grimaldi,
Coordenador: Tadeu Chiarelli Maria Hirszman, Marianne Arnone, Mariano Klautau
Filho, Tadeu Chiarelli, Thiago Gil de Oliveira Virava,
Pesquisadores Yara Schreiber Dines.
Alexander Gaiotto Miyoshi, Ana Cândida de Avelar
Fernandes, Andréa Cortez Alves, Alessandra Monachesi Agradecimento Especial
Ribeiro, Carolina Coelho Soares, Daniela Maura Abdel Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São
Nour Ribeiro da Silva, Eduardo Luis Araújo de Oliveira Paulo.
Batista, Eliane Pinheiro, Fábio D’Almeida, Fernanda
Pitta, Fernando Oliva, Frederico Fernando Souza Silva, O presente trabalho foi realizado com o apoio da
Heloisa Espada, Julia Bortoloto de Albuquerque, Marco CAPES, Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de
Fabio Grimaldi, Maria Hirszman, Mariana Leme, Nível Superior.
Marianne Arnone, Mariano Klautau Filho, Regina
Teixeira de Barros, Tadeu Chiarelli, Thiago Gil de O IX Seminário Arte, Cultura e Fotografia - Imagens:
Oliveira Virava, Víctor, Yara Schreiber Dines. práticas e metodologias, contou com apoio da CAPES e
da FAPESP.
Apoio Acadêmico
Raul Cecílio Meneses Júnior
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COMUNICAÇÕES

Editorial

Tadeu Chiarelli
Coordenador do GEA&F

Durante a maior parte do ano de 2014, as leituras realizadas pelo


Grupo de Estudos Arte&Fotografia se concentraram na reavaliação da obra
do historiador da arte alemão Aby Warburg (1866-1929), fomentada nos
últimos anos por traduções de textos de sua autoria, assim como de análises
de sua obra, notadamente a do filósofo francês Georges Didi-Huberman.
Estabelecido esse objetivo, foi lido o livro de Aby Warburg, Sandro Botticelli:
o nascimento de Vénus e a Primavera (Lisboa: KKYM, 2012), sendo seguido
pela leitura de uma tríade de comentadores de sua obra: o historiador ita-
liano Carlo Ginzburg, por meio da leitura de seus ensaios reunidos no vo-
lume Medo, reverência, terror (São Paulo: Companhia das Letras, 2014),
no qual o autor lança mão de conceitos formulados por Warburg – como
o de Pathosformel – para propor análises de obras modernas, chegando até
uma leitura de Guernica, de Pablo Picasso, tentativa ainda pouco comum nos
estudos de matriz warburgiana; o estudioso britânico E. H. Gombrich, com
o ensaio “La ambivalência de la tradición clássica. La psicologia cultural de
Aby Warburg” (publicado em Tributos: versión cultural de nuestras tradicio-
nes. México, DF: Fondo de Cultura Económica, 1991); e por fim, a leitura
de A imagem sobrevivente: história da arte e tempo dos fantasmas segundo Aby
Warburg (Rio de Janeiro: Contraponto, 2013), de Georges Didi-Huberman,
talvez a mais aprofundada avaliação da experiência intelectual e das referên-
cias teóricas de Aby Warburg disponível ao leitor brasileiro. Dessa maneira,
se constituiu um quadro de referências relevantes sobre a obra de Warburg,
importante para a formação dos estudantes de graduação e pós-graduação
membros do Grupo.

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O conteúdo desta edição foi dividido em duas partes. A Parte I reúne
textos referentes ao IX Seminário Arte, Cultura e Fotografia – Imagens: prá-
ticas e metodologias, realizado entre os dias 15 e 19 de setembro de 2014, no
auditório do Museu de Arte Contemporânea MAC/USP Nova Sede. Nessa
edição, o Seminário contou com a participação de cinco conferencistas que
expuseram questões metodológicas sobre o desenvolvimento de suas pesqui-
sas recentes e/ou questões relativas a seu processo de criação artística.
Discorrendo sobre questões oriundas da abordagem antropológica so-
bre as artes visuais, a Profa. Dra. Lilia Schwarcz (USP) apresentou a confe-
rência “Como ficar míope e ser canibalizada por artistas” que se constituiu
na análise metodológica de estudos de caso sobre a obra dos artistas Nicolas
Antoine Taunay e Adriana Varejão. “Desastres da Guerra” foi o título da se-
gunda conferência, apresentada pela artista paulistana e Profa. Dra. Dora
Longo Bahia (ECA/USP), título oriundo de sua série de pinturas realizada
em 2012, e que remete ainda a uma série de gravuras de Goya, Los Desastres
de la Guerra. A conferência da artista analisou as referências teóricas e artísti-
cas que buscou para a produção de seu trabalho, desde as gravuras do artista
espanhol ao livro de Susan Sontag Diante da dor dos outros. Na conferência “A
teoria queer: potencialidades metodológicas para pensar a arte e suas conexões
com a fotografia”, o Prof. Dr. Alexandre Santos (UFRGS) refletiu sobre a
origem e significados do termo queer e as possíveis transformações nas abor-
dagens da imagem introduzidas por aquela teoria. A artista peruana Sandra
Gamarra proferiu a conferência “Algunas reflexiones sobre la estética de lo
verdadero en la imagen de prensa”, apresentando seu processo de criação.
Por fim, o Prof. Dr. Charles Monteiro (PUC/RS) expôs questiona-
mentos metodológicos sobre o conceito de fotodocumentarismo no Brasil,
suscitados pelo estudo da obra do fotógrafo gaúcho Luiz Carlos Felizardo,
entre as décadas de 1970 e 1980.
As dez comunicações apresentadas compuseram as mesas de debate
organizadas por temas: Antropologia e Imagem, abordado pelas pesquisadoras
Fabiana Beltramim (USP) e Fabiana Bruno (Unicamp); a Crítica Feminista
discutida pelas pesquisadoras Sílvia Amélia Nogueira de Souza (UFMG)
e Luana Saturnino Tvardovskas (Unicamp); a mesa Imagem, Gênero e
História da Arte, composta por Vitor Grunvald (USP) e Aline Soares Lima
(Universidade do Minho, Portugal), debateu a abordagem de imagens por
diferentes concepções de gênero; o quarto dia de debates foi tematizado pela
Arte e Política com as comunicações de Vivian Palma Braga (USP) e Gustavo
Motta (UDESC, USP) que estudaram obras produzidas em períodos de ex-
ceção, a primeira apresentando um recorte sobre a produção do artista argen-
tino Marcelo Brodsky e o segundo sobre a obra do artista paraibano Antonio
Dias; já as comunicações do quinto dia abordaram questões do campo de
estudos da cultura visual trazidas pelas pesquisadoras Cyra Maria de Araújo
Souza (Unicamp) e pela Prof. Dra. Lívia Aquino (FAAP, Unicamp).
A Parte II do Boletim, por sua vez, traz a público a reedição do texto
José de Alencar, escrito pelo crítico carioca Félix Ferreira em 1887 para o pe-
riódico Brasil Ilustrado. Apresentado pelo artigo da pesquisadora Marianne
Farah Arnone, que elucida os pontos mais significativos da trajetória de
Ferreira, o texto assume um caráter singular na trajetória do crítico, por abor-

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dar questões relativas à preocupação com a ideia de arte nacional no Brasil do
século XIX. Sendo este um tema de interesse entre os pesquisadores do Grupo
e relevante para a historiografia da arte no Brasil, justifica-se sua reedição no
contexto deste Boletim.
A Parte II traz ainda o texto O Daguerreótipo de autoria do escritor
americano Edgard Allan Poe, publicado originalmente em 1840. As obser-
vações de Poe constituem um importante depoimento sobre a recepção do
daguerreótipo, então recém inventado.
Agradecemos a todas as pessoas, físicas ou jurídicas, que colaboraram
gentilmente por meio de imagens e ou textos para a realização desta edição.

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SUMÁRIO

PARTE I
Anais do IX Seminário Arte, Cultura e Fotografia – Imagens: práticas e metodologias, 2014 11

COMUNICAÇÕES
Arquivo e montagem: a poética das imagens e suas constelações sobreviventes
Fabiana Bruno 13

Do conteúdo visual para a especificidade da foto: Vincenzo Pastore na tradição
da fotografia de rua na Itália (1880-1910).
Fabiana Beltramim 21

Entre a Arte Feminista e o Dicionário do lar, uma ancoragem metodológica para a crítica
Silvia Amélia Nogueira de Souza 33

Cópia e paródia: práticas de si na arte contemporânea de mulheres e crítica feminista à


História da Arte
Luana Saturnino Tvardovskas 47

Quando o gênero e a sexualidade são armadilhas da arte: Michel Journiac, o corpo travesti(do)
e o alter-retrato fotográfico
Vitor Grunvald 63

Regimes de visualidade do retrato fotográfico: técnica, estética e cultura


Aline Soares Lima 83

Buena Memoria, Los Compañeros: uma (re)construção de si por meio da imagem do outro.
Vivian Braga dos Santos 97

“Pergunta a cada ideia: serves a quem?” – questões metodológicas ao redor de Trama,


de Antonio Dias (1977)
Gustavo Motta 109

Picture Ahead: a Kodak e a construção de um turista-fotógrafo


Lívia Aquino 123

Visões do “Mal”: Estudos visuais sobre fotografia pericial – acervo do Instituto de


Criminalística em São Paulo, 1987-2007.
Cyra Maria de Araujo Souza Vieira 135

CONFERÊNCIAS
Como ficar miope e ser canibalizada por artistas
Lilia Moritz Schwarcz 147

Desastres da Guerra
Dora Longo Bahia 177
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A teoria queer: potencialidades metodológicas para pensar a arte e suas conexões
com a fotografia
Alexandre Santos 187

A Fotografia de Luiz Carlos Felizardo: fotodocumentarismo no Brasil nos anos 1970 e 1980
Charles Monteiro 199

PARTE II
Reedição
Introdução a Félix Ferreira
Marianne Farah Arnone 215

José de Alencar
Félix Ferreira 221

Tradução
Apresentação e tradução
Marco Fábio Grimaldi 226

O Daguerreótipo
Edgard Allan Poe 227

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GRUPO DE ESTUDOS ARTE&FOTOGRAFIA


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PARTE I

Anais do IX Seminário Arte, Cultura e Fotografia -


Imagens: práticas e metodologias, 2014

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COMUNICAÇÕES

Arquivo e montagem: a poética das imagens e suas constelações sobreviventes1

FABIANA BRUNO2

Resumo
O artigo reúne reflexões sobre a imagem e o arquivo, a partir de uma abordagem antropológica e poética.
Deslocando-nos por questões recolhidas ao longo de percursos de pesquisas, ensaiamos o movimento de aden-
trar na investigação de abertura e reabertura, de descoberta e redescoberta de um arquivo ou álbuns de imagens,
demarcando interrogações sobre mecanismos de trabalho. Nestes caminhos metodológicos, seguindo a linha de
pensamento de autores como Georges Didi-Huberman e Aby Warburg, a produção das pesquisas leva em conta
esses percursos de “montagem” como um método de conhecimento que realimenta reflexões sobre a natureza
dos arquivos de imagens.

Palavras-chave
Arquivo; imagem; montagem; antropologia; poética.

Seria todo arquivo uma espécie de obstinação do homem, um desejo 1 Este artigo é resultado dos estudos
realizados por ocasião da pesquisa pós-
de aprisionar as imagens e o tempo? Seria o arquivo uma espécie de templo doutoramento Imagens Desdobradas. Ante a
abertura do acervo fotográfico indígena de
onde gritam e emudecem as imagens? O arquivo, pode, é bem verdade, guar- Etienne Samain (ECA-USP/FAPESP, 2013, sob
dar pontos identificáveis de uma história, de origem de suas imagens, mas a supervisão do Prof. Dr. Eduardo Peñuela) e,
também da pesquisa em curso, Arqueologias
talvez seja muito mais fascinante pensar que todo arquivo de imagem – aqui da imagem: a poética do abandono nas
operações de (re)montagem dos álbuns de
compreendido nos termos de Aby Warburg3 – guardará latente marcas de ou- família (Departamento de Antropologia IFCH-
UNICAMP/CAPES), sob a supervisão da Profa.
tros momentos, não restritos apenas ao que chamaríamos de seu nascimento, Dra. Maria Suely Kofes).
mas a um conjunto de sobrevivências culturais. Quer dizer, todo arquivo tem
2 Fabiana Bruno é mestre e doutora em
sim um começo, mas também recomeços. A saber: quando se estabelece o de- Multimeios pelo Instituto de Arte-Unicamp
(2003-2009) e pós-doutora pela Escola
pósito – diante de tudo o que foi fotografado – das imagens que serão arqui- de Comunicação e Artes (ECA-USP).
vadas e como elas serão guardadas; e daquelas que serão retiradas, excluídas, É pesquisadora do Departamento de
Antropologia do Instituto de Filosofia e
cortadas e até mesmo perdidas em momentos, tempos, situações distintos. Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp, onde
ministra cursos e desenvolve projeto de
Por nossa natureza humana, pelo anseio por nomear, sentir, relacionar, pesquisa apoiado pela Capes. A antropologia
da imagem e a poética constituem os eixos
associar e perseguir o eterno desejo de capturar o tempo, somos seres afeitos de seus interesses de trabalho e seus recentes
ao ato de arquivar. Ao arquivar talvez nos deixemos levar pela ilusória certeza estudos evocam questões epistemológicas
sobre o arquivo, suas constelações e
de estarmos colecionando tempos, guardando em “gavetas” imaginárias nos- confabulações, berços de pensamentos que
abrigam as palavras, as narrativas de vidas,
sos instantes raros de vida e respiros de felicidade, mas também de dor, de as fotobiografias e os álbuns de família.
atos e turbulências, de gestos e truculências, e uma boa dose de esquecimento 3 Refiro-me ao conceito de trabalho com
de nossas verdades. Invariavelmente, todos nós arquivamos, todos somos um as imagens e o arquivo do historiador de
arte Aby Warburg (1866-1929), em especial
arquivo, ainda que possamos esconder nossas imagens. ao Atlas Mnemosyne (WARBURG, 2000).
Convido o leitor a conhecer melhor o projeto
“Ao viver, arquivamos e nos arquivam“ (GALLARDO, 2010, p.16). desta obra para a qual Warburg juntava
Como arquivamos ou somos arquivados corresponde, analogamente, à ma- imagens anacrônicas e heterogêneas, que
ia prendendo e dispondo sobre tecido
neira como construímos nossas vidas, nosso olhar sobre o mundo e a história. preto, formando densas composições
em painéis móveis, cuja leitura exigente
Um arquivo de imagem pode nascer de certa desordem e quase sempre de um guarda um percurso multidirecional dado

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por uma afinidade visual operatória e pela estado de consciência não deliberadamente presumível. Nesta perspectiva,
combinação de pontos de vista filosófico
e histórico em relação com as imagens. entendemos o ato de arquivar, em especial fotografias, nos termos de uma
Um estudo que toca nas funções e valores
expressivos da Antiguidade, estabelecidos
cultura do arquivo, como sendo em primeira instância um gesto humano –
na representação da vida na arte do o qual, aliás, tem-se demonstrado relevante no processo de estruturação da
Renascimento europeu, e evidencia questões
sobre os mistérios e interpretações de temas vida nas sociedades contemporâneas –, gesto que pressupõe o acumulo de
difíceis como, por exemplo, os astrológicos.
guarda um percurso multidirecional dado fragmentos visuais – nem sempre desenhados ou identificados – e colocados
por uma afinidade visual operatória e pela
combinação de pontos de vista filosófico e
em suspensão, à parte, para talvez serem reavivados em algum tempo futuro.
histórico em relação com as imagens. Um
estudo que toca nas funções e nos valores
expressivos da Antiguidade, estabelecidos “O arquivo petrifica (esses) momentos ao acaso e na desordem; aquele
na representação da vida na arte do que o lê, que o toca ou que o descobre é sempre despertado primeira-
Renascimento europeu, e evidencia questões
sobre os mistérios e interpretações de temas mente por um efeito de certeza. A palavra dita, o objeto encontrado,
difíceis como, por exemplo, os astrológicos. o vestígio deixado tornam-se representações do real. Como se a prova
do que foi o passado estivesse ali, enfim, definitiva e próxima. Como
se, ao folhear o arquivo, se tivesse conquistado o privilégio de ‘tocar
o real (...) A invasão dessas sensações dura pouco, como, aliás, ocorre
com as miragens, pelo que se diz. Embora o real pareça estar ali, visível
e palpável, na verdade só fala de si mesmo, e é ingenuidade acreditar
que atingiu sua essência nesse ponto” (FARGE, 2009, p.18).

Não há como negar, diria Peñuela, “que os enigmas do texto fotográ-


fico me instigam não só por serem fruto da formação de um espaço ima-
ginário, mas também por serem indícios de que esse espaço acrescenta ao
fragmento existencial captado particularidades que este não deixa perceber
em seu estado dito real”. O próprio autor alinhava: a fotografia “salva do es-
quecimento algo que desse estágio é negado, algo com o que me identifico. E,
por conseguinte, abre a possibilidade de viver com um novo repertório uma
situação havida como insuperável para os sujeitos que foram fotografados e
ainda para aqueles que, mesmo não sendo protagonistas da encenação repre-
sentada diante da câmera, têm a chance de contemplar” (PEÑUELA, 2012,
p.114).
Preferimos crer, quase sempre, que as imagens serão eternamente
nômades e que tantas vezes comportam-se como errantes, habitando aqui,
acolá, nesse tempo, no ontem, no hoje e no amanhã, sem prescindir tutela,
sem pedir passagem. No entanto, as imagens podem também se esconder nas
cinzas até novamente subverterem à concessão e transgredirem em seu livre
arbítrio. O tempo é para as imagens como uma espécie de templo, lá onde
elas respiram, mas é também território, espaço, fluxo e chão. Considerando,
desta maneira, o arquivo de imagens como um organismo vivo, um cosmos,
este artigo propõe questionamentos expressos em três atos acerca do ver.

Primeiro Ato:
Ver um arquivo fechado
O que guarda ou esconde um arquivo fechado? Num arquivo ainda
não aberto, entre poeiras, nos cantos e pontos de escuridão se escondem as
imagens. Lá estão elas encolhidas, guardadas, resguardadas, não se mostrando,
como se temessem o instante do contato, a abertura da caverna, os feixes de
luz sobre suas retinas. Estão em seu sepulcro, vivas, relutando.
Um arquivo fechado nos oferece imagens reclusas. Imagens suspen-
sas. Estar diante de um arquivo prestes a ser aberto é sempre um momento

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prévio de emoção. Algo está lá para ser “libertado”, depois de um tempo que
passou. De um tempo criador de camadas, de pó, de poeira, de sopro, vento,
cor e descoloração, que cria camadas, cristaliza substâncias e sobrevivências
humanas. O arquivo de imagem guarda uma dimensão poética constituída
pelo silêncio, pelo esquecimento, pelas sobras, pela intersecção de seus vazios
e intervalos.
Isto significa dizer que, diante do arquivo fechado estamos diante de
histórias para ver? Um tipo de uma pré-visão de coisas que acumularam nas
próprias imagens. Temos a possibilidade de sentir, reconhecer, “que o tempo
passou por essa coisa/imagem como um sopro, como um vento que esmae-
ceu”, como nos dirá Didi-Huberman ao referir-se à grisalha4. Ali, em uma 4 Neste ensaio, Didi-Huberman problematiza
a noção de grisalha e a alarga para o
imagem grisalha, já não há “nada de neutro nada de estável, nada (também) domínio do que chama de uma experiência
de estritamente definido. Parece, antes, resultar de um momento e de um visual da grisalha: “A grisalha seria para
as cores do mundo o mesmo que a poeira
movimento: trata-se do tempo que passou, como uma rajada de vento, e que, para a consistência dos objetos. (…) A ação
e o poder do tempo sobre a cor das coisas
ao passar, pulverizou a cor das coisas” (DIDI-HUBERMAN, 2004, p.6). (…) Não só o deus Tempo é com frequência
figurado em grisalha, como também a sua
Num arquivo fechado, toda imagem vive envolta num silêncio pul- atividade por vezes é entendida como uma
sante, numa experiência involuntária e paradoxalmente devotada. Enquanto obra do fumo, da poeira, da grisalha soprada
sobre todas as coisas. (…) Assim, a grisalha
lá fora o mundo se preenche com o tudo, no interior de um arquivo, as falas, não será propriamente uma cor, mas o coloris
de descoloração que o tempo impõe às
as narrativas, os ruídos ecoam em sentido de uma contrarruptura. A desco- coisas… bem como aos seres” (p. 3-5).
berta de um arquivo exige, no entanto, disposição para mergulhar em seus
mistérios e lançar-se na direção de seus enigmas, de seus nós temporais.

Segundo Ato:
Abrir o arquivo
Quando provocadas a emergir à superfície, a deixar a reclusão, as ima-
gens – ainda em seu mundo de silêncio – se mostram exigentes e nos inter-
pelam. As imagens de arquivo ousam nos instigar para que cheguemos bem
perto delas, para observá-las, num resplendor, sem um prévio roteiro. Assim,
as imagens de arquivo, apesar de figurarem como adormecidas, guardam uma
respiração pulsante.
Como olhar para elas, estes entes que habitam fronteiras, dimensões,
arestas, frestas, sim, pois a imagem de arquivo vive? Como adentrar ao si-
lêncio do arquivo e alcançar a “verdadeira imagem do passado que perpassa,
veloz” (BENJAMIN, 1994, p.224)? É necessário não querer tudo desvendar,
é preciso ver para depois saber. Elas mesmas, as imagens, poderão começar
a se agitar diante de nossos olhos, no seu próprio tempo. Deveremos tentar
experimentar o tempo do silêncio das imagens de arquivo. Imagens adorme-
cidas, caladas e vivas.
Se “o passado só se deixa fixar, como imagem que relampeja irreversi-
velmente, no momento em que é reconhecido”, como anunciou Benjamin,
(1994, p. 224) e se “para recordar é preciso imaginar”, como nos dirá Didi-
Huberman (2012, p.49), articular o passado em imagens de arquivos não
significa conhecer como ele de fato foi. Encontrar o silêncio das imagens,
abrir o arquivo, significa acordá-las para outro tempo. Trata-se de “des-cobrir”
como se revelam, em termos de memória e desejo.
Ocupar-se do silêncio das imagens do arquivo é evidenciar “a ‘res-
piração’ (o fôlego) da significação; um lugar de recuo para que o sentido
faça sentido; não como uma falta, mas como um excesso. Reduto do possí-

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vel, do múltiplo, o silêncio abre espaço para o que não é um” (ORLANDI,
2002, p.13). Como pronuncia a autora, é o silêncio que atravessa as pala-
vras – ele existe entre elas, ou indica que o sentido pode sempre ser outro.
Compactuando com esta perspectiva, não pensamos o silêncio do arquivo
de imagens como uma falta, mas sim como um excesso. “O silêncio aqui não
fala, ele é, ele significa. Há um espaço não-linguístico que o contemplativo
conhece perfeitamente” (ORLANDI, p.33).
Lançar-se ao desafio de conhecer um arquivo de imagens é indagar
sobre a sua natureza mais íntima, num exercício ante o desconhecido, um ato
inflexivo de conexão ao mistério, às suas questões, que ora encontram-se nas
camadas, ora criam pontes invisíveis, intocáveis, mas navegáveis em saberes e
intermitências. Um arquivo é exigente pois impõe o esforço de configurar o
tempo das imagens, que não pertence mais ao presente, mas ao arquivo como
memória, como rastro do que sobreviveu de algo que se perdeu.
Como abrir um arquivo e devolver as imagens até então silenciosas a
uma convivência com o mundo, seu fluxo e seus ruídos? Do desenho inaca-
bado e sem um espaço identificado, podem acordar as imagens, por outro
gesto humano. E, a qual destino se reservaria assim às imagens de arquivo
quando acordadas de um sono profundo? Como atribuir às imagens do ar-
quivo o seu desejo de memória – e também de imaginação – em busca de um
tempo perdido? Como romper com a descontinuidade e a suspensão, o exílio
e o isolamento do arquivo? Como adentrar ao “arquivo – massa geralmente
inorganizada de início – que só se torna significante ao ser pacientemente
elaborado” (DIDI-HUBERMAN, 2012, p.124)?
As imagens, todas elas, sabemos, são errantes. E são migrantes tam-
bém. Anacrônicas, sobreviveram e sobreviverão a um tempo perdido. Todavia,
quando em movimento, reencontrarão outros espaços no futuro. Latentes,
figuram como imagens adormecidas com respiração pulsante, análogas a pe-
quenos estouros poéticos carregados de desejos de memória. Do silêncio de
um arquivo, que agora se abre, partem para outras fronteiras, sofrem desloca-
mentos explosivos como grandes constelações.
Para perscrutar um arquivo e tornar legível uma imagemé preciso, sem
dúvida, também tomar tempo. As imagens exigem trabalho, requerem domí-
nio de contexto e exigem montagem como modo de conhecer. Na perspectiva
traçada por Georges Didi-Huberman, as imagens e os textos contidos no
arquivo não são somente o lugar onde seriam depositadas informações, mas
o “lugar onde, de uma imagem, pode se tirar emoção e bocados de memó-
ria, imaginação e bocados de verdade” (DIDI-HUBERMAN, 2003, p.123).
Imaginação como uma dimensão especial de tempo dedicado, atribuído às
imagens de arquivo, a sua própria atividade e dinâmica natural. Nos termos
do autor:
“uma imagem sem imaginação é pura e simplesmente uma imagem
que ainda não nos dedicamos a trabalhar. Pois a imaginação é traba-
lho, esse tempo de trabalho das imagens agindo incessantemente umas
sobre outras por colisões ou fusões, por rupturas ou metamorfoses...
Sendo que tudo isso age sobre a nossa própria atividade de saber e de
pensar. Para saber, portanto, é realmente preciso imaginar-se: a mesa
de trabalho especulativa é inseparável de uma mesa de montagem ima-
ginativa” (DIDI-HUBERMAN, 2012, p.154).

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Terceiro ato:
O desdobrar das imagens, constelações sobreviventes
Quais operações de trabalho realizamos quando ousamos “abrir”, “ob-
servar”, “reencontrar” e “desdobrar” as imagens? A vida no arquivo é uma
dinâmica singular. Devemos, num movimento abissal, mergulhar no arquivo.
Ir lá no fundo em busca de seus enigmas, em direção às profundezas desco-
nhecidas e misteriosas. E fazer isto não como alguém que pretende esquadri-
nhar um arquivo, a fim de simplesmente decifrar um enigma, mas sim como
aquele que procura o “fluxo invisível” daquilo que se passa entre as coisas e as
tornam “tesouros sobreviventes”, nos termos de Warburg5. 5 Warburg expressou, pouco antes de
morrer, que a história das imagens deveria
“Desdobrar as imagens”6 é, então, o trabalho de mergulhar no arquivo ser compreendida como uma história de
fantasmas para gente grande. Os fantasmas,
procurando compreender as imagens sem reduzir sua complexidade; ensaiar nos lembrará Didi-Huberman (2013, p.426),
evidências sobre suas questões; aceitar seu mistério imantado, mantendo-se “nunca chegam a morrer, são seres da
sobrevivência, vagueiam como dibuks por
provocado por seus enigmas. algum lugar entre um saber immemorial das
coisas passadas e uma trágica profecia das
Um mistério não é um enigma. Enigmas exigem revelações e respostas. coisas futuras. Um conjugar pelas fissuras
(demonstrada pela experiência colecionada e
Mistérios demandam aceitação por tratar-se daquilo que não somos capazes organizada por Aby Warburg), de um tempo
de definir, traduzir. O desafio que habita o mistério é subjacente à natureza do que se comunica com outro. (…) Os objetos
da história warburguiana – as imagens
que não se explica. Quer dizer, apoiamo-nos na possibilidade valiosa de sim- – de modo algum são objetos, portanto.
Reduzi-los a essa condição é negar sua
plesmente indagar, pensar e ensaiar questões acerca de um arquivo de ima- própria ‘vida’, ou seja, sua capacidade de se
metamorfosearem e se moverem num meio
gens. Ousamos dizer que para além do enigma entre as imagens do arquivo, do qual sua própria matéria participa (…)”.
nos interessa também considerar a existência de seus mistérios.
Sabemos, que a cada mergulho, a cada descida, o arquivo nos colocará 6 O termo é proposto por Didi-Huberman
como uma discussão conceitual em direção a
diante da possibilidade de compreender as imagens e sua proliferação infinita uma teoria da imagem, em especial quando
de sentidos. Elas, impuras pelas camadas de tempos sobrepostos, nos aguar- retoma em suas reflexões a obra Mnemosyne,
de Aby Warburg. A figura das “dobras da
dam para serem reconhecidas, colhidas e pensadas. Sabemos também que a imagem”, desenvolvidas conceitualmente
pelo autor, refere-se ao ato não apenas de
cada novo mergulho, o fluxo as redistribuirão, as deslocarão, nos colocando “observar a imagem”, mas necessariamente
de “abri-la e desdobrá-la”. Remetemos
diante de um outro recomeço. Pois, “mergulhamos no tempo e não no sen- notadamente a dois de seus títulos: Ouvrir
tido”. Parafraseando Didi-Huberman, “todos os seres dos tempos passados Vénus (1999) e L’image ouverte (2007).

naufragaram. Tudo se corrompeu, com certeza, mas tudo ainda está lá, trans-
formado em memória, ou seja, em algo que já não tem a mesma matéria nem
a mesma significação: um novo tesouro a cada vez, um novo tesouro a cada
outrora metamorfoseado” (DIDI-HUBERMAN, 2013, p.425).
Os arquivos de imagem são sempre potencialmente uma questão ainda
a formular. Entre as imagens presentes neste espaço configurado como um
“arquivo” existem lacunas, hiatos, intervalos, fendas dadas pela incompletude
inerente a cada uma das fotografias e na relação dentro do arquivo que um
dia nasceu. Saber olhar e pensar por imagens seria, de certo modo, tirá-las da
suspensão e lançá-las numa constelação.
Procurando expor e refletir sobre os passos de uma experiência meto-
dológica de estudo de um arquivo, apoiamo-nos na formação de séries/cons-
telações partindo de fotografias de um arquivo, estabelecendo uma alusão
poética aos movimentos translatórios do universo da cartografia celeste; uma
maneira de procurar ver e pensar as séries de imagens como constelações de
um arquivo. Pela poética, aqui entendida, não por aquilo que fala das coisas,
mas pela própria poesia, que pode ser descoberta pelas formas, pelos sentidos,
que está “manifesta por essa obliteração da coisa pela palavra” (DUBOIS e
outros; Grupo µ), “pelo valor intrínseco do enunciado” (PEÑUELA, 1995,
p.127).

8
17
Do percurso desenvolvido alcançamos a construção de Cartas Poéticas
7 As Cartas Poéticas de Imagens criadas de Imagens7, a configuração de uma proposta de como podemos ver e nos
como um instrumento metodológico e
poético são um dispositivo visual constituído aproximar de um saber acerca das imagens de um arquivo. Estas criações são
por seis lâminas em grande formato. Cada
uma apresenta o estudo de um arquivo de um desejo de revelar, partilhar, materializar pela poética um modo de pensar
imagens a partir de uma seleção colocada
em movimento, a saber: a formação de as imagens, considerá-las como resultados dos movimentos realizados que
constelações. Em arranjos, as pequenas
séries fotográficas, agora consteladas, se pressupõem a escolha, o corte, a seleção, seguido da montagem e da revelação
colocam em plano poético de intermitências,
deslocando-se incessantemente, entre elas,
de fotografias de arquivo.
para suscitar pensamentos e revelações. O modo de pensar a imagem, na concepção de Atlas de Warburg (e no
8 Referimos especialmente a obra Atlas ou conceito de Atlas expresso por Didi-Huberman8 a partir de Warburg), acres-
Le Gai Savoir Inquiet. L’Oeil de L’Histoire, 3.
Paris: Les Éditions de Minuit, 2011 a Atlas.
cidos em nosso trabalho por uma determinação poética, advinda da profu-
Cómo llevar el mundo a cuestas? (ensayo
+ catálogo da exposição). Madrid: Museo
são metafórica das cartografias celestes, nos influenciou a ver uma fascinante
Nacional Centro de Arte Reina Sofía, 2011. possibilidade de nos lançarmos aos mistérios das constelações de imagens, ou
seja trafegar pela estética, pela riqueza pictórica e pelos postulados sobre as
magnitudes das séries fotográficas dos arquivos. Colocamo-nos em condição
de olhar para um conjunto de diferentes imagens eleitas, tomando a liberdade
de propor uma configuração, montar constelações e depois desorientá-las,
para a descoberta de novas analogias, das relações postas em evidências e de
novos trajetos de pensamento.
Essa propositura, na contramão de uma classificação definitiva ou de
uma catalogação, nos conduziu a sugerir formas de leituras que induzem e
nos aproximam das questões do arquivo. Ao mesmo tempo, manifestamos
o desejo de construir um diálogo largo, no qual intermitências, silêncios,
tempo e imagens se sacralizam e nos convidam a mirar as coisas do mundo,
a atentar ao tocável e ao inatingível da vida do homem sob o céu, ante as
estrelas, o fascínio da imagem e o gesto humano de arquivar e arquivar-se.
Como diria Peñuela, o desafio de ver é olhar com o desejo de ver o
que se coloca diante do olhar; perceber o que há “entre o que se entrega à
vista e o que a instiga”; “entre o estado de olhar (disjunção) e o estado de ver
(conjunção)”. “Entre a luz e a escuridão se movem as bússolas do ver e do
olhar, mas o discurso da fotografia consegue captar suas gradações tensivas e
trazer à intertextualidade conotada que nele instaura configurações em que,
poeticamente, se enredam as sombras densas, as sombras úmidas e as sombras
exteriores” (1990, p.73).
Essas “poéticas”, na forma de um ensaio, nos conduziram a direções
heurísticas complementares em relação a um tempo circunscrito e nos per-
mitiram repensar e recolocar em questão o contexto histórico de emergência
das imagens à luz de outros parâmetros, conscientes ou não, de nossa história
e de nosso imaginário. O estudo e a montagem das séries, num movimento
dinâmico, sem cessar, revelaram como descoberta que essas mesmas imagens
podem carregar e veicular reminiscências, memórias e “supervivências” cultu-
rais. Há um tempo para o nascer de todas as imagens, mas haverá de existir
um tempo para que o arquivo seja, mais do que um gesto humano de con-
templação, uma imaginação do existir e não somente um desejo de domesti-
car o pensamento sobre o tempo e a criação.

18 8
Referências bibliográficas
BENJAMIN, W. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da
cultura. (Obras escolhidas; v. 1) 7a ed. São Paulo: Brasiliense, 1994.
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2013).
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(Coleção Le Temps des Images), 2007.
______. Atlas ou Le Gai Savoir Inquiet. L’Oeil de L’Histoire, 3. Paris: Les Éditions
de Minuit, 2011.
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Madrid: Museo Nacional Centro de Arte Reina Sofía, 2011.
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_______. “Uma foto familiar: aprisco de emoções e pensamentos (Anotações de-
lirantes sobre [a]sombrografia)”. Como pensam as imagens. (org. Samain, Etienne),
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Claudia Brink). Berlim: Akademie Verlag, 2000. (versão espanhol: Atlas Mnemosyne
(2010). Madrid: Ediciones Akal).

8
19

20
4
COMUNICAÇÕES

Do conteúdo visual para a especificidade da foto: Vincenzo Pastore na tradição


da fotografia de rua na Itália (1880-1910).

FABIANA BELTRAMIM1

Resumo
A série fotográfica produzida por Vincenzo Pastore, na São Paulo de 1910, ajuda a reconstituir uma importante dimensão
da vida social no período pós-abolição, marcado pela forte presença da população negra e por seu intenso convívio com
a primeira geração de imigrantes e seus descendentes, envolvidos nas práticas de serviços essenciais ao abastecimento da
cidade. O trabalho emblemático deste fotógrafo pode ser ainda compreendido a luz de um repertório visual produzido na
Itália entre as últimas décadas dos oitocentos e atualizado em início de século XX; A série fotográfica de Pastore se inclina
para o futuro e surge como coleção institucionalizada nos anos de 1997, descortinando as diferentes camadas de tempo-
ralidades das imagens.

Palavras-chave
Vincenzo Pastore; Fotografia; Cultura Visual; Imigração; Pós-abolição.

O presente artigo trata da produção emblemática de Vincenzo Pastore 1 Doutoranda em História Social pela
Universidade de São Paulo – USP. Possui
(1865-1918). mestrado em História Social pela Pontifícia
O fotógrafo deixava seu estúdio e saia pelas ruas do Triângulo Central Universidade Católica – PUC-SP (2009);
especialização em História, Sociedade
e seus arredores, fotografando aqueles que trabalhavam de forma autônoma e e Cultura, PUC-SP, (2005); graduação e
licenciatura em História; graduação em
improvisada na São Paulo de 1910. Jornalismo pela Faculdade de Comunicação
O “ato de percepção” aqui proposto sublinha o interesse de Pastore Social Cásper Libero (1997). Tem experiência
na área de História com pesquisas com
pelos sujeitos sociais envolvidos em atividades cotidianas de trabalho, inse- ênfase nos seguintes temas: Fotografia,
escravidão, cultura visual.
ridos na rede de abastecimento prestado nas ruas e nos mercados popula-
res da capital paulista. A série fotográfica ajuda a documentar e reconstituir
uma importante dimensão da vida social paulistana, no período pós-abolição,
marcado pela forte presença da população negra e por seu intenso convívio
com a primeira geração de muitos imigrantes e seus descendentes.
Tratamos de uma narrativa fotográfica que ajuda a dialetizar as relações
sociais em suas tensões e contradições mais arraigadas, desvelando uma faceta
particular do processo de urbanização brasileira, com sua força de trabalho
urbana não associada diretamente ao processo de expansão industrial, for-
çando muitos a buscarem, segundo Pinto (1994), uma renda própria para
sobreviver.
Pastore observou experiências de grupos plurais, retratando aqueles
que enfrentavam a lida na terra, com enxada nas mãos, iluminando as fendas
do rural com o urbano e as camadas diferenciadas de gerações nascidas em
tempos de escravidão, momento em que acumularam a experiência de tirar
das pequenas roças a produção de subsistência, prática formadora de uma
economia própria. Plantar, colher e depois vender o milho produzido nos

8
21
arredores, depois levado aos mercados de abastecimento compõe modos de
viver sobreviventes em novo século. Suas fotos são como vestígios de uma
ousada composição em descompasso com as ambições do tempo de Belle
2 As fotos estão disponíveis no site do IMS. Époque.2
Apresento em nota o título e o número da
foto referida no corpo do texto, seguindo as
classificações operacionalizadas nas formas
de catalogação empregadas pelo acervo de
guarda. Título: Casal de negros trabalhando
em plantação de milho; n. identificação:
004VP025.

Fig.1. 1910 ©Vincenzo Pastore/ Instituto Moreira Salles.

Uma consciência do poder dos anônimos no processo de reconstrução


da vida em liberdade emerge da narrativa fotográfica. Os grupos moventes,
em convivência, cobrem toda a dimensão visual criada por Pastore. São mui-
tas vendeiras de verduras e aves, homens negros levando seus cestos com fru-
tas e raízes ou à espera de trabalho; grupos que se deslocaram rumo às cidades
em expansão, contando como sugere Perez com uma tradição caminhante
(PEREZ, 2006). Homens e mulheres egressos da escravidão encontravam nas
cidades com os imigrantes camponeses, ambos em busca de melhores opor-
tunidades de vida e de trabalho. Contingências que os colocavam em intensa
convivência observada por Pastore nas ruas da capital paulista (fig.1).
A problematização dessa narrativa visual ganha fôlego na medida em
que se verifica uma coerência temática atravessando toda a série. Nos cami-
nhos da coleção, os negativos não foram encontrados. O que se têm como
materialidade sobrevivente são as reproduções em papel; algumas revelam
cenas únicas; em outras, vê-se Pastore compondo diferentes registros diante
de uma mesma cena, reforçando ainda mais o aspecto serial e documental
das fotos realizadas. A fotografia já no século XIX, de acordo com Lugon,
“quando se tratava de responder a imperativos documentais, de dar o máximo
de informações sobre um tema, uma região, um acontecimento, a tendência
natural era multiplicar as tomadas de vista” (LUGON, 2007, p. 291–305).
Pastore ajustou seu foco para uma cidade a partir de um viés interpre-
tativo preciso, intuindo realizar um corpus documental de sua experiência na
terra de acolhida. Um importante traço da série emerge: o caráter de foto ins-
tantânea adere fortemente ao conteúdo das imagens. O fotógrafo interpretava

22 8
a cultura do instantâneo em voga a partir da segunda metade do século XIX.
Foi recorrente em Pastore a aparência de foto flagrante, o registro de ações
em curso, com arranjos visuais de menor controle, em flagrantes gestos que
expressam uma atitude fotográfica que delineia uma dimensão experimen-
tal: corpos recortados, sujeitos sociais desatentos, em movimento, revelam
na verdade o próprio fotógrafo, suas escolhas, sua percepção desafiadora das
possibilidades do retrato.
Em sua narrativa surgiram homens negros, tão obscurecidos na histo-
riografia do período pós-Abolição. Às vezes, Pastore parecia interessado em
algumas sutilezas, como a do homem que costurava o seu próprio sapato.
Desatentos por vezes, cabisbaixos ou ainda indiferentes à presença da câmera,
os sujeitos sociais fotografados tornavam-se o referente principal do retrato,
onde se vê a recusa ao rigor da pose, à encenação, à contenção.3 3 Foto Coleção VP/Instituto Moreira Salles.
Título: Homem consertando o próprio sapato;
Frente a um comportamento social tão arraigado de valorização das nº identificação: 004VP021030.
aparências Pastore fez seu recorte. O gesto colocado em cena inscreve um
importante elemento no reconhecimento da cidadania, deu a ver o improviso
para se integrar ao mundo dos livres, sondando a própria “realização de dese-
jos”, as ambições de “posse de objetos que lhes haviam sido proibidos quando
eram escravos” (WISSENBACH, 1998, p. 53). Talvez dali, ao rés do chão, o
retratado tenha espiado o interesse do fotógrafo, dando-lhe pouca confiança.
Era preciso ser escorregadio na tessitura social urbana; ser hábil em aprender
rapidamente a viver com poucas posses e paradeiro incerto.
As sutilezas registradas revelam o cotidiano de trabalho ambulante
feito por muitas mulheres. O fotógrafo voltou-se para breves instantes de
convívio no comércio e venda de quitutes, doces, frutas e prendas domésti-
cas, nuançou segredos de um aprendizado herdado pelas diferentes gerações.
Um trabalho que tinha início na esfera doméstica e era depois concluído no
ganho ambulante, colocando a mulher como esteio no sustento da família.
Mulheres que lavavam roupa para fora, produziam farinha de mandioca e
de milho para vender, faziam e também colocavam a venda seus doces e as-
sim criavam seus filhos, seguindo uma longa tradição de arrimo da família
(DIAS,1995). Em sua narrativa Pastore nos faz lembrar Sérgio Buarque de
Holanda (1994, p. 57) que documentou a presença das “pretas de quitanda”
na venda de comidas tradicionais: “biscoitos de polvilho, pés-de-moleque, fu-
rundum de cidra, cuscuz de bagre ou camarão, pinhão quente, batata assada
ao forno, cará cozido...”.
É preciso pontuar o quanto se perde em tratar o comércio de rua, de
modo generalizante. Diante das condições reais de trabalho, com a indústria
se desenvolvendo paulatinamente, de modo descontínuo, marcada por pe-
ríodos de avanço e retrocesso, viver do ganho nas ruas não se caracterizava
como uma estratégia apenas de improvisação. Foi este um modo de vida para
uma considerável leva de desterrados do campo. Na cidade formaram um
contingente de trabalhadores, vitais nas redes de abastecimento sondadas por
Pastore. O fotógrafo, ao acionar os sentidos do rural no urbano, retratando
o trabalho nas pequenas roças e depois a venda dos produtos cultivados nos
mercados populares ou nas ruas centrais acima da colina, revelou sujeitos
históricos que não ocupavam a cidade de modo clandestino. Integravam-se
na dinâmica citadina permeada por vicissitudes que não os abatia, movimen-

8
23
tando-se de modo espontâneo.
Pastore documentou assim a multiplicidade de identidades que se for-
javam na cidade, num mercado que impulsionava a economia interna, vol-
tado para as “práticas andejas” (HOLANDA, 1994, p. 56) que amenizavam
as crises cíclicas de carestia, provocadas pelos constantes aumentos dos preços
dos alimentos. Entretanto, sua narrativa dava visibilidade a sujeitos desquali-
ficados socialmente, porque observados no período sob pressupostos da alte-
ridade. O preconceito étnico, racial se amalgamava aos princípios desqualifi-
cadores do trabalho feito no cotidiano das ruas, desprezando ocupações que
se distanciavam da polarização empregador-operário. Percepções que podem
indiciar a invisibilidade do conjunto visual criado por Vincenzo Pastore no
período de sua produção.
Tentamos a seguir compreender a série de Pastore observando o con-
texto de produção de fotografias produzidas na Itália, que como uma can-
deia iluminou traços de uma especificidade da série analisada; série que não
esteve inscrita no circuito de produção de fotos encomendadas; fotos que
não mantiveram vínculos institucionais comuns à fotografia paulistana do
período. Não deram corpo a álbuns comparativos estruturados num discurso
que contrapunha o venho e o novo, como signos respectivos do colonial pre-
terido frente ao progresso que se edificava. Fotos que não cumpriram solici-
tações governamentais e que tampouco foram veiculadas como cartão postal
ou publicadas em jornais. Especificidade que atordoa o pesquisador porque
tratamos aqui de fotos guardadas, ou seja, lidamos com uma coleção que so-
breviveu sob a guarda dos descendentes do fotógrafo. Por quase noventa anos
as fotos foram mantidas numa caixa de papelão. Apenas em 1997, depois da
doação feita ao Instituto Moreira Salles foram apresentadas na mostra reali-
zada no Espaço Higienópolis, a galeria do instituto.
As fotografias de Pastore mostram que nem toda fotografia de início
de novo século destinava-se à comemoração. Imagens que forçam o intérprete
a ver de outro modo, a criar novas problematizações, mostrando como o
historiador social, ao lidar também com imagens, precisa abrir mão de ideias
prévias sobre o fotográfico e se ater, ou melhor, respeitar a própria natureza
e historicidade da documentação visual, observando também aquilo que o
fotógrafo trazia como aprendizado adquirido antes de sua experiência de
imigração.

Pastore e o “mosaico visual” italiano.


Se Pastore nos ajuda a reconstituir sociabilidades vibrantes de sobre-
vivência é preciso observar a série fotográfica para além do conteúdo visual
documentado. A interpretação não pode se encerrar nesse viés, como já orien-
tou Ulpiano Bezerra de Meneses. O autor pontuou a necessidade de se pensar
“a visualidade como uma dimensão possível de ser explorada”, observando-se
4 MENESES, Ulpiano Bezerra. Rumo a uma uma “rede de imagens” constituídas socialmente.4
história visual. In: ECKERT, Cornelia & Caiuby,
Silvia (org.). O Imaginário e o poético nas A abordagem histórica ao problematizar a iconosfera não deixa esca-
Ciências Sociais. Bauru: EDUSC, 2005, p.
33-56.
par, como defendeu Ivan Gaskell (1992), o lugar em que as imagens ocupam
no passado, no cerne do contexto de produção do material visual relacio-
nado às práticas que envolvem a trama de sua constituição. Para este autor,
procedimentos inadequados podem ser evitados ao não se perder de vista a

24 8
complexidade das práticas visuais, das convenções iconográficas e do papel da
tradição visual, perspectivas que se inscrevem como aspectos que os historia-
dores sociais podem contribuir ao campo, ao situarem o material visual em
um contexto socioeconômico de produção e consumo.5 5 Gaskell, Ivan. História das Imagens. In:
Burke, Peter. A Escrita da História. Novas
Acredita-se que a fotografia de Pastore nos leva a pensar a trajetória perspectivas. São Paulo: Ed. UNESP. 1992, p.
268-271.
da fotografia italiana reverberando em outro lugar. Não falamos de um olhar
estrangeiro retratando o Brasil, mas sim como Pastore, em sua experiência de
imigração, retratava as sociabilidades da capital paulista pensando na Itália.
Ao tratarmos de tais imagens nos voltamos para uma semântica visual de du-
ração amplamente explorada, em contingências variadas, remetendo às cenas
emblemáticas da iconografia italiana, repleta de representações de práticas
autônomas de sobrevivência, entendidas no contexto italiano, como capazes
de mapear as sociabilidades de inúmeras províncias e comunas, sobretudo nas
regiões meridionais.
Evitamos o termo influência, noção rechaçada por Baxandall (2006).
Seria este um modo simplista de interpretação das imagens, reduzindo-as a
uma condição de passividade, afinal, para o autor, há sempre uma “marca da
individualidade de um artista” com uma “percepção particular das circunstân-
cias”. Por outro lado, é preciso considerar dimensões históricas que permeiam
determinadas escolhas. Não falamos aqui das intenções de Pastore, mas das
convenções visuais entendidas como a matriz de formação do fotógrafo. A
partir desse campo teórico vê-se como a percepção do fotógrafo é também
construída por uma experiência culturalmente orientada. Muitos elementos
se confundem na atitude do artista, “um ser social inserido em determinadas
circunstâncias culturais” (BAXANDALL, 2006, p. 86).
As sociabilidades que atraíram Pastore eram as mesmas que domi-
navam todo o repertório visual elaborado em Veneza, saindo da Toscana a
Roma, de Lazio a Torino, da Puglia passando pela Basilicata, pela Calábria,
fortemente presente nas representações das ruas de Nápoles, chegando ao
antigo reino da Sicília. A abrangente produção de imagens dos “vendittore
in via” ou do “lavoro per strada” coloca Pastore como um partícipe de uma
tradição de imagens comercializadas como souvenirs. Repertório que circulava
intensamente como fotos de costumes, produzidas por gerações de fotógrafos
italianos. As funções descritivas, documentárias e indiciais da fotografia con-
centram a compreensão de tais imagens no período, tidas na Itália, segundo
D’Autilia (2012), como “tomadas da realidade”, caracterizando a visualidade
em trânsito entre os oitocentos e os novecentos.
Se o avanço da técnica fotográfica permitia se retratar “la vitta di tutti
i giorni”, a produção de fotos de costumes avançava em dois sentidos: de um
lado o chamado Grand tour, que se atualizava em fins do século XIX, com
viajantes percorrendo toda Itália e levando imagens avulsas ou que circula-
riam intensamente sob um sistema de legitimação através da publicação de
catálogos, livros e exposições; por outro lado, quando os diversos “paese” se
fizeram como um único reino, organizando-se politicamente após a unifi-
cação, em 1861, foi preciso enfrentar o seguinte desafio, segundo Settimelli
(1989, p. 11): “fizemos a Itália, agora desejamos fazer os italianos”. Caberia
à fotografia certificar e testemunhar a essência e a abrangência do Estado
unificado. A fotografia manifestou neste contexto de intensa circulação de

8
25
imagens sua capacidade de não ser apenas agenciada, assumindo também seus
agenciamentos neste processo.
A fotografia italiana é, para a pesquisadora D’Autilia (2012, p. 8), uma
extraordinária amostra de estereótipos, nacionais e regionais, social e cultu-
ralmente condicionada como instrumento de nation building; seus habitantes
são observados pelo viés da curiosidade, numa intensa representação que não
visa apenas o indivíduo, mas todo um grupo, com diferentes modos de ser,
tentando expressar potencialmente o que seria o próprio país. Imagens, por-
tanto, que respondiam a premissas políticas.
A fotografia passava a ocupar o seu papel de “ator social produzindo
efeitos”, como aponta Meneses (2005, pp. 33-56), inscrevendo um mesmo
procedimento teórico indicado também por Alfred Gell (1998), que não
toma a fotografia em separado das manifestações sociais, vistas na contingên-
cia da concretude das experiências vividas.
A imagem da vendedora de frutas, verduras e ervas, retratada entre
1885 e 1890, no mercado da Piazza Campo di Fiori, em Roma, que inte-
gra o Arquivo Touring Club Italiano, desvela os passos dos irmãos Leopoldo,
Giuseppe, Romualdo e Vittorio Alinari, fotógrafos que viajaram pelo sul da
Itália realizando fotos classificadas como de “tipos e costumes”. A empresa
Fratelli Alinari produziu materiais de ampla circulação: livros, álbuns, ca-
tálogos, fotos avulsas e a partir de 1880, reproduzidas em cartões postais.
Estúdio, tipografia e editora, compõem a tríade que defini sua atuação.
Tratamos aqui de um repertório visual recorrente nos álbuns fotográfi-
cos de muitas famílias que difundiam as cenas de costumes; álbuns formados
6 "Arquivo Alinari. 1880. Piazza Monte ao gosto do colecionismo da época,6 revelando práticas visuais que em tudo
d’Oro, pescivendola. Roma. In: Luoghi, volti,
gesti e costumi. Collezione fotografica di remetem a Pastore, quer pela escolha do repertório retratado, quer pela con-
Alberto Manodori. Editora. Fondazione Pietro
Manodori. 2008."
figuração dos atributos formais articulados.
A foto que integra a coleção de Alberto Manodori (1866-1935) deli-
neia, além da formação de coleções de fotografias envolvendo diferentes ge-
rações de uma mesma família, aspectos que reforçam as aproximações agora
propostas. Nos arranjos da coleção encontra-se a fotografia de Carlo Brogi,
realizada entre os anos de 1870 e 1880, na qual se veem os mesmos atributos
formais articulados por Pastore quando retratou os vendeiros nas adjacências
7 Título: Comércio em frente ao Mercado do Mercado da 25 de Março.7 Documentava-se as pequenas posses de muitos
Municipal; identificação: 004VP021035.
vendedores ambulantes ao se eleger aspectos de uma cultura material colo-
cada em primeiro plano.
Registros de costumes que colocaram em cena, por toda a década de
1890, o vendedor de panelas retratado pelo fotógrafo Gaetano Senni, na
Piazza Campo di Fiori, em Roma; ou o fotógrafo anônimo que registrou a
8 Luoghi, volti, gesti e costumi. Collezione presença do vendedor ambulante de peixe na Veneza de 1900.8 Um trânsito
fotografica di Alberto Manodori. Editora.
Fondazione Pietro Manodori, 2008. de imagens do “tipici mondo popolare”, (ZAVATTINI, 1979, p. 57) en-
trando em novo século, envolvendo a prática de fotógrafos amadores e pro-
fissionais, mas também de pintores que recorriam à fotografia como suporte
para seus estudos pictóricos. O fotógrafo-pintor Eugenio Buono, também em
Veneza, fotografou mais um peixeiro cercado por mulheres conferindo sua
9 Fotografias de Eugenio Buono In: Italia
inédita di un secolo fa. Napoli, Venezia,
mercadoria, figuras femininas que mantiveram presença constante na repre-
Palermo, i borghi di Caiazzo e di Cerreto sentação de tipos e costumes.9
Sannita nelle lastre ritrovate di Eugenio
Buono. Napoli: Edizioni Intra Moenia. 2008. Assim como Pastore, Buono as retratou sempre de corpo inteiro, em

26 8
Fig. 2. Comércio em frente ao Mercado
Municipal, esquina das
Ruas 25 de Março e General Carneiro. 1910 ©
Pastore/Instituto Moreira Salles

Fig. 3. Tipo e costume de Roma e Provincias. 1870-


1880 © Coleção Brogi/ Arquivo Alinari. Firenze. In:
Luoghi, volti, gesti e costumi. Collezione fotografica di
Alberto Manodori. Ed. Fondazione Pietro Manodori.
2008.

suas práticas de trabalho, levando seus cestos, interessado por planos de fundo
super-expostos para destacar seus trajes escuros,10 e aparentemente pouco no- 10 IMS. Título da foto: Grupo de mulheres,
vendedoras de verduras e transeunte, IMS,
tando a presença do fotógrafo, fato que ajuda a caracterizar ainda mais a “ética identificação: 004VP021024. Ver também
outra imagem intitulada: Vendedoras de
do instantâneo”. Visualidades que para D’Autilia (2012, p. 110) fundem a in- verduras, IMS, identificação: 004VP021020.
dividualidade no tipo geral, o verdadeiro “espírito” da fotografia oitocentista.
No registro que Buono realizou das vendedoras de aves nas ruas agi-
tadas pelo comércio de abastecimento em Nápoles, vê-se o mesmo conteúdo
de Pastore, na rua adjacente ao Mercado Municipal em São Paulo, onde ne-
gociavam o melhor preço das galinhas brancas, vermelhas, carijó, carijozinha,
oferecidas aos clientes. Pastore também explorou a expressão dos valores pos-
tulantes do tipo como forma de sintetizar o mundo que via. “Gestos, atitudes,
roupas, atributos e ocupações” são, para Turazzi (1994, p. 33) elementos figu-
rativos de tais representações que encontraram força para se inscrever numa
cadeia de longa duração. O fotógrafo Giuseppe Primoli, em 1890, retratou
vendedoras ambulantes com seus tabuleiros cruzando a Ponte Sant’Angelo
ou sentadas nas beiradas da Ponte Milvio, em Roma; o cartão postal de 1902
retratava, contudo, vendedoras de ovos na província de Potenza, região da
Basilicata, que em início de novo século mantinha vivo seu aspecto de burgo
medieval.

8
27
Figuras 4 e 5 : Foto à esquerda mulher vendeira de aves ou fazendo uma suposta entrega. 1910 © Vincenzo Pastore / Instituto
Moreira Salles. Foto à direita. 1900, Nápoles © Eugenio Buono

Quando os novos sentidos superam a tradição: a imagem nos caminhos


de sua longa duração.
Este repertório paradigmático na Itália se atualizou. Se antes a céle-
bre ideia oitocentista de que era possível viajar sem sair do sofá garantia a
circulação de uma vastidão de imagens de barqueiros, carroceiros, peixeiros
e vendeiros ambulantes, nas décadas iniciais do século XX, tais imagens pas-
saram a ser ativadas ora como fotos de denúncia social, inaugurando aquilo
que Marina Miraglia (1993, p. 108) chama de “protofotojornalismo”, ora
visavam pontuar diferenças: Na iconografia das primeiras décadas dos no-
vecentos, o norte da Itália surgia sob o signo do moderno-industrial, com
fotos internas de fábricas e de operários; o sul, por sua vez, carregava o peso
do campesinato, com uma fotografia que passava a documentar a unidade da
família, mostrando seus habitantes integrados à paisagem natural, em práti-
cas artesanais e rudimentares de produção. Uma difusão de imagens de uma
Itália empreendedora, se industrializando passou a se contrapor com a repre-
sentação das condições meridionais, opostas à imagem da fábrica. Sentidos
11 MIRAGLIA, Marina. “Genere” e “tableau reiterados amplamente com o início da Primeira Guerra Mundial.11
vivant”: appunti veloci su due opposte
tendenze delle età dell collodio e della Delineia-se assim como este conteúdo visual teve uma historicidade
gelatina bromuro d’argento. In: ZANNIER,
Italo (ed.). Segni di Luce. Fotografia italiana
não estática, tampouco homogênea. A legitimidade da foto flagrante começa-
dall’età dell collodio al pittorialismo. Ravena: ria a potencializar a noção tida para D’Autilia (2012) como um humanismo
Longo, 1993, p. 108.
visual que começava a se radicar na Itália. O peso da tradição se diluía em
novos sentidos que aderem ao fotográfico, afinal a referência não significa
correspondência, como escreve Latour (2001). O tipo, a força do estereótipo,
constituído com a saturação deste visível sustentado pelo circuito do turismo,
iria se desacralizar lentamente no contexto italiano, com o universo da foto-
grafia passando a se ancorar na vida social, com a fotografia descobrindo-se
como “arma” nos novecentos. Oferecia-se, como menciona D’Autilia (2012,
p. 105), um modo ampliado de “ver, pensar e exibir o real em inúmeros frag-
mentos visuais”.

28 8
Tratamos de uma visualidade permeada por sentidos moventes, cons-
truídos no bojo das relações sociais que articulam a produção de seus bens
culturais, criadores de uma cultura material que potencializa as formas de
existir, de se ver, de ver o outro e entender o mundo reinventado em suas for-
mas visuais. No trânsito de tais imagens o pesquisador pode sondar a própria
inconstância da foto, que vai traindo a referência, superando-a. Temos assim
diálogos visuais que desvelam o quanto a fotografia é permeada por expres-
sões paradigmáticas, inscrevendo um trânsito de códigos visuais amplamente
compartilhados. Como afirma Debray:

Inscreve-se em cada período histórico um inconsciente visual que de-


termina os cânones da representação figurativa. As representações so-
ciais estariam introjetadas nos códigos imagéticos que predominariam
por longas gerações, sobreposições, sucessões, em um revezamento
cuja compreensão demandaria uma periodização com o concurso de
múltiplos tempos. (DEBRAY, 1993, p. 91)

Se Pastore parecia ambicionar o circuito italiano, seu material vi-


sual teve outro desdobramento, quando incorporado ao acervo do Instituto
Moreira Salles. As imagens abandonaram a sua condição de fotos guardadas,
ganhando enfim vida pública após 1997, momento em que assumiram o
seu lugar social, tornando-se um fenômeno não mais dos anos de 1910. Os
novos sentidos ativados colocaram Pastore como fotógrafo da cidade, com
suas fotos sendo submetidas aos novos arranjos históricos firmados no tempo
presente, formador de discursos representativos do passado, a partir de novos
agenciamentos, que sustentam o trânsito das imagens em novas apropriações
que quase sempre levam a transcender a própria referência. Falar de Pastore
é tratar das dimensões múltiplas da fotografia, entendida no plural, nos ca-
minhos que aproximavam Brasil e Itália, na interface de uma trama que faz
crescer a sua intrínseca ambigüidade.

8
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8
31

32
4
COMUNICAÇÕES

Entre a Arte Feminista e o Dicionário do lar, uma ancoragem metodológica


para a crítica
SILVIA AMÉLIA NOGUEIRA DE SOUZA1

Resumo
Dada a interdependência entre arte e vida como argumento central na produção da arte feminista dos anos
1970, o corpo generificado é utilizado como meio e suporte para a realização de obras de arte, na ressignifica-
ção do signo feminino. Por via da explanação de obras das artistas Rosângela Rennó, Hannah Wilke e Martha
Rosler realiza-se o estudo comparado da arte de cunho feminista com a representação codificada pelo manual
Dicionário do Lar, escrito para mulheres nos anos 1950-60 no Brasil. Entre o estranhamento e a identificação,
a arte feminista, desconstrói o padrão tradicional de mulher, ancorada pelo mesmo modelo.

Palavras-chave
Arte; feminismo; mulher; domesticidade; gênero.

Precisarei começar pela vida. Do rebento nasceu uma menina. Ela, 1 Artista visual e professora de Arte/
Audiovisual do Centro Pedagógico/UFMG,
mãe da mudança na vida da mãe. Eu. Quando a mudança chegou, me vi licenciada em Educação Artística/UEMG
(2001) e mestre pela EBA/UFMG (2011). Inicia
como a escultura da grande aranha de Louise Bourgeois: com oito patas sin- sua carreira artística em 2002, centrada
cronizadas, a ordenar movimentos simultâneos para que pudesse me loco- em questões relativas ao espaço público, a
memória urbana e nas relações entre texto/
mover e proteger a cria. Lecionar, cuidar da casa, da criança, trabalhar como imagem, sob a assinatura de Sylvia Amélia.
Desde 2010 suas pesquisas teóricas e
artista e pesquisadora. Seria possível o ato criador/produtor continuar a artísticas se debruçam sobre relações entre
arte, gênero e domesticidade.
existir e se sustentar na vida da mãe, entre as exigências do trabalho fora de
casa e as necessidades vitais do morar, comer e cuidar?
Em meio a muitas dúvidas sobre a recente vida de mãe solteira en-
contrei debaixo da pia, da casa nova para onde me mudei com minha filha
recém nascida, um manual de vida doméstica, deixado pelo antigo mora-
dor, endereçado às mulheres: o Dicionário do Lar. Editado entre as décadas
de 1950 e 1960, no Brasil, o livro “se destina a uma finalidade: a de bem
servir ao lar e, sobretudo, à dona de casa, a quem cabe tantas responsabili-
dades.” (SANTOS, p. 10, 1966)
O hiato temporal entre a vida da mulher prescrita no livro encon-
trado e a minha recente experiência de vida inquietou-me. Ocupando os
espaços do pensamento, o Dicionário do Lar reconduziu minha produção
artística e teórica a um estado investigativo das relações entre a vida e a arte
produzida por mulheres. Assim, o caminho traçado pelo texto a seguir é um
recorte da minha dissertação de mestrado e fará um breve estudo compa-
rado entre obras de Rosangela Rennó, Martha Rosler e Hanna Wilke com
verbetes do Dicionário do Lar.
As recentes pesquisas no campo da antropologia social e os estudos

8
33
feministas atuais demonstram que as identidades de gênero são mais instá-
veis do que se supunha há 60 anos atrás. A crítica feminista contemporânea,
a tomar como exemplo as reflexões da pensadora Judith Butler questiona e
desestabiliza até mesmo a noção de sexo como categoria natural, ao localizar
“os modos pelos quais o sexo e a sexualidade são discursivamente constru-
ídos ao longo do tempo e das culturas” (BUTLER, 2012, p.18). Como
afirmou Donna Haraway, em 1987:

Tornou-se mais difícil designar o feminismo por meio de um único


adjetivo – ou até mesmo insistir em cada circunstância do próprio
substantivo. É aguda a consciência de exclusão através do ato de no-
mear. As entidades parecem contraditórias, parciais e estratégicas.
Com o sofrido reconhecimento de sua constituição social e histórica,
as categorias de gênero, raça e classe não podem fornecer a base para a
crença na unidade “essencial”. Não há absolutamente nada a respeito
do ser “mulher” que aglutine naturalmente todas as mulheres. Não
há nem mesmo este estado de “ser” mulher que é em si uma catego-
ria altamente complexa, construída nos discursos científicos sexuais
e em outras práticas sociais. A consciência de gênero, raça e classe é
uma conquista que nos foi imposta por meio da terrível experiência
histórica das realidades sociais contraditórias do patriarcado, do colo-
nialismo e do capitalismo. (HARAWAY, 1994, p. 250)

Se a arte feminista estava pautada negação de um modelo estável e


tradicional de mulher, cuja história e destino estavam previstos e seu lugar
social determinado, para que ela cumprisse o papel de mãe, esposa e dona
de casa, o que não faz da arte feminista também ser um modelo?

Fig. 1 – Verbete do Dicionário do Lar,1966, vol. SAB- WAP, p.1188.

Pelo Dicionário do Lar encontramos a projeção da mulher “ideal”


como uma mulher “normal”, e torna-se evidente que a voz feminina, si-
lenciada através dos tempos, estava ligada a um cotidiano imediato, a uma
história invisível, da qual não se conta nem se escreve, uma história que se
faz e refaz a cada dia. Como nos apresenta Luce Giard:

34 8
Neste nível de invisibilidade social, neste grau de não reconhecimento
cultural, coube há muito tempo e ainda cabe, como de direito, um
lugar às mulheres, uma vez que, em geral, não se dá qualquer atenção
às suas ocupações cotidianas: é preciso que “essas coisas” sejam feitas,
portanto alguém tem que fazê-las; de preferência será uma mulher,
outrora era uma “criada para todo o serviço.” (GIARD, 1996, p.217).

