Marlene Vianna Era tão estranho aquilo, que não achei resposta.
Isso bastou para que ele interrompesse a leitura e metesse os verbos no
Discutiremos, inicialmente, o critério da indispensabilidade do complemento bolso.
nominal e da dispensabilidade do adjunto adnominal. Fundamentam os gramáticos Trabalhei em vão, busquei, catei, esperei, não vieram os versos.
o seu conceito de complemento nominal em duas assertivas: a)há palavras que, por
não se bastarem a si mesmas, necessitam de um termo que lhes integre o sentido; b)o embora haja supressão de complemento, o sentido da frase o torna perfeitamente
nome cujo sentido o complemento nominal integra corresponde, geralmente, a um determinado.
verbo transitivo de radical semelhante. Opondo-se ao caráter de termo integrante, necessário, do complemento
Em relação à primeira das afirmações, não se pode esquecer de que as nominal, o adjunto adnominal é dado como termo acessório, desnecessário, que pode
palavras, geralmente, possuem um valor absoluto e um valor relativo, classificação ser retirado sem prejuízo para a compreensão do enunciado. Preconiza a literatura
que surgirá a partir de um contexto. Assim, uma mesma palavra pode ser usada em didática que, para se evitar a confusão entre o adjunto adnominal e o complemento
sua significação absoluta, como em: nominal, basta verificar a dispensabilidade daquele e a indispensabilidade deste em
relação ao nome a que se refere. Verifiquemos, então:
Os meus ciúmes eram intensos, mas curtos.
A esperança é a última que morre. Um homem não deve ter medo de fantasmas.
Tentou-se um produto sem imitação. Um homem não deve ter medo.
Li o livro de Pedro, mas não li o livro de João.
ou em sua significação relativa: *Li o livro, mas não li o livro.
O ambiente urbano contrasta com o ambiente rural.
A vaidade de professor me fez padecer com a desatenção de Capitu e ter *O ambiente contrasta com o ambiente.
ciúmes do mar. Uma vida que é inútil é morte prematura.
A esperança de dias melhores serve-nos de alento. *Uma vida é morte prematura.
A imitação do ruído saiu perfeita.
Pelas ilustrações, evidencia-se que, se a supressão do complemento, no primeiro
Pelos exemplos, vê-se que o complemento nominal, dado como elemento exemplo, não gerou agramaticalidade, o mesmo não se deu quando da supressão do
indispensável, pode ser omitido, sendo possível retirá-lo, sem prejuízo da adjunto. Evidencia-se, além disso, que é correta a lição da gramática quando afirma
gramaticalidade da frase. que a oração adjetiva especifica o antecedente, com ele formando um todo
A segunda assertiva, que trata o complemento nominal como termo significativo e que, em razão disso, não pode ser suprimida sob pena de o predicado
sintaticamente necessário – os nomes são transitivos na medida em que se ligam a da oração principal deixar de convir ao seu sujeito. Tem-se, a partir de tal colocação,
verbos transitivos – leva-nos a colocar, também, a importância do contexto, do qual uma análise paradoxal: a oração adjetiva, porque adjunto adnominal, termo
depende a noção de transitividade. Serão, assim, complementos nominais os acessório; porque forma com o antecedente um todo significativo, termo integrante.
sintagmas preposicionados em: Esse pequeno confronto leva-nos à conclusão da relatividade da classificação
das palavras enquanto termos da oração, sendo a
Ele tem respeito pelo mestre. (Respeitar o mestre) dispensabilidade/indispensabilidade dos membros da estrutura da frase uma
As notícias dos fatos são boas. (Noticiar os fatos) questão de contexto.
Nem sempre a complementação estará associada à transitividade, pois que
Veja-se, entretanto, que os nomes, como os verbos, podem estar sendo usados devemos relacionar como complemento o genitivo subjetivo. Além de ser
transitivamente, em: contraditório analisar como acessório um elemento essencial, a relação subjetiva não
é opcional em:
Confio em você.
A morte de um ébrio dá alívio a seus familiares.
como intransitivamente, em: *A morte dá alívio a seus familiares.
3 4
A invenção de Santos Dumont abriu caminho à era interplanetária. A mesma observação pode ser feita em relação ao possessivo e ao relativo
*A invenção abriu caminho à era interplanetária. “cujo”, que vêm sendo sistematicamente analisados como adjuntos adnominais pela
maioria dos gramáticos que seguem a NGB. Exemplos de possessivos como
Se em: complemento nominal:
São exemplos de ocorrência de genitivo subjetivo/objetivo formalizadas nessa mesma Levanta-se, agora, o problema de palavras ou expressões que vêm sendo
estrutura: indevidamente analisados como adjuntos adnominais:
A conversão dos justos – os justos convertem \ converter os justos a)Palavras ou expressões que servem de complemento à significação relativa de
A caça do criminoso – o criminoso caça \ caçar o criminoso nomes como pai, filho, irmão:
A procura do delegado – o delegado procura \ procurar o delegado
Filho de pais ilustres
Nem sempre, também a complementação estará associada ao critério, Labão, pai de Raquel
estabelecido pelos gramáticos, de que o complemento nominal integra nomes
abstratos. Tal critério deixa de vigorar, prevalecendo o da transitividade, quando São igualmente relacionais as palavras frente, lado, favor, causa, canto, ponta, cume:
houver nomes de agente – portanto concretos – relacionados morfologicamente a
verbos transitivos: Em frente de ti (em tua frente)
Ao lado de mim (ao meu lado)
O inventor do telefone Em favor de nós (em nosso favor) etc.
O defensor dos humildes
O semeador do trigo b)Nomes inalienáveis exigem, sempre, modificador:
O analista do sistema
O chefe da produção Ela tem olhos bonitos.
Chegou com os pés feridos.
Porque prevalece o critério da transitividade sobre o formal, serão também
complementos os adjetivos que representam sintagmas preposicionados em função c)A mesma ideia de relação, de dependência, própria do complemento nominal,
objetiva. Nos sintagmas preposicionados abaixo relacionados está contida relação existe em:
objetiva:
Braço do rio
Produção de energia – produzir energia Crista da serra
Conhecimento de matemática – conhecimento matemático Escudo da fé –
Alimentação do homem – alimentar o homem
Poluição da atmosfera – poluir a atmosfera em que os nomes substantivos estão usados figuradamente.
Abertura dos portos – abrir os portos Pelo exposto, concluímos, em primeiro lugar, que é necessário que seja revista
Ordenação dos sacerdotes – ordenar os sacerdotes a terminologia termo acessório para o adjunto adnominal. Grande número de
exemplos nos disseram da sua importância, equiparando-se ele, portanto, ao
Tais sintagmas preposicionados podem ser, todos, transformados em adjetivo complemento nominal, termo integrante da oração. Sugerimos mesmo que uma
(energética, matemática, humana, atmosférica, portuária, sacerdotal), que, embora outra denominação seja dada para o adjunto adnominal. Em seguida, gostaríamos
precedidos de nome abstrato transitivo, serão paradoxalmente analisados como de discutir se não seria salutar abolir-se a distinção adjunto
adjuntos adnominais. Assim, adjetivos que completam nomes são adjuntos adnominal/complemento nominal, de acordo, por exemplo, com o modelo da
adnominais; expressões que completam substantivo são complementos nominais... gramática espanhola, italiana e francesa. Simplificação em excesso, diriam os mais
apaixonados apologistas da dicotomia. Seria, porém, razoável em termos de
5 1
metodologia didática, visto que ao iniciante bastaria saber/reconhecer que existem UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ
determinantes de nomes e determinantes de verbos. Seguir-se-ia um estudo Faculdade de Filosofia D. Aureliano Matos – L. do Norte
gradativo, centralizado sempre em textos, nos determinantes opcionais e não- Curso: Letras
opcionais, seus valores semânticos. Isso levaria o estudante à conscientização de uma Disciplina: Sintaxe
estrutura linguística que ele, como falante, possui inconscientemente. O quadro Professor: Bento
atual das coisas é mais que sabido: o professor ministra ao aluno lições de
adjuntos/complementos a partir da quinta série, e o discente chega ao vestibular sem
saber distingui-los. Como nós outros, muitas vezes. De qualquer maneira, o conceito ANÁLISE SINTÁTICA DA ORAÇÃO COM BASE NO SIGNIFICADO DO
de complemento nominal necessita de reformulação. A definição que temos dele não VERBO – A COMPLEMENTAÇÃO
nos serve, porque, em sua estreiteza, não atinge muitos tipos de estruturas que [alguns exemplos ilustrativos]
deixam transparecer a ocorrência de complemento. A lição do bom senso nos mostra
que não se pode aceitar o complemento em função, somente, da transitividade.
J. Bento
VIANNA, Marlene M. Z. “Adjunto adnominal e complemento nominal: por uma
simplificação de análise". In: Ensaios de Linguística, n. 9, dez. 83. Minas
Gerais, UFMG, 1983. (p. 152-162). Listemos algumas pinceladas sobre a análise sintática de alguns verbos do
Obs.: O texto foi copiado, com adaptação, para uso exclusivo em sala-de-aula, como recurso didático. português, assumindo o procedimento de verificar a configuração de significado dos
mesmos. Deve-se entender, com esta visão, que a estruturação sintática da chamada
fim oração, cujo núcleo sintático é o verbo, depende criteriosamente da configuração
semântica do item verbal, em termos de seus atributos sêmicos. Em outras palavras,
o desenvolvimento estrutural da oração consistiria, basicamente, em preencher os
espaços semânticos proformáticos, revelados no interior do significado dos verbos –
algo, alguém, assim etc.
*COMPRAR
Observação:
X comprou Y a Z por W
Não obstante, a norma linguística mais corrente geralmente dispensa dois desses
elementos – a alguém e valor monetário –, o que enseja duas possibilidades de análise:
2 3
(alguém) 2 julgar
alimentar-se alguém
assim
Observação: ↓
(alguém) 2
Parece-nos evidente que o verbo “comer” encerra dois significados distintos dentro respeitar
da norma linguística, tais como previstos na descrição acima. No entanto, ainda é alguém
possível estabelecer duas propostas de análise:
Observemos que, na primeira acepção, o verbo deveria ser tomado como transitivo
a)Considerar as duas opções de significado como reveladoras de verbos lexicalmente direto e indireto, ou algo parecido, mas não é isso que diz o ponto de vista tradicional.
independentes, em estado de homonímia. Nesta situação, teríamos verbo transitivo Na versão tradicional, o termo assim, longe de ser um complemento verbal, é uma
direto em um caso, e verbo intransitivo no outro caso. espécie de predicado “menor” no interior do predicado “principal”; daí, o nome
predicativo do objeto.
ou Na segunda acepção, tudo ocorre tal como previsto nos atributos do
significado, inclusive sem chance de omissão – do termo alguém – na perspectiva da
b)Considerar a persistência de um único verbo “comer” – transitivo direto – que tem língua.
uma formulação variante na qual o complemento – objeto direto – não se atualiza, fim
dando como resultado uma alteração no significado.
1 2
UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ especificar-lhes as noções, naqueles inscritas. Estes especificadores podem ser de
Faculdade de Filosofia D. Aureliano Matos – L. do Norte natureza obrigatória (estruturais), como em –
Curso: Letras
Disciplina: Sintaxe *comer
Professor: Bento
– que, na formulação oracional, reclama o que tradicionalmente se chama de sujeito:
ASPECTOS DA SINTAXE TRADICIONAL
*João come.
J. Bento
– ou facultativa (adestruturais, ou meramente comunicativas), como em –
1.Objeto da sintaxe
*boneca de pano
O objeto de estudo da sintaxe comporta dois níveis de análise:
– na qual se percebe a dispensabilidade de “de pano”, estipulada como informação
A – Nível oracional – tem como núcleo (postulado) o verbo; meramente adicional ao construto “boneca”.
B – Nível sintagmático – tem como núcleo (postulado) o nome (ou pronome).
e)A compatibilização semântica – as restrições de sentido que concorrem para a
Numa investigação sintática, podem ser observadas (embora não aceitação/rejeição de adjunções entre elementos linguísticos na construção.
necessariamente nesta sequência): Enquanto se aceita –
a)A ordem dos termos – o lugar que compete a cada um dos elementos linguísticos *casa amarela –
que compõem a estrutura, seja em nível oracional, seja em nível sintagmático.
Assim, por exemplo, é aceitável a construção – tende-se a rejeitar algo do tipo –
– da mesma forma que se rejeita algo do tipo – Considerações sobre a compatibilidade semântica esbarram, comumente, nas
potencialidades expressivas, ou evocativas, da língua em uso, que alargam
*Casa a esquina da vertiginosamente o fenômeno da restrição aqui referido, chegando ao ponto de não
se dispor de restrição alguma. Esta é uma questão a ser resolvida na Estilística.
b)A concordância dos termos – as diretrizes flexionais exigidas para a construção Resumidamente, e seguindo a exposição acima, esboçamos:
linguística, em termos da harmonização morfemática. Assim, em português, se
tivermos um núcleo nominal na forma masculina/plural, seus especificadores se SINTAXE
adequam a esta formalização: o núcleo “casas” [feminino/plural], por exemplo,
induzirá seus especificadores a se comportarem com o caráter de [feminino/plural]:
*casas
*estas casas
*casas amarelas
a)Predicado verbal
O
O
SUJEITO
Voc S P Atit
TIPO SUBTIPO CARACTERIZAÇÃO
3.Transitividade/intransitividade verbal na norma valencial, mas que depois passam a ser tidos como componentes da
transitividade, como no exemplo –
1]Princípio teórico
João trabalha.
S P – a menos que identifique como norma valencial do verbo “trabalhar” o que se passa
na segunda oração, ficando a notação de intransitividade em “trabalhar”, da
primeira oração, como variante elíptica.
SISTEMA A corrente “múltipla” de pensamento admite, no sistema, a possibilidade de
mais de um verbo com a mesma natureza significante (homonímia), de acordo com
Verbo Adjunto as distinções de transitividade, que estão em correlação com a alteração de sentido.
Ou seja, se tomarmos um determinado verbo, por exemplo, “fumar”, e supondo-se
que este se revela com sentidos diferentes, a depender da atualização ou não
atualização de determinado item sintático, estaremos diante de verbos homônimos,
e não de um único verbo com variação da norma valencial:
variante variante variante João fuma. → fuma1 [ser fumante]
sintático- sintático- sintático-
* semântica1 semântica2 semântican... *
João fuma cigarros. → fuma2 [fuma determinado tipo de fumígeno]
↓
NORMA Nestas circunstâncias, um verbo do tipo “comer”, em paralelo com as duas
VALENCIAL correntes de pensamento sobre a transitividade, e supondo-se diferença de sentido
entre si, deveria ser assim descrito:
a)Corrente UNA
FALA
SISTEMA
2]Correntes de pensamento
↓
TRANSITIVIDADE
“comer x”
UNA MÚLTIPLA
↓ ↓
NORMA VARIANTE
*Norma valencial variante *Sistema variante ↓ ↓
*um só verbo *mais de um verbo “comer x” “comer Ø”
[transitividade fixa] [transitividade flexível]
*Facultatividade *Obrigatoriedade
[+/- alteração de sentido s/ alteração sintática] [+ alteração de sentido c/ alteração sintática]
*Elipse: Ø *Elipse: Δ
“comer x” “comer”
NORMA NORMA
↓ ↓
“comer x” “comer Δ” (Voc) S P (Atit)
FALA FALA
↓ ↓
“comer x” “comer Δ”
c)Verbo intransitivo
O
O
(Voc) S P (Atit)
(Voc) S P (Atit)
O b1)Núcleo substantival
ESTRUTURA NOMINAL
[núcleo: substantivo]
(Voc) S P (Atit)
(ADN)
(CN)
(+/-prep) (mod) (ADN) SUBS (AP)
b2)Núcleo pronominal
b3)Núcleo adjetivo-advérbial
ESTRUTURA NOMINAL
[núcleo: adjetivo/advérbio]
(+/-prep) ADN mod N ADN CN AP
{especificação} ênfase substantivo {especificação} {complemento} {explicitação}
intensidade pronome
negação adjetivo
dúvida advérbio
(CN)
Osub Osub Osub (mod) ADJ/ADV (AP)
13 14
6.Tipificação geral da locução verbal – os sujeitos de “querer” e “comprar” são correferenciais, mas não há obrigação
estrutural para isto. A despeito de rearranjos flexionais, podemos substituir o sujeito
CONSTRUÇÃO de “comprar” por outro, diferente do sujeito de “querer”:
Esta situação, que pode nos revelar a existência de duas orações contíguas
(portanto, sem a incidência de locução verbal), opõe-se, por exemplo, à construção
com “ir” + infinitivo, pois neste caso não há possibilidade estrutural de adjungir
sujeitos referencialmente diferentes para os itens verbais atualizados –
Verbo auxiliar + Verbo principal
↓ *João vai [Ø] comprar o carro.
ser *?João vai que Maria compre o carro.
ter
haver
poder
– levando-nos a categorizar a expressão “ir” + infinitivo como locução verbal. A
ir locução verbal, por conseguinte, necessariamente impõe a correferencialidade do
etc. sujeito entre os itens verbais.
NÚCLEO PÓS-NÚCLEO
+adjetivação
+posse
sujeito sujeito leitura leitura ADN sujeito
[+ alternância] [- alternância] [verbal] [adverbial/adjetival] agente
↓ ↓ ↓ -necessário
complemento modo atributo de (relacional)
DE
-adjetivação
-posse
CN objeto
paciente
+necessário
+preposição de (em relação a)
LOCUÇÃO VERBAL
A/EM/PARA/POR/CONTRA CN
SOBRE
Na condição de auxiliares, os verbos listáveis costumam encerrar uma carga ABSTRATO COM ADN/CN
semântica peculiar. Por exemplo, em –
SEM ADN
*Vou andando pela rua. SUBSTANTIVO
-preposição ADN
– se “andando” tiver leitura verbal, “ir” (auxiliar) tem sentido equivalente a [estar]: CONCRETO ADN
“estar andando”; se “andando” tiver leitura adverbial-modal, “ir” (verbo nuclear),
tem sentido de [deslocamento]: “ir a algum lugar, andando”. ADJETIVO + preposição CN
Entende-se a notação [+/- alternância], relativamente ao sujeito, através da
possibilidade (ou impossibilidade) de sua diferenciação referencial, no tocante aos ADVÉRBIO + preposição CN
verbos auxiliar e principal da construção. Em –
João quer [Ø] comprar o carro. (= João quer que ele mesmo {João} compre o carro)
15 16
[+adjetivação] [-adjetivação] possibilidade de substituição por um Natureza semântica especificador, complementador, explicitador,
adjetivo simples
agente do paciente do retomada
[+posse] [-posse] indicação semântica de [posse] com evento evento do evento
relação ao substantivo núcleo
em que “amarela” e “de barro” caracterizam “uma casa”. A cidade de São Paulo é grande.
(A cidade de) São Paulo é grande. → São Paulo é grande.
2)O traço item conectivo enseja duas observações pertinentes do ponto de vista da
simplificação na atividade do analista: 3)O traço pontuação diz que ADN e CN nunca ocorrem com pontuação, enquanto
para o AP a pontuação (geralmente, o AP vem entre vírgulas ou separado por dois
a – Observe que a lista de preposições relativas ao ADN e ao CN é bastante diversa, pontos) é o padrão substancial. Há exceção à regra, como ficou evidente no exemplo
e as únicas preposições em comum são “de” e “com”. Disto se infere que só poderá de “a cidade de São Paulo”, em que o termo “São Paulo”, aposto, não vem entre
haver, em princípio, possibilidade de confusão entre o ADN e o CN nos casos que vírgulas, mas conectado por intermédio da preposição “de”. Além de exemplos desse
envolvem as preposições “de” e “com”. Se somarmos a este dado o fato de que há tipo, temos os casos em que não ocorre o elemento prepositivo, nem a pontuação:
matizes semânticos específicos contidos nas construções das quais estas preposições
fazem parte, quando engendram ADN ou CN, pode-se reduzir em muito a O garoto João.
possibilidade de incerteza. Assim,
A explicação, no entanto, equivale pari passu à que foi dada com relação à “a cidade
* “de” engendrará ADN, se a natureza semântica da construção permitir a de São Paulo”: possibilidade de inserir o termo conseqüente entre vírgulas –
anteposição do termo “feito(a)” ou algo equivalente à referida preposição:
O garoto, João,...
Casa de barro → casa (feita) de barro
e possibilidade de eliminar o termo antecedente:
“de” engendrará CN, se a natureza semântica da construção permitir a
substituição da referida preposição pela expressão “com relação a” ou O garoto João fez boa prova.
algo equivalente: (O garoto) João fez boa prova. → João fez boa prova.
Medo de fantasmas → medo (com relação a) fantasmas Não obstante, o que fundamentalmente caracteriza o AP é a pontuação. Na
verdade, é preciso admitir que inclusive termos como o ADN e o CN, quando
* “com” engendrará ADN, se a natureza semântica da construção permitir colocados entre vírgulas (mais comumente), tornam-se AP. É o que se pode ver nos
a posposição da expressão “a adição de” ou algo equivalente à referida exemplos a seguir:
preposição:
A casa amarela me pertence. → “amarela” = ADN
Café com açúcar → café com (a adição de) açúcar A casa, amarela, me pertence. → “amarela” = AP
“com” engendrará CN, se a natureza semântica da construção permitir a A compreensão dos amigos me satisfaz. → “dos amigos” = CN
a substituição da referida preposição por alguma outra da série de A compreensão, dos amigos, me satisfaz. → “dos amigos” = AP
preposições que contemplam CN ou algo equivalente:
É simples assim: o AP se define primordialmente pela condição de isolamento
Esperança com a vida → esperança na vida através da pontuação (na língua escrita) e, por isso, é capaz de tomar o lugar de
termos, em princípio, referidos como ADN ou mesmo CN.
b – Observe que, ao contrário do ADN, CN nunca vem sem conectivo preposicional,
o que, de qualquer forma, não deixa de ser um traço diferenciador entre os dois 4)O traço núcleo subordinante concorre para a facilitação na identificação dos
termos. Já com relação ao AP, tem-se, através do quadro acima, que este é termos pelo fato de se esclarecer que o CN é o único a ser antecedido por adjetivo e
desprovido de conectivo preposicional. No entanto, esta é apenas a postulação geral, advérbio nucleares. Em –
pois há casos de AP preposicionado (especificamente com o item “de”), como em:
João estava convencido da verdade.
A cidade de São Paulo João deixou o bar posteriormente ao acidente.
– concebe-se que “da verdade” e “ao acidente” só podem ser CN em razão de o Produção de energia
núcleo sintagmático ser, respectivamente, adjetivo (“convencido”) e advérbio
(“posteriormente”). – “de energia” se classifica como CN, por que consiste no paciente do processo
Além disso, outro traço a ser usado, particularmente na diferenciação entre nominal: “a energia é produzida”.
ADN e CN, é a natureza concreta do núcleo subordinante no primeiro caso, em Só mais duas breves informações, para terminar o assunto dos componentes
contraposição à natureza abstrata do núcleo subordinante no segundo: internos do sintagma: a)com relação a esse problema de identificação do termo à
direita do núcleo nominal (ADN, CN ou AP), queremos dizer o seguinte: a resposta
Produto de qualidade → “produto” (concreto) leva “de qualidade” a ADN definitiva, pelo menos nos pontos cruciais, precisa passar por uma reflexão em torno
Produção de arroz → “produção” (abstrato) leva “de arroz” a CN de cada um dos pontos arrolados acima. Se não funcionar... usar o bom senso (!);
b)é preciso, adicionalmente a tudo que foi dito, considerar a possibilidade de os
(embora nem sempre um substantivo abstrato leve à determinação de CN, como termos à direita do núcleo terem estrutura oracional, ou seja, ADN oracional, CN
veremos adiante). oracional e AP oracional, mas nada que venha a contradizer o que se quis afirmar
(ou se afirmou) no início desta exposição: quando um termo, qualquer que seja ele,
5)O traço natureza semântica vai exigir perspicácia do analista principalmente no tem estrutura oracional não passa a ser outra coisa (como às vezes deixa sugerir a
sentido de ser capaz de perceber a diferença entre especificar, complementar, e abordagem das gramáticas), mas continua sendo a mesma coisa (um CV oracional
explicar, no contexto da construção lingüística. Em suma, o ADN especifica, o CN é um CV, um PRED oracional é um PRED, um ADN oracional é um ADN etc. etc.),
complementa e o AP explica o núcleo subordinante de acordo com o seguinte apenas (evidentemente) com alguns adendos estruturais a mais e, a rigor, sem
entendimento: necessidade de modificação da linha de raciocínio que se segue quando se analisa
uma frase de composição simples.
*Especificar → indicar uma característica de;
*Complementar → preencher uma lacuna (de sentido); 8.Vocativo, atitudinal e modificador
*Explicar → repetir, dizer a mesma coisa de outro modo, com outra expressão.
a)Vocativo
Uma dica que pode se fazer útil é, uma vez diante da expressão sob análise, pesar os
três matizes semânticos e ver do qual mais o termo se aproxima. Assim, por exemplo, - Vem sempre separado por vírgula e pode aparecer em qualquer lugar da frase;
em – - É um termo de chamamento e invocação, por isso se refere a pessoas, animais ou
algo personificado;
João tem medo de fantasmas. - Confunde-se geralmente com o sujeito;
- Para identificá-lo, pode-se usar o recurso da anteposição da partícula interjectiva
– a pergunta que deve ser feita é: “de fantasmas” indica uma característica de “Ó!”;
“medo”, preenche uma lacuna de sentido reclamada por “medo” (quem tem medo, - Exemplo: João, o café está esfriando! → em que “João” é o vocativo.
tem medo de algo) ou simplesmente repete, reproduz a noção veiculada por “medo”?
Bem, “de fantasmas”, pelo menos na frase de ilustração, não pode ser uma b)Atitudinal
característica de “medo” (características de “medo” são, por exemplo, “medo brutal,
de arrepiar, sem razão etc.); também muito menos pode ser, em nenhuma hipótese, a - Vem geralmente separado por vírgula e pode aparecer em qualquer lugar da frase;
simples repetição de “medo” (basta ver que “João tem medo de fantasmas” não é a - Confunde-se geralmente com o ADV, pois encerra as mesmas características
mesma coisa que “João tem fantasmas”; se “de fantasmas” apenas repetisse “medo”, morfossintáticas deste;
essa relação poderia ser postulada). Então, “de fantasmas” só deve ser um - Difere do ADV porque representa a reação/comportamento do sujeito falante
preenchimento de lacuna, exigida, no contexto, por “medo”: há a necessidade de se (quem propalou a frase) a respeito do que é dito;
reportar ao tipo ou motivo do medo de “João”. E assim por diante. - Exemplo: Infelizmente, João não foi aprovado no concurso.
Outro aspecto sugerido pelo traço natureza semântica que pode ser utilizado
para facilitar a análise sintática é a condição de agente do ADN, em contraste com a c)Modificador:
condição de paciente (alvo) do CN, especificamente nos casos que envolvem núcleo
substantivo abstrato. Assim, em – c1)Enfatizador
- Vem sempre junto a um verbo, enfatizando a noção nele contida;
Produção do engenheiro - A gramática escolar chama-o, comumente, de partícula de realce;
- É representado por vocábulos da língua de uma lista restrita de itens, embora
– “do engenheiro” deve ser classificado como ADN, porque equivale ao agente do possa às vezes ser realizado por expressões linguísticas algo complexas;
processo ditado por “produção”: “o engenheiro produz”. Agora, em – - Exemplo: João só trabalha.
21
D E L P R T F V M I C A
*KOCH
ELIPSE ORDEM DOS TERMOS AMBIGUIDADE
O
Analise os termos sublinhados nas orações seguintes com base em ambos os modelos, UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ
concomitantemente: Faculdade de Filosofia D. Aureliano Matos – L. do Norte
Curso: Letras / Disciplina: Sintaxe / Professor: Bento
Michel Temer passa mal e é internado em hospital de Brasília
ATIVIDADE DE SINTAXE [2]
Redação O POVO Online
25/10/2017 J. Bento
O presidente Michel Temer passou mal nesta quarta-feira, 25, e foi Siga os modelos estruturais de oração abaixo:
encaminhado ao centro cirúrgico do hospital das Forças Armadas em Brasília.
Ainda não há mais detalhes sobre o quadro de saúde do presidente. A informação é *KOCH
da Globo News.
O episódio foi confirmado agora há pouco pelo ministro Eliseu Padilha (Casa- O
Civil). Segundo o ministro, Temer teria tido complicações renais e decidiu ir ao
hospital se consultar com urologista. O presidente, no entanto, já estaria se
recuperando e voltaria a acompanhar a votação na Câmara ainda nesta quarta.
A informação também foi confirmada à Folha de S. Paulo pelo deputado
Antonio Imbassahy, ministro da Secretaria de Governo que pediu licença para votar SN SV (SPA)
na denúncia contra Temer. Segundo ele, no entanto, o presidente realiza exame que
já estava agendado.
O episódio ocorre em meio a impasse na votação da Câmara dos Deputados
sobre 2ª denúncia da Procuradoria-Geral da República (PGR) contra o V intr (intens) (SPA)
peemedebista. Sem quórum para colocar a ação em pauta, a base aliada chegou a
trans (intens) SN (SPA)
apresentar requerimento para adiar a votação. SPC
SN + SPC
Obs.: O texto foi copiado para uso exclusivo em sala-de-aula, como apoio didático. SPC + SPC
Cóp SA
fim SN
SP
*ROCHA LIMA
S P Voc
Analise os termos sublinhados nas orações seguintes com base em ambos os modelos, UNIVERIDADE ESTADUAL DO CEARÁ
concomitantemente: Faculdade de Filosofia D. Aureliano Matos – L. do Norte
Curso: Letras
Cobrador é lesionado a faca durante assalto a ônibus no Conjunto Ceará Disciplina: Sintaxe
Adolescente que feriu o cobrador foi contido por populares e entregue aos policiais Professor: Bento
militares
ATIVIDADE DE SINTAXE [3]
Redação O POVO Online
01/11/2017 J. Bento
Um cobrador foi lesionado a faca durante um assalto na manhã desta quarta- Faça a descrição sintática geral dos seguintes elementos frásicos, tendo como base o
feira, 1º, dentro de um coletivo que faz a linha Conjunto Ceará- Lagoa, na altura da esquema proposto:
avenida C, no bairro Conjunto Ceará.
De acordo com a Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social (SSPDS), O e O
após a ação criminosa, o adolescente que feriu o cobrador foi contido por populares mas
e entregue aos policiais militares. ou
A vítima foi encaminhada para uma unidade de saúde. Já composição policial logo
seguiu com o infrator para a Delegacia da Criança e do Adolescente (DCA) para porque
realização do procedimento policial.
O Sindiônibus confirmou a ocorrência e informou que o cobrador teve um
corte na testa, mas o estado de saúde dele é estável. O Sindicato não emitiu nota
sobre o caso.
Esq. Dir. Esq. Dir.
Obs.: O texto foi copiado para uso exclusivo em sala-de-aula, como apoio didático.
V V
↓ ↓
4.Nhola chamou o chulinho, que vinha nadando pelo quarto, soprando a água.
fim
UNIVERIDADE ESTADUAL DO CEARÁ UNIVERIDADE ESTADUAL DO CEARÁ
Faculdade de Filosofia D. Aureliano Matos – L. do Norte Faculdade de Filosofia D. Aureliano Matos – L. do Norte
Curso: Letras Curso: Letras
Disciplina: Sintaxe Disciplina: Sintaxe
Professor: Bento Professor: Bento
J. Bento J. Bento
Faça a descrição sintática geral dos seguintes elementos frásicos, tendo como base o Faça a descrição sintática geral dos seguintes elementos frásicos, tendo como base o
esquema proposto: esquema proposto:
O e O O e O
mas mas
ou ou
logo logo
porque porque
(O) (O) (O)... (O) (O) (O)... (O) (O) (O)... (O) (O) (O)...
V V V V
↓ ↓ ↓ ↓
UNIVERIDADE ESTADUAL DO CEARÁ 1.No lugar da casa de telhas, que ruiu, ergueram um rancho de palhas.
Faculdade de Filosofia D. Aureliano Matos – L. do Norte
Curso: Letras
2.A minha especialidade é ter razão quando os outros não a tem.
Disciplina: Sintaxe
Professor: Bento
3.O nosso herói não estava satisfeito, porque não conseguira em convite
para o filho.
ATIVIDADE DE SINTAXE [6]
4.Joaquim estava desempregado e lutava com grandes dificuldades para
J. Bento
se manter.
Dê a descrição sintática geral das seguintes frases, considerando o modelo de 5.Nós, os idiotas da esperança, sentamos no meio fio e choramos
representação requerido: lágrimas de esguicho.
Obs.: Frases copiadas de textos diversos e de autores diversos, com o objetivo único de explicitar pontos
da estrutura da língua.
fim
V V
↓ ↓
1 2
UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ — Maria! Abre esta porta! — gritava, desta vez esmurrando a porta, já sem nenhuma cautela. Ouviu
Faculdade de Filosofia D. Aureliano Matos – L. do Norte que outra porta se abria atrás de si.
Voltou-se, acuado, apoiando o traseiro no batente e tentando inutilmente cobrir-se com o
Curso: Letras embrulho de pão. Era a velha do apartamento vizinho:
Disciplina: Sintaxe — Bom dia, minha senhora — disse ele, confuso. — Imagine que eu...
Professor: Bento A velha, estarrecida, atirou os braços para cima, soltou um grito:
— Valha-me Deus! O padeiro está nu!