Esse horizonte de invisibilidade foi problematizado pelo Movimento


Feminista e de luta por direitos civis da década de 1970 e por meio de obras
de arte que se serviram do lugar ocupado pela mulher na sociedade, para en-
tão afirmarem que, o que é “pessoal é político”2. (BROUDE;GARRARD, 2 “The personal is political”, slogan do
feminismo nos anos 1970.
1992, p.12).
Com o aparecimento de novos meios de expressão e comunicação, a
partir da década de 1960, interessa a uma parcela das artistas deste período
explorar meios e materiais até então pouco explorados na arte, e dar um
sentido político à sua produção, pois, se o cânone artístico se fez na ênfase
de qualidades culturalmente masculinas, em meios tradicionalmente mas-
culinos (TVARDOVSKAS, 2008, p.3) havia o argumento de que a explo-
ração de novas mídias desvinculava-as de uma tradição da qual já estavam
historicamente excluídas. Em estratégias de empoderamento pelas imagens
– seja na imagem representada, seja como autoras e protagonistas de seus
próprios trabalhos – os papéis exclusivamente femininos são repensados.

Um manual para a mulher modelo

O Dicionário do Lar é uma coleção encadernada em cinco volu-


mes, editado em São Paulo entre 1956 e 1967. É um manual escrito sob a
forma de verbetes, que conforma-se como uma “colagem” por conter estilos
diversos, cujo intuito seria o de fornecer o maior número de informações
necessárias e úteis à mulher.
A edição analisada é de 1966 (11ª edição), cuja coleção possui 1283
páginas entre textos e imagens. Em entrevista cedida por Nádia Llhullier
Santos, filha do editor, herdeira do espólio da editora Logos, descobrimos
que o Dicionário do Lar foi escrito por um homem, Mário Ferreira Santos,
seu pai, e por uma mulher, esposa de Mário, sua mãe, Hollanda Llhullier.
Os verbetes eram copiados de fontes diversas pelas filhas Nádia e Yollanda.
Alguns verbetes, como os de autoajuda, foram escritos por Mário Ferreira
Santos – 75 páginas do verbete VITÓRIA – enquanto as normas de edu-
cação, quando não compiladas de outras publicações, foram escritas por
3 A Livraria e Editora LOGOS foi fundada
Hollanda. A tiragem da primeira edição foi de 10.000 exemplares e as se- em 1950 por Mário Ferreira do Santos com
guintes de 5.000 exemplares3. Foram impressas 18 edições em 11 anos de o intuito de publicar livros de filosofia e
oratória: “A ideia de escrever esses livros
publicação. A editora possuía 60 vendedores, entre homens e mulheres, e os ganhou forma quando um grupo de suas
alunas, vindas de famílias da alta sociedade
livros eram vendidos de porta em porta, por todo o Brasil. paulistana, resolveu financiar o projeto e, em
pouco tempo, foi criada a editora e livraria
A análise e classificação dos verbetes do Dicionário do Lar revela pela Logos.”
recorrência o que constitui o horizonte de ocupação da mulher narrada, e In: http://illuminado.wordpress.
com/2010/04/20/filosofia-concreta-mario-
identifica para onde seus esforços e atenções mais e menos se dirigem: ferreira-dos-santos/ 10 de agosto de 2010.

8
35
Assunto Vol. 1 Vol. 2 Vol. 3 Vol. 4 Vol. 5
ABA- CAR- GAB- PEI- SAB- TOTAL
CAP FUN PEG RUI WAF
Receitas (comida e bebidas), Informações 388 497 410 350 389 2034
alimentares e preparos

Limpeza, manutenção, organização, conservação 58 65 163 61 76 530


da casa, de roupas e tirar manchas

Tirar manchas (somente) 12 14 40 9 32 107


Beleza: normas, receitas e cuidados com o corpo 238 24 11 25 5 303
Crianças 3 – – 196 1 200
Boas maneiras, normas sociais, “como servir”, 48 57 37 19 27 188
educação para a sociedade, casamento

Saúde, alertas, primeiros socorros, medicina 23 25 22 11 18 99


caseira, “como evitar acidentes
Decoração, mobiliário e interiores 4 34 6 8 – 52
Conhecimentos gerais e curiosidades 10 9 6 1 8 34
Autoajuda e “higiene mental”(Nota para o verbete – 1 2 1 27 31
VITÓRIA, com 75 páginas)

Economia doméstica (reaproveitamento) – 8 10 4 2 24


Ilustrações 60 36 50 41 22 212

Fig. 1. Tabela de quantificação dos verbetes por assunto revisada e corrigida em 2014.

Importa enfatizar que a mulher descrita no Dicionário do Lar é uma


representação, ela não existe como sujeito mas como produção de subje-
tividade. É o retrato do que se projeta mulher brasileira, de classe média,
criada sob um regime educacional conservador e orientada para cumprir o
seu “destino feminino”.
Ser mulher pressupunha uma determinação externa à sua vontade, e
o mundo exterior lhe seria permitido desde que soubesse se apresentar, se
comportar, conhecesse os códigos e gestos permitidos.

Fig. 2. Verbete do Dicionário do Lar,1966,


vol. ABA-CAP, p.45.

36 8
O Dicionário do Lar, como tantos outros hebdomadários direciona-
dos a instrução masculina e feminina, forneceria a chave de acesso a um vo-
cabulário corporal decifrado, de alto grau de exigência física, detalhamento
e investimento do corpo e da mente, para caber na normalidade.
Das distintas acepções que o termo arte/vida pode elucidar, quando
nos dirigirmos a produção de arte feminista, dos anos 1960-70, é distintiva
àquela que se refere ao uso do corpo como suporte, encarnado como campo
de poder, estratégica discursiva e veículo político. Foi por meio do corpo
que mulheres artistas puderam subverter, não somente o que até então se
estabelecia como arte (LAVIGNE, 2013, p.82), como, entre outras coisas,
insurgir contra a naturalização dos papéis sociais à elas destinados. Ainda
acerca do corpo, Guacira Lopes Louro irá dizer que:

Nossos corpos constituem-se na referência que ancora, por fim, a


identidade. E, aparentemente, o corpo é inequívoco, evidente por si;
em consequência, esperamos que o corpo dite a identidade, sem ambi-
guidades nem inconstância. Aparentemente se deduz uma identidade
de gênero, sexual ou étnica de “marcas” biológicas; o processo é, no
entanto, muito mais complexo, e essa dedução pode ser (e muitas ve-
zes é) equivocada. Os corpos são significados pela cultura e são, conti-
nuamente, por ela alterados. (LOURO, 2013, p.14).

Nas orientações e instruções sobre como andar, como sentar, como


falar, como cuidar, como se manter bela, como cumprimentar, como existir,
estavam embutidas o jogo da conquista discreta, com o objetivo de conse-
guir um bom casamento.

A Arte e o Casamento
No Dicionário do Lar, os cinco verbetes intitulados CASAMENTO
são apresentados pelo acontecimento cerimonial. O CASAMENTO é defi-
nido para os outros e pelo que ele pode aparentar. Como nos diz o verbete:
“um dos maiores problemas [do casamento] é decidir quem será convi-
dado.” (SANTOS, 1966, Vol. CAR-FUN p. 364).

Fig. 3. Rosangela Rennó, Cerimônia do Adeus,


1997- 2003, série de 40 fotografias digitais

8
37
Em Cerimônia do Adeus, Rosangela Rennó (1962) reúne 40 fotogra-
fias de recém-casados ampliadas pela artista a partir de negativos obtidos em
um estúdio fotográfico em Havana, Cuba, em 1994.
As imagens apresentam-nos 40 casais anônimos registrados no ins-
tante fulgural que os lembrará de que um dia se casaram e que “seriam feli-
zes para sempre”. Em uma reportagem da Revista Cruzeiro, de 1960, citada
por Carla Bassanezi, encontramos a seguinte menção:

[Em uma união feliz] os cônjuges se complementam, porque cada


um tem seu papel naturalmente definido no casamento. E de acordo
com esse papel natural chegamos a acreditar que caiba à mulher maior
parcela na felicidade do casal; porque a natureza dotou especialmente
o espírito feminino de certas qualidades sem as quais nenhuma espé-
cie de sociedade matrimonial poderia sobreviver bem. (BASSANEZI,
2004, p. 627).

Em Cerimônia de Adeus, o título da obra inverte o sentido de co-


meço para o sentido de fim. O começo da vida a dois seria uma despedida?
De que se despedem estes casais? Na obra, o que resta destas histórias per-
didas é a memória de um rito. Segundo Luana Tarvaksovas:
Rennó parece explicitar essa transformação, o enfraquecimento de
um rito que perde sentido, transformando-se em álbuns escurecidos, velha-
rias e fotos esquecidas. Se o casamento, atualmente, adquiriu novas signifi-
cações sociais, a artista não nos permite esquecer do imaginário sólido que o
cerca. São marcas de subjetividade construídas por meio do rito fotográfico,
pois a fotografia, nestes termos, é necessária para a afirmação e prova da
experiência vivida. (TARVAKSOVAS, 2008, p. 183).
Para Simone de Beauvoir, por exemplo, “o princípio do casamento
é obsceno porque transforma em direitos e deveres uma troca que deve
basear-se num impulso espontâneo” (BEAUVOIR, 1975, p.191).
Pelo Dicionário do Lar e pelo O segundo Sexo compreendemos que
o auge da realização feminina da época seria se casar, ter uma casa, cuidar do
marido e dos filhos. O cuidado com a aparência fazia parte de “uma obriga-
ção de cortesia para os demais” tanto quanto uma ocupação delas com elas
mesmas, um prazer ou uma distração.

A toilette tem um duplo caráter: destina-se a manifestar a dignidade


social da mulher (padrão de vida, fortuna, o meio a que pertence),
mas ao mesmo tempo concretiza o narcisismo feminino (...) Cuidar
de sua beleza, arranjar-se, é uma espécie de trabalho que lhe permite
apropriar-se de sua pessoa como se apropria do lar pelo seu trabalho
caseiro. (BEAUVOIR, 1975, p.165).

O cuidado e a manutenção e beleza se fundamentam também na


prerrogativa de que se mantendo atraente, o marido não buscará “fora o
que tem em casa”. A bela e prendada esposa seria um importante capital
simbólico do homem (D’INCAO, 2004, p. 230).

A arte e a manutenção da beleza


O Dicionário do Lar apresenta um extenso verbete intitulado

38 8
BELEZA, a prescrever práticas corporais para aliviar a fadiga e as dores do
corpo, com diversos verbetes direcionados à modelagem “estética” e ainda,
conselhos comportamentais e saúde.
Na arte feminista, a exploração de temáticas e “formas femininas”
anunciam muitas vezes uma estética sexualizada, abastecida por proces-
sos culturais e corporais particulares. Assuntos ligados a sexualidade, que
não são sequer mencionados no Dicionário do Lar, proliferam-se na arte.
Segundo Michel Foucault a repressão:

funciona, decerto, como condenação ao desaparecimento, mas tam-


bém como injunção ao silêncio, afirmação de inexistência e, conse-
quentemente, constatação de que, em tudo isso, não há nada para
dizer, nem para ver, nem para saber. (FOUCAULT, 1988, p.10).

Dada a possibilidade de falar sobre sexualidade, artistas feministas


rompem a barreira da repressão.

Fig. 4. Hannah Wilke, GESTURES,


1974, Vídeo, 32 min. Frames do vídeo.

Na obra de Hannah Wilke (1940 – 1991) o corpo como objeto da


beleza e do desejo é questão chave em seu trabalho. Em Gestures (1974) e
Intravênus (1992-93), a questão da feminilidade aparece, sob duas formas:
na validação do feminino como um corpo sexualmente desejável e dese-
jante, e na desestabilização da beleza pelo corpo fragilizado, doente, em
estado de padecimento.
Gestures é um vídeo retrato de 32 minutos, que se estrutura em 3
momentos, separados por telas pretas, centrado na preparação dos gestos de
sedução feminina. No primeiro momento, a artista demonstra em exercí-
cios de massagem sobre a face, uma ginástica das expressões explorada pelas
mãos. A câmera parece assumir a característica de um espelho diante da
qual ela se exercita olhando para si mesma. No segundo momento, a mas-
sagem facial se mescla a encenação de gestos de sedução. Vemos a femme
fatale na demonstração de poses, trejeitos, caretas e cacoetes. A câmera pa-
rece assumir o papel de uma janela através da qual ela é vista. No terceiro
momento, o plano se fecha e a língua da artista executa movimentos circu-
lares, de entrada e saída da boca, em uma erotização dos gestos. Os cortes

8
39
em tela escura, que sugerem lapsos de tempo, evidenciam a marcação de
variações sobre os mesmos gestos. Sob a crítica de narcísica, a obra da artista
é capaz de explicitar a ambiguidade que a beleza e desejo acarretam na vida
da mulher.
Jo Anna Isaak considera que no póstumo Intravenus (1992-93), a
artista “consegue exemplificar bem o destino da “femme fatale” e elucidar
o que se entende por "atitudes éticas" da mulher que não cede o seu de-
sejo" (ISAAK, 1996, p. 223). A obra é composta por treze fotografias que
Hannah Wilke fez de si nos seus últimos anos de vida, vítima de um câncer
linfático. Assim:

Seu exibicionismo e humor sarcástico, jogam com seu último papel - o


de velha grotesca morrer. Careca, nua, inchada, marcada por quimio-
terapia e tratamentos da medula dos ossos, agarrado a tubos, Wilke
assume todo o conjunto de poses estereotipadas que ela sempre assu-
miu. (ISAAK, 1996, p. 223).

Dentre os tópicos mais abordados pelo Dicionário do Lar, o lugar da


BELEZA sobressalta-se dos demais e apresenta-se como questão atualíssima
na sociedade de hoje. As forças econômicas que vigoram em um sistema ca-
pitalista avançado, tais como a indústria de cosméticos, a medicina contem-
porânea, a mídia, entre outras instâncias sociais, políticas e culturais, com-
plexificam a análise da mulher na era áurea da indústria da beleza. Se o trato
da aparência feminina continua sendo uma “obrigação dela com ela e para
com os demais”, atributo da beleza tanto se refere diretamente à imagem
que se espera que a mulher projete ao mundo, quanto é assimilada como
um atributo de poder, do qual as mulheres não pretendem se despojar.

A arte e a cozinha
Ao escolher a cozinha como espaço para protagonizar o emblemático
Semiotics of the Kitchen (1975), a artista Martha Rosler (1943) nos apre-
senta um vídeo em preto e branco, de sete minutos de duração, onde não
vemos alimentos a se preparar.

Fig. 5. Martha Rosler, Semiotics of The Kitchen, 1975.


Vídeo, 6 min.

40 8
Diante da câmera os instrumentos de trabalho doméstico são apre-
sentados em ordem alfabética: a artista pronuncia seus nomes e demonstra
como utilizá-los. Seu gesto é desnaturalizado, monótono, repetitivo, quase
mecânico. Como contraponto ao gestual de Martha Rosler, citaremos a
autora Luce Giard, em sua minuciosa descrição do gesto que perdeu sua
necessidade e sentido:

Se o gesto vier a perder sua utilidade – quer porque o termo da cadeia


operatória já não parece interessar, ou porque aparece um processo
mais econômico em tempo, energia, habilidade ou provisão – perderá
também seu sentido e necessidade. Em breve não subsistirá mais a não
ser sob uma forma irônica, até certo ponto ilegível, antes de se tornar
o testemunho mudo e insignificante de uma cultura material defunta
e de um antigo simbolismo, (...) a submergir lentamente no oceano
obscuro das práticas que caíram no esquecimento. (GIARD, 1996,
p.273).

Pelo título “Semiótica da Cozinha”, percebemos na performance de


Rosler, que ser mulher pressupõe gestos, modos e objetos codificados, e que
será através desses que a artista fará ressonar o encarceramento identitário
da mulher limitado ao espaço da casa.
Ao utilizar o alfabeto como guia fílmico, a performer/artista força a
elaboração do sentido de sua ação para que ele caiba no abecedário, repre-
sentando as letras que não figuram objetos mas gestos que as expressam – o
U, V, X, W e o Z – com golpes de faca desenhados no ar. Seu gesto impre-
visto quebra o que é esperado na inserção do código simbólico no alfabeto
da cozinha, e aponta formas de escape ao modelo de mulher apresentado,
pela ressignificação da identificação que não cabe nos objetos domésticos.
Se a casa precisa estar limpa e arrumada, essa tarefa diz antes das
ações que precisam se repetir do que se inventar. Na cozinha, não. Comer
todos os dias a mesma comida pode ser uma necessidade, mas dificilmente
será um desejo. Comer também começa fora de casa. Ir ao mercado, sele-
cionar os alimentos, escolher o cardápio, preparar, servir.

Fig. 6. Verbete do Dicionário do


Lar, 1966, vol. CAR FUN, p.
408.

Ao determinar o necessário para compor uma cozinha, a lista apre-


sentada no Dicionário do Lar espelha uma deformação com a lista de Rosler.

8
41
Imprescindíveis em ambas, os objetos necessários na cozinha confirmam-se
pelo Dicionário do Lar como necessidade que pode variar sobre itens da
mesma natureza. Em Semiotics of the Kitchen, os objetos se potencializam
como incapazes de circunscrever a identidade e a linguagem da mulher. Na
voz da artista, em seu vocabulário contido, basta-lhe dizer os nomes das
coisas e as letras para as quais que existe objetos.
No artigo de Luce Giard sobre as “Artes do Fazer, cozinhar” há o
esforço em recuperar o que foi perdido entre a necessidade feminista de
negar seu papel na cozinha e a tradicional incumbência feminina no trato
culinário. Cozinhar é apenas uma das histórias que podem ser escritas pelos
gestos das mulheres. Na cozinha de Rosler há uma insurgência. Na cozinha
do Dicionário não existe esta saída, a mulher precisa cozinhar, ou ao menos
dirigir a cozinha. Na cozinha descrita por Luce Giard, fazeres cotidianos
como o cozinhar implicam em saberes, não determinados pelo sexo; mesmo
que como obrigação estes ainda estejam concentrados nas mãos delas, os se-
gredos e a alquimia no preparo dos alimentos não é um privilégio feminino.
Sob uma perspectiva feminista, não haveria qualquer contradição entre as
três cozinhas pois as relações que elas estabelecem decorrem de processos
históricos, culturais e políticos, não excludentes.

Considerações Finais
Hoje, se muitas foram as mudanças, as tarefas aumentaram junto
com o aumento da autonomia da mulher. Os índices diários de violência
contra mulheres ainda são brutais e a intervenção estatal e social no corpo
feminino ainda está longe de ser discutida de forma laica e esclarecida no
Brasil.
Na impressão de totalidade que o Dicionário do Lar transmite, ao
não abordar assuntos considerados tabus na época, ele explicita o lugar do
silêncio marcado na história das mulheres. Contudo, importa dizer que o
dicionário possibilita o acesso aos códigos, meios e modos de aceitação de
ser mulher na sociedade vigente. Escrito e divulgado nas duas décadas que
antecedem a Revolução Feminista, o manual parece exemplificar uma úl-
tima tentativa de controle da subjetividade e da identidade feminina.
Assim, quando estamos diante das obras feministas de Rosangela
Rennó, Martha Rosler e Hanna Wilke, acessamos a uma outra produção de
significação sobre a vida das mulheres, talvez mais aproximada, mais real,
sobretudo por que as obras evidenciam os conflitos e assujeitamentos, que
estavam maquiados ou escondidos.
É intrigante constatar que, será a “mulher hipotética”, ou a “mulher
idealizada”, encontrada no Dicionário do Lar, o ponto comum entre obras
de arte e escritos de mulheres do século XX, que viveram em espaços e tem-
pos distintos, tais como Virgínia Wolf, Simone de Beauvoir, Martha Rosler
ou Rosangela Rennó.
Pelo método comparativo, dialético, tracei conexões ciente do limite
que esta abordagem metodológica acarreta. Porém, este método possibili-
tou o acesso a uma história que está se fazendo e foi capaz de apontar como
o modelo de mulher foi subvertido pela linguagem da arte.
A dizer sobre a arte feminista hoje, primeiramente é necessário des-

42 8
colar a produção feminista do sexo feminino, sob o argumento de que se
nossas identidades não são fixas, porque esperar que somente mulheres pro-
duzam obras feministas? A des-identificação da obra de arte com o sexo/
gênero da/do artista se funda no princípio da liberdade dado a/ao artista,
para que este/esta escolha suas próprias estratégias discursivas, cuja questão
de gênero, assumidas, ou não, constrangidas ou não, se apresenta apenas
como uma das abordagens possíveis.
Ser uma artista mulher e não produzir obras feministas pode ser uma
questão feminista, na medida em que a produção artística não deve se fixar
em categorias de sexo, gênero, classe ou raça por mais que “pertencer” a
uma destas categorias, possa inferir tanto na escolha política do/a artista
quanto facilitar ou dificultar o percurso da/o artista. Esclareço, não pelas
identificações sociais dos sujeitos em si, mas pela implicações históricas e
políticas que delineia a condição de vida das “minorias”.
Ainda é necessário considerar que a problemática de sexo e gênero,
na arte, não está ultrapassada ou vencida, a indagar: o que interpela o femi-
nismo e a arte feminista hoje?

Fig. 7. Verbete do Dicionário do Lar,


1966, vol. CAR FUN, p. 368.

CAVALOS DESENFREADO é o verbete onde encontramos uma


prescrição que escapa às regras do manual. Em uma atitude singular, lemos
a imagem de uma mulher que precisa domar um animal desenfreado, por
uma atitude aguerrida, aventurosa, além da destacada advertência de que
no lugar da mocinha em perigo, ela não seria salva.

8
43
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Linda Nochlin e Griselda Pollock. VII - ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE,
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8
45

46
4
COMUNICAÇÕES

Cópia e paródia: práticas de si na arte contemporânea de mulheres e crítica


feminista à História da Arte
LUANA SATURNINO TVARDOVSKAS1

Resumo
Esse artigo discute algumas práticas presentes na produção visual de artistas contemporâneas como Nicola Costantino
(Argentina), Cindy Sherman (EUA) e Cristina Salgado (Brasil), pensando-as como intervenções críticas feministas nos
discursos tradicionais sobre a História da Arte. A cópia e a paródia – enquanto escolhas políticas, éticas e estéticas – serão
problematizadas como táticas de desconstrução de gênero e, ao mesmo tempo, como denúncias de uma discursividade
hegemônica dessa disciplina. Pretende-se, dessa forma, pensá-las a partir de Michel Foucault como práticas de si, na medida
em que permitem a elaboração de subjetividades femininas críticas dos estereótipos misóginos da cultura e afirmativas da
liberdade.

Palavras-chave
Crítica feminista da arte; mulheres artistas contemporâneas; cópia e paródia.

problematizando a originalidade artística

Ao consenso da cultura se opõe a coragem da arte em sua verdade bárbara.


Michel Foucault, A coragem da verdade, 2011.

No Brasil, a produção artística de mulheres vem sendo recentemente


explorada em suas especificidades de gênero. No entanto, ainda há um grande
percurso a se avançar em termos de uma análise de suas táticas e estratégias fe-
ministas. Não sendo eu uma crítica de arte, mas uma pesquisadora feminista,
pretendo discutir a temática da originalidade artística propondo algumas pos-
sibilidades de leitura de obras das artistas contemporâneas Cindy Sherman
(1954, Glen Ridge, EUA), Cristina Salgado (1957, Rio de Janeiro, Brasil) e
Nicola Costantino (1967, Rosário, Argentina), observando-as em contraste
com os discursos hegemônicos da disciplina História da Arte e do próprio
patriarcado por meio de imagens paródicas, de cópias e repetições.
As concepções de originalidade e de genialidade embasaram grande
parte da literatura sobre arte no século XX, numa estratégia que afastou as
mulheres do espaço de reconhecimento e valor da arte. Mais do que denun- 1 Luana Saturnino Tvardovskas possui
ciar as causas dessa exclusão ou mesmo incorporar nomes ao inventário da doutorado em História Cultural pela
UNICAMP com a tese Dramatização dos
disciplina, historiadoras feministas como Griselda Pollock refletem sobre as corpos: arte contemporânea de mulheres no
Brasil e na Argentina (2013), onde também
configurações simbólicas, históricas e políticas que constituíram, no mundo realizou sua graduação e mestrado em
História. Pesquisa e escreve sobre a produção
moderno, uma separação estrutural entre o feminino e a arte. Não se almeja de mulheres artistas, crítica feminista da
aqui, contudo, a construção de uma História da Arte feminista, visto que esse arte e a constituição das subjetividades.
Atualmente, desenvolve um pós-doutorado
é um anseio totalizante que não contempla a multiplicidade das inscrições no IFCH, Unicamp (FAPESP).

8
47
femininas presentes na arte contemporânea ou a diversidade das experiências
de mulheres artistas em outros tempos históricos (POLLOCK, 2007, p. 143).
Se essa parece ser uma ambiguidade, o que ela pode nos revelar, se-
gundo Pollock, é que a busca por sanar os silenciamentos e vazios deixados
pela História da Arte canônica não pôde realmente fazer com que o trabalho
cultural das mulheres se tornasse uma presença ativa em nosso imaginário.
O que nos compete, assim, é a formulação de reflexões e pesquisas que pos-
sam transformar a ordem do discurso, como problematizou Michel Foucault
buscando erodir as hierarquias de gênero, em movimentos desconstrutivos
(FOUCAULT, 1996a, p. 22).
Há que se distinguir, inicialmente, que os feminismos possuem já uma
longuíssima elaboração teórica, não se restringindo às caracterizações por ve-
zes repletas de prejuízos e temores pautados em estereótipos sociais. A história
das mulheres, advinda da reivindicação pela memória – perante o silencia-
mento e desconhecimento acerca dos temas e das problemáticas femininas – é
um dos aspectos desse movimento. O que as vozes e as experiências das mu-
lheres, historicamente menosprezadas, ignoradas em livros, cânones e com-
pêndios teriam a nos dizer? Nesse processo, revisitar as artistas do passado ad-
quiriu relevância, sobretudo nos EUA e na Europa a partir dos anos de 1970,
juntamente com a ebulição dos feminismos e da contracultura. Notou-se – o
que para nós hoje já pode parecer óbvio – que as mulheres não estavam pre-
sentes nos centros de poder e de visibilidade de sua época, assim como não
tinham o mesmo prestígio social e histórico. Anônimas, elas não faziam parte
da memória social, não tinham os mesmos incentivos para o estudo e não
eram, de fato, consideradas capazes de grandes feitos ou obras-primas. Nesse
cenário, o corpo feminino, espaço de resistência feminista por excelência, pas-
sou a ser utilizado como um lugar de insubordinação e de ruptura por muitas
mulheres artistas contemporâneas, como indicou Norma Telles:

O elemento subversivo nas últimas décadas não tem sido a denún-


cia de injustiças sociais contra as mulheres, mas o rompimento do
sistema de representação dominante. “Todos/as podemos ser outro/a
(Collado:1999:79)”. As artistas se aproveitam da ideia de maleabili-
dade feminina para tornar evidente a falácia de um corpo inato, bio-
lógico, suporte instintivo de um gênero indistinto. O corpo instável
oferece oportunidade de novas aberturas, novas identificações, novos
prazeres. Ideias elaboradas durante todo um século e que se projetam
para o novo milênio. (TELLES, 2006)

Qual a importância de compreendermos as obras de arte de mulheres


dentro dessa perspectiva? Valeria pensarmos, em diálogo com Foucault, em
como essas artistas criam um tipo de pensamento crítico em que provocam,
diagnosticam e procuram transfigurar o presente. Nesse movimento, transfi-
guram também a si mesmas, por meio de práticas de si poéticas e criativas, ce-
lebrando “(...) the power of images to disclose new possibilities of relating to others
and ourselves” (TANKE, 2009, p. 161). Nossa atualidade, constituída por
relações de poder, seja de gênero, raça, classe social etc., nutre essas produ-
ções e nelas reverbera, mas, em contrapartida, a arte é espaço de produção de
discursos, de afetos e de rupturas subjetivas, agenciando-se continuamente.

48 8
Como afirmaram Norma Broude e Marry D. Garrard, uma das críticas fun-
damentais nas décadas mais recentes “has been the notion of gendered subjecti-
vity – the idea that every artist or writer responds to the world and represents it in
artistic constructions, consciously or unconsciously, from the position of gendered
experience”. (BROUDE e GARRARD, 2005, p. 03)
Para Julia Kristeva, a arte pode ser pensada como um meio privilegiado
de revolucionar o campo simbólico e social, na medida em que transforma a
ordem dos significados, fazendo com que novas concatenações de significan-
tes e de relações subjetivas sejam possíveis por meio dela (KRISTEVA apud
POLLOCK, 2007, p. 152). Foucault também afirma essa vinculação ética
entre arte e vida em sua já consagrada questão “Why should a painter work if
he is not transformed by his own painting?”, indicando a relação entre a consti-
tuição das subjetividades e os atos de criação (FOUCAULT, 1996b, p. 379).
O que é a arte e como nos relacionamos com ela são aspectos que se
transformam social e historicamente e, no entanto, o discurso hegemônico
sobre a arte reafirma que ela é eterna e única, sendo aquilo que não se dete-
riora e portadora de uma aura metafísica. Ela atualiza-se, o que significa que
diferentes épocas podem reconhecê-la como objeto de valor e apreço, mas não
necessariamente pelos mesmos padrões ou características. Tampouco se pode
dizer que apenas a qualidade e o valor artístico são necessários para que uma
obra de arte e um artista se transformem, respectivamente, em uma obra-
-prima e num gênio canônico. Ser um mestre, no sentido do imaginário e do
status quo, refere-se a criar obras verdadeiramente únicas e por meio das quais
o humano atinge uma experiência elevada de contemplação e sublimação.
Para a Idade Média, no entanto, a arte assumia outras concepções e o
artista representava um imaginário já definido pela argumentação religiosa
ou mítica, sem propriamente dedicar-se à originalidade. A concepção e no-
ção modernas de arte estão fortemente vinculadas ao final do século XVIII
e início do XIX, ao fortalecimento da figura do autor e do artista individual
(FOUCAULT, 1992). E não é verdade que consideramos, hoje ainda, que
o artista necessita expressar sua genialidade, criando obras imortais? Quem
realmente quer ser imortal? (talvez, perante o mercado de megacolecionado-
res, poderíamos reformular a atualidade dessa questão para “quem quer ser
milionário”?) A quem importa isso?
O anseio por originalidade perdura em nossos discursos acadêmicos
e culturais e é urgente pensarmos os cânones como uma “estratégia discur-
siva na produção e reprodução da diferença sexual”, nas palavras de Pollock
(2007, p. 145). O que se acaba por ocultar, aí, é o infinito jogo de repetições,
reproduções, releituras, referências e cópias constituinte de cada trabalho de
criação, em nome de um valor, seja esse simbólico, cultural ou mesmo finan-
ceiro. Se hoje, sobretudo a partir do modernismo, muitos artistas explicita-
ram e renegociaram tais postulados, não podemos ignorar que grande parte
da produção acadêmica sobre a História da Arte segue sublinhando a suposta
originalidade como um valor intrínseco da arte, elencando e hierarquizando
artistas e suas produções. Para Pollock:

Por lo tanto, no hay manera de, ni tiene sentido, “añadir mujeres al


canon”. Existen, no obstante, modos productivos y transgresivos de

8
49
releer el canon y los deseos que representa; de hacer lecturas decons-
tructivas de la formación disciplinaria que establece y mantiene bajo
vigilancia el canon; de cuestionar las inscripciones de femineidad en
la obra de artistas viviendo y trabajando bajo el signo de la Mujer, que
se formaron en femineidades histórica y culturalmente específicas. Y
finalmente existen modos de cuestionar nuestros propios textos por
los deseos que inscriben, por la apuesta que simulamos contando his-
torias de nuestros egos ideales: las artistas que nos llegan a fascinar y
que necesitamos que nos fascinen para encontrar un espacio cultural
y una identificación para nosotras mismas, un modo de articularnos a
nosotras mismas – para crear una diferencias en los sistemas actuales
que manejan la diferencia sexual como una negación de nuestra hu-
manidad, creatividad y seguridad. (POLLOCK, 2007, p. 156)

Utilizar a criatividade é saber-se livre, mas não propriamente genial – e


isso as mulheres artistas parecem ter afirmado em diferentes épocas históricas,
pois estiveram continuamente envolvidas nas Belas Artes, seja como artistas,
espectadoras, patronas ou curadoras (BROUDE e GARRARD, 2005, p. 3).
O rosto, o nome, o autor poderiam ser abandonados, para que pudéssemos
nos lançar a novos relampejos imaginativos, como postularam Foucault e
Barthes (POLLOCK, 2001, p. 11). O novo tido como o potencial de in-
venção não é o mesmo que ser original. É possível gerar o novo, ainda que
explicitemos as cópias e referências às quais recorremos?
Esse processo assemelha-se a um método arqueológico, se pensarmos
no sentido foucaultiano de genealogia da História, em que não são buscadas
as “verdadeiras” origens límpidas e nobres, mas são explicitados os embates e
lutas existentes nos começos. A genealogia é cinza, diz Foucault, e está mar-
cada pelo calor das disputas pelo poder:

(...) ela é meticulosa e pacientemente documentária. Ela trabalha com


pergaminhos embaralhados, riscados, várias vezes reescritos” e “o que
se encontra no começo histórico das coisas não é a identidade preser-
vada da origem – é a discórdia entre as coisas, é o disparate” (FOU-
CAULT, 1978, pp. 15-37).

Isso sugere que precisamos nos despir de nossas pretensas valorações


e jogos de poder em busca do original, passando a buscar na arte aquilo que
irrompe com a ordem estabelecida, que faz vibrar, ranger as estruturas, que
refrata o já conhecido em inúmeros flashes não vivenciados.
Essa “vontade de originalidade” configura-se como certa vontade de
poder, o que não significa que os artistas considerados geniais e originais
devam ser abandonados. Mas há que se pensar nas práticas históricas que
os fizeram ocupar um lugar dentro do discurso canônico, por meio de uma
narrativa reproduzida, na qual o artista cumpre certos requisitos específicos,
completando uma teleologia dentro da História da Arte: ele é incompreen-
dido, ele enxerga coisas não vistas pelos homens comuns, ele é compreendido
unicamente pelos seus pares...
Tocamos, assim, no ponto nodal sobre o qual gostaria de refletir aqui:
o original é criação do indivíduo masculino em nosso Ocidente cristão (e
mesmo mais recentemente, as mulheres criadoras passam ainda despercebidas
aos discursos oficiais e legitimadores). Não é raro identificar nos discursos his-

50 8
tóricos do século XIX, as mulheres artistas tidas como amadoras e certamente
vistas como aquelas incapazes do original e, portanto, devotas da cópia dos
verdadeiros mestres, como mostrou no Brasil a pesquisadora da arte e soció-
loga Ana Paula Simioni (2008). No entanto, para Barbara Godard, o proce-
dimento da imitação é parte constituinte do processo criativo: “For copying
may be a method of learning: at certain times in the history of art and literature,
imitation of, or quotation of classical models has been a highly approved method
of instruction, young artists being encouraged to copy before looking to nature, or
to themselves, for truth” (GODARD, 1987).
Mesmo o trabalho de copistas antes da invenção da imprensa fora res-
peitado e visto como parte constituinte da divulgação do conhecimento lite-
rário, científico e artístico: “Nacida antes de la invención de la imprenta y pro-
longada, incluso cuando los medios mecánicos de reproducción de imágenes fueran
descubiertos en el siglo XIX, esta actividad sigue siendo practicada ampliamente
por pintores y, en gran medida, por mujeres”. (SOFIO, 2008; LEBOVICI,
2008, p. 38). O menosprezo pela cópia, assim, faz parte de uma ordem dis-
cursiva contemporânea, atuante e produtora de hierarquias de longa duração,
não naturais ou a-históricas. Os usos da cópia na arte contemporânea de
mulheres teriam algo a nos dizer? Passarei nas próximas páginas a destacar e
buscar compreender alguns sentidos dessas estratégias de cópia, assim como
da citação e da paródia na produção contemporânea de mulheres, lendo-as
num viés feminista.

refrações

A repetição pertence ao humor e à ironia, sendo por natureza transgressão, exce-


ção, e manifestando sempre uma singularidade contra os particulares submetidos
à lei, um universal contra as generalidades que estabelecem a lei.
Gilles Deleuze, Diferença e Repetição, 2006.

Dentro da historiografia feminista da arte, a paródia tem sido perce-


bida como uma imitação que busca satirizar ou ridicularizar o original, mas
também, como uma imitação complexa, que introduz – explícita ou implici-
tamente – significados dissonantes nas leituras, conformando-se como uma
prática subversiva. A cópia, aqui, tem um sentido de crítica política das bases
estruturantes da História da Arte, pois explicita sua própria estratégia de ser
derivativa, de não poder ser única ou original, já que o espaço de criação das
mulheres não é considerado um lugar real de fala dentro do regime masculino
(IRIGARAY, 2009). Perante o desejo construído de um artista ser único, ori-
ginal ou genial, mulheres artistas tem abandonado essa discursividade, mos-
trando a incapacidade desse lugar de dar resposta à criatividade das mulheres
no mundo ocidental. Para Linda Hutcheon, a paródia é um processo estru-
tural que retoma, repete, reinventa e recontextualiza obras de arte existen-
tes, criando uma distância crítica apresentada como ironia (HUTCHEON,
1985, p. 143). Também afirma ser a paródia uma prática ambivalente, ao
mesmo tempo de imitação e diferença.
Uma das mais importantes fotógrafas contemporâneas, a artista norte-
-americana Cindy Sherman apresenta imagens em que a cópia e a paródia

8
51
adquirem interessantes sentidos feministas. Em um período inicial de sua
produção, como na obra Untitled #488, de 1976 (fig. 1), a colagem de autoi-
magens em preto e branco criava um espelhamento de si em lentíssima trans-
formação. Por meio da repetição de si vestida com minissaia, pernas à mostra,
óculos redondos e sapatos de salto alto, encena uma jovem pouco sensual que
se olha por todos os ângulos em um espelho invisível. Se buscarmos referên-
cias dentro do cânone, poderíamos associar esse sentido de movimento e seus
frames aos estudos fotográficos de Thomas Eakins ou Étienne-Jules Marey,
talvez aos cavalos em trote de Muybridge ou mesmo às capturas cubistas de
Duchamp, em Nu descendo a escada, de 1912. Nesse percurso, no entanto,
talvez percamos de vista que aqui a imagem não ressalta a velocidade ou a
amplitude de um movimento, mas apresenta espectros tão lentos que não nos
geram qualquer sentido óbvio de transformação subjetiva.

Fig. 1. Cindy Sherman, Untitled


#488 (Mini), 1976, fotografias
preto e branco recortadas e
montadas sobre papel, 16 ¼ x 39
¼ inches, Collection of Elizabeth
and Frank Leite, Prescott,
Arizona.

Se pensarmos diferencialmente em como a performance de gênero é


repetida incessantemente até o sentido de realidade se impor como natural,
tal como apresenta Judith Butler, a obra de Sherman adquire um interessante
prisma de crítica cultural (BUTLER, 2003). Como pensar, em uma perspec-
tiva feminista, sobre tais refrações? Em que ordem do discurso elas intervêm?
A repetição, aqui, como estratégia crítica, sugere não a repetição do Mesmo,
do feminino tido como elemento imutável, ligado à natureza. Pensando
com Deleuze na célebre frase de Hume: “a repetição nada muda no objeto
que se repete, mas muda alguma coisa no espírito que a contempla” (apud
DELEUZE, 2006, p. 111), aqui a repetição é causadora de um transtorno
na constituição das subjetividades, perturbando as imagens e autoimagens
estáveis de gênero. Como afirma Catherine Morris a respeito da formação
educacional de Sherman, período de criação dessa obra: “Consciously or not,
making the choice to transform and manipulate her own body as subject has its
roots in the feminist discourse of ideation established by these pioneering artists”
(MORRIS, 2005, pp. 9-10).
Outra colagem, do mesmo período, Untitled #489, apresenta a artista
travestida e atuando como homem. Essa multidão e multiplicação de sua
autoimagem – crítica das padronizações de gênero – aparece em diferentes
obras de sua carreira, em que encena figuras como socialites, palhaços, di-
vas de cinema e obras-primas da História da Arte. A dessubjetivação promo-
vida em seus autorretratos distorcidos, irônicos e paródicos, é destacada por

52 8
Margareth Rago:

Especialmente forte é o contraste do ato de falar de si sem constituir


uma narrativa autobiográfica, de produzir um eu fictício para expres-
sar uma crítica social à identidade feminina e às representações domi-
nantes do corpo feminino, valendo-se do próprio corpo, fazendo de si
mesma a personagem central. Sem visar a um autodesvendamento ou
a uma afirmação de si, ao contrário, dessubjetivando-se e irrealizando-
-se na proliferação de figuras femininas previsíveis e estereotipadas, e
questionando o próprio uso da fotografia como representação fiel da
realidade, Sherman manifesta, pela arte, suas críticas às formas cultu-
rais falocêntricas, e expõe suas próprias interpretações da contempo-
raneidade. Põe em cena as múltiplas maneiras pelas quais as mulheres
são trazidas na cultura, pela mídia, pelas artes visuais ou pelo cinema,
e revela a natureza construída dessas representações (...). Essas imagens
subvertem, produzem deslocamentos, denunciam as prisões identitá-
rias, riem de nós mesmas. (RAGO, 2013)

Valeria recorrer, ainda, a uma artista brasileira, Cristina Salgado, que


questiona ao longo de sua produção as imagens do corpo feminino, dialo-
gando com o surrealismo e com a fragmentação subjetiva acarretada pelo
olhar masculino e patriarcal (TVARDOVSKAS, 2013, p. 153). Em uma série
produzida nos anos de 2006 e 2007, intitulada Carimbo–Londres (fig. 2)2, 2 Para ver a série completa, acessar http://
www.cristinasalgado.com/
Salgado reproduz em um carimbo de tinta simples a imagem da Vênus Pudica,
escultura em mármore romana datada de aproximadamente 100-150 DC,
exposta no British Museum. Salgado utiliza a reprodução sistemática dessa
imagem canônica para produzir vórtices e campos gravitacionais. Contagiam-
nos a ironia e o humor dessas imagens, ao inverter a organicidade estática
da estátua de mármore, imortal e gélida, fazendo-a dançar, trombar consigo
mesma, rodopiar, atravessar paredes, adquirir novos contornos e leituras.

Fig. 2. Cristina Salgado, British Museum,


série Carimbo-Londres, 2006-2007.

O lugar do feminino na arte – como apontaram diferentes pesquisa-


doras feministas – esteve ao lado da musa, daquela que era sempre observada,
mas não agia ou criava, inspirando os artistas homens, silenciosamente. Nas
obras de Salgado, a musa, pasmem, acordou! Multiplicou-se, desdobrou-se –

8
53
como em outras de suas obras: as esculturas em tecido, por mim analisa-
das em outro momento (TVARDOVSKAS, 2013, p. 173). Aqui, Salgado
não produz apenas uma inocente repetição, mas uma paródia do modelo
de feminilidade por excelência, a Vênus Pudica, cuja pose foi retomada por
Botticelli (O nascimento de Vênus, 1483-85) e até Jacques Stella (Vênus, 1640),
tensionando a longa duração desse pathosformel, se pensarmos na proposta
3 Aby Warburg propôs um modelo cultural warburguiana.3
para o estudo da história, “um modelo
fantasmal da história, no qual os tempos já
não se calcavam na transmissão acadêmica
dos saberes, mas se exprimiam por obsessões, a maternidade e a morte
‘sobrevivências’, remanências, reaparições
das formas. (...) O devir das formas deveria
Para teóricas feministas francesas como Rose Braidotti, Luce Irigaray
ser analisado como um conjunto de processos e Kristeva, a feminilidade precisa ser vista enquanto parte de um processo de
tensitivos – tensionados, por exemplo, entre
vontade de identificação e imposição de constituição das subjetividades, o que permite observarmos como as imagens
alteração, purificação e hibridação, normal e
patológico, ordem e caos, traços de evidência formuladas por mulheres na atualidade posicionam-se, muitas vezes, nas mar-
e traços de irreflexão”. (DIDI-HUBERMAN,
2013, p. 25)
gens dos discursos hegemônicos sobre os sexos. Para Kristeva, a Mulher “não
existe”, sendo um lugar instável de posicionamento negativo, muito mais do
que qualquer designação ou demarcação fixa. A referência da feminilidade
está, para ela, construída em oposição ao masculino, como uma perda, uma
exterioridade, que serve ao mesmo tempo como lugar de coesão para a iden-
tidade masculina.
A mulher, tomada como a falta na teoria lacaniana – vista em posição
negativa e sem voz, pois para Lacan, as mulheres não poderiam ser intei-
ras, porque não possuem uma posição fixa –, foi contrastada por Irigaray e
Kristeva, que criticaram a impossibilidade de constituição de subjetividades
femininas dentro desse sistema. Para Kristeva, as mulheres, em sua diferença,
não biológica, mas pela experiência de cisão com a mãe e sua relação par-
ticular com o corpo, poderiam recriar a cultura, por meio do excesso e do
transbordamento da linguagem. Um desses aspectos de recriação é a presença
da morte nas obras de arte, lugar em que a ansiedade reprimida da morte
ressurge deslocada, em forma desfigurada. (BRONFEN, 1992, p. 215).

Fig. 3. Nicola Costantino, Madonna, 2007.

54 8
Outro tema pungente revela-se nas problematizações da maternidade,
em que se desconstrói a imagem ideal do feminino: a mãe. Nicola Costantino
utiliza em diferentes trabalhos de uma construção fotográfica paródica de
obras-primas canônicas, inserindo aspectos desconstrutivos nos discursos de
gênero, como quando aborda a imagem da Virgem amamentando o menino
Jesus. Em Madonna, de 2007, Costantino parodia a obra clássica Madonna
Litta (1490), de Leonardo da Vinci, amamentando um porquinho embalsa-
mado, como num thriller aterrador.4 4 A obra utiliza as esculturas de animais
embalsamados, como Chanchobolas, que são
Sherman, em Untitled #216 (fig. 4), de 1989, relê às avessas a obra feitas com fetos de consumo massivo – como
porcos, bezerros, frangos e avestruzes –,
de Jean Fouquet, Madona e Menino, painel esquerdo do Díptico de Moulin feitas por compactação ao comprimir seus
(1450). Segundo Rago: “Entre 1989-1990, quando vive na Itália, Sherman corpos em recipientes esféricos.

compõe seus ‘History Portraits’, isto é, um conjunto de trinta e cinco fotogra-


fias, em que parodia obras clássicas dos grandes mestres do Renascimento,
do Barroco e de períodos posteriores” (RAGO, 2013). Como apontou
Kimberlee A. Cloutier-Blazzard a respeito de Sherman, a imagem da ama-
mentação da Virgo Lactans, apresentando a ligação corporal e visceral entre
o seio e a criança, foi negada pelo imaginário cristão da Contrarreforma até
a atualidade, embora fosse comum após o Concílio de Trento (CLOUTIER-
BLAZZARD, 2007). Ao escolher essas imagens e não outras, da virgem que
nina um deus-porco ou, como em Sherman, da madona cujo seio está critica- 5 As imagens podem ser vistas em
mente plastificado e artificial, as artistas indicam esferas de percepção crítica http://www.moma.org/interactives/
exhibitions/2012/cindysherman/. Acesso em
e subjetiva, também presentes em Untitled #225 e Untitled #223, ambas de 05/09/2014.
1990.5

Fig. 4. Cindy Sherman, Untitled #216, 1989.

Analisando a escrita literária, Margareth Rose vê a paródia como um


exercício de metaficção que funciona como uma arqueologia de seu próprio
meio, escavando sentidos e significados, sem acesso total ou verdadeiro ao
original (ROSE, 1979, p. 13). Alguns temas destacam-se por sua capacidade
perfurante, sobrepondo mitologias e cristalizações culturais reiteradas pelas
clássicas visões realistas de obras-primas consagradas. Refiro-me agora à morte
de Ofélia, personagem de Hamlet (1599-1601), de William Shakespeare, em
que a figura feminina repousa em um lago, morta, embora sua beleza a dig-
nifique no imaginário. Como um pathos, podemos perceber similaridades em
Ofelia, muerte de Nicola no. 2, de 2008 (fig. 5), de Costantino e Untitled #153

8
55
(fig. 6) e a imagem de mulher vagando num rio, Untitled #38 (fig. 7), da série
Film Stills (1977-80), ambas de Sherman (TVARDOVSKAS, 2013, p. 294).

Fig. 5. Nicola Costantino, Ofelia, Muerte de Nicola no. 2, 2008.

Fig. 6. Cindy Sherman, Untitled #153, 1985.

Fig. 7. Cindy Sherman, Untitled #38, série Film Stills, 1979.

56 8
Elaine Showalter, em seu ensaio “Representing Ophelia: Women,
Madness, and the Responsibilities of Feminist Criticism”, discute como essa
personagem foi usada como símbolo nas teorias psiquiátricas freudianas e
lacanianas, contribuindo para a caracterização dos atributos da feminilidade
na modernidade.6 Para a autora, a figura de Ofélia reforça a loucura atribuída 6 Showalter afirma acerca do seminário
de Jacques Lacan em Paris, em 1959: “He
ao amor melancólico feminino, associado no imaginário a uma paixão eró- goes on for some 41 pages to speak about
Hamlet, and when he does mention Ophelia,
tica entre ela e Hamlet. Mesmo havendo outras possibilidades interpretativas, she is merely what Lacan calls “the object
como a que vê sua loucura resultante do assassinato de seu pai e da relação de Ophelia”—that is, the object of Hamlet’s
male desire. The etymology of Ophelia,
profundo respeito entre eles – sendo os sentimentos dela pelo pai muito mais Lacan asserts, is “O-phallus”, and her role
in the drama can only be to function as
fortes do que por Hamlet –, Showalter mostra como a insanidade causada the exteriorized figuration of what Lacan
predictably and, in view of his own early
pela paixão é a visão predominante. work with psychotic women, disappointingly
Mesmo negligenciada pela crítica literária, tratada por muitos como suggests is the phallus as transcendental
signifier. To play such a part obviously makes
uma personagem insignificante, Ofélia é uma das heroínas mais citadas de Ophelia “essential,” as Lacan admits; but only
because, in his words, “she is linked forever,
Shakespeare: “Her visibility as a subject in literature, popular culture, and pain- for centuries, to the figure of Hamlet.”
ting, from Redon who paints her drowning, to Bob Dylan, who places her on
Desolation Row, to Cannon Mills, which has named a flowery sheet pattern af-
ter her, is in inverse relation to her invisibility in Shakespearean critical texts”
(SHOWALTER, 1985, p. 77). Classicamente, a temos representada também
por Eugène Delacroix (A morte de Ofélia, 1838) e John Everett Millais (A
morte de Ofélia, 1851-1852). Para Showalter, Ofélia tem uma importância
em nossa mitologia cultural pois, mesmo reiterando a figura da “Mulher”
em sua imagem de fraqueza e loucura, ela também sofre a opressão dessa
sociedade de forma trágica. Esse arquétipo da mulher enquanto loucura e da
loucura como mulher precisa ser problematizado e, para a autora, a crítica
feminista deve se responsabilizar por discutir as representações de Ofélia em
nossos discursos. Showalter mostra também que para as feministas francesas
como Irigaray, sua imagem “confirm the impossibility of representing the fe-
minine in patriarchal discourse as other than madness, incoherence, fluidity, or
silence”, desprovida de voz, de passado e de sua própria sexualidade: “I think
nothing, my lord”, Ofélia diz a Hamlet na cena da peça The Mousetrap:

According to David Leverenz, in an important essay called “The Wo-


man in Hamlet,” Hamlet’s disgust at the feminine passivity in himself
is translated into violent revulsion against women, and into his brutal
behavior towards Ophelia. Ophelia’s suicide, Leverenz argues, then
becomes “a microcosm of the male world’s banishment of the female,
because ‘woman’ represents everything denied by reasonable men.”
(SHOWALTER, 1985, p. 78)

E aqui, talvez, possamos pensar no banimento do feminino dentro da


cultura ocidental e nos sentidos dessa repetição para as artistas contemporâ-
neas. Para Showalter, muitas das representações modernas de Ofélia reforça-
ram a associação entre a feminilidade e a loucura, mas sugiro que as paródias
de Costantino e Sherman destoam dessa discursividade, ao instaurarem um
aspecto teatralizado e humorístico nessa aproximação. Se Ofélia é sempre
vista como produto do corpo e da natureza femininos, aqui há uma interfe-
rência da violência com que as figuras são apresentadas. O vestido de Nicola,
rasgado e sujo, ambienta uma cena mais violenta e conflituosa do que o sui-
cídio plácido representado em nosso imaginário. Talvez até mesmo denuncie

8
57
um assassinato. A imagem de Sherman, de forma similar, sugere que essa
Ofélia foi engolida e cuspida por uma tormenta. Também podemos pensar
em como essas obras ironizam, de certa forma, as obras-primas que visavam
imortalizar seu autor, assim como o desejo de permanência e enaltecimento:
“A obra que tinha o dever de trazer a imortalidade recebeu agora o direito de
matar, de ser assassina do seu autor” (FOUCAULT, 1992).
Há um efeito complexo de superposição nessas obras, pois enquanto
existe uma crítica implícita da cristalização forjada no imaginário cultural
sobre o lugar das mulheres enquanto natureza, loucura e maternidade, há
também um posicionamento dessas artistas enquanto vozes de autoridade
sobre essas representações que definiram e definem as mulheres enquanto
corpos sexuados, silenciados e violentados. O contraste, por sua vez, com as
representações plácidas e docilizadas da maternidade e da morte, indica um
ímpeto de transformação subjetivo, que explora as possibilidades e as múlti-
plas aberturas para a construção das feminilidades na atualidade.

conclusão: ambiguidades
O que pode significar esse desdobramento infinito da cópia? Leio que
essas práticas de artistas como Sherman, Salgado e Costantino espelham cri-
ticamente a constituição das subjetividades femininas enquanto repetição do
Mesmo, denunciando a ausência de espaços de criação e de possibilidades de
ser outra. Ao serem explicitamente cópias, mostram as formas e definições do
feminino enclausurado pela cultura, impelindo a novas visões e configurações
éticas. Por fim, descaracterizando uma visão platônica, esses simulacros pres-
cindem da divisão entre original e cópia, mostrando as cavernas superpostas,
nas palavras de Deleuze:

Quando a identidade das coisas é dissolvida, o ser escapa, atinge a


univocidade e se põe a girar em torno do diferente. O que é ou retorna
não tem qualquer identidade prévia ou constituída: a coisa é reduzida
à diferença que a esquarteja e a todas as diferenças implicadas nesta e
pelas quais ela passa. É nesse sentido que o simulacro é o próprio sím-
bolo, isto é, o signo na medida em que ele interioriza as condições de
sua própria repetição. O simulacro aprendeu uma disparidade cons-
tituinte na coisa que ele destituiu do lugar de modelo. (DELEUZE,
2006, pp. 106-107)

Num trânsito entre ficção, paródia e realidade, essas artistas dialogam


com suas próprias constituições subjetivas, sendo a arte uma prática de si,
no sentido foucaultiano de elaboração ética e de experiência radical da ver-
dade (FOUCAULT, 2011, p. 165). Não podemos afirmar seus propósitos,
mas lê-las, sim, como parte de uma elaboração crítica sobre as definições,
mitos e simbologias que estigmatizam as mulheres no mundo ocidental. O
efeito cômico e paródico, como dissemos, é capaz de destruir os significados
originais e demonstra aspectos incongruentes ou discrepantes dos mesmos,
impondo-se como uma função crítica, tal como afirma Godard. Para Rose,
é justamente a ambiguidade o aspecto fundamental ao conceito de paródia,
criando uma aparente empatia e distância em relação ao original. Não há uma
similitude entre essas obras, se pensarmos no conceito de Deleuze, pois o que

58 8
elas procuram justamente é criar uma diferença em relação aos textos e obras
referenciadas.
Essa transgressão, muito bem apontada pela crítica literária feminista,
ganha potentes dimensões quando problematizada nas artes visuais de mu-
lheres (HUTCHEON, 1985). Se as imagens aqui discutidas distorcem os
originais, satirizando-os e mostrando sua ridicularidade para a atualidade,
também ganham sofisticação e perspicácia, ao explicitar as margens desses
discursos e onde eles ainda nos afetam, indicando a superposição de tempo-
ralidades. Questionam, assim, o próprio modelo de transmissão imposto pela
discursividade hegemônica da História da Arte, recusando-se a dele participar.
Para vermos esses sinais, no entanto, é preciso decifrar os subtextos e
oscilações que essas imagens produzem, não apenas no terreno das represen-
tações, mas também das subjetividades. E esse é um trabalho arqueológico e
artesanal que exige do observador uma cumplicidade com cada artista e uma
tomada de posição em relação às tormentas que cada obra lhe pretende cau-
sar. As obras devem ressoar, afetar e implicar ao observador um compromisso
ético de aproximação, buscando, como afirma Godard, “a vertiginous spiral
of ironies within ironies”, abrindo-nos ao seu potencial subversivo para que
possamos compartilhar com elas um sorriso. Se não estivermos atentos a isso,
corremos o risco de realmente ler nessas imagens uma reverência ao original
e, na repetição, o signo do Mesmo que elas buscam demolir.

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60 8
Sites
As imagens desse artigo foram retiradas dos seguintes sites:
http://www.cristinasalgado.com/
http://www.moma.org/interactives/exhibitions/2012/cindysherman/
http://www.nicolacostantino.com.ar/

8
61

62
4
COMUNICAÇÕES

Quando o gênero e a sexualidade são armadilhas da arte: Michel Journiac,


o corpo travesti(do) e o alter-retrato fotográfico1
VITOR GRUNVALD2

Resumo
Michel Journiac foi um artista francês considerado como um dos fundadores da arte corporal na França no final da década
de 1960 e início de 1970. Para ele, na arte, o problema não é o belo, mas a vida experimentada através do “corpo carne e
sangue”. No diálogo com autores da literatura, ciências humanas e psicanálise, o corpo aparece como epicentro da convul-
são e da revolução não apenas artística, mas também social e política. Ao usar a fotografia como tecnologia artística de re-
presentação de si e do outro ou, mais precisamente, de si como outro, Journiac adianta um conceito de travestimento como
processo primordial através do qual ocorre a subjetivação. Se o autorretrato fotográfico implica uma certa performance
como apresentação de si, proponho que Journiac se vale de ideias e práticas do travestimento para a produção de alterre-
tratos. Retratos de si como outro, se tivermos em conta que retratos são vetores de transformação – por oposição a uma
concepção que toma a fotografia apenas como representações fotográficas. Importa-lhe como a fotografia faz o que faz, isto
é, sua agência no mundo. Acredito que, em alguns sentidos, os alterretratos de Michel Journiac travestido desafiam a pró-
pria natureza do retrato fotográfico como espécie de espelho do real através do qual o Eu se dá a conhecer e se imortaliza.

Palavras-chave
Michel Journiac; arte; sexualidade; gênero; transgeneridade.

Le corps est premier, il apparaît avec le sang et les vêtement.


Michel Journiac, L’objet du corps et le corps de l’objet, L’Humidité, 1973

le sexe, comme le corps qui le sous-tend,


est chose dangereuse même pour la Révolution
Michel Journiac, Jouir est politique, arTitudes, 1972

Michel Journiac é um vampiro. Ao menos a imagem do vampiro é


bastante prolífica para pensar suas práticas e proposições artísticas. Em um
texto escrito por ele e Dominique Pilliard e publicado na revista arTitudes no
início da década de 1970, o vampiro aparece como uma figura catalisadora.
Por um lado, ele é “a expressão simbólica de tudo aquilo que, na sexualidade,
é repelido pela moral social”; por outro lado, a força do vampiro está na
“efetividade de seu ritual, cuja dialética opõe uma sexualidade destituída de
sentimentalismo e reduzida ao consumo do outro pelo sangue a uma religião
limitada ao formalismo (cruz, exorcismo...), de fato, a uma sociedade funda-
mentalmente burguesa” (2013, p.70). 1 Este artigo apresenta alguns resultados
preliminares da pesquisa que desenvolvi no
A relação inextricável com o poder corrosivo de gêneros e sexualidades período em que estive como pesquisador no
não normativas não é invenção de Journiac. Em O Segundo Sexo, Simone de Departamento de História da Arte e Estudos
da Comunicação da McGill University sob
Beauvoir também recorre à imagem do vampiro para falar sobre algumas con- supervisão da Prof. Amelia Jones. A pesquisa
foi financiada pela FAPESP através de uma
cepções socioculturais relativas à mulher. “A mulher é vampiro, mutiladora, Bolsa Estágio de Pesquisa no Exterior (BEPE
nº 2013/21735-9).
come e bebe e seu alimenta-se gulosamente do sexo masculino” (1970[1949],
p.212). 2 Integrante do Grupo de Antropologia
Judith Halberstam em seu livro sobre o “horror gótico e a tecnologia Visual (GRAVI) e pesquisador do Laboratório
de Imagem e Som em Antropologia (LISA),
dos monstros”, analisa como tanto na retórica do vampirismo quanto nos ambos da Universidade de São Paulo.

8
63
discursos sobre raça e etnicidade, o sangue é um signo sobredeterminado:
“ele significa raça tanto quanto sexo, gênero e classe e ter sangue nas mãos é
estar implicado no borramento de fronteiras essenciais de identidade” (1995,
p.77).
Journiac, como um vampiro, foi sempre fascinado por sangue. Desde
de suas primeiras pinturas na década de 1960 a suas esculturas e instalações
mais tarde, esse líquido vital, essência que dá vida, foi um elemento onipre-
sente. O vampiro corporifica a ideia de que a vida flui e, caso não se tenha cui-
dado, pode escapar do corpo. Ele também expressa sua estabilidade precária e
sugere que as fronteiras de identidade das quais fala Halberstam são também
fronteiras que marcam os limites da vida e da morte.
Journiac, seguindo a tradição vampiresca, sempre propôs que a relação
entre morte e vida – incluindo sua separação absoluta – é problemática. Em
seus trabalhos, essa relação, devida à sua instabilidade, é dobrada recursiva-
mente e dá lugar a uma indagação dentro da própria vida, sobre os modos
de existência e possibilidades de transformação. Primeiramente, essas possibi-
3 La Résurrection de Lazare, óleo sobre tela, lidades foram representadas através do imaginário religioso da ressurreição.3
54x81cm, 1959.
Journiac ainda estava institucionalmente ligado à Igreja Católica e passou
alguns anos de sua vida adolescente como seminarista. Mas não demorou
muito até que essas interrogações saíssem do domínio metafísico da religião e
migrassem para a vida vivida através e a partir do corpo.
No primeiro volume da revista arTitudes, publicada em outubro de
1971, Journiac faz explicitamente o que chama de “interrogação sobre o
corpo”, um corpo que é exposto como “origem do perigo para a sociedade
e para o indivíduo, ponto de encontro para outros corpos e ostentação da
armadilha social” (2013, p.75). Com efeito, mesmo antes dos seus trabalhos
de 1970 que são abertamente caracterizados como art corporel, o corpo já era
uma preocupação central do artista.
Em seus óleos sobre tela dos anos 1960, encontramos não apenas res-
surreição, mas também sacrifício e processos que são eminentemente cor-
porais. De fato, as figuras abstratas que aparecem em suas pinturas parecem
ter apenas sangue e carne para oferecer ao olhar do espectador. No mesmo
ano em que pintou Sacrifício, ele também pintou De corpo distanciado onde,
naquilo que é mais ou menos reconhecível indubitavelmente como um corpo
(tudo pode ser um corpo...), podemos ver linhas e curvas que podem ser
4 Sacrifice, óleo sobre tela, 116x89cm, 1963; percebidas como seios.4 A figura, no entanto, não é inequivocamente femi-
A Corps éloignés, óleo e madeira sobre painel,
98x130cm, 1963. nina. Carne e sangue extrapolam os limites do quadril pelo meio das pernas,
espalham-se para o fora-da-tela e parecem indicar a presença de um órgão
sexual masculino. Já estava aí o travesti?
Os muitos tons de vermelho, marrom, amarelo e laranja que Journiac
usa para criar figuras antropomórficas, ele também mobiliza para criar um
alfabeto do corpo, como se fôssemos carentes de uma linguagem apropriada
para falar da vida sem negligenciar a importância do corpo em sua organi-
5 Alphabet du corps, óleo sobre tela, zação e desorganização.5 O entrelaçamento dessa massa amorfa de sangue e
116x89cm, 1965.
carne com um símbolo gráfico grande e vermelho conformando um signo de
sangue aponta para a importância de elementos corporificados.6
Sim, o corpo é um suporte para Journiac. Mas apenas se considerar-
6 Signe du sang, óleo sobre tela, 116x73cm,
1966. mos que não existe um Eu original do qual ele é suporte – ou, pelo menos,

64 8
não existe apenas um. Após os primeiros experimentos iconográficos, a obra
de Journiac substitui o suporte da pintura pelo corpo como suporte, refu-
tando a pintura como meio único de produzir arte.

Em direção à arte corporal


Não é que Journiac tenha sempre impugnado a pintura. Na carta que
escreveu ao seu pai em junho de 1962 assumindo sua homossexualidade
e dizendo que estava deixando para trás “qualquer orientação sacerdotal”,
ele também afirmou ter descoberto a pintura como havia feito antes com a
literatura.7 7 “Como eu descobri a literatura [...] eu
encontrei a pintura. O acaso de uma
No entanto, como certa vez disse um de seus alunos, “essa prática [a exposição me fez encontrar Rouault e ele
me mostrou como a arte pode transformar a
pintura] era muito ligada a um determinado meio social que usou a arte feiura e o vício. Não havia beleza natural que
como mais-valia e não como vivência artística” (Toma, 2013, p.11). Journiac devesse ser reproduzida, nem beleza ideal a
ser alcançada, havia simplesmente o artista
fala sobre Dadaísmo em muitos de seus escritos e, tal como Duchamp, ele e o mundo, e a obra de arte era o resultado
de seu confronto, a introdução de uma
cedo rejeitou que a arte se tratava, sobretudo, do retiniano.8 significação em um mundo que era em si
mesmo desprovido dela [...] Tudo, através da
Missa para um corpo, uma performance que realizou na Galeria Daniel pintura, podia adquirir um sentido, virar obra
Templon no dia 6 de novembro de 1969 com a assistência dos críticos de de arte. A pintura me confirmou aquilo que
Racine, Villon e Baudelaire me haviam feito
arte Pierre Restany e Catherine Millet, foi certamente um ponto de inflexão. descobrir. A arte apareceu como um meio de
salvação, como a própria salvação, a única
Nesta ação, Journiac realiza uma missa em latim vestido (travestido?) como possível.” (Journiac, 2013, p.20-1).
um padre. Ao fim da Eucaristia, no lugar da Hóstia, ele oferece à audiên-
cia fatias de boudin, uma espécie de linguiça francesa, feita com seu próprio
sangue.

Fig. 1. Michel Journiac. Messe


pour un corps, 1969

A drenagem do sangue ocorrida anteriormente foi fotografada e a re-


ceita da linguiça de sangue humano foi disponibilizada ao público; ambas 8 Duchamp foi uma grande influência tanto
faziam parte da obra. Havia altares portáteis além do altar principal. Estes para Journiac quanto para os artistas de
vanguarda em geral. De alguma forma,
eram compostos por grandes caixas cujo interior se parecia a um armário. ainda que diferentemente, todos eles
estavam tentando responder ao chamado
Dentro, encontravam-se roupas, cálices e esculturas brancas de uma bunda por uma arte anti-retiniana. “Desde Courbet,
acreditava-se que a pintura é endereçada
e de uma mão segurando um pau que facilmente remetem o espectador às à retina; este foi o erro de todo o mundo.
efígies brancas vistas em igrejas e sepulcros. As partes do corpo eroticamente O frisson retiniano! Antes, a pintura tinha
outras funções, podia ser religiosa, filosófica,
investidas eram operacionalizadas e intimamente relacionadas ao sagrado.9 moral. Se eu tivesse tido a oportunidade

8
65
de poder tomar um atitude anti-retiniana,
infelizmente, não teria mudado grande coisa; Ao falar sobre esta performance, Sarah Wilson pontua que “o desafio
todo o século é completamente retiniano,
exceto os surrealistas que tentaram, um era nada menos do que a doutrina da transubstanciação. Cristo feito ho-
pouco, sair disso. E mesmo assim, não
conseguiram sair totalmente! Breton, para
mem, pelo sangue de Journiac, transforma-se em homem feito Cristo” (2000,
falar a verdade, acredita que está julgando p.164). Ressureição? De novo os limites da vida e da morte através da imagi-
do ponto de vista surrealista, mas, no fundo,
é sempre a pintura retiniana que o interessa. nação e mediação corporal. Marcel Paquet, em relação aos primeiros traba-
É absolutamente ridículo. Isso tem que
mudar; não foi sempre assim.” (Cabanne and lhos de Journiac, comenta que “foi no lugar onde as crenças religiosas eram
Duchamp, 1987[1967], p.73). Mais adiante,
eu falarei sobre alguns aspectos da obra de
conectadas à ressurreição do corpo que Journiac teve seu ponto de partida”
Duchamp de maneira mais detida. (1977, p.25). Na Missa, o supernatural e o sagrado estavam já integralmente
entrelaçados com o sexo e a sexualidade: o fluxo de sangue através da linguiça
9 O sagrado, devo dizer, não está
necessariamente relacionado ao religioso.
tomada como Hóstia também aponta para a troca de fluidos corporais em
Em uma entrevista para Eryck de Rubercy, relações sexuais e para a mordida do vampiro.
Journiac disse que “o sagrado é o incerto,
é aquele que está além” (Journiac and de No mesmo ano, com Armadilha para um voyeur, Journiac havia colo-
Rubercy, 1977, p.42). E também lembra
Bataille e a estreita relação que este postula cado um homem nu dentro de uma gaiola feita com tubos de neon em uma
entre o sagrado e o erotismo.
exposição na Galeria Martin Malburet. Como as barras eram luzes, o público
não conseguia reconhecer imediatamente que ali estava um homem nu até
que chegasse perto da gaiola. Podia o homem nu ver de antemão o público
que o espiava? Não importa. O olhar era assim revertido em uma situação
de voyeurismo recíproca e eroticamente carregada. Ali, fazendo a audiência
objeto do olhar do qual antes era a única detentora, as obras de Journiac já se
apresentavam como armadilhas.

Fig. 2. Michel Journiac. Piège pour un voyeur, 1969

Armadilha para um voyeur parece buscar a produção de uma autocons-


ciência em relação aos mecanismos sociais e psicológicos através dos quais a
apreciação artística é conduzida. Peggy Phelan, discutindo “as posições que
definem a distinção entre sujeito e objeto no campo visual”, disse que “aquele
que olha é sempre também fitado pela imagem vista e através desse olhar des-
cobre e continuamente reafirma que é ele quem olha” (1993, p.15).
No entanto, seriam essas posições estáveis a tal ponto que o olhar não
possa reverter ou confundir esses pólos ao invés de apenas enfatizar um lugar

66 8
seguro no qual “ele é [sempre] aquele que olha”? Aí está a armadilha. Journiac
funciona a partir de um conjunto inteiramente diverso de premissas. O pro-
pósito da arte é sempre uma crítica social e o enredamento de sujeito e objeto
é um dos meios de problematizar o lugar da própria fruição através de uma
estratégia que desautoriza o conforto em relação a um estado atual de coisas.
A imagem-vista-que-também-vê-o-público é um homem apresentado
como parte de um objeto de arte que é, ao mesmo tempo, ocultado e ofe-
recido ao público. Seria ele a obra de arte que apenas confirma a audiência
como aquela que vê? Seu corpo está nos observando! Ele está nu! Como essa
imagem e presença podem ser negligenciadas como não tendo agência social
e sendo, portanto, sujeito? Journiac não estaria implicando e insistindo, como
faz também Alfred Gell em seu livro Arte e agência, que obras de arte são ín-
dices de complexas relações de intencionalidade?
Estão já aí grandes inquietações que a arte corporal e a performance
viriam instalar no campo artístico a partir da década de 1970. Journiac joga
exatamente com esses paradoxos e com a possibilidade de criá-los e, dessa
maneira, criticar separações que consideramos bastante resolvidas.
Nesse momento, as assim chamadas vanguardas artísticas americanas
não tinham passado desapercebidas na França. Michael e Ileana Sonnabend
haviam aberto a Galeria Sonnabend em Paris em 1962. A arte americana
estava encontrando seu caminho na França, ainda que não sem resistência.
Com efeito, quando Robert Rauschenberg ganhou o prêmio da Bienal de
Veneza em 1964, os críticos de arte franceses acusaram a instituição de pro- 10 Em uma entrevista dada à critica de arte
Catherine Millet em 1973, Ileana Sonnabend
mover uma colonização cultural americana.10 disse que “[n]o começo [da década de 1960],
havia um chauvinismo europeu enorme,
Para o bem e para o mal, a conexão entre os mundos artísticos franceses certamente compreensível. Eu adoraria
e americanos estava sendo mais e mais promovida e isso também era verdade lhe mostrar as matérias da imprensa
sobre a Bienal de Veneza de 1964, quando
em relação aos happenings e às performances. Em 1964, Jean-Jacques Lebel Rauschenberg ganhou o prêmio. Todos
gritavam: que invenção bárbara! É a morte
havia organizado o festival La Libre Expression onde Carole Scheemann reali- do humanismo! É imperialismo cultural! Era
como se quiséssemos fazer guerra quando
zou pela primeira vez sua Meat Joy. Um ano antes, em 1963, Jack Smith tam- ne verdade queríamos apenas informar”
bém havia realizado seu vídeo Flaming Creatures com paus, bucetas e seios em (Sonnabend and Millet, 1973, p.18). Mesmo
François Pluchart, o maior promotor da arte
uma grande e violenta orgia. Os trabalhos de Vito Acconci eram conhecidos corporal na França e antigo colaborador de
Michel Journiac, era, no início dos anos 1960,
em Paris pelo menos desde 1962 quando este expôs no Festival d’Automne. contra os movimentos de vanguarda artística
em defesa da tradição pictórica francesa
Journiac absorvia estas influências e trabalhava a partir delas. A impor- da École de Paris. Apenas mais tarde nessa
tância de objetos comuns para as práticas artísticas, algo primeiro articulado década, ele mudou sua posição e lutou pela
difusão e estabelecimento da art corporel.
por Marcel Duchamp, mas também enfatizado nos procedimentos da Pop Cf., por exemplo, Pluchart, 2002. Para uma
discussão sobre a relação ambígua entre a
Art, tornou-se um traço importante de seus trabalhos da década de 1960.11 body art americana e a constituição da art
corporel na França, cf. Bégoc, 2010.
Seus óleos sobre tela foram aos poucos se transformando em imagens tridi-
mensionais que colapsaram os limites entre pintura e escultura. Arquivo do
11 Em 1973, Journiac escreveu: “Marcel
sexo foi um módulo em forma de caixa na qual Journiac propôs um parale- Duchamp já desafiava pelo objeto a estrutura
cultural que permitia com que suportes de
lismo, uma conexão entre a boca/buceta pintada com cores de sangue-e-carne garrafas se transformassem em outra coisa
e aquilo que está dentro do zíper de um tecido, isto é, o próprio corpo.12 sendo ainda o que eram, sem se transformar
[...] em um objeto estético, embora a
A técnica de mesclar objetos e pintura foi usada em muitos dos seus estética não tenha – suas regras tendo
desaparecido – qualquer significação, senão
trabalhos, incluindo os altares feitos em 1968 e aqueles exibidos em Missa aquela de valorização social. O trabalho de
pesquisa, mediado pelo objeto, almeja o fato
para um corpo. No artigo O objeto do corpo e corpo do objeto, publicado no sociológico ambíguo não apenas por sua
jornal L’Humidité em 1973, Journiac afirma que negatividade, mas porque existimos apenas
por ele que, ao mesmo tempo, nos nega a
vida.” (Journiac, 2013, p.114).
Há uma dialética necessária entre o corpo e o objeto; o objeto é aquilo
através de que o corpo é conhecido, ele é, ao mesmo tempo, o próprio 12 Archive du sexe, óleo sobre painel,
33x23cm, 1967.

8
67
corpo visto pelo outro e o corpo do outro que se dá a conhecer e que
o faz viver e o destrói. Ele está também relacionado ao fato de que
vivemos em uma sociedade que é, de alguma maneira, a sociedade do
objeto. Estamos rodeados de objetos, ele nos dão nossa existência, nos
fazem viver, nos definem socialmente, das roupas à comida e ao corpo
morto, objetos absolutos como a múmia de Eva Perón, as relíquias de
santos, o esqueleto. (2013, p.112).
A dialética entre corpo e objeto à qual Journiac se refere é pictorica-
mente expressa em muitas de suas pinturas e instalações. Nesse contexto,
as roupas ocupam um lugar proeminente. “As roupas”, ele escreve, “são sua
forma [a forma do corpo] no sentido em que são o meio, a coisa através da
qual encontramos alguém independente de seus rostos ou membros, para
além do cuidado e da forma, até a putrefação que apenas os ossos resistirão”
(2013, p.114).
Ainda em 1969, Journiac usa roupas como signo de antigos expoentes
da arte que, simbolicamente convertidos em tecido, eram também suscetíveis
à lavagem. A Lavagem foi uma exposição na Galeria Daniel Templon na qual
se viam roupas rígidas que haviam sido encharcadas em tinta branca acrílica
e penduradas em um varal. Abaixo do varal, estavam cestos cheios de “roupas
dos inúteis rejeitados”, como escreve Wilson (2000, p.164), referindo-se aos
artistas que constituíram o movimento da Figuração Narrativa no início da
década de 1960 na França se opondo à Pop Art e ao Nouveau Réalisme.

O que pode um corpo


O contexto político e social francês daquele momento não pode ser
negligenciado. Maio de 1968 foi o momento de ebulição de um movimento
mais amplo no qual a sexualidade foi pensada como intrinsecamente imbri-
cada com normas sociais e sua subversão. A popularização das possibilidades
terminológicas abertas pela teoria psicanalítica e a ideia de que a sexualidade
devia ser vista como centro da experiência humana estavam conectadas com o
deslocamento das fronteiras entre o público e o privado. Em Eros e civilização,
publicado em 1955 e traduzido para o francês na década seguinte, Marcuse
observa que
“no período contemporâneo, categorias psicológicas se tornam catego-
rias políticas no sentido de que o privado e a psique individual se convertem
em receptáculos solícitos de aspirações, sentimentos, impulsos e satisfações
socialmente desejáveis e necessárias” (1962[1955], p.viii)
Foi nessa conjuntura que “a questão da identidade – nacional, de
classe, étnica, sexual, de gênero e individual – se torna o quadro de referência
dominante para artistas que reiteradamente construíam representações de si
no período pós-1960” (Jones, 2006, p.41). Na França, a sexualidade era cla-
ramente tomada como meio tanto de aprisionamento social quanto de subli-
mação não-repressiva, para usar a expressão do próprio Marcuse.13 Qualquer
13 A noção de sublimação não-repressiva
está relacionada a “impulsos sexuais [que],
aspecto da vida social e política podia ser referido à sexualidade e criticar os
sem perder sua energia erótica, transcendem padrões morais que delineavam os limites aceitáveis da experiência sexual era
seu objeto imediato e erotizam relações
normalmente não-eróticas ou anti-eróticas também criticar a sociedade burguesa.
entre indivíduos, e entre eles e seu meio
ambiente” (Marcuse,1962, p.ix). Para uma Na carta de 1962 escrita ao seu pai, Journiac já havia exposto clara-
crítica dos pressupostos que subjazem o
modelo de liberação de Marcuse, cf. Foucault
mente quão fundamental a sexualidade era em sua vida. Contudo, foi ape-
(1988[1976]). nas na década de 1970 que a relação entre corpo, objeto e performance se

68 8
tornou gradativamente indiscernível das questões relacionadas ao gênero e à
sexualidade.
A ideia de homossexualidade estava, para ele, imediatamente relacio-
nada com o cruzamento das fronteiras de gênero. O travestimento e a “troca
de gênero”, contudo, já estavam insipientes em 1969. Alguns meses antes
de Piège pour un voyeur, “um complemento à obra Armadilha, O Substituto
usou um dispositivo de parque de diversões com dois corpos nus fotografa-
dos e um espaço sem cabeça para que o público pudesse olhar através dele,
apropriando-se de um corpo do sexo oposto caso assim desejasse” (Wilson,
2000, p.164).
A “troca de sexo” proposta nesse trabalho foi levada a cabo em uma sé-
rie de performances e fotografias a partir de 1972. Esse foi o ano que Journiac
começou a se travestir. De fato, ele usou, abusou e subverteu aquilo que
Amelia Jones chama de “códigos vestimentares da masculinidade artística”.
Ela argumenta que

As roupas fazem do corpo do artista tanto visível (permitindo sua sig-


nificação) quanto invisível (imbricando-o nos naturalizados e aparen-
temente transparentes códigos do gênio masculino). A mudança nas
percepções de identidade artística e da masculinidade em geral podia
ser alcançada com o contraste de códigos vestimentares (1995, p.19)

No experimento inicial de travestimento, foi Gérard Castex e não


Journiac que brincou com a troca de roupas. Armadilha para um travesti apre-
senta uma série de quatro fotografias nas quais vestir-se, despir-se e travestir-
-se transformavam um homem com um traje masculino em um corpo nu e,
então, em Greta Garbo ou Rita Hayworth e, finalmente, na última fotografia,
a audiência podia ver o nome da artista feminina na qual Gerard havia se
transformado, mas, ao invés da imagem da “estrela”, aparecia Journiac refle-
tido em um espelho.

Fig. 3. Michel Journiac. Piège pour un


travesti, 1972

Tudo se passa como se diferentes combinações de corpo e roupa –


sujeitos e objetos ou, para usar o jargão bastante comum na Antropologia
Contemporânea, as articulações entre humanos e não-humanos (Latour,
1994[1991], 2012[2005]) – produzissem diferentes modos de estar-no-

8
69
-mundo. Journiac explicitamente argumenta que “as roupas são objetos feitos
corpo” (2013, p.114). E se tomamos o corpo como algo constitucionalmente
relacionado à maneira como percebemos os outros e somos percebidos no
14 O tema contra-intuitivo de corpos como mundo, os corpos são também, em certo sentido, roupas.14
roupas é brilhantemente desenvolvido
por Eduardo Viveiros de Castro a partir do Em 1970, Deleuze, absorvido pelo mesmo contexto político-social
material etnológico sobre as populações da
Amazônia indígena (2002). No entanto, a de Journiac, publica um livro sobre Spinoza no qual reforça a ideia de que
recorrência ao material etnológico não deve
possuir como corolário uma concepção na
o que realmente importa é o que um corpo pode e não o que um corpo é.
qual o entrelaçamento entre as ideias de Quão apropriada não é essa percepção para pensar as próprias estratégias do
corpo e roupa seja derivado de uma falsa
física ou mesmo de uma falsa sociologia travestimento?15
supostamente operante no pensamento
e na cosmologia destas populações (Gell, Corpo de homem, corpo nu, corpo de uma estrela de cinema. Rita
1998; Goldman, 2009). Alguns minutos
após eu escrever estas palavras, um amigo
Hayworth, Greta Garbo, Arletty... todas símbolos de uma feminilidade que,
postou em meu mural do Facebook uma segundo a lógica do que Guy Debord chamou em 1967 de “sociedade do
entrevista com a atriz transgênera Laverne
Cox. Ela recentemente ganhou notoriedade espetáculo”, são oferecidas ao olhar para serem admiradas e – por que não?
por ser a primeira pessoa transgênera a
aparecer na capa da revista TIME. Kate – possuídas. Na década de 1970, ancorada em conceitos psicanalíticos aplica-
Steinmetz, a repórter da revista, escreveu:
“Para muitas pessoas transgêneras, o
dos à teoria do filme, Laura Mulvey (1989) tornou bastante popular a ideia de
corpo no qual nasceram é uma roupa que o olhar é uma prerrogativa masculina. Mas, de meu ponto de vista, isso só
sufocante que elas não são capazes de tirar”.
Assim, se a confusão (emaranhamento, faz sentido se considerarmos que masculino e feminino, ao menos nesse con-
indiscernibilidade) entre corpo e roupa
é, de alguma maneira, tributária de um texto, não podem ser senão posições transitórias – e, definitivamente não o
pensamento selvagem – para usar a
expressão de Lévi-Strauss (1989[1962])
que você tem no meio das pernas. Assim, a entidade biológica que chamamos
–, é importante que tenhamos em conta mulher pode e muitas vezes ocupa uma posição objetificante (e não objetifi-
que a instabilidade entre os polos humano
e não-humano não é uma prerrogativa cada) tanto em relação a si mesma quanto em relação aos outros.
das populações indígenas, mas pode
ser facilmente encontrada entre nós, os Inevitavelmente, minha consciência histórico-artística me lembra que
ditos racionais e iluminados, como “uma
virtualidade que está em nós, virando-nos
Cindy Sherman estava para começar, mais tarde nesta década, sua série de
pelo avesso” (Lima, 1996, p.30). fotografias espectrais chamada Untitled Film Stills. Ela confunde precisa-
mente o sistema da representação unidirecional. Usando a fotografia como
15 Cf. o livro de Deleuze Espinosa. Filosofia
Prática (2002[1981]) publicado originalmente
mecanismo de reprodução de estereótipos que são eles mesmos reproduções
em 1970 e ampliado em 1981 pelo autor. difundidas pelo star system e pela publicidade, Sherman problematiza o lugar
que é oferecido ao olhar, o lugar que olha e aquele que torna o olhar possí-
vel através da autorepresentação fotográfica. São sempre posições instáveis e
nunca obviedades.
24 horas na vida de uma mulher ordinária é uma série de fotografias
produzidas por Journiac em 1974 – portanto, três anos antes de Sherman
iniciar sua série – que mostra o artista travestido de acordo com estereótipos
veiculados por revistas como Marie Claire. Ele realiza tarefas comuns rela-
cionadas ao que uma ideologia conservadora de gênero associaria ao mundo
feminino da vida privada.
O trabalho de Journiac apresenta o corpo como lugar onde arte e po-
lítica são escritas e reescritas e ele foi realmente um ativo participante nos de-
bates de 1970 sobre os papéis de gênero e a homossexualidade. É importante
lembrar que, alguns anos mais tarde, Foucault escreveria sua famosa introdu-
ção às memórias de Herculine Barbin. E, em 1972, Deleuze e Guattari publi-
caram sua feroz crítica à psicanálise, O Anti-Édipo. Travestimento, papéis de
gênero, erotismo, sexualidade e psicanálise estavam todos entrelaçados e eram
largamente discutidos entre ativistas, artistas e intelectuais na França.
Homenagem à Freud. Observação crítica de uma mitologia travesti é
exemplar nesse sentido. É uma fotopeça serial que foi produzida também
como pôster enviado por correio a algumas pessoas. Consistia de quatro fo-
tografias separadas em pares. O primeiro par é composto pelo pai de Journiac

70 8
Fig. 4. Michel Journiac. Hommage a
Freud. Constat critique d'une mythologie
travestie, 1972

e ele próprio travestido de seu pai. No segundo par, o mesmo procedimento,


mas agora com a mãe. Todas as fotos possuem legenda. Nas de cima, lê-
-se: “Papai: Robert Journiac travestido em Robert Journiac”; “Filho: Michel
Journiac travestido em Robert Journiac”. Nas de baixo: “Mamãe: Renée
Journiac travestida em Renée Journiac”; “Fillho: Michel Journiac travestido
16 Meu argumento é, de alguma maneira,
em Renée Journiac”. Esse trabalho é certamente canônico para as reflexões conectado ao desenvolvido por Judith Butler
que quero realizar aqui, mas antes de passar a ele, gostaria de remeter à ques- em relação à paródia. Ela argumenta que
“o deslocamento perpétuo [da paródia]
tão da reversibilidade na performance de gênero colocada em curso décadas constitui uma fluidez de identidades
que sugere abertura à resignificação e
antes por aquele que Journiac tem como uma de suas influências explícitas. recontextualização; a proliferação paródica
destitui a cultura hegemônica e seus críticos
da reivindicação de identidades de gênero
Rrose, Journiac e a desexualização da Crítica da Arte naturalizadas e essencializadas. Ainda
que os significados de gênero articulados
Rrose Sélavy é o nome com o qual Duchamp assinou muitas de suas nos estilos paródicos sejam claramente
parte da cultura hegemônica e misógina,
obras. Ela é também a persona fotografada pelas lentes de Man Ray em uma eles são, não obstante, desnaturalizados e
mobilizados através da recontextualização
série de retratos realizados em 1920-21. Ela é uma imagem, uma identi- paródica” (1990, p.176, ênfase adicional).
dade nomeada e também uma assinatura associada com o poder autoral de Contudo, as proposições de Butler parecem
se calcar em uma dicotomia entre normas
Marcel Duchamp. Para além da análise que deseja vê-la apenas como um e subversão sociais. Meu argumento, por
outro lado, é que não existe real oposição
exemplo artístico concreto da “síndrome Tootsie”, Amelia Jones insiste que o entre prescrições sociais hegemônicas
e sua subversão. O que está em jogo é
eixo Marcel/Rrose é marcado por “uma ambivalência (ou, talvez, mais pro- um uso das prescrições sociais que pode
priamente, uma multivalência) no jogo de identidades de gênero e sexuais” ser tanto normativo e de reforço quanto
subversivo e paródico. Para uma sofisticada
(1994, p.151). problematização da relação entre prescrição
e subversão sociais cf. o livro Couro Imperial
De fato, acho que os cruzamentos de gênero acionados por Duchamp de Anne McClintock bem como a tese de
livre-docência de Maria Filomena Gregori,
podem ser pensados como paródias no sentido definido por Judith Butler Prazeres perigosos. Para uma discussão
(1990).16 Expondo a arbitrariedade na construção da realidade do corpo e adicional sobre as estratégias político-
teóricas de Judith Butler cf. meu artigo
da imagem, Rrose Sélavy também expõe a fragilidade e instabilidade da se- Butler, a abjeção e seu esgotamento.

8
71
paração entre os polos homem/masculino e mulher/feminino. Em um ensaio
sobre performance de gênero na fotografia, Jennifer Blessing sugere que

Esse vai-e-vem é a pedra angular do trabalho de Duchamp que se


desdobra pelo curso de sua vida. Após desenhar um bigode na Mona
Lisa, transformando ‘ela’ em ‘ele’, em 1965, ele a barbeia criando um
travestimento reverso. Da mesma forma, um manequim feminino é
travestido com as roupas de Duchamp na Exposition Internationale du
Surréalisme de 1938, revertendo o travestimento homem-para-mulher
de Rrose (1997, p.23)

Ao falar sobre essa última experiência, Jones pondera que “alguém po-
deria argumentar que os artigos do vestuário de Marcel marcam Rrose como
subordinada, já que criada e possuída pela função autorial duchampiana” e
que o manequim, “um paradigma tipicamente superficial e vácuo da feminili-
dade produzida comercialmente” (1994, p.78), representa o corpo idealizado
de uma mulher. No entanto, a partir da ideia de multivalência enfatizada por
essa mesma autora, outra leitura permanece aberta.
Sem o jogo de vai-e-vem, poderíamos considerar Rrose Sélavy como
uma cópia – deformada, deslocada, mas ainda cópia – de um original, o
“verdadeiro” Marcel Duchamp. Mas quando Rrose aparece travestida de
Duchamp, a oposição entre cópia e original é complicada e já não se pode
estabelecer quem é um ou outro. De fato, no processo daquilo que chamo
aqui de travestimento reverso, o problema da cópia e do original é deslocado
e perde sua pertinência, já que tanto Marcel e Rrose emergem como modelos
de uma dissimilaridade fundamental, ambos são simulacros. Marcel é uma
unidade; Marcel e Marcel travestido de Rrose Sélavy é dualidade; mas Marcel,
Marcel travestido de Rrose Sélavy e Rrose Sélavy travestida de Marcel é o
17 Quando indagado sobre a recorrência do resto: três ou três milhões.17
número três na arquitetura do Grande Vidro,
Duchamp respondeu: “Para mim, a cifra Se o auto-retrato fotográfico é, por excelência, a manifestação de um
três tem uma importância, não do ponto de
vista esotérico, mas do ponto de vista da
Eu, o alter-retrato produzido pelo eixo disjuntivo Duchamp/Rrose aponta
numeração: um é unidade, dois é o duplo, a para um lugar de “incerteza objetiva”, como falam Deleuze e Guattari so-
dualidade, e três é o resto. Desde que você
chegou à palavra três, você terá três milhões bre o processo de devir.18 Gostaria de sugerir que as premissas subjacentes
e é a mesma coisa que três. Havia decidido
que as coisas seriam feitas três vezes à estratégia do travestimento reverso usadas por Duchamp são o ponto de
para obter o que eu queria”. (em Cabanne,
1987[1967], p.79). Como disse Urs Lüthi,
partida de Journiac. Essa estratégia disruptiva é o que Journiac almeja com
outro mestre das artes do travestimento, seus trabalhos.
em um de seus trabalhos: “three is to go on
with”. Mas Homenagem à Freud leva o argumento adiante: o travestimento
não é apenas uma operação que desloca um corpo original e supostamente
18 Sobre os alter-retratos e o paradigma
fotográfico de Rrose Sélavy, cf. Grunvald,
natural em relação às normas e expectativas sociais. Mais do que isso, ele é
no prelo. o meio primordial através do qual todos os corpos e pessoas vem à vida e
ganham significância. Journiac se traveste como seu pai ou mãe, mas mesmo
estes estão, em última instância, travestidos de si mesmos. Não há um Eu
original ou estado pronto para a vida, nenhum corpo emerge sem as perfor-
mances que os engendram.
Se essas imagens funcionam como índices da agência de Journiac que
emerge, assim, como pessoa distribuída – nos termos de Gell (1991) – e se
podem ser vistas como documentos performativos usados pelo artista em sua
atuação, então, é certo que Journiac estava se situando politicamente em um
debate caro ao seu tempo. Ele apostava que o cruzamento das fronteiras de

72 8
gênero era uma ferramenta poderosa e eficaz de desafiar normas estabeleci-
das. Foucault, em uma entrevista a Jean Le Bitoux em 1978, articula essas
questões:

Historicamente, quando se olha ao que eram práticas homossexuais,


como apareciam na superfície, é absolutamente correto que a refe-
rência à feminilidade tem sido muito importante, pelo menos certas
formas de feminilidade. Esse é todo o problema do travestimento; ele
não é estritamente ligado à homossexualidade, mas é, sem dúvida,
parte dela. (2011[1978], p.11)

Talvez poucas insígnias sejam tão inteligíveis à nossa sensibilidade his-


tórica quanto o triângulo rosa usado pelos nazistas para marcar os homosse-
xuais. Esse reconhecimento é amplo em grande parte devido ao fato de que
os então chamados movimentos de liberação homossexual reapropriaram o
triângulo como símbolo de um orgulho gay, a despeito – ou, eu diria, por
causa – dele ter sido criado como insígnia de vergonha. A força performativa
das interpelações e práticas relacionadas à vergonha são fundamentais naquilo
que Eve Sedgwick chama de “epistemologia do armário” (1990), contra as
quais as reivindicações de orgulho emergiram.
Em Ação de um corpo excluído de 1983, Journiac literalmente se queima
com um triângulo, nos relembrando, uma década após iniciar seus travesti-
mentos, que as questões relativas ao gênero e à sexualidade não podem ser
subestimadas em sua vida e obra. Ainda que alguns historiadores e críticos da
arte tenham sublinhado estas questões, elas em geral aparecem como acessó-
rias em uma discussão mais ampla sobre o conjunto de significados relaciona-
dos às práticas corporais de Journiac de uma forma geral.
Quase que a totalidade dos textos que discutem seu trabalho nem
mesmo falam sobre a importância de sua homossexualidade na arte que pro-
duziu – talvez, indicando o mesmo procedimento de dehomossexualização
do qual Doyle, Flatley e Muñoz (1996) falam em relação à Andy Warhol.
Meu argumento, por outro lado, busca mostrar que a ideia de travestimento
desenvolvida no curso de suas experimentações com posições de gênero está
no centro de sua agência artística e não pode ser pensada senão em conjunção
com a ideia de (homo)sexualidade.
Na já referida carta de 1962, Journiac claramente associa sua homos-
sexualidade a um devir-mulher. Ele fala: “Eu me tornei ‘a menina’, aquela
da qual se fala no feminino, aquela que deve ser excluída das conversas entre
homens” (2013, p.18). As performances de Journiac travestido são, de al-
guma forma, os momentos em que ele deliberadamente (orgulhosamente)
devém mulher mais do que é feito mulher pelas interpelações de vergonha
realizadas por outros. E se, para ele, gênero e sexualidade importam tanto
quanto o corpo importa e suas performances travestido são as que fazem mais
explicitamente essas conexões operacionais e visíveis, então, a natureza desse
travestimento deve ser problematizada e apreendida.

As políticas do travestimento
No seu livro sobre as políticas da performance, Peggy Phelan discute
aquilo que chama “teatro do travestimento” e afirma que ele é “[t]alvez o me-

8
73
lhor exemplo performativo da função fálica”. Ela continua:

Um homem imita a imagem de uma mulher para confirmar que ela


pertence a ele. No entanto, é necessário e desejável performar essa ima-
gem externa e hiperbolicamente porque ele deseja se ver na possessão
dela. Performar a imagem daquilo que ele não é o permite dramatizar
a si mesmo como ‘todos’. Mas a performance do travestimento não
produz e não pode produzir ‘a mulher’. Ao invés disso, ela reencena a
performance da função fálica – marcando ela como ele. (1993, p.17)

Com a percepção talvez deformada pelas minhas próprias referências,


eu imagino que algo inteiramente diferente acontece nas performances de
Journiac que analiso aqui. A leitura perversa que faço delas sugere que, no
jogo de subjetividades que ele realiza, é o homem que é levado pela mulher.
Através dessas performances, ele assegura que a pessoa “da qual se fala no fe-
minino” (interpelação de vergonha) é também a pessoa que fala e, mais ainda,
se constrói performativamente no feminino (assertividade de orgulho).
É possível que Journiac e outras performances do travestimento sejam
apenas uma questão de pessoas (homens) que querem se ver na possessão
de pessoas (mulheres) como sugerido por Phelan? São homens e mulheres,
masculino e feminino, afinal de contas, as únicas posições possíveis no jogo
de identidades de gênero e sexuais?
O argumento de Phelan trabalha com muitas pressuposições difíceis
de aceitar: (1) homem e mulher são identidades estáveis e, portanto, um ho-
mem performando em uma mulher não pode ser nada mais do que uma
mulher na possessão de um homem; (2) a própria ideia de possessão é uma
ladeira escorregadia para o conceito de identidade como algo que se tem e
não como algo que se faz; (3) nas performances do travestimento, a subjetivi-
dade que performa está sempre no comando em relação à subjetividade que
é performada.
Com todas essas hipóteses na mente, não parece improvável que se
pense em uma “misoginia que subjaz o travestimento de homens gays” (1993,
p.101). E é certo que a única maneira de tornar essa ideia efetiva é calcá-la em
uma distinção que supõe uma performance que tem sua origem na subjetivi-
dade e a objetividade de uma assim chamada realidade – ou ontologia, para
19 Amelia Jones também aponta para usar os termos de Phelan (p.105).19
a “referência aparentemente sem
constrangimento ao ‘real’” (2006, p.33) de Acredito que o mundo de uma travesti é constituído por ambigüida-
Phelan.
des e contradições mais do que posições coerentes e estáveis. O que, é claro,
não significa que a prática do travestimento (ou cross-dressing) não opere
através de representações e ideias bastante normativas; muito pelo contrário.
Precisamente, a questão é como um uso criativo e diferencial das normas –
calcado na contradição e no paradoxo – subverte os princípios subjacentes às
próprias normas que lhe deram vida e que o tornaram possível. Como atesta,
aliás, a série 24 horas de Journiac.
Com efeito, a realidade ou ontologia (do sexo), se existente, não ofe-
rece um lugar seguro para codificar as posições de gênero. Como escreveu o
poeta cubano Savero Sarduy em um artigo publicado em 1975 na revista Art
Press: “O travesti está localizado no fim da competição entre os sexos: em sua
vacilação, onde a contradição é tanto mantida e enfatizada quanto apagada”

74 8
Fig. 5. Michel Journiac. 24 heures dans la vie
d'une femme ordinaire, 1974

(p.13).
Ainda que sofisticado em muitos sentidos, os argumentos de Peggy
Phelan sobre as performances do travestimento são pouco palatáveis para
mim. Carmelita Tropicana, a persona criada pelo travestimento da artista
Alina Troyano, dificilmente os engoliria. Tropicana é, em algum sentido,
invenção de Troyano, mas isso não significa necessariamente que é ela que
está no comando. Como disse em uma entrevista: “Carmelita tem chutzpah.
Alina, por outro lado, tem muitos medos” (Román e Tropicana, 1995, p.90).20 20 As práticas de travestimento são,
indubitavelmente, muito diversas. De fato,
Estaria Alina performando Carmelita porque quer se ver na possessão no trabalho de campo que realizo com
crossdressers brasileiros há quase dez anos,
dela? Seria essa lógica da dominação realmente aplicável? “Carmelita tem vida a sua subjetividade feminina (suas pulsões,
própria. Ela fala com um acento, pensa diferente de mim, mas somos colabo- desejos e impulsos) é sempre mais forte
que a masculina e normalmente ocupa uma
radoras maravilhosas!” (Román e Tropicana, 1995, p.88). posição investida com o poder de mudar
as circunstâncias nas quais estas pessoas
Os argumentos de Phelan sobre as performances do travestimento pa- vivem – naturalmente, tanto para o bem ou
quanto para o mal. Apesar do fato dele (a
recem similares àqueles argumentos que, em última instância, reduzem qual- subjetividade masculina) ser supostamente
quer potencial subversivo de práticas homossexuais a uma leitura coerente, o lado predominante da relação, quem
“está com a bola toda” é sempre ela (a
mas simplista do que então aparece como relações narcisísticas e falocêntricas subjetividade feminina).

entre homens. Foucault nos lembra que “a questão da feminilidade aparece


[...] com grande ambiguidade no coração da homossexualidade.” (Foucault
and Le Bitoux, 2011[1978], p.396). Ela permite à psiquiatria controlar e
normalizar o corpo dos homossexuais. No entanto, mais recentemente, “ela
permitiu que fosse levado a cabo um contra-ataque inverso”. Ele pontua que:

Como resultado, emergiu a possibilidade estratégica de relações com


os movimentos feministas. E o direito para os homossexuais de dizer,
nossa preferência [gôut] por homens não é uma forma distinta de culto
falocêntrico, mas uma certa maneira de colocar a questão da femini-
lidade para nós que somos homens. Para que possamos, nós também,
colocar essa questão (Foucault and Le Bitoux, 2011[1978], p.396).
Não estaria Journiac fazendo também essa reivindicação política?

8
75
Não estaria ele colocando a questão da feminilidade para ele enquanto
homem (gay)? Ao expor a construção normativa das concepções da mulher
na mídia, não estaria ele colocando a questão da feminilidade mesmo para as
mulheres? Mesmo “as mulheres como entidade molar precisam devir-mulher”,
escreveram Deleuze e Guattari alguns anos depois.

Pensamentos inconclusivos
Para finalizar gostaria de retomar o tropo do vampiro com o qual co-
mecei o texto e lembrar um outro aspecto presente em algumas versões de sua
mitologia, qual seja, a ideia que os vampiros não tem sua imagem refletida
no espelho. Eu tomo essa afirmação como se referindo não tanto ao vampiro,
mas ao espelho. Se Alberti, autor do primeiro tratado da pintura ocidental,
pôde reivindicar Narciso como o inventor da pintura é porque, segundo ele,
“o espelho é e deve ser o critério de toda similaridade, de toda imitação”
21 Como discutido por Jones, a noção (Bonafoux, 2003, p.24).21
de prática artística de Alberti está em
conluio com uma concepção particular do Outra versão dessa mesma fábula é aquela que anuncia, não o reflexo
artista como aquele que “simboliza tanto
o indivíduo centrado da cultura europeia
fidedigno dos espelhos, mas a visão límpida e transparente através de janelas.
moderna quanto funciona como um caso Considerada quer como espelho quer como janelas para o mundo, a arte
exagerado ou extraordinário do indivíduo
(seguro em seu acesso privilegiado à verdade estaria mergulhada em um modelo de relacionalidade em que a semelhança é
visual através de seu alinhamento ou fusão
com um deus omnisciente).” (2006, p.5). entronizada como princípio norteador.
Um modelo completamente diferente é oferecido pela Fresh Widow de
Marcel Duchamp, por exemplo. O título é, como sempre, uma piada, uma
ironia. Nos Estados Unidos, as janelas normalmente abrem para o exterior. As
poucas que abrem para o interior são chamadas de janelas francesas, “french
windows” ou “fresh widow” para usar um inglês deformado pelo sotaque
francês. Em vez do vidro translúcido como de costume, Duchamp construiu
a janela com couro preto. A ideia não poderia ser mais distante de um modelo
de relacionalidade pautado pela semelhança: nenhuma visão passa através da
janela dando acesso a uma realidade lá fora, nenhuma reflexão é oferecida para
a subjetividade aqui dentro.
Gostaria de sugerir que, se o vampiro não tem sua imagem refletida
no espelho, não é por alguma ausência psicanalítica – vampiros tem falo? –,
mas porque o espelho, em seu mundo, tem outra natureza que o faz perder
22 Segundo Deleuze e Guattari, o mesmo completamente a pertinência.22 A troca de fluidos entre os corpos através das
pode ser dito do próprio pensamento. “O
pensamento é como o Vampiro, não tem mordidas conecta pessoas e cria, assim, uma composição inteiramente dife-
imagem, nem para constituir modelo, nem
para fazer cópia” (1997a[1980], p.47).
rente. Que pessoa o espelho deveria refletir? Que realidade está ali para ser
analisada? Não estariam aí as mesmas premissas que sustentam o trabalho de
Journiac quando considera o travestimento não como um processo secundá-
rio que desloca um Eu original, mas como o processo mesmo pelo qual toda e
qualquer subjetividade é criada e recriada? Mesmo seus pais estão travestidos
deles mesmos!
Em seu trabalho, Journiac parece propor um princípio relacional se-
gundo o qual as posições de sujeitos nunca estão garantidas já que não há
modelo original para estabilizá-las. Nem mesmo o humano. Tão cedo quanto
1974 – portanto, um ano antes de 24 horas –, com a peça Journiac travestido
em Deus, esse argumento é colocado adiante. Não se trata apenas de cru-
zamentos e transmutações que podem ocorrer entre posições sexuais e de
gênero, mas também entre outros tipos de seres, cortando transversalmente

76 8
inclusive a fronteira entre o humano e o sagrado. “O supernatural se impõe”,
escreveu Marcel Paquet (1977, p.25).
Journiac travestido em cadáver e todo o conjunto de trabalho derivado
de sua obsessão por ossos e esqueletos conduz à ideia de que a investigação
em relação aos modos de existência não se trata apenas de aparência externas,
mas igualmente de composições internas. Vampiro, composição de natural
(homem) e supernatural (espécie de Deus); composição de vida e morte. Algo
no meio.
Se tomarmos esses trabalhos em conjunção com suas considerações em
relação às roupas, chega-se a um modo de existência fractal. Por um lado, ele
disseca o corpo, o abre, o invade e o subtrai em direção aos ossos. Por outro
lado, ele o fermenta, o aumento e o amplifica através das roupas. Interior e
exterior não fazem mais sentido. As roupas são a forma do corpo até a putre-
fação que apenas os ossos resistiram...
Trata-se inteiramente de modos de estar-no-mundo, sua intercambia-
lidade e a impossibilidade de um sentido sólido e imutável tanto de coerência
interna (subjetividade estabilizada como identidade) e consistência externa
(mundo estabilizado como realidade).
As alter-imagens de Journiac parecem estar sempre apontando para o
que Jones chama de “o nunca suficiente – a tendência do corpo de ultrapassar
modelos oposicionais de significação quando representado através de tecnolo-
gias de imagem visual” e, com isso, “o acolhimento da perda de limites, como
algo com potencial político radical” (2006, pp.18, 21). Refinando os argu-
mentos que tenho adiantado até agora, sugiro que a ênfase de Journiac está
sempre no meio. O que não é mais um homem, mas ainda não uma mulher?
O que não é mais humano, mas ainda não Deus? O que é isso que eu não
sou mais, mas estou prestes a me tornar, sem nunca completar integralmente
o processo tornar-me?
O método de Journiac para adentrar essa “zona de vizinhança” ou
“zona objetiva de indeterminação ou incerteza”, como diriam Deleuze e
Guattari, está intimamente relacionado com a contradição. “Toda prática é
definida como a criação de uma negação-distância” (Journiac, 2013, p.113).
Ele constantemente declarou que NÃO é – deve ser – a operação fundamen-
tal das práticas artísticas, o seu funcionamento. O NÃO funciona a fim de
introduzir paradoxos como críticas imanentes e, portanto, expõe contradi-
ções internas.
Pensando sobre o que eu quero dizer por contradição interna, para-
doxo e curto-circuito, lembrei-me de um episódio que ocorreu alguns meses
antes de escrever este artigo. Indianara Alves Siqueira, uma travesti brasi-
leira que lidera a agitação política em torno da Marcha das Vadias do Rio de
Janeiro, estava na rua com os outros membros do grupo em uma de suas ma-
nifestações. Ela não estava usando qualquer peça de roupa na parte superior
do corpo e, portanto, tinha os seios expostos. Em determinado momento,
a polícia chegou e a deteve por atentado ao pudor. Ela foi liberada algum
tempo depois com um aviso de que teria que ir a um Tribunal de Justiça para
explicar a ocorrência, ser julgada e receber a sentença.
Participante ativa em fóruns e comunidades online sobre os direitos
LGBT, Indianara começou a postar em diversos desses lugares sua estraté-

8
77
gia legal. Se as autoridades judiciais a condenassem por atentado ao pudor
por não usar camisa em espaço público, estariam reconhecendo-a legalmente
como mulher que, assim sendo, não teria o direito de mostrar os seios em
público sem cometer a infração da qual havia sido acusada. Isso abriria um
precedente legal para que todas as outras travestis fossem juridicamente re-
conhecidas como mulheres e não tivessem apenas seus “nomes sociais” nos
documentos. Se, por outro lado, ela não fosse reconhecida como mulher, a
justiça não poderia condená-la, uma vez que a um homem lhe é permitido
ter a parte superior do corpo completamente nua e exposta em público. Essa
foi a armadilha de Indianara.
Naturalmente, Michel Journiac e Indianara Siqueira são separados por
diferentes realidades nacionais e sociais, diferentes tempos e assim por diante.
No entanto, pode-se dizer que vibram na mesma frequência na medida em
que provocam tremores que desestabilizam o mundo social a partir de dentro.
Para ambos, não é uma questão de criar novas convenções que seriam su-
postamente livres das restrições da coerção social. Declarações supostamente
libertadoras sempre podem ser facilmente recapturadas pela lógica social do-
minante e convertidas seja em desvios seja em exceções à normalidade. E tudo
seguiria como sempre seguiu.
De maneira diversa, eles colocam em curso um engajamento político
baseado em incongruências internas e não em um novo conjunto de alterna-
tivas. Executam estratégias em que, “a partir das formas que se tem, do sujeito
que se é, dos órgãos que se possui ou das funções que se preenche” (Deleuze
e Guattari, 1997b[1980], p.64), o importante é implodir e minar o estado
atual de coisas, especialmente em relação às normas repressivas de gênero e
sexualidade. Não para a construção de uma outra série de convenções, mas
para dar ao mundo movimentos, ficar à deriva no mar aberto.
A ideia de deriva foi profusamente utilizada por artistas franceses na
época de Journiac. Roland Barthes, em um texto publicado na revista Art
Press, em 1973, explica que

[A] deriva é uma busca ativa de dissociação. É a consistência agressiva


das línguas que visa ser dissociada. Deriva é uma prática de inconsis-
tência. Não há forma de escapar da guerra de línguas (o que queremos,
mas não podemos); simplesmente isso: apontar para um outro lugar
que está dentro (essa é a mesma imagem da palha flutuante), usar
milhares de práticas de escrita para frustrar as aquisições, os acessos
fáceis, as garantias, todo esse querer-alcançar que está à espreita na
organização da própria linguagem. (1973, p.9).

Em 24 horas, por exemplo, Journiac utilizou as convenções mais essen-


cializadas sobre o que uma mulher é e faz e as transformou em uma poderosa
ferramenta com a qual ele pôde criticar e quebrar a coerência e a consistência
das próprias normas, expondo aquilo que Bruce Nauman, na obra Window
or wall sign, chama de “verdades místicas”.

78 8
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8
81

82
4
COMUNICAÇÕES

Regimes de visualidade do retrato fotográfico: técnica, estética e cultura


ALINE SOARES LIMA1

Resumo
Desde a invenção do daguerreótipo, em 1839, a fotografia assumiu, progressivamente, a função social de representação
retratística dos indivíduos. O desenvolvimento dos procedimentos técnicos da fotografia possibilitou a popularização não
apenas do direito de representação do sujeito, antes restrito à aristocracia, como também do processo de produção das
imagens em si, provocando uma mudança no regime do olhar e da cultura visual retratística. Com base neste contexto,
proponho caracterizar alguns aspectos estéticos, técnicos e socioculturais presentes em três diferentes fases da história da
fotografia, e que acabaram por dar origem a certos regimes visuais do retrato fotográfico. O olhar lançado sobre o tema dá
ênfase ao retrato fotográfico doméstico, a partir de uma perspectiva histórica da cultura visual retratística.

Palavras-chave
Comunicação; cultura visual; fotografia; retrato fotográfico.

O desejo de representação parece sempre ter feito parte da subjetivi- 1 Aline Soares Lima é doutoranda em
Ciências da Comunicação pela Universidade
dade humana. E na atualidade, com as tecnologias digitais da imagem, este do Minho, mestre em Cultura Visual e
Bacharel em Comunicação Social, com
desejo torna-se mais facilmente consumável. Nunca, na história da humani- habilitação em Publicidade e Propaganda,
dade, tantas imagens foram produzidas e tantos meios diferentes teve para pela Universidade Federal de Goiás.
É membro do Centro de Estudos de
circular. As imagens de si, ou os chamados “selfies”, ilustram bem este frenesi Comunicação & Sociedade da Universidade
do Minho. Tem experiência em estudos
que a massificação das tecnologias da imagem e a onipresença dos dispositi- da imagem, semiótica social, fotografia,
representações visuais identitárias.
vos fotográficos na vida cotidiana criou. E como para entender o presente é
preciso olhar para o passado, a inquietação que se subleva diante deste cenário
visual quase barroco é justamente tentar compreender como as técnicas da
imagem e o desejo de representação dialogam. Com o olhar voltado para o
retrato fotográfico, interessa-nos discutir o avanço dos procedimentos foto-
gráficos e como estes deram origem a novos regimes de visualidade, ou mais
precisamente a novas formulações e possibilidades de retratar e de ser retra-
tado, bem como a novas funções e usos sociais do retrato (Jay, 1988).
A partir de uma perspectiva histórica da cultura visual retratística,
interessa-nos, especificamente, abordar o retrato fotográfico no contexto já
semi-industrial, ou seja, a partir da segunda metade do século XIX. A nossa
atenção recai, neste momento, sobre o tipo de retrato fotográfico mais banal, 2 Os conceitos de diacronia e sincronia
profissional ou amador, mas que tem como assunto principal o sujeito co- são usados de acordo com as premissas de
Saussurre (2006), no sentido de fazer uma
mum, anônimo, sua representação, sua identificação e suas narrativas. O ob- abordagem da sucessão dos acontecimentos,
evoluções e avanços dos procedimentos e
jetivo é discutir algumas das principais mudanças técnicas, estéticas e cultu- linguagem do retrato fotográfica ao longo
de sua história de modo linear. Mas também
rais desta modalidade de retrato fotográfico, buscando observar as inovações nos interessa descrever e analisar o estado
e renovações instauradas, a partir de uma perspectiva histórica, sincrônica e atual, e o estado em diferentes épocas. Deste
modo, o olhar que vamos lançar é, ao mesmo
diacrônica2. tempo, sincrônico e diacrônico.

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83
De modo a tornar este olhar mais sistematizado, o retrato fotográfico
é abordado a partir de três distintos grupos, considerando os seus modos de
produção, circulação e consumo, sendo estes aqui denominados: photocarte,
que teve como marco o desenvolvimento do retrato carte de visite e a po-
pularização dos estúdios fotográficos; photomato, que remete ao período de
surgimento e massificação dos autômatos fotográficos; e instaphoto, que trata
do contexto atual das fotografias instantâneas digitais produzidas sobretudo a
partir de gadgets fotográficos.

O photocarte e a massificação das representações do eu


O contexto no qual a fotografia foi inventada assegurou as condições
para que esta tivesse um desenvolvimento rápido e contínuo, elevando ao ní-
vel industrial a possibilidade de reproduzi-la tecnicamente, além de instaurar
novos discursos sobre a arte (Benjamin, 1992).
Múltiplas foram as descobertas e muitos foram os que contribuíram,
ao longo de sua história, para o aperfeiçoamento técnico da fotografia e para
que esta se apresentasse tal como o século XX a conheceu. Mas o uso do
colódio úmido, inventado pelo inglês Scott Archer em 1851, foi um passo
decisivo para a fotografia, pois viabilizou a rápida obtenção de imagens com
a diminuição significativa do tempo de exposição, a multiplicação de tiragens
a partir de uma única prise de vue, e a redução considerável dos custos de pro-
dução dos retratos, o que se consumou num único projeto com a invenção
do carte de visite. E é o carte de visite, segundo assinala Boisjoly (2006, p. 20),
que vai conduzir a fotografia à maturidade, fazendo-a entrar na era da indus-
trialização e da reprodutibilidade técnica da imagem.
Embora a idealização do carte de visite tenha se dado alguns anos an-
tes, foi em 1854 com o aperfeiçoamento técnico desenvolvido por Eugéne
Disdéri que essa modalidade de retrato teve a sua difusão e se tornou comer-
cial em vários lugares do mundo. Disdéri, que entrou para a história como o
inventor do carte de visite, ou photocarte, desenvolveu um chassi fotográfico
multiplicador que permitia obter vários negativos a partir de uma mesma
placa, fazendo do retrato uma atividade em série. Dessa maneira, Disdéri
conseguiu tornar financeiramente o retrato acessível às classes sociais menos
favorecidas. Para se ter uma ideia, uma dúzia de cartes de visites, pequenos
retratos impressos em papel albuminado com dimensão de 58x89mm, cola-
3 O retrato era colado num cartão, que dos sobre um cartão com 69x110mm3, não custava mais do que 20 francos à
acabava por tornar-se também uma
moldura, sobretudo devido ao fato do papel época de sua invenção, sendo que um único retrato em formato convencional
albuminado ser muito fino. É daí que vem
o nome photocarte, e é interessante notar
era pelo menos três vezes mais caro (Amar, 2010, p. 49).
que mesmo após o desenvolvimento dos Como enfatiza Freund (1995, p. 69), Disdèri compreendeu os fatores
papéis fotográficos industriais, mais espessos
e resistentes, durante muito tempo os que limitavam o acesso popular à fotografia, tratando de criar as condições
fotógrafos de estúdio continuaram utilizando
ainda um cartão colado sob o retrato, agora necessárias para moldar-se à situação econômica das massas e para integrar
já mais por uma questão de modismo.
rapidamente o retrato fotográfico na sociedade. Com efeito, essa populari-
zação do retrato promovida pelos procedimentos fotográficos que Disdéri
alcançou, atendeu ao desejo de representação há muito almejado pela burgue-
sia oitocentista francesa como uma forma de distinção social. Logo o retrato
fotográfico virou um modismo.
Embora Disdéri tenha modificado alguns preceitos do retrato fotográ-
fico mais comumente produzido – tirando o foco do rosto e começando a

84 8
retratar também em busto, em meio corpo e em pé, fazendo-se valer de toda
a estatura –, o fotógrafo levou para a sua prática referências estéticas e sociais
do retrato aristocrático. A ideia de distinção social, que era o que a pequena
burguesia almejava, deveria permanecer e prevalecer, por isso, o retrato carte
de visite tinha essa função de tentar transmitir um certo estatuto social. Para
isso, Disdéri lança mão de um estúdio fotográfico armado em verdadeiro
arsenal de acessórios e vestimentas para situar o sujeito num determinado
papel social, a partir do uso de máscaras de caráter. A referência para as re-
presentações são sempre as classes dominantes, que inspiram a imitação de
seu prestígio social pela pose, pela gestualidade, pelo uso de determinados
elementos materiais, que são ao mesmo tempo também elementos simbólicos
do seu lugar na sociedade.
Estúdios como o de Disdéri espalharam-se rapidamente pela França
até o início da década de 1860, e logo por outras cidades da Europa e do
mundo. Esses ateliês fotográficos eram sempre compostos por cenários orna-
mentados com opulência, com acortinados, tapetes, colunas e mobiliário, de
modo a tentar transmitir a dignidade dos nobres e tentar forjar uma identi-
dade social. Os retratados tentavam imitar os padrões das classes sociais mais
elevadas, apropriando-se de uma simbologia social que pretendia remeter as
suas imagens a uma alta hierarquia. Entretanto, essa intenção acabava por
configurar-se numa paródia na qual a farsa era flagrante, pois denunciava-se
em pequenos disparates, como relata Benjamin ao descrever as críticas sobre
essa prática numa revista da época:

Em imagens pintadas, a coluna tem uma aparência de possibilidade,


mas a forma como é utilizada em fotografia é absurda porque normal-
mente ela está em cima de um tapete. Ora, qualquer pessoa sabe que
colunas de mármore ou pedra não se constroem em cima de tapetes.
(1992, p.123).

O retrato carte de visite desvela a artificialidade do processo de cons-


trução das identidades sociais, tanto dos aristocratas quanto dos pequenos
burgueses, pois ambas as classes se utilizavam de artifícios simbólicos e ma-
teriais para serem identificados e assim afirmar suas identidades. Esse cará-
ter construído das identidades sociais tornava-se mais evidente nas camadas
populares da sociedade devido à apropriação “ilegítima” de elementos que
não pertenciam a tal classe, constituindo um tipo de deslocamento visual.
Em todo caso, este era um processo de percepção social inerente à noção de
identidade, pois induzia o indivíduo a uma tomada de consciência social de
si mesmo, fazendo-o assumir a verdade de sua mentira.
Nesta perspectiva, ao discutir a história social do retrato, Gisèle Freund
(1995), chama-nos à atenção o fato de que o processo industrial de fabrica-
ção do carte de visite, empregado por Disdéri, favorece o desaparecimento da
expressão individual, que era até então a principal característica do retrato,
criando estereótipos sociais a partir de composições que abusavam de uns
poucos elementos materiais para simbolizar a pertença à determinada profis-
são ou camada social. Assim, um tipo de representação do eu que buscava,
além da distinção social, a individualidade do retratado – aspecto do retrato
proporcionado por uma relação de proximidade entre o retratado e um tipo

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85
de fotógrafo que se autodenominava fotógrafo-artista – deu lugar ao quase
desaparecimento da personalidade e ao estereótipo social.
Aos fotógrafos da época, os retratados confiavam a construção de sua
autoimagem: eram os fotógrafos quem lhes forneciam a vestimenta, a pose,
e o sorriso que as cabeças, imobilizadas por um apoia-cabeças, sustentavam
pela ordem do fotógrafo. Apesar disso, o carte de visite de Disdéri tinha como
preceitos para a definição da boa fotografia um ideal estético semelhante às
concepções do retrato pictórico, o que condiz com a tentativa de tentar imitar
o retrato aristocrático.
Em sua L’art de la Photographie (1862), Disdéri define as qualidades
estéticas imprescindíveis para o retrato: fisionomia agradável, nitidez geral,
as sombras, os claros e os meios tons acentuados e brilhantes, proporções
naturais, detalhes nos negros, beleza. E para avalizar o preceito “beleza” e as-
segurar o caráter estético dos retratos, de acordo com os padrões dominantes,
a fotografia inspirou-se mais uma vez nas imagens lisas e arredondadas do re-
trato pictórico. Assim, desenvolveu-se o retoque para camuflar a primazia dos
avanços fotográficos de representar com minúcia todos os detalhes do rosto,
de modo que os retoques começaram a ser feitos nos retratos para fazer desa-
4 A manipulação ou “correção” dos retratos parecer imperfeições da pele, rugas e atenuar as feições4. Tal prática, tornou
fotográficos já era uma prática empregue
desde os primórdios da fotografia. Os mais comum a coloração das fotos por meio da pintura da fotografia, algo que
softwares do século XXI, como o photoshop,
apenas atualizaram tal prática com as
já era feito desde o daguerreótipo, mas que configura-se em outro modismo
tecnologias digitais contemporâneas. próspero no universo do retrato comercial.
O custo relativamente baixo para uma pequena burguesia desafogada
economicamente e o caráter múltiplo do carte de visite, fez surgir a prática
de distribuição dos cartes de visite entre familiares, amigos e conhecidos, o
que era também uma forma do indivíduo se integrar socialmente. Tornou-se
mais um modismo relativo ao retrato fotográfico colecionar cartes de visite
em sumptuosos álbuns ricamente ornamentados. Nesses álbuns tanto figura-
vam os retratos dos familiares quanto de personalidades e celebridades, estas
últimas cópias vendidas pelos fotógrafos, forjando, como sugere Jaguaribe,
a existência de “uma verdadeira comunidade visível da boa sociedade que, ao
mesmo tempo em que nivelava a todos, emprestava a cada um a dignidade
que emanava de seus vizinhos de página” (JAGUARIBE, 2007, p. 46). Assim,
“os fotógrafos tornam-se intermediadores sociais”, como bem observa Amar
(AMAR, 2010, p. 52).
Com o álbum de retratos, Disdéri compreendeu o papel que o carte de
visite poderia desempenhar nas trocas usuais, tanto entre pessoas próximas,
quanto nas relações sociais, e até mesmo comerciais, como forma de autoa-
firmação. Como nos diz Fabris, o “efeito Disdéri não pode ser dissociado de
uma análise dos usos e funções sociais do retrato na sociedade oitocentista”
(FABRIS, 2004, p. 28). O retrato fotográfico, nesse contexto, desempenha
um importante papel no processo de construção das identidades sociais, de
distinção e reconhecimento social, pois torna-se um agente que transpõe a
identidade para o âmbito das normas de identificação e que categoriza os
indivíduos em grupos sociais – de tal modo, cabe questionar em que medida
o carte de visite foi de fato um projeto que teve êxito em promover a democra-
tização do direito de representação do eu, pois ao fim e ao cabo, atendeu ao
desejo de personalização despersonalizando.

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Nos anos vindouros, o que originalmente chamou-se retrato carte de
visite encontrou uma série de pequenas modificações e desdobramentos, com
diferentes formatos e dimensões, mas quase sempre populares e sem preten-
são artística, recebendo inclusive outras denominações, como mignon, cabi-
net, promenade, boudoir, impérial.
Mas o retrato oitocentista não escreveu a sua história apenas nos estú-
dios. O ferrótipo, que teve as suas primeiras utilizações também na década de
1860, era uma técnica fotográfica que permitia obter provas positivas diretas
sobre uma placa metálica a partir de um negativo, possibilitando assim a pro-
dução de instantâneos fotográficos em miniatura, que eram posteriormente
colados sobre um cartão, ao estilo do carte de visite.
Um fotógrafo ferrotipista poderia entregar os retratos aos seus clientes
poucos minutos depois da tomada da imagem. Este procedimento, além de
ter um custo mais baixo do que o comumente utilizado em estúdio, que ti-
nha como base uma placa de vidro, exigia menos cuidados e possibilitava até
mesmo a mobilidade do fotógrafo e do seu equipamento. Por isso, os ferroti-
pistas, eram, em sua grande parte, profissionais ambulantes, e por um custo
muito baixo, ofereciam aos seus clientes até doze retratos em miniatura idên-
ticos, realizados simultaneamente. Os ferrotipistas estavam principalmente
em feiras e parques de pequenas aldeias e em áreas rurais, mas também nas
grandes cidades retratando as pessoas das classes menos afortunadas da popu-
lação. Por isso, o ferrótipo ficou conhecido como o photocarte do pobre, de
tal modo que tudo parecia pobre nessa prática: “pauvre est le matériau, pauvre
est le format, pauvre est le lieu de la prise du vue, pauvre en fin est le petit peuble
représenté” (BOISJOLY, 2006, p. 23).
Ainda assim, o retrato fotográfico oitocentista ficou marcado pela era
de ouro dos estúdios e os modismos criados a partir do carte de visite, que
inseriu o retrato na era da reprodutibilidade técnica da imagem, inaugurando
um processo de representação em massa, democratizando o direito de repre-
sentação, e instaurando de modo sólido um comércio fotográfico.

Fig. 1.
PHOTOCARTES.
Retrato de estúdio,
carte de visite do
estúdio de Disdèri,
frente e verso,
anônimo, Paris,
[ca.1860], coleção
particular.

Fig. 2. Retrato de
estúdio, papel fotográfico
colado sobre cartão,
anônimo, Portugal,
[ca.1930], coleção
particular

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87
Os photomatos e a automatização do retrato fotográfico
Se o retrato carte de visite inaugura o período de democratização do
poder de representação, o desenvolvimento técnico posterior da fotografia
instaura a democratização da técnica de representação, com a automatização
dos processos fotográficos.
A prática fotográfica até os anos de 1890 estava condicionada à pre-
sença do fotógrafo profissional – ainda que muitos pudessem ser questiona-
dos acerca da sua real qualificação –, e o ato de retratar estava muito vincu-
lado ao espaço dos estúdios. No final do século XIX, milhares de estúdios
fotográficos já estão espalhados pela Europa e um número ainda maior pela
América. No entanto, os novos avanços técnicos da fotografia desenvolvidos
a partir de 1880 já sinalizam um período de decadência dos estúdios. O sur-
gimento dos autômatos fotográficos portáteis, capazes de produzir retratos
com a mínima intervenção do fotógrafo e com uma grande simplificação dos
procedimentos técnicos é, de todos os eventos, o que mais contribuiu para o
fim da época de ouro dos estúdios fotográficos, e para a democratização das
técnicas de representação.
Embora o ferrótipo não tenha sido muito difundido, o seu procedi-
mento técnico possibilitou o surgimento dos autômatos fotográficos, máqui-
nas que produziam de modo mecânico e automático os retratos. Assim como
os antigos ferrotipistas, essas máquinas são instaladas em boulevards, jardins,
praças, teatros, feiras e parques de atração. O autômato Bosco foi um dos pre-
cursores desse tipo de procedimento fotográfico. Com fácil utilização e baixo
custo, encontrou um grande sucesso popular logo no começo do século XX.
O grande atrativo do Bosco era oferecer em quatro minutos e em troca de
uma moeda de valor módico, um retrato revelado, lavado e seco, colado sobre
um cartão postal, com o endereço do estúdio, número de série e, por vezes
o nome do procedimento utilizado: Photo-Mécanique ou Photo-Automatique
(Pellicer, 2011, p.19). Algo similar ao photocarte, mas ainda mais barato.
Sentado numa banqueta ao ar livre e de frente ao aparelho fotográfico,
o retratado agora, em vez de ouvir as ordens para a pose virem do fotógrafo,
lê-as diante de si, na própria máquina: “Attention! Tournez la tetê à droite, fixez
la croix au-dessus du miroir... et souriez”. Com as orientações da máquina e
não mais do retratista, o retrato continua a ter um caráter padronizador das
feições e das representações, como no carte de visite.
Mas foi em 1926 que surgiu, de fato, o primeiro estúdio de fotos to-
talmente automatizado: uma pequena cabine fotográfica a partir da qual é
possível obter oito retratos diferentes em oito minutos sem a intervenção
de um fotógrafo. De uma cabine fotográfica na qual o retratado insere uma
moeda e recebe automaticamente os seus retratos, nasce o photomaton, um
mecanismo fotográfico simples, confiável e sem qualquer pretensão estética.
O mecanismo criado em Nova Iorque pelo inventor de origem russa Anatol
Joseph obtém enorme sucesso na América e logo se difunde pelo mundo.
Aparelhos similares e cabines fotográficas genéricas do photomaton também
são criados às dezenas, como a Phototerie e a Photomatic nos Estados Unidos e
Canadá, e espalham em definitivo o modismo dos retratos photomaton.
O sucesso do photomaton em detrimento do seu antecessor Bosco se
deve ao fato de se tratar de uma cabine na qual o retratado entra, se isola e se

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protege do olhar dos outros por meio de uma cortina. Tem, por isso, privaci-
dade para ignorar as instruções da máquina em relação à pose e se posicionar
ante a objetiva como bem entender: rápido, barato e sem exigir qualquer
intermédio, o photomaton representa a libertação do retratado do olhar do
fotógrafo e um renascimento da fotografia social (Boisjoly, 2006).
Nos retratos photomaton figuram agora indivíduos que se expressam
mais à vontade diante do dispositivo fotográfico, menos rígidos em relação
à pose, à vestimenta, à gestualidade. Da mesma forma, o interior da estreita
cabine e o seu fundo monocromático alivia a carga social que tinha o estúdio
e o ato de tomada da foto. Com o retrato photomaton, volta a ter importância
a expressividade individual, ainda que os próprios retratados já entrem na
cabine com uma série de preceitos acerca do ritual de ser retratado, da pose, e
etc. Contudo, neste momento, o retrato se aproxima mais da ideia de autorre-
trato, pois livre do olhar do fotógrafo, cabe ao indivíduo, em sua idiossincra-
sia, constituir uma autorrepresentação diante da objetiva. Com o photomaton,
o foco volta a ser o rosto do retratado e não todo o teatro armado em volta do
indivíduo no retrato de estúdio, e que dele fazia quase um figurante.
Ao voltar a dar ênfase ao rosto, o photomaton que tem, desde a sua
invenção, a vocação de identificação rápida do indivíduo, torna-se não so-
mente muito usual como retrato de identidade, mas também se fixa como
um padrão de fotografia oficial a partir dos anos 1930. O desenvolvimento
do método judiciário antropométrico de Bertillon, na França, definiu um
formato e normas rígidas em relação à fotografia de identidade:

La taille du visage doit désormais faire de 32 à 36 mm, du bas du men-


ton au sommet du crâne (hors chevelure). La photo doit être nette,
sans trace, ni pliure. Une photo en coleurs est fortement recomman-
dée. La tête doit rester nue, les couvres-chefs, foulards et autres serre-
-têtes sont interndits. Le sujet doit présenter son visage face la objetif,
tête droite, fixer l’objetif, adopter une expression neutre et avoir la
bouche fermée. Le visage doit être dégagé, les yeux parfaitement visi-
bles et ouverts (les lunettes son déconseillées). On en revient presque
à la méthode Bertillon. (PELLICER, 2011, p. 84).