ATIVIDADE DE SINTAXE [7] E correu ao telefone para chamar a radiopatrulha:
— Tem um homem pelado aqui na porta!
Outros vizinhos, ouvindo a gritaria, vieram ver o que se passava:
J. Bento — É um tarado!
— Olha, que horror!
Identifique e destaque as orações inscritas nos textos abaixo, restabelecendo, para — Não olha não! Já pra dentro, minha filha!
cada uma, a forma canônica de base: Maria, a esposa do infeliz, abriu finalmente a porta para ver o que era. Ele entrou como um foguete
e vestiu-se precipitadamente, sem nem se lembrar do banho. Poucos minutos depois, restabelecida a
calma lá fora, bateram na porta.
O Homem Nu — Deve ser a polícia — disse ele, ainda ofegante, indo abrir.
Não era: era o cobrador da televisão.
Ao acordar, disse para a mulher:
— Escuta, minha filha: hoje é dia de pagar a prestação da televisão, vem aí o sujeito com a conta, na Fernando Sabino, Editora do Autor, Rio de Janeiro, 1960, pág. 65.
certa. Mas acontece que ontem eu não trouxe dinheiro da cidade, estou a nenhum.
— Explique isso ao homem — ponderou a mulher.
— Não gosto dessas coisas. Dá um ar de vigarice, gosto de cumprir rigorosamente as minhas obrigações.
Escuta: quando ele vier a gente fica quieto aqui dentro, não faz barulho, para ele pensar que não tem As pombas
ninguém. Deixa ele bater até cansar — amanhã eu pago.
Pouco depois, tendo despido o pijama, dirigiu-se ao banheiro para tomar um banho, mas a mulher Raimundo Correia
já se trancara lá dentro. Enquanto esperava, resolveu fazer um café. Pôs a água a ferver e abriu a porta
de serviço para apanhar o pão. Como estivesse completamente nu, olhou com cautela para um lado e
para outro antes de arriscar-se a dar dois passos até o embrulhinho deixado pelo padeiro sobre o Vai-se a primeira pomba despertada...
mármore do parapeito. Ainda era muito cedo, não poderia aparecer ninguém. Mal seus dedos, porém, Vai-se outra mais... mais outra... enfim dezenas
tocavam o pão, a porta atrás de si fechou-se com estrondo, impulsionada pelo vento. De pombas vão-se dos pombais, apenas
Aterrorizado, precipitou-se até a campainha e, depois de tocá-la, ficou à espera, olhando Raia sanguínea e fresca a madrugada...
ansiosamente ao redor. Ouviu lá dentro o ruído da água do chuveiro interromper-se de súbito, mas
ninguém veio abrir. Na certa a mulher pensava que já era o sujeito da televisão. Bateu com o nó dos
dedos: E à tarde, quando a rígida nortada
— Maria! Abre aí, Maria. Sou eu — chamou, em voz baixa. Sopra, aos pombais de novo elas, serenas,
Quanto mais batia, mais silêncio fazia lá dentro. Ruflando as asas, sacudindo as penas,
Enquanto isso, ouvia lá embaixo a porta do elevador fechar-se, viu o ponteiro subir lentamente os Voltam todas em bando e em revoada...
andares... Desta vez, era o homem da televisão!
Não era. Refugiado no lanço da escada entre os andares, esperou que o elevador passasse, e voltou
para a porta de seu apartamento, sempre a segurar nas mãos nervosas o embrulho de pão: Também dos corações onde abotoam,
— Maria, por favor! Sou eu! Os sonhos, um por um, céleres voam,
Desta vez não teve tempo de insistir: ouviu passos na escada, lentos, regulares, vindos lá de baixo... Como voam as pombas dos pombais;
Tomado de pânico, olhou ao redor, fazendo uma pirueta, e assim despido, embrulho na mão, parecia
executar um ballet grotesco e mal ensaiado. Os passos na escada se aproximavam, e ele sem onde se
No azul da adolescência as asas soltam,
esconder. Correu para o elevador, apertou o botão. Foi o tempo de abrir a porta e entrar, e a empregada
passava, vagarosa, encetando a subida de mais um lanço de escada. Ele respirou aliviado, enxugando o Fogem... Mas aos pombais as pombas voltam,
suor da testa com o embrulho do pão. E eles aos corações não voltam mais...
Mas eis que a porta interna do elevador se fecha e ele começa a descer.
— Ah, isso é que não! — fez o homem nu, sobressaltado.
E agora? Alguém lá embaixo abriria a porta do elevador e daria com ele ali, em pêlo, podia mesmo
Mal Secreto
ser algum vizinho conhecido... Percebeu, desorientado, que estava sendo levado cada vez para mais longe
de seu apartamento, começava a viver um verdadeiro pesadelo de Kafka, instaurava-se naquele momento
o mais autêntico e desvairado Regime do Terror! Raimundo Correia
— Isso é que não — repetiu, furioso.
Agarrou-se à porta do elevador e abriu-a com força entre os andares, obrigando-o a Se a cólera que espuma, a dor que mora
parar. Respirou fundo, fechando os olhos, para ter a momentânea ilusão de que sonhava. Depois
N’alma e destrói cada ilusão que nasce;
experimentou apertar o botão do seu andar. Lá embaixo continuavam a chamar o elevador. Antes de
mais nada: "Emergência: parar". Muito bem. E agora? Iria subir ou descer? Com cautela desligou a Tudo o que punge, tudo o que devora
parada de emergência, largou a porta, enquanto insistia em fazer o elevador subir. O elevador subiu. O coração, no rosto se estampasse;
3 4
Mário Quintana
Em (1), o espaço B não ocorre no PR porque não é previsto no PP. Em (2), no Em (6.c), o adjunto “bem” é, em última análise, a principal porção de
entanto, o que ocorre é a omissão de um complemento que o verbo prevê informação que a sentença veicula. A frase (6.b) é sentida como anômala porque é,
potencialmente, tanto que, mesmo não estando sintaticamente preenchido, o alvo da de certo modo, semanticamente vazia: supõe-se que todas as pessoas moram, não
ação verbal continua semanticamente implícito. havendo, portanto, sentido em se afirmar X mora. Em outras palavras, a sequência
É importante ressaltar aqui que não constituem objeto da presente dissertação (6.b) é semanticamente vazia porque não é possível contrastá-la, por exemplo, com
os casos de omissão de complementos devidos a fatores contextuais. A elipse de
termos oracionais é sempre possível desde que eles sejam recuperáveis, quer no (6)(d)*Minha tia não mora.
contexto linguístico em que o enunciado se insere, quer na situação extralinguística.
As referências feitas aqui às possibilidades de omissão de complementos levam em (Mesmo desejando expressar que alguém não tem residência, um falante nativo não
conta apenas o nível da frase. o faria com uma sequência como (6.d).
Alguns verbos, diferentemente de “comer”, exigem o preenchimento, no PR, Compare-se o caso de “morar” com o caso de “fumar”. Uma frase como
de todos os espaços previstos em seu PP, como ocorre nos casos abaixo:
(7)Minha tia fuma.
(3) (a)A comissão procedeu ao exame dos depoimentos.
(b)*A comissão procedeu. É semanticamente perfeita, já que veicula uma informação: uma vez que nem todas
(4)(a)Marcelinho comprou um monte de figurinhas. as pessoas fumam, há algum conteúdo numa afirmação como X fuma, que se opõe a
(b)*Marcelinho comprou. X não fuma. (Observe-se que é preciso postular um espaço B no PP para o verbo
“fumar”: “Minha tia fuma cachimbo\cigarro de palha \ qualquer marca que lhe
Como fica implícito nessa proposta, a possibilidade ou impossibilidade de oferecem.”).
omissão não é um critério adequado para se decidir se determinado termo tem ou A esse respeito, é interessante examinar o caso de “beber”. Em princípio, seria
não valor de complemento. Se, por um lado, há complementos que podem ser de se esperar que ocorresse com esse verbo o mesmo que ocorre com “morar”. No
omitidos, como é o caso do espaço B do verbo “comer”, citado acima, por outro lado entanto, são possíveis sentenças como (8.a), com omissão do segundo espaço do
há termos que não são complementos – no sentido de que não são exigência sintático- verbo:
semântica do verbo no PP – e que não podem ser omitidos, sob pena de as sentenças
tornarem-se inaceitáveis, como em (8)(a)Minha tia bebe.
(5)(a)Os mudos falam com as mãos. Com “beber”, porém, a omissão do segundo complemento acarreta
(b)*Os mudos falam. automaticamente sua interpretação como bebida alcoólica. Ocorre, portanto, uma
restrição desse complemento, o qual pode corresponder a qualquer líquido. É
O que parece estar sempre em jogo é a possibilidade de interpretação possível aqui, desse modo, o contraste entre (8.a) e
semântica da sentença. Não será possível omitir um termo – seja ele complemento
ou não – se a sentença resultante dessa omissão não puder ser vista pelo falante como (8)(b)Minha tia não bebe.
capaz de veicular informação inteligível e plausível. Essa é a razão última dos
diversos casos examinados por Brito (1986), em que a omissão de determinados B)Uso de um tempo verbal, como o presente ou o pretérito imperfeito do indicativo,
complementos é possível devido à presença na frase de um, ou vários dos fatores que denote hábito, repetição:
seguintes:
(9)(a)*O fogo destruiu.
A)Existência de um adjunto adverbial. Um exemplo é o verbo “morar”, que exige (b)O fogo destrói.
no plano potencial um complemento locativo, o qual não pode ser omitido no plano (10)(a)*Minha irmã cozinhou.
das realizações: (b)Minha irmã cozinhava.
(6)(a)Minha tia mora em São Paulo. Nessas frases o verbo ganha o sentido de ter a capacidade, o poder ou a
(b)*Minha tia mora. habilidade de, ou ainda de exercer habitualmente a atividade de. Interessam antes o
processo ou a ação em si, e não o alvo sobre o qual recaem.
No entanto, a presença na frase de um adjunto adverbial de modo, como
“bem” ou “mal”, torna a omissão do complemento possível: C)Existência, em alguma parte da frase ou na frase como um todo, de informação
que permita recuperar o conteúdo do complemento omitido:
(6)(c)Minha tia mora bem.
(11)O pianista tocou muito bem.
4 5
Quanto a esse tipo de mecanismo, cabe acrescentar que o inverso também pode ser omitido. Pode, quando muito, ser indeterminado em algumas situações e
pode ocorrer. Ou seja, a presença na frase de determinado tipo de informação pode mediante certos processos, mas fica, mesmo assim, implícito. O segundo e o terceiro
tornar impossível a omissão de um termo, seja ele complemento ou não. complementos, à direita, podem ser omitidos com alguns verbos, às vezes em
É o que ocorre nas frases em (5), repetidas abaixo: circunstâncias especiais, e em alguns casos, como observado acima, acarretando
uma restrição do significado do verbo. Assim, por exemplo, o segundo espaço do
(5)(a)Os mudos falam com as mãos. verbo “estudar” pode ser sempre omitido:
(b)*Os mudos falam.
(15)(a)Fernando estuda \ estudou \ está estudando \ vai estudar inglês.
A presença do adjunto “com as mãos”, em (5.a), torna possível uma extensão (b)Fernando estuda \ estudou \ está estudando \ vai estudar.
do significado do verbo “falar”, fazendo com que a frase seja aceitável. Em (5.b), ao
contrário, onde aquele termo foi omitido, a frase torna-se inaceitável por sua Outros verbos admitem a omissão de seu segundo complemento no aspecto
incoerência semântica. imperfectivo (quando o foco semântico está antes na ação ou processo expressos pelo
Além da incoerência, como nesse caso, também a redundância pode resultar verbo, e não no alvo sobre o qual recaem), ou ainda mediante o acréscimo de
em anomalia semântica. Assim, por exemplo, a frase adjuntos adverbiais:
É claro que se deve lembrar aqui duas situações em que frases como (13.a) e (19)(a)O diretor transferiu o Departamento de Obras daqui para o quinto andar.
(14.a) seriam aceitáveis. A primeira delas é a metalinguagem. Se o objetivo de (b)O diretor transferiu o Departamento de Obras daqui.
sentenças como essas é definir semanticamente os nomes “motorista” ou (Na leitura em que “daqui” não faz parte do sintagma nominal “o Departamento de
“cozinheira”, é possível dizer “O motorista dirige” ou “A cozinheira cozinha”, Obras”.)
situação na qual a redundância das frases, que constituiria sua anomalia semântica,
passa a ser o próprio objetivo comunicativo delas. (Repare-se que, nesse caso, seria Além dessa relação entre os tipos de espaços do verbo e as possibilidades de
necessário que os determinantes fossem “o(a)”, ou “um(uma)”, e não os possessivos omissão desses espaços, é preciso considerar um outro fator, de natureza
empregados em (13.a) e (14.a)). A segunda situação de aceitabilidade é aquela em eminentemente semântica. Se, por um lado, verbos com um maior número de
que uma entoação particular compensaria a falta de adjuntos adverbiais, conferindo espaços tendem a admitir com mais facilidade a omissão dos espaços mais à direita,
às frases as ideias de “bem” ou “mal”. há, por outro lado, verbos com o mesmo número de espaços, que compartilham
Em resumo, a capacidade da sentença de veicular informação diversas propriedades semânticas e sintáticas, e que, apesar disso, apresentam
comunicativamente válida é um fator importante na determinação da possibilidade possibilidades bastante diferentes de omissão de complementos. É o que ocorre, por
de se omitir qualquer um de seus termos. Além de fatores determinados pela frase exemplo, com “chamar” e “xingar”. Os dois verbos tomam o esmo número de
como um todo, há fatores inerentes aos verbos em si mesmos que também complementos, a saber, três: um sujeito, um objeto direto e um predicativo, na
condicionam as possibilidades de omissão de complementos. terminologia tradicional:
Brito (1986) observa que os espaços verbais mais à direita têm maiores
possibilidades de ser omitidos. O primeiro espaço-complemento (o sujeito) jamais (20)(a)André chamou Lurdinha de mentirosa.
6 7
(b)André xingou Lurdinha de mentirosa. (24)(a)As mães não devem encher \ empanturrar as crianças de doces.
(b)As mães não devem *encher \ empanturrar as crianças.
As frases (20.a) e (20.b) são praticamente sinônimas, mas as possibilidades de (No sentido que “encher” tem em (24.a)).
omissão do terceiro complemento são inteiramente diferentes para os dois verbos:
A frase (24.b) com “encher” é agramatical porque é impossível prever (e,
(21)(a)*André chamou Lurdinha. (No sentido que “chamar” tem em (20.a)) consequentemente, recuperar) o conteúdo semântico do complemento omitido.
(b)André xingou Lurdinha. Enquanto “empanturrar” admite nessa posição somente complementos que
denotem alimento, “encher” admite aí complementos com os mais variados traços
O verbo “xingar”, portanto, ao contrário de “chamar”, admite omissão de seu semânticos:
terceiro complemento, inclusive sem sofrer qualquer alteração de significado. O
exame das diferenças semânticas entre “xingar” e “chamar” oferece uma explicação (25)As mães não devem encher as crianças de mimos \ de sermões \ de pancada \ de
para tal fato, a qual é corroborada, como se mostra adiante, pelo estudo de casos presentes \ de tarefas \ de lições de moral \ de medo.
semelhantes.
O verbo “xingar” é um hipônimo de “chamar”, ou seja, o conteúdo semântico Note-se, no entanto, que essa relação que se observa entre a especificidade e
de “chamar” corresponde a uma parcela do conteúdo semântico de “xingar”. Em previsibilidade semântica de um complemento, de um lado, e sua possibilidade de
outras palavras, “xingar” tem um significado mais específico que “chamar”, e essa omissão, de outro, é apenas uma tendência muito geral, não configurando uma regra,
especificidade se reflete nas restrições de seleção impostas pelo verbo a seus ou um fenômeno perfeitamente regular. Retomando-se os exemplos (24) e (25),
complementos. Assim, “xingar” implica que o predicativo tenha necessariamente observa-se que o segundo complemento do verbo “empanturrar” é, assim como o
um caráter pejorativo, enquanto “chamar” é neutro a esse aspecto: terceiro, específico e previsível do ponto de vista semântico: só podem ocorrer aí
complementos com o traço [+ animal]. “Encher”, ao contrário, admite nessa posição
(22)(a)André chamou \ xingou Lurdinha de mentirosa. complementos marcados ou não com esse traço:
(b)André chamou \ *xingou Lurdinha de santa.
(26)Encheu as crianças de sorvete.
Essa diferença na especificidade semântica também se reflete na seleção do Empanturrou o gato de sardinha.
segundo complemento. Enquanto “chamar” admite como objeto direto itens com (27)Encheu \ *Empanturrou as sacolas de frutas \ a casa de trastes \ o caderno de
quaisquer traços semânticos, não parecem muito naturais as sentenças em que besteiras.
“xingar” toma um objeto direto que não seja marcado pelo traço [+ humano]:
O segundo complemento de “empanturrar”, apesar dessa especificidade
(23)(a)O chefe chamou-me de incompetente \ meu trabalho de porcaria \ minha semântica, não pode ser omitido, exatamente como ocorre com o segundo
atitude complemento de “encher”:
de hipócrita.
(b)O chefe xingou-me de incompetente \ *meu trabalho de porcaria \ *minha (28)*Encheu \ *Empanturrou de sorvete \ de sardinha.
atitude de hipócrita.
Aqui entra em jogo, provavelmente, a generalização mencionada acima, sobre ser o
A partir disso, pode-se propor uma segunda generalização a respeito das segundo espaço mais dificilmente omissível do que o terceiro e o quarto.
possibilidades de omissão de complementos, qual seja, a de que quanto mais Há outros casos em que, apesar da alta previsibilidade de um complemento,
específico for o significado de um verbo e, consequentemente, quanto mais previsível ele não pode ser omitido. É o que ocorre com verbos como “atear” e “assoar”. O
for o conteúdo semântico de um complemento desse verbo, maior será a tendência a primeiro, quando com três espaços, só admite no segundo o item lexical “fogo”.
que esse complemento possa ser omitido. Esta generalização leva, em última análise, “Assoar”, por sua vez, é um verbo de dois espaços, cujo segundo só pode ser
ao que se afirmou inicialmente sobre a recuperabilidade de informações omitidas e preenchido por “o nariz” (admitidas variações: “o narigão”, “seu enorme nariz”...).
a validade comunicativa das sentenças. Aqui, no entanto, trata-se de um fator No entanto, apesar dessa forte restrição, esses complementos não podem ser
intrínseco aos próprios verbos, e não de propriedades da sentença em seu conjunto. omitidos:
Essa diferença na possibilidade de omissão de complementos que se observa
entre “xingar” e “chamar” ocorre com vários outros verbos. “Encher”, por (29)(a)Alguém ateou fogo à mata.
exemplo, tem significado mais genérico que “empanturrar”. Assim, as frases em (a), (b)*Alguém ateou à mata.
abaixo, são ambas possíveis, mas em (b), onde o terceiro complemento foi omitido,
não é possível empregar-se “encher”: (30)(a)Ele assou o nariz ruidosamente.
(b)*Ele assoou ruidosamente.
8 9
Fatos como esses justificam a afirmação de que a complementação verbal é Com o verbo “correr” é possível ainda omitir-se somente o complemento que
um fenômeno sintático-semântico. Os complementos “fogo” e “o nariz”, de “atear” indica o ponto terminal do movimento, conservando-se o que indica o ponto inicial.
e “assoar”, respectivamente, são praticamente vazios em termos semânticos, graças Nesse caso, o verbo assume o sentido de “fugir”:
a sua total previsibilidade. No entanto, o preenchimento de seu lugar sintático é
obrigatório. Três falantes nativos consultados acerca da sequência (36)(a)Chapeuzinho correu do lobo.
(b)O menino correu da mãe.
(31)*Ele assoou. (c)As crianças correram da casa mal-assombrada.
mostraram-se capazes de lhe atribuir interpretação semântica, mas ao mesmo Esse fenômeno é paralelo ao que se observa acima sobre a omissão do segundo
tempo acusaram a necessidade de repor o complemento omitido. Observe-se ainda espaço, com verbos como “beber” ou “dirigir”. Há, no entanto, uma diferença
a existência do verbo pronominal “assoar-se”, com o mesmo significado de “assoar interessante entre as duas situações. Naqueles casos, a modificação do significado
o nariz”, no qual o pronome “se” ocupa o lugar sintático do complemento “o nariz”. dos verbos, decorrente da omissão do complemento, relaciona-se a uma
Em casos como o de “atear” e “assoar”, os complementos devem ser incluídos especificação semântica do espaço correspondente ao complemento omitido.
nas entradas lexicais dos verbos como parte de expressões cristalizadas. Note-se, no Comparem-se:
entanto, que a situação desses verbos é diferente da que ocorre com expressões como
“tirar o cavalinho da chuva”, “comer mosca”, “dar bandeira”, “lavar a égua”. No (37)(a)Antônio dirige bem seus negócios \ seus esforços \ sua vida familiar \ qualquer
caso dessas expressões, ao contrário do que ocorre com “atear” e “assoar”, o carro.
significado total é inteiramente diferente do que se poderia esperar do significado (b)Antônio dirige bem.
da combinação, no nível sintático, dos elementos que entram na composição.
Qualquer omissão dos elementos que acompanham o verbo de uma dessas Por outro lado, em casos como o de “correr”, a omissão não resulta numa
expressões acarreta uma interpretação semântica completamente diversa da restrição sobre o que foi omitido, e sim numa modificação do significado do verbo
interpretação da expressão como um todo: num sentido circunstancial. Por exemplo, em
A maior especificidade semântica de “correr” de certo modo enfraquece o Situação semelhante à de “correr” é a do verbo “ficar”, na gíria dos
papel nuclear dos argumentos de valor locativo que acompanham este verbo, já que adolescentes, com o sentido de namorar por um período curto, sem maior
o próprio verbo carrega por si só uma porção significativa de informação. É isso que compromisso. Privado de seu argumento com função de lugar, acrescenta-se a este
torna possível, com o verbo “correr”, a omissão dos complementos que indicam o verbo uma noção de modo (ficar namorando):
ponto inicial e o ponto terminal do movimento, sendo a ação expressa pelo verbo
concebida como uma atividade em si mesma, independentemente de qualquer outra (39)(a)Débora ficou com André.
informação, ao contrário do que ocorre com “ir”: (b)Débora e André ficaram ontem.
(35)(a)Ontem ele correu. O grupo de verbos com os quais esse trabalho se ocupa prioritariamente é o
(b)*Ontem ele foi. dos verbos de três espaços – um espaço à esquerda, correspondente à função
sintática de sujeito, e dois espaços à direita. São considerados verbos de três espaços
aqueles que tomam esse número de complementos no PP, conforme proposta de
10 1
Brito (1986), ainda que possam aparecer com apenas um ou dois deles no PR. Do UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ
mesmo modo, esses verbos são distinguidos daqueles que, ainda que possam Faculdade de Filosofia D. Aureliano Matos – L. do Norte
eventualmente figurar com três espaços no PR, têm quatro espaços no PP (por ex.: Curso: Letras
“comprar” e “vender” – “Mônica comprou esta colcha de Isabel por mil cruzeiros.”; Disciplina: Sintaxe
“Isabel vendeu esta colcha a Mônica por mil cruzeiros.”). Professor: Bento
Na definição do número e do tipo de complementos de um verbo no PP, é
importante não perder de vista que o complemento é um espaço exigido pelo verbo, DIMENSÕES SINTÁTICAS DA LÍNGUA
simultaneamente, no nível sintático e no nível semântico. Há verbos que têm uma ou [sistema do português]
mais entidades implícitas em seu significado sem, no entanto, admitirem espaços
sintáticos correspondentes a essas entidades. É o caso, por exemplo, de J. Bento
“desconversar”, que implica, semanticamente um assunto e um interlocutor, mas que
não se constrói acompanhado de complementos com essas noções semânticas:
ESTRUTURA SINTÁTICA
(40)(a)Quando toquei no problema da prestação de contas, o presidente
desconversou.
(b)*O presidente desconversou comigo sobre o problema da prestação de contas. FUNÇÃO
São aqui considerados como tendo três espaços, portanto, somente aqueles
verbos que possam efetivamente tomar três complementos em nível sintático, não
sendo incluídos casos como o de “desconversar”, que toma apenas um espaço núcleo subordinado(s)
sintático, embora possua mais dois argumentos semanticamente implícitos, ou o de
“apimentar”, que, embora signifique aproximadamente o mesmo que pôr pimenta
em, toma apenas dois complementos, ao contrário de “pôr”, que toma três. nominal e verbal obrigatório e/ou facultativo
Obs.: O texto foi copiado, com adaptação, para uso exclusivo em sala-de-aula, como COLOCAÇÃO
recurso didático.
REGÊNCIA
CONCORDÂNCIA
nominal e verbal
[gênero/número] [pessoa/número]
2 1
Do enredo acima, podemos deduzir que a Sintaxe, enquanto disciplina, UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ
encerra uma classificação, do ponto de vista do objeto focalizado: Faculdade de Filosofia D. Aureliano Matos – L. do Norte
Curso: Letras
Disciplina: Sintaxe
SINTAXE Professor: Bento
J. Bento
1.Transitividade verbal
de funções de colocação de regência de concordância A transitividade verbal, no português, comporta três hipóteses não
necessariamente excludentes, a depender de uma tipologia de verbos sob o critério
da respectiva hipótese:
a)Sintaxe de funções – estudo dos elementos subordinados aos núcleos (nominal ou
verbal), em termos de sua natureza obrigatória ou facultativa, bem como seu papel VERBO
sintático-semântico na integralidade do construto oracional (basicamente, sujeito,
complemento e adjunto);
*comprar
X comprar Y a Z por W
2 3
– (dispensemos, nesta discussão, a ideia de abranger o sujeito como um aspecto da 2.Função sintática vs. Função semântica
transitividade verbal), veremos que Z e W são perfeitamente elipsados, enquanto Y
é bastante resistente à omissão: Quando fazemos a análise sintática pela via tradicional, dificilmente nos
perguntamos o que a vem ser, exatamente, uma função sintática. Mas nós podemos
*João comprou uma bola a Pedro por vinte reais. entender este conceito através do critério da imprescindibilidade, rigorosamente
*João comprou uma bola a Pedro. aplicado ao procedimento analítico. A imprescindibilidade é um construto que visa
*João comprou uma bola. discernir entre aqueles elementos da estrutura oracional que contribuem para a sua
*?João comprou. efetiva organização, ou gramaticalidade – função sintática –, em contraposição aos
elementos, prescindíveis, que resultam do itinerário comunicativo, mas não de uma
Já um verbo do tipo – exigência linguística stricto sensu – função semântica. Toda função sintática exerce,
ainda que indiretamente, uma função semântica, embora nem toda função
*querer semântica reclame uma função sintática, nos termos em que estamos a compreender
os fatos.
– deveria ser classificado como de transitividade invariável: Vamos ilustrar este pensamento com a oração –
Com efeito, percebe-se uma forte resistência à omissão de Y: – colocando em sublinhados separados os elementos que se supõe estarem a compor
o enunciado, do ponto de vista linguístico e em certo nível estrutural.
*João quer a bola. Uma breve reflexão é suficiente para enxergarmos a dispensabilidade de
*?João quer. certos elementos, bem como a indispensabilidade de outros elementos, para a
consecução da estrutura oracional. No fim das contas, apenas “João”, “comprou” e
“Comer”, “considerar” e “trabalhar”, por outro lado, deveriam ser “uma bola” dão conta, satisfatoriamente, da identificação do enunciado como uma
classificados como de transitividade diversa, pois que a variação na transitividade oração, além de serem a exigência para se tomar esta construção sintática como uma
provoca diferenciação semântica: oração:
devem ser realocados como funções meramente semânticas, uma vez que não são UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ
exigências da estrutura oracional. Numa frase do tipo – Faculdade de Filosofia D. Aureliano Matos – L. do Norte
Curso: Letras
*João comprou uma bola na semana passada, em Fortaleza. Disciplina: Sintaxe
Professor: Bento
– os elementos sublinhados, “na semana passada” e “em Fortaleza” – adjuntos
adverbiais –, são dados meramente discursivos e, portanto, exercem função ESTRUTURA DA ORAÇÃO [1]
restritamente semântico-informacional. É certo que a construção linguística integral [funções sintáticas de nível oracional]
está em conformidade com o modelo sintático esperado e, neste sentido, é uma
construção gramatical, inclusive por haver exigências com relação ao contexto de Souza e Silva & Koch
inserção e disposição sintagmática dos elementos, mas tal constatação talvez não seja
suficiente para sustentar que os referidos elementos compõem a estrutura sintática Os constituintes oracionais são os sintagmas. O sintagma consiste num
stricto sensu, pois que podem ser excluídos sem prejuízo da gramaticalidade, que é conjunto de elementos que constituem uma unidade significativa dentro da oração
o ponto a ser focado. e que mantêm entre si relações de dependência e de ordem. Organizam-se em torno
Este mesmo raciocínio pode ser aventado com relação a “de couro”, como em de um elemento fundamental, denominado núcleo, que pode, por si só, constituir o
– sintagma. Nas frases –
*João comprou uma bola de couro. Pedro está diante da vitrine de uma joalheria.
O policial deteve vários suspeitos do furto.
Apesar de, ao selecionar “couro” para caracterizar “bola” – adjunto adnominal –, A criancinha doente adormeceu.
o falante seja obrigado a interpor a preposição “de” – um dado sintático, portanto – Meu filho sonha ansiosamente com o dia de Natal.
ao falante não é dada a obrigação, linguística, de caracterizar “bola”. Você levará a encomenda
Estamos, neste ínterim, alcançando o vislumbre de dois aspectos linguísticos
complementares: – os sintagmas “Pedro”, “o policial”, “a criancinha doente”, “meu filho” e “você”
têm como núcleo um elemento nominal (nome ou pronome), tratando-se, pois, de
a)Em primeiro lugar, o falante domina um conjunto de entradas lexicais – o Léxico sintagmas nominais. Já em “está diante da vitrine de uma joalheria”, “deteve vários
–, que será acionado em concordância com o propósito comunicativo: “comprar”, suspeitos do furto”, “adormeceu”, “sonha ansiosamente com o dia de Natal” e
“bola”, “couro” etc.; “levará encomenda”, o elemento fundamental é o verbo, de modo que se tem, no
b)Em segundo lugar, o falante organiza estas unidades lexicais num plano sintático caso, sintagmas verbais.
que prevê obrigações linguísticas – a Sintaxe –, mas, dentro destas obrigações, há A natureza do sintagma depende, portanto, do tipo de elemento que constitui
um número mínimo de itens a serem impreterivelmente realizados, em o seu núcleo; além do sintagma nominal (SN) e do sintagma verbal (SV), existem os
conformidade com o verbo e, a partir do verbo, os nomes complementares. sintagmas adjetivais (SA), que têm por núcleo um adjetivo e os sintagmas
preposicionais (SP), que são, normalmente, formados de preposição + sintagma
Todas estas parcas considerações em torno da transitividade verbal, da função nominal.
sintática e correlatos são praticamente incipientes e insipientes, e devem ser julgadas Na estrutura da oração, em sua forma de base, aparecem como constituintes
apenas como hipóteses pueris, carentes de um complexo processo de obrigatórios o SN e o SV. Por exemplo:
amadurecimento, com fortíssimas possibilidades de se mostrarem inoperantes.
fim (1)O garoto / empinava papagaios de papel.
SN SV
Por mais longa que seja a frase, ela pode ser decomposta nesses dois subconjuntos:
(3)A irmã de uma conhecida de meu marido / recebeu uma belíssima homenagem
de seus companheiros de trabalho.
SN SV
2 3
(4)A carrocinha de pão que passava pela minha rua todos os dias / pertencia a um De uma maneira geral, o sintagma preposicionado (SP) é constituído de uma
antigo empregado da prefeitura municipal. preposição seguida de um SN. Examinando-se, porém, as orações –
SN SV
(8)O leiteiro sai cedinho.
O SN sujeito existe como posição estrutural, embora muitas vezes este (9)O leiteiro sai de madrugada.
elemento não se atualize, isto é, sua posição não seja lexicalmente preenchida: (10)O leiteiro sai à mesma hora todos os dias.
É necessário ressaltar, porém, que, além de apresentar-se, muitas vezes, como ou verbais (18), ora no exterior de qualquer sintagma, formando um constituinte à
um terceiro constituinte da oração, o SP pode ocorrer, também, dentro de um SN, parte, como modificadores oracionais: (11), (12) e (13):
de um SV ou de um SA, funcionando como modificador do núcleo, como nos
exemplos: SP
SN SPC SPA
[interior do sintagma]
SV COMPLEMENTOS ADJUNTOS
A diferenciação entre os diversos tipos de SP nem sempre é das mais fáceis, apesar
(17)Os pais de Carlos / chegaram da Europa. da existência de alguns critérios de ordem predominantemente semântico-
SP pragmática:
questão de transitividade: o SPC integra (como complemento) o significado Os exemplos de (31) apresentam o que as gramáticas tradicionais denominam
incompleto de: 1)nomes abstratos de ação, de movimento etc. derivados de verbos de predicado verbal. Quando, em lugar do verbo, aparece a cópula, tem-se o chamado
transitivos em sentido lato (deverbais), como “realização”, “execução”, “ida”, predicado nominal, que pode ser assim constituído:
“permanência”; 2)nomes abstratos de sentimentos que recaem sobre um alvo
específico, como “esperança”, “medo”, “saudade”; 3)nomes derivados de adjetivos (32)a. A lua é desabitada.
de valor transitivo, como “aptidão”, “incompatibilidade”, “capacidade”. O SPA, por cóp SA
sua vez, modifica nomes intransitivos, isto é, de carga semântica completa,
geralmente concretos, diminuindo-lhes a extensão para aumentar-lhes a SV
compreensão pelo acréscimo de uma caracterização, especificação, delimitação, etc.
b. A lua é um satélite.
O sintagma verbal (SV), um dos elementos básicos da oração, pode apresentar cóp SN
configurações diversificadas. Atribui-se a etiqueta verbo (V) ao constituinte do SV
que contém a forma verbal, composta de um só vocábulo (tempos verbais simples) SV
ou de vários vocábulos (tempos compostos ou locuções verbais). c.Estas rendas são do Ceará.
O SV pode ser representado apenas pelo núcleo, isto é, o verbo, como em – cóp SP
SV SV
A distinção se justifica apenas no caso de verbos que exigem dois complementos f)A análise proposta permite, também, desfazer algumas ambiguidades. Assim, em
(verbos transitivos diretos e indiretos), em que o primeiro (objeto direto) funciona frases como –
como alvo sobre o qual recai o processo verbal ou o resultado desse processo, e o
segundo (objeto indireto), como o destinatário ou beneficiário: (45)A multidão assistia à cena da calçada.
– numa primeira interpretação – a multidão estava na calçada, assistindo à cena UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ
que se passava em outro local – tem-se a frase dividida em três constituintes: SN (a Faculdade de Filosofia D. Aureliano Matos – L. do Norte
multidão apavorada) + SV (assistia à cena) + SP (da calçada); numa segunda leitura Curso: Letras
(a multidão, de outro local, assistia à cena que se passava na calçada), a estrutura é Disciplina: Sintaxe
binária: SN (a multidão apavorada) + SV (assistia à cena da calçada). Professor: Bento
e também
(4)Sarita já comeu.
2 3
Cada verbo tem, portanto, um conjunto de traços que especificam os (2)Sarita está dormindo.
complementos que ele exige, recusa ou aceita livremente; esse conjunto de traços
exprime a transitividade do verbo. Cada predicado (e, portanto, cada oração) possui o núcleo do predicado é “dormindo’; ao elemento “está” atribuiremos a função de
um conjunto próprio de traços de transitividade, derivado da transitividade de seu auxiliar.
verbo. Vendo o fato de outro ângulo, podemos dizer que em uma sentença há tantos Essa análise introduz uma complicação na conceituação de NdP. Eu disse que
conjuntos de traços de transitividade quantos predicados (ou orações) ela contém. o NdP é o verbo. Mas em (2) encontramos um verbo, “está”, que não é NdP. No
Mas em uma frase como entanto, há razões importantes para considerar “dormindo”, e não “está”, como
NdP. Por outro lado, o número de verbos que podem funcionar como auxiliar é
(2)Sarita está dormindo. pequeno, de modo que a complicação não é proibitiva. Vou, pois, completar a
conceituação de NdP especificando que essa função é sempre desempenhada pelo
só se pode apurar um conjunto de traços de transitividade, aquele que se refere ao verbo da oração, exceto nos casos em que há dois verbos em uma única oração.
elementos “dormindo”. Isto é, a transitividade da sequência “está dormindo” é Nesses casos, o verbo em forma finita (conjugada) é o auxiliar, e o verbo em forma
idêntica, em todos os pontos, à do verbo “dormir” sem verbo auxiliar. Isso acontece não-finita (particípio, gerúndio ou infinitivo) é o NdP.
sempre que ocorre uma sequência de “estar” mais um verbo no gerúndio. A O NdP de (2) é um gerúndio; mas é possível mostrar, com argumentação
presença ou ausência de “estar” nessas estruturas não faz diferença para efeitos de análoga, que há também NdPs com auxiliar formados por infinitivos ou por
aceitação ou recusa de complementos. particípios, como em
Ora, se quisermos manter o princípio de que cada predicado tem um conjunto
próprio de traços de transitividade, deveremos admitir que há um só predicado – e, (9)Sarita vai dormir.
por conseguinte, um só NdP – na frase (5). Nesses casos, analisamos sequências do (10)Sarita tem dormido.
tipo de “está dormindo” como predicados complexos, ou seja, compostos de NdP
mais outro elementos ainda não definido. Nesses casos, tal como em (2), o elemento conjugado (“vai”, “tem”) é irrelevante
Não se pode generalizar essa análise para qualquer sequência de verbo finito para efeitos de escolha de complementos e, portanto, não forma, por si só, um
+ gerúndio. Em certos casos, a situação é diferente, obrigando-nos a aceitar a predicado. Os verbos que funcionam dessa maneira são denominados verbos
presença de dois NdPs e dois predicados separados. É o caso, por exemplo, de auxiliares, ou simplesmente auxiliares. Em português, são poucos:
(6)*Toninho lutava de Sarita. Isso porque o verbo “ser” nas passivas também não apresenta transitividade
(7)Toninho apanhava de Sarita. própria, e além do mais a sequência ser + particípio parece funcionar como um
constituinte.
Ora, a frase (5) aceita o acréscimo de um termo com “de”: E, finalmente, há ainda um grupo de auxiliares (tradicionalmente chamados
modais e aspectuais) que se constroem todos com infinitivo, e alguns com “de”, “que”
(8)Toninho apanhou de Sarita lutando. ou “a”:
Como a possibilidade de ocorrência desse termo não pode ser atribuída ao verbo poder
“lutar” (já que (6) é inaceitável), temos de admitir que o verbo apanhar em (8) faz dever
valer seus traços de transitividade. A diferença entre (2) e (5), portanto, é a seguinte: acabar de
em (2), a transitividade de “está dormindo” é idêntica à de “dormia”, por exemplo; deixar de
ou seja, “está” não influi em nada. Já em (5) cada verbo tem transitividade começar a
independente. continuar a
A conclusão é que, em (2), temos somente um predicado e, em (5), temos dois; ter de/que
e uma consequência é que em (2) há uma oração, e em (5) duas. haver de/que
Na frase
4 5
É necessário considera-los também auxiliares porque, quando seguidos de (17)a. Meus sobrinhos comeram a melancia.
infinitivo, não apresentam traços próprios de transitividade. b. Meus sobrinhos comeram as melancias.
É bom lembrar que todos esses verbos podem igualmente aparecer em c. Meu sobrinho comeu a melancia.
construções nas quais não são auxiliares; portanto, a identificação de auxiliar (e de d. Meu sobrinho comeu as melancias.
um predicado complexo) exige sempre algum cuidado.
Como se vê, cada tipo de complemento coocorre obrigatoriamente com um de Ou seja, existe uma espécie de harmonia formal entre o verbo e o constituinte
seus auxiliares específicos. Isto é, sempre que o auxiliar é o verbo “ir”, o NdP deve “meu(s) sobrinho(s)”, mas não há nada parecido entre o verbo e “a(s) melancia(s)”.
estar no infinitivo: dizemos que “meu(s) sobrinho(s)” e o verbo estão em relação de concordância (ou,
simplesmente, que concordam).
(11)Manuel vai cortar o bigode. A concordância não funciona apenas para o número (singular, plural), mas
também vale para a pessoa. O sintagma “meus sobrinhos” é de terceira pessoa
O auxiliar sendo “ter”, o NdP estará no particípio: (assim como a imensa maioria dos sintagmas da língua). Isso significa, na verdade,
que, quando o verbo concorda com ele, deve assumir uma dentre várias formas
(12)Manuel tem falado mal de você. igualmente denominadas de terceira pessoa:
E se o auxiliar for “estar”, “andar”, o NdP deverá estar no gerúndio:
(18)Meus sobrinhos dormem no segundo andar.
(13)Manuel está penteando o bigode. (19)Meus sobrinhos serão grandes tenistas.
O predicado complexo é, pois, sempre composto de auxiliar (Aux) – um ou Se substituirmos “meus sobrinhos” por uma das poucas formas rotuladas
mais de um, como em como de primeira pessoa, o verbo deverá assumir formas diferentes; existe, pois, um
outro conjunto de formas verbais, denominadas de primeira pessoa. Por exemplo,
(14)Manuel vai estar contando piadas.
(20)Nós comemos a melancia.
– mais NdP. (21)Nós dormimos no segundo andar.
Agora temos um ponto de partida para investigar a organização da estrutura (22)Nós seremos grandes tenistas.
oracional.
Verificaremos que cada um dos constituintes em que se divide a oração tem As formas “comemos’, “dormimos”, “seremos” são formas de primeira pessoa.
um comportamento gramatical próprio, ou seja, cada um desempenha uma função Voltando às funções sintáticas, então, verificamos que na oração
própria. Há também alguns casos de dois ou mais constituintes de comportamento
semelhante; nesses casos, alguma função poderá ser repetida. Isso não acontece com (15)Meus sobrinhos comeram a melancia.
qualquer função, porém; só algumas funções podem ocorrer mais de uma vez em
uma estrutura, e isso deverá ser apurado e explicitado ao se definir cada uma das os sintagmas “meus sobrinhos” e “a melancia” têm comportamento gramatical
funções. diferente: “meus sobrinhos” está em relação de concordância com o NdP, e “a
Nossa primeira observação será a seguinte: existe, na maioria das orações, melancia” não está – portanto, cada um desses sintagmas tem uma função diferente.
um constituinte que se harmoniza com o NdP em número e pessoa. Vejamos A função desempenhada nessa frase por “meus sobrinhos” é denominada sujeito
primeiramente o que vem a ser esse fenômeno de harmonização em número e pessoa. (abreviadamente, Suj): dizemos que “meus sobrinhos” é o sujeito da oração (15).
Seja um exemplo como o seguinte: Vou, então, definir essa função da seguinte maneira:
(15)Meus sobrinhos comeram a melancia. Sujeito é o termo da oração que está em relação de concordância com o NdP.
É fácil verificar que a forma do verbo (do NdP), “comeram”, depende, de certa Essa será nossa definição de sujeito. É uma definição formal e não diz nada a
forma, de traços do constituinte “meus sobrinhos”. Assim, se no lugar de “meus respeito do papel semântico ou discursivo do termo em questão; em outras palavras,
sobrinhos” colocarmos o singular, “meu sobrinho”, o verbo terá de se adaptar: não estamos aqui preocupados com o termo que exprime o agente de uma ação, nem
com o termo que exprime a entidade sobre a qual se faz uma declaração. Trata-se
(16)Meu sobrinho comeu a melancia. simplesmente de um dos constituintes da oração, vinculado a ela através de uma
relação formal bem definida. A função de sujeito é um dos aspectos da organização
Por outro lado, uma mudança semelhante no constituinte “a melancia” não afeta a formal da oração, e não um dos aspectos da mensagem veiculada pela oração.
forma do verbo: A propriedade “estar em relação de concordância com o NdP”, que define o
sujeito, é também chamada um traço que o constituinte tem na oração. Esse traço é
abreviado assim: [+CV] (CV significa concordância verbal); dizemos, então, que o
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sintagma “meus sobrinhos” em (15) é marcado com o traço [+CV]; os outros qualquer, teríamos de considerar esse um estranho caso de coincidência entre o
sintagmas, que não estão em relação de concordância com o NdP, são todos comportamento do sujeito e o dessa outra função.
marcados [-CV]. Outra razão é que o sujeito, como sabemos, pode ser retomado por pronome
Observe-se que a definição adotada de sujeito nos obriga a analisar como sem em caso reto: “eu”, e não “me” ou “mim”. Desse ponto de vista, também o SN que
sujeito frases do tipo acompanha o gerúndio parece ser um sujeito:
A solução tradicional é considerar que há aí um sujeito oculto; no entanto, essa Por essas razões, sugiro que “Marivânia” em (24), assim como “eu” em (29),
análise é inconsistente com a definição de sujeito como termo que está em relação de seja analisado como sujeito. Isso naturalmente complicará a conceituação de sujeito,
concordância com o verbo. (23) é uma oração sem sujeito, já que não existe aí já que não se poderá dizer simplesmente que se trata do termo que está em relação
nenhum termo explícito que esteja em relação de concordância com o verbo. de concordância com o verbo; mas traz vantagens, porque nos permite analisar as
A aplicação da definição de sujeito, a bem dizer, deixa certos casos duvidosos. condições de posposição de sujeito e de ocorrência dos pronomes retos de maneira
Talvez o mais sério seja o do gerúndio, que não comporta desinência de pessoa- mais simples e unificada.
número, mas ainda assim é analisado como tendo sujeito em frases como Voltemos ao exemplo
A rigor, seria necessário negar que haja sujeito na primeira oração em (24), já que Vamos agora ver que função deve ser atribuída ao sintagma “a melancia”. Já
aí o verbo não concorda com nenhum dos termos. No entanto, sob outros pontos de sabemos que não é sujeito, porque é marcado (nessa frase) como [-CV] – ou seja,
vista, “Marivânia” funciona como se fosse um sujeito, o que cria um problema não está em relação de concordância com o verbo.
quanto a sua análise. A gramática tradicional distingue várias funções dentre as que marcaremos
Acontece que o sujeito, definido por sua relação de concordância com o verbo, como [-CV]. Assim, temos casos como
apresenta também alguns traços que, se não estão presentes em todos os casos, estão
presentes na maioria deles; por conseguinte, esses traços contribuem para delinear (15)Meus sobrinhos comeram a melancia.
o protótipo da função que chamamos sujeito. O mais óbvio desses traços é a posição (30)Todos acharam esse livro uma droga.
logo antes do NdP: sabemos que essa é a posição mais natural do sujeito na maioria (31)Jeremias reclama frequentemente.
das frases. Em (24), o termo “Marivânia” está nessa posição, justificando pelo menos
a suspeita de que se trate de um sujeito. Tradicionalmente, analisa-se o elemento grifado de (15) como objeto direto; o
Mas o mais significativo é que as condições que governam a possibilidade de de (30) como predicativo do objeto; e o de (31) como adjunto adverbial. Existem
ocorrência do sujeito antes ou depois do NdP se aplicam igualmente aos casos intuições provavelmente corretas por trás dessa análise; vou tentar encontrar
evidentes de sujeito e casos como o de “Marivânia” em (24). Assim, há casos em que justificativas formais para ela.
não se permite a posposição do sujeito; podemos dizer Vamos começar com o caso de “a melancia” em (15), que seria um objeto
direto. Procuraremos propriedades sintáticas (traços) desse constituinte, as quais
(25)Chegou um amigo meu de Cuiabá. poderão servir de base para definir uma nova função.
Podemos começar observando o seguinte: existe uma oração correspondente a
mas não (15), na qual o constituinte “a melancia” se encontra deslocado para o início da
oração:
(26)*Está desenhando um sobrinho seu na biblioteca.
(32)A melancia, meus sobrinhos comeram.
Ora, os fatos são exatamente paralelos com o SN que acompanha um
gerúndio: Esse é um traço do constituinte “a melancia” em (15); podemos dizer que esse
elemento é marcado [+Ant] (Ant quer dizer anteposição). Há elementos da oração
(27)Chegando um amigo meu, por favor receba-o bem. que não podem aparecer antepostos em frases correspondentes e que, portanto, são
(28)*Desenhando um sobrinho meu na biblioteca, tive que ficar no quarto. marcados [-Ant]:
Isso certamente sugere que o gerúndio tem sujeito. Ou seja, se o gerúndio tiver (33)*Comeram, meus sobrinhos a melancia.
sujeito, ficará mais simples a descrição das condições que governam a possibilidade (34)*Uma droga, todos acharam esse livro.
de posposição de elementos, como “um amigo meu” e “um sobrinho meu” nas frases
(27) e (28). Já se analisássemos esses termos como desempenhando outra função
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Vamos admitir que esse traço é característico do objeto direto deveria ser analisado como objeto direto, pois, como é fácil verificar, é marcado com
(abreviadamente, OD), que se definirá, por enquanto, através do conjunto de traços os traços [-CV, + Ant, +Q]. Essa análise contraria a da gramática tradicional, que
[-CV, +Ant]. o objeto direto se distingue do sujeito porque este é [+CV]; e se analisa tais casos como de predicativo do sujeito. Na verdade, não é muito fácil
distingue da função representada por “uma droga” em (34) porque esta é [-Ant]. distinguir essas duas funções, mas me parece que o mais indicado é manter a
Por ora, conseguimos distinguir o objeto direto tradicional do predicativo do distinção entre o objeto direto e a função desempenhada por “um artista” em (37),
objeto, através do traço [Ant]. Mas ainda não fizemos a distinção entre o objeto definindo-a através de um novo traço.
direto e o adjunto adverbial que estaria presente em O novo traço se baseia na relação de concordância nominal que se observa
com frequência entre o sujeito e o complemento de verbos como “ser”, que vou
(31)Jeremias reclama frequentemente. denominar complemento do predicado (CP). Observa-se que, quando o CP é
representado por um item passível de concordância nominal, ele concorda com o
Como decidimos dar um crédito à análise tradicional, vamos procurar um sujeito:
meio de distinguir a função de “frequentemente” em (31) da função de “a melancia”
em (15). (38)Carolina está entusiasmada.
O traço que realiza essa distinção se baseia na seguinte observação: certos (39)Os jogadores estão entusiasmados.
constituintes da oração podem ser retomados em perguntas por meio do elemento Por isso, diremos que os termos “entusiasmada”, “entusiasmado” são marcados
“que” (ou “o que”, ou ainda “quem”). Ou seja, pode-se definir uma relação [+CN]. Isso estabelece a distinção entre CP e o objeto direto, que não mostra
discursiva tal que uma frase possa ser resposta adequada a uma pergunta que é concordância nem mesmo nos raros casos em que é representado por item
introduzida por um desses elementos interrogativos. As duas (pergunta e resposta) apropriado:
se relacionam formalmente porque na pergunta o elemento “que” substitui o
constituinte em exame (com ou sem inversão de ordem). Assim, temos o par (40)Carolina sonhou colorido.
(35)a. O que meus sobrinhos comeram? Dessa maneira, temos aqui um novo traço distintivo, [CN], e uma nova função,
b. Meus sobrinhos comeram a melancia. o complemento do predicado, cuja definição até o momento é [-CV, +Ant, +Q, +CN].
O objeto direto se define como [-CV, +Ant, +Q, -CN]. Estou definindo o traço [CN]
Creio que qualquer pessoa perceberá que (35b) é uma resposta adequada à pergunta em função da possibilidade de concordância nominal com algum outro termo da
(35a). Agora veja-se o seguinte par: oração, não necessariamente o sujeito; isso porque, como veremos, deve-se atribuir
(36)a. O que Jeremias reclama? o traço [+CN] a certos termos que concordam com o objeto direto.
b. Jeremias reclama frequentemente. A identificação do CP apresenta determinado número de problemas práticos.
O primeiro deles diz respeito a limitações morfológicas de muitos itens léxicos.
Acontece que (36b) não é uma resposta adequada para (36a). Dizemos, nesses casos, Assim, em
que “frequentemente” não pode ser retomado pelo elemento “o que”; o contrário
acontece com “a melancia” em (15), que pode ser retomado pelo elemento “o que”. (37)Vincent é um artista.
Esse traço é que distingue a função de “a melancia” em (15), que é marcada
[+Q], da função de “frequentemente” em (31), que é marcada [-Q]. não se pode dizer que haja concordância nominal explícita entre o sujeito e o CP; no
Antes de passar adiante, vou abordar rapidamente alguns pontos de interesse. caso, ambos são masculinos e singulares, mas isso não é necessário:
Em primeiro lugar, é necessário decidir a função que deve ser atribuída ao
constituinte anteposto “a melancia” em (41)Vincent é a próxima testemunha.
(32)A melancia, meus sobrinhos comeram. Nesses casos, fica difícil demonstrar diretamente que “a próxima testemunha”
é CP. É importante notar que não há tampouco discordância, porque “a próxima
Sabemos que na oração correspondente (15), em que “a melancia” aparece no final, testemunha” é um SN e tem, por isso, gênero e número próprios, não atribuídos por
a função é de objeto direto; pergunta-se agora se deve continuar sendo objeto direto concordância. O gênero e o número são determinados, para os SNs, por razões
em (32), ou se a diferença de posição deve valer para que se defina uma nova função. semânticas, quando cabe; ou por marca idiossincrática, como em (41):
A resposta será que “a melancia” é objeto direto tanto em (15) quanto em (32); “testemunha” é idossincraticamente marcado como feminino.
ou seja, a anteposição não afeta a função do objeto direto. Essa conclusão vale, A saída é lançar mão da transitividade normal do verbo como pista. Esse
obviamente, para todas as demais funções que podem aparecer deslocadas de seus procedimento é relativamente fácil porque há poucos verbos que aceitam CP ou OD,
lugares em frase correspondentes. indiferentemente. Um desses verbos é possivelmente “virar”, como em
Utilizando os traços vistos até agora, o sintagma “um artista” em
(42)Ela virou a picanha em cima da grelha. (OD)
(37)Vincent é um artista. (43)Ela virou um monstro depois da plástica. (CP)
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Mas não há realmente certeza de que se trate de um só verbo; talvez seja um caso Há ainda duas outras funções que se podem considerar definidas, com nossos
de homonímia. Por ora, portanto, deixaremos de lado esses casos problemáticos. quatro traços. Vimos que o sujeito se define como [+CV]; que o objeto direto se
Os verbos que admitem CP são relativamente poucos; podemos citar: define como [-CV, +Ant, +Q, -CN]; e que o complemento do predicado se define
ser como [-CV, +Ant, +Q, +CN]. Agora: nas orações (30) e (31) temos duas outras
estar funções que já podem ser formalmente definidas. Vejamos o exemplo
parecer
continuar (30)Todos acharam esse livro uma droga.
ficar
virar O constituinte “uma droga” é marcado [-CV], pois não está em relação de
permanecer concordância com o NdP; é marcado [-Ant], porque não pode aparecer anteposto
chamar-se em uma frase correspondente:
tornar-se
sentir-se (81)*Uma droga, todos acharam esse livro.
Dessa maneira, é preciso reconhecer que a identificação do CP apresenta É marcado [+Q] porque pode ser retomado por “o que”:
dificuldades; por outro lado, é importante distinguir o CP do OD porque, nos casos (48)a.Todos acharam esse livro o quê?
claros, existe uma diferença de comportamento desses dois termos, e essa diferença b.Todos acharam esse livro uma droga.
se liga ao importante fenômeno da concordância nominal.
Em uma frase como (48b) é uma resposta adequada a (48a).
(37)Vincent é um artista. E é marcado [+CN] porque, quando representado por um item possível de
concordância nominal, esta se manifesta (com o objeto direto):
não se pode observar diretamente a concordância nominal entre o sujeito e o CP.
Ainda assim, diremos que “um artista” é [+CN]; a concordância não se manifesta aí (49)Todos acharam esse livro péssimo.
por causa das limitações morfológicas da palavra “artista”, que não admite variação (50)Todos acharam essa peça péssima.
derivada (isto é, “artista” tem gênero e número, mas estes são propriedades
inerentes à palavra, e não resultado de concordância). Uma solução semelhante foi Temos, portanto, uma nova função, definida pelos traços [-CV, -Ant, +Q,
proposta anteriormente, para podermos aceitar que os gerúndios têm sujeito, +CN]. Vou chama-la predicativo (Pv).
embora, por razões morfológicas, não manifestam a concordância verbal. Passemos agora ao exemplo
Reconhecendo embora a inconveniência ocasional dessa solução, vou adota-la como
a mais indicada no caso. (31)Jeremias reclama frequentemente.
Um segundo problema ligado à identificação do CP provém de frases como
(44)Cerveja é bom para lavar o cabelo. O constituinte “frequentemente” é marcado [-CV], por razões óbvias; é [+Ant],
porque (51) é aceitável:
Essas construções são de funcionamento misterioso, pois o complemento é
passível de concordância e, no entanto, esta é bloqueada: (51)Frequentemente, Jeremias reclama.
(45)??Cerveja é boa para lavar o cabelo. E é marcado [-Q] porque, como já vimos, (36b) não é uma resposta adequada a
(36a):
Isso parece acontecer somente quando o sujeito é representado por um núcleo sem
nenhum termo acompanhante: (36)a. O que Jeremias reclama?
b. Jeremias reclama frequentemente.
(46)Essa cerveja é boa para lavar o cabelo.
(47)*Essa cerveja é bom para lavar o cabelo. A função desempenhada por “frequentemente” em (31) se chama atributo
(Atr) e se define pelos traços [-CV, +Ant, -Q].
Não parece tratar-se de alguma restrição semântica, porque não se pode E quanto ao traço [CN]? Já vimos que esse traço só pode ser observado em
atribuir importe semântico ao gênero: que significado se poderia atribuir à certos casos. Se substituirmos “frequentemente” por “indignado”, verificaremos
diferença de gênero entre “violão” e “guitarra”? Esse problema deverá ficar de lado, que se trata ainda de um atributo, pois deve ser marcado [-CV, +Ant, -Q]. E, além
à espera de estudos que o esclareçam. disso, é evidentemente [+CN]; vamos, pois, acrescentar mais esse traço à definição
de atributo: [-CV, +Ant, -Q, +CN].
12 13
As cinco funções estudadas até o momento (sujeito, objeto direto, Uma última observação sobre a negação verbal: o fato de que ela não se pode
complemento do predicado, predicativo e atributo) são desempenhadas cada uma separar do NdP pela inserção de nenhum elemento (exceto clíticos) sugere que ela
por um número muito grande de sintagmas; não haveria meios de elaborar, por seja também parte do predicado – não é, estritamente falando, um constituinte de
exemplo, a lista de todos os possíveis sujeitos do português. Sabemos que a lista não nível oracional.
acabaria nunca, pois incluiria não apenas palavras individuais, mas um número A gramática tradicional engloba, sob o rótulo adjunto adverbial, um conjunto
ilimitado de sintagmas maiores. bastante variado de funções. Já vimos que uma dessas é a que chamamos aqui
Isso é o que acontece com muitas funções sintáticas. Por outro lado, existem atributo; agora veremos outras três funções, igualmente denominadas de adjuntos
outras funções que só podem ser desempenhadas por um número limitado de adverbiais pela análise tradicional.
elementos, de modo que é possível dar a lista de todos eles. É o que acontece com a Vejamos em primeiro lugar o comportamento do constituinte
função que veremos agora, denominada negação verbal (NV). Essa função é “completamente’ em
exemplificada pela palavra “não” na frase
(58)Miguel decorou o apartamento completamente.
(52)O ministro não aprecia jiló.
Esse elemento tem os traços [-CV, -Q], tal como o atributo; mas, ao contrário dele,
Essa função, como é fácil verificar, é marcada negativamente para os traços é [-Ant]:
já vistos: [-CV, -Ant, -Q]. Com isso, a negação verbal fica diferenciada das demais
funções estudadas. No entanto, essa função tem uma característica mais importante, (59)*Completamente, Miguel decorou o apartamento.
que merece ser expressa em um traço especial: a negação verbal só pode ocorrer
logo antes do NdP, sem possibilidade de inserção de nenhum elemento entre os dois. Trata-se, portanto, de uma nova função, caracterizada, entre outras coisas,
Vou abreviar essa propriedade através da notação [pNdP]; assim, a negação verbal por uma posição relativamente fixa na oração. Chamo-a adjunto adverbial (AA);
é marcada [+pNdP]; todas as outras funções vistas, claro, serão [-pNdP]. É define-se pelos traços [-CV, -Ant, -Q, -CN, -pNdP]. Relembro que, apesar da
obviamente impossível a existência, em uma mesma oração, de dois constituintes identidade de nomes, o adjunto adverbial só compreende uma pequena parte dos
marcados [+pNdP], pois ambos teriam de ficar imediatamente antes do NdP. termos tradicionalmente chamados adjuntos adverbiais.
Entre a negação verbal e o NdP não podem ocorrer nem mesmo elementos Passemos agora ao caso de “francamente” em
parentéticos separados por vírgula, como os dois exemplos
(60)Esse professor, francamente, é um neurótico.
(53)O ministro, dizem, não aprecia jiló.
(54)O ministro não aprecia, dizem, jiló. Esse termo tem alguma semelhança com o atributo, porque é marcado [-CV,
+Ant, -Q]; mas é aparentemente marcado [-CN], o que o diferencia do atributo.
Mas: Além disso, “francamente” em (60) não parece compor constituinte com nenhum
outro elemento, ao passo que em um caso claro de atributo, como
(55)*O ministro não, dizem, aprecia jiló.
(31)Jeremias reclama frequentemente.
A bem dizer, existe um pequeno grupo de elementos que podem aparecer entre
a negação verbal e o NdP, a saber, os pronomes clíticos, como “me”, “nos”, “lhe” “frequentemente” faz constituinte com “reclama”, assim:
etc.:
(61)[Jeremias] – [reclama frequentemente]
(56)O ministro não nos recebeu na hora marcada.
Na literatura linguística moderna, elementos como “francamente” são
Mas, como se trata de um grupo bem delimitado, o fato não prejudica nossa considerados à parte, como um elemento anexo à oração, talvez mesmo externo a
definição; basta acrescentar essa ressalva à formulação do traço. ela; denominam-se advérbios de oração. Aqui a função correspondente será chamada
Aparentemente, existem apenas duas palavras em português que podem adjunto oracional (AO).
desempenhar a função de negação verbal: “não” e “mal”, em uma de suas acepções: Existe um traço adicional (além de [CN]) que distingue o adjunto oracional do
atributo. Para defini-lo, vamos considerar brevemente o fenômeno da clivagem.
(57)A noiva mal chegou a tempo para o casório. Trata-se de uma construção que põe em evidência um elemento da oração, com o
auxílio do verbo “ser” mais o item “que”; pode-se, assim, clivar um sujeito, como em
Há um grupo de itens que, provavelmente por razões de semelhança
semântica, costumem ser classificados juntamente com “não” e “mal”; no entanto, (62)Foram meus sobrinhos que comeram a melancia.
seu comportamento sintático é claramente diferente de “não” e “mal”. Exemplos são
“nunca”, “jamais”, “já”, “nada”, “ninguém”. ou então um objeto, como em
14 15
(63)Foi a melancia que meus sobrinhos comeram. Temos, assim, condições de diferenciar a função de “muito” em (66) da de
“frequentemente” em (31): no primeiro caso, temos uma definição definida como [-
e assim por diante. CV, +Ant, -Q, -CN, -pNdP, +Cl, -PA]; vamos chamar a essa função adjunto
Digamos, então, que os constituintes que podem ser clivados como nos circunstancial (AC). No segundo caso, a função é definida como [-CV, +Ant, -Q,
exemplos acima são marcados com o traço [+Cl]; constituintes não-cliváveis são +CN, -pNdP, +PA]; e trata-se, como sabemos, de um atributo.
marcados [-Cl]. Devo avisar desde já que, dos traços utilizados nesta análise, [PA] é
Ora, das funções vistas até o momento, todas podem ser clivadas, exceto provavelmente o menos satisfatório; e isso principalmente porque são muito
apenas as de NdP e de negação verbal (que já são em si suficientemente numerosos os casos em que há variação ou insegurança no julgamento dos falantes.
idiossincráticas). Em particular, o atributo pode ser clivado: Por exemplo, na oração
(64)É o dia inteiro que Jeremias reclama. (71)Jeremias reclama o dia inteiro.
Mas o adjunto oracional é claramente não-clivável, como se vê em não é claro para todos os falantes se “o dia inteiro” pode ou não pode ocorrer na
posição de auxiliar. O leitor poderá verificar isso por si mesmo, pedindo a algumas
(65)*É francamente que esse professor é um neurótico. pessoas que deem seu julgamento de aceitabilidade sobre a frase
Dessa maneira, vamos utilizar o traço [Cl] para caracterizar o adjunto (72)?Jeremias o dia inteiro reclama.
oracional. O adjunto oracional, portanto, se define como [-CV, +Ant, -Q, -CN, -
pNdP, -Cl]. De qualquer maneira, como a presente análise não tem a pretensão de ser
Examinemos agora o comportamento de “muito” em perfeita, ficaremos com o traço [PA], no que pesem essas deficiências, como parte
da distinção entre o atributo e o adjunto circunstancial.
(66)Juracy bebe muito. A essa altura já podemos fazer um sumário geral da análise da oração. Não
acredito que haja realmente esgotado a lista das funções de nível oracional. Mas as
Até onde podemos verificar, seria um atributo, pois é marcado com os traços funções definidas aqui bastam para fundamentar uma análise mais adequada e
[-CV, +Ant, -Q, +Cl, -pNdP], e o traço [CN] pode não estar explicitado por causa da coerente da estrutura da oração do que a análise oferecida pela gramática
morfologia de “muito”, que é invariável. Teria então a mesma função que tradicional.
“frequentemente” em Vimos que a oração simples em português se compõe de um conjunto de
constituintes de comportamento sintático variado. Esse comportamento sintático
(31)Jeremias reclama frequentemente. pode ser descrito através de sete traços distintivos, como segue:
Há, porém, uma diferença entre os dois casos no que se refere a suas O
possibilidades de ocorrência em várias posições na oração. Sabemos que ambos
podem ser antepostos (levados para o início da oração) e, por isso, são marcados
[+Ant]. Mas só o segundo pode ser colocado imediatamente antes do NdP (ou da
negação verbal, se houver):
Temos aqui base para a postulação de um novo traço, a que chamarei [PA] (de
posição do auxiliar). O traço [PA] exprime a propriedade de ocorrer entre o sujeito
e o NdP (ou entre o sujeito e a negação verbal mais o NdP, se for o caso).