Tal padrão acaba por ser adotado em diversos outros países, de modo
que a palavra de ordem para o retrato de identidade, nessa época, resume-se
ao imperativo: “n'est pas permi rigoler!” (Ibid.).
Mas os retratos photomatons também tiveram lugar como objeto co-
mercial da cultura de massas enquanto photo-souvenirs. As fotos tiradas em
parques e feiras de atrações ganhavam um encarte em formato de cartão pos-
tal, que poderia receber uma mensagem pessoal antes de ser enviado ao des-
tinatário como uma lembrança de um amigo ou ente querido, reafirmando o
caráter emocional do retrato ao possibilitar o resgate de memórias de pessoas,
de momentos recentes ou de um tempo passado.
Se o photomaton assinalou o declínio do carte de visite com a substi-
tuição do estúdio clássico pela cabine, e do olhar subjugador do fotógrafo
pelo olhar mecanizado de uma lente e sua objetiva, o desenvolvimento da
nova geração de aparelhos e equipamentos fotográficos automáticos de sim-
ples utilização democratiza, de modo incontornável, a técnica fotográfica e a

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89
construção de novos olhares.
A idealização das primeiras máquinas fotográficas Kodak, ainda 1888,
se encarregou da automatização total das câmeras portáteis para serem uti-
lizadas por amadores, e deu início ao que se tornaria o novo fenômeno so-
cial de massa da fotografia a partir de 1950: as câmeras fotográficas de uso
doméstico.
Mais do que simplesmente oferecer um aparelho de simples utilização,
as lojas de equipamentos fotográficos e estúdios espalhados por vários lugares
do mundo, colocavam-se à disposição dos seus clientes para revelar os retratos
e carregar novamente o aparelho com um novo filme fotográfico, já apto para
realizar mais registros.
Na década de 1970, o tempo de exposição da fotografia reduziu-se para
1/1000 de segundo, e com esse avanço técnico surge a noção de instantâneo
fotográfico e uma mudança nos paradigmas da imagem fotográfica. Assim,

[...] o campo da fotografia diversifica-se, graças especialmente a novos


acessórios ópticos, que permitem visualmente, aproximar ou recuar o
tema a fotografar, sem necessidade de se deslocar. A grande angular e a
panorâmica trazem modificações do olhar sobre o mundo, em relação
ao campo de visão tradicional do olho humano (BAURET, 1992, p.
20).

Como enfatiza Freund (1995, p. 92), os progressos técnicos que tor-


naram possível a popularização e sucesso do retrato fotográfico foram os mes-
mos que fizeram sucumbir o ofício do retratista, pois na medida em que a
técnica de reprodução mecânica foi tomando mais importância em detri-
mento da prática e dos conhecimentos particulares do fotógrafo profissional,
o trabalho deste tornou-se cada vez mais desprestigiado, sobretudo a partir
do aparecimento das primeiras máquinas de fácil manipulação da Kodak e
Leica, que fez a técnica acessível e permitiu a cada indivíduo um exercício
fácil nesse domínio.
Nesta medida, as pessoas que antes recorriam aos fotógrafos para fazer
os seus retratos, agora os faziam elas próprias. Os numerosos estúdios passam
a dar lugar às lojas de fotografia de propriedade, quase invariavelmente, dos
antigos retratistas que já não conseguem sobreviver apenas da atividade de
fotógrafo.
Tais mudanças no ambiente da fotografia evocam para o dispositivo
fotográfico novos usos e funções, da mesma forma que provocam mudanças
estéticas e no próprio assunto a ser retratado. Com os aparelhos fotográficos
portáteis, o retrato sai em definitivo do estúdio e também já não se restringe
ao estreito espaço das cabines fotográficas, ganhando novos temas, ambien-
tações e narrativas.
Os fotógrafos retratistas profissionais passam, basicamente, a ser soli-
citados apenas para ocasiões especiais, para o registro de rituais e cerimônias
sociais, como casamentos, batizados, etc., mas não com exclusividade. Os
próprios indivíduos, com suas câmeras em mãos, fazem também os seus pró-
prios registros, ampliando ainda o uso da fotografia e a produção de retratos
para a esfera do cotidiano.
O álbum de retratos de família também ganha um novo significado,

90 8
Fig. 4. Retrato de família,
anônimos em frente à vinha,
Portugal, [ca.1860], coleção
particular.

Fig. 3. PHOTOMATOS. Photomaton


francês, anônimo, [ca.1920], coleção
particular.

Fig. 5. Retrato de família,


aniversário, anônimo, Portugal,
[ca.1860], coleção particular.

passa a narrar a vida familiar desde o casamento, nascimento dos filhos, a


primeira papa, os primeiros passos, o primeiro aniversário, comemorações
de natal, as férias em família, etc. Nesta perspectiva, subleva-se a memória
afetiva que os retratos guardam. Os álbuns tornam-se crônicas visuais da vida
familiar construídas de modo mais ou menos linear, nem sempre seguindo
uma cronologia, e ganhando contornos emocionais mais aprofundados e de-
talhados quando acompanhados por narrativas orais de quem apresenta as
fotografias.
São estas algumas novas dinâmicas do olhar e da memória visual que
as técnicas instauram com a fotografia amadora analógica. Os autômatos fo-
tográficos trazem, em termos práticos, a mecanização do olhar na fotografia,
exigindo do retratado um olhar sobre si mesmo, ou a construção de uma
autorrepresentação não mais subjugada ao olhar do fotógrafo, e a construção
de um olhar sobre o mundo que o cerca.

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91
Instaphoto: do instantâneo ao simultâneo
O século XIX, era da máquina e do capitalismo moderno, não só viu
modificar-se o caráter dos rostos no retrato, como também a técnica empre-
gada para a sua concepção. Contudo, em momento algum, a relação entre
o progresso e a universalidade da técnica fotográfica foi tão latente quanto
agora, com a fotografia digital e os seus instantâneos, que se constitui como o
mais popular dos processos fotográficos.
As novas tecnologias fotográficas permitem que a cada segundo milha-
res e milhares de fotografias sejam produzidas em todo o mundo, situando
a produção de retratos na contemporaneidade mais ao nível do impulso do
que de uma atividade projetada para registrar uma cena para a posteridade.
Na fotografia de hoje, o instante, tal qual é na dimensão do tempo, torna-se
efêmero, na medida em que se produz instantâneos fotográficos de amiúdes
momentos e se cria com isso, muitas vezes, arquivos de imagens tão nume-
rosos que nem os olhos estão dispostos a olhar, e nem a memória é ativada
para resgatar.
Este é, como sugere Tapia (2008, p.109), um fenômeno social da pós-
-modernidade que implica numa infinita atualização representativa com o
intuito de suprimir o descontrole semântico de um mundo distante ou ina-
cessível. Desse modo, a operação de desvelamento do mundo que as primei-
ras imagens técnicas, nomeadamente o cinema e a fotografia, estrearam, hoje
se amplia sobremaneira.
O uso doméstico das máquinas fotográficas amadoras cada vez meno-
res e com custo decrescente do processo fotográfico, desde a tomada da foto
até a revelação e ampliação, chega ao ápice com as câmeras digitais. Com
efeito, as câmeras domésticas do tipo Kodak fizeram da fotografia parte in-
tegrante da vida cotidiana, colocando nas mãos dos sujeitos, sobretudo das
mulheres, a possibilidade de fazer a história das suas famílias (Batchen, 2008).
Enquanto isso, a noção de instantaneidade dos processos fotográficos,
que surge com o photomaton, ganha contornos ainda mais concretos a partir
da Polaroid. Esse tipo de câmera ofereceu a possibilidade de obter a fotografia
revelada instantaneamente logo após a tomada, assim como o photomaton.
Porém, a Polaroid permite registrar os assuntos mais diversos e retratar os
indivíduos em diferentes ambientes, pois se trata de uma máquina portátil.
A noção de instantaneidade da Polaroid e a presença da fotografia na
vida cotidiana a partir do desenvolvimento das câmeras portáteis automáticas
são fatores que, somados a outras inovações técnicas, ampliam-se e aprofun-
dam-se com a fotografia digital.
O registro do momento de modo a construir representações contínuas
e infinitas do aqui e agora parece ser o tipo de prática fotográfica que os cha-
mados snapshots digitais – ou instantâneos fotográficos captados a partir dos
novos dispositivos digitais – criaram com a onipresença dos gadgets fotográfi-
cos. Os dispositivos e a técnica fotográfica nunca foram tão acessíveis, o que
nos permite fazer uso da fotografia praticamente sem restrições. A qualquer
momento é possível sacar um aparelho celular e tirar uma fotografia, ou fazer
um snapshot com a câmera web diante do computador e imediatamente pu-
blicar nas redes sociais, por exemplo.
Na fotografia digital, os grãos de prata são substituídos pelos pixels e

92 8
pelos códigos numéricos da imagem, criados a partir dos mais diversos tipos
de gadgets fotográficos. Neste ambiente, o dispositivo digital se configura en-
quanto rede de conexões entre dispositivos ciberespaciais articulados em nós,
de maneira que ao mesmo tempo em que se produz uma imagem, é possí-
vel fazê-la circular (Tapia, 2008). Nesta medida, a noção de instantaneidade
amplia-se para a noção de simultaneidade no que diz respeito à produção,
circulação e consumo do retrato fotográfico.
Se o contexto da fotografia analógica favoreceu o registro de retratos
em grupos, sobretudo retratos de família, o cenário contemporâneo da foto-
grafia digital impulsiona para o registro individual e construção da autoima-
gem, pois os gadgets fotográficos são, de modo geral, dispositivos pessoais
individualizados, o que facilita, com isto, os registros do tipo autorretrato
fotográfico com representações e narrativas autorreferentes – o que se con-
vencionou chamar selfie5. 5 Neste sentido, é importante ressaltar a
relação existente entre as narrativas visuais
Esses gadgets fotográficos são de uso individual, diferente das câmeras e textuais, pois nas redes sociais as imagens,
geralmente, podem ser contextualizadas com
fotográficas que, por volta da década de 1970, significavam um bem material legendas escritas por quem publica a foto,
familiar, e mais do que isto, eram um fator de integração do grupo doméstico e pode igualmente receber comentários de
outros utilizadores da mesma rede social.
e afirmava a sua continuidade.
Como aponta Jonas (2008, p.15), com a tecnologia digital e a possi-
bilidade de produzir, por um custo mínimo, ou mesmo nulo, um número de
imagens indefinido, a fotografia é liberada de seu uso convencional, e tem
suas possibilidades ampliadas. Qualquer coisa pode ser um bom motivo ou
assunto a ser registrado, qualquer momento pode ser propício para se produ-
zir um retrato.

Fig. 6. INSTAPHOTO. Álbum


de fotografias do facebook,
anônimo, [ca. 2010].

Embora os retratos e autorretratos presentes nas redes sociais compar-


tilhem uma série de códigos sociais, sejam produzidos por técnicas similares
e se utilizem quase das mesmas tecnologias para chegar a ser visualizados nos
ambientes virtuais, como o Instagram e o Facebook, por exemplo, se diferen-
ciam, de indivíduo para indivíduo (ou de perfil para perfil), pela percepção

8
93
social que o sujeito representado desperta a partir da autoimagem que cons-
trói de si. O que remete mais uma vez à teatralização das identidades sociais
e das representações do eu – como se articulam as relações entre as poses, o
vestuário, os cenários, por exemplo, além de aspectos referentes à identidade
pessoal do sujeito fotografado.

Considerações finais
No período do photocarte, por exemplo, o olhar fotógrafo se impu-
nha, em boa medida, sobre o sujeito a ser retratado. O retrato deveria, numa
composição unitária, conseguir transmitir uma ideia completa do sujeito. As
poses rígidas e a encenação eram também marcos deste tipo de retrato, que
acabava por ser muito mais descritivo do que narrativo.
Já os photomatos, libertam o retratado do olhar assimétrico do fotó-
grafo e lhe conferem a possibilidade de construir a sua própria imagem em
seu contexto de mundo. Os photomatos, por todas as suas facilidades técnicas,
conseguem desdobrar a composição unitária em mais recortes e fragmentos
do tempo e espaço captados pela fotografia, trazendo maior diversificação de
ambientes, e uma maior variedade de temas e recursos narrativos. A ideia de
instantâneo, que já surge com os autômatos, reforça a nova ordem do retrato:
as poses espontâneas, menos rígidas, e a expressão dos sentimentos.
Por fim, o instaphoto, ou instantâneos digitais feitos a partir de gadgets
fotográficos e partilhados nas redes sociais, extrapolam o que os autômatos
trouxeram de novo, no que diz respeito à espontaneidade – ainda que os
retratos posados e encenados continuem com o seu espaço cativo na cultura
visual retratística. As estratégias de representação do eu também sofrem mo-
dificações com as novas técnicas e modos de execução do retrato, os temas são
mais banais e cotidianos, a composição torna-se cada vez menos rígida e mais
espontânea, e a capacidade narrativa do retrato se amplia cada vez mais, com
representações que são constantemente atualizadas.
Numa vista quase panorâmica por mais de 150 anos de história da
fotografia, o que se pode perceber no que tange aos diferentes regimes de
visualidade que vão sendo demarcados pelos avanços técnicos dos procedi-
mentos fotográficos é, sobretudo, uma mudança nas dinâmicas do olhar, ora
marcada pela relação assimétrica entre retratado e retratista, e que com a evo-
lução e popularização dos procedimentos fotográficos vai se dissipando, por
uma aproximação cada vez maior entre máquina e indivíduo, até chegar à
onipresença dos dispositivos fotográficos no cotidiano.

94 8
Bibliografia:
AMAR, Jean-Pierre. História da Fotografia. Lisboa: Edições 70, 2010.
BATCHEN, Geoffrey Batchen. Les snapshots. Études photographiques, 2008.
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Lisboa: Relógio d’Água, 1992.
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Lieux Dits, 2006.
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1862. Disponível em: https://archive.org/details/gri_33125008480929
FABRIS, Annateresa. Identidades virtuais: uma leitura do retrato fotográfico. Belo
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1995.
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JAGUARIBE, Beatriz. O choque do real: estética, mídia e cultura. Rio de Janeiro:
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JONAS, Irène. Portrait de famille au naturel. Études photographiques, 2008.
Disponível em: ttp://etudesphotographiques.revues.org/index1002.html.
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moderna. Revista de Estudios Visuales, 2008. Disponível em: http://www.estudiosvi-
suales.net/revista/pdf/num5/yanez_imagen_dig.pdf.

8
95

96
4
COMUNICAÇÕES

Buena Memoria, Los Compañeros:


uma (re)construção de si por meio da imagem do outro

VIVIAN BRAGA DOS SANTOS1

Resumo
Em um momento em que se assiste ao adensamento da temática da memória no cenário artístico contemporâneo, nota-se
também um quadro político de redemocratização de certos países que durante muitos anos estiveram sob Estados de exce-
ção. Nesse contexto levanta-se a hipótese de intersecção entre esses dois ensejos, por meio de algumas produções artísticas
que se revelam como possíveis experiências de reestruturação de identidades sociais outrora deflagradas, justamente por
serem compreendidas como exceções. Esse percurso enunciado é examinado no texto a partir de um olhar crítico lançado
sobre o trabalho Buena Memoria, no qual o argentino Marcelo Brodsky realiza um processo de elaboração de memória
pessoal e coletiva no que concerne ao último período ditatorial na Argentina (1976-1983).

Palavras-chave
Arte contemporânea; Memórias; Fotografia; Marcelo Brodsky; Identidade.

Na década de 1990, após ter vivido uma longa temporada de autoexí- 1 Atualmente é doutoranda na ECA/USP,
instituição pela qual obteve também o
lio em Barcelona, o fotógrafo Marcelo Brodsky (1954) retorna à Argentina, título de Mestre em Artes Visuais. Graduou-
se como Licenciada e Bacharel em Artes
sua terra natal, a qual havia deixado em 1977, e se dedica a constituição de Plásticas pela UNICAMP e estudou História
um dos seus ensaios fotográficos mais emblemáticos, Buena Memoria, Los da Arte e Arqueologia na Université Paris X
Nanterre. Tem como principal interesse as
compañeros (1996). O trabalho dialoga com outras poéticas artísticas contem- diversas relações possíveis entre produções
artísticas contemporâneas e o temas da
porâneas que investem no tema da memória com um viés bem específico. São memória.
produções que incidem sobre possíveis marcas deixadas por experiências e/ou
memórias de Estados de exceção, sublinhando condutas violentas efetuadas
contras identidades sociais promovidas nesses momentos políticos. Essa abor-
dagem no trabalho de Brodsky está diretamente relacionada à sua experiência
na última ditadura militar argentina (1976-1983). É a partir desse evento que
se inscreve seu anseio por operar sua identidade, retomando, no cerne de sua
poética, lembranças nas quais a violência que lhe foi promulgada por seu país
de origem ainda não havia sido desencadeada. Ele produz conexões que ligam
esses acontecimentos ao instante de seu retorno, de modo a pontear fissuras.
Configurado como uma espécie de instalação fotográfica, Buena
Memoria compila vídeo, textos, fotografias de autoria de Brodsky e outras re-
cuperadas de álbuns de família. Oriunda desse último grupo está o elemento
mnêmico em torno do qual parece se organizar todo esse trabalho de arte:
uma imagem em preto & branco da classe de estudantes do Colégio Nacional
de Buenos Aires CNBA, datada de 1967 e ampliada em proporção generosa.
A legenda de identificação da foto faz parte da própria imagem, na

8
97
Fig. 1. Marcelo Brodsky.
Buena Memoria, Los
Compañeros, 1996.
(Gigantografia). In:
BRODSKY, Marcelo.
Buena Memoria. Um ensaio
fotográfico. Catálogo da
Exposição realizada no
Memorial da Resistência em
São Paulo: Pinacoteca do
Estado, 2010, p. 15.

forma de uma pequena placa que pode ser vista no canto direito, sustentada
no colo de uma aluna. A esse escrito soma-se uma série de intervenções grá-
ficas coloridas; sucintas observações a respeito de cada um dos estudantes
retratados. Alguns rostos, por exemplo, aparecem sobrepostos por símbolos
de proibição que apontam falecimentos. Outros são marcados por anotações
indicadas com pequenas flechas, que orientam leituras de acanhadas frases
biográficas, tais como: “Jorge a passou [a ditadura argentina] de maneira
muito ruim e isso o machucou”. Ou ainda: “Gustavo prefere não aparecer
para se manifestar sobre o passado”. As frases continuam e, juntamente com
demais símbolos, convertem a imensa fotografia em uma sorte de mapa a ser
decifrado. No entanto, essas sentenças e expressões gráficas são indícios mí-
nimos que precisam ser lidos à luz dos demais elementos que compõem esse
trabalho de Brodsky para adquirirem um sentido mais completo.
Sucedendo a gigantografia há uma série de retratos também em gran-
des dimensões. Cada uma dessas imagens é formada de três componentes: (1)
o retrato de uma figura já adulta; (2) um close de cada um dos integrantes da
imagem de classe do CNBA; e (3) um pequeno texto em tom biográfico que
apresenta os retratados, unindo a imagem de infância à fotografia da idade
adulta.
Como parte dessa apresentação biográfica, cada conjunto de retratos
recebe um nome próprio. São eles: Jorge, Carlos, Silvia, Erik, Marcelo (o
próprio artista), Etel, Leonor, dentre outros. Apenas Claudio Tisminetzky e
Martín Bercovich são apresentados por meio do fac-símile de antigas fotogra-
fias coladas sobre pedaços de papéis pautados.
Outro aspecto que diferencia essas duas imagens dos demais retratos
é o fato de em nenhuma delas estar citada a fotografia de sala de 1967. Essa
citação aparece de duas maneiras: pela repetição da imagem como pano de
fundo dos retratos ou como objeto manuseado pelos retratados. No primeiro

98 8
Fig. 2. Marcelo Brodsky. Buena Memoria, Los Compañeros, 1996.
(Retratos). In: MARCELO BRODSKY. Buena Memoria. Um ensaio
fotográfico. Catálogo da Exposição realizada no Memorial da Resistência
em São Paulo: Pinacoteca do Estado, 2010, p. 23.

caso ela testemunha que as imagens foram produzidas em um encontro pro-


posto por Brodsky, em sua residência em Buenos Aires. Nessa ocasião, ele
fotografa cada um dos ex-colegas de classe, individualmente, tendo ao lado
um objeto desejado e como painel de fundo a fotografia de vinte e cinco anos
atrás. O segundo caso indica que estes personagens não puderam compare-
cer ao encontro e foram procurados por Brodsky (em Buenos Aires, Madri,
Espanha e Nova York). Ele carregava consigo reproduções menores da foto
do CNBA, a fim de não perder o vínculo remissivo do qual parte sua ação
perquiridora.
Além dessa fotografia pontual, outros dois níveis de repetições têm
lugar em Buena Memoria, no que podemos enunciar como sendo o segundo
núcleo da instalação. Conjecturando que o primeiro núcleo constitui uma
ligação entre a infância de Brodsky e sua vida adulta por meio da apropriação
da fotografia do CNBA, da ação de busca de seus companheiros e dos novos
retratos e biografias, a segunda parte do trabalho arquiteta outra construção
vinculativa. Tal situação diz respeito ao modo como o fotógrafo introduz
seu ensaio nas possíveis memórias da geração de 1996 do CNBA. Sob essa
aspiração, ao concluir a primeira fase de Buena Memoria, Brodsky expõe seu
conjunto de imagens no claustro do Colégio como uma espécie de altar me-
morialístico. Dessa experiência, o que Brodsky capta e insere como elemento
constitutivo de seu trabalho são as imagens das faces dos alunos de 1996
refletidas sobre a superfície envidraçada de seu memorial fotográfico.
Esse intento de expor seu ensaio à geração de alunos de 1996 tem um

8
99
Fig. 3. Marcelo Brodsky. Buena
Memoria, Los Compañeros, 1996.
(Imagem do claustro do Colégio).
In: BRODSKY, Marcelo. Buena
Memoria. Um ensaio fotográfico.
Catálogo da Exposição realizada
no Memorial da Resistência em
São Paulo: Pinacoteca do Estado,
2010, p. 55.

impulsionador determinado. Outubro de 1996 é a data da primeira leitura


pública in loco de nomes de estudantes do Colégio que foram mortos ou tidos
como desaparecidos durante a ditadura militar, dois dos quais estão incluídos
no trabalho de Brodsky. A terceira repetição do ensaio se dá justamente no ví-
deo documental Puente de la Memoria, no qual se reproduz um trecho do ato
de leitura. No vídeo os nomes são enunciados por uma voz feminina. A cada
fala, a multidão que participa da ação responde ao nome em uníssono com a
palavra “presente”. Percebe-se assim que se trata de uma chamada de sala de
aula. E a cada vez que essa confirmação do “estar aqui” se dá, uma fotocópia
ampliada do retrato do nome citado é erguida e mantida no alto até o final
da convocação dos demais.
O filme encerra não apenas o núcleo dois da instalação, mas também
os elementos formais de Buena Memoria. Essa segunda etapa é composta de
camadas sobrepostas que fazem referência ao núcleo um, tanto de modo ima-
gético quanto de maneira narrativa. Ao mesmo tempo em que as imagens
do claustro do Colégio reúnem todos os demais elementos fotográficos e de-
monstram o caminho percorrido por Brodsky, o vídeo – em sua evocação
constante de imagens e nomes próprios – concatena-se com as palavras do
artista acerca do reencontro com seus ex-companheiros. Dessa maneira, todos
esses aspectos conectam-se de modo a enfatizar a ação pela qual Brodsky se
propõe a efetuar um retorno identitário, unindo e compartilhando sua his-
tória com a geração de 1996. É essa poética de encadeamento propugnada
em Buena Memoria, por meio de constantes repetições e interdependências
entre as diversas fotografias e escritos do ensaio, que permitem apontar esse
trabalho como um projeto de elaboração de memórias.
O termo “elaboração” é empregado aqui para denominar uma série de
nexos operados de modo a estabelecer cadeias associativas entre pólos dis-
tantes. Ele compõe a expressão “Arte da elaboração”, conceito que denomina
certo processo de construção de memórias plausível em algumas poéticas ar-

100 8
tísticas contemporâneas que tem como temática central experiências vividas
em Estados de exceção – ou memórias a respeito destas. O neologismo parte
da consideração de que após um momento de exceção política segue-se outro,
caracterizado por certo sentimento de luto, no qual se aloja uma indeter-
minação propícia à reestruturação de identidades sociais que outrora foram
marcadas de modo violento. Considerando a percepção dessa segunda con-
dição de exceção, notam-se, no cenário artístico contemporâneo, produções
artísticas capazes de operar como possíveis espaços para essas reestruturações.
Buena Memoria é um trabalho de base na eflorescência do termo
“Arte da elaboração” como proposta analítica relativa ao tema da memória
no campo das artes visuais e a momentos específicos de redemocratização
política. No caso de Brodsky os encadeamentos propostos partem de deli-
mitações das histórias de indivíduos que o cercaram na infância. A partir
dessa retomada ele constrói uma memória própria, reivindicando assim um
lugar de pertencimento social. Aquele que durante a ditadura argentina havia
sido reduzido a uma dimensão de vida meramente biológica, apolítica e, por
isso, caracterizado como a exceção do Estado ditatorial, reclama agora o seu
espaço (AGAMBEN, 2002 e 2004). Brodsky, que viveu muitos anos “fora”,
autoexilado após sofrer uma tentativa de sequestro, retorna com o desejo de
“estar dentro”, de reassumir sua posição em um Estado de direito através da
relaboração de sua memória. O primeiro estágio desse processo é justamente
aquele da retomada através de um reacesso da fotografia de classe e de seu uso
como elemento material remissivo.
Entretanto, não é meramente como essa potência como “imagem da-
quilo que foi” que a fotografia se destaca no trabalho de Brodsky. Ela é o
aspecto plástico central de Buena Memoria. Todo processo de construção de
memória empreendido na instalação, da recuperação da imagem de classe
aos registros do “altar” no claustro do CNBA, se configura por meio do apa-
rato fotográfico. Um suporte por si só tradicionalmente carregado de um
legado imagético potente referente aos Estados de exceção e aos momentos
de redemocratização política de muitos países. Além disso, trata-se um apa-
rato que, segundo Peter Osborne, deve ser compreendido não como objeto,
mas tratado a partir de uma lógica de unidade distributiva; isto é, em uma
rarefação de vários meios que culturalmente denominamos fotografia. Todos
esses pontos, devidamente balizados, permitem destacar ao menos duas ob-
servações essenciais do trabalho de Brodsky: seu papel como reestruturação
de sua própria identidade e também como possibilidade de outras gerações
construírem memórias sobre a ditadura militar na Argentina.

A reconstrução de si
Boa parte das fotografias de Buena Memoria são retratos. Mesmo ao
lidar com o registro fotográfico da classe de 1967, Brodsky realiza nele uma
série de pequenos recortes, transformando-o em vários outros e focalizando
os rostos das figuras que compunham o anterior. Essa aproximação das fi-
sionomias permite uma comparação de semelhanças físicas, uma associação
entre esses sujeitos das fotografias menores como aqueles dos retratos ao lado,
apreendidos durante a pesquisa do fotógrafo sobre o paradeiro de seus ex-
-companheiros. É por meio desse retrato configurado a partir do recorte que

8
101
vemos se estabelecer em Buena Memoria uma primeira busca pelas identida-
des dos personagens.
O que se prioriza é a exploração da funcionalidade identitária do re-
trato. De acordo com a historiografia do século XIX, esse tipo de imagem de
ordem instantânea esteve pari passu com certa evolução social, marcada pela
imagem de si como um elemento determinante da noção de individualidade.
“‘Mandar-se retratar’ era um desses atos simbólicos mediante os quais os in-
divíduos da classe social ascendente manifestavam sua ascensão, tanto em
relação a si próprios quanto aos outros” (FREUND, 1993, p. 13 – tradução
nossa). No caso da Argentina, o retrato mostrou sua importância primeira-
mente como carte de visite, que desempenhava o papel de carta de apresenta-
ção. Concomitantemente a esses registros pessoais se desenvolveu o interesse
pelos álbuns fotográficos familiares, documentação crucial de laços capaz
equalizar um lugar social determinado.
Passados alguns anos, esses retratos assumiram uma nova dimensão, e
“puderam ser anexad[o]s aos laudos apresentados ainda durante as ditaduras,
exigindo do Estado a restituição dos corpos – o habeas corpus que havia sido
suspendido no estado de exceção que imperou em muitos países da América
Latina dos anos 1970 e 1980” (SELIGMANN-SILVA, 2009, p. 319).
Essa função identitária “creditada” à fotografia retratística tem dife-
rentes ramificações na dinâmica do trabalho de Brodsky. As imagens são re-
significadas pelo fotógrafo como objetos de memória; rever a foto de sala é
retomar um tempo perdido; priorizar cada um desses rostos é buscar caracte-
rísticas identitárias por meio de um processo de reminiscência. Em outra via,
justapô-los ao lado de fotografias desses mesmos personagens feitas em 1996
é uma ação marcada pela promessa de um reestabelecimento de vínculos, não
apenas entre o fotógrafo e seus ex-colegas, mas também entre uma imagem
guardada por ele e essa outra que lhe é dada a conhecer. O reencontro pro-
posto por Brodsky em sua residência, para posteriormente organizar os retra-
tos coloridos, é seu ato de registrar outra imagem que permita observar esse
sujeito para além da nostalgia do retrato antigo. Ter dele outra imagem é ten-
tar reencontrá-lo mais à frente do limite permitido pelo registro fotográfico
da turma de 1967. O reencontro de Brodsky com seus colegas proporciona-
-lhe outra imagem dada, a ser gravada, e que aparecerá na composição do
trabalho também enquanto fotografia, de modo material, não apenas como
metáfora de registro mnêmico. Essa outra imagem, por sua vez, não deve so-
brepor a primeira do close. Elas são justapostas e identificadas por um mesmo
nome, que pode ser entendido como o elemento identitário que antevem o
retrato. É só a partir dele que o espectador se esforça para amarrar o retratado
na imagem da infância àquele da figura adulta.
Assim, unem-se duas Damiáns. Apesar de todos os elementos físicos
que os separam, buscam-se neles as semelhanças: uma identidade. “Ora, essa
identidade é imprecisa, imaginária mesmo, a ponto de eu poder continuar
o modelo” (BARTHES, 1984, p. 150). Essas fotografias “autentifica[m] a
existência de tal ser, quero encontrá-lo por inteiro, ou seja, em essência, ‘tal
que em si mesmo’, para além de uma simples semelhança civil ou hereditá-
ria” (p. 159). Quero encontrar, ainda nas palavras de Roland Barthes, o seu
ar. Isto é, um “suplemento intratável da identidade, o que é dado gracio-

102 8
samente, despojado de qualquer “importância”: o ar exprime o sujeito, na
mesma medida em que ele não se dá importância” (Idem). O ar, no entanto,
distribui-se não como objeto físico na imagem, mas no interior daquele que
busca recuperá-lo. É captar essa essência, chamada de ar desse sujeito, que
podemos imaginar como sendo o desejo de Brodsky ao justapor seus retratos
àqueles retirados da fotografia de classe. Em outras palavras, é a tentativa do
estabelecer uma ponte capaz de conectar esses dois momentos e, quem sabe,
perceber entre eles esse sujeito que se forma, na esperança que dele tenha se
preservado algo da infância.
Para além dessa justaposição de ordem fisionômica, outros elementos
inseridos por Brodsky na composição das imagens auxiliam no projeto arqui-
tetônico de sua ponte identitária. Um dos principais deles é o enquadramento
utilizado, tanto aquele do recorte no qual Brodsky encaixa a fisionomia de
cada ex-colega de classe quanto o do campo de registro determinado quando
do reencontro. Ainda que sob esse viés o recorte efetuado por Brodsky auxilie
a uma série de adjetivações possíveis ao sujeito registrado, colocá-los diante da
imagem da infância – ou em posse dela – é designar-lhes um lugar específico
nesse movimento de retorno a partir do qual elabora parte de sua memória.
Mais do que isso, Brodsky recoloca seus retratos coloridos em uma mesma
ordem sequencial (de cima para baixo, da esquerda para a direita) em que
os alunos estão dispostos na fotografia de sala, mesmo quando se trata de
Claudio e Martín. Assim, por meio dessa disposição revista, o artista efetua
outro enquadramento, ressaltando mesmo nos retratos coloridos a nostalgia
já representada pela volta à fotografia de infância e tornando assim a confi-
guração espacial dos retratos de Buena Memoria tão interdependente quanto
àquela da gigantografia.
Desse modo, sabe-se o lugar específico ocupado por Brodsky. Suas fo-
tografias aparecem após Erik e anterior a Martín. Apesar de incluir 26 dos 32
alunos da fotografia de sala em seu trabalho, o artista não abre mão de Martín.
Ele é aquele em relação a quem sua pose se constitui na imagem de classe de
1967. São esses dois personagens que vinculam Brodsky à sua turma de colé-
gio. É bem verdade que na gigantografia, há dois sujeitos no intervalo entre
Erik e Brodsky, um morto e outro vivo. Nenhum deles é retratado em Buena
Memoria de modo individualizado. Martín, por outro lado, é aquele que re-
tira essa suspensão causada pela ausência desses dois personagens. Ademais,
ele ajuda a compor outra parcela identitária de Brodsky, sua caracterização
como exceção. Suspender Martín, nesse sentido, seria o mesmo que, mais
uma vez, fazê-lo com relação ao fotógrafo argentino. De modo concomitante,
não inserir Brodsky seria desapoiar a existência de Martín em Buena Memoria
e ostracizá-lo para sempre como um excedido do Estado.
Não obstante, embora Martín e também Claudio pareçam ter um
lugar mais afetivo em relação aos demais sujeitos retratados na instalação,
eles não são o ponto principal do trabalho de Brodsky. Tampouco esse lu-
gar de destaque é ocupado pelo conjunto total dos personagens que formam
a fotografia de sala. A observação dos retratos estimula uma leitura iguali-
tária. No entanto, quando essa visão é acompanhada da leitura dos textos
biográficos percebe-se um ligeiro desvio, que demonstra a existência de um
lugar cartesiano bem definido em torno do qual todos os aspectos plásticos

8
103
se estruturam.
As pequenas biografias escritas por Brodsky justificam as poses, as fi-
sionomias e os objetos incluídos na imagem ou os cenários nos quais esses
sujeitos se situaram para a tomada fotográfica. Elas são baseadas na expe-
riência de reencontro entre Brodsky e seus ex-companheiros e na busca do
fotógrafo por compreender de que maneira os anos de ditadura militar foram
significativos para cada um deles. As informações trazidas nesses textos são
diversas. Eles incluem as profissões atuais, o comportamento de outrora em
sala de aula (sobretudo em relação aos mais tímidos – e aqui se podem per-
ceber certas assertivas de Brodsky quanto às poses dos retratos). Destaca-se
nessas informações a existência dos filhos, questão salientada pelo fotógrafo
em muitos desses textos biográficos. Contudo, no desenrolar das leituras e de
suas associações com as imagens, percebemos que embora compartimentados
em torno da instalação, as sentenças de Brodsky têm caráter autobiográfico.
Esse aspecto não se manifesta somente na descrição que ele faz de si mesmo,
com os verbos conjugados na primeira pessoa. Mas também se espraia por
elementos dos demais textos. Trechos como: “tem cabelos grisalhos, como
eu”, “Vive em um mundo de imagens que são para mim desconhecidas”,
“Etel é como se fosse da família, posso não vê-la por anos e tudo continua
igual, próximo” revelam que o principal elemento do trabalho de Brodsky é
ele mesmo.
É sob esse viés que se pode considerar Buena Memoria como uma re-
construção de si por meio do retrato do outro. Todos os aspectos do trabalho
são constituídos a fim de ordenar um único individuo: Marcelo Brodsky. É
um exercício de criar cadeias para estabelecer sua própria identidade. A fala
em primeira pessoa revela um sujeito que durante os últimos anos esteve divi-
dido em diversos lugares, uma divisão que persiste em seus filhos e na sua vida
atual, e que foi instaurada justamente pela identidade rompida do Estado no
qual o fotógrafo foi tido como a exceção. E também acaba por revelar uma
congruência ainda persistente com relação à Argentina: é o lugar de sua casa,
mas é o de sua nacionalidade? Brodsky é aquele que foi posto de fora, cujo
direito foi suspenso, e para quem Buena Memoria é a elaboração primeira de
seu retorno à Argentina.
No exercício de sua reestruturação, no “pôr-se para dentro”, o artista
opta por elaborar uma memória por meio do retorno não a qualquer ima-
gem. Ele seleciona uma que lhe confere identidade por ângulos distintos e,
nesse sentido, sua posição em Buena Memoria é inteiramente relacional. Ele
é aquele sentado na segunda fileira ao lado de Martín e também aquele que
antecede o retrato de Martín na outra sequência de fotografias. O momento
que ele decide retomar é aquele que precede a uma ruptura, na tentativa de
repor uma identidade fraturada, suspender esse tempo em que foi coagido e
reestruturar aquilo que perdeu. Desta feita, Buena Memoria “permite uma
reordenação indo em direção ao passado, da última foto à primeira, como
viagem arqueológica à nossa infância, um percurso pelas marcas de como
‘eu’ me tornei o outro para os outros e de como ‘eu mesmo’ desejei ser visto”
(SILVA, 2008, p. 75). Saber desses outros e o que deles foi feito é o modo de
saber de si, de perceber seu próprio lugar.
Mas o trabalho não é finalizado nos retratos de 1996. Brodsky não

104 8
apenas escreve sua história para si. Sua narrativa tem a pretensão de ser disper-
sada. Buena Memoria só completa seu liame com o vídeo e as fotografias do
claustro do Colégio. Por um lado eles dão continuidade ao retorno remissivo
defendido por Brodsky. Por outro testemunham a possibilidade de elaboração
de outras memórias.

A construção dos outros


O trabalho de Brodsky pode ser considerado para além de um processo
de elaboração de sua própria memória. A instalação se apresenta como uma
história sobre a qual, uma vez formulada, podem-se posteriormente construir
outras memórias. Nesse ponto, insere-se a possibilidade da elaboração de pos-
síveis memórias por meio da exibição de outras, recolocando Buena Memoria
como uma espécie de “Arte da elaboração” para além daquela realizada por
Brodsky. Se enquanto elaboração de sua memória a respeito da identidade
suspensa em seu autoexílio Brodsky efetua uma retomada por meio de um
possível aspecto remissivo das fotografias que seleciona e, assim, produz uma
ponte particular ao tempo de seu retorno, essa ponte – sobretudo nas imagens
do claustro do Colégio – aparece como uma cadeia já estabelecida. O traba-
lho completo é uma espécie de autorretrato de Marcelo Brodsky. Contudo,
essa “fotografia” não serve apenas para que o artista olhe para si mesmo de
modo nostálgico. Essa imagem é oferecida a outros olhos.
Trata-se aqui de perceber a elaboração não tão somente como recons-
trução, mas também como construção primeira; elaborar não é apenas rees-
tabelecer cadeias associativas rompidas, mas também estruturar novas cadeias
possíveis, tal como sugere o fotógrafo na primeira vez em que expõe seu tra-
balho, ainda em processo, aos alunos do CNBA, em 1996. Para além de um
exercício rememorativo, ler esse álbum fotográfico, ouvi-lo e ser apresentado
insistentemente às suas imagens são aspectos de um processo de formação de
cadeias associativas a partir da experiência particular de Brodsky. Por meio
das imagens que servem ao fotógrafo como objetos de memória, o espectador
é apresentado ao espaço do CNBA, aos companheiros de sala de Brodsky, de
maneira a permitir que esse outro sujeito possa, por fim, ser capaz de contar
outra história a partir dessa.
De modo semelhante ao processo remissivo no qual a fotografia parece
ser adotada em um primeiro instante, essa outra imagem mostrada também
se apresenta ao espectador em um estado diluído, sobretudo se o entender
em uma correspondência analógica para com sua materialidade principal: a
fotografia. O aparato fotográfico opera como unidade distributiva. Em ou-
tras palavras, “o fotográfico se distribui através de uma gama concreta de
formas tecnológicas-culturais, historicamente determinadas e em progressão”
(OSBORNE, 2010, p.73). Assim como a memória, as fotografias são rarefei-
tas. Elas ocorrem nas poses da classe de infância, mas também no interior de
Brodsky, no vídeo e mesmo na textualidade do trabalho. Na mesma medida
essa realização se estabelece em Buena Memoria entendida como “autorre-
trato” de Brodsky. A instalação foge à ideia de estrutura de um objeto único.
Sua materialidade a ser exposta só é qualificada em virtude de um trajeto
processual. Compreender esse percurso é um dos cernes do trabalho; o espec-
tador deverá percorrê-lo, remontá-lo, revivê-lo enquanto processo, para então

8
105
elaborar a construção de um sentido. E por meio desse exercício necessário ao
conhecimento da história de Brodsky, ter a possibilidade de percebê-la tam-
bém como espaço de construção de sua própria memória, para além daquelas
dos personagens envolvidos nos relatos. Uma memória nacional, continental
e em alguma medida individual, incluindo os sentidos nacionais que envol-
vem ter como escopo de memórias coletivas um Estado que já se configurou
por legislações de exceção.
Desse modo, coloca-se uma segunda camada possível de elaboração
de memórias presente no trabalho de Brodsky. Ela diz respeito a uma cons-
trução mnêmica que se dá na experiência do espectador com esse trabalho
de arte, que vai além da primeira camada, composta na construção poética
e plástica da instalação, pela cadeia associativa criada por Brodsky sobre ele
mesmo. Ambas as relações são operadas a partir de instâncias analógicas entre
memória e fotografia e suas propriedades de dissolução, interligadas por pon-
tuais concentrações na atribuição de significado que a experiência de caráter
arquitetônico (no estabelecimento de pontes) adquire nessa instalação. Nesse
sentido, apesar de assemelhar-se a temática memorialista, Buena Memoria
destoa dessa categoria ao sublinhar como ponto central dos exercícios de (re)
construção propostos certa fragmentação dos elementos e ao colocar à dis-
posição do espectador as ferramentas para a criação de possíveis memórias
individuais, ainda que mantendo nexos com o evento de viés historiográfico.

106 8
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8
107

108
4
COMUNICAÇÕES

“Pergunta a cada ideia: serves a quem?”


Questões metodológicas ao redor de Trama, de Antonio Dias (1977)
a Maurício DeBonis1
GUSTAVO MOTTA 2

Resumo
De que modo processo social e forma estética se articulam? A partir de uma pesquisa sobre o “Programa Ambiental” da
arte brasileira dos anos 1960-70 e de seu desdobramento na noção de “participação do espectador”, que teve como foco
a produção artística e intelectual de Antonio Dias e Hélio Oiticica, o artigo propõe a noção de forma estética objetiva (na
expressão de Roberto Schwarz) como fundamento para a pesquisa crítica em artes. Na esteira da tradição dialética da
“crítica imanente” do objeto, que entende a forma como “conteúdo social decantado”, a forma estética objetiva poderia ser
definida como o “realizar como forma estética” um ritmo geral da sociedade, operando o que Antonio Candido chamou
uma redução estrutural de um dado social externo à forma artística

Palavras-chave
Forma estética objetiva; Arte moderna brasileira; Participação do espectador.

(…) Fig. 1. Antonio Dias. Trama,


Interroga a propriedade: 1968-1977. Coleção João
De onde vens? Sattamini, comodante MAC-
Pergunta a cada ideia: Niterói, in DIAS, Antonio.
Serves a quem? Antonio Dias: o País Inventado.
A. M. L. Dias: São Paulo, 2001.
(…)
P. 60-61
(BRECHT, 1982, p.40)

1 De quem roubei o título.


Montagem/mostragem 2 Artista gráfico, crítico e historiador da
arte. Mestre e Doutorando em História da
Arte pela USP. Foi professor colaborador da
Um livro composto inteiramente de citações (visuais, mas não ape- Universidade do Estado de Santa Catarina
(2012). Prêmio “Estudos e Pesquisas sobre
nas). Seria possível defini-lo assim. Trama (1977), assinado por Antonio Dias arte e economia da arte no Brasil” (2010),
(1944-), é também (ao primeiro bater de olhos) um álbum ou coleção de Fundação Bienal/MinC. Integra o Centro de
Estudos DESFORMAS (FFLCH/ECA-USP). É
11 xilogravuras. Cuja teoria estaria intimamente relacionada com aquela da editor da revista Dazibao – crítico de arte e
membro do coletivo contradesenho de design
montagem. e artes gráficas.

8
109
Nas estampas individuais (impressas sobre papel nepalês) e no modo
de exposição (sobre as paredes de uma galeria de arte), o álbum cita obras
anteriores do próprio artista. Os fragmentos textuais – slogans, assertivas ou
interrogações curtas – citam proposições participativas feitas ao espectador.
A remissão a estruturas espaciais – projetos ou plantas arquitetônicas para
monumentos e ambientes, traçados de áreas e territórios – cita o ‘Programa
Ambiental’ da vanguarda brasileira dos anos 1960/70 (OITICICA, 1986). Os
módulos geométricos citam a arte concreta e a minimal art. A racionalidade
analítica, que aparentemente rege o trabalho, cita a arte conceitual. A ida
do artista ao Nepal cita a subida do morro de Hélio Oiticica (1937-1980),
treze anos antes. O uso da xilogravura cita o sistema técnico tradicional das
artes. O suporte de papel artesanal cita o trabalho produtivo. Uma poética da
dispersão – é o modo como o crítico Paulo Sérgio Duarte (1948-) se refere ao
fenômeno (DUARTE, 2004, p. 26).
Trama: o título – curto, polissêmico, eficaz – é uma fórmula, uma estrutura
sintética, que define a unidade tensa que esta coleção de citações apresenta.
De fato, enreda. Um conjunto de fios cruzados, uma rede, um complô, um
enredo e um conjunto de nexos (históricos?). Nada a dizer, apenas a mostrar.

De onde vens?…
Seguindo a pista indicada no texto, hoje histórico, “A trilha da trama”
(1979; DUARTE, 2004), a pesquisa desenvolvida em No fio da navalha –
diagramas da arte brasileira (MOTTA, 2011) partia de uma hipótese inicial
que se pode dizer contraintuitiva (talvez controvertida): o tema e a estrutura
estética deste álbum de gravuras estariam articulados com a prática da parti-
cipação do espectador – eixo em torno do qual se organizara, desde finais dos
anos 1950 até o momento anterior à produção de Trama, o debate artístico
brasileiro. A coleção de gravuras seria ainda testemunha do colapso histórico
do ciclo participativo na arte brasileira. Mais: ela colocaria em jogo (to play)
um juízo histórico, relativo à vida política do país. A trama em questão, que
fecha aquele ciclo, seria, ironicamente, a da abertura – a distensão “lenta,
segura e gradual” do regime implantado pela contrarrevolução preventiva de
1964.
Para a pesquisa, tratava-se, em primeiro lugar, de encontrar, na obra
de Dias e, a seguir, na de seus interlocutores artistas, os nexos estéticos que
contribuiriam para confirmar (ou refutar) tal hipótese. Em segundo lugar, se
confirmada, caberia encontrar a atualidade histórica desses nexos, sua articu-
lação com o processo social.
Na questão de método, uma primeira coincidência produtiva (se não
criativa). A dialética da malandragem (CANDIDO, 2004) é o texto no qual
o crítico literário Antonio Candido (1918-) procurou apontar, a partir do
romance de Manoel Antônio de Almeida (1830-1861), Memórias de um sar-
gento de milícias (1853), o modo como forma estética e processo social se
articulam. O texto é datado de 1970 – sua gênese, no período em que a vida
social e a vida cultural do país se viram marcadas de modo indelével pelo AI-
5, se encontra dentro do escopo espacial e temporal do objeto da pesquisa
aqui em foco. Marcando uma segunda coincidência (de cujo caráter fortuito
já é possível desconfiar), data de 1979 o texto de Roberto Schwarz (1938-)

110 8
“Pressupostos, salvo engano, da Dialética da malandragem” (SCHWARZ,
2006) – escrito simultaneamente ao processo de distensão política, e na con-
tramão do mesmo. Nele, ganha vida pública a conceitualização sintética da
“forma estética objetiva”, que é o modo como Schwarz resume o procedi-
mento metodológico adotado por seu professor.

Plot
Nota-se, em primeiro lugar, a frutífera coincidência cronológica entre
o objeto da pesquisa – que abarca o período 1964-1979 – e sua “inspiração”
ou dedução metodológica – textos de crítica literária escritos justamente en-
tre 1964-1979. Tanto a produção artística (o objeto), quanto a produção
intelectual (a metodologia), são, no particular, frutos do adensamento crítico
interno de suas respectivas disciplinas. Galhos relativamente autônomos na
vida cultural brasileira, foram ambos gestados dentro do vistoso arbusto da
cultura de oposição ao regime militar – e compartilham portanto das mesmas
raízes históricas.
Do ponto de vista da totalização vale acompanhar as indicações do
próprio Roberto Schwarz em seu texto “Cultura e política 1964-1969”, de
1971, que reflete sobre a função e o desenvolvimento da cultura de oposição
no primeiro ciclo do regime, entre o golpe e o AI-5. Schwarz nota o fato de
que o movimento cultural desse período seria uma espécie de “floração tardia”
de uma cultura de esquerda que trazia em seu bojo as aspirações democrati-
zantes ou emancipatórias do ciclo político anterior, marcado pelo debate em
torno das “reformas de base” e da participação política das classes subalternas
do país (SCHWARZ, 2008, p. 106).
Esquematizando: por um lado, adensava-se o debate das artes plásti-
cas, desde a contenda entre concretismo e neoconcretismo, no final dos anos
1950, em torno da noção de “participação do espectador”. Na nova figuração,
depois do golpe, o debate ganhava uma inflexão crítica – afeita aliás a um
princípio multidisciplinar que agregava artes visuais, design, cinema, teatro,
música popular, mídias de massa, etc. Por outro lado, a teoria literária apare-
cia como ponta de lança de uma tradição crítica recente, também multidis-
ciplinar, que envolvia literatura, teoria econômica, história, filosofia, ciência
social etc. Tradição crítica brasileira, à qual se pode apelidar de “teoria da for-
mação”, que envolvia principalmente, mas não só, a “escola uspiana” ligada
à faculdade de filosofia da Rua Maria Antonia (ARANTES, 1986 e 1997).

Fios
Nos termos propostos por Schwarz, a concepção materialista de forma,
a concepção emancipada de forma, é marcada por seu caráter antinormativo,
aberto, que exige do crítico engajamento criativo:

“foi preciso descobrir (i.e. pressentir e depois explicar) entre os inú-


meros aspectos formais do romance aquele que, sendo a transposição
de um aspecto significativo do processo histórico, tinge de atualidade
histórica os demais. […] a forma literária nesta acepção emancipada
pode ser todo e qualquer nexo que subordine outros no texto, incluí-
das aí as formas fixas.
[…] trata-se de ler o romance sobre o fundo real e de estudar a reali-

8
111
dade sobre fundo de romance, no plano das formas mais do que dos
conteúdos, e isto criativamente. Quer dizer, não através das formas
de preceito, que são justamente o que a emancipação da forma – e
sua imantação pela história contemporânea – puseram de lado, mas
através da sondagem mais ousada possível da experiência estética e dos
conhecimentos havidos: ler uma na outra, a literatura e a realidade, até
encontrar o termo de mediação.”
(SCHWARZ, 2006, p. p. 138-140)

Como a pesquisa trata de uma série de objetos artísticos “únicos”, cujas


estruturas formais, por outro lado, se repetem, modulam e desdobram de
um objeto a outro, encadeando-os, o processo de descoberta dos princípios
formais envolve tomar os objetos artísticos nesta cadeia ou série. Assim, é
preciso levar em conta que entre 1964 e 1967, Antonio Dias fora celebrado,
no cenário das artes plásticas brasileiras, como expoente do movimento da
nova figuração, no qual as estruturas imagéticas da pop art são apropriadas em
chave crítica.
Nas obras de Dias, as estruturas formais da pop internacional não são
absorvidas, mas, antes, fragmentadas, trituradas, regurgitadas. Assim, a con-
formidade com o mundo da mercadoria que o artista brasileiro vê na pop art
(amparado também por percepções críticas da época) é fragmentada, e os pe-
daços são contrapostos a outros materiais, “subdesenvolvidos” – como estam-
pas populares ou objetos vindos de ambientes suburbanos. O resultado do
processo, que recebe uma coloração hot (emprestada do construtivismo russo
revolucionário), exibe a verdadeira face dos signos pop: terrível (diante de sua
violenta fragmentação, aglomeração e implosão) e patética (pela inversão que
as cores operam no seu conteúdo publicitário).
Por meio da contraposição ou do choque de elementos – apropriados
ou sequestrados de formas estrangeiras – tem-se a criação de um novo resul-
tado, ou significado, a partir dos elementos “originais”, por meio da “mon-
tagem” conflitiva. Ou seja, um jogo em que a aparência não corresponde ao
conteúdo.

Cordão umbilical
Mas há também, materialmente, o “brotamento” físico de coloides,
saliências e bolhas. Tais excreções, que aparecem explicitamente em uma obra
como Nota sobre a morte imprevista (1965), dão sinal da agitação tensa a que a
unidade do quadro pop é submetido. Deve-se notar principalmente a impor-
tância que Oiticica atribuiu, ao escrever sobre este trabalho, em “Vivência do
Morro do Quieto” (1966), ao caráter “ambiental” ou “participativo” do objeto
preto, que “se espraia pelo espaço ambiental”, como se fosse algo totalmente
independente do quadro (OITICICA, 2007, p. 218-220).
Hélio Oiticica havia definido o “Programa Ambiental”, como modo
aglutinador do debate coletivo da “participação do espectador”:

“O interesse se volta para a ação no ambiente, dentro do qual os ob-


jetos existem como sinais, mas não mais simplesmente como “obras”:
esse caráter de sinal vai sendo absorvido e transformado também no
decorrer das experiências, pois é agora a ação ou um exercício para um

112 8
comportamento que passa a importar. A obra de arte criada, o objeto
de arte, é uma questão superada, uma fase que passou. […] o artista é
propositor de atividades criadoras: o objeto é a descoberta do mundo
a cada instante. […] A conceituação e formulação do objeto nada mais
é do que um ponto para a descoberta do instante […].”
(OITICICA, 1968, p. 26-27)

Fig. 2. Antonio Dias. Nota sobre a morte imprevista,


1965. Coleção do artista, in: DIAS, Antonio. Trabalhos,
Arbeiten, Works 1967-1994. Cantz Verlag/Paço das Artes:
Darmstadt/São Paulo, 1994, p. 21.

Somada à cor de “carne viva” da almofada intermediária, o formato


do objeto preto em Nota sobre a Morte Imprevista (1965, fig.2) demonstra
uma escolha evidentemente irônica e que causa mal-estar: língua, víscera,
intestino, dejeto ou falo? Além disso, o procedimento que o artista utiliza,
a montagem de elementos díspares – plano pictórico e objeto tridimensio-
nal – subtrai ao espectador a possibilidade de obter uma interação íntegra
com qualquer das partes da obra: 1) as imagens lhe oferecem um conteúdo
semântico incompleto, a ser “completado”; 2) e o objeto se oferece ao toque
(só que ironicamente). Uma coisa não diz respeito à outra. (Mais uma vez
desencontro entre aparência e realização).
Objeto no espaço e plano pictórico: dilacerada, a participação proposta
é uma fratura exposta. A obra trata justamente da exposição dessa fratura,
mediante o convite, sempre frustrado, à participação física. É deste modo que
o processo da “quebra do quadro” em direção à participação do espectador
– já existente no neoconcretismo – é atualizado em vista de um diagnóstico
político frente à nova situação histórica da luta de classes após o golpe militar.

Urdidura
Assim, um primeiro nexo estético, dialético em relação à “tradição”
recente da participação, se estabelece: o jogo entre proposição e frustração.
O problema inicial, relativo à filiação dialética à tradição recente da “partici-

8
113
pação”, fica aí resolvido em primeira instância, ou ao menos verificado. Falta
ainda demonstrar que esse nexo constitui a forma estética que “transpõe uma
generalidade social da forma histórica”.
Veja-se o “Programa Ambiental” (OITICICA, 1986): Hélio definiu,
como resultado da “quebra do quadro contemplativo”, vindo do neoconcre-
tismo, a noção de arte ambiental como a possibilidade dos objetos construí-
dos pelos artistas servirem de “sinais” de uma proposição feita ao espectador
para “exercícios de comportamento”. O objeto seria apenas um “ativador” do
comportamento – como, por exemplo, as capas Parangolé que “ativariam” no
espectador a ação de dançar. A redução estrutural da perspectiva “utópico-de-
mocratizante” do nacional-desenvolvimentismo (ou das reformas de base),
se realiza num “ambiente” que corresponde ou dá forma estética à ideia de
“formação” do país.
Esta é entendida como superação da condição colonial, provinciana
ou periférica. Cabe dizer que, por outro lado, quando ela ganha forma esté-
tica, em sua “floração tardia”, a perspectiva utópica já está completamente
desagregada e o “Programa Ambiental” ou o “experimental” propostos por
Oiticica formalizam, com originalidade crítica, o negativo do dado social ge-
neralizado, os caminhos históricos que não foram trilhados. Nesse sentido,
o país já é o “país inventado” ao qual falta um pedaço. Tal lapso, verificável
na flâmula vermelha de Antonio Dias, O País Inventado – Dias-de-Deus-dará
(1976), corresponderia a uma forma estética objetiva?
Para Roberto Schwarz, o conceito de “forma estética objetiva” é en-
tendido como o “realizar como forma estética” um ritmo geral da sociedade,
operando uma redução estrutural de um dado social externo à forma artística:

“não se trata de opor estético a social […]. A forma é considerada


como síntese profunda do movimento histórico […]. Uma composi-
ção só é imitação se for de algo organizado… o que aliás indica, seja
dito de passagem, que a leitura estética tem mais afinidade com a in-
terpretação social abrangente do que as leituras presas à autenticidade
do pormenor. Leitura estética e globalização histórica são parentes. As
duas sugerem o dado num todo complexo, sem suprimi-lo […]. Trata-
-se da imitação de uma estrutura histórica por uma estrutura literária
[ou estética].”
(SCHWARZ, 2006, p. 135)

Nesta concepção, os dados endógenos formalizadores do objeto artís-


tico se ligam dialeticamente, ou seja, mediados pela forma e não pelo con-
teúdo, ao processo histórico-social – que parece a princípio, para o esteta
purista ou formalista, como exógeno ou alheio à forma estética:

“Assim, a junção de romance e sociedade se faz através da forma. Esta


é entendida como um princípio mediador que organiza em profun-
didade os dados da ficção e do real, sendo parte dos dois planos. Sem
descartar o aspecto inventivo, que existe, há aqui uma presença da re-
alidade em sentido forte, muito mais estrita do que as teorias literárias
costumam sugerir. Noutras palavras, antes de intuída e objetivada pelo
romancista, a forma que o crítico estuda foi produzida pelo processo
social, mesmo que ninguém saiba dela. […] Nesta concepção, a forma

114 8
dominante do objeto comporta, entre outros elementos, a incorpora-
ção de uma forma da vida real, que será acionada no campo da ima-
ginação. […] a forma social é objetiva, isto é, posta pelo processo de
reprodução social e independente das consciências individuais.”
(SCHWARZ, 2006, p. 141)

Ritmos gerais
É preciso então passar à construção teórica do processo social: a pro-
blemática da função social da arte – objetivada na procura por uma inser-
ção da arte na vida – fora parte das preocupações da arte concreta brasileira
(no início dos anos 1950). O ideário otimista do planejamento permeou essa
problemática no período nacional-desenvolvimentista dos anos 1950 (até o
golpe de 64). A modernização racional do país apontava para a superação da
condição de dependência crônica, fruto da herança colonial do território. Era
entendida, portanto, como condição para a emancipação coletiva, objetivada
na ideia de formação nacional.
No entanto, já no início da década de 60, se verificam os efeitos an-
tiemancipatórios, alienantes ou fetichizantes que vinham no bojo da moder-
nização do país. Já então ficava claro que as ilusões do desenvolvimentismo
– em especial a ilusão de que reformas político-sociais democratizantes de
grande porte se seguiriam às reformas modernizadoras da política econômica
– haviam perdido o chão histórico. Delineava-se no âmbito político-econô-
mico maior o campo da sociabilidade sobre o qual atuaria o regime político
instaurado com o golpe militar de abril de 1964: o campo da acumulação
capitalista e da concentração de renda (OLIVEIRA, 2003, p. 35-60).
No âmbito estético, as operações de sintaxe dos artistas passavam a se
deter analiticamente sobre os novos princípios produtivo-econômicos con-
solidados pelo regime militar (o princípio consumista, conteúdo da moder-
nização econômica conservadora). A nova figuração articulou materialmente
os objetos e signos do consumo por operações sintáticas de quebra e choque,
dando forma negativa ao conteúdo econômico da hora histórica vivida.

Supressão
Reconheceu-se nas primeiras obras de Dias uma dialética entre propo-
sição e frustração, que garantia sua articulação tensa com a recente “tradição”
da participação do espectador. Há um novo jogo após o recrudescimento
do regime, próximo ao AI-5 e à experiência do exílio, com uma nova série
composta de pinturas pretas: o da supressão (fig. 3).2 Supressão da imagem, 2 Ver, também, de Antonio Dias, Sun photo
as self-portrait, 1968; Project for an artistic
supressão da materialidade, supressão do gozo estético (frente à opacidade attitude, 1970; The Hardest way, 1970, entre
outras.
funérea, e, com Foucault, se poderia dizer disciplinar, destes quadros-negros).
A mesma generalidade processual da forma pode ser reconhecida num
outro procedimento, realizado em sua obra anterior, “figurativa”: o sequestro
de formas visuais dominantes (seja da pop art, seja diretamente das estruturas
visuais da comunicação de massas, quadrinhos etc). Ali, pode-se reconhecer
uma primeira versão do jogo de proposição e frustração: a proposição ori-
ginal de “absorção” de formas estrangeiras é frustrada por seu uso irônico,
depreciativo – uma vez que a matéria “original”, dotada de certa integridade,
é debulhada no jogo de choques a que são submetidas, contrapostas a outros
materiais, que por sua vez lhe são alienígenas.

8
115
Fig. 3. Antonio Dias. The theory of painting, 1971.
Coleção do Artista, in: DIAS, Antonio. Anywhere is my
land. Hatje Cantz/Daros/Pinacoteca do Estado: Zurique/
São Paulo, 2010, p. 107.

Aqui, como antes diante da pop art, o espectador parece estar diante de
procedimentos da minimal art ou da arte conceitual, mas, mais uma vez, ou-
tros elementos estão presentes, rebaixando a forma estética “original”: os qua-
dros também parecem páginas de diagramação vazias, como se estivessem à
espera do copidesque ou do editor de imagens de um magazine ilustrado. Há
espaço aí também para a geometria “nacional”, ligada ao desenvolvimentismo
e à arte aplicada (design), que, de um lado, circunscreve historicamente seu
raio de alcance, e de outro, associa formalmente, pela abstração geométrica,
concretismo e minimal art, integrando, figurativamente, como se houvesse
correspondência formal, dois conteúdos históricos distintos e alheios entre si.

Abstração real
Agora é possível retornar ao álbum Trama: uma coleção de 11 xilogra-
vuras, projetada no Brasil, a partir de 1969, com o nome de Project-book – 10
plans for open projects / Livro-projeto – 10 planos para projetos abertos (DIAS,
1969), mas que só foi realizado materialmente em 1977, por artesãos nepale-
3 Para o Project-book de 1969, ver MOTTA, ses, sob a direção do artista.3
2011, p. 158-181. Para uma análise detalhada
de Trama (1977), ver p. 246-288. O trabalho, idealizado inicialmente por Antonio Dias, foi gravado
manualmente em madeira pelos artesãos orientais, impresso também manu-
almente com técnicas orientais artesanais, sobre um papel nepalês de baixa
qualidade, produzido numa pequena aldeia-favela do Nepal, sob o comando
do artista. Ao contrário dos álbuns de gravura normais, feitos para serem
vistos em gabinetes, por especialistas ou amadores da técnica, Trama foi ex-
posta inúmeras vezes como um painel retangular que não se completa ou
que apresenta uma lacuna (fig. 1). Cada estampa da coleção individualmente
expõe estruturas gráficas retomadas às pinturas “diagramadas” realizadas pelo
artista entre 1968-71.
Em 1969, ainda sob o nome de Project-book, tais estruturas gráficas
eram acrescidas de legendas, que propunham ações a serem realizadas, de
acordo com a noção de “participação do espectador”:

Faça você mesmo: território liberdade / uma estrutura aberta básica,

116 8
que funciona apenas a partir do momento em que alguém utiliza o
espaço declarado livre para colocar uma ação, seja mental, física ou
visual. É importante que a pessoa adote uma postura completamente
não-condicionada antes de penetrar o território-estrutura. Sem di-
mensões pré-estabelecidas: a ser feito em qualquer escala.
(DIAS, 1969)

Fig. 4. Antonio Dias. Faça você mesmo:


território liberdade / To the police, 1968.
Coleção Daros Latinamerica, in DIAS,
Antonio. Antonio Dias. Cosacnaify: São
Paulo, 1999, p. 24, 25.

No Project-book, a prancha Faça você mesmo: território liberdade possui


um esquema visual simples, cujo conteúdo participativo é esclarecido pelo
exemplo que o próprio artista dá, ao realizar o projeto ambientalmente, co-
lando fita adesiva no chão (fig. 4). O ambiente, simples, delimita um campo
espacial racional, sobre o qual a ação, “seja mental, física ou visual”, deve se
realizar. Deste modo, delimitando o perímetro de ação, o artista não hesita
em ser ele mesmo a dar um primeiro exemplo – fazendo o papel de primeiro
participante – ao inserir na montagem do trabalho uma mensagem com des-
tino claro: To the police (1968).
Por oposição ao Project-book de 1968-9, em Trama a “legenda” ou o
conteúdo textual será mais alusivo do que propositivo. De modo que a inter-
venção textual, neste exemplo, ficará assim:

FAÇA VOCÊ MESMO: TERRITÓRIO LIBERDADE


MONOBLOCO-PLURIDEIA
PENETRANDO O TODO QUE VEIO
PRIMEIRO E GERA SUAS PRÓPRIAS PARTES

O que se verifica no todo é um mosaico de proposições ou jogos vi-


suais que parecem emular de modo irônico, ao mesmo tempo: 1) possíveis
plantas arquitetônicas ou projetos para a construção de ambientes ou mo-
numentos (mas que não possuem indicações precisas de função ou modo de
construção); 2) modelos de página ou layouts de diagramação e editoração de
materiais gráficos como revistas ou anúncios publicitários (caixas preparadas

8
117
Fig. 5. Antonio Dias.
Trama (detalhe da
prancha “Do it yourself:
Freedom Territory”),
1977. Coleção Daros
Latinamerica.

para receber imagens, mas que permanecem vazias); e 3) a padronização de


gráficos ou tabelas, oriundos de modelos científicos, estatísticos ou analíticos
(que, ao cabo, são inconcludentes, sem enunciado claro ou lógica evidente).
O que se vê é a adoção de um princípio modular-geométrico, que configura
uma articulação alusiva de nexos internos da produção do artista e de nexos
externos, ligados aos signos semânticos das palavras (o maoísmo chinês, os
movimentos de libertação ou anticoloniais, o black panther party etc).
Especificamente, no caso da dimensão gráfico-visual da obra, o pro-
cedimento de construção faz alusão ao caráter intercambiável dos módulos,
cujo padrão geométrico é utilizado na ideação de “projetos” e “monumentos”
– procedimento sequestrado dos jogos linguísticos da minimal art americana,
nos anos 1970 a nova moda ou língua franca do sistema artístico internacio-
nal. O desenho é assim retomado em chave sintética e crítica: o uso da maté-
ria “abstrata” ou “lógica” não é apologético, visto que desse uso não resultam
formas geométricas “puras”, mas uma reflexão sobre as matérias-primas visu-
ais do debate artístico e sobre sua historicidade.