Suj NV Aux NdP OD CP Pv Atr AA AO AC
Além disso, voltando ao traço [CN, observa-se que, quando a concordância ↓ ↓ ↓ ↓ ↓ ↓ ↓ ↓ ↓
nominal é possível, o transporte para a posição do auxiliar também é possível: +CV ... -CV -CV -CV -CV -CV -CV -CV
... ... +Ant +Ant -Ant +Ant -Ant +Ant +Ant
(69)Jeremias reclamou indignado. ... ... +Q +Q +Q -Q -Q -Q -Q
(70)Jeremias indignado reclamou. ... ... -CN +CN +CN +CN -CN -CN -CN
... +pNdP -pNdP -pNdP -pNdP -pNdP -pNdP -pNdP -pNdP
... ... +Cl +Cl +Cl +Cl +Cl -Cl +Cl
Isso sustenta a ideia de que temos um atributo em (31), mas não em (66). ... ... -PA -PA -PA +PA -PA +PA -PA
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NOTAS: Finalmente, pode-se dizer que o vocativo tem uma resposta própria (como “O
a)O sujeito é também [+Ant, +Q, - pNdP, +Cl], mas esses traços não são cruciais para sua quê?” ou “Estou aqui...” etc.), o que indica que ele pode constituir, por si só, uma
identificação, porque o sujeito é a única função marcada [+CV].
b)O NdP, o auxiliar e a negação verbal possivelmente não são funções de nível oracional, mas fazem
frase independente. Isso não se aplica a termos individuais da oração: a oração (ou,
parte do predicado. melhor dizendo, o período) é que pode ter uma resposta, mas não o seu sujeito, ou
c)Traços distintivos: predicado, ou adjunto circunstancial etc.
*[CV] – a propriedade de estar em relação de concordância com o NdP; Razões como essas mostram com bastante clareza que o vocativo realmente
*[Ant] – a propriedade de poder aparecer no início da oração em uma frase correspondente; não pertence à oração. A semântica apoia essa conclusão: o significado de um
*[Q] – a propriedade de poder ser retomado pelos elementos “que”, “o que” ou “quem”;
*[CN] – a propriedade de estar em relação de concordância (nominal) com outro termo da oração;
vocativo não se integra ao significado de uma oração contígua. Já com um adjunto
*[Cl] – a propriedade de poder ocorrer como foco de uma frase clivada correspondente; oracional, por exemplo, há essa integração:
*[PA] – a propriedade de poder ocorrer na posição do auxiliar (entre o sujeito e o NdP);
*[pNdP] – a propriedade de só poder ocorrer imediatamente antes do NdP. (77)Com franqueza, desconfio de vocês.
Um constituinte é marcado positivamente (+) quando tem a propriedade descrita, e negativamente
(-) quando não a tem.
O significado de “com franqueza” é claramente predicado de “desconfio de vocês”.
Finalmente, vejamos o caso do vocativo, um termo geralmente considerado Nada de parecido se observa com o vocativo.
estranho à estrutura da oração. Como veremos, essa análise tradicional é correta.
À primeira vista, o vocativo parece merecer o rótulo de adjunto oracional: PERINI, Mário. “Funções sintática na oração”. In: gramática descritiva do
português. São Paulo, Ática, 1996, p. 71-91.
Obs.: O texto foi copiado, com adaptação, para uso exclusivo em sala de aula, como apoio didático.
(73)Serginho, a bandeira está no chão.
fim
É fácil ver que o constituinte “Serginho” tem os traços [-CV, +Ant, -Q, -Cl, +PA], o
que faria dele um AO.
No entanto, há certas considerações que nos levarão não só a negar que um
vocativo seja um caso de AO, mas ainda a afirmar que a análise por traços sintáticos
não se aplica a ele, porque sua conexão com a oração não é propriamente sintática.
Quero dizer que a ligação entre o vocativo e a oração junto à qual ele pode ocorrer
não tem a ver com a estrutura própria da oração, mas com a organização do
discurso.
Há várias indicações formais que sugerem fortemente que esse é o caso. Em
primeiro lugar, o vocativo pode separar-se da oração não apenas por vírgula, como
está em (73), mas também por sinalização de final de período:
Na fala, isso se traduz pela possibilidade de uma pausa de duração indefinida entre
os dois elementos.
Depois, o vocativo pode estar separado da oração por uma mudança de
interlocutor, sem que isso produza a impressão nítida de interrupção:
(75) – Serginho!
– O quê?
– A bandeira está no chão.
(76) – Serginho...
– O quê?
– ...vai fazer aniversário amanhã.
1 2
UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ Locuções substantivas não podem ocupar a função 2. Não ocorrem orações do
Faculdade de Filosofia D. Aureliano Matos – L. do Norte tipo:
Curso: Letras
Disciplina: Sintaxe *O menino alguém aquele homem.
Professor: Bento
Locuções verbais não podem ocupar as funções 1 e 3. Não existem sentenças
ESTRUTURA DA ORAÇÃO [3] do tipo seguinte:
[funções sintáticas de nível oracional]
*Chamou admira meu tio.
E. Back & Geraldo Matos *O menino chamou conhece.
A oração é um conjunto de locuções: as locuções de uma oração formam uma Chegamos à conclusão que esse tipo de oração tem 3 funções (três
estrutura: uma das locuções é o sol da oração; as outras são planetas. O sol da oração possibilidades de aparecerem locuções) e 2 classes de locuções: a locução
recebe o nome de predicado. O predicado é ocupado por uma locução verbal. substantiva, que ocupa as posições 1 e 3; a locução verbal, que ocupa a posição 2.
Em – Em –
O O
1 2
O menino dorme
1 2 3 Aquele homem chora
O menino admira aquele homem O meu tio sonha
Aquele homem chamou o meu tio Alguém caiu
O meu tio ouviu alguém Ninguém morreu
Alguém viu o menino
Ninguém conhece ninguém – temos um tipo de oração com duas possibilidades (2 funções). Na função 1, ocorrem
as mesmas locuções substantivas; mas seria a função 2 idêntica à função 2 da oração
– cada uma das orações tem três possibilidades, três locuções, três funções. (A 123 (oração com as funções 1, 2 e 3)? Os ocupantes seriam locuções verbais? Parece
segunda locução é um conjunto de um só vocábulo; podiam estar dois ou mais: “vai que sim, pois num diálogo seria possível encontrarmos:
admirar”; “tem chamado”; “há de ouvir”.)
Verificamos rapidamente que os ocupantes das funções 1 e 3 são os mesmos: O
são locuções substantivas. Os ocupantes da função 2 são outros: são locuções verbais:
1 2
O menino chamou
O menino admira
O menino conhece
O menino ouviu
locução substantiva locução verbal locução substantiva O menino viu
↓ ↓ ↓
O menino admira aquele homem Por que não entrariam as locuções verbais da sentença 12 na sentença 123?
Aquele homem chamou o meu tio
O meu tio ouviu alguém *O menino dorme o menino.
Alguém viu o menino *Alguém caiu aquele homem.
Ninguém conhece ninguém *Ninguém morreu o meu tio.
3 4
Trata-se de restrição: certas locuções verbais não se articulam na sentença Aceitamos como representantes de todos os ocupantes, respectivamente, “ele” e
123. Ocorre ainda outro tipo de restrição. Em – “eles”.
A oração é uma estrutura de locuções. O sol é o predicado, e as demais locuções
O preenchem a função de complementos. O predicado é a função manifestada por
locução verbal:
1 2
Os meninos dormem
Aqueles homens trabalham Complemento Predicado Complemento...
Os meus tios sonharam
1.Complemento subjetivo [sujeito]
– é possível articular:
O sujeito é um planeta; portanto, não é de estranhar que haja orações sem o
Os meninos trabalham. sujeito (ou complemento subjetivo). O sujeito, como complemento, pode estar ou não
Os meninos sonharam. na oração. O complemento subjetivo é a função 1, a locução substantiva com que o
Aqueles homens dormem. verbo concorda na sentença.
Aqueles homens sonharam. Assinala-se o complemento subjetivo pelo algarismo 1. No caso dos
Os meus tios dormem. substantivos “eu”, “tu”, “nós” e “vós”, é mais frequente não se apresentar o sujeito;
Os meus tios trabalham. nos demais casos, geralmente o sujeito se manifesta. Ocorrem também sentenças que
não têm sujeito nem permitem a inclusão de nenhuma locução com tal função.
Mas não se encontra: Em –
Neste tipo de oração, a ordem das locuções é obrigatória: em 1º lugar, o O complemento dativo é uma posição oracional obrigatória: não pode faltar
sujeito; depois aparece o predicado; e, depois do predicado, a função 3. Na função 3 (a não ser com permissão da situação ou do texto); seria incompleta a oração, e não
ocorrem as mesmas locuções que estão no sujeito; por isso, a ordem é obrigatória, e satisfatória: em “A professora deu os livros”, viria imediatamente a pergunta “A
qualquer troca de ordem implica em mudança de função ou incompreensão. quem?”.
Os ocupantes das funções 1 e 3 são locuções substantivas. É a ordem que revela A ordem da posição 4 é livre, quando o dativo é indireto; mas comumente
as funções desses substantivos. A posição 3 chama-se complemento objetivo, ou depois da posição 3:
objeto.
Como existem variantes para o complemento objetivo, a ordem das locuções A professora deus os livros ao menino.
deixa de ser constante. E, neste caso, frequentemente, o complemento objetivo surge
antes do predicado: Quando dativo direto, ou antes ou no meio ou depois do predicado, imposição da
norma:
Carlos me chamou.
Nós te adoramos. A professora lhe deu os livros.
A professor deu-lhe os livros.
O complemento objetivo que não se inicia por prepositivo é objeto direto; A professora não lhe deu os livros.
aquele que se inicia por prepositivo é objeto indireto. Os vocábulos direto e indireto
indicam respectivamente a ausência ou a presença do conectivo prepositivo. A A ordem é livre, no sistema, porque a função dativo é revelada pelo prepositivo
função é a mesma: e, neste caso, o objeto não pode ser indireto; dativo indireto ou direto exclui a
possibilidade de objeto indireto.
O Os pronomes “me”, “te”, “se” e “vos” ocorrem tanto na função de objeto como
de dativo; são ambíguos na função. Por isso, não servem para comprovar a
existência nem do objeto nem do dativo. Apenas a 3ª pessoa tem formas específicas:
“o”, “a”, “os”, “as” para o objeto, e “lhe”, “lhes” para o dativo.
O O
1 2 3 7
1 2 4 3 Suj Predicado Obj Acus
Suj Predicado Dat Obj ↓ ↓ ↓ ↓
↓ ↓ ↓ ↓ Ele achava tudo delicioso
O menino lembrou lhe a promessa Os moradores consideravam o engenheiro seu legítimo representante
Todos têm a alma cândida
5.Complemento nominativo [nominativo]
7.Complemento ablativo [ablativo]
Em –
O complemento ablativo, a posição 8, é manifestado por:
Meu amigo é estudioso.
a)Toda locução adverbial (com ou sem prepositivo, obrigatória ou não) ou qualquer
– ocorre uma nova função, a posição 6. É uma nova classe de locuções: a locução locução substantiva ou adjetiva comutável por locução adverbial ou advérbio.
adjetiva. O vocábulo que representa sozinho uma locução adjetiva é o adjetivo. Na b)Toda locução adjetiva facultativa.
posição 6 também pode ocorrer locução substantiva (com ou sem prepositivo). c)Toda locução substantiva facultativa e que não se deixa substituir por nenhuma
O complemento nominativo, a função 6, é uma posição sentencial obrigatória, outra classe de locução.
manifestada por locução adjetiva ou locução substantiva que, com o mesmo verbo,
pode ser substituída por locução adjetiva, embora nem sempre no mesmo texto. Resumindo:
Os verbos se subdividem em duas subclasses: verbos que admitem na posição
6 locuções substantivas, como “ser”, “estar”, “parecer”, “ficar”; verbos que 1.Todo e qualquer advérbio (vocábulo que pode representar sozinho a locução
admitem na posição 6 unicamente locuções adjetivas, como “permanecer”, “viver”, adverbial) ou locução correspondente;
“cair”, “andar”, “ser”, “estar”, “parecer”, “ficar”. 2.Adjetivo obrigatório é 6; facultativo, é 8;
3.Locução, com ou sem prepositivo, insubstituível e obrigatória é 5; facultativa, é 8.
O
Em –
– “ao cinema” não está ocupando nenhuma das posições estudadas até aqui; não é
1 2 6 3, 4, 5, 6 nem 7. Estamos diante de uma nova posição, a posição 8. A locução
Suj Predicado Nom substantiva pode ser substituída por uma nova classe de locuções, as locuções
↓ ↓ ↓ adverbiais. O vocábulo que pode sozinho representar a locução toda, ser promovido
As leis são belas a locução adverbial, é o advérbio. As locuções adverbiais não podem manifestar a
Os cabelos dela pareciam de prata nenhum dos complementos, a não ser os complementos ablativos.
Os marrecos estão com fome
A mesa era de mármore O
Encontramos uma nova classe de locuções: “lá”, “aqui”, “ali”. Jamais São 20 as posições na oração: um sol e 19 complementos possíveis. Nenhuma
ocorrem nas primeiras sete posições da oração. Portanto, constituem uma nova oração pode ter as vinte, sobretudo porque algumas posições não coocorrem na
classe de ocupantes, que se denomina locução adverbial. Preenche a função de mesma oração, como o 3 e o 6 ou o 6 e o 7.
complemento ablativo. Doze das vinte posições são reunidas sob o nome de complementos ablativos,
Apesar de essencialmente obrigatórios, existem também complementos pelas seguintes razões:
ablativos facultativos:
a)Uma, didática: enumera-las todas de 1 a 20 não seria muito claro e seria fácil
Minha irmã lia os romances em seu quarto. confundi-las;
Minha irmã lia os romances. b)Outra, linguística: são quase todas posições manifestadas por vocábulos
promovidos a locução; todas podem ocorrer como posições facultativas, assim
Distinguir entre uma locução adjetiva na posição 6 ou 8 exige que se verifique também aquelas que não podem ser ocupadas por advérbios.
se, no texto, a locução adjetiva é obrigatória ou facultativa. Se for obrigatória, é
nominativo; se for facultativa, é ablativo: São 12 os complementos ablativos, embora não se tenha encontrado oração
com os 12 complementos ablativos. São eles:
Os alunos saíram apressados da sala de aula.
Os alunos saíram da sala de aula. → “apressados” não é obrigatório. Alusão
Causa
Não se confundem genitivo e ablativo: o genitivo é (a)uma posição oracional Declaração
obrigatória; (b)uma locução substantiva que não admite substituição por outra Extensão
classe. Em – Frequência
Instrumento
Acusa-lo de injustiças. Lugar
Acusa-lo de injusto. Medida
Procedência
– “de injusto” é, do mesmo modo que “de injustiças”, complemento genitivo, porque Rota
se trata de locução substantiva (com concordância). Para ser acusativo, o prepositivo Tempo
“de” deve ser facultativo. Vergência
Reconhecemos o ablativo que é manifestado por uma locução substantiva:
Exemplos de coocorrência de alguns ablativos:
a)Algumas locuções podem ser substituídas por advérbios:
O
Ele saiu do escritório na segunda-feira. (= Ele saiu do escritório ontem.)
b)Algumas locuções podem ser substituídas por adjetivos e, neste caso, não oferecem
problemas: não podem ser genitivo.
c)Algumas locuções não admitem substituição por nenhuma outra classe de 1 2 8 8 8 8
locuções. São essas que exigem maior exame. Suj. Predicado Abl T Abl M Abl I Abl L
A diferença é a seguinte: o genitivo é uma posição obrigatória; se for ↓ ↓ ↓ ↓ ↓ ↓
facultativa, será ablativo: Mário foi ontem com os amigos em ônibus para a praia
Voltou de carro, de São Paulo. (= Voltou de São Paulo)
“de carro” é facultativo: ablativo. O
A presença de mais de um algarismo 8 não significa que se trata de função Ex.: Puxou do bolso uma porção de notas em maço.
composta. Não existe função composta, apenas forma composta. Cada algarismo 8 AblP
representa outra posição, que é especificada a posteriori (pelas letras encimadas).
Assim nos parece mais fácil e mais justo do que enumerar de 8 a 19. 5)Ablativo de rota (AblR)
1)Ablativo de declaração (AblD) O complemento ablativo de rota é manifestado por locução substantiva ou
adverbial, que correspondem a “por onde” no período interrogativo. As locuções
A melhor maneira de reconhecer o ablativo de declaração é ter a lista de seus substantivas podem ser iniciadas por “por” e “através de”. O prepositivo “por”
ocupantes: “positivamente”, “indubitavelmente”, “certamente”, “com certeza”, substituível por outro indica lugar, não rota:
“realmente”, “naturalmente”, “verdadeiramente”, “de fato”, “propriamente”,
“exatamente”, “efetivamente”, “na certa”, “quiçá”, “acaso”, “talvez”, Os alunos passeiam pelo parque. (= Os alunos passeiam no parque.)
“provavelmente”, “de modo nenhum”, “de modo algum”, “realmente” e outras AblL
comutáveis.
Ex.: Ele olhava pelos buracos da prisão o povo debaixo do tamarindo.
Ex.: Aquilo positivamente não tinha sentido. AblR
AblD
6)Ablativo de tempo (AblT)
2)Ablativo de extensão (AblE)
O complemento ablativo de tempo é manifestado:
A melhor maneira de reconhecer o ablativo de extensão é ter presente a lista
de ocupantes, por ser reduzida: “já”, “também”, “ainda”, “sempre”, “apenas”, a]por advérbios de tempo: “hoje”, “ontem”, “amanhã”, “cedo”, “tarde”, “agora”,
“nem”, “nunca”, “jamais”. É uma posição facultativa. “já”, “logo”, “depois”, “após”...
b]toda locução substantiva ou adverbial que pode ser substituída por um dos
Ex.: Ainda me lembro de meu pai. advérbios acima.
AblE c]toda locução substantiva iniciada pelo prepositivo “durante” que seja comutável
por “em”.
3)Ablativo de lugar (AblL)
O complemento de tempo corresponde à pergunta “quando”, “desde quando”,
O complemento ablativo de lugar pode ser substituído por um dos advérbios “até quando”.
de lugar. Os advérbios de lugar são: “aqui”, “ali”, “fora”, “dentro”, “longe”,
“perto”, “cá”, “lá”, “aí”. Ex.: No dia seguinte, confiou suas dúvidas a Seixas.
Uma locução substantiva (adjetiva, não) pode ocupar a função de AblT
complemento de lugar; neste caso, é introduzida por um dos prepositivos seguintes:
“a”, “até”, “com”, “contra”, “de”, “em”, “entre”, “para”, “perante”, “por”, “sob”, 7)Ablativo de frequência (AblF)
“sobre”.
O complemento ablativo de frequência é manifestado por uma das locuções
Ex.: Um carro parou junto da calçada. seguintes: “de novo”, “frequentemente”, “muitas vezes”, “raramente”...
AblL
Ex.: Ontem, me apareceu de novo com um cesto de uvas nas mãos.
4)Ablativo de procedência (AblP) AblF
O complemento ablativo de procedência é ocupado por uma locução 8)Ablativo de vergência (AblV)
substantiva ou adverbial iniciada pelo conectivo “de”, e correspondem todas a
“daqui”, “dali”, “de lá”. O prepositivo “de” que permite a substituição por outro O complemento ablativo de vergência é um complemento que permite a sua
indica lugar, não a procedência: inclusão ou no sujeito ou no objeto, desaparecendo nesta transformação o conectivo,
que é substituído pelo conectivo coordenativo “e”. Por razões semânticas, algumas
Assisti ao filme da poltrona. (= Assisti ao filme na poltrona.) locuções poderão não permitir a sua inclusão no sujeito ou objeto; desde que se
AblL remova este substantivo e mantendo as demais partes da sentença, será possível a
transformação. A vergência ocorre com os prepositivos “com”, “a”, “em”, “de”,
“por”.
13 14
Ex.: Paulo se aproximou de Pedro. (= Paulo e Pedro se aproximaram.) 12)Ablativo de alusão (AblA)
AblV
O complemento ablativo de alusão é uma locução iniciada pelos prepositivos
A transformação não parece possível num exemplo como “Paulo se aproximou do “de”, “em”, “sobre”, “por”, e permite a sua substituição por “a respeito de”, “em
poço”. Trata-se de restrição semântica: não existe a sentença seguinte: “*O poço relação a”...
aproximou-se de Paulo”.
Ex.: O meu tio informava de tudo.
Outro exemplo: AblA
O pavor do céu eu confundia com os castigos dos contos de Trancoso. 8.Complemento limitativo [limitativo]
AblV
(= Eu confundia o pavor do céu e os castigos dos contos de Trancoso.) O complemento limitativo, a posição 9, é um complemento não obrigatório, e é
manifestado:
9)Ablativo de medida (AblM)
a]pelos pronomes “me”, “te”, “lhe”, “nos”, “vos”, “lhes” ou por locuções
O complemento ablativo de medida é manifestado: correspondentes;
b)por locuções introduzidas pelo prepositivo “a” que substituam ou dispensem
a]por uma das locuções adverbiais seguintes: “muito”, “pouco”, “quanto”, “tanto”, partes de locução, e podem ter aparência de obrigatórias, porque falta parte
“mais”, “menos”, “bem”, “mal”...; obrigatória da locução, mas não são exigidas pelo verbo;
b]por uma locução que se deixa substituir por um dos advérbios acima; c)pelos pronomes “me”, “te”, “lhe”, “nos” e “vos” em substituição a complementos
c]por uma locução adjetiva facultativa ou por uma locução substantiva facultativa de causa e lugar.
que se deixa substituir por uma locução adjetiva.
O dativo e o limitativo podem coocorrer na mesma sentença. Contudo, há uma
Ex.: Decorou o trecho em cinco minutos. restrição: não é possível substituir ambos por pronome conexo na mesma sentença.
O livro custa 30 reais.
AblM Exemplos de complemento limitativo:
Finalmente, eis como pode ficar diagramada a estrutura geral da oração: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ
Faculdade de Filosofia D. Aureliano Matos – L. do Norte
Curso: Letras
O Disciplina: Sintaxe
Professor: Bento
Rocha Lima
Suj Predicado Obj Dat Gen Nom Acus Abl Lim Em sua estrutura básica, a oração consta de dois termos: a)Sujeito – o ser de
quem se diz algo; b)Predicado – aquilo que se diz do sujeito. O sujeito pode ser
determinado ou indeterminado. É determinado, se identificável na oração – explícita
ou implicitamente; indeterminado, se não ou pudermos ou não quisermos especifica-
lo.
Para indeterminar o sujeito, vale-se a língua de um dos dois expedientes:
1)empregar o verbo na 3ª pessoa do plural; 2)usá-lo na 3ª pessoa do singular
acompanhado da partícula “se”, desde que ele seja intransitivo ou traga
D E L P R T F V M I C A
complemento preposicional. Exemplos:
Chove.
Trovejou ontem.
Anoitece tarde durante o verão.
Note-se que a impessoalidade de tais verbos se estende aos auxiliares que com
eles formam perífrases:
O predicado pode ser: nominal, verbal, verbo-nominal. O predicado nominal onde os elementos resultantes da decomposição seriam:
tem por núcleo um nome (substantivo, adjetivo ou pronome):
O trem chegou.
é
está e
anda
Pedro permanece doente. O trem estava atrasado.
continua
ficou 2.O predicativo se refere ao objeto direto e, mais raramente, ao indireto,
parece exprimindo, às vezes, a consequência do fato indicado no predicado verbal:
Em todas, a declaração feita relativamente ao sujeito “Pedro” contém-se no adjetivo A Bahia elegeu Rui Barbosa senador.
“doente”. Este adjetivo é, na realidade, o predicado; mas, pelos seus caracteres de
forma e posição, recebe particularmente o título de predicativo. Os verbos que aí como que cruzamento das orações:
figuram (“ser”, “estar”, “andar”, “permanecer”, “continuar”, “ficar”, “parecer”)
são elementos indicativos de diversos aspectos sob os quais se considera a condição A Bahia elegeu Rui Barbosa.
de “doente” em relação a “Pedro”. Chamam-se verbos de ligação.
O predicado verbal, que exprime um fato, um acontecimento ou uma ação tem e
por núcleo um verbo, acompanhado, ou não, de outros elementos. Da natureza desse
verbo é que decorrem os mais termos do predicado. Verbos há que são suficientes Rui Barbosa ficou senador.
para, sozinhos, representar a noção predicativa. Chamam-se intransitivos.
Exemplos: Exemplo de predicativo do objeto indireto:
Morar em Paquetá. facilidade. E isto porque ela depende das relações, muitas vezes sutis, estabelecidas
Estar à janela. pela preposição introdutória.
Ter alguém ao colo. Como sabemos, uma só preposição pode estabelecer diferentes relações, como
é o caso, por exemplo, da preposição “de” (o que concorre para dificultar a
Esse complemento pode construir-se, também, sem preposição: interpretação):
Sendo este complemento o verdadeiro agente, ou seja, aquele que exerce a Senhor! Por que nos deste uma língua tão pobre na gratidão?
ação, podemos transformar a construção passiva em ativa e, neste caso, ele figurará
como sujeito: O vocativo pode ser precedido de algumas interjeições, especialmente “ó”. Em
regra, é o vocativo separado por vírgula (quando vem no início ou no fim da frase),
Este engenheiro construiu nossa casa. ou figura entre vírgulas (quando intercalado):
O agente pode declinar de importância a ponto de ser omitido: Filho meu, onde estás?
Fuja, fidalgo, que me perco!
Nossa casa foi construída há muitos anos.
Esquema da oração:
Por quem? Não sei ou não interessa dizer.
O
Introduz-se o agente da passiva pela preposição “por” e, às vezes, “de”:
a)por um advérbio:
Visito-o diariamente.
Cometeu o crime premeditadamente.
O navio passou longe.
Dar-lhe-ei o livro amanhã. * V Od Oi Cr Cc Agp Pred (Adv)
Outrora, éramos felizes.
b)por uma expressão adverbial: ROCHA LIMA, Carlos Henrique da. “Teoria geral da frase e sua análise”. In:
Gramática normativa da língua portuguesa. Rio de Janeiro, Livraria José
Partiremos de madrugada. Olympio, 1976, p. 203 – 230.
Lerei seu romance na próxima semana. Obs.: O texto foi copiado, e adaptado, para uso exclusivo em sala-de-aula, como
apoio didático.
A classificação do adjunto adverbial, mormente quando constituído por fim
expressão adverbial (preposição + substantivo) nem sempre se alcança fazer com
1 2
UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ Pelo mesmo raciocínio, também não defendemos a noção de facultatividade
Faculdade de Filosofia D. Aureliano Matos – L. do Norte proposta pelo autor. Cremos que a facultatividade/obrigatoriedade deve ser
Curso: Letras considerada a priori, de tal modo que se possa afirmar que certas características
Disciplina: Sintaxe sintático-semânticas de alguns verbos e de seus complementos permitirão a omissão.
Professor: Bento De outro modo, faltariam critérios suficientes para classificar os diversos tipos de
facultatividade, uma vez que as condições pragmáticas baseadas na intencionalidade
FACULTATIVIDADE E OMISSÃO DE COMPLEMENTOS VERBAIS do falante variam a cada ocorrência. Em –
Ele está fumando Ø
Mônica Magalhães Cavalcante
– por exemplo, o complemento se omite não por razões exclusivamente pragmáticas,
Os complementos verbais estão situados na estrutura proposicional do verbo mas porque a espécie de complemento e o tipo de função semântica relacionadas
e são subcategorizados por ele. Já os adjuntos adverbiais, havendo compatibilidade com o verbo asseguram lexicalmente a possibilidade de omissão. Fumar implica
semântica, acrescentam-se livremente a qualquer verbo, de vez que não são necessariamente cigarro, cachimbo, charuto etc. O mesmo não ocorre com –
determinados pela valência verbal.
Os elementos que se relacionam com o verbo, de acordo com a proposta de Ele procura Ø há tempo.
Helbig (1992), podem ser de três grandes tipos:
– em que as características sintáticas e semânticas do verbo, admitindo amplas
a)Complementos obrigatórios: os que são determinados por valências e que, em geral, possibilidades de preenchimento, exigem complemento obrigatório.
não são dispensáveis nas ocorrências de enunciados; O cerne da questão de aqui nos ocupamos é que a omissão não se restringe aos
b)Complementos facultativos: os que, assim como os obrigatórios, são determinados casos de facultatividade, pode se dar também com os complementos obrigatórios.
por valência, entretanto são dispensáveis no contexto comunicativo. Mas nem por isso devemos afirmar que a ausência/presença de um complemento no
c)Adjuntos livres: os que não são determinados por valência, e podem acrescentar- enunciado seja atribuída a fatores pragmáticos apenas.
se livremente a qualquer verbo, desde que haja compatibilidade semântica. Existem, sem dúvida, condições pragmáticas favoráveis à omissão até de
complementos obrigatórios de alguns verbos, mas também existem fatores
Os complementos facultativos estariam subdivididos em definidos e estruturais responsáveis pela possibilidade de omissão em outros verbos.
indefinidos. Esta subdivisão seria condicionada por fatores comunicativo- Conforme veremos, há graus diferentes de facultatividade, o que –
pragmáticos. Seriam definidos os que fossem recuperáveis no contexto linguístico acreditamos – seja explicável pelas relações de transitividade, pela especificidade do
imediato – os anafóricos, portanto. Exemplo: relacionamento entre certos verbos, seus complementos e suas funções semânticas.
Peter não consegue encontrar o dicionário. Ele procura Ø há tempo, mas em 1.Transitividade e omissão
vão.
O fato de alguns complementos verbais serem mais dispensáveis que outros
Seriam indefinidos os que, ao contrário, não se obtivessem pela ajuda do contexto sempre tornou difícil diferencia-los dos adjuntos, desde a tradição gramatical.
imediato. Exemplo: Verbos do tipo “comer”, “cantar”, “escrever” oscilam ainda entre as classificações
de transitivo e intransitivo, para desespero de alunos e professores. Muitas vezes se
Peter está sentado em frente ao rádio. Ele está fumando Ø. sugeriu que a transitividade dependeria do contexto em que o verbo estivesse
empregado, como constatamos pelas explicações de Bechara (1978):
Em termos de comunicação, os indefinidos seriam irrelevantes. Enquanto nos “A classificação do verbo – como de qualquer palavra – depende da situação
definidos o ouvinte tem que procurar, e encontra necessariamente, no contexto em que se acha empregado na frase. ...De modo que, a rigor, para muitos verbos não
linguístico, o preenchimento do espaço vazio, nos indefinidos, ao contrário, o podemos falar de transitivos, intransitivos etc., mas sim emprego transitivo,
preenchimento resulta do conhecimento de mundo, e a recuperação exata é intransitivo etc. dos mesmos verbos.”
irrelevante comunicativamente. No primeiro caso, o complemento vazio de É certo que alguns verbos podem permitir diferentes construções, de acordo
“procura” é, necessariamente, “o dicionário”; no segundo, pode ser cigarro, charuto com o sentido que assumem, como bem acrescenta Bechara. O que não se concebe é
etc., embora, pragmaticamente, haja maior probabilidade de ser cigarro. Hilbert pautar a transitividade pela ocorrência dos elementos no enunciado em uso, pois, a
conclui que a diferença entre essas duas espécies de facultatividade não advém de sustentar tal posição, perdemos completamente os parâmetros definitórios da
razões lexicais, mas de motivações puramente pragmáticas. transitividade verbal.
Não estamos considerando como omissão os complementos recuperáveis Cunha & Cintra (1985), apoiando a caracterização da transitividade nas
precisamente no contexto linguístico imediato – aqueles tratados por Hilberg como noções de regência definidas por Hjelmslev (1934), declaram que os verbos
facultativos definidos. Sabe-se que esta espécie de elisão anafórica é sempre possível, transitivos “exigem sempre o acompanhamento de uma palavra de valor
independente das propriedades lexicais do verbo. substantivo”. Chamam de regência “o movimento lógico e irreversível de um termo
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regente a um regido. Reconhece-se o termo regido por ser aquele que é Perini (1995) reconhece a tarefa árdua do linguista em explicar por que alguns
necessariamente exigido pelo outro”. complementos podem ou não ter ocorrência superficial, admitindo, assim, a
Regência e transitividade são, portanto, tradicionalmente, conceitos dispensabilidade de certos complementos, aos quais atribui o traço de livre aceitação.
estruturais. Se nos guiarmos pela ocorrência obrigatória ou facultativa dos Mas o autor parece cair na mesma armadilha, no momento em que pondera sobre
constituintes no enunciado, diremos então que, em frases como – situações de uso do tipo:
Outros complementos de natureza adverbial, exemplificados pelos autores, também a)Uma maioria expressiva de verbos é marcada exatamente pelo traço de livre
nos parecem ter estatuto de adjuntos: aceitação do objeto direto – curiosamente, o complemento mais relevante para a
transitividade do verbo, segundo a gramática tradicional. Isto significa que mesmo
a.Complemento de causa: o complemento direto, que mais determina a transitividade verbal, é passível de
omissão;
O catre desabou com o peso. b)Das onze matrizes verbais descritas pelo autor, apenas quatro não são marcadas
Você se mataria por paixão? pelo traço de livre aceitação. Isto nos permite interpretar que a maioria dos tipos de
verbo do português pode aceitar omissão de complementos – sejam obrigatórios ou
b.Complemento de modo: facultativos.
clíticos pode estar vinculado ao traço de individuação do objeto direto, mais um dos
Embora defendam que esses parâmetros são discursivamente determinados, parâmetros de transitividade oracional apontados por Hopper e Thompson (1980).
desconfiamos que muitos deles – exatamente os que julgamos mais importantes – Quando menos individuado o objeto, menos aceitável será o uso clítico. A
são orientados por propriedades estruturais. Na verdade, os traços semânticos da individuação é vista pelos autores como uma medida escalar, que pode ser avaliada
relação sujeito-verbo-objeto é que definem o grau de transitividade da oração. pelas seguintes propriedades:
Tradicionalmente se tem afirmado que a transitividade deve envolver dois
participantes: um sujeito e um objeto direto. Mas o que se abriga sob o título de nome próprio >
objeto direto inclui subgrupos de comportamento diverso. Consequentemente, humano, ou animado >
dependendo do tipo de complemento direto, o grau de transitividade da oração concreto >
também varia. singular >
A diversidade semântica dos objetos diretos, a escassez de traços contável >
identificadores precisos e seu caráter às vezes obrigatório, às vezes facultativo, têm referencial >
conduzido a duas espécies de reações: ou a de subdividir o objeto direto em vários definido
tipos, respeitando as especificidades semânticas e sintáticas de cada um; ou a de
condensa-lo num único título, operando supergeneralizações que priorizam certos Essas propriedades juntas, ou a negação de algumas, e até de todas, é que
aspectos. Há riscos de ambos os lados – ou o de incorrer numa proliferação de determinam o grau de individuação do objeto direto. Veja-se que “dinheiro” e
subclasses ou o de subestimar traços distintivos importantes. Optamos por “música popular” são nomes comuns, não-animados, não-contáveis e não-definidos,
preservar o rótulo tradicional de objeto direto (OD) mas descrevendo as subclasses portanto menos individuados. Um OD de baixa individuação não é bastante
mais importantes. representativo da categoria, embora não deixe de fazer parte do grupo. O teste da
Consoante os compêndios gramaticais pós-NGB, o OD, sendo o complemento cliticização pode não ser, por isso, absolutamente seguro.
de um verbo transitivo direto, apresenta a característica formal de não ser iniciado Hopper e Thompson (1980) mostram que quanto mais individuado o OD,
por preposição necessária. A isso acrescentam, por vezes, certos testes sintáticos, maior o grau de transitividade da oração. A transitividade, realmente, não pode
como a possibilidade de apassivar-se e a de cliticizar-se em “o”, “a”, “os”, “as”. estar concentrada nas propriedades lexicais do verbo apenas. Trata-se de um
Quanto aos caracteres semânticos, concordam, geralmente, que o OD “indica o ser fenômeno relacional, de interdependência e compatibilidade entre verbos e
para o qual se dirige a ação verbal” (Cunha & Cintra, 1985). Bechara (1978) complementos. É essa interligação que imprime a cada verbo os diversos sentidos
adiciona a isto que o OD também pode exprimir: que pode assumir e as diferentes construções valenciais a que corresponde.
Se a individuação empresta à oração maior transitividade, por outro lado, este
a)O produto da ação: “O poeta compôs um belíssimo soneto”; não é um fator condicionante da omissão de complementos. Pelo contrário: quanto
b)A pessoa ou coisa para onde se dirige um sentimento, sem que o objeto seja mais individuado um complemento (e mais transitiva a oração), mais ele tende a
forçosamente afetado pelo dito sentimento: “Otelo ama a Iago, e Iago ama a Otelo”; realizar-se no enunciado.
c)Com os verbos de movimento, o espaço percorrido ou o objetivo final: “Andei Isto leva à reflexão de que um ambiente mais altamente transitivo não
longas terras”. constitui um critério de facultatividade, e não é uma condição favorável à omissão
de complementos verbais.
Se todos esses traços não são suficientes para uma descrição precisa do OD, O outro teste sintático, o da passivização, também não é garantia total da
representam, pelo menos, o que há de fundamental, aquilo a que se somaram certas existência de OD, já que nem toda estrutura sujeito-verbo-OD é apassivável. Os
contribuições de estudos mais recentes. exemplos que citamos anteriormente assim o comprovam:
O fato de não ser iniciado por preposição necessária é ponto pacífico. Mas
sobre o inverso pairam ainda muitas dúvidas: todo complemento ligado diretamente Ana tem dinheiro. *Dinheiro é tido por Ana.
ao verbo pode ser tomado como OD? Constituem ODs os especificadores e os Ela adora música popular. *Música popular é adorada por ela.
elementos que acompanham o verbo-suporte, como “ter medo”, “ganhar distância”
etc.? Vilela (1992) afirma que, para a passivização, convergem três fatores que se
Quanto aos testes sintáticos, como o de serem os ODs substituíveis pelos intercondicionam:
clíticos “o(s)”, “a(s)”, sabemos que nem sempre se aplicam a todos os casos.
Comprove-se: a)O sujeito/agente da frase perde sua posição de tópico;
b)O sujeito/agente, por esse motivo, se despersonaliza;
Ana tem dinheiro. ?Ana o tem. c)A oração torna-se menos ativa, mais estática e menos transitiva.
Ela adora música popular. ?Ela a adora.
Dos três, Vilela destaca como fator desencadeante da passividade a
Não se questiona a validade dos complementos acima como ODs, mas degradação do agente, a mudança de perspectiva, antes dinâmica, agora estática. O
convenhamos que a cliticização correspondente é pelo menos estranha. O uso desses
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autor observa que o fato de um verbo exigir OD não é condição necessária para a mantida entre eles. Por isso, as orações mais altamente transitivas têm, de fato, de
passivização, o que seria evidenciado pelas passivas impessoais do tipo – acordo com Hopper e Thompson, dois participantes envolvidos (Sujeito e Objeto
Direto) e o verbo deve ter a propriedade de cinese, ou seja, tem que indicar ação. O
Come-se bem nesta casa, só se grita nesta reunião. Sujeito deve apresentar agentividade e volitividade (intencionalidade). E o Objeto
deve ser mais afetado e mais individuado.
Não questionamos a prioridade da diminuição do papel de agente sobre os Na verdade, a própria definição de agentividade já prevê a intenção, a vontade
outros fatores, na caracterização da passiva. Mas é preciso que assinalemos dois deliberada do agente. Não haveria, pois, qualquer razão para separar essas duas
aspectos nesta análise. Em primeiro lugar, a exigência de Objeto nos parece propriedades. Entretanto, dada a complexidade da noção de agente na literatura
condição necessária, sim, para a passiva. As passivas impessoais invocadas por sobre o assunto, julgamos por bem manter a distinção, especialmente pela utilidade
Vilela não constituem exemplo em contrário: apenas reforçam nossa argumentação que pode ter neste estudo.
de que os complementos facultativos, muitas vezes, dificultam a classificação dos Cremos que o traço de intencionalidade é grande responsável pela
complementos verbais. “Comer”, “beber”, “gritar”, “cantar” etc., para nós, são diferenciação, por vezes defendida, entre agente e causador. O agente tem que,
potencialmente verbos bivalentes, e os especificadores exigidos devem ser tomados necessariamente, ser o controlador da ação, por isso deve também apresentar o traço
como objetos diretos. O que ocorre é que representam os complementos mais animado. Já o causador só precisa desencadear um estado de coisas. Nas palavras de
altamente facultativos. Devido ao grau elevado de facultatividade, Borba (1996) Borba el al. (1991): “Sujeito agente – é o que por si mesmo desencadeia uma
prefere, porém, considerar os verbos respectivos como já saturados em si mesmos: atividade (física ou não), sendo origem dela e seu controlador. É, portanto, o que
“Certos verbos selecionam itens lexicais bem determinados para complemento e, por realiza ou instiga a ação expressa pelo verbo que funciona como núcleo do
isso, facilmente identificáveis. Isso quer dizer que o grau de informação veiculada predicado. Constitui-se de um nome marcado pelo traço animado... Sujeito causativo
pela frase não se altera com a presença/ausência desse tipo de complemento. Quando – é o que provoca um efeito ou, então, é o responsável pela realização do estado de
o verbo pede um complemento bem específico cuja ausência não afeta a coisas indicado pelo verbo. Ex.: ´O vento derrubou a árvore’; ‘O medo afugentou o
interpretação semântica, é mais econômico considerar o caso como de não-expressão rapaz’. Expressa-se por um nome não-animado...”.
de especificador”. Os exemplos abaixo revelam que a propriedade de agente do sujeito, investido
Tal alternativa, entretanto, a nosso ver, não é coerente com a análise de de intencionalidade, é um parâmetro realmente determinante da passivização e do
enunciados com especificador expresso, como em: grau de transitividade:
Daí por que achamos que a matriz valencial deve ser exatamente a mesma. A AGENTE:
descrição deve, contudo, prever o alto grau de facultatividade do complemento.
Em segundo lugar, o OD é tão fundamental que os traços que o caracterizam, O presidente cancelou a visita ao Ceará.
assim como os traços do Sujeito, são igualmente condicionantes da passivização. A visita ao Ceará foi cancelada pelo Presidente.
Dentre eles, salientem-se os de afetado e de individuado.
Têm razão Hopper e Thompson (1980) quando incluem essas propriedades A secretária ensaboou os tapetes da loja.
como essenciais para a avaliação da transitividade. Transitividade e passivização Os tapetes da loja foram ensaboados pela secretária.
estão estreitamente ligadas, pois a passiva, já o dissemos, processa uma espécie de
destransitivização. Os leitores parabenizaram o jornal.
Os dez parâmetros elencados pelos autores, caracterizando a transitividade da O jornal foi parabenizado pelos leitores.
oração como um continuum, não devem estar dispostos num mesmo nível: alguns
são mais importantes que outros. Atente-se para a inaceitabilidade das passivas que correspondem a enunciados
Reiteramos que os parâmetros realmente condicionadores da transitividade com sujeito causador, sem intencionalidade. Para a ocorrência da omissão, todavia,
são os que se circunscrevem ao verbo, ao Sujeito e ao Objeto Direto, e à inter-relação
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o traço de causador parece ser bastante, isto é, o traço de agente não precisa estar classificar, às vezes, um processo como transitivo é a possibilidade de passivização
necessariamente presente. Atente-se para exemplos como: de certos verbos, como em:
Um resfriado forte realmente derruba Ø. Ele foi visto com a namorada por todos os amigos.
A inflação mascarada assusta Ø. Os gemidos dos presos foram ouvidos pelo prédio inteiro.
Se a ausência de agentividade/intencionalidade reduz o grau de transitividade, A passiva se justifica pelo fato de haver, de algum modo, uma afetação do
para a ocorrência da omissão isto não tem relevância. Pelo menos, não em objeto. Conforme observa Vilela (1992): “Deve existir afetação, sob pena de se
predicados de ação-processo, como veremos a seguir. Em predicados de ação, o tornar inaceitável a passivização, mesmo que esta afetação seja meramente
sujeito agente é, obviamente, imprescindível: só há predicado de ação se houver conceitual”.
agente. Com os verbos de processo, especificamente os de percepção, o complemento
Uma característica própria dos predicados de ação e ação-processo é a cinese. sofre, portanto, uma afetação conceptual, ainda que menos intensa, é claro, mas que
Só as ações são mais efetivamente transferidas de um participante para outro. empresta ao predicado certo grau de transitividade.
Acrescentamos a estas conclusões de Hopper e Thompson que os tipos de O mesmo não ocorre com os predicados de estado, em que não há ação, nem
predicado seguem uma ordem hierárquica em termos de transitividade. Os de ação- agentividade, nem tampouco afetação. Segundo Borba et al. (1991), o estado
processo e de ação se situam num ponto mais alto da escala. Em oposição, os de expressa uma propriedade, uma condição ou uma situação localizadas no sujeito. O
processo e os de estado são menos transitivos. autor não considera os estados como transitivos que recebem tipicamente um objeto
Um predicado de ação-processo, segundo Chafe (1979), é o que direto. Classifica o sujeito deste predicado como inativo – aquele que é o mero
simultaneamente denota processo e ação, já que, ao mesmo tempo, implica uma suporte de uma propriedade, condição ou situação. Exemplos:
mudança de estado e expressa uma atividade que o sujeito realiza. Especifica este
predicado, além de um sujeito com o traço agente, um objeto que recebe a ação. No quarto, sete das oito crianças empilhavam-se num colchão.
Conforme complementa Borba et al. (1991), uma ação-processo indica uma ação O ensino mineiro padece de muitos males.
realizada por um sujeito agente e/ou uma causação desencadeada por um sujeito Seus conhecimentos pairam acima dos sentidos.
causativo. Ambas afetam um complemento, que expressa uma mudança de estado,
de condição ou de posição. Mas esta posição esbarra, por exemplo, no caso dos predicados de estado com
É pela exigência dos traços de agente no sujeito, cinese no verbo, e afetação no especificadores, como “pesar”, “medir”, “distar” etc. Uma vez que estamos
objeto, presentes na própria definição de uma ação-processo, que sustentamos ser adotando os especificadores como complementos diretos, sustentaremos que os
este o tipo de predicado mais representativo da transitividade alta. Exemplo: predicados de estado podem apresentar alguma transitividade, ainda que em
baixíssimo grau.
Suas palavras comprometeram o bom andamento do projeto. Se ocorre omissão em predicados de estado, há de ser por interveniência de
outros fatores, pois o simples fato de ser um estado condiciona a obrigatoriedade do
Pensamos que, por essa caracterização de transitividade alta, os predicados de complemento. Isto nos autoriza à constatação de que, se por um lado, a
ação-processo têm também grande probabilidade de realizar forma plenas, e não de transitividade muito alta não condiciona a facultatividade, como nos processos e
omitir os complementos. Havendo omissão, esta deve ser atribuída a fatores estados, também não representa um ambiente favorável à ocorrência do fenômeno.
discursivos, não à facultatividade em si. Podemos concluir, até este ponto, que, das propriedades elencadas por Hopper
Em segundo lugar nesta escala, colocaremos o predicado de ação, no qual, de e Thompson, algumas são imprescindíveis para a transitividade mais prototípica,
acordo com Chafe, só cabe a exigência de expressar uma atividade, um fazer que o como a agentividade/intencionalidade, a cinese e a afetação do objeto.
agente realiza. Sobre o objeto, como vemos, não pesa, necessariamente, nenhum Quanto à individuação, os traços que a definem (humano, animado, concreto,
traço de afetamento. Compare-se com o exemplo anterior: singular, contável, referencial e definido) constituem propriedades do sintagma
nominal objeto, não da relação sujeito-verbo-complemento. Sua relevância para a
De modo algum, o pai aprovaria aquele namoro. transitividade advém, portanto, de um outro tipo de consideração.
Esta conclusão é de particular interesse para este trabalho. Os parâmetros
As ações são dotadas, portanto, de uma transitividade mediana, e este é interligados sujeito agente, verbo cinético e objeto afetado, que imprimem maior
possivelmente o contexto sintático mais condicionante da facultatividade. Daí a transitividade, não apresentam um grau elevado em contextos de facultatividade, já
grande incidência de omissões nesta espécie de predicado. que os ambientes mais transitivos não determinam os complementos facultativos.
Em terceiro, situamos os predicados de processo, que, segundo Chafe, Por isso os predicados de ação são os mais condicionadores.
apresentam um sujeito (paciente, experienciador ou beneficiário) que muda de Já o parâmetro de individuação, mais relacionado à referencialidade do
estado, condição ou posição. O sujeito, como se constata, já perde o traço de sintagma nominal, ainda que não seja um fator de facultatividade, pode condicionar,
agentividade, e nada se afirma quanto às características do objeto. O que nos leva a assim mesmo, a omissão. Esta é uma situação bem típica dos predicados de ação-
11 12
No que respeita aos parâmetros de afirmação e modo, Hopper e Thompson Diremos que ser beneficiário e preencher a função de objeto indireto são,
propõem que, sendo a oração afirmativa, a ação do verbo parece incidir mais portanto, dois critérios simultâneos de facultatividade.
diretamente sobre o paciente, e que uma ação do mundo real, cujo verbo Embora abrigue um número reduzido de verbos, o objeto indireto pode
corresponde às formas do indicativo, faz recrudescer o grau de transitividade. ocorrer em predicados variados, e nas funções de beneficiário ou experienciador. O
Ambas, porém, alteram pouco a transitividade da oração, a não ser que estejam experienciador, conforme Pezati, representa a entidade que é afetada por um
vinculadas aos parâmetros anteriores, quando talvez os potencialize. processo psicológico de sensação, emoção ou cognição. Vejamos em:
3.Funções semânticas e funções sintáticas Não me parece que o caso se resolverá hoje.
Tomando por referência o traço de afetamento, os sintagmas nominais O baixo grau de afetamento, aliado ao fato de desempenhar uma função sintática
complementos podem representar entidades afetadas e não-afetadas. De acordo com não-nuclear, a de objeto indireto, representam, ao mesmo tempo, dois fatores
Pezatti (1992), as entidades afetadas são experienciador, paciente, resultativo e determinantes da facultatividade destes elementos. Compare-se:
receptivo. Borba (1996) considera o beneficiário também como um afetado – aquele
que marca o destinatário da posse ou de um benefício. Não parece Ø que o caso se resolverá hoje.
Chafe (1979) demonstrou que o beneficiário pode figurar em qualquer tipo de
predicado: estado, processo, ação ou ação-processo. Todavia, a relação que mantém A função semântica de paciente, segundo Pezatti (1992), representa “a
com o verbo não é sempre a mesma. Afirma o autor que, em predicados de ação, e entidade que se move ou sofre mudança de estado, condição ou posição para outro
em alguns de ação-processo, o beneficiário é facultativo. Constroem-se estado, condição ou posição”. Ocupa, geralmente, a função sintática de objeto
perfeitamente sem a entidade benefactiva. Exemplo: indireto, e costuma ser obrigatório. Exemplo:
quando exigido por verbos não marcados pelo parâmetro mudança de estado; é Os verbos do grupo “vir” denotam um deslocamento em direção ao espaço
dinâmico quando cobrado por verbos de movimento, isto é, de deslocamento ativo, dêitico do EU, como bem aponta Vilela (1992). Em –
que implicam, naturalmente, mudança de posição.
Os locativos de natureza estática são exigidos por verbos de estado, do tipo Clinton veio ao Brasil.
“estar”, “permanecer”, “morar” etc., e comportam-se como complementos
obrigatórios. Os locativos dinâmicos compõem o esquema valencial de verbos de – a escolha do verbo se deu em função da posição do falante, que, certamente, se
ação-processo, como “colocar”, “por”, “jogar” (= arremessar), ou de predicados de encontra neste país, senão teria optado pelo verbo “ir”.
ação, com verbos de deslocamento ativo. Dois outros grupos descritos por Vilela poderiam ser incluídos como
Em predicados de ação-processo, os locativos costumam ser obrigatórios. subconjuntos de “ir” e “vir”. Um é o de verbos como “voltar” e “regressar”, que
Contudo, quando o lugar se refere ao espaço do sujeito do enunciado ou mesmo do apresentam também deslocamento em direção ao EU, assim como os do grupo “vir”,
enunciado, o complemento tende a omitir-se. Exemplos: mas têm a particularidade de reunir os movimentos contidos em “ir” e “vir”.
Outro é o de verbos como “subir”, “descer”, “escalar” etc., que são orientados
Eu coloquei meu chapéu (em mim). para um espaço diferente do lugar do EU, assim como ocorre com os verbos do
Você deve colocar seu agasalho (em você mesmo). grupo “ir”. Vilela observa que estes verbos têm a especificidade de apontar para um
Ela já tinha posto a sua roupa de banho (nela mesma). deslocamento vertical, para cima ou para baixo.
Estes dois grupos revelam ainda outra peculiaridade digna de menção: o
O locativo que é, portanto, correferente ao sujeito do enunciado se omite facilmente, espaço do EU, tomado como referência, pode não ser exatamente o do sujeito da
logo este é um critério de omissão. enunciação (o falante), mas o do sujeito do enunciado. Quando o sujeito da
Os verbos de deslocamento ativo comportam dois locativos, de origem e de enunciação afirma –
destino. São, dessa forma, trivalentes: além do argumento correspondente ao sujeito,
com função de agente, tomam os complementos locativos, com as noções de origem As crianças voltaram para a sala.
e de destino.
Nem sempre, contudo, esses dois locativos se manifestam no enunciado. Em – o referencial tomado para selecionar o verbo “voltar”, e não outro, é a posição do
geral, aliás, tais verbos não expressam todos os seus complementos, apenas os que sujeito do enunciado, “as crianças”, e não, necessariamente, a do falante.
atendem aos propósitos discursivos do momento. Assim mesmo ocorre com o subgrupo de “subir”, orientado em direção a um
Isto, porém, não significa que a facultatividade desses complementos locativos espaço diferente do lugar do EU. A escolha de “subir” ou “descer” se dá em função
se deva à intencionalidade do falante. Os objetivos do falante são responsáveis pela da localização do sujeito do enunciado. É o que se percebe pelo exemplo –
seleção do lexema verbal mais apropriado. O caráter facultativo, na verdade, advém
da própria semântica dos verbos de deslocamento, pois eles preveem um movimento Os fiéis subiram todos os andares da escada da igreja.
em direção a um destino. Daí porque o lugar de origem se omite com grande
facilidade e frequência, o que faz com que vários autores nem o considerem como – em que pouco interessa o espaço do falante.
complemento. Desta análise, importa inferir dois critérios distintos: um, de natureza léxico-
Mas a complexidade da omissão dos complementos locativos vai além das semântica, que determina a facultatividade dos locativos; outro, de cunho
observações acima. Há verbos que pressupõem um ponto de partida, um local de pragmático, favorecendo a omissão. Está prevista na descrição lexical dos verbos de
origem, como “ir”, “sair”, “afastar-se”, “partir” etc. Conforme Vilela (1992) sugere, deslocamento ativo a importância da informação sobre o lugar de destino do
os verbos deste grupo são selecionados pelo falante quando ele toma como ponto de movimento. Isso explica o alto grau de dispensabilidade dos complementos locativos
referência um lugar que não inclui o espaço em que se encontra; denotam, portanto, de origem. Por outro lado, mesmo em se tratando do local de destino, o locativo é
um deslocamento em direção a um espaço diferente do lugar do EU. Em exemplos facilmente omissível quando corresponde ao espaço dêitico do sujeito da enunciação
como – ou do enunciado.
Chafe (1979) designa a função semântica de especificador como complemento,
A princesa foi para a França. pelo fato de completar o próprio significado do verbo e assinalar uma especificação
mais estrita que a das outras funções semânticas. Os especificadores têm
– com certeza, o falante deste enunciado não se encontrava na França. Do contrário, previsibilidade altíssima; muitas vezes, seu conteúdo está implicado na própria
não teria selecionado o verbo “ir”, e sim, “vir”. morfologia do verbo. Ou, como observa Chafe, o verbo impõe a este tipo de
Verbos como “vir”, “entrar”, “aproximar-se”, “chegar” etc. pressupõem um argumento uma limitação semântica que não vai além do alcance semântico do
ponto de chegada, um local de destino. Todos os verbos de deslocamento ativo do próprio verbo.
sujeito, conforme dissemos, supõem o movimento do agente para um destino. Chafe opõe os especificadores de ação aos de estado, demonstrando que,
Entretanto, há verbos que trazem embutido em sua descrição lexical um foco na enquanto os e ação são facultativos, os de estado são obrigatórios, como em:
origem; outros, no destino.
17 18
O livro pesa uma libra. Por ora, resta-nos afirmar que, mesmo não havendo transitividade alta, nem
O doce custa dez centavos. grande afetação – que seriam determinantes de facultatividade – os objetos
parcialmente incorporados acima são obrigatórios:
Brito (1986) observa que tais elementos não são cliticizáveis nem apassiváveis como
os ODs típicos, e relacionam-se à área semânticas das medidas. *A vaca não teve.
Além desta espécie de complemento direto, que foge inteiramente à descrição *Já forma fazer.
de objeto direto, Vilela (1992) acrescenta alguns outros não-prototípicos. Um deles é *Pouco se incomoda de causar.
o do pseudo-objeto, ou OD totalmente absorvido pelo verbo.
Havendo uma incorporação total do nome pelo predicado, é preferível não A referencialidade, que se circunscreve aos sintagmas nominais, se revela,
considerar o pseudo-objeto como complemento. Borba et al. (1991) classifica este assim, um poderoso critério para avaliar, senão a facultatividade e o caráter
caso como verbalizador, ou verbo-suporte: verbo que, numa construção complexa, é omissível, pelo menos a transitividade e o grau e incorporação ou de independência
mero suporte de categorias e indica que o verdadeiro verbo (= núcleo do predicado) do complemento em relação ao predicado. Sua importância nos parece mesmo
está no radical de seu complemento. Exemplo: “ter medo (= temer)”, “causar dano subestimada no conjunto de parâmetros de Hopper e Thompson, que a relegam a
(= danificar)”, “abrir falência (= falir)”, “ganhar distância (= distanciar-se)”. um mero traço de individuação. Podemos, até este momento, concluir que um
É preciso notar que o sintagma nominal que se segue aos verbos acima é sintagma pouco referencial conduz à obrigatoriedade de objetos diretos – quer
esvaziado de sua referencialidade, além de apresentar outros traços de não- sejam pacientes, resultativos ou receptivos.
individuação. O falso complemento é totalmente absorvido pelo predicado, de tal Alguns objetos diretos na função de especificador também são apenas
modo que o significado do verbo só existe em função do nome que o acompanha. parcialmente incorporados ao predicado. São os que completam verbos de ação,
Vilela (1992) demonstra que a impossibilidade de o nome receber como “comer”, “dançar”, “cantar” etc. Conforme já dissemos antes, estes
determinantes e modificadores revela a perda de seu poder referencial. Em especificadores são catalogados por Borba et al. como adjuntos, mas cremos que
consequência desse fato, perdem-se também os valores de paciente e de afetado, sejam, na verdade, complementos diretos com alto grau de facultatividade.
numa ampla descaracterização da transitividade. Vejamos a descrição de “comer” (Borba et al.): “Indica ação. Com sujeito
Quanto mais determinantes e modificadores o nome comporta, mais agente. Com ou sem especificador. Ex.: ‘Agora preciso comer ovos de chocolate’;
referencial ele se torna – a referencialidade é também uma questão de grau. ‘Os poucos hóspedes comiam Ø em silêncio’.”
Consequentemente, o sintagma nominal torna-se mais individuado, o que eleva E de “dançar”: “Indica ação com sujeito agente, com ou sem especificador e
também o grau de transitividade. com complemento, apagável, da forma com + nome humano. Ex.: ‘Fogareiro
Algumas espécies de objeto direto, que não têm função semântica de dançava Ø agora com uma mulher forte’; ‘Pedro dançou uma valsa com a filha’.”
especificador, são apenas parcialmente incorporados ao predicado. Os mesmos Os especificadores destes verbos, como demonstra Chafe (1979), são de
verbos exemplificados acima podem receber complementos de baixa natureza classificatória: dançar uma dança; comer uma comida; cantar uma cantiga
referencialidade, de baixa individuação. Comparemos os verbalizadores com os etc. Julgamos que a facultatividade alta advém exatamente disto: tais elementos são
casos de incorporação parcial: informacionalmente irrelevantes sempre que se restringem ao alcance semântico do
próprio verbo, e nada mais acrescentam. Percebe-se que, nestas situações, é baixo o
O carro ganhava distância. poder referencial do especificador e, principalmente, o grau de individuação.
O carro já ganhava boa distância. Se há baixa referencialidade e individuação, tanto quanto os ODs pouco
referenciais estudados acima, como se explica que estes elementos sejam facultativos
O bebê já tinha medo de barata. e os anteriores obrigatórios? A resposta está na semântica do predicado. Verbos
O menino teve um medo injustificado. como “fazer”, “causar”, “ter” permitem complementos semanticamente variados; a
Borba et al. (1991) não distingue as situações acima: trata a ambas como exemplos carga semântica do verbo se esvazia em favor do complemento, que, sendo
de verbalizadores. Entretanto, percebem-se graus variados de referencialidade nos informacionalmente imprescindível, é um elemento obrigatório. Com predicados
enunciados seguintes, o que aponta para uma certa autonomia de verbos e objetos: como “cantar”, “dançar”, “comer”, dá-se justamente o contrário: a carga semântica
do verbo muitas vezes se basta, mas tem alcance limitado; seus complementos são
Tinha um vago desejo de visitar a prima. mais previsíveis e, se pouco especificam, tornam-se dispensáveis.
A vaca não teve nenhuma reação estranha. Outros verbos de ação, que também exigem complementos que apenas
Já foram fazer alguma fofoca de mim para você, né? especificam o próprio conteúdo do verbo, estranhamente não são classificados por
Pouca se incomoda de causar boa impressão a Adriano. Borba et al. como especificadores. É o caso, por exemplo, de “estudar” e “costurar”:
ESTUDAR – “Indica ação, com sujeito agente, com complemento expresso por
Seria necessário estabelecer certos critérios de referencialidade para decidir designativo de texto: ‘Pedrinho não pôde brincar, porque tinha de estudar a lição’.
se, em termos sintáticos, o sintagma nominal deve ou não ser considerado como Com complemento expresso por nome designativo de objeto de estudo: ‘Já
objeto direto em casos assim, e em que espécie de ocorrências não subsiste dúvidas estudamos a inversão climática’.” COSTURAR – “Indica ação-processo com sujeito
sobre o status referencial de um SN.
19 20
agente. Com complemento, apagável, expresso por nome concreto não-animado: Adicionamos a isto a posição argumental de complemento: a partir do terceiro
‘Costurei os sacos de lona’; ‘Biela vivia de costurar Ø para fora’.” espaço, a língua tende naturalmente a omitir, embora este fator, sozinho, não seja
Se predicados assim devem distinguir-se dos objetos diretos especificadores, suficiente enquanto condicionamento.
será necessário explicitar os critérios que os diferenciam. Como não vemos em que No que respeita aos complementos locativos solicitados por verbos de
pode consistir a diferença, optamos por reuni-los numa mesma categoria. deslocamento ativo, vimos que, lexicalmente, tais verbos preveem o movimento de
O importante, para esta análise, é concluir que os ODs especificadores são os um agente em direção a um destino, o que torna o locativo de origem muito
complementos mais altamente facultativos, o que se deve, em grande medida, à facultativo. Alguns desses verbos têm um foco marcado no lugar de origem, e são
semântica do verbo, que dispensa um objeto não-individuado, pragmaticamente selecionados quando o falante toma como ponto de referência um lugar que não
irrelevante. inclui o espaço em que ele, ou o sujeito do enunciado, se encontram. Outros têm foco
Uma especialização destes casos é o que a gramática tradicional costuma no destino, o que, pela própria semântica dos verbos de deslocamento ativo, faria
classificar como objeto indireto interno, exigido por verbos como “viver”, “sonhar”, com que o locativo de destino se tornasse obrigatório. Entretanto, quando este lugar
“morrer”. Ocorre, aqui, uma incorporação mais exacerbada, de tal modo que é de destino é também o espaço do sujeito da enunciação ou do enunciado, a tendência
muito mais frequente a omissão dos complementos do que a realização, dada a é omitir-se.
obviedade do conteúdo que carregariam. A manifestação do conteúdo não- Os objetos diretos parcialmente incorporados a verbos de baixa carga
individuado é bloqueada, por bem da máxima da quantidade (Grice, 1975), para semântica, como “fazer”, “causar”, “ter” etc., assumem o conteúdo básico dos
evitar a redundância: verbos, compondo, com eles, quase que expressões verbais. O teor
informacionalmente relevante desses ODs coloca-os no alto da escala de
Sonhar um sonho. obrigatoriedade.
Viver uma vida. Os diversos graus de referencialidade e individuação de outros objetos
Morrer uma morte. obrigatórios na função de paciente, resultativo e receptivo podem favorecer a
omissão.
Somente quando ganham em referencialidade e individuação, os elementos se Os objetos diretos especificadores completam o sentido de predicados como
explicitam, como em: “cantar”, “dançar”, “comer”, cujo valor semântico muitas vezes se basta. Este fato
faz dos especificadores os complementos diretos mais altamente facultativos, dado o
Ele viveu uma vida bem vivida. alto grau de previsibilidade. A facultatividade diminui na mesma medida em que
Ele sonhou um sonho de encantar as pedras. aumenta o grau de individuação do objeto e, consequentemente, de relevância
pragmática.
4.Conclusões Faz-se necessário, ainda, estudar a interação de parâmetros discursivos com
estes e outros possíveis fatores de facultatividade, a fim de avaliar melhor o
A facultatividade, como fizemos demonstrar, é mensurável por propriedades comportamento dos complementos verbais omissos.
estruturais, semânticas e sintáticas, circunscritas no eixo sujeito-verbo-objeto. Os
ambientes mais altamente facultativos são favorecidos por um grau mediano de CAVALCANTE, Mônica Magalhães. “Facultatividade e omissão de complementos
transitividade oracional, para o qual concorrem os predicados de ação, com verbo verbais”. In: Rev. de Letras, v. 19 - nº. 1/2 – jan/dez 1997.
cinético e sujeito agente, mas não causador, e objetos diretos baixamente afetados www.revistadeletras.ufc.br/rl19Art02.pdf
ou sem afetação.
Dispusemos os tipos de predicado numa sequência hierárquica que situa os de Obs.: O texto foi copiado, com alguma adaptação, para uso exclusivo em sala-de-
ação-processo como mais transitivos, seguidos dos de ação, processo e estado. Os aula, como apoio didático.
dois extremos desta escala condicionam a realização obrigatória de complementos,
embora a omissão possa evidenciar-se mesmo em contextos não-facultativos.
Assim sendo, em predicados de ação-processo, a omissão pode ser atribuída a fim
critérios relativos ao sintagma nominal, a saber: a não-individuação, ou
generalização, e a não-referencialidade.
Além disso, sintagmas não-individuados e não-referenciais costumam ser
selecionados por situações aspectuais não-pontuais e atélicas, o que determina ainda
mais a omissão.