Eu participo, tu participas… eles lucram


Em Trama (1977), certos “vestígios” da participação do espectador
instauram uma espécie de regra, na qual a “participação” passa a ser regida
pela ausência. Um dos elementos principais de tal formulação se encontra na
lacuna deixada pela falta de uma gravura (no canto superior) que completasse
a forma retangular do painel. Tal lacuna “convida” o olho a completar virtu-
almente a forma retangular – mas a virtualidade do convite (no qual apenas
o olho realiza o ato de completar) refere-se a um desejo (evidentemente frus-
trado) de que fosse a mão (ou a conjunção de “cérebro, músculos, nervos,
mãos etc.”) do observador a realizar a completação.

118 8
O sentido de negatividade ou de dúvida com relação à participação
do espectador é duplo (entendo que “duplo” concorda com “sentido”), pois,
em Trama, ao propor autonomia ao observador (que se tornaria um partici-
pante da obra, segundo as premissas estabelecidas no “Programa Ambiental”),
conta-se com o pré-condicionamento do pretenso participante em relação
à “boa forma” da geometria. Em outras palavras, o que está pressuposto é a
adesão do “participante” justamente ao caráter normativo da geometria.
Ao mesmo tempo, o jogo realizado com os signos da abstração lógica
demonstra, no processo da reordenação ou redisposição que o painel opera,
a lógica que lhes é subjacente (a da abstração), a lógica do intercâmbio onde
cada elemento geométrico se abstrai no outro (quadrados em retângulos, re-
tângulos em quadrados) – ao mesmo tempo em que se abstraem (ou supri-
mem), mutuamente, forma geométrica e observador; forma social e sujeito
histórico – basta lembrar dos “desaparecidos” e exilados da ditadura ou das
pessoas “invisíveis” do trabalho precarizado.

Formas (puramente) materiais


A hipótese inicial: Trama se remeteria à participação do espectador. Já
é possível ousar uma segunda assertiva: em seus lapsos. Trata-se então de anali-
sar o que falta. E qual é a matéria social que falta? Justamente a perspectiva de
participação política – e econômica – generalizada.
É na exclusão, lapso, supressão ou frustração, onde os nexos de gene-
ralidade entre o regime político (a ditadura) e o campo econômico (o campo
da acumulação capitalista, pautada numa “moderna” sociedade de consumo)
se confundem. De tal confusão, própria das sociedades modernas (campo que
o Brasil, em condição subalterna, passava a integrar, superada a concepção da
falsa dialética entre “atraso” e “desenvolvimento”), não é possível depreender
nenhum conhecimento que não seja pura tautologia, tão generalizante ele é.
Neste caso, coube justamente à forma estética a capacidade de se arti-
cular com precisão à forma do processo social e daí extrair-lhe conhecimento
– daí sua autonomia, relativa, como se vê. Lapso, subtração, abstração e in-
tercambialidade de elementos. O processo de acumulação de lapsos e expec-
tativas frustradas, de um lado, mimetiza o processo de abstração real (como
dado oriundo do metabolismo social, ou princípio estrutural da produção
capitalista), e de outro, opera como correlativo formal da experiência política
do país então – o país da distensão “lenta, segura e gradual”, no qual a parti-
cipação política ampla foi vetada e a convulsão social contida por negociatas
palacianas. Veja-se como este conteúdo social aparece figurado textualmente
na estampa Environment for the prisoner, de Trama:

AMBIENTE PARA O PRISIONEIRO


O TERRITÓRIO – ESTRUTURA DE ESTRATÉGIA SOCIAL
APRISIONA A MENTE DENTRO DE SUAS PRÓPRIAS FORMAS PURAMENTE MATERIAIS

Daquela dialética entre proposição e frustração é possível intuir o lapso


como “princípio de generalização”, “que organiza tanto os dados da realidade”

8
119
quanto os da forma artística. Assim, nos “lapsos” e handicaps de Trama, en-
tendidos como princípios organizativos da forma geral do trabalho, incluída
aí a terceirização do trabalho manual (nas figuras dos artesãos nepaleses), o
dado autocrítico da forma (estética) se revela, e para além de sua reflexividade,
tem em mira a forma social à qual ela condensa.

…serves a quem?
Isto posto – o que basta, ao menos reflexivamente, para garantir o
estatuto de modernidade às obras e proposições do período abarcado, e sua
filiação àquela noção emancipada de forma de que falou Roberto Schwarz
–, cabe perguntar se uma tal concepção ainda serve para refletir sobre os
desenvolvimentos atuais, ou “contemporâneos” para falar com o linguajar do
tempo, da noção de participação do espectador, originalmente animada pela
cultura de resistência dos anos 1960, arrancada agora do chão histórico onde
ela (tardiamente) havia florescido e descontextualizada a ponto de se tornar
irreconhecível.
Inserida no mercado de circulação dos bens culturais a que já se cha-
mou (num passado-recente, que já parece tão distante) de indústria cultural,
onde a própria noção de “forma” parece não corresponder a uma experiência
estética existente, a estrutura da “participação” encontraria ainda algum subs-
trato histórico que seria reconhecível para o crítico?
A pergunta, ainda sem resposta, enseja outras reflexões, talvez mais
pertinentes. Quais os termos de vigência do regime de contrarrevolução ins-
talado em 1964? O próprio esgarçamento daquela tradição crítica brasileira,
à qual se apelidou inicialmente de “teoria da formação” ou “escola uspiana”,
vinculada à tradição da Mariantonia, é sintoma de que os novos problemas
talvez tenham de ser tratados de outro modo; e de que suas virtualidades
revolucionárias (se haviam) estão esgotadas. “De nada serve partir das coisas
boas e velhas mas sim das coisas novas e ruins”.
Sobra daí o cerne que animava o ímpeto crítico dessas duas tradições
– e fiel a seu espírito, exige metodologicamente ainda a crítica imanente do
objeto –, ou seja, o desenvolvimento de um aparato teórico-prático ligado
intimamente aos novos objetos “estéticos” (se a palavra ainda for aplicável).
Este cerne crítico, o reconhecimento de estruturas sociais condensadas em
formas (objetos, proposições ou experiências) estéticas, pode talvez prescindir
daquela noção corporificada (e emancipada) de forma que foi abordado na
pesquisa pregressa.
Mas o que diria a estrutura da participação – a ideia de participação
4 Os desdobramentos desta pergunta serão
trabalhados na pesquisa de doutorado,
– “realmente existente” na arte contemporânea diante da pergunta: “serves a
intitulada Mal-estar na participação | quem?”.4 No domínio dos curadores e dos gerentes culturais, a verborragia e
arte contemporânea periférica na era da
“hegemonia às avessas”. a logorreia escondem um silêncio fúnebre.

120 8
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8
121

122
4
COMUNICAÇÕES

Picture Ahead: a Kodak e a construção de um turista-fotógrafo


LÍVIA AQUINO1

Resumo
Esta apresentação trata da fotografia do amador e sua construção histórica no campo do turismo, refletindo sobre a criação
de práticas sociais e sobre as transformações na percepção da experiência da viagem2. Parte-se de uma relação entre a fo-
tografia e o turismo operando como dispositivo. A Kodak é peça fundamental no processo de popularização da fotografia
e, consequentemente, na construção dos modos de produzir, consumir e compreender imagens. Por meio da publicidade,
de estratégias de negócio, da elaboração de um sistema educativo e de ampla cadeia de produção, atua na criação de va-
lores relativos à importância do registro da viagem e enfatiza o fato de que sua rememoração pode ser obra do amador. O
turista-fotógrafo torna-se um sujeito produtor de parte do mundo-imagem, pelo desejo de posse e status que a fotografia e
o turismo carregam, e, especialmente, pela busca de uma fotografia que está sempre a sua espera.

Palavras-chave
Eastman Kodak Company; Fotografia; Turismo; Dispositivo; Turista-fotógrafo.

A fotografia encontra-se implicada ao turismo com as modificações do 1 Mestre em Multimeios e doutora em


Artes Visuais pela Universidade Estadual
tempo e do espaço na modernidade, ganhando fluxo na vida social por meio de Campinas (UNICAMP). É coordenadora e
professora da Pós-graduação em Fotografia
de rituais e modos de ação diversificados na experiência da viagem. Fotografia da Fundação Armando Álvares Penteado
e turismo atravessam o século XX forjando operações que comportam, entre (FAAP), em São Paulo. Editora do blog Dobras
Visuais.
outros aspectos, a invenção dos lugares, a ocupação do tempo, o acúmulo dos
clichês e a roteirização de uma memória. Desse modo, ela constitui-se em 2 Esta apresentação é uma síntese da tese
de doutorado homônima apresentada ao
um dos principais artefatos na construção imagética do turismo. Presente em Instituto de Artes da UNICAMP em março de
2014 com auxilio de bolsa FAPESP.
diversos aspectos dessa vida social ligada às viagens, ela se desenvolve nos es-
túdios dos fotógrafos, na difusão dos cartões-postais, vinculada às explorações
e também por meio da produção do próprio turista.
Com vistas a refletir sobre a fotografia voltada ao amador e sua cons-
trução histórica naquilo que se relaciona ao turismo, no contexto de sua mas-
sificação, apresenta-se a seguir dois apontamentos que atravessam a pesquisa.

1. Sobreposições entre o mundo-imagem e o turista-fotógrafo


Em Sobre fotografia, de 1977, a crítica americana Susan Sontag sinaliza
a aliança entre a fotografia e o turismo iniciada na segunda metade do século
XIX nos Estados Unidos como um processo que culmina no esgotamento
das imagens já em fins do XX e, consequentemente na ideia de um mundo-
-imagem (SONTAG, 2004, p. 21), aquele no qual a percepção da realidade
é cada vez mais semelhante à construída pela câmera. Segundo a autora, a ex-
periência da viagem passa a equivaler-se à imagem naquilo que nomeia como
um “evento”, ou seja, algo que merece atenção e, portanto, acontece em uma
fotografia. Assim, considera que, nesse campo do turismo, tudo existe para

8
123
terminar em uma foto, e fotografar passa a ser tão importante quanto estar
lá, implicando um modo de viajar que pressupõe a presença de um sujeito
seduzido por lugares, pessoas e objetos.
Fotografia e turismo são experiências da modernidade, relacionadas à
diversidade das transformações sociais nos séculos XIX e XX, como as distin-
tas percepções do tempo e do espaço constituídas a partir de mudanças no
modo de vida urbano, de novas rotinas de trabalho e lazer, da proliferação dos
meios de transporte, de novas tecnologias, da introdução de uma cultura de
consumo de massa e nos rituais de afirmação social baseados na demonstra-
ção de poder econômico e de conhecimento.
Críticos como Walter Benjamin (BENJAMIN, 1985) e Siegfried
Kracauer (KRACAUER, 2009), e posteriormente David Harvey (HARVEY,
2011) apontam em seus campos de estudo a condição de inconstância e de
instabilidade experimentada na modernidade como propícia para o desen-
volvimento da fotografia como meio de descrever, analisar, catalogar e viabi-
lizar a circulação de pequenos fragmentos do mundo, tornando-se elemento
importante na economia de mercado e na vida cultural. Em parte devido a
essa conjuntura é que a fotografia se encontra diretamente ligada ao turismo,
como atividade a dar sentido à viagem.
Desse modo, o turista-fotógrafo desponta como um sujeito que com-
porta tanto o turista quanto o fotógrafo amador, mas se constitui, sobretudo,
no entrelaçamento entre os dois. Marca sua presença como aquele que car-
rega uma câmera e está pronto para registrar a viagem em todos os detalhes,
como forma de validá-la. Para tanto, muitas vezes aprende como sacar boas
fotografias com as imagens realizadas por fotógrafos profissionais, presentes
nos manuais, revistas e guias, e também com seus pares por meio dos objetos
e rituais que se estabelecem como protocolos desde o surgimento tanto do
turismo quanto da própria fotografia como prática amadora.

2. O dispositivo como operação: o lugar da Kodak


Fotografia e turismo são aqui compreendidos como um dispositivo em
função de se estabelecerem de forma semelhante a um jogo ou um programa
a ser seguido, impulsionando e modificando funções determinadas nos dis-
cursos, rituais e organizações. Segundo Michel Foucault, a rede formada pe-
los elementos dessa trama é o que configura o dispositivo – ao mesmo tempo
que ele estabelece saberes, é por eles condicionado, gerando tensão em suas
relações de força e, logo, constituindo poderes.
A hipótese consiste na relação entre a fotografia e o turismo operando
como dispositivo, agente nos enunciados de uma cultura ligada às viagens,
cristalizando uma inerente relação entre si. Ambos os campos criam desejos,
formam valores, orientam práticas, investem tempo e concentram economias.
Porque reúnem diversos processos heterogêneos, trata-se de algo ao mesmo
tempo disposto e disseminado no meio social. Logo, o dispositivo opera na
construção de um turista-fotógrafo naquilo que diz respeito à produção e ao
consumo de imagens.
Nessa perspectiva do dispositivo que relaciona saberes, discursos e ri-
tuais, nota-se o processo de massificação da fotografia vinculado a uma in-
dústria que, além de criar produtos fotográficos de fácil manuseio, torna-os

124 8
acessíveis ao público leigo tanto economicamente quanto pelo modo de usar.
Assim desponta a Eastman Kodak Company, criada por George Eastman em
1888 nos Estados Unidos. No decorrer do século XX, a Kodak se estabelece
como uma das maiores empresas ligadas à fotografia no mundo, ambição
que remonta a sua fundação, construindo modos de produzir, consumir e
compreender imagens.
Mais do que inventar produtos fotográficos, ela cria uma prática e um
mercado para o fotógrafo amador com câmeras portáteis de fácil manuseio
e com um modelo de negócio baseado no consumo de filmes e insumos. Ao
designar a câmera como companheira para todas as ocasiões, incluídas as
viagens e saídas a campo, a empresa de Eastman colabora para a instituição
de hábitos que ritualizam e ordenam a experiência de fotografar. Logo, em
parte com a Kodak, todos passam a ser fotógrafos em potencial e em ordem
planetária.
Nesse contexto, avalia-se as estratégias da publicidade que se consti-
tuem como práticas de sociabilidade e visualidade centradas na fotografia
como mercadoria, em amplo material pesquisado no arquivo da George
Eastman House3. Procura-se evidenciar principalmente um turista em cons- 3 George Eastman House - International
Museum of Photography and Film (GEH), em
trução, circunscrito a práticas que o levam à fotografia e ao lugar que a Kodak Rochester – NY (EUA).
ocupa nesse processo. Destaco a marcante intenção de atuação da empresa
direcionada à figura do fotógrafo amador, com estratégias de enunciação e
convencimento por meio de sua publicidade, dos manuais e de ações diversas
como forma de educar sobre a fotografia.
Procura-se responder a questões sobre os modos como o turista-fotó-
grafo surge entrelaçado nesse contexto apresentado. Ao desenhar um modelo
de atuação junto aos seus funcionários, distribuidores e clientes, a Kodak
segue um protocolo geral, quase normativo, no modo de atingir o fotógrafo
amador com todos os seus produtos. Logo, ajuda a criar o desejo de mostrar
onde, como e com quem se passa as férias, bem como o de ser fotografado e ser
visto fotografando o mundo.
Atenta-se para questões notáveis da Kodak em longo arco temporal,
desde sua fundação até a década de 19804. Entretanto, é importante marcar 4 Esse recorte de cem anos justifica-se em
primeiro lugar por ser o período em que
que muito embora parta-se desse longo período no arquivo dessa grande in- ocorrem as transformações do mercado
fotográfico em função tanto do crescimento
dústria fotográfica, o sujeito enredado não comporta o mesmo recorte por da indústria japonesa nos Estados Unidos
sua condição de ser construído no interior do dispositivo. O turista-fotógrafo quanto do desenvolvimento tecnológico, que
culmina na invenção dos sistemas digitais;
surge paulatinamente dentro de um contexto das viagens antes do cresci- em seguida, por coincidir com o final do
ciclo da chamada explosão de crescimento
mento do turismo como atividade econômica e cultural, ganhando força com do turismo de massa, entre os anos 1950 e
1980.
a observação do mundo por meio de diversos instrumentos ópticos e com a
invenção da fotografia, mas, sobretudo, com o surgimento de um mercado
para o amador, com a Kodak. Nessa condição, o turista-fotógrafo se espraia
além dos enunciados e das visibilidades criadas com a Kodak, podendo ser
observado em diversas práticas que envolvem ainda o turismo e a fotografia
e, portanto, até mesmo com o fim da atuação da empresa no mercado global.
Desse modo, faz-se necessário explicar a expressão Picture Ahead. Em
1920, a Kodak envia seus publicitários para as mais importantes e novas es-
tradas dos Estados Unidos a fim de que escolham suas melhores vistas. Nesses
lugares é colocada placa com o enunciado Picture Ahead! Kodak as you go,
totalizando aproximadamente seis mil indicações voltadas para viajantes nas

8
125
rodovias. A ação, que se desdobra por 30 anos, é precursora da campanha
Kodak Picture Spot na qual o foco são locais turísticos e parques nacionais
norte-americanos. A partir dos anos 1950, em parceria que perdura por 50
anos com a Walt Disney Company, a placa passa a figurar também nos par-
ques da rede e logo torna-se popular entre os turistas, indicando os melhores
pontos e enquadramentos para se fazer uma fotografia das atrações.

Fig. 1. Campanha da Kodak


Picture Ahead! Kodak as you go,
1920 (COLLINS, 1990, p.
156).

A expressão Picture Ahead, mais do que um local interessante, sinaliza


a potência de uma fotografia a ser encontrada por todos aqueles que circu-
lam e carregam uma câmera. Faz emergir igualmente um enunciado desse
dispositivo tanto ao lidar com aquilo que oferece como possibilidade para a
fotografia quanto por sugerir uma condição de circulação nessas novas estra-
das e, posteriormente, nos parques turísticos pela forte ligação com a Disney.
Picture Ahead faz parte do título da tese por ser essencial para a compreensão
do turista-fotógrafo enredado com a Kodak nos protocolos de ver, escolher e
fotografar lugares demarcados com antecedência.
A análise do material pesquisado aponta estreita ligação a uma prática,
a um uso e a um lugar para a fotografia no turismo e, consequentemente, para
a construção do turista-fotógrafo enredado com a Kodak.
O turista-fotógrafo é um sujeito que passa a registrar todas as viagens
e excursões para apropriar-se da experiência vivida, posando com sua família
e evidenciando suas novas conquistas como únicas. Encontra-se implicado
nesse discurso ao querer sacar muitas fotos de suas viagens e exibi-las como
troféus, e a Kodak tem papel ativo ao construir uma prática atravessada pela
compreensão de uma fotografia a ser conquistada. A relação simbólica que se
estabelece entre o fotógrafo e o caçador é marcada pela presença de George
Eastman a criar espaço para que as duas práticas se entreteçam, tanto por
seu interesse e atuação como caçador como por dirigir muitos dos anúncios
relacionados ao tema nos primeiros anos da empresa, antes da criação de um
departamento específico.

126 8
Fig. 2. Anúncios da Kodak,
1900, 1958, 1960, 1949,
1931, 1958 (da esquerda para a
direita). Acervo George Eastman
House (Rochester, NY): Kodak
Advertisement Collection.

A publicidade da empresa aproxima as duas práticas por três meios:


primeiro, por um vocabulário comum, com palavras como capturar, caçar,
prova ou tiro para se referir à ação de fotografar; segundo, pela caracterização
dos dois personagens, que por vezes aparecem como tipos aventureiros, junto
com suas armas e embornais, carregando uma câmera a tiracolo, acoplada à
cartucheira; e por fim, pela própria ideia de troféu, exibindo suas presas para
que seus amigos as fotografem ou registrem a conquista, além de mostrar suas
imagens como tal, tipos de souvenires.
Não se trata de apontar, entretanto, um caminho sobre a gênese dessa
aproximação, mas assinalar linhas de força capazes de restituir e fazer ver
alguns acontecimentos que marcam o papel da Kodak nesse jogo em que
armas e câmeras se encontram comprometidas. Trata-se de distinguir lugares,
saberes e gestos em que tal analogia vai sendo estabelecida, como camadas
que se sobrepõem, ocultando ou fazendo emergirem os significados desse
entrelaçamento.
Essa justaposição dos dois sujeitos, caçador e fotógrafo, envolve aquilo
que Sontag (SONTAG, 2004, p. 25) sugere ser um processo de domesticação
das agressões: não se caçam mais animais, e sim fotografias. A troca simbólica
entre a arma e a câmera implica uma condição de saber e poder do dispo-
sitivo; o turista pode ser considerado um tipo de predador que tem como
objetivo consumir lugares, vivências e vistas, numa espécie de “culto perma-
nente” (AGAMBEN, 2007, p. 72), em que a fotografia se torna sua parceira
constante. Assim, o alcance global que a Kodak atinge contribui para que a
prática fotográfica se dissemine nessa chancela, fazendo com que o amador
compreenda lógica semelhante na busca por imagens.
No caso dos troféus, verifica-se a procura do raro que se faz presente

8
127
no discurso tanto da fotografia quanto do turismo. Assim, muitas vezes em
uma viagem busca-se uma experiência comercializada como única em função
de distintas razões, como dificuldade de acesso ao lugar, condição econômica,
pouca visitação ou alguma barreira cultural. Com a fotografia, todavia, e por
meio do dispositivo, essa raridade se dissemina, e todos passam a desejá-la –
consome-se qualquer lugar transformado pelo turismo por meio das imagens,
por mais que possam ser divulgados como incomuns, caros e singulares. É
nessa condição que o turista-fotógrafo nasce como um tipo caçador, ocu-
pando aos poucos o lugar simbólico do predador, um sujeito “devorador de
paisagem” ou um “consumidor da natureza”, na atribuição do historiador
Marc Boyer (BOYER, 2003, p. 55).
Essa é uma consequência possível do crescimento do turismo como
uma grande indústria, capaz de fazer de qualquer espaço, atividade ou histó-
ria um lugar de visitação, gerando desejos tanto de deslocamento quanto de
apropriação deles por meio das fotografias presentes nas revistas ilustradas,
nos guias e na publicidade. É desse modo que o turista-fotógrafo pode afir-
mar “eu fui, estive lá”, por meio de um roteiro que ele elabora, ajudando a re-
forçar o ritual em torno da viagem. Portanto, a fotografia funciona aqui como
organizadora da vida social e se estrutura de forma coerciva, no imperativo de
que é imprescindível e de que faz parte do passeio.
O turista-fotógrafo encontra-se implicado nesse poder do único e do
original na busca das fotografias de sua viagem. Para Kracauer, o escopo da
viagem pode até ser uma busca do lugar exótico; na modernidade, entretanto,
esse local pode significar qualquer um que seja contemplado “na medida em
que parece incomum a outro lugar apreciado” (KRACAUER, 2009, p. 82).
Logo, ele consome e fotografa com frequência sua experiência nos mais di-
versos lugares, busca mostrar o monumento, o museu, a praia, o restaurante
e toda sorte de gente a lhe chamar atenção. Em fila, segue o guia, espera
para fazer uma fotografia da Monalisa – mesmo que seja uma das imagens
mais reproduzidas em suvenires, aguarda os turistas saírem da vista para dar
a impressão de exclusividade na foto que faz, e, mais do que todas essas si-
tuações, é tomado por uma espécie de “contágio mimético” (ROBINSON e
PICARD, 2009, p. 16) ao perceber que há outro fotografando. Fotografar
torna-se gesto automatizado, assentado em protocolos criados e estabelecidos
durante anos como parte da experiência moderna.
Esse tipo de fotografia produzida e em uso no turismo com a participa-
ção da Kodak, recai, por outro lado, na constituição de uma ideia de memória
daquele que viaja. Com todas as transformações sociais experimentadas na
modernidade, diversas práticas se modificam em função da ruptura e da frag-
mentação do tempo e do espaço, dando lugar a um “trabalho ideológico de
inventar a tradição” (HARVEY, 2011, p. 247), como analisa David Harvey. A
fotografia se torna operatória nesse contexto por meio de rituais – pensando
o ritual como um processo que torna o discurso eficaz, institui ações, gestos
e condições para que o dispositivo aconteça. Desde os primeiros anúncios, a
Kodak reconhece o apelo à memória com a fotografia, principalmente a partir
do potencial de histórias que podem ser criadas. O relato das férias, o feriado
de verão, a viagem de inverno, um passeio de barco: tudo é motivo e torna-se
imperativo para ser lembrando.

128 8
Na direção do uso da fotografia que a Kodak engendra, os enunciados
de suas ações funcionam como um ritual devido a seu caráter repetitivo e es-
tilizado, com sequências de discursos regulares durante todo o século XX. Os
produtos podem sofrer alterações em função do avanço tecnológico, podem
até determinar alguns novos hábitos em seu entorno, mas, no todo, têm-se
um argumento sobre a fotografia que permanece e se perpetua no decorrer
desse tempo, garantindo a eficiência do efeito mnemônico.
É por meio desse caráter ritual que o discurso promovido pela Kodak
se torna eficiente, instituindo práticas e gestos regulares e repetitivos a criar
condições para que o dispositivo aconteça. Para tanto, por meio de álbuns
e sistemas de projeção, a fotografia vai ganhando espaço na vida moderna,
sendo compartilhada socialmente em clubes e reuniões familiares.
Com o amador produzindo e partilhando a fotografia como uma ex-
periência estética e afetiva é que o dispositivo ganha força, permanência e se
dissemina. Com a estratégia da facilidade e do acesso difundidos pela Kodak,
o álbum torna-se objeto feito pela própria família, dando início a um modo
de roteirização e de visualidade das histórias domésticas e turísticas. As me-
mórias passam a ser cultivadas, como o próprio hábito de viajar, em processo
constante de internalização de um costume que, paulatinamente, vai sendo
compreendido como fundamental.
Ao longo de sua trajetória, a Kodak produz diversos produtos direcio-
nados ao amador para a produção de imagem fixa e em movimento. Ainda
que às vezes a publicidade e os manuais sejam voltados para alguns especi-
ficamente, a prática que envolve o registro da vida doméstica e das viagens
não se distingue no gesto desse fotógrafo que carrega ambos os formatos.
Faz-se tudo com vistas a gerar lembranças, reafirmando, no caso do turista-
-fotógrafo, um desejo irrefutável de se apoderar da experiência na constru-
ção do mundo-imagem. Logo, os rituais para exibição do material produzido
igualmente comporta as duas práticas, indistintas no sentido atribuído de
engendrar memória por meio delas. Nesse sentido, a ideia de ver por meio
das imagens a experiência vivida torna-se um apelo utilizado nos anúncios
que exprimem a ilusão do quanto as imagens comportam a vida, apontando
o caminho para uma memória cada vez mais comercializada (HUYSSEN,
2000, p. 18) e consumida como roteiro de algo.
Assim, a Kodak enuncia uma fotografia capaz de conter o tempo, que
passa rapidamente, e sobretudo de preservar a memória, que é falha e sujeita
ao esquecimento; uma fotografia que possibilita rever em imagem a própria
experiência. Esse discurso mostra-se eficaz no contexto da “cultura da memó-
ria” proposto por Andreas Huyssen (HUYSSEN, 2000, p. 30) ou na lógica do
“mito da durabilidade” assinalado por Fausto Colombo (COLOMBO, 1991,
p. 100), uma série de práticas políticas e culturais a fazer da lembrança uma
garantia de continuidade diante das fragmentações vividas na modernidade.
O discurso estabelecido com a Kodak aponta o dispositivo que articula
turismo e fotografia e sugere o quanto o turista-fotógrafo é parte essencial
no trabalho de construção do mundo-imagem. Com diversas estratégias em
jogo, a Kodak ajuda a criar o entorno de uma fotografia quase obrigatória:
“não importa para onde você vai, leve uma câmera com você” é argumento
comum em sua publicidade, na literatura que produz e no modo como se

8
129
faz presente em acontecimentos, a exemplo da sua participação nas exposi-
ções universais. Desse modo é que tanto a campanha Picture Ahead quanto
por exemplo, a da Kodak Girl, personagem feminina com traje listrado que
percorre todos os continentes anunciando usos e modos para a fotografia,
sugerem desde o início o quanto uma viagem sem a presença da câmera pode
ser uma experiência perdida. Logo, como peça essencial dessa atividade, a fo-
tografia passa também a estruturá-la e se torna, simultaneamente, um modo
de acumulá-la (URRY, 2001, p. 186).
Sentir-se turista em algum lugar é uma das práticas que a Kodak ajuda
a engendrar. Viajar de carro, trem, avião ou navio passa a ser símbolo de
status, e a publicidade faz grandes investimentos em campanhas que geram
demanda e desejo de consumo. O turista é frequentemente representado nos
anúncios de diversos desses produtos, sempre com a câmera pronta para foto-
grafar o mundo que se descortina a sua frente.
Junto com a ampliação do setor de viagens em função dos novos meios
de transporte cresce o investimento em seu registro, e a câmera, objeto im-
prescindível a essa prática, ganha relevância. Nessa condição, o turista-fotó-
grafo é impelido a observar o mundo que se descortina a sua frente nova-
mente como uma diversidade de oportunidades fotográficas. Viajar implica
fotografar, necessariamente.

Fig. 3. Anúncios da Kodak, 1919* e


2000**.
*Acervo George Eastman
House (Rochester, NY): Kodak
Advertisement Collection.
**Kodak Company.

Desse modo, na medida em que o mundo encolhe com argumento


semelhante ao de David Harvey acerca da diminuição dos espaços; com a
Kodak, entretanto, não se trata de um meio de transporte a carregar rapida-
mente pessoas para todos os lugares, mas sim das imagens a circular, em parte
pela facilidade do sistema que cria e dissemina. Se nesse primeiro anúncio do
início do século XX, a ilustração do globo apresenta-o circundado por uma
tira de filme, projetando para fora cenas de diferentes lugares com a promessa

130 8
de que a fotografia é capaz de mostrá-los para a outra metade do mundo, no
segundo, já em fins do XX, o próprio planeta é inflado a partir da objetiva da
câmera [Fig. 3]. Como parte do dispositivo que opera na tese, com a Kodak,
a fotografia conquista o mundo, mas também, pelo significado do verbo to
conquer, pode tomá-lo, superá-lo, subjugá-lo ou dominá-lo.
Portanto, a lógica que se estabelece por meio da expressão Picture
Ahead, a de que existe potencialmente uma fotografia a sua espera, produz
um efeito consumidor de imagens. A expectativa dessa fotografia transforma-
-se numa busca desenfreada no sentido de transformar o mundo em eventos,
como uma miríade de oportunidades, uma promessa de que o mundo sobre-
viverá em imagens. Todavia, não presume o quanto o mundo-imagem e o
turista-fotógrafo se fundem em fantasmagorias ou em camadas a condensar
protocolos, rituais e aprendizagens sobre o que significa viajar e fotografar.
Os elementos constituintes da relação entre turismo e fotografia como dis-
positivo são fundamentais para a compreensão dos modos de subjetivação
que produzem e enredam o turista-fotógrafo que compreende a fotografia
como parte imprescindível do mundo em trânsito, a constituir ela própria o
mundo-imagem.

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132 8
8
133

134
4
COMUNICAÇÕES

Visões do “Mal” – Estudos visuais sobre fotografia pericial – acervo do Instituto


de Criminalística em São Paulo, 1987-2007
CYRA MARIA DE ARAUJO SOUZA VIEIRA1

Resumo
As imagens de cunho pericial, como as que se encontram no Laboratório de Fotografia do Instituto de Criminalística em
São Paulo (IC), são em geral entendidas como produto visual descartável. Para além de sua função ilustrativa nos laudos
periciais (e de sua força de argumento como índice do acontecido), a fotografia de natureza criminal (cenas de acidentes,
de crimes, corpo de delito, procedimentos de autópsia, enfim, prova visual/material em inquérito policial e processo cri-
minal judiciário) parece, num primeiro momento, incapaz de ser pensada como passível de interpretações visuais outras,
se não o de uma imagem que adere a seu referente. No âmbito acadêmico, por exemplo, a imagem forense quase sempre
surge periférica e ilustrativa em estudos de caráter histórico/sociológico - quase sempre ligados ao tema da criminologia ou
variações sobre a marginalidade urbana, um acessório apenas. Aqui, elabora-se sobre aspectos outros.

Palavras-chave
Fotografia; Morte Violenta; Policia Científica; Estudos Visuais.

1. A Polícia Científica e o Fotógrafo Pericial na cidade de São Paulo 1 Universidade Estadual de Campinas,
Doutoranda.
As imagens forenses seguem interpretadas por seus espectadores pri-
meiros – juristas em especial – como pequenos pedaços do real, bem à moda
de André Bazin (teórico do cinema Neo-Realista Italiano no pós-guerra) em
seu texto sobre uma suposta “Ontologia da Imagem Fotográfica”(BAZIN,
1992). Espelhamento do real, máscara mortuária, congelamento do instante
em sua capacidade de acentuar as particularidades da experiência real e sus-
pendê-la no tempo. O sentido de discurso e representação nas imagens de na-
tureza cientifica e pericial, fica quase que transparente, invisível, subliminar.
A Polícia Técnica no estado de São Paulo foi criada em 1924, quase 40
anos após a fundação do Instituto Médico Legal (IML) paulista (na época,
chamado Serviço Médico Policial da Capital) de 1886, órgão técnico mais
antigo da polícia na cidade. O final do séc. XIX e início do séc. XX foram
momentos em que os campos jurídicos e policiais brasileiros reestruturam
seus métodos de trabalho diante do crime, na medida em que foram influen-
ciados pelas modernas e cientificistas teorias de criminologia e criminalística
da Europa.
De acordo com o relato de Edson Wailemann2 - chefe do Setor de 2 As entrevistas conduzidas com Edson
Wailemann foram realizadas no decorrer de
Recursos Audiovisuais no DHPP e fotógrafo pericial desde 1977 - no mesmo setembro de 2010, em visitas ao prédio do
DHPP da cidade de São Paulo.
ano de 1924 surge na polícia paulista a figura do “Fotógrafo Policial”: muitas
vezes recrutado dentre fotógrafos já atuantes, tinha direito a 2 ajudantes e
1 datilógrafo para auxiliar a confecção visual dos laudos, os quais, curiosa- 3 Informações sobre os primeiros fotógrafos
mente, eram assinados apenas pelos peritos, policiais responsáveis pela reda- periciais de São Paulo: http://aspc.com.br/
index.php?option=com_content&task=view&
ção do laudo.3 id=187&Itemid=2

8
135
Desta forma, juntamente à instituição da Polícia Técnica paulista, ini-
cia-se a utilização de fotografias como complementação aos laudos periciais,
o que num primeiro momento se restringia a imagens de objetos de crime
ou cadáveres encontrados e ambientados em salas periciais (como no caso do
Crime da Mala de 1928 ), com algumas imagens de automóveis acidentados
e locais de incêndio.
Devido ao peso e tamanho dos aparelhos fotográficos daquela época,
e também pelo relativo longo tempo necessário para exposição, essas imagens
são de imobilidade completa, limitando-se a retratar ambientes internos, pe-
quenos objetos e cadáveres no sentido mais próximo daquilo que possamos
pensar como natureza morta.
Os primeiros fotógrafos técnicos periciais eram, em geral, autônomos,
já atuantes no mercado da fotografia em São Paulo, chamados e contratados
para atuar em casos específicos, e mais complexos ou notórios, junto à polícia,
numa espécie de trabalho freelancer. Somente a partir do final da década de
30 é que aparecem nos laudos as primeiras imagens de locais de crime pericia-
dos e as identificações de cadáveres in loco, indo além das necropsias nas salas
do IML – essas fotografias passam agora a serem feitas com equipamentos
mais leves (médio formato), constituindo as bases da fotografia de perícia que
se conhece hoje, e a denominação clássica da literatura de fotografia forense
norte-americana, a fotografia de cena de crime.
No ano de 1972 formaliza-se a carreira de fotógrafo pericial dentro do
quadro da Polícia Civil do Estado, havendo a abertura do primeiro concurso
público para contratação, e criação de um laboratório de fotografia interno
para finalidades de perícia. O fotógrafo pericial deixava então de ser um
profissional da imagem recrutado para um trabalho policial e assumia ca-
racterísticas de uma função pública, que supostamente poderia ser exercida
por qualquer indivíduo habilitado em concurso público. Este é o perfil do
fotógrafo pericial atuante hoje no IC.

2. Diante do “Infigurado” e do Abjeto


João Francisco Duarte Júnior (1991), em um pequeno ensaio intro-
dutório sobre a experiência do “Belo” ou da “Beleza” no Ocidente, comenta
a respeito de algo que denomina como “O Infigurado”: o elemento, ou um
conjunto deles, que seria causador de ansiedade e incômodo no espectador,
e que muitas vezes surge como abertura para uma fruição entre o olhar e esse
objeto, imagem, etc., a qual transborda para além do campo pragmático,
funcional. Isso o autor propõe não apenas no que se refere à obra de arte,
mas também para um objeto cultural qualquer, ou mesmo diante da natu-
reza e suas manifestações. Essa dimensão sensível que suspende o “lugar” no
cotidiano pode ser pensada justamente como uma capacidade de reconhe-
cimento da distinção entre uma realidade material comum aos seres e sua
representação, seu aspecto de construção cultural, a separação entre imagem
e seu referente.
Duarte se refere a aspectos formais e de superfície dos objetos ao falar
sobre a “não-figuração”, esse desequilíbrio sentido diante de algumas visões
na medida em que elas contrastem com uma espécie de organização visual
mental padronizada em busca da harmonia e da simetria, uma referência para

136 8
o “Belo” na Modernidade, pensando-a desde o Renascimento, padrão cultu-
ralmente ensinado e idealizado ao longo de nossas vidas.

Lembra-te, meu amor, do objeto que encontramos


Numa bela manhã radiante:
Na curva de um atalho, entre calhaus e ramos,
Uma carniça repugnante.
As pernas para cima, qual mulher lasciva,
A transpirar miasmas e humores,
Eis que as abria desleixada e repulsiva,
O ventre prenhe de licores... (BAUDELAIRE, 2005)

O poeta Charles Baudelaire lembra sua amada sobre a decadência e


a morte que lhe aguarda, como na carniça encontrada por eles no caminho.
Provocador, esse diálogo entre o desejo amoroso e o fascínio pelo cadáver em
putrefação marcam a poética simbolista do final do séc. XIX. A experiência
sensível do prazer diante da imagem que fala da própria decadência e ruína
humanas, ou seja, diante do que se possa chamar de “Infigurado”, manteve-
-se presente nas manifestações visuais do séc. XX, como no Expressionismo,
Surrealismo, nos romances e também nas novelas policiais e principalmente
nas culturas populares urbanas do Cinema de Horror e de Suspense, en-
quanto imaginário implicitamente fantasioso, o que lhe confere certa legiti-
midade artística.
O “abjeto” na Arte Contemporânea e seu indicial trauma pertence,
mais além, a uma longa tradição visual ocidental de procura por representa-
ções do informe e do grotesco, que é também evidenciada por Kristeva em in-
terpretações psicanalíticas sobre a necessidade de visualização/materialidade
para o “lugar em que todo o significado parece desmoronar” [the place where
meaning collapses] (KRISTEVA, 1982, p. 11)4 , dentre outros pensadores. 4 Kristeva define aqui o conceito de “abjeto”.

O sentido de abjeção de uma imagem técnica da morte violenta,


retirada de um cotidiano metropolitano ao qual pertencemos parece ser ainda
mais evidente, e talvez por isso tenha sido tão utilizado por artistas na con-
temporaneidade, por sua capacidade de choque, de provocação. Deslocadas
de seu sentido funcional, as imagens de perícia policial são da ordem do ab-
jeto e do obsceno. Fora dos laudos da polícia científica, a fotografia pericial
assume a ausência de sentido ou de significado objetivos, sobre a qual nos fala
Kristeva, referindo-se quase sempre, assim como no caso das imagens de sexo
explícito, a lembranças de um estado de animalidade, ou de antecedência
diante de estruturações e padronizações de linguagem e do pensamento linear
e consciente.
Daí então o fato de que pensá-las no aspecto de um imaginário visual
da “infiguração”, da deformação, do “abjeto”, e enquanto representação e
construção cultural, passível de interpretações outras que não passem estri-
tamente pelo lugar da continuidade material e funcional do referente, ou da
documentação social e histórica pareça deveras difícil para a academia. Basta
verificarmos o número baixíssimo de dissertações e teses sobre o assunto da
fotografia de perícia (e evidentemente nulo se nos referimos a estudos de na-
tureza estritamente visuais), quase sempre surgindo periférica e ilustrativa em

8
137
estudos de caráter histórico/sociológico/documental, ligados ao tema da cri-
minologia ou variações sobre a marginalidade urbana. Um acessório apenas,
seja qual for o enfoque. Também essa negligência é percebida a partir da rea-
ção de grande parte dos acadêmicos ao deparar-se com a visão dessas imagens
e com a ideia de que possam ser lidas fora de seu contexto técnico/funcional
(aqui, um relato de experiência pessoal). Mesmo diante de trabalhos como
o de Melanie Pullen na série High Fashion Crime Scenes, de 2005 (as imagens
tem como referência uma pesquisa da artista pelos arquivos fotográficos da
Polícia de Los Angeles, na busca por imagens de assassinatos e homicídios
5 Mais sobre a série em www.melaniepullen. envolvendo modelos e membros da indústria da moda na cidade)5, as ima-
com.
gens técnicas da morte violenta enquanto objeto de estudo visual são muitas
vezes entendidas como veículos de sadismo e exploração sensacionalista da
dor alheia, sem valor acadêmico.
Estudiosos do gênero policial/noir, na literatura e no cinema, apon-
tam para a segunda metade do séc. XIX como momento de configuração
de padrões visuais e discursivos diante do crime e da marginalidade urbana
presentes em três segmentos que constantemente esbarram-se: a crimino-
logia enquanto ciência, o romance/conto policial e a narrativa jornalística
policial nos tabloides populares. A fotografia de natureza criminal é, desde
seu primeiro momento, visualmente trabalhada em sintonia a imaginários
literários, jornalísticos e, posteriormente, cinematográficos, num processo de
troca constante (o cinema bebe na fonte da polícia científica e das manchetes
de tabloides, assim como os romances policiais noir do começo do séc. XX,
que por sua vez influenciam os padrões para ilustração e narrativa de laudos
periciais, e assim por diante). Essas narrativas interessadas pelo obscuro, des-
conhecido, repletas de cenas de sangue, violência e horror gráfico, trazem
inúmeras referências a imagens do grotesco e do “informe” na História das
Artes e da Cultura Visual.

3. Visões do Mal
Os estudos realizados com imagens do Laboratório de Fotografia do
IC em São Paulo evidenciam as fotografias periciais enquanto construções
pertencentes à tradição visual de representações do “infigurado” e do “abjeto”.
Esse olhar distanciado aqui presente é de fato obsceno, na medida em que
desloca essas imagens de seu lugar comum, originário, do laudo, e as apre-
senta como objeto para análises da ordem da Cultura Visual, sem, contudo,
negar ou abstrair seu caráter de testemunho, de indicialidade: é este quem de
fato lhe confere o sentido mais marcante de sua abjeção, como já mostrado
por artistas, fotógrafos das décadas de 80 e 90.
Junto ao levantamento de dados históricos a respeito da fotografia fo-
rense e do fotógrafo pericial no estado de São Paulo, o estudo revela toda uma
categoria visual que passa e desaparece de forma despercebida pelos centros
de pesquisa nacionais (as instituições governamentais e privadas de pesquisa e
arquivo para material de natureza policial, pericial e judicial – laudos, fotos,
objetos – são comuns em outros países como França e EUA).

The corpse, seen without God and outside of science, is the utmost
of abjection. It is death infecting life. Abject. It is something rejec-

138 8
ted from which one does not part, from which one does not protect
oneself as from an object. Imaginary uncanniness and real threat, it
beckons to us and ends up engulfing us. (KRISTEVA, 1982, p. 4)

Os casos seguintes dizem respeito a Homicídios, Mortes a Esclarecer/


Encontros de Cadáver e Suicídios. A numeração faz parte da catalogação
interna ao próprio Laboratório de Fotografia no IC, sendo que permanecem
confidenciais a localidade e data exatas do crime por motivos de discrição
diante das vítimas e seus familiares, postura exigida pela direção do IC.
A autoria foi obtida, para uma boa parte das imagens, por meio de re-
gistros encontrados em expedientes de fotógrafos periciais arquivados no IC.
Em grande parte dos casos, somente fora anotado, nos envelopes de negati-
vos, o primeiro nome, ou um dos sobrenomes (aquele pelo qual costumava
ser chamado o fotógrafo). Algumas vezes, as anotações se restringiram a um
apelido. Sendo assim, algumas fotografias aqui apresentadas tem autoria des-
conhecida. A informalidade e a falta de rigor metodológico diante da catalo-
gação e arquivamento das matrizes fotográficas ficam aqui registradas como
algo a ser pensado, em termos de políticas públicas para arquivos históricos
de instituições governamentais tais como a Polícia Científica.
Num período de 9 meses (abril a dezembro de 2010), foram escolhidos
2000 envelopes para cada ano, num contingente de 12 a 14 mil, quantidade
de envelopes arquivados para cada um dos anos, isso feito para o intervalo de
1987 a 2007. Os envelopes escolhidos foram os de casos que caracterizam a
morte violenta e corpo desfigurado. No aspecto das denominações policiais
caracterizam morte a esclarecer/encontro de cadáver, homicídio e suicídio
(categorias que são organizadas no grupo temático que os fotógrafos chamam
de “crimes de sangue”) basicamente.
Visualizados esses fotogramas, foram escolhidas, tendo em mente
questões de enquadramento, luz, perspectiva e composição de objetos de
cena, elementos de valorização visual, em torno de 200 imagens.

3.1. A Imagem “Síntese”


Durante a pesquisa, percebeu-se que, dentre as fotografias da sequ-
ência narrativa pericial da morte violenta há, em geral, aquela que parece
possuir certa pretensão de sintetizar o crime, de resumi-lo num todo e, na
medida do possível, a esta única imagem. Nela, o fotógrafo tenta organizar
o espaço visual de forma que se encontrem tanto o cadáver quanto objetos e
elementos outros de cena; organização no sentido de criar um clima que dê
conta da natureza do acontecido e da intensidade de seu trágico desfecho.
A vontade de síntese da imagem pode ser pensada como desejo esté-
tico, a busca pela sensação de completude, de unidade que traga sentido à vi-
são, mesmo que não aconteça de forma linear, sequencial, mas como simulta-
neidade. Em diálogo com as teorias psicanalíticas da arte, Richard Wollheim:

Ora, não há dúvida de que a afirmação e a exaltação do objeto inte-


gral desempenham importante papel na arte. Como representação
da figura bondosa interior, do pai agredido em fantasia e depois amo-
rosamente reconstituído, ela é essencial para toda atividade criativa.
(WOLLHEIM, 1994, p. 112)

8
139
Sobre a criação artística, Wollheim discute os ideais psicanalíticos de
construção do objeto integral. Afrontado com a cena de horror, o fotógrafo
pericial talvez possa ser pensado como ente organizador, em sua recriação do
acontecido pela imagem, não somente através da lógica sequencial da narra-
tiva, mas em especial na criação da imagem única e central, o que tornaria
explícita a vontade de construção do objeto estético, mesmo que sem a fina-
lidade “artística”.
A imagem “sintética” não é prevista nos manuais de fotografia de pe-
rícia da Academia, em que pese a ordem seja a da clareza e objetividade na
construção fotográfica do laudo, utilizando-se do menor número de quadros
possível.
Assim essa imagem isolada de seu contexto narrativo pode ser tratada
como objeto estético, não pensado como tal, mas confeccionado na intenção
da síntese e da unidade, de maneira a espelhar o objeto “artístico”.

Fig. 1. Cristóvão Vilalba de Almeida. Caso 14013, 1990.

3.2. O corpo fragmentado


A recomendação oficial para os fotógrafos periciais é a de que todos
os traumas físicos visíveis impostos ao cadáver sejam retratados em close. São
imagens de corpos segmentados, ampliados seus ferimentos e abertura da
carne, em exposição intensa, explícita.
Sem a complementação da cena e seus objetos, isolada mesmo da si-
tuação própria do corpo e de sua ambientação, esses membros fragmentados
pela imagem são retratados, em muitos dos casos, de forma metonímica, in-
sinuando, implicando uma ideia sobre o acontecido e sua natureza violenta.
Diagonais traçadas por pernas e braços ensanguentados, perfurados; cortes,
enquadramentos angulosos e jogos de luz e sombra; estratégias que criam a
sensação de movimento e inquietação e que, bastante utilizadas pela fotogra-
fia de cena de crime, tornam-se ainda mais dramáticas no caso da imagem do
fragmento do cadáver.

140 8
Fig. 2. Claudia Cristina O. Caso 1386, 2003

Por meio do retrato de um pedaço tortuoso, torturado, a dor e o vio-


lento são muitas vezes expressos de forma mais convincente, enfática do que
um plano da cena toda. A imagem pericial nasce de uma necessidade visual
de convencimento por aparte de juristas e indivíduos outros envolvidos de
alguma forma com a elaboração do processo criminal (policiais, detetives, ad-
vogados, delegados, etc). As marcas pormenorizadas do corpo morto não so-
mente atestam o crime de maneira material/científica, mas é principalmente
parte de uma tática visual retórica.

3.3. A ausência do corpo


Algumas imagens de perícia, em casos de “sangue”, mostram apenas o
cenário, sem visualizar-se o cadáver. Além de questões de trajeto da vítima/
criminoso e ambientação espacial do crime, a ausência do corpo acontece por
motivos técnicos, como a retirada do cadáver da cena original do crime pelo
IML, ou por familiares (o que é recorrente em casos de Encontro de Cadáver/
Morte a Esclarecer e Suicídios) antes da chegada da equipe de perícia.
A violência da morte, no entanto, se mantém em elementos como
marcas e manchas nas paredes, nos móveis, nas roupas deixadas. O sangue
surge como figura metafórica/metonímica do corpo violentado: o chão frio,
azulado do bar vazio manchado por um largo rastro de vermelho certamente
impressiona pelo contraste das cores, pelo silêncio quebrado pelo que acon-
tecera. A ausência gritante no sangue tem a capacidade de transportar-nos
para o lugar/momento anterior, para o crime, ou para fantasias sobre o crime.
O corpo ausente é sentido também na imagem de objetos, sejam eles
os instrumentos do crime propriamente, ou roupas, como já dito, e formas
humanas ecoadas, por exemplo, em bonecas, num jogo poético da imagem
entre a morte e o inanimado .

3.4. O gesto
A imagem de perícia nos casos de “sangue” está, intrinsecamente,
aliada ao ato da morte violenta, o que por si só é motivo para o impacto dessa
visão. A centralidade está o tempo todo no cadáver, esteja ele presente ou não
no espaço fotográfico.
Uma atenção especial parece ser dada pelo fotógrafo pericial ao gesto,
à postura do cadáver: mesmo que em alguns casos haja movimentação an-

8
141
Fig. 3. Patrícia Pereira de Melo. Caso 04272, 1995

terior do corpo, mesmo que a cena não tenha sido totalmente preservada, a
expressão da vítima impregna a imagem de dramaticidade, o que é explorado
por peritos e fotógrafos, exaltando a tentativa de defesa, o contato indesejado
e o confronto físico, ou a solidão, o desespero, o silêncio e a paralisia suicida.
Dor, medo, imobilidade, às vezes insinuações sensuais, eróticas, são expressas
em fotografias de perícia, ideais trabalhados no sentido da persuasão dessa
única imagem, diante de sua versão visual para o crime.
A morte na modernidade pode ser pensada como uma representação
que passa pelo dramático, impactante e enfático, das falas literárias e visuais
contemporâneas às primeiras fotografias forenses. O gesto é fator decisivo da
capacidade de choque dessa imagem.

3.5. O “Sono”
Estados alternados de consciência, durante o sono, a hipnose, a cata-
lepsia, carregam a morte de um fascínio lírico: essa capacidade de oscilação
entre o vivo e o inanimado foi muito trabalhada por escritores e artistas ro-
mânticos e decadentistas do séc. XIX, momento de uma nova sensibilidade
diante da indiferença da tradição de esquecimento dos corpos à igreja, conta
Philippe Ariès em Historia da Morte no Ocidente.

O cristianismo livrara-se dos corpos abandonando-os à igreja, onde


eram esquecidos. Foi apenas no fim do séc. XVIII que uma nova
sensibilidade não mais tolerou a indiferença tradicional, e que uma de-
voção foi inventada, tendo sido tão popularizada e difundida na época
romântica, que acreditaram-na imemorial.(ARIÈS, 2003, p. 11)

É comum, nos casos de Morte a Esclarecer/Encontro de Cadáver, e em


alguns raros casos de Suicídios, a imagem do corpo, removido de onde fora
encontrado originalmente, posicionado de maneira a aludir ao sono. Isso
ocorre por conta da interferência de familiares ou até mesmo de policiais mi-
litares (estes são os primeiros a chegar até a cena da morte, em geral) junto à
ambientação original do acontecido. A reorganização da cena tem uma clara
intenção de amenizar sua intensidade, tornando-a mais familiar, próxima dos
costumes e posturas funerárias tradicionais.

142 8
Os funerais típicos do ocidente cristão trazem a posição do corpo
morto em identificação com o sono: sereno, com as mãos próximas ao peito/
ventre, expressões suaves, relaxadas. A sensação de que o cadáver ainda po-
deria estar vivo, prestes a levantar, é algo que os funerais norte-americanos
mais contemporâneos, por exemplo, tem se preocupado em retratar através
da participação de maquiadores, estilistas e médicos cirurgiões-plásticos na
composição da cena do funeral/velório, relato presente em História da Morte
no Ocidente.
Espera-se a morte deitado, conta Ariès, ao falar sobre a representação
da morte no Cristianismo Primitivo, legado que adentra a contemporanei-
dade. A “morte domada” é aquela tênue, que chega durante o sono, imper-
ceptível. A expressão da vítima, em que pese a violência do crime, algumas
vezes surge em casos de homicídio surpreendentemente suave e adormecida,
como se nada pudesse lhe perturbar o sono.

8
143
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10/2008.

144 8
8
145

146
CO N F E R Ê N C I A S

Como ficar miope e ser canibalizada por artistas

LILIA MORITZ SCHWARCZ1

Resumo
O presente artigo pretende analisar algumas relações entre antropologia e arte, lidando com os impasses que se estabelecem
entre trabalhos de inspiração ora mais formalista, ora historicista. Como enfrentar as obras sem fazer delas meros reflexos
de seu contexto imediato, mas sem cair, igualmente, em interpretações por demais voltadas aos questionamentos próprios
da história da arte é objetivo desse ensaio. Nesse sentido, procuramos trabalhar com dois grandes exemplos, por nós explo-
rados previamente, — a obra de Nicolas-Antoine Taunay no Brasil, e os trabalhos de Adriana Varejão. O resultado é um
texto que explora diferentes faces do processo criativo e acaba, de alguma maneira, por questionar não apenas ao “outro”,
mas que também questiona aos limites entre sujeito e objeto de análise.

Palavras-chave
Nicolas-Antoine Taunay; Adriana Varejão; Canibalismo; Historia; Antropologia.

Introdução: Quando a forma é conteúdo 1 Lilia Moritz Schwarcz é professora titular


de Antropologia na Universidade de São
Quando fui convidada a dar uma palestra sobre metodologia para um Paulo; Global Scholar na Universidade
de Princeton. É autora, entre outros, de
congresso de arte, de críticos de arte, de historiadores da arte, minha primeira Pérola Imperfeita: a história e as histórias
saída foi desconversar. Afinal, “não sou da área”, como se diz. Sou antropóloga de Adriana Varejão (Cobogó, 2014), O sol
do Brasil (Companhia das Letras, 2008); As
para uns, historiadora para outros, interessada em arte – sempre –, mas isso Barbas do Imperador (Companhia das Letras,
2000). Foi curadora de algumas exposições
não me faz uma profissional, nem muito menos uma especialista no tema. que articulam história, antropologia e arte,
dentre as quais destacamos: Nicolas-Antoine
Claude Lévi-Strauss costumava afirmar que muitas vezes somos perse- Taunay e seus trópicos difíceis (Pinacoteca e
guidos por nossos temas2, e esse é com certeza meu caso. Afinal, foi já assim Museu de Belas Artes, 2008), Um olhar sobre
o Brasil (Instituto Tomie Othake e CCBB Rio
com meu trabalho sobre Nicolas-Antoine Taunay, quando havia resolvido de Janeiro, Brasília, BH 2013, 14), e Histórias
Mestiças (2014).
estudar todo o grupo de franceses que chegaram ao Brasil em 1816, e esse
senhor literalmente me puxou pela atenção. 2 LEVI-STRAUSS, Claude. Mito e significado.
Como diz sempre o embaixador e historiador Evaldo Cabral de Mello, Lisboa, Editorial Presença, 1983.

é “preciso calçar os sapatos do morto”3, e esse pintor simplesmente me fisgou 3 SCHWARCZ, Lilia Moritz (org). Leituras
com suas manias: ele que reclamava que o azul do nosso céu era artificial, que críticas sobre Evaldo Cabral de Mello. Belo
Horizonte, Editora da UFMG. 2008
o verde de nossas florestas variado demais, e que o sol insistia em mudar de
lugar e alterar a tonalidade de tudo.4 4 SCHWARCZ, Lilia Moritz. O sol do Brasil.
São Paulo, Companhia das Letras, 2008.
Distância é o que senti frente a um sujeito que insistia em desgostar
do que eu gostava. Longe do idílio que os trópicos trazem, nesse caso, eles
pareciam causar ojeriza e distanciamento. O fato é que o estranhamento era
apenas paralelo àquele que sentimos diante de um documento ou de uma
obra de arte – um objeto do passado, visto com olhos do presente – sinaliza
sempre para uma “distância”. Tanto o turista mais curioso como o historiador
que se enfrenta com um pergaminho desbotado sabe que o pressuposto é que
tal distância jamais será superada de forma absoluta; o que interessa é tentar

8
147
recuperar, e como diz o crítico Michael Baxandall, as “causas de um quadro”,
ou então a “intenção” que presidiu sua produção e a forma que daí resulta.
Ou melhor, trata-se de “ler” uma tela, mas munidos de outras fontes a con-
trastar a interpretação; de elementos da tradição pictórica do próprio pintor,
e também da própria história. Escreve-se, assim, sobre “um passado distante”,
5 BAXANDALL, Michael. Padrões de intenção. mas sempre situado.5
São Paulo, Companhia das Letras, 2006.
Vide também introdução de Heliana Angotti Por isso para o historiador da arte, ou para aquele que procura, tam-
Salgueiro para a própria obra. Conforme
mostra Heliana Salgueiro, é difícil lidar
bém, por uma história social da arte e que se depara com uma tela acabada
com “o ato de descrever e o de visualizar”. -- cujo processo não tem muitas vezes como refazer –, a questão que se coloca
Distância, descompasso e diferença cultural
são conceitos que marcam essa relação. é como reconciliar a escrita e a história.6 A descrição é, pois, e como mostra
Baxandall, antes uma representação do que pensamos sobre a obra ou de
6 Heliana Salgueiro introdução in: Baxandall,
op.cit: 10 sua representação dela. Nesse sentido, foi me possível explorar a sensação de
“deslocamento” (nesse caso até temporal) presente nas telas brasileiras desse
artista francês. Taunay, o cidadão Taunay, estranhou as novas classificações
que experimentou e interpretou como pode a surpreendente realidade tro-
pical que conheceu. Foi, assim, um grande e inesperado leitor do Brasil. A
natureza (mesmo que domesticada) bem valia uma nação; já a temporalidade
– o tempo rápido e luminoso do Brasil -- lhe era quase incompreensível.
Mas não descurar da análise dos aspectos formais de objetos artísticos,
mesmo para aqueles que não “são da área”, é desafio dos mais angustiantes.
Talvez por isso foram poucos os antropólogos que se dedicaram a tomar a
arte a partir dessa “face”. Dentre eles, talvez seja Claude Lévi-Strauss aquele
que levou esse modelo mais à frente. O tema da arte está de alguma maneira
presente em quase toda a extensa obra do etnólogo: das similitudes entre a
música e o mito, indicadas em O cru e o cozido (2010); as observações sobre
arte indígena em “Uma sociedade indígena e seu estilo” (In: Tristes Trópicos,
1996); ou mesmo nos livros que tratam mais propriamente do universo da
7 Vide nesse sentido o trabalho de Hélio arte, como A via das máscaras (1979) e Olhar, escutar, ler (1997).7
Menezes (2014)
Em “A ciência do concreto8”, Lévi-Strauss mostra como a arte é uma
8 LEVI-STRAUSS, Claude. O pensamento forma de conhecimento situada na fronteira entre ciência e o mito. De toda
selvagem, Lisboa, Editorial Presença, 1989.
maneira, seja no domínio da música ou das artes visuais, ela opera por meio
de signos concretos, e não por conceitos – e de maneira externa ao próprio do
artista: “com meios artesanais, ele elabora um objeto material que é também
9 LEVI-STRAUSS, Claude, op.cit: 1989, p. 38 um objeto de conhecimento”9.
Já os aspectos mais “sociológicos” que envolvem os objetos artísti-
cos, como sua morfologia social, seu contexto, seu processo de produção,
circulação e recepção, ocupam espaço restrito nas análises do etnógrafo, mais
preocupado com as formas estilísticas e os significados simbólicos das peças
estudadas. É como se, assim como os mitos, as obras de arte falassem mais
entre si do que com seu contexto. Nesse sentido, elas seriam “forma”, matéria
que de alguma maneira independe de sua morfologia e da história social.
Diferente é, porém, a abordagem antropológica da arte elaborada
por Clifford Geertz. Sua análise parece se restringir ao relativismo do gosto
estético. Por isso mesmo para Geertz o conhecimento, mesmo nesse campo,
é sempre “situado”: um local etnográfico. “[O] processo de atribuir aos ob-
jetos de arte um significado cultural, é sempre um processo local; o que é
arte na China ou no Islã em seus períodos clássicos, ou o que é arte no su-
deste Pueblo ou nas montanhas da Nova Guiné, não é certamente a mesma

148 8
coisa”.10 Sempre atento ao contexto etnográfico, Geertz nega qualquer prin- 10 GEERTZ, Clifford. “A Arte como Sistema
Cultural”. In: O Saber Local: novos ensaios
cípio universal para a definição e análise do tema. em antropologia interpretativa. Petrópolis:
Em “A arte como sistema cultural”11, Geertz defende uma “ciência Editora Vozes, 1997: 46.

semiótica da arte”12, em que se equilibrariam tanto os significados das obras


11 In: O saber local, Rio de Janeiro, Zahar,
– isto é, a partir de seus caracteres formais ou prosódicos – como dados re- 1997
tirados do “padrão de vida específico”13; ou seja, a conjuntura cultural mais
12 Geertz. ibidem, p. 154
ampla que lhe dá sentido. Seguindo tal perspectiva, seríamos levado a con-
cluir que uma obra de arte é antes uma mediadora simbólica no interior das 13 Geertz, ibidem, p. 146
relações sociais. Por isso mesmo, as características estético-formais das obras
não teriam grande relevância, privilegiando-se claramente o diálogo com o
contexto. É por isso mesmo que ele insiste numa “concepção externa do fe-
nômeno”14. Para ele o interesse antropológico nas manifestações artísticas de- 14 Geertz, idem, pp.. 147-8
veria se limitar a explorar aquilo que pode ser percebido na vida social. Arte
representaria “um modelo específico de pensar para o mundo dos objetos,
tornando-o visível”; a expressão materializada de uma forma de viver e sentir
15
. Em outras palavras, por meio da arte um estudo antropológico daria conta 15 Geertz, ibidem, p.150.
de acompanhar como se pensa em sociedade, e não tanto como entender a
arte ou como se reflete com a arte.
No entanto, ao entender o universo artístico como uma forma de
reflexo da vida social, não só Geertz abre mão de pensar o conflito como
também a importância da política. A vida social aparece como um todo or-
ganizado e estabilizado, assim como a própria arte surge como uma esfera
sem conflitos, unificada e homogênea: um produto óbvio e imediato de seu
contexto. Nas palavras de Geertz “poderíamos mesmo argumentar, que ritos,
mitos e a organização da vida familiar ou da divisão do trabalho são ações que
refletem os conceitos desenvolvidos na pintura da mesma forma que a pintura
reflete os conceitos subjacentes da vida social”16. Dessa maneira, é possível 16 Geertz, op.cit: p. 152
afirmar que Geertz abre mão de entender a reflexividade do universo artístico,
já que esse não tem valor heurístico como produtor de costumes, valores e
mesmo conceitos.
Vale, nesse sentido, apresentar um modelo de certa maneira oposto
a esse de Geertz. Afinal, como mostra Alfred Gell, a arte não necessariamente
reflete: ela sobretudo articula uma rede de intencionalidades, negocia inten-
ções e aglutina sensibilidades que perpassam seus produtores, receptores e
intermediadores. Tal perspectiva leva a outra preocupação para com esse do-
mínio, mais dirigida para a avaliação da negociação e da agência do objeto
artístico. Conforme explica Gell, muito melhor seria buscar: a interpretação
dos objetos ‘como se’ eles fossem textos”17, e não o oposto. Gell lança, assim, 17 Gell, Alfred. GELL, Alfred. Art and agency:
an anthropological theory. Oxford: Clarendon,
um verdadeiro programa metodológico para uma antropologia interessada na 1998. ______. “Definição do problema: a
arte. Afirma ele: “dou ênfase não à comunicação simbólica, e sim à agência, necessidade de uma antropologia da arte”.
In: Revista Poiésis, n. 14, pp. 245-261, Dez.
intenção, causação, resultado e transformação. Encaro a arte como um sistema de 2009: 252

de ação cujo fim é mudar o mundo, e não codificar proposições simbólicas a


respeito do mundo”.
Gell acaba por alargar o conceito de objeto artístico, abolindo, entre
outros, a oposição entre arte e artefacto. Diz ele: “A natureza dos objetos
de arte é uma função da matriz de relações sociais na qual ela está inserida.
(…) Mas, na verdade, qualquer coisa poderia ser tratada como objeto de arte
do ponto de vista antropológico, inclusive pessoas vivas, porque a teoria da

8
149
arte antropológica (que pode ser definida aproximadamente como ‘as rela-
ções sociais na vizinhança de objetos que atuam como mediadores de agência
social’) se encaixa perfeitamente na antropologia social das pessoas e de seus
18 Gell, Alfred. ibidem, p. 252. corpos”.18
De toda maneira, chama atenção o fato de Gell não estar muito pre-
ocupado com o chão etnográfico dos objetos artísticos, o que torna mais
difícil entender os agenciamentos dos sujeitos na trama das relações sociais:
aliás, tema preconizado pelo etnólogo.
Nosso desafio é, antes, procurar por outro tipo de equilíbrio. De um
lado entender a obra em seu contexto – de maneira a avaliar de que forma
ela responde ao momento em que se insere. De outro lado, porém, há que
não descurar dos diálogos “internos” que as obras de arte trazem entre si, a
partir de recorrentes citações a obras predecessoras, contemporâneas ou pre-
sentes em trabalhos pregressos dos artistas em questão. Reconhecer que esse é
um objeto que tem linguagem própria, significa também anotar como ocorre
um exercício contínuo e imbricado de comunicação e influências recípro-
cas. Apreender referências evocadas pelo artista, descobrir citações internas,
mesmo que visuais, é atividade que interessa aos cientistas humanos, interes-
sados em de alguma forma introduzir a “voz de seu nativo”, em sua análise.
E, não estamos longe da definição de Merleau-Ponty que viu na antropo-
logia “a maneira de pensar quando o objeto é outro e exige a nossa própria
19 Merleau-Ponty, “De Mauss a Claude Lévi- transformação”.19
Strauss” In: Os pensadores, São Paulo, Abril
Cultural. 1984: 199-200. Trata-se, ainda, de levar a sério a proposição metodológica de Baxandall,
que sugeria a adoção de uma “crítica inferencial”, que não separa a articula-
ção de conceitos com objetos. Quando procuramos descrever já explicamos
e fazemos uso de nossas representações, assim como o oposto é também ver-
dadeiro. Nas suas palavras: “o conceito aprofunda a percepção do objeto e o
20 Baxandall, op. Cit. 2006, p. 72. objeto aprofunda a referência da palavra”20.
Talvez os termos que mais se aproximem dessa operação sejam o de
“paródia” e de intertextualidade. Bruno Latour afirma que os modos pelos
quais “a cascata de imagens é discernível no domínio artístico – a firme e in-
tricada conexão que cada imagem tem com todas as outras que foram produ-
zidas, a complexa relação de sequestro, alusão, destruição, distância, citação,
21 Latour, Bruno. 2008, p. 141. paródia e disputa”21. Esse tipo de relação, de citação, faz parte do processo
criativo dos artistas, e vale a pena não descurar dessa dimensão constitutiva
do objeto.
Mas prestar atenção à “forma” não significa, porém, abandonar a his-
tória, “retirando as obras do reino dos deuses para, como o fez Prometeu com
22 Vide relatório Helio Menezes (2014). o fogo, reinseri-la no reino dos homens”22. Longe da aura mágica do artista,
mais vale observar as obras usando as lentes diversas que fazem da “distância”
um procedimento disciplinar. É o próprio Lévi-Strauss quem critica atitude
oposta a essa: “pretendendo-se solitário, o artista alimenta uma ilusão talvez
fecunda, mas o privilégio que se arroga nada tem de real. Quando julga ex-
primir-se de uma forma espontânea e fazer obra original, está a repetir outros
criadores, passados ou presentes, reais ou virtuais. Saiba-se ou não, nunca se
caminha sozinho pelas veredas da criação” (Lévi-Strauss, 1979, p. 128).
Entre uma abordagem mais formalista, preocupada com disposições
e cânones estéticos, relações entre elementos estilísticos, harmonias e compo-

150 8
sições pictóricas; e uma visão mais historicista, atenta sobretudo à investigação
dos conteúdos intrínsecos da obra de arte e à sua contextualização no tempo
histórico-social de sua produção e produtor, vale guardar o lembrete de
Baxandall de analisar obras de arte por meio do estabelecimento de “relações
entre o objeto e suas circunstâncias”, superando a mera dicotomia. A forma
é sempre conteúdo e portanto a separação dos dois domínios talvez atenda
mais a funções didáticas - ou seja fruto de disputas entre distintos campos do
conhecimento - do que revela domínios fenomenologicamente distintos.