Especificamente quanto aos argumentos do verbo, os objetos indiretos em
função semântica de beneficiário são bastante facultativos, por comportarem baixa
afetação e desempenharem uma função sintática não-nuclear.
1 2
As estruturas sintáticas se compõem de constituintes organizados em orações Este tipo particular de regência se denomina transitividade verbal.
segundo certos princípios. Um desses princípios é o de que cada constituinte tem
uma função sintática (sujeito, complemento verbal, predicativo, adjunto adnominal b)Assim como os verbos, também itens de outras classes podem fazer exigências
etc.) dentro da oração ou do sintagma a que pertence. Outro aspecto da organização quanto à presença de complementos. A palavra “favorável” aceita complemento
sintática das orações diz respeito, grosso modo, à propriedade de muitos itens léxicos nominal, como em
de estipular certos traços da estrutura em que ocorrem. Assim, por exemplo, se
construirmos uma oração com o verbo “gostar’, teremos de incluir também um (8)Minha decisão foi favorável à publicação do seu artigo.
complemento verbal precedido da preposição “de”. A ausência de tal preposição
causa inaceitabilidade: Já o item “livresco”, por exemplo, não aceita complemento nominal.
Outro exemplo é a palavra “favoravelmente”, que admite um complemento
(1)a.Todo gato gosta de sardinha. em
b.*Todo gato gosta sardinha.
(9)Decidi favoravelmente à publicação do seu artigo.
Esse fenômeno é tradicionalmente expresso dizendo-se que o verbo “gostar” exige a
presença de “de” antes de seu complemento. ao passo que “estupidamente” nunca ocorre com complemento.
Essa relação é assimétrica, pois evidentemente não se poderia dizer que a Em casos como os de “favorável”, “favoravelmente”, “livresco” e
preposição é que exige o verbo, já que “de” ocorre em muitas construções sem “estupidamente”, falamos de transitividade nominal.
“gostar”. Diremos, então, que o verbo “gostar”, na frase (1a), rege o complemento
(no sentido de que faz exigências quanto a sua presença e/ou sua forma); diz-se c)Tanto no caso da transitividade verbal quanto no da nominal, a exigência do termo
também que “gostar” é o termo regente, e o complemento verbal com “de” é o termo regente não se limita sempre à presença de algum complemento. O termo regente
regido. Temos aí, portanto, um exemplo do fenômeno da regência. pode estipular certos traços da forma desse complemento; tipicamente, o termo
A relação termo regido/termo regente se manifesta de formas bastante regente exige a presença de uma preposição específica. Assim, para manter os
variadas; em todos os casos, entretanto, pode-se distinguir um componente comum, exemplos acima, o complemento de “gostar” vem com a preposição “de”; o de
a saber, um item léxico (termo regente) estipulando certos traços da estrutura. A “comer” vem sem preposição; o de “favorável” vem com a preposição “a”, e assim
seguir, vou dar uma série de exemplos, que deverão deixar mais clara essa noção: por diante.
a)Os verbos fazem exigência quanto à presença de certos termos em sua oração. d)Os verbos podem também fazer certas exigências concernentes à forma das
Assim, o verbo “fazer” exige a presença de um complemento verbal sem preposição; orações que lhes são subordinadas. Essas exigências podem dizer respeito ao modo
tanto é assim que se pode dizer do verbo da subordinada ou então ao tipo de subordinada: com “que” ou com
infinitivo, por exemplo. Assim, uma oração que é complemento verbal de
(2)Gato faz barulho de noite. “determinar” deve ser introduzida por “que” e ter o verbo no subjuntivo, não sendo
aceitável o indicativo ou infinitivo:
mas não
(10)a.Ele determinou que todos se calassem.
(3)*Gato faz de noite b.*Ele determinou que todos se calam/calaram.
c.*Ele determinou todos se calarem.
Há também verbos que recusam certos termos; o verbo “nascer” não pode
nunca ter complemento verbal, ao passo que “morrer” pode, pelo menos em certos Já com o verbo “comentar” o complemento verbal pode ocorrer com oração
casos: introduzida por “que” e indicativo ou, então, com oração de infinitivo, mas não com
oração de subjuntivo:
3 4
(11)a.O jornal comentou que o governo está perdido. Procurando fugir ao problema, alguns autores sugerem que a transitividade
b.*O jornal comentou que o governo esteja perdido. não seria propriedade dos verbos, mas antes dos próprios contextos, ou de verbos
c.O jornal comentou o governo estar perdido. em determinados contextos. Mas isso tem como consequência o esvaziamento da
noção de transitividade, que se torna supérflua; e, como essa posição é comum, acho
e)Alguns itens não-verbais (tradicionalmente classificados como advérbios) fazem interessante criticá-la aqui com algum detalhe.
exigência quanto ao modo da oração a que pertencem. Em geral, essa exigência é Digamos que, em vez de definir o verbo “comer” como transitivo ou
condicionada à posição do advérbio, de tal modo que o efeito só se faz sentir se o intransitivo, disséssemos que ele é transitivo (ou usado transitivamente) em (6) e
verbo vier depois do advérbio na oração: intransitivo (ou usado intransitivamente) em (7) e (14). As categorias transitivo e
intransitivo já não se poderiam aplicar ao verbo “comer” tal como se apresenta no
(12)a.Eu talvez vá à Argentina este ano. léxico, isto é, fora do contexto. “Comer” seria transitivo quando ocorresse com
b.Eu irei à Argentina este ano, talvez. complemento verbal, e intransitivo quando ocorresse sem complemento verbal.
Mas isso viola a definição tradicional de transitividade: com efeito, segundo a
Essas cinco categorias cobrem a maior parte dos fenômenos comumente definição, um verbo é transitivo não quando ocorre com complemento verbal, mas
denominados de regência. Há outros casos, entretanto, que apresentam semelhanças quando exige a presença de um complemento verbal – ou seja, quando sempre
com esses e poderiam, a rigor, ser considerados também como manifestações da aparece com complemento verbal. Na verdade, essa tentativa de solucionar o
relação de regência. Pode-se mencionar a rede de compatibilidades que funciona no problema equivale a estabelecer sinonímia entre ser transitivo e ocorrer com
sintagma nominal. Por exemplo, o determinante “todos” exige a presença de outro complemento verbal; por conseguinte, a noção de transitivo deixaria de ser útil, pois
determinante, em frases como: não faria mais que repetir a informação já dada pela expressão menos misteriosa
que tem complemento verbal.
(13)a.Todos os homens/todos esses homens É necessário distinguir dois tipos de informação sobre os itens léxicos, a saber:
b.*Todos homens/*todos quatro homens a)em que contexto o item ocorre em uma frase dada (relação sintagmática); e b)em
que contextos o item pode ocorrer (relação paradigmática). A primeira informação
Aspectos da Transitividade Verbal é particularizada e é fornecida pela análise da estrutura em questão. Por exemplo,
no contexto da frase (6), “meu gato” é sujeito; “comer” ocorre como complemento
a)Classificação tradicional verbal etc. Já a segunda informação é generalizada e é fornecida para o item em
estado de dicionário, fora de contexto – muito embora só possa ser depreendida,
Tradicionalmente, os verbos se distinguem em cinco tipos, de acordo com sua evidentemente, a partir do exame dos contextos. Assim, “meu gato” pode ser sujeito
transitividade, a saber: verbos transitivos diretos, transitivos indiretos, transitivos e pode também ser complemento verbal, mas não pode ser núcleo oracional (ficar
diretos e indiretos, intransitivos e de ligação. no lugar do verbo), por exemplo. “Comer” é núcleo oracional e não adjunto
A noção tradicional de verbo transitivo em oposição a intransitivo se define adverbial; e pode ocorrer com ou sem complemento verbal.
assim: um verbo é transitivo quando exige a presença de um complemento verbal Ambos os tipos de informação são fundamentais para a tarefa de descrição da
em sua oração; e é intransitivo quando recusa a presença de complemento verbal. A língua. Se não tivermos informações sintagmáticas, a descrição não terá base nos
definição é suficientemente clara, e dela decorre que sempre que houver em uma fatos. Mas, se renunciarmos à informação paradigmática, estaremos desistindo de
oração um verbo transitivo, essa oração deve ter complemento verbal; e sempre que expressar em termos gerais o comportamento gramatical das unidades linguísticas.
houver um verbo intransitivo, a oração não pode ter complemento verbal. Note-se Um pouco de reflexão deve bastar para deixar claro que as consequências seriam
que o sistema não prevê lugar para verbos que possam ter complemento verbal ou destrutivas para a gramática; por exemplo, inviabilizaria o estabelecimento de
não, à vontade; logo, é de se presumir que tais verbos não existam. classes de palavras. Temos de concluir que tentar definir transitividade em termos
Na prática, porém, a definição não é respeitada. Classifica-se o verbo “comer” de contextos específicos ao cura os males da concepção tradicional.
como transitivo, porque aparece com complemento verbal em Voltemos à definição de transitividade como exigência de complemento verbal,
e intransitividade como recusa de complemento verbal. Há verbos que efetivamente
(6)Meu gato já comeu todo o mingau. se comportam dessa maneira. Assim, “fazer” só ocorre com complemento verbal:
Mas “comer”, como vimos, aparece igualmente sem complemento verbal: (15)a.Evaristo faz lindas cortinas.
b.*Evaristo faz.
(7)Meu gato já comeu.
(14)Meu gato quase não come. Desse modo, “fazer” seria transitivo segundo a definição tradicional, e essa
classificação não apresenta problemas, já que esse verbo só ocorre com
Exemplos como esses colocam em xeque o sistema tradicional. A se seguir a complemento verbal.
definição dada, não haveria lugar para o verbo “comer”, que pode ocorrer com O verbo “nascer” só ocorre sem complemento verbal:
complemento verbal ou sem ele.
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(16)a.Meu irmãozinho nasceu no sábado. A única diferença coerentemente formulada que encontrei nas gramáticas
b.*Meu irmãozinho nasceu um nascimento tranquilo. entre as funções de adjunto adnominal e complemento nominal é que o complemento
nominal é (ou pode ser) exigido por algum item, ao passo que o adjunto adnominal
Logo, seria intransitivo. nunca o é. Mas isso não pode servir de base para uma distinção entre funções, pois
a expressão da transitividade depende, ela própria, da definição prévia das funções.
O problema surge quando verificamos que há verbos, como “comer”, que É necessário deixar parcialmente em suspenso a questão do modo como se
podem ocorrer com ou sem complemento verbal, sem por isso causar manifesta a transitividade nominal em português e em que dimensões; faltam
inaceitabilidade. Vimos que não há lugar para tais verbos no sistema tradicional; pesquisas relevantes a respeito. O que se pode adiantar desde já é que a
uma análise adequada deve, primeiramente, criar esse lugar. transitividade nominal é um fato da língua; aplica-se aos adjetivos e possivelmente
também aos substantivos e advérbios. A alternativa normal parece ser a aceitação
b)Análise proposta livre (L); recusas e exigências são comparativamente excepcionais.
É necessário reconhecer que as duas noções de exigência e recusa de Preliminares para um Estudo da Concordância
complementos não são suficientes para caracterizar todos os tipos de transitividade
encontrados na língua. Vamos acrescentar uma terceira, a de aceitação livre. A concordância (tradicionalmente, uma espécie de exigência de harmonização
Agora, poderemos dizer que o verbo “nascer” recusa complemento verbal; o de flexões entre os diversos constituintes de uma construção) é outro fenômeno da
verbo “fazer” exige complemento verbal; e o verbo “comer” aceita livremente língua que pode ser colocado sob o rótulo geral de regência. Há dois tipos principais
complemento verbal. Representamos essa informação como traços dos respectivos de concordância: a concordância entre o sujeito e o verbo de uma oração e a
verbos, da seguinte maneira: concordância entre diversos elementos nominais (tradicionalmente classificados
nascer tem o traço [Rec-CV] → recusa complemento verbal como substantivos, adjetivos, artigos, numerais e pronomes).
fazer tem o traço [Ex-CV] → exige complemento verbal Em todos esses casos, há a exigência de que certos traços (em geral expressos
comer tem o traço [L-CV] → aceita livremente complemento verbal morfologicamente) sejam idênticos em vários constituintes. Assim, em uma frase
como
Como se vê, as duas classes tradicionais de transitivos e intransitivos se
desdobram pelo menos em três classes de verbos, a saber, os que recusam (19)Minhas sobrinhas ganharam um cavalo.
complemento verbal (marcados [Rec-CV]), os que exigem ([Ex-CV]) e os que o
aceitam livremente ([L-CV]). Desse modo, sanamos o defeito básico da análise os traços de terceira pessoa e plural, considerados como presentes no SN “minhas
tradicional da transitividade verbal. A descrição das transitividades deve ser feita sobrinhas”, de certa forma se reproduzem no verbo: “ganharam”, e não, por
em termos de exigência, recusa e aceitação livre de cada uma das funções sintáticas exemplo, “ganhou”.
em jogo. Outro exemplo é o SN “minhas sobrinhas”, onde “sobrinhas” é marcado no
léxico como feminino; correspondentemente, o item “minhas” também fica no
Aspectos da Transitividade Nominal feminino: “minhas” e não “meus”.
A análise tradicional não limita a transitividade aos verbos; considera-se que 1 - Marcação de Pessoa
também certas palavras de outras classes – substantivos, adjetivos e advérbios –
podem exigir ou recusar a presença de certos termos. Esses termos se analisam Um dos tipos de concordância, então, resulta em que um dos SNs da oração (o
tradicionalmente como complementos nominais: “crença em duendes”, “favorável sujeito) apresenta alguns traços em comum com o verbo. Há um conjunto de formas
ao réu”, “favoravelmente ao réu”. verbais que são chamadas de terceira pessoa: “chega”, “chegou”, “chegará”,
“chegam”, “chegaram”, “chegarão” etc. Essas formas se harmonizam com a imensa
A ideia tradicional é que o complemento completa o sentido do substantivo, maioria dos SNs: as três primeiras com SNs no singular, as três últimas com SNs no
adjetivo ou advérbio da mesma forma que um complemento verbal, por exemplo, plural. Assim, temos:
completa o sentido de um verbo. Fala-se, por isso, de palavras de predicação
incompleta, que exigiriam um complemento para que seu significado fosse completo. (20)Minhas sobrinhas chegaram/chegam/chegarão de trem.
Essa análise é passível das mesmas objeções feitas a respeito dos complementos (21)Minha sobrinha chegou/chega/chegará de trem.
verbais. Na maioria dos casos, as palavras ditas de predicação incompleta podem
perfeitamente aparecer sem complemento, o que mostra que não exigem Nessas frases, o SN “minha(s) sobrinha(s)” está em relação de concordância
complementação: com o verbo, e é, portanto, o sujeito. Mas há um pequeno número de itens que têm
formas especiais do verbo para manifestar a concordância. Esses itens são
(17)Você precisa respeitar minhas crenças. considerados como de primeira pessoa (“eu”, “nós”) ou de segunda pessoa (“tu”,
(18)O tempo se mostrava favorável. “vós”). Os itens de segunda pessoa raramente se usam no português padrão
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brasileiro de hoje e, portanto, não os exemplificarei abaixo. Mas os de primeira (25)Um carro verde
pessoa são muito frequentes, e com eles os verbos precisam assumir formas (26)Uma janela verde
diferentes das quais vimos nos exemplos (20) e (21):
Em resumo, o gênero se manifesta de duas maneiras distintas: ou como
(22)Eu cheguei/chego/chegarei de trem. propriedade inerente a um item léxico (“blusa” é feminino) ou como variação
(23)Nós chegamos/chegamos/chegaremos de trem. flexional (“meu” está no masculino, ou ainda é o masculino de minha). Essa oposição
recobre, grosso modo, a distinção tradicional entre substantivos e adjetivos: os
Considera-se, portanto, que esses itens são marcados, já no léxico, com traços primeiros possuem gênero, os segundos variam em gênero.
de pessoa: “eu”, “nós” são marcados como de primeira pessoa; “tu”, “vós” como de Por outro lado, pode-se dizer que em sua maioria as palavras variam em
segunda; e os outros SNs da língua, em geral, são marcados como de terceira pessoa número: em geral, todas as palavras que possuem traços de número podem ser
(ou, talvez melhor, não são marcados para pessoa). singulares ou plurais, conforme o caso: “meu/meus”, “blusa/blusas”. Algumas
Nos casos em que um SN é composto pela coordenação de constituintes de palavras só podem ocorrer no singular (“ouro”), e outras só no plural (“férias”),
várias pessoas, aplica-se uma espécie de hierarquia, segundo a qual prevalece a mas são excepcionais; a maioria esmagadora dos itens, sejam eles substantivos,
pessoa de menor número. Assim, um SN composto de elementos de primeira e de sejam adjetivos, apresentam sistematicamente uma forma de singular e uma de
terceira pessoa é considerado como de primeira pessoa (e plural): plural. Ainda aqui, note-se, o singular e o plural podem ser idênticos (“lápis/lápis”),
mas, tal como no caso do gênero, isso é considerado simples caso de coincidência
(24)Minhas sobrinhas e eu chegamos de trem. fonológica. Em geral, portanto, podemos dizer que as palavras variam em número,
e não que possuem número.
Note-se que o SN tem seu próprio traço de pessoa, embora este seja decorrente A consequência é, pois, que as palavras dessas classes sempre se manifestam
dos traços de pessoa de seus constituintes imediatos. Assim, diremos que o SN como possuindo gênero (feminino ou masculino) e como estando em um número
“minhas blusas e eu” tem o traço de primeira pessoa. Além disso, evidentemente, os (singular ou plural). O gênero pode ser resultado de variação ou de marca léxica; o
constituintes também têm seus traços: “minhas blusas” é um SN marcado como de número, o mais das vezes, será resultado de variação.
terceira pessoa, e “eu” é um SN marcado como de primeira. Finalmente, o item Também aqui o SN tem seus traços próprios, derivados dos traços de seus
“blusas” é de terceira pessoa, e “eu” é de primeira. As regras dadas acima são componentes. A seguir, dou as regras que governam a atribuição dos traços de
suficientes para derivar, das marcas de pessoa das palavras que compõem um SN, o gênero e número ao SN:
traço de pessoa do próprio SN. Os traços das palavras, relembro, são marcas léxicas,
próprias a cada palavra individual. Para efeito de concordância com o verbo, vale o a)Quando não há divergência de gênero e número entre os constituintes imediatos
traço do SN maior de todos. de um SN, esses traços passam automaticamente ao SN. Assim, o SN “minhas
sobrinhas” é formado de dois itens marcados como feminino, plural; o SN terá
2 - Marcação de Gênero e Número também os traços de feminino e plural.
Quando há divergência entre os constituintes imediatos do SN quanto a gênero
Além de traços de pessoa, os SNs também têm traços de gênero e número, e e número, trata-se sempre de um caso de SNs coordenados formando um SN maior.
estes são relevantes para o segundo tipo de concordância mencionado acima, No caso de SNs formados por coordenação, aplicam-se as seguintes regras:
exemplificado no sintagma “minha blusa”. O item “blusa” é marcado no léxico como
feminino e nisso se opõe, por exemplo, a “guarda-chuva”, que é masculino. Esses b)Todos os SNs formados por coordenação recebem o traço de número plural.
traços exprimem apenas o comportamento desses itens no que se refere à
concordância: “blusa” coocorre no SN com formas como “minha”, e “guarda- c)Quanto ao gênero, SNs formados por coordenação de SNs dos dois gêneros
chuva” com forma como “meu”. Muitas palavras da língua são assim marcadas recebem o traço masculino.
como femininas (“blusa”, “sobrinha”, “chuva”, “mão”) ou masculinas (“guarda-
chuva”, “sobrinho”, “vento”, “pé”); essa marca, embora tenha certo grau de Assim, por exemplo, o SN “Antônio e Bia” é plural e masculino: plural por ser
correlação com uma oposição de sexo, deve ser considerada aqui como puramente composto pela coordenação de dois SNs menores, o SN “Antônio” e o SN “Bia”; e
formal – descreve parte do comportamento morfossintático do item em questão, masculino porque “Antônio” é masculino e “Bia” é feminino. Isso se evidencia na
nada mais. A correlação com a noção (semântica) de sexo é muito imperfeita e concordância:
indireta.
Outras palavras da língua não são propriamente marcadas no léxico como (27)Antônio e Bia são casados.
femininas ou masculinas; antes, variam em gênero, apresentando sistematicamente
uma forma feminina e uma masculina: “meu/minha”, “novo/nova”, Um SN composto apenas de femininos é feminino (e, naturalmente, plural):
“branco/branca”. Em muitos casos, as duas formas são fonologicamente idênticas,
mas devem ainda assim ser consideradas distintas; assim, “verde” é masculino em (28)Marília e Bia são morenas.
(25), feminino em (26):
9 10
3 - Casos Particulares e Problemas No entanto, a inaceitabilidade de (33b) é muito menor do que, por exemplo, a
de
O mecanismo de atribuição de traços ao SN, exposto acima, nem sempre
funciona com clareza. As gramáticas consignam certo número de casos particulares (34)*Antônio e Bia chegou de trem.
em que os princípios gerais não são seguidos. Alguns desses casos refletem usos
arcaicos ou extremamente raros; mas outros merecem menção, por serem Com “ou”, encontra-se tanto o plural quanto o singular. As gramáticas
relativamente frequentes. Relaciono adiante os mais importantes, mas seria costumam atribuir uma diferença semântica entre as duas versões: no singular,
necessário realizar levantamentos que nos dessem uma ideia clara da importância haveria uma ideia de exclusão, e no plural de inclusão:
de cada caso na língua padrão atual.
O primeiro caso particular importante é o de SNs representados por relativos; (35)Antônio ou Bia receberá este cheque.
tais SNs podem funcionar como sujeito (e, portanto, seus traços serão reproduzidos (36)Antônio ou Bia receberão este cheque.
no verbo). Um exemplo é:
Em (35), a interpretação seria de que só um deles poderia receber um cheque; em
(29)Só convidei os amigos que estavam aposentados. (36), o cheque poderia ser recebido por Antônio ou por Bia ou por ambos. Antes de
discutir a possível análise (sintática e semântica) desses exemplos, será necessário
A oração subordinada é “que estavam aposentados”; “que” é o sujeito, que apurar se essa oposição de significado é real na língua padrão atual. Por ora, a
funciona como se tivesse os traços masculino, plural, terceira pessoa; mas a mesma questão terá de ficar em suspenso.
palavra pode apresentar outros traços, como em Finalmente, há o caso frequentemente citado do sujeito composto posposto; em
tais casos (sujeito depois do verbo), diz-se que a concordância poderá ser feita com
(30)Só convidei a amiga que estava aposentada. o primeiro constituinte do SN composto:
Aqui os traços manifestados são feminino, singular, terceira pessoa. (37)a.Aqui reinam a paz e a alegria.
Evidentemente, o relativo toma seus traços do antecedente (respectivamente, b.Aqui reina a paz e a alegria.
“os amigos” e “a amiga”). Isso é obrigatório no caso dos relativos “que” e “o qual”
– e este último também assume a forma correspondente aos traços adquiridos: “o À primeira vista, parece que teríamos que encontrar um meio de marcar o SN
qual/a qual/os quais/as quais”. “a paz e a alegria”, opcionalmente, como singular, contrariando assim a regra geral,
Já com o relativo “quem”, diz-se que, além de poder comportar-se como os que o marcaria como plural.
demais, pode também assumir os traços terceira pessoa, singular mesmo se o No entanto, não me parece evidente que “a paz e a alegria” em (37b) seja
antecedente não tiver aqueles traços. Esse fenômeno, a julgar pelos exemplos realmente um SN. Outra análise, igualmente plausível, pode explicar a sequência
apresentados nas gramáticas, parece estar restrito a casos de clivagem, como como dois SNs um ao lado do outro, não-coordenados; teríamos em (37b) um caso
de interpretação anafórica. O sujeito de “reina” seria apenas “a paz”; segue-se um
(31)a.Fui eu quem comi o peixinho. SN que seria sujeito de uma segunda ocorrência de “reina”, caso esta fosse
b.Fui eu quem comeu o peixinho. explicitada. Em outras palavras, (37b) seria uma versão anaforicamente reduzida
de
A versão (31a) me parece ligeiramente marginal; de qualquer maneira, seria
desejável realizar uma investigação mais cuidadosa desses casos. (38)Aqui reina a paz e reina a alegria.
O segundo caso particular é o de SNs compostos por coordenação. Quando a
coordenação se faz com a partícula “e” ou por justaposição, aplica-se a regra geral Se essa análise for adotada, não haverá problema nenhum a solucionar em (37b);
que marca o SN como plural: nem existirá o fenômeno da concordância especial com sujeito composto posposto.
No momento, não há evidência decisiva em favor de nenhuma das duas
(27)Antônio e Bia são casados. análises. As poucas indicações que conheço favorecem a segunda: primeiro, observe-
(32)Antônio, Bia, Marília, Vera chegaram de trem. se que uma vírgula entre os dois SNs em (37b) é muito mais aceitável do que se a
sequência estivesse claramente em função de sujeito:
Mas quando a coordenação se faz com certos outros elementos, parece haver
vacilação quanto aos traços a serem atribuídos ao SN. Os casos principais são os de (39)Aqui reina a paz, e a alegria.
“ou” e “nem”. Com “nem”, parece ser preferível aplicar a regra geral: (40)??A paz, e a alegria, reinam aqui.
(33)a.Nem Antônio nem Bia chegaram de trem. A segunda razão que posso oferecer em favor da segunda análise é que esta
b.?Nem Antônio nem Bia chegou de trem. nos permite uma descrição mais simples, pois nos livra da necessidade de definir
aqui um caso particular de marcação de SNs.
11 1
Admitindo embora que esses argumentos não são decisivos, estou a favor da UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ
segunda análise, sustentando, portanto, que “a paz e a alegria” em (37b) não formam Faculdade de Filosofia D. Aureliano Matos – L. do Norte
um SN composto, mas são apenas a sequência de dois SNs simples. Curso: Letras
Disciplina: Sintaxe
Professor: Bento
PERINI, Mário A. “Transitividade, regência e concordância”. In: Gramática
descritiva do português. São Paulo, Ática, 1996 (p. 159-206). FRASES DA LÍNGUA
Obs.: O texto foi copiado, com adaptação, para uso exclusivo em sala-de-aula, como
recurso didático. coletânea aleatória
de frases retiradas de textos
fim
*Depois de muita e boa chuva, Célia voltava de Belo Horizonte para sua casa no interior do Estado.
*Desceram três moços de bermuda e camisa do Clube Atlético Mineiro.
*A mãe parecia muito agoniada.
*Ela abafava a boca da criança com uma fralda.
*Estava muito surpresa com a perfeita mecânica do mundo.
*Lembra aquela história dos queijos?
*O pessoal dele é assim, sem pressa.
*Gomide tirou do bolso do paletó uma trouxinha de palha de milho.
*O que está acontecendo comigo?
*Meio escondida por uma coluna do salão, sua mulher ainda não terminara os salgadinhos.
*Sentiu raiva daquele amor paciente e silencioso.
*Batia à máquina, agarradinha no Teodoro, de saia justa e batom cor de sangue.
*Que tipo de crônica escrevo?
*Na história universal do amor, amou-se sempre diferentemente.
*Vou tomar um sorvete na esquina.
*Estou no limiar de alguma coisa grave.
*Antes dos trinta, as coisas são diferentes.
*O paladar, o tato, o olfato, a visão e todos os sentidos estão começando a tirar prazeres indizíveis
das coisas.
*Cumpriu-se logo o ciclo escolar.
*A profissão já deve ter sido escolhida.
*Já se teve a primeira mesa de trabalho, escritório ou negócio.
*Estava ali no estrangeiro, estranho em toda a estranheza do ser, à beira-mar, na Califórnia.
*O rosto da mulher madura entrou na moldura de meus olhos.
*Outras vezes ela passa por mim na rua entre os camelôs.
*A mulher madura, com seu rosto denso esculpido como o de uma atriz negra, tem qualquer coisa
de Melina Mercouri.
*Há uma serenidade nos seus gestos, longe dos desperdícios da adolescência.
*O silêncio em torno de seus gestos tem algo do repouso da garça sobre o lago.
*Seu olhar sobre os objetos não é de gula ou de concupiscência.
*Sabem a distância entre seu corpo e o mundo.
*A boca da mulher madura tem uma indizível sabedoria.
*As suas mãos líricas repõem no seu corpo um aprendizado da macia paina de setembro e abril.
*Inscrições se fizeram em sua superfície.
*Na verdade, talvez a mulher madura não se saiba assim inteira ante seu olho interior.
*Talvez a sua aura se inscreva melhor no olho exterior.
*Maturidade é essa coisa dupla: um jogo de espelhos revelador.
*A mulher madura está pronta para algo definitivo.
*Descolou-se da superfície das coisas.
*Elas crescem com uma estridência alegre e com alardeada arrogância.
*Ela está crescendo num ritual de obediência orgânica e desobediência civil.
*Entre hambúrgueres e refrigerantes nas esquinas, lá estão elas, com o uniforme de sua geração.
*Elas crescem muito amestradas.
*Passou o tempo do balé, da cultura francesa e inglesa.
*Não lhes compramos todos os sorvetes e roupas merecidas.
2 3
*No princípio iam à casa de praia entre embrulhos, comidas, engarrafamentos, natais, páscoas, *Perante grande número de advogados, representantes da imprensa, curiosos e pessoas gradas, o
piscinas e amiguinhas. delegado ouviu vários passageiros.
*Havia as brigas dentro do carro, a disputa pela janela, os pedidos de sorvetes e sanduíches infantis. *A causa verdadeira do motim foi a falta de luz nos vagões.
*Esse exílio dos pais, esse divórcio dos filhos, vai durar sete anos bíblicos. *Quem encabeçou o movimento?
*Qualquer hora podem nos dar netos. *O teatro da escola está repleto de alunos do ginásio.
*Mais de trinta deficientes visuais tiveram que tatear as 51 folhas em braile. *Os garotos acompanham com olhos enormes cada movimento, cada palavra do padre pesquisador
*Um índio cego – guarani José Oado, 24 anos – disputa uma vaga em História. de fenômenos paranormais.
*Um estudante com rubéola fez, num posto médico, prova ao lado e outro com catapora. *Trata-se de um homem inteligente.
*Todas as idades estavam ali representadas. *Nesse estado, segue as sugestões do hipnotizador.
*De todos os casos, impressiona mais o de Maria Regina Alves, uma enfermeira de 38 anos. *Não se recordava de nada sobre os últimos minutos.
*Vejam que estória mirabolante! *A pergunta pegou Rosinha de surpresa.
*Hora e meia antes do exame, em São Cristóvão, é assaltada por três marmanjos covardes. *Por que a vida seria como um cardápio?
*Dão-lhe uma porção de safanões, num exercício de sadismo matinal. *Não me venha com essa conversa de cardápio existencial.
*O médico lhe ordena repousa absoluto. *Não reduza minhas ideias a uma trivial variação gastronômica.
*Quatro dias depois morre o pai de seu namorado. *Flutuaram entre as mãos alvas, quase diáfanas, de um dos velhos garçons do Bar Lagoa.
*Diante desta estatística da terra de Sarney, os machos da terra de Tancredo ficam humilhados. *Copo vazio deixa o Joselito angustiado.
*Uma amiga estava em São Paulo numa conversa sobre espancamento de mulheres. *Ele aprendeu técnicas de meditação e relaxamento.
*Não se trata de cachaceiros na subida do morro. *A energia flui dos cantos mais escuros para a claridade da tela.
*Na segunda alternativa, a titulação acadêmica ou a importância hierárquica justifica a violência *Por enquanto, é um ganho pessoal, intransferível.
sobre o mais fraco. *Não consigo deixar de pensar nisso.
*As estorinhas como essas são intermináveis. *Como teria sido o mundo sem Colombo?
*Em alguns lugares dos Estados Unidos existe um tratamento para maridos violentos, em sessões *Com ele ou sem ele, os europeus iriam acabar chegando ao Rio de Janeiro.
comuns, uma espécie de Associação de Espancadores Anônimos. *Até um caloteiro como você iria existir.
*Os câmeras continuaram resmungando durante a entrevista. *Sem as Américas, não haveria batatas no cardápio da Europa.
*Meu carro para numa esquina da praia de Copacabana às 9h30m. *Está me achando com cara de Jesus Cristo?
*Por ele passam pernas portentosas, reluzentes cabeleiras adolescentes e os bíceps de jovens surfistas. *Quero reler a Invenção de Orfeu, de nosso Jorge de Lima, sofredor, telúrico e místico, homem bom,
*Tudo em torno era uma ávida solicitação dos sentidos. cirenaico.
*Um número crescente de amigos e conhecidos tem me pronunciado a palavra “aposentadoria” *Ali, na biblioteca do Céu, conheceria o estupendo Ovalle, o do Azulão, o bêbedo místico, o amigo de
ultimamente. Manuel, íntimo de Londres e de Nova Iorque.
*A idade apodera-se de nós de surpresa. *Esqueci-me completamente dessa posse.
*Cada um é, para si mesmo, o sujeito único. *Mário Palmério falou sobre ele, como seu herdeiro.
*Os acidentes contingentes integram-se facilmente à nossa história. *Foi procurar cartas íntimas de Rosa para grande amigo, médico e fazendeiro em Minas, Moreira
*Hoje em dia o conceito de literatura é até pejorativo. Marbosa.
*Não presta para nada esse artigo. *O pior encontro casual da noite ainda é o do homem autobiográfico.
*Sou leitor fanático dos apanhados jornalísticos das sessões no nosso Congresso, na nossa Câmara *Nos jornais, a mim só interessa o artigo de Macedo Soares e as histórias em quadrinhos.
Municipal, das excursões políticas, das reuniões de agricultores, comerciantes e homens de letras, de *Está aí o retrato perfeito do cretino nacional.
todas as assembleias, de todas as festanças e comemorações discursadas. *Que horror me causam as pessoas do “bom chuveiro”, do “café reforçado”, os de “Macedo Soares
*A mão enluvada cumprimentou com o chapéu Borsalino. e das histórias em quadrinhos”.
*Os pares dançarinos maxixavam colados. *A humanidade está necessitando, urgentemente, de afeto e milagre.
*No meio do salão eram um bolo tremelicante. *Não sabe onde estão as mãos, nem os deuses.
*Sua mãe me fez ontem uma desfeita na cidade. *Os olhos de todos estarão cheios de medo.
*O professor da Faculdade de Direito citava Rui Barbosa para um sujeitinho de óculos. *Você diria em público o nome da amada?
*Só se sentia o cheiro doce do sangue. *Qualquer das escolhas seria desprezível.
*O chefe vinha recolher os bilhetes de cigarro na boca. *A morte, mesmo em combate, é burlesca.
*Só as mulheres se encolhiam com medo de algum desrespeito. *Quem saberia discriminar o ódio do amor?
*Era assim mesmo todos os dias. *De ontem para cá, o senhor envelheceu.
*O jornal não dá nada sobre a sucessão presidencial? *Não se recusa um vinho maduro.
*De tanta indignação bateu com o porrete no soalho. *Nesse café, além de nós, havia um casal aos beijos.
*Não se pode viver sem luz. *As garrafas vazias de cerveja eram quatro sobre a mesa e seis sob.
*No preço da passagem está incluída a luz. *Aconteceu na Avenida Copacabana, esquina de Santa Clara.
*Outro sugeriu uma grande passeata em Belém com banda de música e discursos. *Ele está se importando inconvenientemente.
*Todos os passageiros magarefes e auxiliares imitaram o chefe. *Era um homem magro, pálido, vestido e casimira velhinha.
*Parecia um serviço organizado. *Ao contrário, seus olhos eram doces e mendigos.
*Ordens partiam de todos os lados. *O policial segurou o homem pela lapela.
*Aqui ainda tem uns três quilos de colchão mole. *Você olhava de maneira obscena?
*Dos bancos só restava a armação de ferro. *Qualquer um no meu lugar faria o mesmo.
*Os passageiros de pé contavam façanhas. *O garçom brasileiro tenta dizer alguma coisa amável.
*Em dois tempos os vagões se esvaziaram. *Não negocia sua comodidade, seu conforto.
*O último a sair foi o chefe, muito pálido. *Não confia nas louças e nos talheres daquele restaurante de aparência limpíssima.
*Diante do Teatro da Paz houve um conflito sangrento entre populares. *Um dia o garçom lhe dirá um palavrão?
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*A conversa começou cerca de meia noite. *Nunca mais haverá no mundo um ano tão bom.
*Marilda se arrepiava da cabeça aos pés, com a forma “um novo alguém”. *A nossa terra, feinha, cheia de altos e baixos, esconsos, areia, pedregulho e massapé, estava
*Nunca vira, antes, alguém com um revólver na mão. explodindo em beleza.
*A violência, qualquer espécie de violência, lhe nauseava. *Logo depois do pôr-do-sol, desmaiávamos em qualquer canto, contentes da vida.
*Jaribe a amava como um louco. *Os pés de feijão explodiam as vagens do nosso sustento, num abrir e fechar de olhos.
*Sentia, por dentro, uma dor enorme. *Que mais podíamos desejar?
*Em que parte do corpo está localizada? *Pelo caminho também fazia os meus cálculos.
*Qualquer agiota lhe emprestaria 35 por cinquenta, em trinta dias. *Dentro da fumaça, uma língua de fogo devorava todo o nosso feijão.
*Osmar nunca ficou sabendo do ocorrido. *À tardinha, os meninos saíram para o terreiro.
*Osmar, advogado com o diploma na parede e a bela tabuleta na porta, já estava na idade para *Isso nos atormentava um bocado.
casamento. *Dois times suam a alma numa pelada barulhenta.
*Rosinha iria acompanhar a mãe num encontro com umas primas distantes. *O campo abre-se como um clarão de barro vermelho cercado por uma ponte velha, um matagal e
*Antes do ocaso, partiam numa caravana com mais três capangas e duas mucamas muito limpinhas uma chácara silenciosa, de muitos altos.
rumo a Pirajuí. *Um chute errado manda a bola, pelos ares, lá nos limites da chácara.
*Condenamos as fezes ao ostracismo. *Veio embaixo do braço de um homem gordo, cabeludo, vestido numa calça de pijama e nu da cintura
*Durante muito tempo, a coisa rolou assim, trabalhosa, mas sem maiores problemas. pra cima.
*A moitinha ia ficando cada vez mais longe de casa. *A rapaziada, meio assustada, ficou na defensiva.
*Em pouco tempo a invenção de Walter, assim como suas iniciais, já podiam ser vistas em grande *Esta pracinha sem aquela pelada virou uma chatice completa.
parte do mundo. *Ainda ontem, isso aqui fervia de menino, de sol, de bola, de sonho.
*Talvez tenha sido esse o momento mais difícil da humanidade frente aos seus excrementos, o clímax *Em compensação, num racha de menino ninguém é mais sapeca.
entre o Homem e a sua sombra animal. *Trata-se de uma bola profissional, uma número cinco, cheia de carimbos ilustres.
*Tivemos que trazer a bosta para dentro de nosso próprio lar. *Uma bola assim, toda de branco, coberta de condecorações por todos os gomos, jamais seria barrada
*Ali, naquele ambiente cientificamente controlado, podemos aliviar as nossas necessidades com o em recepção do Itamarati.
máximo distanciamento possível. *O campo do Azteca, nesse momento, é um manicômio.
*Nossas cidades, nossos países estão boiando sobre rios de merda. *Mexicanos e brasileiros, com bandeiras enormes, engalfinham-se num estranho esbanjamento de
*Fala-se muito no fim do petróleo e no fim da água. alegria.
*Por que o cara não levanta? *Agora, quase não posso ver o campo lá embaixo.
*Como escrever um texto? *Chove papel colorido em todo o estádio.
*O dicionário é superior ao mercado em muitos aspectos. *Não há bandeiras de luto no mastro dos heróis do futebol.
*No dicionário o preço das palavras não cresce a cada dia. *As táticas cedem vez aos rasgos do coração.
*Um bom escrito leva um número equivalente de palavras pequenas, médias e grandes. *Tem uma pedra no meio do caminho.
*O texto final poderá ser escrito de muitas outras maneiras, como com sangue nas paredes, com *Essa pedrinha na praia de Marrocos é o pretexto para a explosão, conflitos antigos.
canivete num tronco de árvore ou com um arco de violoncelo nas areias de Jericoacoara. *Já existe tensão em Ceuta, uma cidade de 70 mil habitantes na costa de Marrocos.
*Para um texto mais picante, acrescente muitas exclamações. *Há uma briguinha em torno de Melila, na costa.
*Os antigos pergaminhos da Checoslováquia demonstram alguma preocupação quanto à *Essa guerra da pedrinha é a caricatura perfeita desse falso mundo global.
importância do sentido e da clareza em um texto. *Árabes e judeus lutam por pedaços de deserto.
*A barriga do garoto já estava parecendo uma tela do Pollock. *A Espanha está com medo de outra invasão dos mouros?
*Nessas férias Julinho ganhou três quilos e o respeito de toda a criançada de Caraguá. *O desejo da guerra é anterior aos motivos?
*Em alguns meses, a família comprou uma cobertura, casa na praia, carro importado e jet ski. *Só há duas coisas infinitas: o Universo e a estupidez humana.
*A família, em pouco tempo, entraria nas listas das mais ricas do Brasil. *O Oriente são formigueiros pobres com um só rosto.
*O garoto é assim, desde pequeno: rabudo. *Para o Ocidente, a morte é a pior coisa.
*Desde o lance das raspadinhas, seu Julião e dona Neuza já não trabalhavam. *Nosso primeiro passo tem de ser a desesperança.
*Como os pais de um craque ou de um desses cantores mirins, dedicavam-se exclusivamente ao *Pela lógica da doutrina Bush, teríamos de atacar a Indonésia, a Síria, a Líbia, o Irã.
talento do filho. *As frases de defesa são sempre as mesmas.
*Apesar de todo o sucesso, Julinho estava entediado. *Desde as capitanias hereditárias, desde o Império, dinheiro público e empresário privado deu em
*Todo dia tropeçava com carteiras cheias de dinheiro. assalto ao povo e ao país.
*A preciosidade havia sido roubada pessoalmente do Museu de Bagdá, durante a invasão americana. *Os brasileiros revoltados com a política a elegeram um rinoceronte votadíssimo chamado Cacareco.
*Por que chamam esse objeto dourado de lâmpada? *O Cacareco não arrastou consigo hienas, macacos ou tamanduás para o poder.
*Ocorreu uma falha na execução de teus desejos. *Dos novos deputados, só 33 foram eleitos cara a cara.
*Haverá uma convenção de gênios no Rotary Club de Ribeirão Preto. *Ninguém quer fidelidade partidária, nem poucos partidos, nem voto distrital.
*Julinho, desesperado, resolveu jogar a toalha. *Contra a má fé eleitoral, não se pode nada.
*Vinte e cinco andares e sete segundos depois, para surpresa dos pedestres, lá estava ele, vivo e *Assistimos a repetição óbvia da verdade de dona Regina e os rebolados verbais de Arruda e ACM.
consciente, estatelado sobre uma Kombi azul. *A anormalidade nisso tudo não está apenas do lado do crime.
*Naquele momento, ainda zonzo por causa da queda e surdo com o esporro do japonês, Julinho *Eles são fruto de décadas de miséria e rancor.
compreendeu sua sina. *Os incapazes somos nós, aprisionados em burocracias, em tradições corruptas, em velhas táticas.
*Todo dia, desde o salto, Julinho tenta, inutilmente, tirar a própria vida. *O combate ao crime passa primeiro pelo reconhecimento de nosso fracasso.
*Vaga doido pelo mundo, magro, descalço e barbudo. *Precisamos de novas formas de luta.
*Em instantes se atirará do alto da mais alta das cataratas. *O crime deixou de ser apenas um caso de polícia.
*Será resgatado, alguns minutos depois, vivo e limpinho, pelos bravos homens do Corpo de *A experiência prática das polícias tem de ser unida ao poderia estratégico das Forças Armadas.
Bombeiros do Brasil. *O crime no Brasil virou um problema de estado maior.
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*O crime no Rio e em São Paulo não se combate com batidas policiais. *Por que ainda não calaram Fernandinho?
*A solução começa pela vigilância das fronteiras. *Por que ninguém quer matar a galinha dos ovos de ouro?
*O tamanho do problema exige uma imensa solução. *Nossas torres de comando já caíram.
*Precisamos de um estado maior contra o crime. *Ele deflagrou uma onda de loucura no mundo.
*Esse senhor já foi eleito naquela esquisita contagem de votos. *Ele deu uma idéia simples aos loucos e ressentidos do Oriente e da miséria: a morte como um
*A América era um curral eleitoral subdesenvolvido. cachorro louco e invisível em todas as esquinas.
*Conseguiu unir o mundo árabe todo contra a América. *Mesmo os pacifistas consideram os terroristas heróis.
*Dane-se a poluição mundial. *Como controlar isso?
*Agora, nem a economia americana, dona do mundo, escapa? *A onda de violência contamina a todos, do maluco de Washington aos traficantes do Rio e São Paulo.
*Ditaram-se regras de rigor contábil, equilíbrio fiscal. *Vamos nos acostumando aos corpos despedaçados nas discotecas e em Gaza.
*Havia outras guerras frias escondidas. *Nossas vinganças serão cada vez mais banais.
*O muro é a cara dos impasses insolúveis de hoje. *Breve haverá grandes massacres aqui e lá.
*Só os países poderosos como Israel podem acabar com conflitos, por benevolência e até por *Solução não há mais.
superioridade cultural. *Teremos de conviver com esse pingue-pongue de sangue para sempre.
*A estupidez da política interna não deixa. *Lewgoy era o eterno vilão, milionário malvado, traficante, bandido de faroeste, mágico de turbante,
*Até aqui podiam pintar muros em volta das favelas, contra o tráfico. grego de camisola.
*O século 21 está andando para trás. *Seu período de grande fama foi nos anos 50.
*Fanatismo não se combate com fanatismo. *O cinema brasileiro fazia o pastiche dos musicais americanos.
*A moda, o amor eterno, o final feliz são invenções de Hollywood. *Ficávamos na caricatura do cinema dos outros.
*A América ferida ficaria mais humilde. *Nesses atores havia uma cor brasileira profunda, de um tempo sem TV, com rádio e cinema.
*A América inteligente, humanista, está acordando. *Devemos chorar a morte deste bandido tão querido.
*O mal de Saddam e o sinistro bem de Bush vão criar uma nova era crítica, como nos anos 60. *Tantos outros de verdade ainda ficaram por aqui.
*Só a tolerância dissolve a loucura. *Evita morre justamente no início da decadência da riqueza da Argentina no início do século XX.
*O faroeste de Bush, com o mal de um lado e o bem de outro, será um fracasso de bilheteria. *A Argentina passou os últimos cinquenta anos sem uma democracia real, produtiva.
*Quantos milhões de dólares são sonegados no Brasil por bancos e empresas? *De certo modo, Evita parece a própria América Latina.
*Por que não se consegue prender esses homens? *Hoje, depois de uma vaga euforia democrática dos últimos anos, mergulhamos de novo no
*Quanto foi roubado do povo em obras superfaturadas nos últimos cinco anos? populismo e no milagre impossível.
*Quantos bilhões são tirados do tesouro pela indústria de liminares? *Temos de chorar pela permanência de seu mito.
*A gente precisa de estatísticas sobre as elites, as oligarquias, sobre a riqueza. *Santa Evita é a santa padroeira da tragédia latino-americana.
*Por trás de tudo isso, a América só tem uma ideia fixa. *Afinal de contas, em quem acreditar nesta ciranda financeira?
*Não há na mente americana a ideia de toma-lá-dá-cá. *Essa senhora quer nossa caveira?
*Vem aí uma nova reforma cultural. *Há uma normalidade profunda na vida desses traficantes e suas ligações com a polícia.
*O Bush dá à América um novo objetivo. *O mundo do tráfico, do crime nas periferias, já é um novo país.
*Graças a Bush e sua direita, a face real do reacionarismo bélico, a pior face da América está *Esse país tem leis próprias, moral própria, associações entre pobres de farda e pobres no crime.
aparecendo. *A solução só poderá vir pelo reconhecimento desta nova pátria miserável.
*Para Bush, a globalização é apenas a imposição dos valores republicanos ao mundo. *Esse novo país está virando a realidade.
*Vai surgir na América uma nova reforma cultural, sem a ingenuidade hippie e utópica do “paz e *A máquina precisa mostrar ao mundo todo seu poder imperial.
amor”. *No primeiro mundo, todo mundo era contra o governo, inclusive o Serra.
*Agora, a luta será pela democracia real. *Lula, absoluto, não bateu muito no FHC.
*O mal e o bem do mundo passam pela economia. *No segundo turno, a verdade vai ter de aparecer mais.
*Ninguém aguente mais esse mercado sangrento. *Lula vai ter de ser mau com o governo.
*Só a poderosa América muda a humanidade. *Ambos querem política industrial, desenvolvimento, um novo nacionalismo.
*Bush vai causar um progresso cultural com a contribuição de seus erros absurdos. *Vão destruir o Ocidente por ele.
*Ninguém liga mais para ele. *Eles querem um mundo impossível, sem árabes, sem diferenças, um mundo habitado por bilhões de
*O país esteve esse ano todo sob suspense. bushes e sharons.
*Sobra um perigoso vazio para picaretas e sabotadores. *Um dia a opinião pública da própria América vai frear isso.
*O governo aproveita para medidas chatas como o aumento da gasolina. *O lema dessa época será aquele do general fascista.
*Por que os meninos de Wall Street baixaram o risco-Brasil? *O que essa guerra suja pode mudar em nossas vidas, com essa política de ação preventiva do cowboy
*Entre o pato manco e o sapo barbudo há muito poder oculto. Kid Bush?
*Hoje não há só a fome de comida no Brasil. *Poucos foram eleitos cara a cara com o eleitor.
*O Brasil está faminto de emoção. *Algum dia haverá uma reforma eleitoral no país?
*Essa onda de fé talvez possa acionar uma grande vontade política. *Seremos eternamente os fantasmas contra a democracia.
*Bush obedece à máquina de guerra da indústria. *A sociedade de consumo nos ordena satisfação o tempo todo.
*As armas precisam de uma guerra. *O consumo foi virando uma espécie de droga.
*Bush está frustrado com esse gesto de Saddam. *O excesso de ofertas nos deixa sempre insatisfeitos.
*Sua mediocridade só pode ser oculta sob a capa de um cowboy vingador. *Houve muitos fatos positivos nesse governo.
*Com essa desculpa, ele tem executado sua política irracional. *Por que a distribuição de renda é ruim?
*Esse papo de democracia internacional acabou. *Só a democracia pode desfazer as oligarquias brasileiras e os donos do poder sujo.
*Bush é o mais obediente homem-bomba de Osama. *A era FHC teve um importante papel para o dia de hoje.
*A burocracia impede ações emergenciais.
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*Com medo das armadilhas da fisiologia e da economia, na era FHC a política virou uma arte para *Eu e o Lourencinho vamos a serviço do Juízo.
poucos especialistas. *Tentarei, em todo caso, combinar ida em noturno e volta em diurno, numa última homenagem ao
*Com medo das utopias loucas, acabamos com medo da esperança. meu escrúpulo.
*Com a vitória de Lula, o povo se sente no poder, com um líder igual a ele. *As imagens voltaram fortes em seu espírito atormentado.
*O governo Lula pode virar uma novidade política para o mundo todo. *Ela expôs-se à morte, em desespero, por amor a mim.
*Qual o currículo do secretário do tesouro americano, Paul O´Neill? *Por sua confissão, minha própria vida se desmoronava naquele mesmo instante.
*Pela África, essa nova gafe do O´Neill devia ser dirigida para dentro da própria casa. *Quem fui eu na vida desse homem?
*Bush está exterminando com a política de globalização. *São sete e meia da manhã.
*Essa declaração do O´Neill revela a visão de mundo do governo americano. *Estranhamente aos poucos, meu coração acelera suas batidas conforme ritmos insolentes de garotos
*Os idiotas sempre esperam a chegada de um mundo bom. na idade das danceterias.
*A globalização e o mercado vão resolver a vida dos subdesenvolvidos. *De repente, minha cabeça começa a latejar horrivelmente.
*Os dois ficaram ricos com informações privilegiadas em suas empresas, a Harken e Halliburton, na *Viro-me daqui e dali à procura de paz, de calma salvadora à minha frente.
década de 80. *Todos na vida atravessamos certas crises.
*Existem dois tipos de tragédia: tragédia súbita e tragédia preparada. *Naturalmente, todo mundo tem refletido sobre as razões secretas dessas coisas inexplicáveis.
*Qual a receita para essas tragédias? *O simples roçar da roupa de um passante, na nossa roupa, é indício de alguma proximidade de
*Pegue-se um ingrediente básico: a miséria. vidas, em tempos imemoriais.
*Junte-se a ignorância, a inconsciência do perigo numa balsa cheia ou numa encosta deslizante. *Uma vez, todas as coisas começaram a correr contra mim.
*Adicione uma pitada de desrespeito do poder pela vida dos pobres. *Os bares funcionam ativamente, numa fabulosa produção de sanduíches e cachorros-quentes.
*Temos explosões no shopping, mortos no fogo e na água. *Há um certo ar de monotonia por toda parte.
*Vocês se lembram de Vila Socó, em Cubatão? *Por uma rua transversal, está chegando um carro.
*Centenas de pessoas foram fritas como torresmo ou batatinhas pelos canos de petróleo. *Na Ilha do Nanja, o Natal continua a ser maravilhoso.
*Essas cenas se repetem todos os anos. *Durante o Natal, na Ilha do Nanja, ninguém ofende o seu vizinho.
*Talvez num dia sujo do futuro isso nem mais seja notícia. *Como podia Jesus nascer num clima de tal sofreguidão?
*Pela primeira vez, as elites estão sentindo o arrepio do perigo. *Na Ilha de Nanja, passa-se o ano inteiro com o coração repleto das alegrias do Natal.
*Um governo preocupado só com ajuste fiscal e com reformas desconstrutivas não se preocupou com *Nesse vasto palácio verde podem morar muitos passarinhos.
o desenvolvimento de infraestrutura. *Tudo no bairro tinha que acontecer dentro do desejado por eles, de acordo com a vontade do
*Nossa ilusão de Primeiro Mundo nos caiu por terra. valentão.
*A história de minha vida política sempre oscilou entre dois sentimentos: esperança e desilusão. *Eu tenho comigo um problema muito esquisito.
*Meu avô foi um belo retrato do malandro carioca. *Apresentei-me ao Exército com 16 anos.
*O público abarrotava as salas com filmes brasileiros. *Eu havia me transformado numa espécie de talismã daquele quartel.
*O Romualdo tinha nascido, talvez, para os mais altos destinos. *A que horas eu posso chegar?
*De maneiras rudes e linguagem tosca, Norberto comanda o clã com a energia de antigos monarcas. *Os prédios continuam sendo construídos sem quarto de empregada.
*Compreensivelmente dividida no campo das preferências eleitorais, a nação brasileira esbanjou *As empregadas têm os latinos, acostumados a este luxo.
unidade na sagração de autênticos representantes do povo identificados à margem das urnas. *Numa coisinha o negócio continua absurdo: o tamanho do quarto de empregada.
*Longamente, entre cervejas, trocaram ácidos comentários sobre as mulheres mal-amadas e vorazes, *Desde sábado encolhera-se num canto da cozinha.
os papos de futebol, amigo secreto, lista de presente, bookmaker, bicho, endereço de cartomante, clips *De telhado a telhado foi percorrido mais de um quarteirão da rua.
no relógio de ponto, vezenquando salgadinhos no fim do expediente, champanha nacional em copo *Entre gritos e penas, ela foi presa.
de plástico. *Ainda tonta, sacudiu-se um pouco, em cacarejos roucos e indecisos.
*Como num circo ou num concerto, após sustenida atenção, a respiração suspensa, a toda *Nunca ninguém acariciou uma cabeça de galinha.
prorrompeu num coro de palmas. *A galinha tornara-se a rainha da casa.
*Joaquim defendia-se como um autêntico leão da Núbia, neste deserto de homens e ideias. *A família foi pouco a pouco chegando.
*O rancho se erguia num morrote a cavaleiro de terrenos baixos e paludosos. *Depois veio a nora de Ipanema com dois netos e a babá.
*Ali pras bandas da vargem é que ainda se divisava o vulto negro e mal recortado do mato. *No centro havia disposto o enorme bolo açucarado.
*A noite era feito um grande cadáver, de olhos abertos e embaciados. *Pusera-lhe desde então a presilha em torno do pescoço e o broche.
*Os gritos friorentos das marrecas povoavam de terror o ronco medonho da cheia. *Desde as duas horas a aniversariante estava sentada à cabeceira da longa mesa vazia, tesa na sala
*Ocê bota a gente hoje em riba do jirau, viu? silenciosa.
*O rancho estava viscosamente iluminado pelo reflexo do líquido. *Acompanhava, fascinada e impotente, o vôo da mosca em torno do bolo.
*Reviu o tapete gasto, antigamente púrpura, depois apenas vermelho, mais tarde rosa cada vez mais *Trabalhava numa pequena calçada de cimento em sombra, junto à última janela do porão.
claro. *Virgínia cavava com os dedos aquela terra pálida e lavada.
*Paradigma da dignidade, da coragem, do patriotismo, Henfil foi assassinado. *Na lata presa à cintura iam se reunindo os trechos amorfos.
*No alto da República Independente do Rio Vermelho tremula, invicta, a bandeira de Iemanjá, a dos *O rio, em pequenos gestos, molhava-lhe os pés descalços.
cinco nomes. *Ela mexia os dedos úmidos com excitação e clareza.
*Foi o início do fim do primeiro supersônico disponível na aviação comercial. *As mãos livres, ela então cuidadosamente galgava a margem até a extensão plana.
*Quanto à beleza em si, há gosto para tudo. *No pequeno pátio de cimento depunha a sua riqueza.
*Helena de Tróia, segundo a tradição, é a mulher mais bonita da história e da lenda. *Misturava o barro à água, as pálpebras frementes de atenção.
*Em casa, filho único, acamado nos primeiros dias pela febre nervosa, João Pedroso teve que *Ela lhe agradecia com uma alegria difícil, frágil e tensa.
enfrentar muitas horas de solidão e decorrente ensimesmamento. *Ana dava a tudo, tranquilamente, sua mão pequena e forte, sua corrente de vida.
*Outra vez no ninho materno, a adequação ao movimento da casa, seus tempos, suas práticas, *Assim chegaria a noite, com sua tranquila vibração.
permitiram finalmente ao menino o retorno à cultura materna, matriarcal. *De manhã acordaria aureolada pelos calmos deveres.
*Doutor Lourenço e o filósofo Lourencinho estarão na deles, numa boa. *Penteava-se agora diante do espelho, por um instante sem nenhum mundo no coração.
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*Em junho de 1888, os livreiros portugueses começaram a vender os primeiros dos cinco mil *O velho mineiro, de olhos nublados, hesitou.
exemplares da primeira edição de Os Maias. *A viagem do colega a Buenos Aires deu ao nosso conhecido um complexo: o da liberdade.
*O que dizer naqueles tempos de um Portugal pouco habitado e não muito lido? *Vou-me divertir para o resto da vida.
*À audácia dos editores correspondeu a curiosidade dos leitores e o interesse da crítica. *O chefe me despachou para Buenos Aires por duas semanas.
*A minha primeira grande e devastadora comoção literária só me veio mesmo, pouco depois, com a *Daí a meia hora estava dormindo sobre a mesa.
leitura de Eça e, principalmente, com a travessia inaugural de Os Maias. *Ninguém sabia que ele tomara um quarto em hotel.
*Seu Maia era muito conhecido em Goiás. *Os amigos, penalizados, o puseram num automóvel.
*Dona Placidina era muito prática, nessas e noutras coisas. *Já era quase noite num canto do céu.
*Seu Maia é um santo homem sem esse diabo da pinga. *Muitas pessoas têm ido ver a casinha vazia.
*Os próprios santos se faziam desentendidos dos responsos, velas acesas e jaculatórias recitadas. *Este quarto será transformado em escritório.
*Os amigos o trouxeram para casa mais cedo. *A jovem achará a barra de imitação de mármore o tipo da coisa suburbana.
*De nada valeu a chazada caseira. *Nela, até a transpiração era como vidraça molhada.
*Dona Placidina se desdobrou em cuidados especiais. *Em casa não falamos no assunto, por muito tempo.
*Faz-se a conferência médica das vizinhas prestativas. *Tenho em mãos uma verdadeira jóia.
*Os companheiros tomaram conta do morto. *A alavanca de marchas era uma maçaneta de porta.
*Nos pés do morto, botou-se um caco de telha com brasa e grãos de incenso. *Em 1961 reuniu alguns trabalhos num livro e alto nível.
*Seu relacionamento com os alunos é frio, quase impessoal. *Morreu pouco depois, quando voltava da redação da Tribuna da Imprensa, jornal carioca, num
*Os cabelos muito lisos, desmaiados entre o louro e o cinza, caem-lhe sobre os olhos. estúpido desastre de lambreta.
*Um pouco de atenção resolve muitas complicações. *Consta que construiu um automóvel no quintal de sua casa.
*Onde será que coloquei o livro? *Diante daquela pulcritude minha face era uma miserável e movimentada topografia, onde eu
*Poderia passar ali o resto da vida, entre os sons, o cheiro do fumo e os olhos acinzentados. explorava furiosamente, e em gozo físico, pequenos subterrâneos nos poros escuros e profundos, ou
*A notícia de sua perda veio aos poucos. vulcõezinhos que estalavam entre as unhas, para meu prazer.
*Junto à porta, no fundo da cama, o outro espiava a parede úmida, o crucifixo negro, as moscas no *Ela não se pintava nunca, mas não sei como fazia para ficar com aquela lisura de louça lavada.
fio de luz. *Essas risadas ela dava principalmente à noite, quando vinha jantar como se fosse a um baile, com
*A pobre mãe deu Betinho àquele homem. seus vestidos alegres, frouxos, decotados, tão perfumada que os objetos a seu redor criavam uma
*O menino enxugava a louça para a cozinheira. pequena atmosfera própria, eram mais leves e delicados.
*Domingo, a empregada de folga, Betinho preparava o café para Mercedes. *Um gato morrerá, quase de susto, traumatizado com a alvura das paredes desconhecidas.
*Os piolhos corriam pelo bico de ponta quebrada. *A música que o operário cantarolava me parecia qualquer canto de apresentação, antes de uma
*O piolho correu de sua mão para a do velho. peça, cuja primeira parte constará, talvez, da invasão de uma família com sua velha e seu papagaio,
*Betinho afogou debaixo do travesseiro a boca arreganhada. seu piano que não encontra parede, sua moça que reclama tudo, e a mãe que briga com os
*Os pés descalços de Mercedes desciam a escada. fornecedores.
*Alheio às sombras na tela, enfrentará a passagem do Natal. *Pessoas poéticas verão crescidas, aninhando as paredes, amorosas trepadeiras, assim como as
*Um grupo o arrastou para o táxi da esquina. begônias no terraço, mais as avencas e os gerânios.
*Alguém informou da farmácia na outra rua. *Alguém e alegrará com o quintal, nele instalando em imaginação a casa do seu cachorro ou o
*Não carregaram Dario além da esquina. galinheiro.
*Foi largado na porta de uma peixaria. *O amigo que levara os telegramas mudara de hotel, em Buenos Aires.
*O endereço na carteira era de outra cidade. *À tarde, quando estava já querendo fazer as pazes tocou a campainha da porta.
*Com uma vizinha de má fama inscreve-se no programa de calouros. *Foi preciso muito juramento e muita declaração de amor para que amansasse um pouquinho.
*Aos colegas de rádio oferece salgadinhos e cerveja. *Isso aconteceu porque eu não tenho hábito dessas coisas.
*Domingo recebe a visita dos filhos, enviados pela sogra. *À noite, depois de um dia de companhia alegre, de passeio de lancha, de teatro ao lado de uma loira,
*Atrás de uma árvore, empina a garrafa saliente no bolso traseiro da calça. à noite, lá pelas onze horas, uns conhecidos que chegavam a uma boate deram com nosso personagem
*Lágrimas correm pelo narigão de cogumelo encarnado. num pileque terrível.
*Na esquina gorgoleja a cachaça até a última gota. *Nesse dia em que deveria embarcar, ele madrugou e foi levar o amigo, entregando-lhe meia dúzia
*No último domingo do mês, com permissão da freira, vão bem penteadinhos à casa o pai. de telegramas que deveria passar.
*No almoço, apresentam café com pão e salame rosa. *Como não tenho dinheiro para viajar, fico por aqui mesmo.
*Um deles enxuga-lhe o suor frio da testa. *Quero que minha mulher pense que estou fora.
*Na frente ia o Fidêncio Lopes, o maioral do negócio. *Feliz era o turista que chupava a cidade por um canudo.
*A senhora também hoje se levantou antes das quatro? *Nesse mesmo dia voltou para sua cidade das Minas Gerais, levando em sua imaginação a idéia do
*Antes das quatro a fila já estava um colosso. abismo de assombro que ele jamais encontraria.
*As filhas e o marido se impressionavam com aquele estranho zelo da dona de casa. *O pai chegou a pegar o chapéu, passou a mão no ombro do filho, mas estava tão perturbado que,
*Encostava-se a dona molemente, um pouco tonta ainda de sono, à árvore. desta vez, realmente, parecia doente.
*Ela ria, um riso ainda com resto de lençol, de travesseiro fofo. *Desde que chegou aqui não encontra um dia para realizar aquilo que afirmou ser o único desejo de
*Nunca aquele homem cantaria assim em casa. sua vida!
*As aventuras do mar bafejaram a pequena multidão. *Parece que o senhor não está querendo mesmo ir ver o mar!
*O mar noturno vinha molemente até a calçada, por intermédio dos passantes joviais. *O velho chegou com a alegria de ver o filho que realizara o que inúmeras gerações de sua gente não
*A vida será estúpida, na atividade doméstica. haviam conseguido: ter dinheiro sobrando.
*Tão pouco lhe pedia o pai! *Mandou-lhe o filho a passagem, depois de ter escolhido um bom hotelzinho na Tijuca, frequentado
*Queria comprar uma lembrancinha para a mulher e para a filha. por gente de pequenas posses.
*O grande encontro entre o mineiro e o mar foi sendo protelado. *Se você quiser saber de um desejo que sempre tive fique sabendo agora que toa a vida quis ver o
*O filho estava meio triste com aquela estranha atitude do pai. mar.
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*Tenho pensado muito em sua luta de sacrificado e não me lembro de tê-lo ouvido falar sobre *Os anos de solidão e uma timidez que, geralmente, não se encontra nos homens atraentes, o
qualquer aspiração. desacostumaram de conversas íntimas, de confidências sussurradas a meia luz sobre os cinzeiros.