Coincidência 1: idílios com Taunay

Fig. 1. Nicolas Antoine Taunay. Cascatinha


da tijuca, sd, óleo s/ tela , 53 x 37 cm. Rio de Janeiro,
Museu do Primeiro Reinado.

Mas nada como um exemplo de trabalho, metodológico, paralelo mas


diferente com imagens e com seu processo criativo. O suposto que artistas são
formados por textos, modelos, contextos e (claro) outras memórias visuais.
Retomo assim o caso de Nicolas-Antoine Taunay, que esteve no Brasil nos
tempos de D. João VI, de 1816 a 1821, e sofreu com os “difíceis trópicos”.
Por aqui produziu uma vintena de telas conhecidas e interessa aqui notar
como em muitas delas, mas em uma em especial, ele se introduz a partir de
sua perspectiva filosófica. Iluminista de formação ele se retrata na natureza,
mas entre escravos. Além do mais, se olharmos bem notaremos que um deles
cruza os braços enquanto observa o pintor em sua função, e ambos observam.
Aprendem, como mostra Rousseau, pela educação do olhar.
Nessa tela, se existe, por certo, uma discussão formal sobre a teoria
das cores - devidamente transformada nos trópicos -, impera uma reflexão,
impressa na pintura, sobre o contexto social em que Taunay se encontrava.
Da minha parte, e enquanto historiadora e antropóloga, talvez não
tivesse muitas contribuições a dar, no sentido de realizar uma discussão mais
formal das telas de Taunay – seu diálogo com Poussin, Claude Lourrain, por
exemplo. Mas poderia, ao menos, explorar as questões sociais e mais simbó-
licas presentes na obra. Isto é, refletir como um pintor ilustrado lidou com a

8
151
escravidão e porque se queixou tanto das dificuldades em figurar o marrom,
por exemplo. Segundo ele uma cor pouco conhecida em seus cânones.
Por outro lado, quando comecei a estudar com mais cuidados as telas
brasileiras desse pintor foi fácil notar como em todas elas havia sempre escra-
vos. Ora, como os comandatários de Taunay eram estrangeiros, europeus em
sua maioria, com certeza não pediriam a introdução desses elementos nas
telas aprazíveis do pintor. Ao contrário, conhecido como um pintor de paisa-
gens agradáveis, sua clientela deveria aguardar “trópicos fáceis”. Era Taunay,
porém, quem parecia insistir no tema, ao mostrar escravos diminutos – se-
guindo a técnica de sua família, conhecidos como exímios miniaturistas –
mas sempre em posições que mostravam ora excesso de trabalho, ora, como
nesse caso, excesso de reação.
Mais ainda, como historiadora que sou, fui alinhavando alguns ele-
mentos do contexto. O fato é que, se não como descurar da forma, não há
também como negar da importância do contexto. Interessante pensar que
Taunay sempre alegou querer sair da cidade e encontrar sossego na floresta
tropical. Com certeza por conta disso, encantado com a paisagem local ad-
quiriu um terreno na Tijuca, próximo de uma cascata, e ali aguardou a fun-
dação da Academia Imperial de Artes (da qual, por sinal, não viria participar
uma vez que parte da colônia antes de sua fundação). Decidido, o pintor
deixou a acomodação no Rio de Janeiro, destinada ao grupo pelo governo
na chegada em 1816, e procurou instalar-se em algum lugar nas cercanias
da cidade, onde teria contato mais imediato com a natureza local. Morou
por pouco tempo numa casa na rua da Pedreira da Glória, na Corte, mas
logo encontrou aquele que seria seu “retiro edênico”, a ‘cascatinha Taunay’
na Tijuca. Comprou alguns alqueires de floresta ao redor da cachoeira e ali
construiu uma casa pequena, mas confortável, para onde se transferiu com
toda a família e o irmão.
Sempre se considerara um “amigo da natureza” e na Tijuca relembrava
seu refúgio de Montmorency, propriedade de Rousseau onde morara durante
os anos difíceis da revolução. Lá também vivera num local muito arborizado,
com a alameda de tílias, a mesa de pedra e o famoso donjon que Rousseau
construíra.
Mas dessa vez se dizia dominado pela “natureza indomada dos trópi-
cos” e sua catedral era feita de mata e água da cachoeira. De lá via a beleza da
Tijuca, do Corcovado e do litoral do Rio. Também voltava a seu costume de
empreender longas caminhadas pela floresta, mesmo que debaixo do dilúvio
do aguaceiro tropical. E Taunay parecia satisfeito e, com seu temperamento
calmo, lentes grossas por sobre o nariz (que deveriam embaçar com a chuva
torrencial); longos cabelos, cada vez mais brancos que lhe chegavam aos om-
bros e seu chapéu característico apenas comentava: “Dizer-se que nos acha-
23 Taunay, Afonso E. Op.cit: 163. mos no país do Sol”23.
O sítio da Cascatinha, adquirido por Taunay tinha uma área de 41.900
braças quadradas (202.844 m 2.40) segundo planta levantada em 1829. Ao
que tudo indica, Taunay também viu nesse paraíso uma oportunidade de se
distanciar de seus colegas artistas e de morar junto de outros franceses. Sua
propriedade era ladeada pelo terreno de dois franceses, o conde de Scey e
o conhecido conde de Gestas, com quem Nicolas travaria uma verdadeira

152 8
amizade. Aliás, diferente do isolamento alegado por Taunay, lá ele encontrou
uma espécie de sub-colônia francesa, tal a incidência de compatriotas na área.
Na região da Tijuca estavam instalados outros franceses, como a Baronesa de
Rouan, o Príncipe de Montbéliard, Mme. De Roquefeuil, e o próprio conde
de Gestas. E muitos deles se dedicaram à agricultura plantando café, mas
também outros produtos. Apesar das chuvas, o “café Bourbon” (nome suges-
tivo que encontraram os compatriotas franceses), produzia muito bem, con-
forme descreve Hipólito Taunay em seu livro Le Brésil: aos três anos começa-
vam as árvores a carregar e aos seis estavam em pleno vigor.24 Na vizinhança 24 Ver Hipólito Taunay e Ferdinand Denis. Le
Brésil. Tomo 2. pp: 59-60.
vivia outro amigo: o “ermitão e carvoeiro do Corcovado”, como ele próprio
se intitulava, o general holandês Teodoro van Hogendorp, um ajudante de
campo de Napoleão, que fora elevado a Conde.25 25 Taunay, Afonso E. Op.cit: 181-2.

A região transformou-se, assim, em polo de atração por um duplo mo-


tivo: sua exuberância natural, mas também esses pequenos “hortos amenos”
dos franceses, que recuperavam no Brasil os seus grandes jardins domesti-
cados.26 Havia um trânsito frequente entre a movimentada rua do Ouvidor 26 Vide Gomes Junior, op.cit: 62.
– agora tomada pelas modas e o luxo dos franceses – e a floresta da Tijuca
que representava o retiro espiritual daqueles que, fugindo da vida urbana
procuravam o retiro do campo. E não foram poucos os estrangeiros que dei-
xaram seus relatos sobre o local. Louis de Freycinet, que passava pelo Rio de
Janeiro na expedição da corveta Urânia, não apenas visitou a Tijuca como
convenceu o mais novo dos filhos de Taunay, Adrien Aimé, a acompanhá-lo,
numa atribulada viagem pela Oceania. Jacques Arago, famoso viajante crítico
que passava pelo Brasil, também a bordo do Urânia, esteve entre os Taunay
e legou um desenho sobre a propriedade, destacando sua famosa cascata e a
pequena casa confortável embora pequena.
No seu livro Souvernirs d’un aveugle Arago diz ter encontrado Nicolas
Taunay “desanimado e quase envergonhado da inutilidade dos esforços em
prol da causa das Artes”. Concluía que “felizmente trabalhava sempre perto
da deliciosa cascata da Tijuca onde os graciosos e ativos pincéis continuavam
a enriquecer-lhe a pátria com grande número de lindas paisagens e quadros
anedóticos”. A Academia parecia cada vez mais afastada dos projetos ime-
diatos de Taunay e, esperto, Arago dizia que: “tudo acabou no Brasil para os
homens de talento que imaginavam ali criar nova religião das letras, ciências
e artes”.27 27 Arago, Jacques citado por Taunay, Afonso
E. op.cit: 182
Mas os Taunay’s não estariam sós. Naturalistas como o príncipe
Maximiliano zu Wied Neuwied, Augusto de Saint Hilaire e os famosos João
Baptista Spix, Carlo Frederico von Martius não só estiveram por lá como
deixaram descrições sobre o local. “Um passeio não menos interessante em-
preendemos à Tijuca, lugar muito mais procurado pelos habitantes, situado
a uma milha da cidade. A estrada passa pela Quinta Real de são Cristóvão,
construída depois da vinda do monarca e que se tornou, com o embeleza-
mento dos jardins circunstantes uma bela residência. Caminha-se entre sebes
de cactos, lautanas, burganvílias, cordeas, tournefortias e minmosas lebbelas,
de onde surgem aqui e ali as agaves com os seus altos pendões floridos”.
Como bons naturalistas, Spix e Martius ao descrever a paisagem mostravam
suas destrezas profissionais, assim como assinalavam um detalhe importante:
a floresta ficava não longe do Paço de São Cristóvão, onde morava o príncipe.

8
153
Assim, e mais uma vez, confirma-se uma “rota especial”, que unia essa sub-
-colônia francesa à corte. Nem tão isolada era a natureza de Taunay.
A descrição de Spix e Martius resume elementos dispersos do ima-
ginário que cercava a família Taunay. O pintor encontrava-se rodeado de
correligionários, mas entendia-se isolado nos seus trópicos. A propriedade
ficava no caminho do Paço de São Cristóvão, mas, mesmo assim, Taunay
julgava-se apartado de seus colegas que a essas alturas exerciam atividades
mais oficiais, ou ao menos evidentemente ligadas à Família Real. A cascata
de Taunay, oferecia um espetáculo “majestoso e luxuriante”, sem igual no
repertório cultural dos naturalistas e sintetizava a visão de natureza que nosso
artista procurava aqui encontrar. Sem dúvida, Taunay havia ido de encontro
aos “seus trópicos”.
E o local se converteria no cenário ideal para uma série de telas que
nosso artista passaria a produzir. Lá Taunay gravaria a natureza estupenda dos
trópicos e a beleza edênica de sua vegetação.
Natureza imensa, homens diminutos, o céu que aprendera com Lorrain,
a arcádia de Poussin que bem poderiam figurar nos trópicos, os escravos (me-
nores ainda) sempre presentes. Mas a prova maior desse tributo é exatamente
a tela Cascatinha da Tijuca, hoje exposta no Museu do Primeiro Reinado na
cidade do Rio de Janeiro. A tela tem significado especial, dentro da obra de
Taunay, não só por conta de seu colorido, como da temática selecionada.
Espécie de ícone dos anos de estada do pintor no Brasil; nela, uma espécie de
drama dos trópicos se revela, assim como um certo “mal entendido”.
O quadro apresenta em primeiro plano e ao centro o próprio artista,
com chapéu, paleta e tela, sendo observado por dois escravos, em pé e à sua
direita. Além deles, um cachorrinho se movimenta, desviando a atenção da
situação central da tela. Por sinal, não se sabe ao certo o que o cão faz nessa
cena. Talvez fosse apenas uma marca do artista e de sua arte; afinal era reco-
nhecido pelas figuras pequenas e por seus animais que apareciam até mesmo
nas imensas telas de batalha. Mas o cão é ainda uma alegoria da fidelidade,
o que bem poderia simbolizar essa qualidade, também encontrada em terras
do Novo Mundo. Mais à esquerda um guarda-sol aberto representa o sol
do Brasil e sua luminosidade. Toda a cena surge emoldurada pela floresta;
essa imensa vegetação tropical onde reside o pintor: a propriedade na Tijuca.
Logo atrás vemos uma pequena queda d’água que dá o nome ao quadro. Em
segundo plano, ao fundo da tela, à esquerda, um homem aparece apenas
delineado montado sobre um burro de carga, acompanhado de um escravo
com um instrumento que se assemelha a uma enxada, que carrega nas costas.
Esta última imagem não é muito nítida; surgem somente contornos, peque-
nas miniaturas que definem a cena, bem ao estilo de Taunay. À frente destes,
vários burros de carga. É como se o homem sobre o cavalo e o escravo (a pé)
estivessem levando estes burros de carga para algum lugar, ou representassem
o espaço restrito da mão de obra nessa colônia da labuta forçada. “Bens imó-
veis e bens semoventes” compõe a cena e resumem o trabalho no país, sem
fazer deles um baluarte. Difícil ver aí elementos da nacionalidade idealizada,
como priorizaria uma certa tradição de retorno à paisagem no século XIX.
Mas, se o trabalho não pode ser engrandecido (é um detalhe da cena),
o que mais se destaca é uma visão encantada da natureza. Sem abrir mão de

154 8
um certo realismo, a tela é idealizada na luz que apresenta e nos trópicos –
quase falsos de tão fortes – que procura retratar. A fonte de água, no centro
do quadro, espalha-se tal qual imagem luminosa; difundindo a luz da manhã,
que se confunde com a bruma da mata tropical. A paisagem americana pa-
rece rememorar, assim, a imaginação arcádica e poética, longe da experiência
de ruptura europeia. Por isso mesmo, a América serve como resgate de um
mundo ideal.
Nessa tela, a figura pequena do pintor – por certo maior do que os tra-
balhadores ao fundo – contrasta com a imensa natureza, representada pela ár-
vore tropical em primeiro plano e pelo panorama enevoado ao fundo. Quase
como um autorretrato, Taunay se faz retratar diminuído diante da majestade
da natureza brasileira. Aí está uma das famosas árvores de Taunay, mas dessa
vez singularmente implantada numa paisagem particular.
O mesmo ocorre com os animais. É fato que a presença dos bichos rei-
tera a destreza artística de Taunay nesse domínio, assim como refaz uma cena
pastoril da rusticidade ideal Arcádica. Além do mais, como alegoria os bois
simbolizariam a força e a paciência; noção essa que, quem sabe, faria parte
da concepção inicial da tela. Não obstante, os animais pastoris poderiam ca-
racterizar também os trópicos: a paciência que se tinha diante dessa (quase)
civilização, assim como a sua “robustez natural”. Dessa maneira, a natureza
em Taunay não lembra só o debate e as referências pictóricas e filosóficas
de Taunay no que se refere à Arcádia. Revela uma paisagem neoclássica que
dialoga agora com o ambiente “natural” E tudo vem emoldurado pela luz dos
trópicos que confunde a cena. Por sinal, e como define a historiadora da arte,
Ana Maria Belluzzo, Taunay parece não estar interessado em apenas represen-
tar a paisagem, mas quer antes interpretá-la a partir dos efeitos do contraste
luminoso.28 Um retrato do retrato; uma representação da representação e da 28 Belluzo, Ana Maria.
dificuldade de representar.
Por outro lado, é o pintor que vive na tela e na realidade a contemplação
da natureza essencial dos trópicos. Segundo o crítico Luciano Migliaccio, a
tela como um todo é um testemunho quase comovente do diálogo de Taunay
com a natureza. Minúsculo, mergulhado na paisagem grandiosa, o artista
adquire o aspecto de um herói, concentrado como está em retratar uma pal-
meira com os humildes instrumentos de seu ofício.29 A seu lado, como vimos, 29 Migliaccio, Luciano.

dois escravos contemplam a obra, admirados; outros, mais abaixo, conduzem


um burrico. Dificilmente se poderia expressar melhor o valor da educação
pela observação, bem como a emoção diante da voz da natureza. É uma nova
nação que nasce na tela a ser pintada e no retrato terminado. Nela, a grande
definição parte de uma natureza singular, caminho seguro para a nacionali-
dade feita nos trópicos.
A observação do exótico transporta para uma Europa ancestral o efeito
pitoresco do Novo Mundo. Menos do que procurar desenvolver um lado
documentário, nesse exemplo transparece um tributo à natureza difícil do
Brasil, em meio a qual não se é tanto sujeito como objeto da reflexão: aqui se
contempla. Apenas os mesmos animais encontrados na Europa – as vacas e
30 Pedro da Cunha e Menezes por ocasião da
cavalos -- o aproximam de tanta originalidade. publicação de meu artigo na revista Nossa
Mas é possível arriscar um outro olhar sobre a mesma tela, como o faz História número 4 enviou uma série de
comentários acerca de traços da vegetação
o embaixador Pedro da Cunha e Menezes.30 Afinal, diferente dos trópicos in- local que passo a reproduzir.

8
155
domados, que parecem se sobressair na tela e na visão de Taunay, sabe-se que
quando o pintor se mudou para o local, a Tijuca já não era mais uma “floresta
tropical”. “Ao contrário, diferente do que Taunay pretendia retratar, é possível
dizer que estamos diante de uma “natureza dominada pelo homem”. Afinal,
na época em que o artista escolheu habitar na Tijuca, ela já era marcada por
um conjunto de propriedades cafeeiras; a maioria pertencente a estrangeiros.
Era inclusive difícil se manter na área e em carta datada de 30 de
agosto de 1819 Taunay comentava sobre seus dissabores na área: “... Vous
vous doutés bien mon très cher digne ami que je désire les vendre pour réa-
liser des capitaux nécessaires à la réédification de ma petite fortune dons he-
reusement les derniers débris ont été employés à l’acquisition d’une caffeterie
presqu’abandonnée et dont la restauration me donne déjà um produit valant
au moins le tiers du petit capital qui y a été consacré (...) Mais malhereuse-
ment il faut des Nègres et pour avoir des Nègres il faut de l’argent et voilà
pourquoi je vous envoie les vingt tableaux qui composent les deux commis-
sions ...” Como se vê, Taunay que se considerava “un amant de l’égalité”
havia se rendido aos costumes locais: já tinha três “Nègres” e desejaria ad-
quirir mais um para obter um bom rendimento em sua plantação. A pro-
priedade da Cascatinha da Tijuca era descrita como tendo 422.000 m2 e a
queda d’água uns 70 a 90 metros de altura: a natureza ajudava, mas a técnica
não. O artista termina sua carta se definindo como um “fugitif ”; um fugi-
31 Carta datada de 30 de agosto de 1819 e tivo da Restauração, um exilado em terras do Novo Mundo.31 Quem sabe o
encontrada no Arquivo da Escola de Belas
Artes (R.J.). O material foi coletado por pintor retratava na tela seus próprios escravos, e a atitude que neles esperava
Claudine Lebrun-Jouve em Paris, 1987.
encontrar.
Sobressai-se, dessa maneira, o olhar romântico do artista que recria, na
representação, os seus trópicos. Mas o que ocorria era diverso da imaginação
de Taunay. Cercado, ele convivia naquele que era o setor agrário mais avan-
çado em todo o Império
Como mostra Pedro Menezes “tamanha sanha de plantar, cedo degra-
dou as encostas das Serras da Carioca e da Tijuca”. Tanto que em 1817, o
Governo Real proibiu a derrubada de árvores nas imediações, numa prova de
que muito dano já havia sido feito. Os resultados podem ser vistos até hoje,
com as matas da Tijuca apresentando terraços artificiais, em um processo
civilizatório implementado pela mão do empresário europeu.
Voltemos mais uma vez à nossa tela. No lado esquerdo é possível notar
um desmoronamento de terra causado pela supressão da vegetação que an-
tes mencionávamos. Do outro lado da estrada, é possível ver uma parede de
pedra, sinal do deslizamento erosivo. Bem em frente do artista vemos uma
bananeira, espécie exótica que nada tem de mata atlântica. Prova antes o
agressivo processo de intervenção em busca da troca da vegetação nativa por
árvores frutíferas que guardavam maior valor comercial. Por sinal, a árvore
disposta atrás de Taunay parece ser uma mangueira, originária da Índia, e
32 Pedro Menezes. estranha àquela região.32
Causa também estranhamento o tamanho exagerado da ponte em
arco sobre o rio Tijuca. Da maneira como está, ela quase parece um arco do
triunfo. O importante é que o cenário aparece naturalmente artificial, uma
vez que maquiado pelo artista.
A floresta da Tijuca estava mais afinada, pois, com o ideal da floresta

156 8
domada, tão em voga na Europa e praticada nos jardins franceses. Era o mo-
delo da paisagem idealizada transformada em realidade pelo diligente tra-
balho do homem que se afirmava, ao final, na tela de Taunay. Como diz
Mary Louise Pratt “o exílio, mais que a exploração, contextualiza o observa-
dor e cria a alteridade ... numa estrutura de nostalgia e perda”.33 A floresta de 33 Prazz, Mary Louise (1999: 312).
Nicolas mais se parecia com um jardim, por mais que os dois termos fossem
em tudo distintos: no quadro vê-se quase um jardim polido, podado e de-
vidamente moldado pelo trabalho. Estávamos, mesmo, muito distantes da
ideia de floresta que na época era, por definição, a representação da natureza
intocada pelo homem.
Minha intenção não é, claro, “resolver” a tela de Taunay a partir de
dados do seu contexto. Também não é imaginar que a pintura não passa de
reflexo de seu momento. Muito pelo contrário, me pergunto, como historia-
dora social que sou, sobre “as razões” de um quadro, no debate tenso entre
forma e conteúdo, estrutura e contexto. Se não há como ler uma pintura sem
ter em mente o diálogo que um artista estabelece com outros – vide o papel
da Arcádia de Poussin devidamente relida nos trópicos –, também não se
pode esquecer de que, em situação, as obras ganham outros significados e são
assim traduzidas.
Não à toa, Taunay colocou vacas pastando nas praias (melancólicas
diante da ausência da Arcádia real ou idealizada), e não esqueceu dos escravos.
Aliás se olharmos bem, eles carregam correntes aos pés, deixando claro que
estavam perto da prisão não distante daquelas paragens. O fato é que, como
nessa cena em particular, Taunay desenhou seus escravos diminutos mas sem-
pre em ação.
Quebrando pedras ...

Fig. 3. Henry de Chamberlain,


A Ponta do Calabouço (1819-
1820), Masp.
Fig. 2. Nicolas Taunay, Vue du largo du machado
à Laranjeiras, 1816-1821, Washington D.C, The
Catholic Universit of America, Oliveira Lima Library.

Fig. 4. Nicolas Taunay, Vue de Rio avec la


Gloria, 1816-1821, Rio de Janeiro, Collection
Paulo Geyer.

8
157
Carregando mulheres aos ombros (numa atitude estranha ao local
onde se evitava o contato da pele) ... Remando ... Mas sempre trabalhando
e em ação.
Escravas também aparecem nas telas, como é o exemplo dessas duas
telas em que uma mãe negra segura um bebê branco, ou uma ama levanta sua
cria , igualmente branca, nos ares num gesto de amor tantas vezes repetido.
São pequenos detalhes, mas, como mostra Carlo Ginzburg com seu método
indiciário, grandes modelos que vão se revelando pelos pequenos sinais.
Fig. 5. Vista da propriedade de Dessa maneira, se “as telas falam entre si”, como bem mostra Gombrich,
Chamberlain. Rio de Janeiro,
Museu de Belas Artes.
e devem mais a outras obras do que à realidade, para pesquisadores como eu,
historiadores sociais, ela também tem uma janela para seu contexto. Não que
sejam “ilustrações”, no sentido de apenas dar lustro, adornar ou decorar uma
situação previamente dada pela condição social. No entanto, o momento em
que a obra é realizada, sua situação específica tensiona a forma e quem sabe
lhe dá alguma originalidade quando observada comparativamente.
Além do mais, o convívio com o artista morto, faz dele um velho pa-
rente ou um amigo antigo, daqueles que sentimos falta e lamentamos a ausên-
cia. Passei a ver o mundo com a nostalgia de Taunay, além de me acostumar
com os grandes detalhes: diminutos. Para piorar, com o tempo eu também
desenvolvi miopia, como Taunay, e aprendi como se realiza bem a realidade
no primeiro plano e se deixa escapar no segundo.
Telas e pinturas, bem sabemos, não são meros reflexos, uma vez que
criam representações, costumes, percepções. E não as entendo como imagens
fixas e presas a determinados temas ou contextos, mas como elementos que
circulam, interpelam, negociam. Uso por isso o termo “representação”, que
tem, com certeza, uma larga tradição e merece uma série de concepções po-
líticas, sociológicas, semióticas e estéticas, antes com o sentido que Mitchell
(2009: 11) lhe conferiu “de estar em lugar de e atuar por” do que como
“coisa” fixa e essencial. Nesse sentido, ele permite relacionar texto e imagem;
questões éticas, do conhecimento e do poder. Menos do que uma teoria da
imagem, a sugestão é de dar “imagem à teoria”, no sentido dela se comportar
como uma privilegiada instância formadora de representações. Dessa ma-
neira, o conceito de representação é antes entendido aqui como processo e
relação, incluindo-se em seu escopo cultura política, sistema de intercâm-
bios e transferência de valores, imaginários utópicos e realidades pragmáticas
(Mitchell, 2009). Mais que isso, o que me interessa captar é o processo pro-
dutivo de um artista como Taunay e, afinal, refletir o que eles fazem com a da-
nada da realidade. Taunay vinha com uma bagagem pesada que incluía o seu
conhecimento como professor na Academia de Belas Artes, seu passado que
incluía pertencer a uma família Ilustrada, assim como compartilhar com ela a
técnica de miniaturista. Nesse caso, pois, forma é conteúdo pois vimos como
Taunay “negociou e agenciou” as imagens clássicas que trazia da Academia.
Negociou também o local ambivalente da escravidão. Difícil representação;
improvável arcádia!

Coincidência número dois: cor é linguagem


Conheci Adriana meio que sem querer. Preparava-me para pegar uma
ponte aérea quando notei uma simpática família embarcando no mesmo voo.

158 8
Notei mas esqueci. Quis o destino que eu sentasse logo atrás do trio, mas
mesmo assim notei e mais uma vez esqueci. Foi quando a mãe do triângulo
familiar se virou para mim e disse: “acho que você não me conhece, eu me
chamo Adriana Varejão e queria muito que você escrevesse um texto sobre a
minha obra”.
Eu, que como todos já sabemos, não sou crítica, curadora ou profissio-
nal das artes logo desdisse do convite. Me saí com algo do tipo: “- Eu bem sei
quem você é. Já do meu lado, penso que deve ter havido um tipo de engano”.
Ao que Adriana retrucou: “- pois eu li teu livro ‘espetáculo das raças’ e adorei.
Até usei em alguns dos meus trabalhos”. Depois disso passamos a conversar
em muitos lugares – em cafés, nas nossas casas, no atelier da artista. Estudei
junto com Adriana as várias séries que compõem seu trabalho e me aventu-
rei a escrever um artigo (para uma coletânea de textos) chamado “Ladrilhar,
azulejar, varejar”34. Tratava-se de um ensaio sobre a importância dos azulejos
nos trabalhos de Adriana, e nele eu explorava a ideia de circulação; nos navios 34 In Adriana Varejão carnes e mares/ flesh
and seas. Rio de Janeiro, Cobogó, 2009.
iam e voltavam ladrilhos, valores e culturas. Saí feliz com o que fiz e com a
amizade que criei. Só estranhei que meu artigo estivesse ladeado de uma obra
de Adriana chamada:

“Coincidências x, y, z”
Mais uma vez deixei passar, o que me parecia um detalhe; mas não era.
Só um tempo depois, após termos combinado, as duas, que iríamos escrever
um livro (ou o que fosse) juntas, é que criei coragem e falei do meu estranha-
mento. Algo do tipo: “-tudo ótimo mas por que justamente aquele trabalho
ilustrando meu artigo?” Adriana que nunca se faz de rogada logo saiu-se com
um sonoro: “Eu li no teu livro que se media a loucura pelas íris dos olhos”! O
fato é que Adriana leu sobre frenologia, sim, no meu livro, mas essa passagem
com certeza não fora retirada de lá.
Conto a anedota não para fazer menos, mas para criar mais. Elogiar esse
regime de coincidências e tentar percorrer uma maneira de Adriana Varejão
produzir arte: por meio de referências devidamente traduzidas, digeridas e
canibalizadas.
Nessa obra também existia um tema a nos unir: as diferentes raças,
com suas diferentes cores que viram linguagens: uma linguagem de cores. Só
eu é que não tinha notado. E foi assim que passamos a tecer histórias e nos
debruçar sobre as obras. A cada obra um mundo de referências históricas apa-
reciam. Claro que não vou reproduzir aqui todas35. Tomo duas, como espécie 35 No livro Pérola Imperfeita: a história
e as histórias de Adriana Varejão (Rio de
de exemplo metodológico. Janeiro, Cobogó, 2014) passamos por todas
Proposta para uma catequese: morte e esquartejamento foi terminada no as séries da obra da artista. Aliás, partes das
referências que aparecem a seguir foram
ano de 1993 como parte de uma exposição maior, com o mesmo nome. Seu retiradas desse livro de autoria conjunta.

lugar era emblemático para o conjunto da obra da artista, e aqui estabelece-


-se um diálogo interno e exemplar entre as séries: não há como ler uma tela
isolada da outra — até porque foram feitas para uma mesma exposição — e é
a “relação” e a reiteração que conferem a elas seus diferentes sentidos. Como
não podemos ver todas, concentro-me nessa obra, em que vemos Cristo res-
surgir ambientado em meio às imagens de pajelança de Theodore de Bry.
Nesse caso, sua mão levantada, com os dois dedos erguidos – num gesto con-
vencional de paz e concórdia – parece remeter a uma citação bíblica, ambien-

8
159
Fig. 6. Adriana Varejão, Proposta para
uma catequese - parte I díptico: morte e
esquartejamento, 1993,
óleo sobre tela , 140 x 240 cm

tada, porém, em local estranho. Nessa circunstância específica, o gesto mais


se assemelha a uma reação pragmática, própria para lidar com uma situação
circunstancial: por exemplo, defender-se do ataque de borduna de um bravo
guerreiro. É possível pensar que a guerra ocorre ao fundo, assim como é legí-
timo imaginar que ela inclui Cristo.
Por outro lado, se compararmos essa situação com a imagem original
de De Bry, veremos que o prisioneiro que insulta os guerreiros – e por isso é
entendido como um bravo – é retirado da cena de Adriana, para em seu lugar
entrar a imagem de Cristo. Ou seja, na gravura Seiscentista, a figura da vítima
é da maior relevância, pois é ela, com sua coragem, que aciona o ritual da
antropofagia. A lógica era a da comunicação: devorar o prisioneiro significava
entrar em contato com outros grupos inimigos.

Fig. 7. Theodor de Bry, America tertia pars, 1592.

No entanto, no centro da tela de Adriana Varejão, Cristo é a vítima; e,


sendo assim, aciona e dá sentido a um outro ritual. Um outro cronotopo, como
36 Bakhtin, Mikhail. 1981. "Forms of Time diria Bakhtin, em que novos cenários de tempo e lugar são acionados36. Aqui
and of the Chronotope in the Novel" In: The
Dialogic Imagination. Austin: U. Texas Press. não há o tempo de Cristo, e portanto o espaço também se altera. Estamos
nos trópicos seiscentistas e toda a narrativa se altera. Cercando a cena, estão
as mulheres americanas, que tiram as vísceras de um inimigo morto, mais um
produto da imaginação europeia e não da observação testemunhal.

160 8
Na obra de Adriana Varejão, na parte superior, figura a frase: Qui man-
ducat meam carnem, et bibit meum sanguinem, in me manet, et ego in illo.
Nesse caso, e uma vez que estamos dentro do universo de uma antropofa-
gia cristã, o paralelo quase se impõe. A frase retirada do Evangelho refere-se
originalmente à transubstanciação do pão e do vinho no corpo de Cristo:
“Aquele que come do meu corpo e bebe do meu sangue está em mim e eu
nele.” Porém, roubada, a sentença leva outro acento, com os pedaços — que
podem ser do Cristo — moqueados para um festim canibal, um canibalismo
ocidental.
Quem come quem, quando e onde é tema que se reapresenta agora,
nessa perspectiva que mistura universos imagéticos e os transporta para uma
mesma lógica de devoração canibal. O modelo é aquele de Jean de Léry,
relido por Montaigne (em seu texto “Os canibais” de 1580), depois transfor-
mado por Rousseau, para ser retomado por Levi Strauss. Aqui, canibalismo
é comilança, troca de costumes, aliás na perspectiva de Oswald de Andrade
e seu “Manifesto Antropófago” de 1932; tudo devidamente “traduzido” por
Adriana. Até mesmo os anjos que sobrevoam o trabalho da artista, estão
distantes de seu lugar tradicional. Retirados de um livro que reproduz uma
azulejaria em Olinda, eles perderam, para sempre, a calmaria e regularidade.
Antropofagia é, aqui, texto e pretexto; tema e metáfora nessa tela em
que Adriana Varejão devora referências e as deglute em outras cenas. Mas nada
aqui é apenas sensorial ou até intuitivo (palavra que Adriana costuma abolir
de seu vocabulário): há projeto e engenho nessa operação de recortar pedaços
e dar a eles nova corporalidade. O conjunto se trai e se revela nos detalhes,
que mostram um tipo de produção semelhante à de um bricoleur: aquele
antigo artesão que, a partir dos objetos que dispõe em sua mesa, executa o
projeto. Lévi-Strauss oporia esse tipo de pensamento ao do engenheiro e ao
da nossa modernidade. Afinal, nós antes pensamos no projeto e depois o exe-
cutamos: procuramos os materiais, em primeiro lugar, e só após damos forma 37 Lévi-Strauss, Claude. O pensamento
selvagem. Lisboa: Edições 70, 1974.
ao produto37. Já Adriana é, à sua maneira, bricoleur e engenheira: tem vários
elementos a seu dispor e os embaralha com o objetivo explícito de produzir
38 Sobre a lógica do bricoleur, vide
novos sentidos e artes. Dando definitivamente uma nova interpretação.38 definições de Claude Lévi-Strauss.

Fig. 8. Adriana Varejão, Proposta


para uma catequese - parte II díptico:
aparição e relíquias, 1993
óleo sobre tela , 140 x 240 cm

8
161
Como num “jogo dos sete erros”, é fácil notar como vários elementos
presentes em outros trabalhos vão reaparecer nessa obra, do mesmo ano, e
realizada para a mesma exposição. Os azulejos indicam tratar-se de terreno
familiar, mas não exatamente reconhecido. A inspiração maior vem da Igreja
do Bom Jesus de Setúbal, em Portugal. Aqui a referência é evidente, a des-
peito de não absolutamente necessária. E vale a pena acompanhar os jogos
de usurpação e invenção praticados por Adriana Varejão. Palmeiras, árvores,
paisagens, estão todos lá, assim como os azulejos que, com certeza, desperta-
ram a atenção da artista.
No entanto, há diferenças importantes, e que alteram a fatura. Ao invés
de São Francisco, no quadro de Adriana é um indígena que repousa e projeta
uma ramagem de sua boca. Se a imagem da Igreja, barroca e milagreira, une
são Francisco à aparição da Rosa Mística — de Nossa Senhora e do Menino
Jesus, consagrados pela representação de um grandioso sol ou de uma auréola
a abençoar a cena —, aqui o indígena deglute tudo, numa nova forma de
encantamento que mistura as liturgias europeias com as pajelanças do Novo
Mundo. A catequese só muda de lado e passa a ser feita pelos próprios ame-
ríndios. Por outro lado, há toda uma alusão às gravuras Seiscentistas, uma vez
que, um pouco apagadas pela distância, novas cenas de canibalismo se desta-
cam, como um homem nu que cozinha o seu guisado: uma apetitosa perna.
Nada mais distante da representação da Igreja, feita para apaziguar a alma e
não para o exercício do inconformismo.
Mas o quebra-cabeças ainda não está concluído. Um pedaço de perna,
antes na grelha e depois no varal, agora se encontra no chão. O mesmo acon-
Fig. 9. Relicário do braço de São
tece com um abacaxi dos trópicos, incluído na paisagem, ou com um braço
Bento, na Igreja e Mosteiro de São
Bento, séc. XVII, Salvador de São Bento ereto ao centro, que é na verdade baseado no relicário de São
Bento, da Igreja e mosteiro de mesmo nome em Salvador.
Feito originalmente de prata, o relicário data da primeira metade do
século XVII, e aparece em novo cenário, obrigatoriamente atemporal ou re-
fratário a qualquer datação precisa. Lê-se na tela: “relíquias”. Mas se relíquias
são objetos tradicionalmente reservados à veneração religiosa, aqui ganham
nova vida, ao mesmo tempo que perdem sua alusão exclusivamente sacra.
Adriana Varejão mistura ex-votos com relíquias: objetos populares com peças
sagradas relacionadas à vida de Cristo. Mas há outros detalhes que sinalizam
para a mistura de elementos orquestrada pela artista. Uma perna, tenuemente
encaixada em um azulejo foi “amputada” do modelo de azulejaria da Igreja de
Santo Amaro em Portugal.
Esta perna poderia muito bem figurar como um ex-voto, ou como o
próprio corpo de Cristo, ou ainda como membro do festim canibal, ou todas
as referências juntas. O fato é que as relíquias fazem parte dessa história de
encantamentos ou de histórias interrompidas pelo mistério da falta de expli-
cação ou de origem. Proposta de catequese traz assim um título quase didático,
uma vez que apresenta uma catequese antropofágica, com elementos sendo
devorados por ambas as culturas. Uma série de símbolos aparece como relí-
quias, no entanto, como o contexto é diverso, o sentido também se altera. As
histórias parecem se suceder, como num livro em quadrinhos, em que várias
Fig. 10. Azulejaria da Igreja de narrativas são distribuídas a partir de enquadramentos sucessivos, guardando
Santo Amaro, séc. XVII, Portugal. entre si um sentido continuado. Aqui temos “morte”, “esquartejamento”,

162 8
“aparição” e drama, com um São Francisco substituído por um indígena. O
esquartejamento conta uma história feita de pedaços de corpo, transformados
em símbolos para ambos os universos religiosos. Relíquias para os católicos;
ex-votos nas religiões populares; novos símbolos para os ameríndios. Quem
come o corpo, come parte do espírito: espírito de Cristo, espírito do inimigo
transitoriamente vencido.
Também os painéis, tintados de azul e amarelo, foram “importados”
diretamente de Portugal: da Igreja do Bom Jesus de Setúbal. A eles se junta,
bem ao centro, um prato da Companhia das Índias, retratando uma paje-
lança, que completa essa mistura de tempos, culturas e referências. O con-
junto da obra pede, porém, para que se coloquem todas as peças juntas, e
que se some dois mais dois: o amarelo e o azul desbotados dos azulejos, quase
acinzentados; os cortes na tela; o sangue que dessa vez não escorre. O im-
portante é que aqui se reencena um sacrifício e uma dádiva: várias formas
de violência, mas também oferendas e graças partilhadas. Não por acaso o
indígena também descansa: sonha com outro mundo. Fig. 11. Adriana Varejão.
Operação semelhante pode ser encontrada em Azulejaria de cozinha Azulejaria de cozinha com caças
variadas, 1995
com caças variadas, assim como em Azulejaria de cozinha com presuntos, ambos óleo sobre tela , 140 x 160 cm.
de 1995. Nesse caso, a evidência dos cortes desce na hierarquia e alcança o
lugar da cozinha: o espaço dedicado, no Ocidente, ao cozimento dos alimen-
tos e que em geral é tarefa executada nas áreas menos nobres das elegantes
casas burguesas. Entre nós, cozer sempre foi operação superior a deixar cru, e
Adriana Varejão retira as partes do corpo, e as transforma, agora, em “carnes”,
tema tão importante para ela39. Nem ex-votos, nem festim canibal, muito 39 Sobre o triângulo culinário vide: Lévi-
Strauss, Claude. O cru e o cozido. Lisboa:
menos relíquias: dessa vez elas são simplesmente carnes, alimentos. A artista, Edições 70, 1975.
em nova operação de deslizamento de sentidos, transporta o ritual do caniba-
lismo para o ato cotidiano e normatizado da cozinha: local onde diariamente
se preparam refeições. Carnes humanas viram caças, presunto, costela, touci-
nho, pernil. Como mostra o antropólogo Marshall Sahlins, em seu ensaio “La
pensée bourgeoise”40, no que se refere à vaca, impera entre nós e em nossos 40 Sahlins, Marshall. “La pensée bourgeoise”.
In: A cultura da prática. Rio de Janeiro: Zahar,
padrões de alimentação certo tabu antropofágico. Isto é, damos nomes às suas 1976.
partes mais nobres e caras — alcatra, costela, maminha — e deixamos os títu-
los originais — coração, rabo, orelha, testículo — para as regiões mais baratas
e populares. No entanto, muitos elementos denunciam a lógica pouco racio-
nal que preside nossas práticas. Por exemplo, se imperasse apenas uma relação
de procura e oferta, o coração, que é pequeno — e um só —, teria preço de
iguaria; já a maminha, custaria quase nada. Mas ocorre o oposto, o que evi-
dencia como acontece conosco, exatamente o que denunciamos nos outros.
Há uma eficácia simbólica em nossos hábitos alimentares, que nada tem a ver
com racionalidade. Ao invés de se fiar na lógica civilizatória de nosso modelo
ocidental, a artista brinca com nossas próprias práticas rituais e simbólicas.
Há outra obra que marca o início da série conhecida como “Figuras de
convite”. Aqui podem ser encontradas novas referências a De Bry, porém am-
bientadas num comportado “padrão” português de azulejaria. De um lado,
Adriana Varejão inspirou-se nas “figuras de convite”, frequentemente dispos-
tas na entrada de palácios, conventos e jardins portugueses dos séculos XVII
e XVIII, e que tinham como função sinalizar a direção correta a ser seguida.
Muitas vezes dispostas nas entradas ou escadarias das casas de nobres e

8
163
Fig. 12. Adriana Varejão, Figura de convite, 1997
óleo sobre tela , 200 x 200 cm.

palacetes, essas figuras — que poderiam ser de homens ou mulheres, lacaios,


damas ou guerreiros, sempre trajados a rigor e apresentando gestos de boas-
-vindas — representavam não só símbolos da sociabilidade cortesã, como
também reafirmavam o poder e a riqueza do anfitrião. Produzidas em tama-
nho real, com seus contornos recortados, algumas dessas figuras chegavam até
mesmo a trazer a reprodução de falas, que pretensamente saíam das bocas de
seus personagens. Por isso mesmo, eram denominadas “figuras de receber”,
“figuras de respeito”, “figuras de cortesia”. Mas, para além de se constituir
como gênero ornamental, esses amplos painéis de azulejos faziam parte da
arte e do ritual de bem receber e mostrar civilidade. Começava-se a distinguir,
nas casas, as áreas públicas das mais privadas; as esferas da intimidade dos
espaços mais coletivos. Essas figuras convertiam-se, assim, em semáforos da
boa convivência, algo como as setas que hoje não deixam dúvidas em relação
à direção a tomar.
As figuras de convite de Adriana Varejão trazem fórmula semelhante,
mas a realização é mais uma vez diversa. A estrutura é idêntica, já que temos
uma personagem em primeiro plano que com uma de suas mãos indica a di-
reção, mas que com outra carrega, por exemplo (e o que há de exemplo nesse
caso?), um crânio. Se uma das mãos ordena — tal qual as figuras de convite
—, já a outra apresenta a desordem e a contradição. Também os azulejos,
dispostos ao fundo, e em segundo plano, nada devem ao modelo original.
Novamente, azulejos com estamparias inocentes de flores convivem com ce-
nas — pouco inocentes — de canibalismo, retiradas de De Bry: aí estão vís-
ceras, partes de animais, e ex-votos.
Para complicar ainda mais a regularidade do formato original, na obra
da artista, em primeiro plano, uma figura feminina retirada das gravuras de
De Bry — nesse caso, do livro América — é que indica a localização. Como
vimos, Theodore de Bry, um especialista em peças de ouro, é lembrado até
hoje como um gravador e impressor de imagens do então desconhecido Novo
Mundo. Seu amplo projeto teve início em 1590, quando o gravador relançou
os documentos de Thomas Hariot sobre a primeira colonização da Virgínia,
mas incluiu algumas ilustrações de sua autoria. Com o sucesso do livro, De
Bry realizou um novo volume, dessa vez sobre as primeiras tentativas france-
sas de colonização da Flórida. A empreitada atingiu em cheio o interesse do
público europeu, estimulado a conhecer os “excêntricos” americanos, guer-
reiros e “adeptos” da prática do canibalismo. A partir daí e até a morte do

164 8
gravurista, em 1598, ele ilustraria vários outros volumes semelhantes a esse, e
a própria família do profissional daria continuidade ao projeto, até o ano de
1634, estendendo a coleção para 25 partes do mundo, incluindo no trajeto
viagens para a Ásia e para as Américas. As gravuras traziam cenas de pretensos
costumes das culturas locais, assim como episódios do contato com os euro-
peus, sendo possível notar expressões, instrumentos de trabalho ou de guerra
e a discriminação de alimentos e produtos das diferentes terras.
De Bry servia-se, de fato, do que podia. Por exemplo, muitas vezes
baseava-se nas ilustrações da antiguidade clássica de John White, encorajando
seu leitor a estabelecer um contato e comparar os nativos americanos com as
culturas da Europa antiga. Esse é o caso das ilustrações de “guerreiras Picts”
encontradas, paradoxalmente, no livro América.

Fig. 13. Theodor de Bry. America. Pict


Warrior from John WhiteAcervo do
British Museum

Os Picts ou Pictos formaram um grupo sobre o qual, até hoje, pouco


se sabe, mas muito se imagina. Provavelmente oriundos de culturas celtas da
região Sudeste e Nordeste da Escócia, supõe-se que tenham vivido no começo
da era medieval ou um pouco antes do século V. Mas existem registros datados
do momento em que os romanos conquistaram os bretões (durante o século
X) e, nesse caso, os Picts aparecem referenciados ao lado dos gauleses. Outros
documentos atestam que o povo seria descendente dos antigos Caledônios.
Outras fontes indicam que seriam bascos ou até romanos. São tantas as in-
cógnitas que mal se tem certeza se, afinal, o grupo existiu ou não. Pesquisas
mais recentes assumem que os Picts teriam sido dominados e incorporados
aos escoceses e que apresentariam características de povos da Idade do Ferro.
Outras teorias avalizam suas redes e conexões com grupos vizinhos europeus,
assim como seus pendores para atuarem como marinheiros e guerreiros.
É certo que existe uma série de registros históricos, mas é verdade
também que a origem, desenvolvimento e desaparição dos Picts continuam
envoltas em muitas fábulas, lendas e conjecturas. No entanto, o que mais
tem despertado a curiosidade sobre esse grupo é a especificidade de serem
uma sociedade matrilinear e caracterizada por estimularem a formação de
copiosos artistas. Sua arte ficou inscrita em rochas, que escaparam ao desa-
parecimento, mas também em desenhos de época que permitem reconhecer
exímios tatuadores. Mas restou pouco: apenas rochas e rascunhos de figuras
excêntricas, como as retratadas por De Bry em seu livro América. Não se sabe
exatamente porque figuravam num livro sobre o Novo Mundo. Mas prova-
velmente Theodore de Bry pretendia estabelecer conexões entre diferentes

8
165
“nativos” de regiões estranhas.
Se observarmos o conjunto do livro América, será fácil notar como De
Bry cria uma espécie de padrão para os nativos americanos. E eles são todos
um pouco Picts: guerreiros, fortes, corpos esculturais e muitas vezes tatuados.
Mulheres também estão presentes nas gravuras que descrevem “festins
canibais” brasileiros e, nesse caso, parecem existir outras possíveis associações
entre as indígenas do Novo Mundo e as guerreiras Picts, com seus corpos to-
dos desenhados com figuras geométricas, mas também apresentando motivos
florais ou estelares. Imensas, fortes, elas ostentam suas lanças, no primeiro
plano, deixando aparecer ao fundo ora cenas de canibalismo, ora situações do
medievo, com pequenos castelos isolados e navios à deriva. Além do mais, se
notarmos com cuidado, nas imagens de canibalismo do viajante, são as mu-
lheres que se deliciam com o festim, comendo pernas, braços e roendo ossos,
quando não mordem seus próprios braços num sinal de luxúria e descontrole.
As guerreiras Picts dialogavam, certamente, ao menos no imaginário
da época, com as nativas que De Bry eternizou, quando as apresentou atu-
ando nos rituais dos trópicos portugueses. São elas que despedaçam corpos,
tiram vísceras, se alimentam de pernas, braços ou cérebros. Mais ainda, são
elas que dançam — medonhamente —, numa clara associação com a ideia de
malignidade. O corpo feminino e sua sexualidade surgem, assim, como signo
de ameaça e forma de descontrole. O desejo sexual delas — prontamente
associado à comilança —, seu poder de sedução, e a livre expressão de seus
corpos parecem lembrar a falta de regras que as vincula todas à ideia de bruxa-
ria e do diabo. Não há como esquecer que, nessa mesma época, divulgavam-se
imagens de bruxas em orgias sexuais, montadas em vassouras de madeira, ou
seduzindo homens mais inocentes. Goya, por exemplo, foi mestre em intro-
duzir essas personagens em suas gravuras, sempre em situações grotescas e
mostrando de que maneira as mulheres, longe da esfera doméstica, estavam
ligadas a toda sorte de malefício. É certo que Goya produziria suas telas no
Setecentos, portanto, muito depois do período de De Bry. Mas há uma clara
contaminação de imaginários, os quais, de maneira circular, associam mulhe-
res a práticas de bruxaria. Não por coincidência, as índias tupinambás bra-
sileiras, representadas por nosso gravador, carregariam igualmente um misto
de erotismo com exotismo, uma vez que compunham parte central do ritual
antropofágico.
Segundo o historiador Ronald Rominelli, por intermédio das formas
visuais das bruxas e do estereótipo das feiticeiras, os viajantes e gravuristas
expressavam todo o seu estranhamento diante desse mundo novo, tautolo-
gicamente novo. Se as nativas não eram bruxas, suas formas, corpos e atos
41 Raminelli, Ronald. Imagens da tratavam de cumprir papel paralelo.41
colonização: representação do índio de
Caminha a Vieira. Rio de Janeiro: Zahar, Diferenças existiam e enquanto as bruxas europeias eram geralmente
1996.
representadas como velhas, as índias brasileiras, assim como as guerreiras Picts,
42 Agradeço a Isabelle Anchietta por essa
surgiam jovens e apresentando corpos perfeitos; desejáveis.42 E as imagens
associação entre as bruxas europeias e as trafegavam de lado a lado. Enquanto as brasileiras foram se assemelhando às
nativas brasileiras. Para uma visão mais
aprofundada, recomendo seu relatório de bruxas do Velho Mundo e do Sabá, já as mulheres europeias viram-se conta-
qualificação: “As polimagens do feminino”.
minadas com as representações de canibalismo.43 Há uma circularidade cul-
tural que faz com que as imagens conversem entre si e se retroalimentem, for-
43 Ver Burke, Peter. Testemunha ocular e
imagem. Bauru, São Paulo: Edusc, 2004. mando uma espécie de caldeirão cultural, cujo resultado apresenta no mesmo

166 8
plano folclore, história, lenda, cultura erudita ou mera projeção.44 Aí estaria 44 Vide também Ginzburg, Carlo. História
noturna. São Paulo: Companhia das Letras,
o pecado original, uma Eva distante do paraíso e obrigada a comer não mais 1991.
a maçã, mas a introduzir o inferno na terra.
Nessa época, as representações se misturavam e os nativos de diferentes
partes do globo serviam para representar o Novo Mundo. Sergio Buarque
de Holanda, em Visão do Paraíso45, lembra de uma antiga tradição celta que 45 Holanda, Sergio Buarque de. Visão
do Paraíso. Os motivos edênicos no
explicaria a origem do nome de nosso país. A versão mais conhecida é aquela descobrimento e colonização do Brasil.
ligada à compreensão de que certas ilhas atlânticas teriam plantas como a São Paulo: Editora Brasiliense, 6ª ed., 2ª
reimpressão, 2002.
urzela, ou o sangue de dragon, que dariam um produto tintorial com cor
púrpura. Já Buarque de Holanda acrescentaria outra tradição, que defende
que o topônimo seria resultante de expressões irlandesas — “Hy Bressail”
e “O’Brazil” —, que significariam “ilha afortunada”. Essa explicação daria
conta do nome “Obrasil”, presente em vários mapas do início do XVI. A
inspiração irlandesa era religiosa ou paradisíaca e perseguiria com teimosia
os cartógrafos. Apareceria pela primeira vez em 1330, designando uma ilha
misteriosa, e ainda em 1853 constaria de uma carta inglesa. De toda forma,
existia à época de De Bry essa associação entre indígenas — de vida longa e
edênica — com outros paraísos e terras misteriosas.
Interessante pensar que Adriana Varejão coloca mais fervura nessa
sopa, ao dispor, em suas Figuras de convite, de uma bela guerreira Picts. Ao
invés do passivo cavalheiro, da serena dama ou do anfitrião cordato, temos
agora uma mulher com sua lança em uma das mãos e com uma cabeça dece-
pada, em outra. Nua, bonita, cabelos ao vento, ela aponta uma direção reta,
precisa, sendo que o fundo da tela como que a desmente. Ora são peças de
corpos decepadas compondo “inocentes” azulejos portugueses, ora reprodu-
ções que remetem às cenas de comilança das gravuras de De Bry. Perde-se
(ou ganha-se) o local e a certidão de nascimento, pois os poucos homens que
participam do festim parecem achineses, como se fosse fácil o caminho da
colonização: a passagem de Macau, via Portugal, ao Brasil. Aqui temos um
tempo circular, um passado enevoado e um espaço que perde sua data.

Coincidência número 3 ou canibalismo pessoal


Essa é apenas uma série, dentre muitas, que serve como exemplo de
como lidamos, durante quatro anos, com um trabalho que não tinha divisão
obvia de tarefas. Se evidentemente eu não produzia arte, Adriana me ajudava
a escrever e descrever com palavras o que via nos trabalhos. Aí está um pro-
cesso criativo feito de referências mas que não depende de referências. Além
do mais essas são referências de referências, uma vez que os próprios artistas
citados, são eles mesmos influenciados por outras formas visuais transforma-
das em convenções. Foi por isso que exploramos o conceito de paródia. O
azulejo é paródia, a carne é paródia, e até “meu Taunay” virava paródia fácil.
Voltemos mais uma vez a Nicolas-Antoine Taunay que nasceu em Paris
a 10 de fevereiro de 1755, e foi desde jovem preparado para a carreira de
pintor. Seu pai, Pedro Antonio Henrique Taunay, químico e pintor da manu-
fatura real de porcelanas de Sèvres, ganhou renome por sua habilidade como
inventor de esmaltes, matizes e cores e teria grande influência sobre o filho.
Os pratos da tela de Adriana Varejão reencenam, pois, com as aptidões dos
Taunay: a porcelana e sua cor.

8
167
Diante do ambiente francês conturbado, da queda de Napoleão (o
antigo mecenas), a América passou a representar uma boa projeção: um local
isolado, apartado da guerra e cuja natureza inspirava a atenção do artista.
Nicolas pede, assim, afastamento do Instituto de França, por cinco anos, e
em meados de dezembro parte com toda a família, e uma criada, para a des-
conhecida corte dos portugueses. Chega ao Rio de Janeiro em 26 de março de
1816, sendo indicado na condição de pintor de paisagem e contratado pelo
prazo de seis anos.
Como vimos, nas obras em que fez no Brasil nada parece atrapalhar
a tranquilidade. Nem mesmo o mar parece se mover, tal a monotonia que
impera em suas telas americanas: não há vento, homens em excesso, ou con-
46 Para um aprofundamento da obra de vulsão. Tudo parece exatamente em seu lugar.46
Taunay, vide ensaios escritos pela especialista
Claudine Lebrun e meu próprio livro: O sol do Radicalmente diversa é a situação proposta por Adriana Varejão em sua
Brasil: Nicolas-Antoine Taunay e os artistas
franceses na corte de d. João (1816-1821). releitura pictórica, e tendo por base a tela pertencente ao acervo do Museu
São Paulo: Companhia das Letras, 2008. Castro Maya, chamada Vista tirada do Morro da Glória. Na pintura original
reina a calma paisagem acadêmica, exótica para agradar a clientela europeia,
serena como se lembrasse um local onde o tempo parece perdido ou ausente.
Quase não há vestígio humano, a não ser pelas pequenas miniaturas, que
só são perceptíveis a partir de um olhar atento. De resto, tudo parece vazio,
pronto para o deleite.
Já no trabalho realizado por Adriana, a artista procura destacar, ainda
mais, as características centrais das telas do pintor. Afinal, o grande espetáculo
é protagonizado pela natureza e não por seus homens.
Talvez por isso, e por conta de sua relação ambivalente sobretudo com
o “espetáculo da escravidão”, Taunay, em suas telas brasileiras, jamais dei-
xou de figurar como vimos negros escravizados. Diferentemente de Debret,
porém, não os jogou para o primeiro plano, nem deu a eles maior protago-
nismo. Na tela escolhida por Adriana Varejão, dois escravos escapam pela
janela. Difícil ver a cena, a não ser com a ajuda de uma lupa, tal o grau de
detalhes dessa representação. O importante é que, como Debret (e ainda mais
que ele), Taunay pretendia voltar para a França e, enquanto esteve no país,
manteve sua clientela francesa.
Fig. 14. Adriana Varejão, Carne à E para melhorar a situação, com o declínio da voga neoclássica, pinto-
la Taunay. 1997. 65X75 cm. res de paisagem, como Taunay, ganhavam nova importância, diversa da an-
tiga hierarquia vigente na Academia durante o XVIII, e que considerava esse
tipo de gênero inferior aos demais. Retornando a Poussin e Claude Lorrain,
a pintura de paisagem recebia nova inspiração. Mas não se tratava de pintar
qualquer paisagem. Priorizava-se um certo retorno evocativo à Antiguidade,
que era entendida como um momento do passado que inspirava valores mo-
rais elevados. O conceito de natureza — la belle nature, como os franceses o
chamavam — contradiz a noção mais corriqueira do termo, mais próxima
de uma visão natural. Nesse caso, porém, trata-se de uma paisagem ideal e
tomada pela cultura.
Adriana Varejão, mais uma vez, subverteu, porém, os supostos artísti-
cos do francês e sua natureza moral. A obra que Adriana faria não se consti-
tuiria apenas numa “homenagem”, dessas que se colam ao que se quer exaltar.
Claro que há referência e diálogo entre as duas obras. Mas há mais: a intenção
de sacudir estruturas e quebrar modelos. Esse projeto estará expresso na obra

168 8
Carne à la Taunay – o avesso do avesso, que, de alguma maneira, é também
seu lado mais verdadeiro.
O resultado é um trabalho em que Varejão quase desfigura a tela de
Taunay, tal a quantidade de cortes e sulcos que seccionam a obra. Nada mais
ambivalente: a leseira tropical é interrompida pelo gesto que perfura o qua-
dro e permite às entranhas, inesperadamente, se avolumarem na obra. De
forma muito diferente da fatura acadêmica, a qual, por meio da perfeição da
pintura, pretende elevá-la a uma obra moral, nesse caso os jogos e artifícios
aparecem no primeiro plano, com a obra mostrando-se a partir de sua pró-
pria materialidade. De um lado, o trabalho é feito de madeira, pano, tinta.
De outro, sua exterioridade plácida não dá conta de encobrir a interioridade
convulsionada.
A partir do recorte de Varejão, a pintura de Taunay perde seu ar de
completude, sendo servida à mesa, como pedaço de bolo, nas mesmas por-
celanas da Companhia das Índias. O “corte” permite desconfiar da pacata
paisagem ingênua, com a artista produzindo, com sua interferência, um de-
safio (quiçá) para a própria compreensão da Corte dos portugueses no Brasil:
sua atividade colonizadora, sua maneira pretensamente neutra de dominar.
É claro que é possível admirar o trabalho de Adriana sem tantas explicações
exteriores a ele. Não obstante, nesse caso, há quase um convite para que colo-
quemos as duas obras para conversar.
Mas há também conversa com a “forma”. Carnes têm sido retratadas
na história da pintura ocidental, com grande frequência — o vermelho, os
cortes, entranhas, sulcos, dobras —, e são referência frequente na obra da
artista. Mas aqui temos representadas não só a carne dos escravizados, mas
também a carne dos portugueses e dos franceses. Ademais, a comparação
ajuda a aguçar a maneira como esse trabalho em específico, conversa com
certas tônicas presentes no conjunto da obra de Varejão. Se colocarmos as
duas obras em relação — a de Taunay e a de Adriana —, será fácil notar como
os deslocamentos e interferências potencializam significados internos às duas
obras. Por mais que se queira desenhar um quadro idílico dessa colônia para-
disíaca perdida no Atlântico, não há como se desfazer de tantas contradições
do projeto colonial: a platitude do clima não apaga a violência da escravidão
e do próprio sistema; a falta de homens não elide a hierarquia que preside as
relações sociais; o lado de fora (a paisagem bucólica) não anula o de dentro (as
entranhas do sistema e da situação compulsória que explica tantas clivagens
sociais); assim como o estado mais radical de violência não impede a pre-
sença da sensualidade expressa nos corpos. Até parece que a calmaria apenas
prenuncia tempestade, a qual é servida, por Adriana Varejão, em baixelas e
pratos.
Tal como o conceito de mímeses – o famoso “being like and being
other”, também na obra de Adriana tudo é e não é. É por isso que tudo não
passa de representação, tradução e ressignificação. Mas tradução maior viria
do convívio e da releitura de meu próprio trabalho.

Última coincidência (quase coincidência/ incidência): Tintas Polvo


Comecei esse texto falando de cor – e da nossa estranha maneira de
agenciar tons e sub-tons no Brasil -- e volto aqui, ao final, ao mesmo tema.

8
169
Afinal, é sobre pele, pele como cor e linguagem, que se debruça o mais recente
projeto de Adriana.
Toda a obra de Adriana Varejão pode ser definida como uma história
íntima com as cores, e foi assim que, embaralhando peças do seu próprio
caleidoscópio, Adriana criou um novo múltiplo. Trata-se de uma caixa de
tintas, feita em madeira, contendo 33 tubos de tinta a óleo. A seleção de 33
cores foi, por sua vez, retirada da lista de 126 termos da Pesquisa Nacional
por Amostra de Domicílios (PNAD) selecionando-se, apenas as variações de
branco, marrom, preto e os termos mais exóticos.
Fogoió; Branca suja; Morena bem chegada; Amarelosa; Branca me-
lada; Parda morena; Bugrezinha escura; Café com leite; Azul-marinho;
Branquinha; Agalegada; Chocolate; Burro-quando-foge; Morena-
-jambo; Turva; Queimada de praia; Escurinha; Mulatinha; Encerada;
Sapecada; Puxa para branca; Bahiano; Cabocla; Cabo verde; Cor de
cuia; Cor firme; Mestiça; Pálida; Polaca; Parda clara; Retinta; Pouco
clara; Meio preta
O tema da cor e da pele volta aqui sob nova roupagem e dialogando
diretamente com essa mania nacional de negociar com a raça por meio da cor.
“A gente não tem sangue nas veias, brinca Adriana, tem tinta”. Dessa vez, po-
rém, ao invés de acompanhar o processo a posteriori, tive a oportunidade de
acompanhar o projeto no contexto em que realizávamos o livro. Ou melhor,
como parte do processo. Inversão absoluta entre sujeito e objeto de análise,
nesse caso eu, não sabia, mas me converti numa espécie de objeto.
Adriana conta que procurou a fábrica de tintas Águia, a qual, segundo
ela, era aquela com que todos os artistas da sua geração tiveram o primeiro
contato e aprenderam a pintar. Na verdade, foi o baixo custo e a qualidade das
tintas que fez da fábrica uma referência prática e afetiva. Tintas Águia ainda
existia, agora instalada em uma nova sede localizada em Nova Iguaçu, mas
que guardava o mesmo aspecto artesanal: o teto de zinco, a falta de unifor-
mes, os poucos e antigos funcionários. Da antiga fábrica só ficou o portão, e
as histórias aventureiras do seu processo de criação.
Diz a lenda familiar que a história dessa fábrica começa em 1918,
quando o imigrante português, Guilherme Candido Pires, aporta no Brasil,
quase sem dinheiro nos bolsos, apenas trazendo na bagagem alguns pigmen-
tos naturais e o conhecimento sobre manufatura de óleos que havia adquirido
em seu país de origem. Essa seria mais uma das muitas e boas histórias de
imigrantes empreendedores, os self made men, que chegavam ao país no con-
texto da Primeira República, logo após a Primeira Guerra Mundial, tentando
a sorte em uma nação nova e de língua desconhecida.
Em 1924, em plena crise mundial e já com grande experiência na área,
o senhor Guilherme associa-se a Abel de Barros Marques de Oliveira e juntos
fundam a “Abel de Barros & Cia”, com o nome de fantasia: Tintas Águia. Nos
anos 1930, a empresa — que contava com cerca de cinquenta cores em sua
cartela, todas receitas guardadas em segredo e confeccionadas por três leais
funcionários — tornara-se quase um monopólio nacional, ao menos para os
jovens artistas do modernismo.
Mas se o avô fora um empreendedor diletante, já o pai se formaria em
engenharia química pela Universidade do Brasil — e seria forçado a se engajar
na profissão, conforme brinca a filha. Com o tempo assumiria, também, o

170 8
cargo de professor de tintas e formulações do Instituto Nacional de Tecnologia
(INT); escreveria um livro especializado e referência sobre o tema47, assim 47 Pires, Guilherme de Souza. Tintas &
vernizes. Rio de Janeiro: 2006. (O trabalho foi
como atuaria na qualidade de diretor do Sindicato dos Fabricantes de Tintas financiado e editado pelo próprio autor.)
e Vernizes do Rio de Janeiro.
A fábrica que Adriana encontrou guarda o aspecto artesanal e essa con-
versa sobre cores. Naquele contexto, e mesmo nos dias de hoje, os tons de
marrom são quase monopólio mundial do Brasil e, principalmente, de Minas
Gerais. Interessante pensar como a natureza referenda a paisagem cultural, re-
servando ao nosso país o papel de fornecedor maior dos pigmentos “terrosos”,
assim como somos, ainda hoje em dia, definidos como a nação da mestiçagem
e dos tantos tons de marrom. No livro do pai de Raquel há um quadro de
cores que recupera não só as características de temperatura — muito quente,
quente, morna, fresca, fria, neutra — e das cores; seu aspecto dimensional
— próximo, restrito, aconchegante, distante, aberto —, e, sobretudo, suas
características “subjetivas e objetivas”.
Segundo essa tabela, as cores teriam e despertariam comportamentos
específicos:

COR OBJETIVO SUBJETIVO


Vermelho Excitante Ódio
Laranja Vitalizante Exuberância
Amarelo Animador Alegria
Verde Refrescante Calma
Branco Limpeza Normalidade
Preto Deprimente Negação
Cinza-claro Suave depressão Ausência
Cinza-escuro Depressão Negação

Entre as cores constantes do quadro encontramos reiterada a ideia de


que há uma linguagem aqui expressa, e que se organiza a partir da contrapo-
sição e da relação. Branco representa “a limpeza e a normalidade”; preto, “a
depressão e a negação”. O mesmo paralelo ocorre entre cinza-claro, quando
a “depressão é suave”, e cinza-escuro, caso de “depressão e negação”. Enfim,
não há neutralidade nessa leitura das cores, e é exatamente disso que trata o
novo trabalho de Adriana.
É na conta dessas ambiguidades deixadas pela classificação oficial que
a artista não só planejou uma paleta de 33 cores, como acompanhou a con-
fecção das mesmas, supervisionando o envasamento das tintas quando essas
foram colocadas mecanicamente nos tubos.
Foi Adriana quem desenhou as fontes impressas nos tubos, bem como
o polvo, que virou a marca de suas novas cores: Cores Polvo. Sabemos que
polvo é povo, é bicho, e solta tinta. Na verdade, esse estranho animal mole e
flexível povoa as telas de Adriana faz muito tempo. Basta notar sua presença
nos Pratos e no último Panorama da Guanabara, de 2012. Adriana disse que
colocou o polvo na tela na última hora e ele lá ficou, colado e escorrendo
tinta. Pois afinal, polvos, além de serem moluscos marítimos dos mais com-
plexos — da ordem dos Octopoda, desses que têm oito pés ou braços, e
ventosas —, não há coincidência alguma por aqui, até porque a substância da

8
171
tinta liberada pelo polvo é a melanina, a mesma que dá cor à pele e ao cabelo
dos seres humanos. Enfim, estamos rodeando o tema da cor e da tinta.
Mas falta lembrar outra particularidade desse espécime. Para se defen-
der dos predadores, os polvos são capazes de se camuflar, trocando a cor da
sua pele, a partir de diferentes pigmentos: amarelo, laranja, vermelho, preto e
até marrom. Nessa nossa conversa circular, nada é mesmo acidental: as tintas,
as cores, os pigmentos e o nome “polvo”. O fato é que pele é terra; é território;
é casa e morada. Talvez por isso, esse último trabalho reflita sobre a matéria
com a qual Adriana trabalha, mas também a matéria que dá conteúdo a mui-
tos de seus projetos. Trata-se assim de uma reflexão sobre cor, pele, pintura e
paródia. Fabricar tinta é antes um ato de produzir representações, driblar o
verismo e criar a partir do próprio ato de criação e de classificação. O fato é
que eu mesma fui canibalizada, sendo meu trabalho com PNAD deglutido e
traduzido em algo novo e diferente. Adriana deu imagem à teoria.

Operação de pouso: quase conclusão


O que viemos fazendo até aqui, foi andar no encalço dessa semântica
da obra de Taunay e de Adriana Varejão e, mais ainda, procuramos cercar
essa grande poiesis visual; uma homenagem sincera às diferentes possibilidades
discursivas e à polifonia da representação produzida pela arte. No processo
criativo desses dois artistas, as referências — visuais, históricas, documentais,
literárias —parecem se comportar como espécie de glossário, um repertório
48 Vale a pena destacar que existe uma comum, um universo de possibilidades, pronto para ser transformado.48 Mas
pequena e preciosa edição, organizada por
Adriana Varejão e Adriano Pedrosa, de 1999, o contexto ou as referências externas não aprisionam as obras e nem fazem
que trata exatamente da importância das
referências na obra da artista. Vide Adriana
delas mera decorrência previsível de suas fontes. Longe do exercício da cita-
Varejão. Trabalhos e referências 1992-99. ção, aqui temos construção, investimento, paródia. Também não andamos
São Paulo: Galeria Camargo Vilaça, 1999.
procurando por uma intencionalidade absoluta e, muito menos, intentamos
fornecer uma espécie de manual para a apreciação das obras.
Pegando emprestada uma expressão do escritor Orhan Pamuk, seria
possível entender esses trabalhos, ao menos da perspectiva de quem fala do
lugar das ciências humanas, como uma “ficção literária visual”. Eles chamam
por nossa “inteligência visual, nossa capacidade de ver as coisas com os olhos
49 Pamuk, Orham O romancista ingênuo e da mente e de transformar palavras em quadros mentais”.49 Diz Pamuk que
o sentimental. São Paulo: Companhia das
Letras, 2011, p. 68-9. escrever equivale a pintar com palavras, e que ler um romance corresponde a
visualizar imagens por meio de palavras de outras pessoas. Se assim for, tam-
bém seria possível escrever com imagens; evocar no leitor, usando recursos do
romance e da escrita, desenhos muito nítidos: histórias com imagens.
Flaubert, antes de sentar à mesa e encontrar as palavras que transmi-
tiriam as imagens que lhe vinham à mente, dizia que estava à procura de le
mot juste. Quem sabe também estivemos sempre atrás de l’image juste, da
melhor referência a detonar um mar de histórias, imagens e obras. Orhan
Pamuk menciona um verso retirado da Ars poetica de Horácio, que evoca o
parentesco íntimo entre palavras — ou a literatura — e a pintura: “ut pictura
poesis” (como é a pintura, assim é a poesia). Quem sabe o ato de contemplar
uma paisagem pintada se assemelhe a um processo paralelo àquele de ler uma
poesia. “A poesia é como a pintura. Algumas (obras) atraem mais se você se
aproxima; outras, se você se afasta. Um quadro gosta de um lugar escuro;
outro tem necessidade de ser visto na luz, porque não teme o juízo aguçado

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do crítico. Um proporciona prazer de imediato; outro lhe agrada depois de
você o olhar dez vezes.”50 50 Pamuk, Orhan. Op. cit., p. 70-1.
Essa relação entre poesia e literatura já foi descrita muitas vezes e em
contextos diversos; tantos quanto a própria experiência de captar experiências
por palavras ou por imagens, ou por ambas. Gotthold Eprhraim Lessing,
em seu ensaio sobre a famosa estatuária clássica Laocooonte (1766), arrisca
uma distinção entre pintura e poesia: a poesia e a literatura são artes que se
desenrolam no tempo, enquanto a pintura, a escultura e outras artes visuais se
desenvolvem no espaço.51 Os antigos gregos, em suas infindáveis discussões, 51 Gotthold Ephraim Lessing. “Laokoon ou
sobre os limites da pintura e da poesia”.
chamavam essa atividade de ekphrasis. Em seu primeiro sentido, o termo in- Citado por Orhan Pamuk. Op. cit., p. 71.
dicava a descrição de obras de artes visuais por intermédio da poesia para o
uso de pessoas que não podiam vê-las e precisavam imaginá-las.52 Ekphrasis 52 Orhan Pamuk, op. cit., p. 74.
é, assim, descrever com palavras o esplendor do mundo visual — real ou
imaginário.
O fato é que a tarefa de expor com palavras realidades visuais, como
viemos tentando aqui realizar, sempre foi e será uma tarefa no mínimo “melan-
cólica”. Para o historiador da arte, ou para aquele que se depara com uma tela
acabada — cujo caminho não temos muitas vezes como refazer —, a questão
que se coloca é como reconciliar a escrita e a história.53 Mesmo quando temos 53 Heliana Salgueiro, Introdução in:
Baxandall, Michael. Padrões de intenção. A
acesso às fontes que “abasteceram” o artista, ou quando é possível indagá-lo a explicação histórica dos quadros. São Paulo:
Companhia das Letras, 2006, p. 10.
respeito, como é o nosso segundo caso, a dificuldade é conseguir dar a dimen-
são e o vigor de um trabalho visual, o qual, ao final, pouco deve às referências
que o animaram. A descrição é, pois, e como mostra Baxandall, antes uma
representação do que pensamos sobre a obra ou da representação dela. Assim,
a tarefa é sempre um pouco tristonha, pois vivenciamos o paradoxo de escre-
ver sobre algo que não pode ser “lido” em 180 ou 360o, e que, aliás, não se
conforma às regras literárias, pedindo por fonte, origem ou nota de rodapé.
Não se trata de desfazer desse processo. Melhor mostrar suas limitações
e também possibilidades. Limitações, pois não há como descrever, mesmo
com todas as palavras do mundo, obras visuais. Possibilidades, pois optamos
aqui por explicitar as referências teóricas, afetivas, sensíveis e intencionais dos
artistas e, com elas, procuramos estabelecer um via paralela de leitura desses
trabalhos.
Penso que o projeto de criação artística é semelhante, à sua maneira
daquele que constrói um texto, usando no seu projeto de uma mistura sen-
sível de fontes e referências. Lévi-Strauss, em Tristes trópicos, cria uma espé-
cie de modelo acerca da postura filosófica que aqui buscamos apresentar, só
que seu material são as sociedades “em relação”. Como modelo explicativo,
o etnólogo propõe contrapor dois costumes: o “costume antropofágico” de
determinadas sociedades ameríndias, e o “costume antropoêmico” do encar-
ceramento ocidental. Enquanto sociedades que praticam a antropofagia ab-
sorvem determinados indivíduos dotados de força interna como forma de
neutralizá-los, ou de adquirir sua força, nas sociedades ocidentais há um in-
vestimento na exclusão do indivíduo desviante do seio social. A essa prática
o etnólogo denominou de “antropoemia”, que significa “vomitar homens”.
A antropoemia como forma de verter e de expulsar, representaria, dessa ma-
neira, o oposto da antropofagia, que implica pensar em absorção e digestão.
Escreve ele: “Preferimos mutilar física e moralmente alguns dos nossos seme-

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173
54 Lévi-Strauss, Claude. Tristes trópicos. lhantes ao invés de consumi-los.”54 É possível arriscar dizer que essa postura,
Lisboa: Edições 70, 1966, p. 367.
que aqui batizamos de “etnográfica pictórica”, leva sempre à “incorporação
antropofágica”. Incorporar para alterar; traduzir e interpretar, mas nunca sim-
plesmente excluir.
Aliás, aí estaria a verdadeira incomensurabilidade da relação entre lin-
guagem e imagem. Pode-se dizer que o que “vemos” é quase um exercício em
vão, mas esse “em vão” é o que fazemos de maneira mais habitual (Mitchell,
2009: 63). Em segundo lugar, é forçoso reconhecer que – a despeito da segu-
rança e comodidade do historicismo – estamos diante de objetos separados
do nosso mundo, e que carregam diferentes temporalidades e contextos, por
mais que julguemos ser possível lê-los com olhos do presente. Mas existe um
terceiro problema recorrente e presente em muitos usos que nós cientistas
sociais fazemos das imagens. Há quem diga que tudo nesse mundo não passa
de etnografia e que para olhar basta ver. A influência dessa perspectiva verista
é tal que muitas vezes acabamos tomando um artista como um “ilustrador”
– destituído de desejo, vontade ou qualquer laivo de parcialidade. No en-
tanto, e conforme afirmou Ernest H. Gombrich, “muitas vezes a forma pre-
cede o significado”. Segundo ele, esta relação pode ser melhor observada nas
pinturas de caráter verista, que muitas vezes despistam, propositadamente, o
observador. Segundo Gombrich, mesmo tais obras não extraem sua ilusão de
um modelo real, mas a obtém pela maneira com que articulam um conjunto
de esquemas visuais básicos (schematas), transmitidos ao longo de gerações e
continuamente readaptados e relidos pelos artistas (Gombrich, 2007). Tais
modelos visuais podem, no limite, não guardar qualquer correspondência
imediata com as formas naturais que supostamente os inspiraram, e, de al-
guma maneira – como formas – são anteriores aos significados. Assumir tal
tipo de partido teórico, ajuda a entender como, muitas vezes – e sobretudo
quando o conhecimento do outro ou da natureza vem mediado por imagens
– acabamos sendo “as vítimas passivas, embora voluntárias, de uma ilusão
incontornável” (Gombrich, 2007: xvii).
Há qualquer coisa de previsível, mas também de misterioso no ato de
analisar imagens. Por um lado, tudo parece fácil, já que não há quem não
possa “ver” e assim admirar uma obra de arte. Mas da mesma maneira como
se deixam compreender de imediato, essas mesmas obras carregam lá seus
segredos, genealogias e historicidades que pedem calma: mais do que apenas
“olhar”, quem sabe seja bom começar a “ler” imagens.

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CO N F E R Ê N C I A S

Desastres da Guerra

DORA LONGO BAHIA1

Nos últimos anos, realizei uma série de trabalhos influenciados pela 1 Dora Longo Bahia possui graduação em
Licenciatura em Educação Artística pela
leitura do livro Diante da dor dos outros, que a escritora e teórica norte-ame- Fundação Armando Álvares Penteado (1987)
ricana Susan Sontag escreveu em 2003. Último livro que ela publicou em e doutorado em Artes pela Universidade de
São Paulo (2010). Atualmente é professora
vida, Diante da dor dos outros é um tipo de continuação ou adendo de um do curso de Artes Visuais na Escola de
Comunicações e Artes da Universidade de
de seus escritos mais famosos, Sobre fotografia (1977). Lançado no Brasil em São Paulo. Expôs seu trabalho na XXVIII
Bienal de São Paulo e na VI Bienal de
1983, Sobre fotografia aborda o tema fotográfico em termos que definiram Havana, Cuba, além de países como Holanda,
o debate pelas décadas seguintes. Nele, Sontag argumenta que num mundo França, Cuba, Venezuela, Africa do Sul, Índia,
Bélgica e Suíça. Em 2010 recebeu o Prêmio
saturado de imagens, aquelas que deveriam ser importantes para nós têm seu CAPES de Tese na área de Artes e Música
e em 2008, o prêmio Cifo, da Cisneros
efeito reduzido, pois nos tornamos insensíveis a elas. Mediante fotos, um fato Fontanals Art Foundation. Atua na área
de artes com enfoque especial em pintura,
conhecido se torna mais real do que se tais fotos nunca tivessem sido vistas, fotografia vídeo e áudio.
mas, após uma exposição repetida, esse mesmo fato se torna também menos
real. Na mesma medida em que as fotos criam solidariedade, elas atrofiam a
solidariedade, já que toda a situação tem que se transformar num espetáculo
para se tornar real (na sociedade do espetáculo em que vivemos, as próprias
pessoas acabaram se transformando em imagens, ao se apresentarem como
“celebridades” nas redes sociais da internet).
Já em Diante da dor dos outros, Sontag contesta esses argumentos. Sua
opinião agora é que o modo de ver de uma pequena população instruída que
vive na parte rica do mundo – onde as notícias precisam ser transformadas em
entretenimento para serem reais – não pode ser universalizado. Ela discorre
sobre as relações entre notícia, arte e compreensão na representação dos hor-
rores da guerra, da dor e da catástrofe.
Sontag parte da análise de uma das questões levantadas pela escritora
feminista britânica Virginia Woolf em seu livro Três guinéus (1938): “Como
nós podemos evitar a guerra?”. Woolf começa o livro questionando quem
constituiria esse “nós” da pergunta: “nós” mulheres, que não tínhamos direito
à educação e não fazíamos a guerra (como vocês homens), ou “nós” todos,
que observamos as mesmas imagens de guerra e sentimos a mesma repulsa?
As fotografias às quais Woolf se referia – imagens que o governo sitiado
da Espanha divulgava duas vezes por semana entre 1936 e 1937 – mostravam
corpos lacerados de adultos e crianças. Mostravam como a guerra despovoa,
despedaça, separa e arrasa o mundo construído. As fotos diziam: “Olhem, é
assim. É isto que a guerra faz”. A guerra dilacera, despedaça. A guerra esfran-
galha. A guerra chacina. A guerra esquarteja. A guerra devasta.
Para Virginia Woolf, só um monstro não sofreria com essas fotos, não
sentiria repugnância e não lutaria para abolir a causa desse morticínio.
Mais de 50 anos depois do lançamento de Três guinéus, Susan Sontag
investiga a compreensão das imagens de guerra que agora invadem nosso
cotidiano, não mais apenas através de jornais, mas também por meio da TV e
da internet. Para ela, dizer que as fotos de guerra provocam uma aversão geral

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177
à guerra, como apregoava Woolf, é esquivar-se de um engajamento com o
contexto (com a Espanha, no caso de Woolf ). É descartar a política.
É claro que fotos de corpos mutilados podem ser usadas, como faz
Woolf, para dar ânimo à condenação da guerra e podem, durante algum
tempo, transmitir uma parcela da sua realidade de forma convincente, para
aqueles que não têm nenhuma experiência de guerra. No entanto, num
mundo dividido, como se verifica hoje, a guerra pode tornar-se, para algumas
pessoas, inevitável e até mesmo justa, e, nesse caso, as fotos não oferecem pro-
vas em favor de uma renúncia à guerra, mas sim de um clamor por vingança.
Em 2001, o jornal New York Times publicou, na metade superior da
sua primeira página, numa matéria intitulada Uma nação desafiada, três fo-
tos de um talibã ferido, encontrado por soldados da Aliança do Norte que
avançavam rumo a Cabul. Ver a dor dos outros à distância, por meio das
fotografias, pode provocar reações opostas. Por um lado, as imagens de guerra
podem suscitar um apelo em favor da paz – como no caso de Woolf –, por
outro, podem atiçar um clamor por vingança – como no caso da violência
contra imigrantes, acentuada a partir das fotografias das Guerras no Golfo,
publicadas pela imprensa norte-americana. Além disso, fotografias de guerra
podem ainda despertar a atordoada consciência de que coisas terríveis acon-
tecem e não há nada que se possa fazer.
O livro Guerra contra guerra!, publicado por Ernst Friedrich em 1924,
apresenta mais de 180 fotos, em sua maioria, retiradas dos arquivos milita-
res e médicos da Alemanha. Cada foto é acompanhada de uma legenda, em
alemão, francês, inglês e holandês, para deixar bem claro a recriminação da
perversidade da ideologia militarista. O livro foi um grande sucesso de ven-
das. Em 1930, já estava na décima edição na Alemanha e tinha sido traduzido
para outros dez idiomas.
Em 1938, mesmo ano da publicação de Três guinéus, o cineasta francês
Abel Gance mostrou em close-up, no filme J’accuse, exemplos da população
de ex-combatentes horrendamente desfigurados pela I Guerra Mundial, os
gueules cassés. Tanto Friedrich, em 1924, quanto Gance, em 1938, acredi-
tavam que, se o horror pudesse ser apresentado de forma bastante nítida, a
maioria das pessoas finalmente apreenderia toda a indignidade e insanidade
da guerra. Mas parece que eles estavam errados. No ano seguinte, em 1939,
veio a II Guerra Mundial.
As primeiras imagens de guerra, quase todas anônimas, eram retratos
das consequências: cadáveres espalhados, paisagens devastadas. O monito-
ramento de guerra tal como conhecemos veio a partir do aprimoramento
do equipamento: câmeras leves, como a Leica, com filmes de 35 mm, que
podiam bater 36 fotos antes de ser necessário recarregá-las. A Guerra Civil
Espanhola (1936-1939) foi a primeira guerra “testemunhada”, ou seja, co-
berta por fotógrafos profissionais.
The Falling Soldier é um emblema do fotojornalismo. Robert Capa (que
morreu em 1954 ao pisar numa mina, fotografando a Guerra da Indochina)
mostra o soldado “na hora exata da morte”. A fotografia apareceu na revista
Life em 12 de julho de 1937, ao lado de um anúncio de página inteira de
Vitalis, uma pomada de cabelo masculina, com um rapaz sorrindo e outro
jogando tênis. Por um lado, a vizinhança das duas páginas pressupõe a invisi-

178 8
bilidade da foto ao lado; por outro, as duas imagens são niveladas e igualadas,
e o contexto a que se referem se torna distante e abstrato. A guerra não passa
de mais uma imagem-mercadoria.
O artista Christian Boltanski faz dessa invisibilidade o assunto de sua
série Signal, de 1995. Boltanski mostra imagens de soldados e de formações
militares nazistas lado a lado com paisagens bucólicas, flores ou animais, im-
pressas nas páginas das revistas alemãs publicadas entre 1930 e 1940. A ação
do artista consiste em desmontar as páginas das revistas, ressaltando, assim,
o perigo – ou a perversidade – que a eliminação de informações sobre o con-
texto de origem das imagens pode produzir. Boltanski explicita que fotografar
sempre foi compor (no caso de “temas” vivos, posar). Essa propensão a dispor
melhor os elementos da imagem não desaparece nem se o “tema” estiver em
movimento, nem se estiver imobilizado.
A muito admirada foto de Capa, tirada – segundo ele – no dia 5 de
setembro de 1936, foi originalmente publicada na revista Vu, em 23 de se-
tembro de 1936, acima de uma segunda foto, tirada do mesmo ângulo e com
a mesma luz. A variação na posição dos soldados sugere que Capa fotografou
um treinamento ou uma encenação para a câmera.
Encenações são comuns na história da fotografia de guerra e acontecem
frequentemente desde a primeira tentativa em grande escala de se documen-
tar uma guerra, levada a cabo durante a Guerra Civil Americana (1861-1865)
por uma empresa de fotógrafos liderada por Matthew Brady (cujo acesso ao
campo de batalha foi facilitado pelo presidente Lincoln). Segundo Brady, “a
câmera é o olho da história”, e as fotos devem mostrar fatos desagradáveis
para transmitir “uma moral útil” ao “mostrar o puro horror da guerra, em
oposição à sua pompa”2. Brady e sua equipe deslocaram vários cadáveres de 2 Susan Sontag, Diante da dor dos outros,
São Paulo: Companhia das Letras, 2003, p.
soldados recém-mortos nas batalhas para fazer composições mais “fotogêni- 46.
cas”. Na foto Home of a Rebel Sharpshooter, o cadáver de um confederado foi
deslocado do campo de batalha para um lugar “mais fotogênico” e um rifle
“cenográfico” foi colocado na cena por Alexander Gardner, um dos fotógrafos
da equipe de Brady. Na fotografia The Valley of the Shadow of Death, de 1855,
Roger Fenton supervisionou uma operação para espalhar balas de canhão no
leito da estrada com o objetivo de deixar claro que a guerra havia interrom-
pido a passagem, a vida. Na realidade, as balas estavam no terreno à esquerda
da estrada. A fotografia de Felice Beato do palácio Sikandarbagh devastado
pelas tropas britânicas vitoriosas também demandou uma preparação cui-
dadosa. O ataque ocorreu em 1857. Depois disso, os soldados ingleses e os
indianos leais à coroa britânica deram uma busca em todos os cômodos do
palácio e mataram a golpes de baioneta 1800 soldados indianos prisioneiros,
lançando seus cadáveres no pátio. Os abutres e os cães fizeram o resto. Para
tirar a foto em 1858, um ano depois, Beato espalhou os ossos humanos pelo
pátio e colocou alguns nativos conversando junto às colunas para sinalizar a
banalidade da ação.
Com o tempo, muitas fotos encenadas se convertem em um testemu-
nho histórico, ainda que de um tipo impuro – como a maior parte dos teste-
munhos históricos. Mas, cedo ou tarde, a foto acaba dizendo aquilo que ela
deveria estar dizendo. A foto Land Distribution Meeting de David Seymour é
muitas vezes mencionada com relação à Guerra Civil Espanhola. A fotografia

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mostra uma mulher segurando um bebê, cujo olhar parece perscrutar o céu
à procura de aviões inimigos, à espera de bombardeios. A expressão de seu
rosto – e dos rostos ao seu redor – parece carregada de apreensão. Entretanto,
a memória coletiva alterou a imagem de acordo com suas necessidades, con-
ferindo um caráter emblemático à foto não por aquilo que era – uma assem-
bleia política ao ar livre, ocorrida quatro meses antes do início da guerra –,
mas por aquilo que pouco depois viria a ocorrer na Espanha e que teria uma
enorme repercussão: os ataques aéreos contra vilas e cidades, usados como
arma de guerra pela primeira vez na Europa. Uma das imagens paradigmá-
ticas da guerra de Franco, a Guernica de Picasso refere-se justamente a esses
ataques aéreos conduzidos pela Legião Condor, unidade da força aérea alemã
enviada por Hitler para ajudar Franco.
Ataques aéreos, como os ocorridos na Espanha, tinham precedentes.
Durante a Primeira Guerra Mundial, ocorreram alguns bombardeios esporá-
dicos e relativamente ineficientes em Londres, Paris e Antuérpia. Entretanto,
as nações europeias vinham bombardeando de forma muito mais letal suas
colônias na África e no Oriente Médio. As chamadas “operações de controle
aéreo” eram defendidas como uma alternativa econômica à dispendiosa tarefa
de manter guarnições incumbidas de policiar as possessões britânicas mais
submissas. Uma delas era o Iraque, que, junto com a Palestina, tinha passado
para o domínio britânico após a Primeira Guerra Mundial, como parte do
espólio de guerra. Entre 1920 e 1924, a recém-formada Força Aérea Britânica
fez das aldeias iraquianas alvo de suas investidas regulares. Os ataques eram
“executados de forma contínua, de dia e de noite, contra casas, habitantes,
3 Ibid., p. 29 - 30. plantações e rebanhos”3.
O que horrorizou a opinião pública na década de 1930 foi que o mas-
sacre de civis a partir do ar aconteceu na Espanha: não se esperava que esse
tipo de coisa ocorresse aqui (na Europa). O mesmo tipo de sentimento atraiu
a atenção para atrocidades cometidas pelos sérvios, na Bósnia, na década de
1990, desde os campos de extermínio como Omarska até o massacre ocorrido
em Srebenica, em que a maior parte dos habitantes masculinos que não con-
seguiu fugir foi morta. Mais de oito mil homens e meninos foram cercados,
fuzilados e empurrados para covas coletivas quando a cidade foi abandonada
pelo batalhão holandês das Forças de Proteção das Nações Unidas e rendeu-se
ao general Ratko Mladic. Não se espera que esse tipo de coisa aconteça aqui,
no mundo ocidental.
O mesmo podemos dizer da indignação com os ataques ao World
Trade Center em 11 de setembro. Esse aqui é ilustrado de forma dramática
pela mão decepada da fotografia de Todd Maisel na capa do jornal Daily
News. Aqui não há guerra, só lá: no Afeganistão, no Iraque, na Coreia, no
Vietnã...
Foi a partir da guerra do Vietnã que as fotos famosas deixaram de
ser encenações. Para os fotógrafos, sempre foi possível adulterar uma foto,
mesmo antes da era da fotografia digital e do Photoshop. Uma fotografia é
sempre uma imagem que alguém escolheu, selecionou, enquadrou e editou,
ou seja, excluiu algo. A foto que se tornou símbolo da Guerra do Vietnã, ti-
rada em 1972 por Huynh Cong Ut, de crianças a correr por uma estrada, gri-
tando de dor, em fuga de uma aldeia que acabara de ser arrasada por bombas

180 8
napalm americanas, pertence ao reino de fotos que não podem ser posadas.
Mas a imagem conhecida foi selecionada, e encobre uma sequência perversa
ou uma história complexa. Nas fotografias da mesma cena, tiradas um pouco
antes ou um pouco depois, podemos ver os fotógrafos vestidos sobrevoando,
como abutres, a menina nua e as outras crianças desamparadas.
A cena famosa do chefe da polícia nacional sul-vietnamita, o general-
-de-brigada Nguyen Ngoc Loan, dando um tiro num homem suspeito de
ser vietcongue, registrada por Eddie Adams em fevereiro de 1968, também
encobre uma história complexa. A foto foi encenada pelo General Loan, que
levou o prisioneiro, de mãos amarradas nas costas, até a rua onde os jorna-
listas estavam. Adams queria mostrar um general vietnamita executando um
inimigo das forças americanas. Entretanto, sua foto tornou-se o símbolo das
atrocidades cometidas na Guerra do Vietnã e o general Loan, a personifica-
ção do inimigo. Adams pediu desculpas ao general e à sua família pelo dano
irreparável que fez à sua honra: “O general matou o vietcongue; eu matei
o general com minha câmera. Fotografias são as mais poderosas armas no
mundo. As pessoas acreditam nelas; mas as fotografias mentem, mesmo sem
manipulação. Elas são apenas meias-verdades... o que a fotografia não disse
foi, ‘o que você faria se capturasse o cara mau depois que ele havia assassinado
um, dois ou três americanos?’”4. 4 Eddie Adams, Eulogy: General Nguyen
Ngoc Loan, in: Time Magazine, 27 Jul 1998,
Foi também a partir da guerra do Vietnã que os fotógrafos de guerra disponível em: http://content.time.com/time/
magazine/article/0,9171,988783,00.html,
começaram a usar a cor como mais um recurso em benefício da verossimi- acesso em: abril de 2013.
lhança, da aproximação com a “realidade”, ou seja, do impacto. Larry Burrows
– que morreu quando o helicóptero em que ele estava foi derrubado a tiros
quando sobrevoava a trilha de Ho Chi Minh, no Laos – cobriu em detalhes
a guerra do Vietnã, a primeira a ser totalmente fotografada em cores. A par-
tir de então, a encenação foi descartada da documentação, limitando-se ao
campo da arte – cujo compromisso com uma fidelidade à realidade já tinha
sido descartado há muito tempo.
No campo da arte, as imagens de guerra, mesmo se assumindo como
falsas, podem ser comentários efetivos contra a absurdez da guerra. Dead
Troops Talk (A Vision After an Ambush of a Red Army Patrol, Near Moqor,
Afghanistan, Winter 1986), de 1992, é uma obra do fotógrafo canadense Jeff
Wall que, a partir das fotos coloridas das guerras americanas, compôs uma
imagem tragicômica na qual há um alerta para o desatino patético de toda a
situação bélica.
Hoje em dia, imagens do sofrimento nos são apresentadas diariamente
pelos meios de comunicação. Graças à televisão e à internet, as imagens das
desgraças alheias se tornaram uma espécie de lugar-comum. Mas como a re-
presentação da crueldade nos influencia? O que provoca em nós exatamente?
A iconografia do sofrimento tem uma longa linhagem. Os sofrimentos
mais comumente considerados dignos de ser representados são aqueles tidos
como frutos da ira, divina ou humana. As inúmeras versões da Paixão de
Cristo e o inesgotável catálogo visual das diabólicas execuções dos mártires
cristãos são destinados a comover e estimular, instruir e dar exemplo.
Parece que a fome por imagens mostrando corpos em sofrimento é
quase tão sôfrega quanto o desejo por imagens que mostram corpos nus.
Durante muitos séculos, na arte cristã, imagens do inferno serviam para

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proporcionar esta dupla satisfação elementar. Havia também o repertório de
crueldades difíceis de olhar de frente, oriundas da antiguidade clássica, cujos
mitos pagãos são ainda mais cruéis do que as histórias cristãs. Entretanto,
horrorizar-se diante de uma imagem criada por Goltzius é muito diferente
de horrorizar-se diante de uma fotografia de um veterano da Primeira Guerra
com o rosto destroçado. Além do choque, sentimos vergonha ao olhar uma
foto de um horror “real”. Somos apenas voyeurs, qualquer que seja nosso in-
tuito. O horripilante nos convida a ser espectadores, cúmplices ou covardes,
incapazes de olhar.
Quando Leonardo da Vinci dá instruções para uma pintura de bata-
lha, insiste em que os pintores tenham a coragem de mostrar a guerra em toda
a sua abominação. Leonardo sugere que o olhar do artista seja, literalmente,
impiedoso. A imagem deve estarrecer e nisso reside um tipo incontestável de
beleza. Um campo de batalha ensanguentado belo – no registro aterrador
do sublime, ou trágico do belo – é lugar comum no tocante a imagens de
guerra produzidas por artistas clássicos. Entretanto, a ideia não cai muito bem
quando aplicada a imagens contemporâneas captadas por câmeras: encontrar
beleza em fotos ou filmes de guerra parece insensível.
Sontag acha que a beleza não é o problema e sim a generalização do
sofrimento. Critica, por exemplo, a maneira como o fotógrafo Sebastião
Salgado apropria-se da desgraça mundial, estetiza-a e transforma-a numa abs-
tração do sofrimento. Ela cita a série Migrações, em que Salgado reúne, sob
um único título, uma multidão de causas e de modalidades de infortúnio.
Com um tema concebido em tal escala, a compaixão só pode debater-se no
vazio e tornar-se, assim, abstrata.
O artista alemão Gerard Richter, de maneira oposta à de Salgado,
também explora a “beleza” da violência. Richter chama a atenção para uma
situação trágica específica quando rememora os suicídios / assassinatos dos in-
tegrantes da Red Army Faction, na sua série de 15 pinturas 18 Oktober 1977.
A obra Dead é um retrato de uma das fundadoras da RAF, Ulrike Meinhoff,
que teria se suicidado na cela da prisão Stammhein. O título da série refere-se
ao dia em que os membros da RAF – Gudrun Ensslin, Andreas Baader e Jan-
Carl Raspe – foram achados mortos em suas celas. Todas as pinturas da série
são baseadas em fotografias que foram publicadas em jornais e revistas alemãs.
Assim como a história a que as fotografias originais se referem, as pinturas são
borradas e apagadas. Reproduzem pictoricamente uma imprecisão da história
e do meio pelo qual esta se tornou conhecida, a fotografia.
Richter parte de fotografias de cadáveres, explicitando o flerte da ima-
gem fotográfica com a morte. Por ser literalmente um vestígio de algo que
esteve diante da lente, a fotografia superou qualquer pintura como lembrança
do passado desaparecido e dos entes queridos que se foram. Ao transformar
as fotografias da morte dos revolucionários em pinturas, Richter submete
as imagens à condição de objeto de contemplação, reivindicando um olhar
mais demorado, recolocando em questão memórias controversas e incitando
a rememoração de um momento histórico específico.
O costume de representar sofrimentos atrozes como algo a ser deplo-
rado e, se possível, suprimido aparece na história por meio das imagens de
sofrimentos padecidos por uma população civil, nas mãos de um exército

182 8
vitorioso e furioso. Em 1633, Jacques Callot publicou uma série de 18 gra-
vuras em água-forte que representavam as atrocidades cometidas pelas tropas
francesas durante a invasão e a ocupação de sua cidade natal, Lorraine, no
início da década de 1630. Callot teve vários sucessores, sendo o mais impor-
tante Goya. Entre 1810 e 1820, Goya produziu a série Desastres de la Guerra,
composta por 83 gravuras em água-forte (só publicadas pela primeira vez 35
anos após sua morte). A série retratava as atrocidades perpetradas pelos solda-
dos de Napoleão que, com o intuito de sufocar a insurreição contra o governo
francês, invadiram a Espanha em 1808.
Nas imagens de Goya, a guerra não é um espetáculo. A série não consti-
tui uma narrativa: cada imagem, legendada com um comentário que poderia
ser do artista, se sustenta de forma independente das demais. O efeito cumu-
lativo é devastador. Narrativas podem nos levar a compreender. Imagens nos
perseguem. O relato das crueldades da guerra é construído por Goya como
um ataque à sensibilidade do espectador. As legendas constituem comentá-
rios provocadores, são uma voz que atormenta o observador. Elas não são
“neutras” ou informativas, mas sim, formas de estabelecer uma relação de
cumplicidade com o espectador. Funcionam como um contraponto das ima-
gens que – como toda a imagem – são um convite ao olhar. Elas insistem na
dificuldade desse olhar.
Esse foi também o objetivo da inclusão da legenda no pôster And
Babies, proposto pelo grupo de artistas nova-iorquinos Art Workers Coalition
como um protesto à guerra do Vietnã. À fotografia do massacre de My Lai,
tirada por Ron Haeberle em 1968, foram acrescidas as frases “Q: E os bebês?
R: E os bebês”. As frases abrem passagem para que as violências cometidas no
Vietnã por soldados norte-americanos invadam o cotidiano de seus conterrâ-
neos. O MOMA (Museum of Modern Art de Nova Iorque) prometeu editar
e divulgar o pôster, distribuindo-o e colocando-o na capa das revistas de arte
mais importantes dos Estados Unidos. Entretanto, ao ver a imagem, todos os
envolvidos retiraram o apoio, alegando que a ação estava fora das “funções
do museu”.
Mas, então, não cabe à arte contemporânea tratar de assuntos contro-
versos como a guerra, a tortura, a religião, a política? De que modo pode-se
deixar uma marca mais funda quando existe uma incessante exposição de
imagens vistas e revistas muitas vezes?
Atualmente, numa cultura radicalmente renovada pela ascendência de
valores mercantis, esperar que as imagens ainda abalem, clamem ou desper-
tem comoção parece apenas ingenuidade ou estratégia de marketing. Além
disso, obras “chocantes”, que utilizam imagens violentas ou perversas, podem
ser um tiro no pé, pois imagens objetificam. Elas transformam um fato, uma
pessoa ou uma relação em algo que se pode ter. Em mercadoria.
Afinal, quais são as características da vida de hoje que exigem uma tra-
dução para o plano simbólico? Não se pode tratar simplesmente de injustiças,
de guerras ou de discriminação, porque isso faz parte da trama da existência
social há muito tempo. O que caracteriza o tempo “contemporâneo” é a pre-
valência do fenômeno do fetichismo da mercadoria. Atualmente, quase toda
atividade social – e isso inclui a arte – toma a forma de uma mercadoria,
material ou imaterial. Não são as qualidades concretas dessas mercadorias que

8
183
decidem seu destino, mas a quantidade de trabalho nelas incorporadas, que
sempre se expressa em uma soma de dinheiro. Enquanto mercadorias, todos
os objetos e todos os atos são iguais, não passam de quantidades maiores ou
menores de trabalho acumulado e, portanto, de dinheiro. É o mercado que
realiza essa homologação, para além das intenções subjetivas dos autores. Os
homens veneram aquilo que eles próprios produziram, atribuindo a seus ído-
los – as mercadorias – uma vida independente e o poder de governar aqueles
que as criaram.
O reinado da mercadoria é terrivelmente monótono e sem conteúdo.
Uma forma vazia e abstrata, sempre a mesma, uma pura quantidade sem
qualidade – o dinheiro – se impõe pouco a pouco à multiplicidade infinita
e concreta do mundo. O capitalismo consome todo o mundo – no plano
social, ecológico, estético, ético – para transformar cada soma de dinheiro em
5 Anselm Jappe, Fin de la révolution et fin uma soma maior5.
de la fin de l’art?, in: Desformas / Sessão
Especial / A formação e a espada, São Paulo, Se a arte contemporânea quiser ser mais do que um ramo da indústria
trabalho não publicado, 2012.
cultural, ela deve levar em consideração essa perturbação da relação entre o
homem e seu mundo, que é a consequência da lógica da mercadoria.
Quero encerrar minha fala apresentando um filme curto de Jean-Luc
Godard, feito a partir de uma fotografia de Ron Haviv, tirada na Bósnia em
1992. No filme, Je Vous Salut Sarajevo, de 1993, Godard percorre a fotografia
com a câmera, acrescentando às imagens uma legenda sonora. Escutamos a
voz do diretor descrever, num breve monólogo poético, o lugar da arte em
meio à violência perpetrada pelo capitalismo. Godard deixa claro que reme-
morar é ser capaz de evocar a história contida numa imagem.

184 8
8
185

186
CO N F E R Ê N C I A S

A teoria queer: potencialidades metodológicas para pensar a arte e suas conexões


com a fotografia
ALEXANDRE SANTOS1

Resumo
Este artigo aborda a teoria queer como metodologia marcada pela incerteza epistemológica pós-estruturalista, propondo
relações entre este aporte teórico e as mudanças culturais da década de 1980, assim como aproximações com a história da
fotografia e a arte contemporânea que se apoia no signo fotográfico. A partir do conceito de dispositivo de Agamben e da
noção de regimes de verdade de John Tagg, a fotografia e a arte são pensadas como produtoras de discursos que implicam
relações de poder sobre as performatividades do corpo. Onde estaria o sentido potencial desta teoria e da arte que com ela
conversa? Ao institucionalizar as marcas do queer presentes em algumas fatias da produção artística contemporânea, ainda
seria possível perceber o sentido contradiscursivo do seu legado teórico e cultural?

Palavras-chave
Fotografia; corpo; teoria queer; arte contemporânea; discurso.

Nos primeiros minutos do filme Veludo Azul (1986), de David Lynch, 1 Historiador, crítico de arte e professor
de história da arte no Instituto de Artes da
o protagonista Jeffrey Beaumont (Kyle MacLachlan) pronuncia a frase “é um Universidade Federal do Rio Grande do Sul
- UFRGS.
mundo estranho” ao surpreender-se com a descoberta de uma orelha humana
no jardim de sua casa, fato que desencadeia uma série de ações do persona-
gem rumo à solução do mistério. Ainda que o cinema de David Lynch tenha
pouco a ver com a teoria queer, isto não quer dizer que a sua filmografia
não esteja marcada por uma espécie de cartografia de situações, vivências e
sensações que gravitam em torno do estranho que habita em nós. No célebre
ensaio de Freud de 1919, Das Unheimliche, no Brasil traduzido como O in-
quietante, mas que poderia também ser traduzido como O estranho, o autor
propõe que “inquietante é aquela espécie de coisa assustadora que remonta
ao que é muito conhecido, ao bastante familiar.”2 Nesta perspectiva, o pai da 2 Freud, Sigmund. “O inquietante”. In:
Sigmund Freud (1856-1939). Histórias de
psicanálise relaciona o estranho a uma desestabilização do familiar. uma neurose infantil: (“O homem dos lobos”):
além do princípio do prazer e outros textos
A construção cultural da palavra queer, (de certo modo - tirar), dialoga (1917-1920). São Paulo: Companhia das
com esta ideia, tanto no que concerne ao seu sentido coloquial, quanto no que Letras, 2010, p. 331.

diz respeito ao repúdio, à diferença que ela abriga. Queer é um modo pejora-
tivo para se referir a pessoas que não se enquadram nos padrões. Sua definição
no (de) dicionário passa por expressões como “esquisito, ridículo, fantástico,
estranho”, mas também estabelece relações mais drásticas, podendo significar
“adoentado”, noção que se aproxima do seu uso verbal ligado a palavras como
“estragar, arruinar, embaraçar, desconcertar”. Já as derivações queerly e que-
erness apontam para a ideia de “singularidade, esquisitice e excentricidade”.3 3 Novo Michaelis: Dicionário Ilustrado –
Volume I. São Paulo: Melhoramentos, 1982,
Se todas estas variações do termo sempre estiveram presentes no plano p. 760.
discursivo e em manifestações artísticas e culturais desde o Renascimento,

8
187
inclusive acompanhando a história da fotografia desde o século XIX, é, (en-
tretanto), ao longo das décadas de 1980 e 1990 que a expressão queer adquire
um sentido diverso com o processo de politização trazido pelas comunidades
que configuram a sigla LGBT – lésbicas, gays, bissexuais, transgêneros (con-
siderando neste último nicho, além dos próprios transgêneros, os transsexu-
ais, travestis, crossdressings, drag queens e drag kings). Obviamente o cenário
que propiciou esta nova politização relaciona-se ao advento da AIDS, a qual,
como lembra Susan Sontag, por se tratar de uma doença associada à culpa
4 SONTAG, Susan. AIDS e suas metáforas. São sexual, “deu origem a fobias e temores de contaminação infundados” 4.
Paulo: Companhia das Letras, 1989, p. 33.
Ao mesmo tempo, a epidemia escancarou a omissão dos governos, re-
5 Segundo Florence Tamagne no lacionada à sua rápida estigmatização como câncer gay5, o que encobria certo
livro Mauvais genre? Une histoire des
représentations de l´homosexualité. Paris: Ed desejo implícito de obliteração de uma comunidade desagradável aos olhares
LM, 2001 , p. 238, a ideia de um “câncer gay”
chegou a ser veiculada já desde a primeira
conservadores e, por isto, vítima da invisibilidade social e ausente dos dis-
notícia sobre a AIDS, de 1981, publicada pela cursos oficiais. Contudo, pode-se dizer que o saldo positivo da AIDS foi o
revista da agência epidemiológica federal,
Centers of Disease Control, de Atlanta, ativismo e as novas estratégias que a doença abriu para o corpo como lugar
Morbidity and Mortality Weekly Report.
Contudo, foi somente em 1983 que foi de disputa política6, ao levantar publicamente o discurso tangenciado pela
descoberto, pelo Instituto Pasteur de Paris, o
vírus do HIV.
heteronormatividade ou heterossexismo, termos, aliás, resultantes da politização
queer em sua cruzada contra a naturalização das identidades.
6 TAMAGNE, idem., p. 236. Organizações coletivas, como as americanas GMHC (Gay Men´s
Health Crisis - 1984), ACT UP (1987), Grand Fury (1988) e Queer Nation
(1990) ou a britânica Out Rage (1990) centraram sua plataforma de luta na
visibilidade de sua existência ao organizarem os chamados die ins, kiss ins e ao
promoverem os outings. Na estratégia de teatralização das comunidades en-
volvidas, doença e diferença se misturam como instrumentos para escancarar
a negação do seu direito à fala e visibilidade social, bem como a sua “negação
epistêmica”. Conforme Butler,

a atuação hiperbólica da morte em die-ins e a exterioridade teatral


mediante a qual o ativismo queer rompeu com a distinção encubridora
entre o espaço público e o privado fizeram proliferar lugares de politi-
7 BUTLER, Judith. Cuerpos que importam: zação e uma consciência da AIDS em toda a esfera pública.7
sobre los limites materiales y discursivos del
“sexo”. 2ª ed. Buenos Aires: Paidós, 2008,
p. 327. A estratégia de nominar-se a partir do insulto e incorporar, literal-
mente, o lugar do “corpo abjeto” propõe um patamar político mais avançado
de discussão da diferença, que vai além dos ativismos identitários dos anos
60 e 70. Segundo Florence Tamagne, o termo queer “não pretende aplicar-se
unicamente aos gays e lésbicas, mas se propõe a ser uma categoria política
universal, aberta a todos aqueles que resistem às injunções categoriais de sexo
8 TAMAGNE, op. cit., p. 236. e de gênero.8 Como se vê, o alargamento da nossa compreensão sobre sexo,
sexualidade e gênero vem acompanhado da incorporação paulatina de outras
diferenças e desigualdades. Deste modo, o queer lida com situações que se
apresentam em zonas de fronteira e relaciona-se, portanto, às manifestações
culturais que fogem às lógicas simplistas e às rotulações conformadas à tradi-
ção do pensamento científico moderno.
Inspirada pelo ativismo queer, que assume deliberadamente uma posi-
ção não assimilacionista e não normativa de acentuação da diferença, a teoria
queer surgiu no ambiente acadêmico dos Estados Unidos na década de 1990
através de intelectuais relacionadas ao pós-feminismo, como Eve Kosofsky
Sedgwick, Teresa de Lauretis e Judith Butler. A sua proposta também res-

188 8
guarda um viés anárquico semelhante, pois a diversidade que compõe a sigla
LGBT escoa para os estudos queer, os quais constituem um corpo teórico não
necessariamente coeso, uma vez que lida com uma perspectiva pós-identitária
e não excludente. Uma das pioneiras do estudo da teoria queer no Brasil,
Guacira Lopes Louro sugere a partir de Steven Seidman alguns elementos co-
muns que ancoram os interesses de seus estudiosos: 1. o apoio na teoria pós-
-estruturalista francesa e na noção de desconstrução como método de crítica
literária e social; 2. a afinidade com uma estratégia descentrada que escapa às
proposições políticas programáticas positivas; e 3. a compreensão do social
como um texto a ser interpretado e criticado, com o propósito de contestar
os conhecimentos e as hierarquias sociais dominantes.9 9 LOURO, Guacira Lopes. Um corpo estranho:
ensaios sobre sexualidade e teoria queer. Belo
Para a mesma autora, considerar o queer como uma espécie de guarda- Horizonte: Autêntica, 2004, p. 39.
-chuva que abriga todas as identidades não heterossexuais e comportamentos
ou práticas que se desviam das normas regulatórias da sociedade talvez im-
plique uma redução do seu impacto. A autora prefere ver o queer como uma
espécie de “disposição existencial e política” e como um conjunto de saberes
que poderiam ser qualificados como “subalternos”, os quais se construíram e
se constroem fora das sistematizações tradicionais e são predominantemente
“desconstrutivos”, mais do que “propositivos”.10 10 Entrevista concedida por Guacira Lopes
Louro, in: Revista Cult – Dossiê Teoria Queer
Através do revisionismo da psicanálise, do pensamento hegeliano e do – São Paulo: Editora Bragantini, N. 193, Ano
pós-estruturalismo, Judith Butler propõe o questionamento do determinismo 17, agosto de 2014, p. 36.

biológico binário sustentado na fixidez das categorias homem versus mulher,


masculino versus feminino, heterossexualidade versus homossexualidade e
seus desdobramentos nas chamadas “performatividades” de gênero. Em sua
crítica à simplificação dual do corpo, a filósofa lembra que o modelo de famí-
lia celular heteronormativa realiza a legitimação do que ela chama de “corpos
que importam”. Sexo, sexualidade e gênero nada mais são do que o resultado
de construções culturais que geram expectativas discursivas e performáticas
sobre os corpos. Pronunciar que uma criança recém-nascida “é uma menina”
implica em um modo de inscrever-lhe uma identidade no plano discursivo
da cultura e também promover a “forclusão” de tudo o que ela não é e não
poderá ser: não é um menino, não é um hermafrodita, não é uma lésbica, não
é um transsexual.
Por abarcar em seu escopo de interesse todas as situações culturais à
margem dos discursos oficiais – ou seja, as existências que “não importam”
e, por causa disso, estão “forcluídas”, os estudos queer têm afinidades com os
aportes teóricos pós-colonialistas. Conforme postula Homi Bhabha, o pen-
11 BHABHA, Homi. O local da cultura. 2ª Ed.
samento sobre a “literatura mundial poderia ser o estudo do modo pelo qual Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2013, p. 36.
as culturas se reconhecem através de suas projeções de alteridade”11. E acres-
centa ainda a importância, para os estudos relacionados à crítica literária, da 12 Idem, p. 34. O autor faz referência
especial ao romance Beloved, de Toni
percepção do “pessoal como político”, assim como do espaço privado da casa Morrison, que revive o passado da escravidão
e seus rituais assassinos de possessão e
como suporte de inscrição e repetição do mundo coletivo12. autopossessão a fim de projetar a fábula
O intelectual indiano sugere ainda a necessidade de se dar uma pas- contemporânea da história de uma mulher.
Bhabha propõe, a partir de livro da feminista
sagem da cultura como epistemologia, e portanto como tendência a uma Carole Pateman em The disorder of women,
que se pense a “esfera doméstica atributiva”,
totalidade, para a cultura como “lugar enunciativo”, que configuraria um ou seja, que se considere nas análises aquilo
que geralmente é esquecido nas distinções
processo mais dialógico e liberal, com possibilidades de abarcar os desloca- teóricas baseadas no binarismo do público
mentos e realinhamentos, resultados de articulações culturais e do hibridismo versus o privado da vida civil, não como
oposições, mas sim como continuidades
cultural alternativo. Da articulação do presente enunciativo com a cultura complementares.

8
189
resultaria a transformação do “outro objetificado” em “sujeito de sua história
13 Idem, p. 241-242. e experiência.”13
A história da arte, pelo menos desde as vanguardas modernas, pro-
põe um direcionamento mais evidente para a alteridade em diversos níveis,
aspecto que se acentua na contemporaneidade artística e sua sensibilidade
quanto à vida do homem comum, como respostas às demandas culturais e
filosóficas que conformaram a pós-modernidade e a globalização cultural.
Olhar para o outro como uma forma de pensar o seu lugar já é uma maneira
de reinventar os planos discursivos historicamente consolidados. Este é um
aspecto que sempre esteve subjacente à produção artística, principalmente em
seus momentos de maior radicalismo, mesmo à revelia dos discursos oficiais
que tendem a promover o apagamento do seu sentido mais anárquico.
Butler afirma que, do mesmo modo que acontece nas performativida-
14 Para Butler, contudo, nem toda des corporais subversivas de drag queens e drag kings14 – nas quais a paródia
a performatividade é subversiva. A
performance de Dustin Hoffman no filme caricatural do corpo ligado às matrizes do feminino e do masculino serve
Tootsie, assim como a de Robin Willians em
Uma babá quase perfeita, não são de modo
como afirmação do “corpo-abjeto” –, também é necessário reterritorializar a
algum subversivas, uma vez que reforçam as noção de queer, termo empregado como forma de exclusão de um setor da
distinções existentes entre macho e fêmea,
masculino e feminino, gay e hetero. Apud sociedade para se converter em um lugar da resistência15. Quando a filósofa
Salih, Sara. Judith Butler e a teoria queer.
Belo Horizonte, Autêntica Editora, 2013, problematiza o uso da expressão queer, ela primeiramente pondera sobre a
p. 95.
carga histórico-discursiva relacionada ao insulto, mas também mostra que
15 BUTLER, op. cit., p. 325.
apropriar-se desta expressão não deveria incorrer em uma forma de esvazia-
mento político, justamente pelo ato de nomeação em si. Assim, ela defende a
necessidade de afirmar o queer como um lugar discursivo cujos usos não po-
dem ser previamente delimitados, “não apenas com o propósito de continuar
democratizando a política queer, mas também para expor, afirmar e reelaborar
16 BUTLER, idem, p. 323. a historicidade específica do termo”.16
Nos últimos anos, os estudos sobre fotografia têm insistido na impossi-
bilidade de traçar um discurso totalizante da sua história, bem como de buscar
para ela uma definição essencialista. Neste sentido, o conhecimento gerado
pelos estudiosos recentes da imagem fotográfica faz eco à produção crítica
do conhecimento das ciências humanas influenciada pelo pós-estruturalismo
e, por extensão, pela própria teoria queer, com suas respectivas relativizações
do saber. Uma nova história da fotografia, assim como uma teoria que a an-
core, parecem encaminhar-se para pensamentos que envolvem a pluralidade,
a fragmentação das experiências e a temporalidade não-linear.
A produção artística contemporânea, assim como o ambiente cultural
aberto para a expressão das alteridades, propiciam, por outro lado, o trata-
mento das relações que a imagem fotográfica engendra com a história cultural
e com a cultura visual. Assim, o signo fotográfico passa a ser indagado não
apenas pela visualidade que privilegia, mas também pela exclusão do invisível
17 MITCHELL, W. J. T. “No existen medios cultural que exclui17, pois o ato de ver não é uma ação ingênua. Ele traz no seu
visuales”, in: BREA, José Luis (Ed.). Estudios
visuales: la epistemología de la visualidad bojo uma “episteme escópica”, uma seleção daquilo que importa conhecer18.
en la era de la globalización. Madrid, Akal
Ediciones, 2005, p. 19. Michel Frizot faz uma distinção interessante entre a “cultura da fo-
tografia”, própria a um conhecimento da prática, e a “cultura induzida pela
18 BREA, José Luis. “Los estudios visuales: fotografia”. Esta última remete às divergências de apropriação entre a “cultura
por una epistemologia política de la
visualidad”. (Apud Brea, idem, p. 11. individual de uma técnica e uma cultura técnica coletiva”, ou seja, entre a
percepção que cada indivíduo pode ter da fotografia em uma determinada
época e o lugar que os artefatos fotográficos – máquinas fotográficas e ima-

190 8
gens visualizadas - ocupam nas diferentes sociedades19. O mesmo autor lem- 19 FRIZOT, Michel. “Fotografia: um
destino cultural”. In: SANTOS, Alexandre
bra ainda que, ao longo da história da fotografia, a sua consolidação cultural e CARVALHO, Ana Maria Albani (Orgs.).
Imagens: arte e cultura. Porto Alegre: Editora
como instrumento da verdade, principalmente nos meios de comunicação, da UFRGS, 2012, p. 29.
produziu um paralelismo entre reportagem escrita e reportagem fotográfica,
o qual reforçou a ambiguidade do radical “grafia” e ajudou a consolidar pouco
a pouco a imagem “fotográfica como uma forma de escrita”20. 20 Idem, p. 27.
Sendo a fotografia um grande disparador de discursos visuais sobre o
mundo, dando continuidade ao projeto enciclopédico do século XVIII21, o 21 ROUILLÉ, André. La photographie: entre
document et art contemporain. Paris: Editions
seu lugar na cultura faz alusão aos estudos de Michel Foucault sobre o dis- Gallimard, 2005.
curso. Para o filósofo francês, não por acaso um dos pilares teóricos principais
da própria teoria queer, subjacente a toda forma discursiva há uma “vontade
de verdade” que constitui um “campo de poder”22. Nesta ordem, os discursos 22 FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso:
aula inaugural no College de France
que se dedicaram à vontade de saber sobre a sexualidade no século XIX assim pronunciada no College de France em 2 de
dezembro de 1970. 20ª ed. São Paulo: Edições
o fizeram para sistematizar a inscrição histórica do corpo – como um saber/ Loyola, 2010, p. 19-20.
poder –, o qual ao mesmo tempo reforçava as práticas heteronormativas, em
detrimento das suas dissidências, sempre relegadas à ordem do patológico.
Segundo Foucault, o poder age “pronunciando a regra” e pelo simples fato de
enunciar gera “um estado de direito”23. 23 FOUCAULT, Michel. A história da
sexualidade 1: a vontade de saber. Rio de
Se “não há corpo que não seja feito na cultura; descrito, nomeado Janeiro: Edições Graal, 1988, p. 81.
e reconhecido na linguagem, através de signos, dispositivos, convenções e
tecnologias”24, a fotografia, como instrumento da cultura, cumpre um im- 24 LOURO, Guacira Lopes. Um corpo
estranho: ensaios sobre sexualidade e teoria
portante papel imagético na construção de discursos sobre o corpo. O foto- queer. Belo Horizonte: Autêntica, 2004, p. 81.
gráfico opera como um dispositivo debruçado sobre as tensões relacionadas
ao corpo, este receptáculo material tantas vezes convocado à construção de
saberes e poderes que delimitam os seus usos. Para Giorgio Agamben, a noção
de dispositivo compreende “qualquer coisa que tenha a capacidade de captu-
rar, orientar, determinar, interceptar, modelar, controlar e assegurar os gestos,
condutas, opiniões e discursos dos seres viventes.”25 25 São dispositivos não somente as prisões,
os manicômios, o panóptico, as escolas, as
Mas os dispositivos configuram relações de poder que se instauram de confissões, as fábricas, as disciplinas, as
medidas jurídicas, estudados por Foucault
forma difusa, não evidente. O poder capilar estudado por Foucault propõe (...) mas também a caneta, a escritura, a
que a verdade discursiva e o poder que ela instaura podem passar despercebi- literatura, a filosofia, a agricultura, o cigarro,
a navegação, os computadores, os telefones
dos, pois ambos – “vontade de verdade e poder” – são atravessados pela pró- celulares e, inclusive, a linguagem mesma,
a qual é para Agamben o mais antigo dos
pria noção “transcendental da verdade” e implicam a adesão tanto de quem dispositivos. Ver “O que é um dispositivo”,
in: Outra travessia – Revista do Programa
produz os discursos quanto de quem os consome. de Pós-Graduação em Literatura da UFSC.
Desde o advento de sua invenção, um dos temas mais representados Florianópolis, n 5, p. 13. Os grifos são meus.

pela fotografia foi o corpo, inicialmente através do retrato26, mas também em


26 Para John Tagg, no livro El peso de la
outras representações dele descendentes, como as imagens relacionadas aos representación: ensaios sobre fotografias
arquivos científicos das delegacias, hospitais, escolas e cárceres. Assim, a ima- y historias. Barcelona: Gustavo Gili, 2005,
p. 63., o retrato foi uma das formas mais
gem fotográfica não deixa de ser um dispositivo de vigilância sobre o corpo27, lucrativas da fotografia, tanto que 90 por
cento de todos os daguerreótipos produzidos
o qual traduz o saber científico nos processos de generificação e construção era de retratos.
idealizada de gestos e comportamentos referenciados no determinismo bioló-
gico. Para John Tagg, os “regimes de verdade fotográficos” não se deram ape- 27 TAGG, idem, p. 79.

nas pelo privilégio atribuído aos meios mecânicos nas sociedades industriais,
mas também pela sua mobilização junto aos aparatos de uma nova forma de
poder de Estado, ancorada no institucional, na ciência, na descentralização e
na disciplina28. 28 TAGG, idem, p. 82-83.
Cabe lembrar que na história da fotografia também existiram repre-
sentações discursivas dissidentes, (as quais - tirar) que promoveram pontu-

8
191
almente a desconstrução deste corpo disciplinado. Ao se disseminar no co-
tidiano, o signo fotográfico se torna, ao contrário dos seus usos pelo campo
institucional dos saberes, um contradispositivo potente de reconfiguração
e desconstrução do corpo via discurso oficial. Ou seja, o advento da foto-
grafia na história da cultura abrange contraditoriamente tanto um processo
de aprisionamento epistemológico do corpo quanto a sua própria liberação.
Processo semelhante se dá com a gradual desestruturação da tradição artística
29 Ver, por exemplo, o texto “Uma outra mais arraigada, ainda no século XIX29, acompanhada da própria falência da
história da arte?” de Annateresa Fabris, in:
Fotografia e arredores. Florianópolis: Letras autonomia do campo da arte, mudanças decorrentes da reprodutibilidade
Contemporâneas, 2009.
técnica, conforme já lembrava Benjamin no início do século XX30.
A própria ampliação de temas sobre o corpo que o advento da fo-
30 BENJAMIN, Walter. “A obra de arte na
era da reprodutibilidade técnica”, in: Walter tografia impulsionou, nos leva a reconhecer a presença do queer no signo
Benjamin – Magia, técnica, arte e política:
ensaios sobre literatura e história da cultura. fotográfico. A “forclusão” histórica dos discursos sobre os corpos de Butler
5ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1993. talvez tenha tido um lugar privilegiado nas manifestações subterrâneas que
o signo fotográfico engendrou, pelo menos desde a sua popularização no úl-
timo quartel do século XIX, conforme nos demonstram estudos como o de
31 DEITCHER, David. Dear friends: american Deitcher31 sobre a representação fotográfica ambígua da amizade e dos afetos
photographs of men together, 1840-1918.
Nova York: La Martinière, 2001. entre homens ainda no século XIX.
Em época de campanha eleitoral, alguns silêncios dos políticos – como
a criminalização da homofobia, a distribuição das cartilhas escolares frente à
livre orientação sexual, assim como a respeito do casamento homoafetivo e
sua consequente garantia de direitos – são sintomas de que ainda estamos em
um patamar parecido com aquele da invisibilidade discursiva relacionada à
diferença quando do advento da AIDS, na década de 1980. Não surpreende,
por outro lado, que o provedor de internet Terra convide ao internauta, em
recente configuração de sua página de abertura, que “veja os corpos mais es-
tranhos”. Embora os textos relacionados às imagens destes corpos estranhos
pretendam ter um caráter educativo, o enunciado da chamada é da ordem
da curiosidade que espetaculariza a diferença, aliás um aspecto presente em
incontáveis sites especializados neste ramo de sensacionalismo. Alguns dispo-
sitivos da imagem atuais operam como se ainda estivéssemos vislumbrando os
tentáculos do circo de horrores e dos freak shows, comuns em grandes cidades
desde o século XIX até bem avançado o século XX, questão que se pode per-
ceber nas imagens de Diane Arbus, mas ainda reincidentes no mundo virtual
da comunicação de hoje. Ver o diferente, de certo modo, continua sendo uma
diversão que esquadrinha o estranho para confirmar a regra.
Em um comentário publicado no caderno Ilustrada da Folha de S.
32 Folha de S. Paulo, 16 de junho de 2014, Paulo do mês de junho de 2014 (passado - tirar)32, o crítico de arte Nelson
p. E1.
Aguilar expõe sua preocupação no título da breve matéria que escreve sobre a
edição da Bienal de São Paulo daquele ano: “Bienal pode ficar mais próxima
do documental do que do artístico”. Ao apontar o trabalho dos peruanos
Giuseppe Campuzano e Sergio Zevallos, que usam a sua transsexualidade
como eixo, assim como o da brasileira Virgínia de Medeiros na mesma linha,
o evento poderia, segundo o comentarista, aproximar-se “perigosamente do
registro mais documental em detrimento do artístico”. Aguilar diz que “a sua
única ressalva é a de que a mostra pode se tornar algo que se sabe de antemão,
didática, quando arte é coisa em aberto”, pois, “ela não alveja”. O autor pon-
dera, ainda, o risco da Bienal ficar um pouco “trendy”, “dentro da linha que

192 8
está ocorrendo, alinhada com certo tipo de manifestação cultural”.
As preocupações de Aguilar apontam para o queer e também para a
sua recepção social no discurso de um campo específico, o campo da arte.
Um dos aspectos da politização queer é justamente o desejo de não enquadra-
mento ou assimilação social, assim como o rechaço à rotulação identitária.
Quando um artista se institucionaliza a partir de uma mostra internacional
de porte como uma bienal, há sempre o risco de, pelo fato de adentrar um
campo discursivo oficial, haver, ao contrário da preocupação de Aguilar, uma
perda da potencialidade do seu trabalho. Um exemplo bastante pertinente
é o de Alair Gomes na Bienal de São Paulo de 2012. Além das bastante co-
nhecidas Sonatinas, Four Feet, o seu trabalho mais potente Symphony of Erotic
Icons – desenvolvido entre 1966 e 1977 – foi mostrado pela primeira vez no
Brasil naquela edição do evento no último andar do Pavilhão do Ibirapuera,
juntamente com artistas ligados à fotografia e a temas afins aos do artista flu-
minense, como Marc Morrisroe e August Sander, entre outros.
Este trabalho de Alair é composto por 1765 fotos e nunca foi mostrado
institucionalmente durante a vida do artista, a não ser em sessões privadas
para poucos amigos em seu apartamento no bairro de Ipanema no Rio de
Janeiro, durante alguns dias seguidos. O ritual de assinatura de um termo se
comprometendo a participar das sessões de exposição privada da obra em sua
totalidade, proposto a uma seleta platéia de amigos, relaciona-se justamente
ao desejo do artista de mostrar o conjunto de imagens, considerando a sua re-
lação com uma sinfonia e com o efeito visual que este tipo de fruição poderia
causar no espectador. Aliás, uma preocupação central de Alair era que cada
um dos seus trabalhos com as sequências fotográficas não perdesse nunca a
totalidade narrativa, o que se pode perceber na preocupação sistemática do
artista em numerar e catalogar cada uma das suas “composições fotográfi-
cas”. Na Bienal de São Paulo daquele ano, assim como já havia ocorrido na
Fondation Cartier pour l´Art Contemporain, em mostra de 2001 em Paris, o
trabalho foi mostrado a partir de uma edição curatorial.
Ao questionar um dos curadores adjuntos da Bienal de São Paulo de
2012, André Severo, sobre a mostra parcial da Symphony of Erotic Icons jus-
tamente no país onde Alair viveu e onde seu espólio encontra-se depositado
por inteiro, ele mencionou a dificuldade dos trâmites de empréstimo total do
referido trabalho pela Fundação Biblioteca Nacional, responsável pela guarda
da obra do artista. Contudo, nas entrelinhas reticentes sobre o fato talvez se
possa inferir que as dificuldades encontradas para expor todo o trabalho te-
nham servido para um enquadramento institucional da arte de Alair Gomes,
através de um processo de higienização do seu potencial queer mais efetivo,
composto de eloquentes nus masculinos em estado de excitação, do que pro-
priamente um impedimento legal interinstitucional. No conjunto da Bienal
estes elementos mais polêmicos da representação do corpo masculino até se
fizeram presentes, mas esparsamente e com a perda da noção de conjunto. A
obra se tornou mais palatável e, contudo, menos vigorosa quanto à sua dis-
cussão relacionada à imagem e às políticas do ver.
Se há um reducionismo institucional da visibilidade de trabalhos
mais polêmicos quando falam sobre o desejo e sobre os diferentes embates
do corpo, como se percebe neste episódio de Alair Gomes na Bienal de São

8
193
Paulo, quais seriam então as potências do queer? Elas estariam ameaçadas
com a sua institucionalização? Por outro lado, incorreria o queer em excesso
de didatismo simplesmente por falar do corpo como um fenômeno não na-
turalizado, por exemplo, através do travestismo dos artistas que neste ano
participam da Bienal de São Paulo? Por que motivo o trabalho destes artistas
seria menos artístico? E discutir sobre o corpo e seus processos discursivos
não apresenta nenhuma relevância artística? Aliás, não terá sido sempre o
papel da arte a promoção do estranhamento sobre nossas convicções, funcio-
nando como um contradiscurso cultural e, portanto, como uma forma queer
de comentar o mundo para questionar aquilo que supostamente conhecemos
como “normalidade” ou “realidade”? E documentar se reduz apenas a mostrar
algo didaticamente?
Como se vê, os campos discursivos são depositários de saberes que estão
longe da neutralidade. Pensar metodologicamente o queer e sua presença na
arte é uma tentativa de entender de que modo o campo artístico relaciona-se
ou não com a historicidade e com as culturas subterrâneas através de algumas
perguntas: afinal, como a história da arte pensa o mundo? Como o mundo é
pensado por ela? Quais mundos cabem nela? O campo institucional da arte,
pulverizado pelos discursos oficiais, também vê a ultrapassagem das fronteiras
invisíveis do corpo como passíveis de forclusão, pois a “transgressão, o emba-
ralhamento e a confusão dos sinais considerados ´próprios´” aos “territórios”
33 LOURO, op. cit., p. 87. do corpo produz as marcas indesejáveis da “diferença ou do desvio”33. Este,
contudo, pode ser tolerado se estiver protegido sob a capa da metáfora.
Nossas instituições são promotoras da presença parcial da memória
histórica quando se trata de expressões da cultura queer. Isto quando não são
responsáveis pelo seu apagamento completo. Para Catherine Lord, a “cultura
queer é necessariamente uma colagem de fragmentos, animada por histó-
rias, minada de leituras próximas e baseada na inteligência e intensidade do
34 LORD, Catherine. “Inside the body politic: olhar”34. As destruições causadas pelos nazistas no arquivo do Instituto para
1980 – present”. In: Art and queer culture.
London/New York: Phaidon, 2013, p. 39. a Pesquisa Sexual de Magnus Hirshfeld na Alemanha são, como lembra a
mesma autora35, “atos de violência” histórica que atacam as possibilidades
35 LORD, Catherine, idem, ibidem. de memória ao promoverem o apagamento das culturas ligadas às bordas.
Culturas que não importam. Corpos que não importam.
Por outro lado, há ainda a história da arte que, neste momento, se in-
tersecciona mais do que nunca com a história do visual. É preciso reinventar
metodologias para lidar com estas zonas de confronto. Mas, sobretudo, é ne-
cessário rever a postura metodológica acompanhada de uma revisão dos tabus
presentes na academia e no circuito da arte. Douglas Crimp, ativista queer nos
primórdios da AIDS e autor de textos importantes em perspectiva queer, lem-
bra a necessidade de acompanhar com novas metodologias o impacto causado
por obras polêmicas como a de Robert Mapplethorpe, partindo da adoção de
uma postura da crítica que consiga ir além da simples rotulação do desejo ou
da guetização deste tipo de arte. Segundo ele, “a fotografia sempre ultrapas-
sará as instituições de arte, sempre participará de práticas não artísticas, será
36 CRIMP, Douglas. Sobre as ruínas do museu. sempre uma ameaça à insularidade do discurso da arte”36.
São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 122.
É importante nesta empreitada considerar o legado de Butler quando nos
fala que os corpos importam e sua capacidade de importar pode se estabelecer
em vários fluxos discursivos. Deste modo, precisamos mudar a ordem de im-

194 8
portância protagonizada pelo determinismo biológico e tudo o que ele induz.
E apostar em saberes que se constroem com a consciência de sua parcialidade,
de seu estar entre lugares, saberes nômades, como a cultura queer e como é o
caso da própria fotografia e seu lugar incerto na história da arte – no espaço
“entre” documento e arte. Em seu Manifiesto Contrassexual, Beatriz Preciado
lembra a partir de Foucault que a forma mais eficaz de resistência à produção
disciplinar da sexualidade em nossas sociedades liberais não é a luta contra
a proibição (como apostavam os movimentos de liberação sexual dos anos
1960), mas a “contraprodutividade”, ou seja, a produção de formas de saber-
-poder alternativas à sexualidade moderna.37 37 PRECIADO, Beatriz. Manifiesto
contrasexual. Barcelona: Editora Anagrama,
2011, p. 13-14.

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196 8
8
197

198
CO N F E R Ê N C I A S

A fotografia de Luiz Carlos Felizardo: Fotodocumentarismo no Brasil nos anos


1970 e 1980
CHARLES MONTEIRO1

Resumo
O objetivo do texto é pensar sobre a trajetória, os projetos, os temas e a linguagem da fotografia de Luiz Carlos Felizardo no
contexto de reorganização do campo e do estatuto da fotografia no Brasil nos anos 1970 e 80, relacionando-a as tendências
internacionais da fotografia documentária.

Palavras-chave
Fotografia documentária; Luiz Carlos Felizardo.

A reorganização do campo da fotografia 1 Charles Monteiro é doutor em História


Social pela Pontifícia Universidade Católica
O campo da fotografia no Brasil nos anos 1970 conheceu um processo de São Paulo (2001) com bolsa sanduíche na
Université Lumière (Lyon 2) e pós-doutorado
de expansão, profissionalização e institucionalização, tanto no campo jorna- em História Cultural e Social da Arte na
lístico quanto no campo artístico. Segundo Tadeu Chiarelli (2002, p. 132), Université Paris 1 (Panthéon - Sorbonne).
É professor adjunto no Departamento de
a partir dos anos 1950 a fotografia assumiu definitivamente o lugar das artes História e atua nos Programas de Pós-
Graduação em História e em Letras da
plásticas na missão de constituir uma imagem do Brasil e dos brasileiros. PUC-RS, onde ministra seminários e orienta
pesquisas de mestrado e doutorado.
Os fotógrafos engajaram-se na construção de uma nova visualidade
para a nação, muito distinta daquela exibição de belezas naturais, dos prodí-
gios da modernização e do desenvolvimentismo que marcaram os anos 1950.
No final dos anos 60, surgia nas redações dos grandes veículos da im-
prensa uma nova “geração” de fotógrafos, que se engajou tanto nas lutas pela
abertura política quanto pela valorização e organização da profissão de fo-
tógrafo na imprensa. Os fotojornalistas lutavam pela publicação do nome
dos autores das fotos, elaboração de uma tabela de honorários, garantia da
posse dos negativos e possibilidade de proporem pautas para as coberturas
fotojornalísticas (BENEDICTO,1983, p.150-151). Segundo Coelho (2006,
p. 92), essa seria a primeira geração de fotógrafos brasileiros provenientes das
camadas médias urbanas e com formação universitária.
Na década de 1970, inicia-se um período de institucionalização do
campo com a criação do Núcleo de Fotografia da Fundação Nacional de
Artes FUNARTE (em 1979, com sede no Rio de Janeiro) e, posteriormente,
Instituto Nacional da Fotografia (INFOTO, em 1984). A valorização da
fotografia no plano internacional e nacional, bem como a mobilização dos
profissionais levou o governo a criar um órgão público responsável por criar

8
199
e gerir uma política nacional para a fotografia (Coelho, 2006, p. 96). A pre-
ocupação desses profissionais era com a preservação de acervos fotográficos
que permitissem refletir sobre a história do Brasil e também de estabelecer a
fotografia no campo das artes. Para tanto, propunham a organização de expo-
sições, a publicação de livros, a realização de encontros regionais e seminários
nacionais para discutir e implementar políticas públicas para a fotografia.
Outra grande questão é a reivindicação de autoria pelos fotógrafos nos
anos 1970 e 80. Um movimento que pode ser observado tanto na França
quanto na América Latina. Frente à crescente homogeneização e massificação
do fotojornalismo, os fotógrafos procuravam afirmar um espaço de liberdade
e de criação, que se traduziu em uma reivindicação autoral de suas imagens:
assinar as fotografias, zelar pela publicação das imagens sem alterações, gerir
os negativos, receber pela revenda das imagens a outros veículos, etc..
O jornal e a revista nem sempre foram os melhores espaços de expres-
são da criatividade, da renovação da linguagem fotográfica e a afirmação da
figura de autor para os fotógrafos. As exposições coletivas e individuais, as
publicações de catálogos e, especialmente, de livros de fotografia por editoras
independentes, foram as alternativas para a afirmação dessa figura de autor.
Os anseios individuais dos fotógrafos tornam-se coletivos e encontram seu
veículo de expressão nos sindicatos de fotógrafos e, sobretudo, no Instituto
de Fotografia da FUNARTE de 1984.
Ao lado das políticas públicas para a área criadas pela Funarte, também
a iniciativa privada e o mercado de arte começaram a valorizar e ampliar os
espaços para a fotografia, como forma de expressão artística. Grandes em-
presas patrocinaram mostras nacionais, como Kodak, Curt e IBM. Surgiram
galerias especializadas em fotografia como a Fotoptica (SP, 1979-1996), Luz e
Sombra (RJ, 1979), Álbum (SP, 1980-1982), Sala de Retratos (Porto Alegre,
anos 1980) e Fotogaleria Gentil Barreira (Fortaleza, 1985-1989), organi-
zando mostras coletivas e individuais (Peregrino; Magalhães, 2004, p. 94).
A crítica e a história da fotografia também se desenvolvem nas páginas dos
jornais Folha de São Paulo, com artigos de Boris Kossoy, e o Jornal do Brasil,
na coluna de Roberto Pontual. O jornal Folha da Manhã de Porto Alegre pu-
blicava aos sábados a seção “Fotografia” sob responsabilidade de Luiz Carlos
Felizardo.

A Fotografia Documentária
Segundo Lugon (2007, p. 363), não há um consenso na historiografia
sobre o uso do termo “documentário” em fotografia e a propagação de seu uso
está relacionada a essa acepção difusa. O único elemento comum entre essas
inumeráveis definições é a reivindicação genérica de um respeito ao objeto
mostrado, o desejo de dar a ver “as coisas como elas são”, evitando todo o em-
belezamento que viria a alterar a integridade do real. A partir daí, as posições
divergem muito.
Este autor destaca três grandes vertentes da fotografia documentária:
a tendência enciclopédica e pedagógica, a linha patrimonial e a veia social.
Reunida sob o mesmo vocábulo e por uma fé comum na capacidade das
imagens de transmitirem um saber útil à comunidade, elas se sustentam sobre
determinações muito diferentes e mesmo antagônicas. As duas primeiras fo-

200 8
ram fundadas sobre um gesto de adesão – fotografar para conservar (na linha
de Eugène Atget) -, a última sobre um gesto de rejeição – fotografar para
transformar (na linha de Lewis Hine).
Para Lugon (2007, p. 404), é ao redor dos dois primeiros projetos, o
enciclopédico e o patrimonial que, desde o fim do século XIX, um discurso
documentário começa a se estruturar no meio dos fotógrafos. A partir dos
anos 1930, ao contrário, é a acepção social e política que ganha incontesta-
velmente destaque, dominando a compreensão do termo até hoje. Esse deslo-
camento semântico está fortemente marcado pela influência anglo-saxônica.
É nessa época que no cinema primeiramente, e depois na fotografia, os auto-
res britânicos e americanos se apoderam do vocábulo francês “documentaire”
transformando-o em “documentary”, designando uma categoria de obras des-
tinadas à descrição do mundo contemporâneo e da realidade social em par-
ticular. O termo carrega uma conotação moral e política positiva associada à
ideia da busca pela verdade e de engajamento no real.
Lugon (2007, p. 406), afirma que além do desejo partilhado de fi-
delidade ao real e de uma utilidade pública das imagens, existe um aspecto
que reúne as diferentes direções do discurso documentário que é o de se de-
senvolver sempre em oposição ou em referência à fotografia de arte ou um
certo estado da fotografia de arte, com a qual ele gostaria de romper. Esse é o
paradoxo fundamental desse discurso: a divisa documentária que poderia ser
em certa medida tomada como antônimo de artística é, essencialmente, uma
emanação do campo artístico.
Nos anos 1970, a vocação documental associada à ideia de realismo
e à aderência do referente à fotografia entra em declínio frente à hegemonia
do formato jornalístico televisivo e o deslocamento dos anunciantes para esse
novo meio. A fotografia passa a ser compreendida como uma forma de in-
terpretação, recriação e atualização do real. A nova concepção de fotografia
documentária abriu espaço para a expressão da subjetividade pelos fotógrafos
documentaristas. O que também termina por aproximar a fotografia docu-
mental do campo da arte (ROUILLÉ, 2009, p. 135-159).
Os anos 1970 e 80, na França, caracterizam-se também por uma vi-
rada no campo e no estatuto da fotografia, que passa a integrar as instituições
de arte contemporânea. Em 1981, a cultura torna-se uma prioridade do go-
verno francês através da implementação de uma política de reconhecimento
de práticas anteriormente consideradas menores ou populares, entre elas a
fotografia. Entre as iniciativas pode se arrolar a criação do Instituto Nacional
de Fotografia, da Escola de Fotografia e do Festival de Arles, da Maison
Européenne de la Photographie, do Mois de la Photo e da Paris Photo entre
outros (MOREL, 2006, p. 17-47).
A Missão fotográfica Délégation Interministérielle à l'Aménagement
du Territoire et à l'Attractivité Régionale DATAR (1983-1989), do
Departamento de Gestão do Território Francês, participou ativamente do
processo de reconhecimento institucional da fotografia ao contratar um
grupo de 12 jovens e promissores fotógrafos para atuarem ao lado de nomes
já consagrados da fotografia para um vasto projeto de levantamento e criação
de uma nova imagem do território francês.
A Missão Fotográfica DATAR inseriu-se num amplo movimento de

8
201
questionamento político sobre o território na década de 1980, em torno da
noção de paisagem. Um movimento interdisciplinar em torno deste conceito
surge na Europa a partir do final da década de 1970, quando a euforia do
desenvolvimento industrial e social dos “Trinta Gloriosos” deixa espaço para
uma preocupação ambiental e uma busca da identidade dos territórios.
Segundo Bertho (2013, p. 115-116), a paisagem torna-se o ponto de
convergência e de tradução de todas estas questões. Ela permite refletir sobre
as mudanças visíveis e sensíveis, fornecendo um mapeamento dos elemen-
tos do território. A paisagem parecia oferecer um ponto de vista específico,
ancorado no espaço e no tempo. Sintomático da relação do homem ao seu
ambiente, a paisagem é considerada como uma prática do espaço, como uma
construção cultural.
2 Bernard Latarjet nasceu em 1941. Os responsáveis pela Missão fotográfica da DATAR2 reivindicam
Engenheiro rural, de água e florestas,
ele começou sua carreira, em 1968, no desde o início do projeto uma filiação especifica ao fazer referencia a projetos
Departamento de Agricultura. François Hers
é um fotógrafo belga nascido em 1943,
emblemáticos da história da fotografia: a Missão Heliográfica de 1851, as
que vive e trabalha na França desde 1968. expedições americanas da “Nova Fronteira” do fim do século XIX e a Farm
Co-fundador da cooperativa de fotógrafos
Viva, em 1972. Nos anos 1970, ele começou Security Administration (1935-1942).
a realizar reportagens fotográficas que lhe
permitiram viajar e questionar o cotidiano, Os fotógrafos da Missão fotográfica da DATAR produziram uma re-
a paisagem e o meio social.Cf. http://
missionphoto.datar.gouv.fr/fr/content/la-
presentação original do território, por um lado, herdeira da estética docu-
question-du-paysage Acesso: 16/9/2014. mental da década de 1930 e, por outro, contemporânea aos trabalhos dos
fotógrafos americanos da New Topographics Photography das décadas de 1960
e 70. Centrados em uma paisagem de todos os dias, alguns revisitaram as
categorias convencionais (campanha, paisagem de montanha ou mar), en-
quanto outros privilegiaram a periferia das grandes cidades (sobretudo a
Região parisiense) e as novas estruturas arquitetônicas industriais, burocrá-
ticas e os novos espaços de consumo (grandes conjuntos comerciais e de en-
tretenimento). Privilegiaram em sua abordagem os lugares desgastados pelo
olhar, pelo hábito, provocando um deslocamento da representação tradicio-
nal do território.
A imprensa constituiria o canal ideal de difusão, porém ela estava fora
do controle dos fotógrafos e dominada pela lógica do dinheiro e da publi-
cidade. É então que o livro transforma-se num espaço privilegiado da arte
fotográfica documentária, permitindo escapar do fetichismo da tiragem iso-
lada e da pressão dos mass media. Uma forma de mostrar essas obras para um
público amplo sem perder o controle intelectual e artesanal sobre elas.
No Brasil, nos anos 1970 e 80, uma nova geração de fotógrafos vai
dirigir o seu olhar para as paisagens do campo e da cidade visando pensar o
território e suas transformações no seio de um processo mais amplo de desen-
volvimento capitalista, industrial e urbano acelerado. Entre eles, Luiz Carlos
Felizardo, desenvolveu ensaios autorais de fotografia documentária.

A trajetória e a obra de Luiz Carlos Felizardo


Luiz Carlos Felizardo nasceu em Porto Alegre em 1949. Estudou mú-
sica na escola e chegou a considerar a carreira de concertista. Em 1968, in-
gressa no curso de Arquitetura da Universidade Federal do Rio Grande do
Sul UFRGS. Em 1970, começa a trabalhar para agências de publicidade e de
propaganda. Em 1971, se junta a três colegas de faculdade para criar a agência
de programação visual Signovo. Em 1972, compra sua primeira câmera de

202 8
grande formato (4 x 5 polegadas) e abandona o curso de Arquitetura para
dedicar-se exclusivamente à fotografia (VASQUEZ, 2011, p. 11-12).
Entre 1973 e 1975, a convite de Assis Hoffmann, trabalha na Agência
Focontexto. A convite de Hoffmann, que era Editor de Fotografia da
Companhia Jornalística Caldas Júnior, Felizardo assinava duas páginas sobre
fotografia aos sábados no jornal Folha da Manhã. Entre 1974 e 75, abordava
na seção “Fotografia” o trabalho de ícones da história da fotografia e a obra
dos principais fotógrafos brasileiros do período. A seção também discutia
questões técnicas, a profissionalização do fotógrafo e promovia concursos de
fotografia.
Essa atividade de reflexão sobre a fotografia brasileira inspiraria, pos-
teriormente, à publicação de dois livros, que reuniram ensaios escritos nas
décadas de 1990 e 2000 para jornais e revistas: Relógio de Ver (2000) e Imago
(2010).
Em 1975, em Porto Alegre, realiza sua primeira exposição individual
no Instituto dos Arquitetos do Brasil (IAB), Seção Rio Grande do Sul. No
ano seguinte, o IAB o contratou para realizar uma pesquisa de documentação
da arquitetura regional, que daria origem a Mostra Preliminar de Arquitetura
Desenvolvida no Espaço Sul-Rio-Grandense.

...junto com Curtis [Júlio Nicolau Barros de Curtis], que foi meu pro-
fessor de Arquitetura Brasileira, nós fizemos um trabalho na IAB [Ins-
tituto dos Arquitetos do Brasil – Seção RS], que era sobre a Arquite-
tura Histórica do Rio Grande do Sul. E eu fiz, na época foi a primeira
vez que eu fiz isso aí, fiz uma longa viagem sozinho pelo Rio Grande
do Sul. De carro. Eu saí pra Caxias, entrei pro lado da Colônia, fui
para Bom Jesus, de lá fui para Vacaria. Aí eu saí por cima e... E eu fiz
um trabalho no qual pouca coisa restou, pouca coisa que interessasse.
Mas, eu fiz alguns registros bem importantes, inclusive, de Porto Ale-
gre (FELIZARDO, 2013).

Em 1980, Felizardo realizou quatro exposições individuais na


Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da UFRGS, numa série de ensaios
de documentação fotográfica sobre a arquitetura “vernacular” e a paisagem
sul-rio-grandense3. Utilizando uma câmera de grande formato (4 x 5 pole- 3 Arquitetura vernacular: O termo
"vernacular" deriva do latim vernaculu, que
gadas), ele percorreu o interior do Rio Grande do Sul (Campanha e Serra) e significa doméstico, nativo, indígena. Surgiu
o litoral de Santa Catarina fotografando paisagens e arquiteturas singulares. a partir da palavra "verna", que significa
"escravo nativo" ou "escravo nascido
Sua formação inicial em arquitetura, seus trabalhos de documentação arqui- em casa", próprio da região. Na História
da Arquitetura, refere-se a um tipo de
tetônica e a qualidade técnica de sua fotografia, o credenciaram a realizar arquitetura local ou regional, que emprega
materiais locais, técnicas tradicionais ou
vários trabalhos de documentação da restauração de prédios de significado populares e não está submetida aos cânones
histórico e cultural em Porto Alegre (Teatro São Pedro; Banco Nacional do da arquitetura acadêmica (Cf. Teixeira, 2008).

Comércio/Santander Cultural, Usina do Gasômetro Centro Cultural) e São


Paulo (Estação Júlio Prestes/Sala São Paulo).
A partir de 1983, o Infoto realizou uma série de mostras coletivas re-
gionais (1983-89) e as Semanas Nacionais da Fotografia em vários estados
(RJ, DF, PE, PA, PR, MG e SP). As semanas promoviam cursos, palestras,
exposições e publicações de catálogos, que permitiam aprofundar o debate e
o intercâmbio entre fotógrafos (COELHO, 2006, p. 96). Foram instituídos
prêmios e criados dois programas de bolsas para estimular projetos na área de

8
203
ensaio, documentação, monografias e processos alternativos. Nos anos 1980,
Felizardo participou das Semanas da Fotografia promovidas pela FUNARTE
e realizou uma série de exposições individuais pelo Brasil.
Em 1984, recebeu uma bolsa CAPES/Fullbright para estudar nos
Estados Unidos. Lá foi aluno de Frederick Sommer, em Prescott (Arizona).
Experiência que marcaria a sua forma de pensar e criar fotografia.
Os grandes temas que atravessam a trajetória fotográfica de Luiz Carlos
Felizardo são a arquitetura, a paisagem e a cidade. Além destes temas, ele
também realizou experimentações sobre negativo inspiradas no trabalho de
Frederick Sommer e, eventualmente, montagens.
No âmbito da técnica, Felizado prefere usar câmeras de grande for-
mato, com tempo mais longo de exposição e profundidade de campo, bus-
cando um equilíbrio suave entre as luzes e as sombras. Explorando a riqueza
dos meios tons, a fina gradação de tons de cinza. A sua característica principal
é o rigor na composição, na construção da estrutura das imagens, na explora-
ção de texturas, das luzes e das tonalidades. Segundo suas próprias palavras:

“Durante muitos anos, as ampliações das fotografias que eu fazia fica-


ram conhecidas pelo controle rigoroso das tonalidades e pelos detalhes
minuciosos obtidos pelas câmeras de grande formato, preservados e
acentuados em cópias bem pequenas. Fiz isso por 20, 30 anos, e conti-
nuo satisfeito com os resultados que obtive. Na verdade, nunca pensei
em abandonar esse caminho. Mas a fotografia dá espaço, também, a
outros tipos de latência, como a que permite que os negativos fiquem
adormecidos por muito tempo, preservando imagens que só irão nas-
cer muitos anos depois de concebidas ou que as fotografias venham
a receber novas interpretações, que alterem não só a estrutura criada
pela distribuição das tonalidades como o próprio tamanho da imagem
final” (Site de Luiz Carlos Felizardo, Exposição, Pau e Pedra – www.
luizcarlosfelizardo.com ).

À tomada das imagens segue-se um delicado trabalho de laboratório.


O princípio que ele usava era o de expor as sombras e revelá-las com as outras
luzes. Felizardo buscou através desse rigor, construir imagens de grande de-
licadeza, valorizando e conferindo importância à paisagem, à arquitetura ou
ao objeto fotografado.
A fotografia de Felizardo pode ser relacionada à tradição da fotogra-
fia documentária americana pela escolha estética de trabalhar apenas com o
preto e branco. Suas imagens de documentação arquitetônica vernacular e
suas imagens urbanas dialogam com a fotografia de Walker Evans. Em outros
ensaios sobre a paisagem rural e de rochas, aproxima-se da fotografia produ-
zida por Ansel Adams e Frederick Sommer.
Porém, a fotografia de Felizardo é o oposto da concepção de “momento
decisivo” de Henri Cartier-Bresson e do fotojornalismo inspirada nessa con-
cepção. A sua prática fotográfica se caracteriza por outra relação com a tem-
poralidade. Praticamente nada acontece em suas fotografias que tratam de
vestígios e de indícios de presenças. Elaboram um tempo que se distende e se
alonga na tomada da imagem e que exige uma contemplação mais demorada.
Há um paralelo entre Luiz Carlos Felizardo e sua fotografia – ambos
falam pelos seus silêncios. Em sua fotografia, tudo é sugestão, alusão. Ela pro-

204 8
voca um efeito no observador pelo que não diz ou não mostra abertamente.
Como expressar uma ausência? Como se expressar através de uma ausência?
Do diálogo entre o visível e o invisível?
Poder-se-ia colocar a questão das invisibilidades em suas imagens: há
poucas pessoas em sua fotografia, quase nada da modernização, da transfor-
mação da cidade, da miséria, das migrações. Temas ausentes em sua fotogra-
fia, embora estes tenham sido importantes na fotografia documentária brasi-
leira dos anos 1970 e 80.

Fig. 1. Luiz Carlos Felizardo. Cemitério em Santa


Bárbara do Sul (1974). Coleção: Masp-Pirelli.

Talvez a fotografia mais conhecida de Luiz Carlos Felizardo seja


Cemitério em Santa Bárbara do Sul (1974). A obra enquadra um pequeno
cemitério com seus túmulos e lápides brancas em meio ao campo. A ima-
gem é impactante pelo tema, pela beleza plástica das luzes de um entardecer
ensolarado, atravessando espessas nuvens, incidindo sobre as tumbas caiadas
de branco em meio à imensidão do pampa. Imagem de grande equilíbrio
construtivo entre a claridade do sol, a imensidão da terra escura a perder-se
no horizonte, as tumbas brancas e uma estrada que partindo do primeiro
plano, contorna o cemitério e se estende em diagonal para além, onde o olhar
não alcança.
A imagem dialoga com a história da arte e, em especial, com a história
da fotografia. No final do século XIX, David Octavius Hill fotografava seus
modelos em cenas posadas num cemitério. Em 1936, Walker Evans produ-
ziu uma fotografia icônica de um cemitério em frente às chaminés de uma
fábrica: Bethlehem, Pensylvania.
No caso de Felizardo, pode-se pensar na curta duração de uma vida
frente ao tempo e a imensidão do espaço, a luta pela conquista da terra
nas fronteiras do Brasil Meridional, as origens rurais da sociedade sul-rio-
-grandense. O tema é retomado nas obras “Camping e cemitério” (1979),
Cemitério no Salto (1987) e “Linha Imperial” (1992), bem como de forma
indireta em outras séries (Felizardo, 2011).

8
205
Segundo Felizardo, “a paisagem [é] sempre e necessariamente um fato
cultural, inclusive aquela chamada de paisagem natural -... ainda que às vezes
fotografe rochas ou florestas, que não foram alteradas pela mão humana, meu
interesse principal é a paisagem vernacular” (PERSICHETTI & TRIGO,
2004, p. 9). Por paisagem vernacular Persichetti & Trigo (2004, p. 9) com-
preendem “milhares de pequenas e empobrecidas paisagens, organizando e
utilizando espaços em suas formas tradicionais, vivendo em comunidades go-
vernadas pelo hábito e mantidas pelas relações pessoais” (IDEM).
Outro de seus trabalhos mais conhecidos é composto por séries de
imagens produzidas em diferentes épocas sobre a Missão Jesuítica de São
Miguel (Brasil/RS). A relação de Felizardo com as Missões de São Miguel está
ligada a história de sua família. Alfredo Felizardo, pai de Luiz Carlos, traba-
lhava no Departamento de Terras e Colonização do Estado do Rio Grande
do Sul e foi dele que herdou algumas fotografias da catedral, entre 1925 e
1927, em ruínas e coberta de vegetação e árvores (RAMOS, 2011, p. 141).
Também herdou uma carta do pai, em que o primo deste, Luiz Carlos Prestes,
agradecia as imagens recebidas na prisão (em 1942), que muito o haviam
alegrado, pois o lembraram de que ali tinha reunido primeiramente as tropas
que formariam a Coluna Prestes.
Em 1976, Felizardo fotografa as Missões no contexto de um amplo
levantamento da arquitetura sulina para o Instituto dos Arquitetos do Brasil
IAB/RS. Realizou outras viagens entre 1979 e 1987. Foi quando participou
de uma exposição coletiva chamada “A visão do Artista” em comemoração aos
300 anos das Missões. Onze artistas contemporâneos da Argentina, Paraguai
e Brasil criaram obras especialmente para a exposição.
Para a exposição, Felizardo concebeu uma obra composta por uma
série de oito fotografias intituladas “Como Cenário de um Crime”. O tí-
tulo teria sido inspirado em um trecho da “Pequena História da Fotografia”
de Walter Benjamin sobre a fotografia de Eugene Atget da Paris fin-de-siècle
(RAMOS, 2011, p. 141).
As imagens da série “Como Cenário de um Crime” (1987) funcionam
como enigmas postos ao observador. Diante delas estamos diante do tempo
(DIDI-HUBERMAN, 2010, p. 147). Tempo de ruínas de um projeto civi-
lizacional das Reduções Jesuíticas e das disputas entre as coroas de Portugal e
de Espanha na América Meridional.
A ruína – o tempo da vida do homem frente à história, a sobrevivência
dos materiais (pedras, construções), os vestígios de sua ação frente à eter-
nidade estão presentes como questões postas por sua fotografia. Tempo de
sonho ou de fantasmas, das dobras da Arte Barroca, do projeto de conquista
espiritual dos habitantes nativos pela Contra Reforma.
Porém, este tempo dialoga com outro tempo que é o presente da ex-
pansão das fronteiras agrícolas e da política de segurança nacional brasileira
sobre as terras dos povos indígenas. Tempo de sua assimilação forçada e acele-
rada, de sua subordinação e marginalização a um projeto de desenvolvimento
baseado em uma agricultura comercial para exportação. A Guerra Guaranítica
entre indígenas e a Coroa Portuguesa, que decreta a destruição das Reduções
Jesuíticas, se desdobra no avanço dos grandes latifúndios e da lavoura capi-
talistas sobre as terras das populações indígenas entre os anos 1960 a 1980.

206 8
Fig. 2. Luis Carlos Felizardo. Como cenário de um
crime n. 3 (1987). Data. Coleção: Particular do Autor.

O silêncio nos fala dessas ausências, dessas guerras, dessas mortes, bem como
da luta travada entre o Exército Brasileiro e o projeto político alternativo da
Guerrilha do Araguaia e eliminado pelo massacre dos guerrilheiros em 1974.
As suas fotografias dialogam com as transformações que estavam ocor-
rendo no campo no Rio Grande do Sul nos anos 1970 e 1980: a revolução
verde, a introdução do cultivo da soja, o êxodo rural, o crescimento urbano,
a destruição da arquitetura vernácula. Estas dinâmicas instauraram uma nova
temporalidade. Poder-se-ia estabelecer um paralelo entre a preocupação com
a paisagem e a memória presente no trabalho de Felizardo e os mesmos temas
na fotografia de Marcos Santilli realizada em Rondônia no início dos anos
1980, que aborda a presença das ruínas de outro projeto de modernidade nos
inícios da República: a estrada de ferro Madeira-Mamoré e o garimpo.
Eneida Serrano e Jacqueline Joner produziram o livro Santa Soja
(1979) sobre os movimentos no campo. O fotojornalismo nos oferece outras
imagens que dialogam com as imagens de Felizardo, vários fotojornalistas
fotografaram diferentes grupos indígenas nos anos 1970 e 80, bem como
militaram pela demarcação de suas terras. No trabalho de fotojornalistas gaú-
chos contemporâneos de Felizardo, como nas fotografias de Assis Hoffmann
– algumas delas publicadas no jornal Folha da Manhã entre 1975 e 76 –
observam-se os conflitos entre indígenas e agricultores sem terra no noroeste
do estado do RS.
Nos anos 1980, Felizardo também dirigiu seu olhar para o urbano e
às várias camadas de tempo que se depositavam nos prédios e nos muros das
ruas da cidade de Porto Alegre. Segundo ele:

...Visões Urbanas foi no ano em que a FUNARTE decidiu dar a ex-


posição, mas a base foi uma exposição que eu fiz em Porto Alegre no
Espaço IAB. Quando inaugurou o Espaço IAB, em 1981, eu fiz uma
exposição que era enorme sobre o centro da cidade de Porto Alegre.
Eram fotos do centro mais antigo, por que eu nasci no centro e cresci

8
207
no centro. Então, os espaços do centro foram importantes para mim,
com a sua arquitetura em geral. (FELIZARDO, 2013).

Felizardo fotografou velhas casas e muros cobertos de marcas em ruas


secundárias do centro de Porto Alegre. Lugares onde o tempo se depositou
em camadas de experiência, de memórias e de esquecimentos. Algumas delas
seriam como que ruínas urbanas.

“As imagens da cidade que a fotografia – e só ela – é capaz de revelar


são fundamentais nessa tomada de consciência. Porque o habitante
médio, o passante, pouco vê do espaço que o abriga; ele é moldado
por uma cidade e uma arquitetura que quase desconhece, que per-
corre diariamente sem ver, sem tempo para ver. (...) A fotografia, seja
o simples documento, seja a imagem consciente de sua força poética,
desempenha papel decisivo neste relacionamento...” (p. 62).

Cidade Transfigurada foi a primeira exposição em que Luiz Carlos


Felizardo apresentou pequenas ampliações de negativos 35 mm junto a con-
tatos 8”x10”. A exposição inaugurou a Galeria João Batista Scalco (que ho-
menageava o fotojornalista falecido), num novo espaço destinado à fotografia
no Solar dos Câmara, prédio histórico pertencente à Assembléia Legislativa
do Rio Grande do Sul.
O silêncio, a solidão, a memória, o esquecimento estão presentes nessas
fotografias como “Casa Velha na Garibaldi” de 1987 e “Garagem Fechada” de
1986 (FELIZARDO, 2011, p. 78; 122).

Fig. 3. Luiz Carlos Felizardo. Casa Velha na Garibaldi


(1987). Coleção: Autor.

208 8
Felizardo afirma que “a memória de cada um de nós sempre tem em
sua raiz alguma paisagem, real ou imaginada, quase sempre idealizada. (...)
Essa paisagem, com frequência, é uma mescla de memória e invenção – mas,
como não é possível inventar o que não se conhece, os detalhes foram pos-
tos lá por nossa cultura ou ajudaram a transformá-la” (PERSICHETTI &
TRIGO, 2004, p. 11).
A memória permite relacionar os muros da cidade e as paredes de
São Miguel – o tempo que se deposita, as marcas da ação do homem, a morte,
o silêncio. Já na obra “Querências” – realizada a partir de uma fotomonta-
gem de duas imagens em laboratório – uma paisagem de Bagé (1983-84) e o
Mercado Público de Porto Alegre (FELIZARDO, 2011) observa-se o encon-
tro de dois grande temas da fotografia de Felizardo e uma síntese de processo
de formação da identidade sul-rio-grandense, entre o campo e a cidade.
Felizardo também participou de várias exposições fotográficas inter-
nacionais: “La Fotografía Iberoamericana”, em Madrid (1992); “Fotografía
Brasileña: Historia y Contemporaneidad”, dez fotógrafos brasileiros no Museo
de Arte Moderno de Cali, Colombia (1992); “Brasilianische Fotografie 1946-
1998”, coletiva de 30 fotógrafos brasileiros no Kunstmuseum Wolfsburg,
Alemanha.
Foi homenageado no 5º. FestFotoPoa com uma exposição e a publi-
cação de livro com a retrospectiva de sua obra: A fotografia de Luiz Carlos
Felizardo (2011).Também publicou dois livros com ensaios sobre fotografia:
O Relógio de Ver (2001) e Imago (2010).
Sua obra fotográfica está presente em coleções nacionais – Coleção
MASP/Pirelli, do Museu de Arte Moderna de São Paulo, na Fundação
Iochpe, no Museu de Arte do Rio Grande do Sul – e internacionais – Consejo
Mexicano de Fotografia; Centro Wifredo Lam, Cuba; Museo de Arte
Moderna de Buenos Aires; Center for Creative Photography, Estados Unidos.
Nessa fala não pretendi esgotar a reflexão, mas antes propor uma
série de questões para o debate sobre o campo da fotografia nos anos 1970 e
80 através da obra Felizardo. Sua fotografia continua a nos desafiar, a propor
novos olhares sobre as diferentes paisagens e identidades do Rio Grande do
Sul, através de uma trama que convoca outras imagens, outros tempos e ima-
ginários, outras memórias de lutas que foram travadas nesses territórios do sul
e também no da fotografia.

8
209
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211

212 8

GRUPO DE ESTUDOS ARTE&FOTOGRAFIA


8
PARTE II

Reedição

Tradução

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213

214
R E E D I Ç Ã O

Introdução a Félix Ferreira

MARIANNE FARAH ARNONE1

O artigo José de Alencar de autoria de Félix Ferreira publicado no pe- 1 Possui graduação em artes plásticas (USP,
2010) e mestrado pelo programa de pós-
riódico Brazil Illustrado, em 1887, insere-se no conjunto de materiais desse graduação em História, Crítica e Teoria da
Arte pelo Departamento de Artes Visuais,
autor localizados desde o meu trabalho de iniciação científica (2008-2010), da Escola de Comunicações e Artes da
até o término do mestrado em 2014. Esse artigo chama atenção, entre os Universidade de São Paulo com orientação do
Prof. Dr. Tadeu Chiarelli.
outros textos de Ferreira, uma vez que traz questões sobre a arte nacional -
tema bastante recorrente em sua produção crítica – que, até onde consta, não
foram abordadas em nenhum outro texto do autor.
Assim, a publicação do artigo sobre Alencar busca contribuir com o
trabalho iniciado por Tadeu Chiarelli ao publicar, em 2012, uma nova edi-
ção do livro de Félix Ferreira Belas Artes: estudos e apreciações. Esse livro foi
a maior obra sobre arte lançada por Ferreira abordando tópicos importantes
sobre a arte nacional presentes ao longo de toda sua produção. Assim, uma a
publicação traz novos elementos para o estudo da crítica e história da arte no
Brasil no século XIX.
O meu trabalho de iniciação científica tinha como objetivo colaborar
para essa nova edição do livro Belas Artes: estudos e apreciações, que original-
mente publicado em 1885, até o ano de 2012, ainda não contava com ne-
nhuma outra publicação . Nesse momento tive contato com diversos textos
de Félix Ferreira e pude aprofundar questões abordadas por ele no decorrer
de Belas Artes. O livro foi essencial para a continuidade de meu trabalho com
esse autor que resultou no mestrado .
A crítica de arte no Brasil, até 1885, constituía-se por meio de textos
esparsos publicados em periódicos, de forma que, naquele ano, Belas Artes:
estudos e apreciações foi o primeiro livro dedicado à história da arte publicado
no país.
Escritor e jornalista ativo durante a segunda metade do século XIX,
Félix Ferreira foi assíduo colaborador e criador de inúmeras revistas e jornais.
Sendo redator do Jornal do Comercio, exerceu também outras atividades que,
de certa maneira, relacionavam-se às atividades da escrita. Muito jovem (em
torno dos vinte anos) tornou-se funcionário da Biblioteca Nacional do Rio
de Janeiro onde, nos revela Miranda Azevedo, iniciou seu interesse pelas le-
tras e os estudos brasileiros (AZEVEDO, 1898). Foi funcionário da Câmara
dos Deputados exercendo o cargo de redator dos debates até 1898. Também
atuou como membro do Partido Católico dos Estados Unidos do Brasil, co-
laborando com a publicação do Almanaque do partido .
Na década de 1870, fundou e administrou a Tipografia e Litografia
Imparcial de Félix Ferreira & Companhia dedicando-se também ao comércio
e edição de livros e periódicos, época em que estabeleceu contato com outros
profissionais ligados ao mercado livreiro como, por exemplo, o conhecido
B.L.Garnier que, inclusive, foi responsável pela edição de alguns livros im-
pressos na Tipografia Imparcial.

8
215
Ferreira manteve contato com vários artistas e intelectuais da época,
tais como os escritores José de Alencar (1829-1877), Machado de Assis
(1839-1908) e o pintor Victor Meirelles (1832-1903). Da mesma forma,
aproximou-se do arquiteto e diretor do Liceu de Artes e Ofícios do Rio de
Janeiro, Bethencourt da Silva (1831-1911), ao qual Ferreira esteve muito li-
gado por conta de seu interesse pelo desenvolvimento do ensino artístico e
técnico profissionalizante no país .
Observando a produção textual de Félix Ferreira percebe-se que ele
publicou uma quantidade significativa de artigos e livros dedicados ao Liceu,
o que demonstra o quanto esteve envolvido com as questões relativas ao en-
sino técnico profissionalizante no Rio de Janeiro. Em 1882, aceita o convite
do diretor daquela instituição, Bethencourt da Silva, para fazer parte da co-
missão encarregada de promover os meios necessários à criação e manutenção
de novas aulas para a escola, foi colaborador, auxiliando financeiramente o
Liceu e, ainda, foi nomeado duas vezes para o cargo de Segundo Secretário
da Sociedade Propagadora de Belas Artes, associação mantenedora daquela
instituição de ensino profissionalizante.
Álvaro Paes de Barros em seu livro O Liceu de Artes e Ofícios e o seu
Fundador apresenta um histórico sobre o Liceu, descrevendo a trajetória da
instituição e realizando um amplo levantamento sobre as funções e as pessoas
que fizeram parte dela. No livro, Félix Ferreira é descrito como um impor-
tante propagandista da escola já que foi um dos autores que mais escreveu
sobre ela (BARROS, 1956).
Com o já citado arquiteto e fundador do Liceu de Artes e Ofícios,
Bethencourt da Silva, Félix Ferreira estabeleceu um profícuo contato. A ele
dedicou parte dos temas de seus textos, como é o caso do livro, Perfil artístico:
Bethencourt, publicado em 1876, ilustrado com fotografias, o que era uma
prática pouco comum para a época .
A temática do ensino artístico e técnico surge também atrelada a ou-
tros assuntos amplamente abordados por Ferreira como, por exemplo, a edu-
cação da mulher. Sobre o assunto, ele publica livros e artigos em que estimula
o ensino do desenho para as mulheres . Defende que o trabalho da mulher na
indústria, como comenta para o periódico Ciência para o povo, já acontecia na
Europa e nos Estados Unidos. Menciona a necessidade de preparar a mulher
para que possa atuar em algumas áreas do magistério e atividades filantrópi-
cas. Nesse artigo comenta algumas profissões que, segundo ele, poderiam ser
exercidas pelas mulheres inserindo, entre elas, os “desenhos para a litografia e
gravura em madeira” .
Nota-se da mesma forma, uma recorrência de textos de Ferreira so-
bre instituições de ensino. Além de escrever sobre a Academia de Belas Artes
e o Liceu de Artes e Ofícios escreve também sobre o Instituto Abílio e o
Colégio Menezes Vieira .
É na imprensa periódica onde se encontra a maior parte de sua pro-
dução crítica. Sabe-se que Ferreira, como informa-nos Miranda de Azevedo,
foi assíduo colaborador de quase todas as revistas de sua época, tendo sido
fundador de algumas que tiveram “vida efêmera” como A Ideia (AZEVEDO,
1898). Foi um grande incentivador dos periódicos ilustrados, sendo mesmo
editor de alguns deles .

216 8
Félix Ferreira escreveu sobre assuntos variados como artes, educação,
arquitetura, história, geografia, politica, ciências etc., demonstrando constan-
temente, como era comum em sua época, a preocupação com os “temas na-
cionais” . Desenvolve seus textos em uma conjuntura marcada pela discussão
em torno da afirmação e constituição de uma identidade nacional para o país.
Interessado em questões voltadas para as transformações que julgava
necessárias à sociedade brasileira para “retirá-la de seu atraso” e fazê-la atingir
o “desenvolvimento e progresso industrial” , seus temas surgem engajados a
esses propósitos. Dentro dessa multiplicidade de assuntos, a arte ocupa uma
posição emblemática na crítica de Ferreira. Isso, porque ela era compreendida
como o elemento fundamental de uma nação por possuir um papel central
para as transformações do país para que se alcançasse o “progresso industrial”.
Assim, Ferreira defendia a necessidade de difusão dos conhecimentos artís-
ticos e das “belas artes”, de modo a estimular o desenvolvimento da arte no
Brasil.
Os discursos acerca da constituição de uma arte nacional estão presen-
tes na crítica do século XIX, sendo abordada por vários autores do período. É
o caso, por exemplo, de Gonzaga Duque (1863-1911), que também desen-
volve estudos sobre o tema em seu livro, Arte brasileira, publicado em 1888.
Nesse mesmo sentido, cita-se Araújo Porto Alegre (1806 – 1879), pintor,
arquiteto, crítico, historiador de arte e escritor, que foi professor e diretor
(1854-1857) da Academia Imperial de Belas Artes e membro do Instituto
Histórico Geográfico , escrevendo artigos sobre o assunto da arte nacional,
inclusive para a Revista do Instituto Histórico e Geográfico. O artista e escritor
Ângelo Agostini (1843-1910) abordou o assunto da arte nacional em seus
artigos em diversos periódicos, entre eles, a Revista Illustrada.
A questão da nacionalidade na arte é fundamental para se compreen-
der a visão crítica de Félix Ferreira sobre a arte.

8
217
Bibliografia
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e Geographico de São Paulo, São Paulo, v.III, 1898.
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FERREIRA, Félix. O padre Mathias ou A voz da natureza: drama em quatro actos.
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______. Noções da Vida Pratica: livro de leitura para as escolas e conhecimento do
povo. Rio de Janeiro, 1879b.
______. Guia do estrangeiro no Rio de Janeiro, contendo a lista alfabética das ruas,
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Janeiro: B.L.Garnier, 1879.
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de Janeiro: Typ. de J. P. Hildebrandt, 1871a.
______. A imprensa e o Lyceo de artes e officios. Aulas para o sexo feminino. Rio de
Janeiro, 1871b.
______. Noticia Historica. In.Liceu de Artes e Ofícios (Brj)- Polyanthea
Comemorativa de Inauguração das Aulas do Sexo Feminino. Rio de Janeiro: Typ. e
lith. Lombaerts &Co., 1881a.
______. A educação da mulher, notas colligiadas de varios autores. Ed. Comemorativa
da inauguração das aulas para o sexo feminino no Lyceo de artes e officios. Rio de
Janeiro: Typ. Hildebrandt, 1881.
______. A exposição de História do Brasil efectuada na Bibliotheca Nacional do Rio
de Janeiro em Dezembro de 1881 – notas bibliográficas de Félix Ferreira reproduzi-
das dos editoriaes do Cruzeiro. Rio de Janeiro, 1882b.
______. Belas Artes: estudos e apreciações. Introdução e notas: Tadeu Chiarelli.
Porto Alegre: editora Zouk, 2012.
______. Belas Artes: estudos e apreciações. Rio de Janeiro, 1885.
______. O instituto Abilio: methodo, collegios e compêndios, noticia e apreciações.
Rio de Janeiro, 1885a.
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de Janeiro, 1886.
______. A reforma da biblioteca fluminense: considerações e projetos de uma socie-
dade bibiographica brasileira. Rio de Janeiro, 1886.
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forumpermanente.org/rede/numero/rev-NumeroOito/oitovaleria. Acessado em
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219

220
R E E D I Ç Ã O

José de Alencar1

FÉLIX FERREIRA

Cabe à Província do Ceará a honra de haver dado o berço à glória mais 1 José de Alencar - Brazil Illustrado: archivo
de conhecimentos uteis – Rio de Janeiro,
esplendente da nossa literatura. José Martiniano de Alencar ali nasceu em 1° 1887.
de março de 1829, e formou-se na faculdade de Olinda em 1851, começando
nesta mesma cidade a sua vida pública.
Advogado distinto, lente do direito mercantil do Instituto Comercial,
deputado geral em várias legislaturas, consultor do ministério da justiça e
mais tarde ministro da mesma pasta, antes de tudo isso atirara-se às lides jor-
nalísticas; o Correio Mercantil, esse belo florão do jornalismo fluminense, de
1853 a 1855 publicou artigos seus sobre a reforma hipotecária e outros assun-
tos de igual transcendência, e de Setembro de 1854 a Junho do ano seguinte
a revista semanal, em folhetins aos quais deram o título – ao correr da Penna.
Foi sob esta rubrica que quase se pode dizer, estreou esse talento literá-
rio, que bem depressa teria de impor-se à administração pública.
Três folhetins escreveu ele seguidamente no Jornal do Commercio, três
primores, dentre os quais se destaca, como gema de precioso fulgor, o que
se refere ao comovente sermão do grande Mont’Alverne, quando, depois de
longa ausência do púlpito por motivo de cegueira, para satisfazer o desejo
que tinha S.M.o Imperador de ouvi-lo sequer uma vez, volveu ao teatro de
suas glórias, cercado já da bandeira da imortalidade. Da redação do Correio
Mercantil passou-se José de Alencar para a do Diario do Rio de Janeiro, que
foi o campo das suas mais pujantes lides e da conquista mais ampla de seus
louros jornalísticos.
Além de artigos de fundo, nos quais aventou e discutiu as mais impor-
tantes questões políticas e administrativas, escreveu também uma nova série
de folhetins de bom apreço, o seu mimoso romancete Cinco Minutos, seguido
logo de seu admirável Guarany, e antes a famosa crítica da Confederação dos
Tamoyos.
Como era natural, essa crítica levantou grande celeuma no nosso
Olimpo literário; os semideuses levantaram-se a uma, irados, para trucidar
o ousado que tentava derrocá-los das alturas a que mutuamente se haviam
alcançado; o Olimpo, porém, ruiu por terra, e o ousado, sagrando-se por suas
próprias mãos, elevou-se acima dos semideuses.
O primeiro romancete que saiu da sua pena, Cinco Minutos, foi um
idílio admirável de sentimento e de naturalidade; foi como o primeiro botão
de uma roseira da mais rara espécie, que se abre ainda mal conformado mas
já com pétalas de suavíssimo olor.
Sustentando a publicação da Viuvinha, que se seguira a do Cinco
Minutos, o romancista levantou mais forte voo, e como a águia já possante
foi com as asas, no dizer do poeta, roçar o semblante do Sol.
Com a aparição do Guarany surgiu a escola nacional aplicada ao ro-
mance. A feição característica não está tanto nas cenas do indigenismo2, na
linguagem um tanto artificiosa de Pery, nas lutas do selvagem com os portu- 2 Indianismo.

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221
gueses, como no colorido do estilo, no amaneirado mesmo embora menos
correto, e sobretudo no descritivo, que é a pedra de toque de seu fulgurante
diadema.
Um escritor e um artista fundaram, no campo das artes e das letras, a
escola brasileira; duas obras imortais são pedras angulares do edifício que com
o revestimento ganhará o cunho de verdadeiramente nacional: o Guarany de
José de Alencar e a Primeira Missa no Brasil de Victor Meirelles, a despeito de
seus detratores, são dois monumentos imperecíveis das nossas letras e artes.
Na Primeira Missa tudo é novo: a natureza, os indígenas, o altar, o
colorido, os agrupamentos, tudo enfim é original. No Guarany também a
linguagem que é o colorido; o descritivo que é a natureza; os homens, as coi-
sas, o seu modo de estar e de sentir, tudo também é fora dos moldes comuns.
Em que pese aos que negam a existência da Literatura Brasileira, o
Guarany não é, não pode pertencer à literatura portuguesa; nesse mesmo des-
cuido da forma com que uns tantos críticos pretendem abater a bela obra
de arte, nisso mesmo está o brasileiríssimo, que é o Cachet das produções de
Alencar. Se o Guarany fosse escrito no estilo cerrado e puro de um Herculano,
seria uma obra prima, não o duvidamos, mas nunca brasileira; aí está a Virgem
Guaraciaba de Pinheiro Chagas, escrita na intenção de doutrinar Alencar,
que é de todo ponto inaceitável como romance brasileiro.
Transportada a ação para Portugal, mudados os elementos constituti-
vos, ainda mesmo escrito por Alencar, o Guarany daria um produto muito
diverso. Demais, onde iria Portugal emoldurar em seu solo essa primorosa
paisagem do Paquequer? Como vesti-la da nossa secular vegetação, e animá-la
com o viver livre e aventureiro dos nossos íncolas ou bandeirantes?
A influência do meio faz-se sentir poderosamente sob os trópicos; os
povoadores do Brasil, brancos e negros, modificaram-se extraordinariamente,
e, conquanto apenas a raça portuguesa roçasse muito de leve pela indígena,
ainda assim tanto bastou para que no lar do civilizado penetrasse certos usos
do selvagem. Esta assimilação, por muito diminuta que parece à primeira
vista, nem por isso deixou de atuar na formação de nossa nacionalidade.
José de Alencar, filho já de brasileiros, não procurava furtar-se à influ-
ência do seu meio, mas antes nisso como que fazia certo timbre, não lhe eram
desconhecidos os clássicos, mas não procurava imitá-los como ao inverso fa-
zem outros escritores nossos, que por exagero, parecendo tocar as raias do
classismo, tornam a linguagem artificiosa e árida. Desde que lhe roubam a
naturalidade, que presume a espontaneidade, a língua portuguesa perde todo
o seu viço e colorido.
Ao Guarany sucedeu as Minas de Prata, crônica fidelíssima dos tempos
coloniais. Menos conhecido do que aliás é merecedor, este trabalho firmou a
reputação de José de Alencar como cronista romântico.
Dois livros aparecem sucessivamente, e sob iniciais de G.M., que re-
velam uma face inteiramente nova do ilustre cearense, dois estudos psicoló-
gicos, tão admiráveis pelo lado anatômico como pelo sociológico do meio em
que desenvolve a ação. Luciola e Diva são dois modelos no gênero.
Enquanto assim caminha o romancista; como Protheo, o talento e a
imaginação de Alencar brilhando à luz da rampa, cobrem-se de louros, pro-
duzindo o Demonio Familiar, As asas de um anjo, Mãe, Verso e reverso. O pri-

222 8
meiro é uma comédia de um aticismo3 parisiense. 3 Elegância e sobriedade de linguagem.

No meio desse produzir admirável, a política, minotauro voraz e in-


saciável, lança-o no vórtice medonho, onde os partidos, à semelhança de
Saturno, devoram os próprios filhos; o jornalista, o romancista, o dramaturgo
e o poeta, enfim, transmudam-se em uma entidade esfíngica que se chama –
estadista. José de Alencar passa a ser ministro da justiça e da guarda nacional!
O eclipse obumbrou por momentos o astro radiante e belo; mas breve,
irrompendo dentre a pesada caligem, eleva-se de novo ao nadir e vai caminho
da glória.
Uma vez retirado da alta política ativa, depois de tragar o amargo que
sempre deixa o contato dessa ambicionada taça que se chama, poder, o ho-
mem de letras, volve ao remanso do gabinete de trabalho, o poeta evoca a
musa fugitiva, e em pouco surge o Gaucho, talhado por moldes homéricos;
extravagante, porém belo, fabuloso mas épico.
Antes de ser seqüestrado pela política escrevera Alencar a Iracema,
mimo de estilo poético, imaginoso, sem rival enfim no nosso idioma.
Depois do Gaucho apareceu o Tronco de Ipê, fluente narrativa copar-
ticipante da vida da corte e do campo, drama íntimo e singelo em que o
adorável tipo de Alice fulge como uma estrela em céu de primavera. A este
seguiram-se os Sonhos de ouro não menos belo e atraente, tanto pelo fundo
como pela forma.
Se o Til, trabalho de encomenda, sombreia por momentos o astro, é
para logo vê-lo reaparecer com dobrado fulgor; o perfil correto da Senhora,
juntando-se aos de Luciola e Diva, formam os três um grupo digno de um
Phidias.
Infatigável e fecunda, a imaginação de Alencar não queria repouso;
apenas de quando em quando descia o olhar dos altos horizontes ao flori-
dos vergéis. Como os grandes artistas, enquanto descansam esboçam, assim
Alencar quando depunha o pincel do pintor histórico era para tomar o crayon
do paisagista.
Nos intervalos de suas produções de maior fôlego dava a Pata da
Gazela, o Garatuja, a Ernida da Gloria, a Alma de Lazaro e a Encarnação, flo-
rinhas mimosas, variegadas e louças, como essas humildes e perfumadas que
vestem as nossas campinas.
Ubirajara enrique a sua coleção de narrativas indígenas, enquanto que
a Guerra dos Mascates, colocada entre o Guarany e as Minas de Prata fixa as
normas de nosso romance histórico.
Sobre ser escritor literário tão fecundo, foi também abalisado juriscon-
sulto; como consultor dos negócios da justiça escreveu numerosos pareceres,
que se fossem publicados dariam bem para seis grossos volumes.
José de Alencar foi sem contestação um dos talentos mais úteis à pátria,
por isso mesmo é que também menos pesou sobre ela. Trabalhador incansá-
vel, modesto e econômico, tirava da sua profissão de advogado o preciso à
família, juntando as demasias para formar o pecúlio que legou aos filhos.
A sua vida, que pública quer particular, é um belo exemplo que pode
ser apontado. A individualidade moral é tão digna de admiração e respeito
como a sua individualidade literária.
Os últimos anos de sua existência foi uma luta perene entre o espírito

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e a matéria; o débil invólucro a muito custo podia conter tão grande espírito.
Só a esforços de sua vontade tenaz, que o levou a peregrinar desde os sertões
do berço natal até Paris, conseguir disputar à morte o último alento até de
todo cair exausto como um combate em pleno campo de luta.
Trabalhou quase até a hora extrema.
Um mês antes de se lhe agravarem os padecimentos, entregando-me o
primeiro canto dos quatro que deixou compostos dos Filhos de Tupã, para dá-
-lo aos prelos, disse-me: “quero publicá-lo para presentear a alguns amigos, e,
para não perder de todo o que está feito. Vai assim mesmo; daí quem sabe, tal-
vez que com a revisão das provas me volte a inspiração para acabar o poema.”
A morte surpreendeu-o revendo essas provas!
Félix Ferreira.

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8
225
Apresentação e tradução
MARCO FÁBIO GRIMALDI1

1 Pesquisador, membro do Grupo de Em seus dez anos de existência, o Grupo de Estudos Arte&Fotografia
Estudos Arte&Fotografia.
do CAP-ECA-USP vem se dedicando ao estudo e à pesquisa da arte, da foto-
grafia e da cultura, promovendo anualmente um seminário focado em ques-
tões atuais e pertinentes a seus temas de interesse e publicando, a seguir, um
boletim no qual se encontram, além do resultado das atividades e pesquisas
grupo, os textos referentes aos debates, às apresentações e às comunicações
promovidas durante o evento.
Dando prosseguimento a este trabalho o grupo propõe estender o es-
copo de seu boletim com a publicação em português de textos inéditos sobre
a arte e a fotografia produzidos por pensadores da cultura, das letras e das
artes, alguns diretamente ligados a estes temas, outros fazendo suas contri-
buições a partir de suas trajetórias construídas em seus respectivos campos
de atuação.
Assim, damos continuidade a esta série com o texto O Daguerreótipo,
publicado por Edgar Allan Poe em 15 de janeiro de 1840 na Alexander’s
Weekly Messenger (Philadelphia), no qual ele manifesta sua admiração e es-
panto com o novo invento. Esperamos que através deste texto do autor e
poeta americano o leitor possa ter um vislumbre do impacto que o invento
do Daguerreótipo e da fotografia produziram em seu tempo, visto através dos
olhos de alguém não envolvido diretamente com o meio fotográfico.

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TRADUÇÃO

O Daguerreótipo

EDGAR ALLAN POE

Esta palavra é apropriadamente soletrada Daguerréotype e pronun-


ciada como se fosse escrita Dagairraioteep1. O nome do inventor é Daguerre, 1 N.T. A grafia apresentada foi utilizada
pelo autor em seu texto original em inglês,
mas o costume francês requer que a sílaba tônica recaia sobre o segundo “e” refletindo o som que a palavra teria para os
ouvidos de um falante nativo deste idioma.
na formação do termo composto. Para o falante de português, o som seria
Não há dúvida que o instrumento mesmo deva ser visto como o mais diverso, mas optamos por manter a versão
original de modo a refletir a impressão
importante e, talvez, o mais extraordinário triunfo da ciência moderna. Não provocada no autor.
temos no momento espaço para analisar a história da invenção, cuja ideia mais
antiga remonta à câmera obscura e mesmo os mínimos detalhes da fotogenia
(termo derivado de palavras gregas significando pintura com o sol) são por
demais longos para nosso propósito atual. Podemos dizer de forma sucinta,
no entanto, que uma placa de prata sobre cobre é preparada, produzindo
uma superfície para a ação da luz da mais delicada textura concebível. Após
a aplicação de um alto polimento a esta placa, por meio de uma pedra-sabão
(chamada Daguerreolite) contendo partes iguais de esteatita e carbonato de
cálcio, a fina superfície é iodada ao ser colocada sobre um vasilhame contendo
iodo até que o todo assuma um matiz de amarelo claro. A placa é então depo-
sitada em uma câmera obscura e a lente deste instrumento focada no objeto
que ele deve pintar. A ação da luz faz o resto. A extensão de tempo requerida
para a operação varia conforme a hora do dia e as condições climáticas – num
intervalo de dez a trinta minutos no geral – sendo o momento apropriado
para remoção da placa determinado unicamente pela experiência. Quando
retirada, a placa em princípio não parece ter recebido uma impressão defi-
nida – alguns breves processos, entretanto, a revelam em sua mais miraculosa
beleza. Toda linguagem é inadequada para expressar qualquer ideia justa da
verdade e isto não parecerá tão maravilhoso quando refletirmos que a fonte da
visão em si mesma tenha sido, nesta ocasião, o designer. Talvez, se imaginar-
mos a nitidez com a qual um objeto é refletido em um espelho absolutamente
perfeito, chegaremos tão próximos da realidade como por qualquer outro
meio. Pois, na verdade, a placa produzida pelo Daguerreótipo é infinitamente
(utilizamos o termo deliberadamente) é infinitamente mais precisa em sua
representação do que qualquer pintura por mãos humanas. Se examinarmos
um trabalho de arte comum, através de um poderoso microscópio, todos os
traços de semelhança com a natureza desaparecerão – mas o escrutínio mais
próximo do desenho fotogênico revela apenas a mais absoluta verdade, uma
identidade de aspecto com a coisa representada mais perfeita. As variações
de tom e as gradações de ambas as perspectivas linear e aérea são aquelas da
própria verdade na superioridade de sua perfeição.
Os resultados da invenção não podem, nem mesmo remotamente, se-
rem vistos – mas toda experiência, em questões de descoberta filosófica, nos
ensina que, em tal descoberta, é sobre o imprevisto que devemos calcular

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227
em grande parte. É um teorema quase demostrado que as consequências de
qualquer nova invenção científica excederão em muito, no tempo presente, as
mais radicais expectativas dos mais imaginativos. Dentre as óbvias vantagens
advindas do Daguerreótipo, podemos mencionar que, com sua ajuda, as altu-
ras de elevações inacessíveis poderão, em muitos casos, serem imediatamente
averiguadas, uma vez que ele proporcionará uma perspectiva absoluta dos
objetos em tais situações e que o desenho de um mapa lunar apropriado será
obtido de uma vez, posto que os raios deste astro mostraram serem apreciados
pela placa.

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