*Em breve a leiteria levantará sua cortina metálica e estudantes, caixeiros, a turba do trabalho, *Agora gostaria de ter, eventualmente, alguém com quem conversar, algum amigo.
estará na rua. *Esta ausência só veio notar muito tempo depois, quando começou a dar aulas para Maria Clara.
*Pela fila agora passavam uns moços morenos, bonitos, que iam à pesca. *As relações entre ambos foram-se deteriorando e, quando mudou-se para o Brasil, ela recusou-se a
*Um homem largava seus recalques cantando, do outro lado da rua. acompanhá-lo.
*A madame do dezenove, justamente a mais bonita, com um vestido parecendo quimono, dobrou um *Elas são, hoje, fugas da rotina da universidade da qual começa a sentir-se cansado, ensinando, pelo
jornal sobre o chão da calçada. décimo ano consecutivo, as mesmas coisas a pessoas invariavelmente desinteressadas e
*Às quatro, sempre corria uma aragem friorenta, vinda das bandas da praia. desinteressantes.
*Você já reparou como sua mãe agora deu para gostar de fila? *Talvez assim você compreenda por que sou como sou de vez em quando.
*Para mimo leiteiro vende quantos litros eu queira. *Tudo isto está muito além do que precisamos saber um sobre o outro.
*O primeiro raio de sol, tangenciando a lombada das coxilhas adormecidas, veio incidir-lhe na face, *Basta você saber que fica na Escócia e que é um lugar muito frio e muito úmido a maior parte do
onde coagulara um fio de sangue. ano, onde as pessoas são tristes e fechadas em si mesmas.
*Mal cruza o portão, entra no primeiro boteco. *O compadre Mendanha, muito metódico e apegado aos velhos hábitos de sempre pegar caixão pela
*O pai compra amendoim e pipoca, que os três mordiscam deliciados. alça da frente e da esquerda, tomou posição.
*Maria faz as malas e, sem que os pequenos se despeçam de João, muda-se para a casa dos pais. *Dona Placidina, entregue aos cuidados das amigas, mal escapava de uma vertigem, caía noutra.
*Despedido da fábrica por embriaguez, sobrevive com biscates. *Esqueceu o defeito do marido, as desavenças, os pratos quebrados e passou a sentir,
*Ele ganha pouco, mal pode com os gastos íntimos. antecipadamente, os percalços da viuvez.
*A vela tinha queimado até a metade e apagou-se às primeiras gotas de chuva, que voltava a cair. *No dia seguinte, chamaram Seu Foggia, que diagnosticou empachamento e doença do coração.
*Um senhor piedoso despiu o paletó de Dario para lhe sustentar a cabeça. *Naquele dia, como a dose da boa fosse mais pesada, Seu Maia, que já vinha se ressentindo do fígado
*Um menino de cor e descalço veio com uma vela, que acendeu ao lado do cadáver. com passamentos e vista escura, se achou pior.
*Várias pessoas tropeçaram no corpo de Dario, que foi pisoteado dezessete vezes. *Dona Placidina, cansada daquele marido incorrigível, acabou botando o coração ao largo, embora
*Ficou decidido que o caso era com o rabecão. achasse, no íntimo, que melhor seria uma boa hora de morte para ela.
*Dario levara duas horas para morrer, ninguém acreditou que estivesse no fim. *Ajeitava logo um café amargo, misturado com frutinhas de jurubeba torrada, que o marido engolia
*Um terceiro sugeriu que lhe examinassem os papéis, retirados, com vários objetos, de seus bolsos e careteando, e o empurrava para a rede, onde roncava até pela manhã ou se agitava e falava a noite
alinhados sobre a camisa branca. inteira.
*Dario ficou torto como o deixaram, no degrau da peixaria, sem o relógio de pulso. *Esta, acostumada, embora com a sina ruim, como dizia, não poupava a descalçadeira quando
*Enxame de moscas lhe cobriu o rosto, sem que fizessem um gesto para espantá-las. recebia o marido naquele fogo, arrastando a língua, de pernas moles, isto quando não virava valente,
*Já no carro a metade do corpo, protestou o motorista: quem pagaria a corrida? quebrando pratos e panelas e disposto a lhe chegar a peia.
*Dario, conduzido de volta e recostado à parede, não tinha os sapatos nem o alfinete de pérola na *Gostava de uma pinguinha em doses dobradas, dessas antigas que pegavam fogo.
gravata. *Ali, naquele canto onde a Rua de Joaquim Rodrigues faz um recanteio, morava Seu Maia, casado
*O senhor gordo repetia que Dario sentara-se na calçada, soprando ainda a fumaça do cachimbo e com Dona Placidina, numa casa de beirais, janelas virgens da profanação das tintas, porta da rua e
encostando o guarda-chuva na parede. porta do meio.
*A velhinha de cabeça grisalha gritou que ele estava morrendo. *Depois de ver o cabra mole, estirado, fungando, Zóio de Prata assungou a saia, abriu as pernas e
*Os moradores da rua conversavam de uma porta à outra, as crianças foram despertadas e de pijama mijou na cara de Izéda Bina.
acudiram à janela. *Estava ela na casa da vizinha depenando o frango, quando chegou o Zé da Bina, todo mandante, de
*Quando lhe retiraram os sapatos, Dario roncou feio e bolhas de espuma surgiram no canto da boca. paletó preto, gravata borboleta, calça engomada.
*Cada pessoa que chegava, erguia-se na ponta os pés, embora não o pudesse ver. *Um dia, voltava ela do mercado com um frango na mão, deu de cara com a irmã chorando, de cara
*O senhor gordo, de branco, sugeriu que devia sofre de ataque. amassada e beiço partido.
*O rapaz de bigode pediu aos outros que se afastassem e o deixassem respirar. *A quem te pedir um peixe, dá uma vara de pescar.
*Dario vinha apressado, guarda-chuva no braço esquerdo e, assim que dobrou a esquina, diminuiu *Contou que o fogo, lá longe, tinha queimado seu rancho, e tudo que tinha dentro.
o passo até parar, encostando-se à parede de uma casa. *Comunico que faltei ao expediente do dia 14 em virtude de ter sido mordido pela epigrafada
*Dois ou três passantes rodearam-no e indagaram se não se sentia bem. *Ela é, antes de tudo, mas não acima de tudo, uma visualização.
*Aos passos no corredor o avarento, entre a bulha do colchão, perguntava quem era. *Não é à toa que essa obra, mesmo na perigosa forma de uma adaptação, chega à TV, como já poderia
*Mercedes ergue-se e jurou que, se o monstro morresse, daria a Betinho o que lhe pedisse. ter chegado ao cinema.
*No domingo recebia a menor moeda, que o padrinho catava entre os nós do lenço xadrez. *Entre as mais fortes impressões que me ficaram, dessa primeira leitura, e que se repetiram, nas
*Amanhã faz um mês que a Senhora está longe de casa. seguidas releituras, estavam os personagens que ele retratava, e as paisagens e prédios que
*Quando o tempo começa a escurecer, quando não há sol, não há passeios nem piscinas. reproduzia, dos mais elevados aos mais torpes, das mais belas às mais miseráveis, dando-lhes vida e
*Quando a conheceu, jeans surrados, os cabelos escuros e compridos presos num rabo de cavalo, um paixão, velhacaria e nobreza, ventura e tragédia.
jeito preguiçoso, disco dos Beatles embaixo do braço, chegou a arrepender-se de não ter afastado a *Ainda me lembro das aflições que passei a sentir quando, contando as páginas que faltavam, me dei
ideia definitivamente. conta de que me aproximava do desfecho da tragédia e que chegava ao fim do livro.
*Depois de quase um ano, ainda não sabe exatamente por que aceitou das aulas para Maria Clara, *Eles muito me ilustravam, mas pouco ou nada me comoviam.
filha de um professor de física que acabara de voltar da Inglaterra. *A tragédia se consuma e nos obriga a repensar o ser humano com inquietação e desconfiança.
*Como é que eu posso escrever sobre alguma coisa que ainda não aconteceu? *Tal como o próprio Eça se sentia, Ega e Carlos eram, naquele momento, dois vencidos da vida.
*Há um texto de Saroyan muito bonito que eu quero que você conheça. *Antes de se deitar, como se apagasse uma vela, soprou a pequena flama do dia.
*Ainda tem alguma dificuldade em expor seu raciocínio numa linha uniforme, mas acho que, na sua *Quando voltasse era o fim da tarde, e as crianças vindas do colégio exigiam-na.
idade, nem poderia ser de outra maneira. *Olhando os móveis limpos, seu coração se apertava em pouco em espanto.
*Quando o cachimbo está preso entre os dentes, a mão, livre, joga-os para trás num gesto inútil. *Na sua vida não havia lugar para que sentisse ternura pelo seu espanto.
*Dos alunos, sente-se cada vez mais distante com o passar dos anos. *Sua precaução reduzia-se a tomar cuidado na hora perigosa da tarde, quando a casa estava vazia
sem precisar mais dela, o sol alto, cada membro da família distribuído nas suas funções.
14 15
*O homem com quem casara era um homem verdadeiro. *A família foi chamada com urgência e consternada viu o almoço junto de uma chaminé.
*Sua juventude anterior parecia-lhe estranha como uma doença de vida. *Em breve estava no terraço do vizinho, de onde, em outro voo desajeitado, alcançou um telhado.
*No fundo, Ana sempre tivera necessidade de sentir a raiz firme das coisas. *Foi uma surpresa quando a viram abrir as asas de curto voo, inchar o peito e, em dois ou três lances,
*Com o tempo, seu gosto pelo decorativo se desenvolvera e suplantara a íntima desordem. alcançar a murada do terraço.
*Parecia ter descoberto que tudo era passível de aperfeiçoamento, a cada coisa se emprestaria uma *Mesmo quando a escolheram, apalpando sua intimidade com indiferença, não souberam dizer se
aparência harmoniosa. era gorda ou magra.
*Todo o seu desejo vagamente artístico encaminhava-se há muito no sentido de tornar os dias *A cena abria com o meu monólogo, e a mulher para quem eu contava o caso era desse tipo de atriz
realizados e belos. que gostava de falar uma coisinha nos vazios.
*Certa hora da tarde as árvores que plantara riam dela. *Era um monólogo, onde um homem contava a uma mulher, em pleno Times Square de NewYork,
*Quando nada mais precisava de sua força, inquietava-se. uma aventura que lhe acontecera.
*O vento batendo nas cortinas que ela mesma cortara lembrava-lhe que se quisesse podia parar e *Eu estava, numa terça-feira, escrevendo o meu programa de estreia que aconteceria na sexta,
enxugar a testa, olhando o calmo horizonte. quando o Luiz Maranhão, diretor do rádio-teatro, entrou na sala e me pediu para fazer um papel na
*O calor era forte no apartamento que estavam aos poucos pagando. novela “Três Vidas” do Amaral Gurgel.
*Compreendeu que isso ela conseguiria com tintas. *Ronaldo Lupo, com quem me encontrei no saguão, com um telefonema para o Sr. Arnaldo Pinto,
*Um pouco cansada, com as compras deformando o novo saco de tricô, Ana subiu ao bonde. no Recife, me colocou na Rádio Clube de Pernambuco, a gloriosa Pioneira da Avenida Cruz Cabujá,
*Ela descobriu que precisava usar uma matéria mais leve que não pudesse sequer ser apalpada, no Recife.
sentida. *Um dia o Sr. Varela não aguentou mais minhas transferências e, sem briga ou aborrecimento, me
*Concentrada, o corpo à escuta, ela podia obter uma porção exata de barro e água numa sabedoria deu o bilhete azul.
que nascia naquele mesmo instante, fresca e progressivamente criada. *A diminuição do dinheiro na Mayrink a obrigou a diminuir o elenco e, de uma hora para outra, eu
*Numa de suas margens, escalável embora escorregadia, achava-se o melhor barro que alguém escrevia treze programas semanais, atuava em todos e estudava.
poderia desejar: branco, maleável, pastoso, frio. *Era uma época em que ninguém podia ficar descansado.
*Quando queria, com muita força ia pela estrada até ao rio. *Por uns três anos, eu consegui driblar o homem do Departamento do Pessoal, que vinha pelo menos
*O que ela amava acima de tudo era fazer bonecos de barro. duas vezes por semana com a mesma reclamação.
*Até as quatro horas entrara a nora de Olaria e depois a de Ipanema. *As minhas obrigações me impediam de inventar um tempo para ir ao Ministério do Trabalho cuidar
*Para adiantar o expediente, enfeitara a mesa logo depois do almoço, encostara as cadeias à parede, da minha carteira profissional.
mandara os meninos brincar no vizinho para não desarrumar a mesa. *Eu comecei cedo a trabalhar no rádio, num tempo em que eu ainda estudava e tinha, portanto,
*As duas mocinhas cor-de-rosa e o menino, amarelos e de cabelo penteado, não sabiam bem que minhas obrigações escolares a cumprir.
atitude tomar e ficaram de pé ao lado da mãe, impressionados com seu vestido azul-marinho e com *Achei que era por uma questão de salário e lhe propus um aumento, mas ela recusou e me deu a
os paetês. explicação numa frase que achei muito interessante.
*Tendo Zilda – a filha com quem a aniversariante morava – disposto cadeiras unidas ao longo das *Uma empregada maravilhosa que eu havia encontrado, ontem foi embora.
paredes, como numa festa em que se vai dançar, a nora de Olaria, depois de cumprimentar com cara *Seu banho tem que ser tomado sem que ela queira se dar ao luxo de virar de frente ou de costas
fechada aos de casa, aboletou-se numa das cadeiras e emudeceu, a boca em bico, mantendo sua para a água que cai nela, no vaso, na pia de palmo e meio, na parede geral e na porta, além da toalha,
posição de ultrajada. é claro.
*A nora de Olaria apareceu de azul-marinho, com enfeite de paetês e um drapeado disfarçando a *Cama, num quarto de empregada, o máximo que pode ter de tamanho é um metro e sessenta e cinco.
barriga sem cinta. *Uma mulher que tenha um metro e setenta não pode tentar este emprego, a não ser que concordem
*Esta vinha com o seu melhor vestido para mostrar que não precisava de nenhum deles, em dormir em pé.
acompanhada dos três filhos: duas meninas já de peito nascendo, infantilizadas em babados cor de *Os apartamentos americanos são mínimos, inteiramente diferentes dos daqui que, muitas vezes, têm
rosa e anáguas engomadas, e o menino acovardado pelo terno novo e pela gravata. quatro suítes, três salas, três quartos de empregada e seis vagas na garagem.
*O marido não veio por razões óbvias: não queria ver os irmãos. *Assim, à primeira vista, parece um erro, mas não é, porque lá é muito difícil alguém ter empregada.
*Mandara sua mulher para que nem todos os laços fossem cortados. *Os prédios supernovos estão construindo garagens nos três primeiros andares, mas nos antigos é
*Os que vieram de Olaria estavam muito bem vestidos porque a visita significava ao mesmo tempo impossível, porque se furar o chão para fazer uma, dá no metrô.
um passeio a Copacabana. *Em Manhattan, coração de New York, que é o coração dos Estados Unidos, não adianta ter carro,
*A menina, de volta do colégio, jogava a pasta longe sem interromper a corrida para a cozinha. porque não há onde o guardar.
*Inconsciente da vida que lhe fora entregue, a galinha passou a morar com a família. *Acho que todos sabem que eu morei dois anos nos Estados Unidos, e foi lá que eu descobri uma coisa
*Se você mandar matar essa galinha, nunca mais comerei galinha na minha vida! interessante: os americanos inventaram o automóvel, mas esqueceram de inventar a garagem.
*Todos correram de novo à cozinha e rodearam mudos a jovem parturiente. *Gonçalves subiu para a entrada da cozinha, apeou do cavalo e tirou Roberinha da sela, segurando-
*Logo depois, nascida que fora para a maternidade, parecia uma velha mãe habituada. a no colo.
*Afinal, numa das vezes em que parou para gozar sua fuga, o rapaz alcançou-a. *Roberinha, aos quatro anos, vinha com seu pai a cavalo, sentadinha ali junto ao Santo Antônio da
*É verdade que não se podia contar com ela para nada. sela, e uma vizinha convidou o pai para um café.
*Que é que havia nas suas vísceras que fazia dela um ser? *Uma mulher não deve ser medida pelo que o rosto promete ou deixa de prometer.
*Às vezes, na fuga, pairava ofegante num beiral de telhado e, enquanto o rapaz galgava outros com *Cada um de nos tem o seu conceito de feiura e isto é um assunto bastante discutível.
dificuldade, tinha tempo de se refazer por um momento. *Ele vai dizer que isto é o Santos reconhecendo a superioridade do Palmeiras.
*Sozinha no mundo, sem pai nem mãe, ela corria, arfava, muda, concentrada. *Por favor, não põe no ar esta cena da gente levantando o Chico.
*Por mais ínfima que fosse a presa, o grito de conquista havia soado. *O programa terminava com o Pelé e eu trocando cabeçadas e eu sugeri que eles me levantassem e
*Pouco afeita a uma luta mais selvagem pela vida, a galinha tinha que decidir por si mesma os saíssem comigo, como se me fosse jogar na piscina.
caminhos a tomar, sem nenhum auxílio de sua raça. *Daniel disse que ele poderia chegar apenas à noite, pois a cena dele era a última.
*Em pulos cautelosos alcançou o telhado onde esta, hesitante e trêmula, escolhia com urgência outro *Mandei um cara com o meu carro a São Paulo buscar o Gilmar e o Mauro.
rumo. *Ele acordou num pulo e tomou um susto ao me ver.
*O dono da casa, lembrando-se da dupla necessidade de fazer esporadicamente algum esporte e de *Dona Celeste me atendeu sempre gentil e, ao saber do caso, sugeriu que eu o acordasse.
almoçar, vestiu radiante um calção de banho e resolveu seguir o itinerário da galinha. *Eu, imediatamente, fui à casa do Pelé, de quem durante muito tempo fui vizinho.
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*Quando, na terça-feira, o caminhão de externa e o ônibus com os atores chegaram à Vila Belmiro, *Moços bem falantes explicam, de lápis na mão, em seus escritórios coloridos e envidraçados,
às 7:30 da manhã, o porteiro nos informou que, como o jogo de quinta era considerado fácil, o Lula apartamentos que vão ser construídos em poucos meses, com tantos andares, vista para todos os
(o técnico) havia cancelado a concentração. lados, vestíbulos de mármore, tanto de entrada, mais tantas prestações, sem reajustamento.
*Um dia combinamos com a direção e o treinador e foi escrito um programa para ser gravado na *Apesar da fresquidão, as mocinhas trazem nos pés sandálias douradas, enquanto agasalham a
concentração do Santos. cabeça em echarpes de muitas voltas.
*O Manga riu muito ao saber que meu escolhido era o Daniel e disse uma frase ao telefone que eu de *A tardezinha de sábado, um pouco cinzenta, um pouco fria, parece não possuir nada de muito
longe escutei. particular para ninguém.
*O negócio é que, ao mesmo tempo, ele me deu o direito de escolher um diretor. *A minha vida mudou tanto que, por mais saudade que me venha dessa letra perdida, não me animo
*Quando o Carlos Manga, na Excelsior, me deportou para São Paulo, para que eu trabalhasse numa a fazê-la voltar.
emissora que tinha um único estúdio e duas câmeras, talvez pensasse que estava decretando a minha *Assino deste modo por motivos sobrenaturais, fantásticos, como quiserem, mas não pela reforma
morte. ortográfica, aliás muito cautelosa com os nomes próprios, respeitando-os tanto quanto me parece
*O cozinheiro quer convencer a gente de que isso é tutu. deverem ser respeitados, principalmente pelos mistérios que dentro deles vão navegando.
*Foi aí, na hora da refeição, que eu presenciei algo de que nunca mais me esquecerei. *Deu-me um trabalho muito grande ficar sem essa letra.
*Eu tive o prazer de ser convidado por ele para almoçar com os oficiais. *Uma letra é um signo, é uma coisa misteriosa que as gerações vêm carregando consigo, modificando
*É claro que seria impossível eu ser aceito, porque a minha magreza era algo fora do comum. de longe em longe, por mão inexperiente, por súbito esquecimento, por ignorância de algum escriba
*No quartel onde me apresentei, em São Cristóvão, as pessoas chegavam a rir de mim. emprestado.
*Como apertava mais a cada frase falada, Chave Inglesa, no final, já estava todo retorcido. *Foi nessa ocasião que me explicaram o valor cabalístico das letras, e a razão por que muitas pessoas
*O rapaz soltou as banhas dele e foi embora com a namorada, enquanto Chave Inglesa levantou a mudam de nome, trocando aquele que lhes foi dado por outro em que haja uma combinação de
camisa e, dando massagem naquela poça de sangue da cintura, comentava com o amigo: Rapazinho valores mais favorável aos seus destinos.
forte... *Esqueci-me de dizer que estava disposta a todos os despojamentos.
*Passe a tomar conta do que fala, para não apanhar e muito, quem sabe até sem ter conserto. *Nunca me dei ao luxo de ter tantos, que justificassem a conspiração que se fazia contra mim.
*Vai ficar bonito para o famoso Chave Inglesa apanhar feito boi ladrão de um garotão que ninguém *Considerando que tal concordância de acontecimentos desagradáveis devia ter uma razão secreta,
sabe quem é, aqui, na casa dele? pus-me a procurá-la.
*O fato de ser amigo do China não aliviava ninguém de uma pressão do Chave, se este fosse o desejo *É certo que todos temos muitos defeitos.
dele. *Estou bem certa de que não merecia tanto.
*Ser amigo do China não livrava a cara de ninguém. *Não compreendo por que as pessoas creem numas coisas e noutras não.
*O interessante é que todos se respeitavam e ninguém soube, nunca, de um ter que encarar o outro *Está claro que creio em tudo isso.
numa disputa, uma briga, fosse por que motivo fosse. *Penetrando mais no estudo de todas essas superstições, pessoas entendidas têm procurado explicá-
*O fato de mandar na sua circunscrição era mais que suficiente para todos eles. las pelas correlações existentes com as crenças do paganismo, estas por sua vez baseadas no
*Houve um tempo, no Rio de Janeiro, que cada bairro tinha o seu valentão. empirismo e na ignorância dos nossos antepassados, e assim por diante, o que não impede que as
*Naquelas tardes terríveis, sozinho num quarto de hotel, esperando a hora do show, eu comecei a pessoas ainda hoje se benzam, quando bocejam, para que o Demônio não lhes entre pela boca.
desenhar o país dos meus sonhos. *Foi assim que, com o correr do tempo, se chegou à caracterização de um certo número de fatos e
*No país dos meus sonhos, o homem branco, afinal, vai descobrir que o coração do negro é do objetos que servem de prenúncio ao azar: espelhos quebrados, relógios parados, sal entornado na
tamanho do seu e o sangue da mesma cor. mesa, sapato emborcado, tesoura aberta, gato preto, mariposas, sexta-feira treze, mês de agosto,
*Andando há 40 anos por este país, catando dinheiro para levar pra casa, eu aprendi a acreditar. gente canhota e estrábica, vestido marrom, para só falar dos principais.
*Aprendi, com o meu povo, que quando uma coisa está muito séria, o melhor que se faz é brincar *A pessoa sai de casa, bem com a sua consciência, com as faculdades mentais em perfeita ordem, os
com ela. músculos, os nervos, tudo bem governado, atravessa a rua como um cidadão correto, observando o
*Como dizem que as últimas gerações andam muito rebeldes e novidadeiras, achei natural que sinal, e quando chega do outro lado, apanha na cabeça um tijolo que um operário, inocente, deixou
também os passarinhos estivessem contagiados pelo novo estilo humano. cair do sétimo andar de uma construção.
*Com esse nome que tem, devia estar em todas as repartições e outros lugares, numa elegante gaiola, *O fenômeno da crise é importante precisamente por ser o contrário do natural.
para no momento oportuno anunciar a sua presença. *A verdade nunca é simples, como se imagina.
*O ano passado, aqui nas mangueiras dos meus simpáticos vizinhos, apareceu um bem-te-vi *Minha irritação e meu susto são tão grandes que necessito recompor o fôlego em grandes
caprichoso, muito moderno, que se recusava a articular as três sílabas tradicionais do seu nome. respirações.
*Quando um poeta fala num passar, o leitor pensa que é leitura. *Muita gente me pergunta se deixei de escrever o meu sobrenome com letra dobrada devido à
*Com estas florestas de arranha-céus que vão crescendo, muita gente pensa que passarinho é coisa reforma ortográfica.
só de jardim zoológico. *Como se fora caso de vida ou morte, esses fatos futuros, que eu achava que desconhecia, já estavam
*Por enquanto ainda existem bairros afortunados onde haja uma casa, casa que tenha um quintal, me abalando.
quintal que tenha uma árvore. *Tiro o carro da garagem e, em velocidade moderada, faço o curso rotineiro para o escritório.
*Bom será que essa árvore seja a mangueira. *Ele precisou muito amor para se resolver.
*Além da roupinha nova, melhoram um pouco a janta, porque nós, humanos, quase sempre *Queria a minha imagem com ousadia, para enfrentar essa realidade que, de repente, me é revelada
associamos à alegria da alma um certo bem-estar físico, geralmente representado por um pouco de dessa forma abrupta.
doce e um pouco de vinho. *Meu marido, em sua louca lembrança, num desafogo irracional, vertia lágrimas, para meu espanto,
*Todos os anos o Menino Jesus nasce, naquela data, como nascem no horizonte, todos os dias e todas e soluçava, de forma incontida e sem pudor, pela pessoa que tanto amara num passado remoto, e cuja
as noites, o sol e a lua e as estrelas e os planetas. imagem o matava aos poucos e marcava seus dias tão tristes e vãos.
*Na Ilha do Nanja, as pessoas levam o ano inteiro esperando pela chegada do Natal. *Sentei-me desajeitada no leito e voltei-me mais para o espelho acusador, quase encobrindo a imagem
*Andam barquinhos pela baía, com um raio de sol a brilhar nas velas. de meu marido, para evitar seu rosto.
*Em alguma ruazinha simpática, com árvores e sossego, ainda há crianças deslumbradas a comerem *Aquela vida de sofrimento louco não era por mim, sua esposa, mas por outra mulher cujo amor fora
aquele algodão de açúcar que de repente coloca na paisagem carioca uma pincelada oriental. tão forte, que o acompanhou vida a fora, em nossa vida, chegando agora, através daquela imagem
refletida, a incomodar-me, a insultar-me, anos e anos após aqueles acontecimentos insólitos.
*Minha tia fez questão de mostrar-me, como se quisera pôr fim à minha paixão e à minha vida.
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*Seus olhos opacos mostravam-se, doloridos, enquanto punha sua desdita a nu. *Filho obediente, ele queria muito acreditar no que a mãe lhe dissera, o que foi facilitado pela
*Continuou sua confissão, em total alucinação, como se contasse para ele próprio. ausência dos colegas e amigos.
*Sabia que a imagem que via era a sombra do desespero daquele homem, totalmente tomado pelo *João Pedroso contou como sua doença veio diminuir o conflito.
passado tenebroso, que não percebia o meu desalento, nem minha dor, talvez nem minha presença. *Chegavam os primeiros dias de novembro e o médico o proibira de qualquer esforço, o que incluía
*Suas lembranças eram tão claras, tão verdadeiras, que eu própria vertia lágrimas. sua ida à escola.
*Sentiu-a em sua imagem fantasmagórica, perdido em lembranças, e lágrimas desceram de seu rosto. *Papai Noel não existe – disse Ninico, baixinho, concentrado no fundo do copo de conhaque Napoleão.
*Precipitado em meu otimismo, faço, depois do jantar, uma descrição para a família toda reunida de *Já eram onde horas da noite e os quatro, em volta da pequena mesa de tampo de mármore mal
como é o trem encantado em que viajaremos os dois. polido, terminavam a quinta rodada, um pouco sonolentos, meio nostálgicos pelo passamento da data,
*O abuso já não será tanto, nem deixarei de proporcionar a meu filho uma viagem repousada. o bar vazio de fregueses, o Joaquim da Maria a cabecear cochilos sobre o alto banco de madeira, por
*Repugna à minha consciência abusar da requisição, proporcionando-nos esse luxo nababesco que trás do balcão.
ficaria documentado para sempre. *Confirmou Mariano, tautológico, os olhos vidrados, mirando de esguelha a luz amarelada do poste,
*Verifico que, se fosse noturno, com leito de luxo, no Santa Cruz, em cabine individual de dois no outro lado da rua.
passageiros, a viagem de ida e volta custaria ao Estado o triplo do preço desse trajeto em poltrona *Você não sabe que o Ninico adora afirmações controvertidas?
comum. *Você vai ter que concordar que, nesses termos, o que se pode discutir é muito pouca coisa.
*O único presente tolerado é essa viagem de graça, que, a bem dizer, não é um presente, é um direito *Mariano ia responder à aporia absurda, mas emburrou, e caiu um silêncio incômodo sobre a mesa.
que me dá o cargo de Curador de Menores. *Cada qual conhecia, demasiadamente bem, o pensamento do outro, havia mais de vinte anos, o que
*Atravessaremos a véspera natalina dentro do trem, sem desejar mal nem bem a quem quer que seja, permitia um entendimento rápido entre eles.
ele lendo, eu nos meus devaneios. *João Pedroso olhou cada um dos amigos com o rosto tenso, amargurado, e não se deu ao trabalho
*Evito discutir, para que não surjam obstáculos futuros. de responder a qualquer deles, o pensamento vagueando por um mundo antigo, perdido, passado.
*A ideia de fazer essa viagem na companhia unicamente de meu filho, tendo eu me comprometido a *A desconcentração da conversa se fora, deixando uma tensão progressiva nos corpos, no ar.
não desviá-lo de suas leituras nem durante o percurso nem durante o dia inteiro que passaremos em *A própria iluminação no bar, na rua, mudara, como que enfraquecida por uma queda de voltagem
São Paulo, corresponde satisfatoriamente à nossa concepção do anti-Natal. tão comum naquela cidadezinha.
*No documento emitido pelo Juizado de Menores lê-se o seguinte: “Requisito-vos duas passagens de *Eu devia ter uns sete anos, por aí, e o colégio já se tinha encarregado de tirar algumas ilusões que
ida e volta em primeira classe dessa estação até a Estação Presidente Franklin Roosevelt, em São minha mãe alimentara por toda a meninice.
Paulo, para o Dr. Lourenço Laurentis, Curador de Menores do Distrito Federal, e um menor, que *Ele já não se lembrava mais das circunstâncias exatas, das causas ou do motivo que o levara a fazer
viajam a serviço deste Juízo”. o comentário com a mãe, mostrando a sabedoria que adquirira longe do ninho que, afinal, o enganara
*Depois de carimbar a requisição, objeta-me que só amanhã poderá dar as passagens, pois o com aquela mentirinha.
regulamento ferroviário exige antecedência de três dias, não de quatro. *A reação dos dois lados, minha mãe e os amigos, foi tão oposta que o assunto se tornou tabu,
*A tentativa de sonegação da corretora de café, por um desses acasos improváveis, redundou numa proibido, para mim.
multa que montava a quase dez vezes o valor do imposto, como uma pá de cal sobre a firma paterna. *Eu estava me mostrando, para minha mãe, orgulhoso de como eu já estava crescido, virando
*Alberto, cansado de não fazer nada, se calara, emburrado, num canto, enquanto eu aproveitava homenzinho.
para imaginar um monte de pequenas maldades com todos da casa mas, principalmente, como evitar *A forma como minha mãe colocara a questão, ou seja, em termos de crença, tornou impossível uma
que se pudesse saber a autoria do malfeito. decisão.
*Durante o café, enquanto passava uma vista ao jornal, João Pedroso sentia o pequeno papel como *Do meu ponto de vista infantil, não só a questão não era nítida como seria a causa do mais completo
um objeto morno, no bolso do paletó, a pesar-lhe incomodamente o peito, e perguntou-se por que o desastre, dada a importância que o Natal tinha para mim, naquela época.
pegara, após tantos anos, e com que finalidade. *Em resumo, minha mãe disse que o Natal só existis para quem acreditava nele.
*De posse do objeto demandado e, talvez porque o não tivesse tocado por mais de cinquenta anos, *Vocês podem imaginar como fui alvo das mais cruéis caçoadas no grupo escolar.
meteu-o no vasto bolso sem lançar-lhe uma única mirada, dirigindo-se ao banheiro, para as abluções *Segundo a tradição, era loura, diferenciando-se de outras mulheres do Mediterrâneo, que costumam
matinais. ser morenas.
*Tão logo a luz cinzenta da manhã se filtrou pelas venezianas de madeira azul-claras, saltou do leito *A mulher mais inteligente que conheci era loura, uma loura até suspeita, parecia artificial, no
e, de camisolão e chinelas, dirigiu-se ao alpendre em silentes passos de gato. detestável estilo de “amarelo ovo”.
*A doença se evaporou, como se jamais se houvesse instalado. *Não chegava a ser feia, mas não era bonita, embora não merecesse ser jogada fora.
*A sequência das férias consolidou seu melhor estado de saúde, e mesmo a aproximação do Natal não *Onde está a lei que pune a discriminação, seja a discriminação que for?
lhe trouxe maiores sobressaltos, uma vez que sua divisão interior quase desaparecera. *Não aceito a teoria de que a onda contra as louras possa ser atribuída ao despeito, à inveja.
*Cerca de meio século depois, João Pedroso saiu para o alpendre elevado, aonde raramente ia, tanto *Uma caçadora de talentos, dessas que dão dicas para empregos de futuro, recomenda que as
pelo vento cortante dos dias frios, como pela inclemência da luz, que galgava os céus, fronteira à pretendentes façam as unhas, usem vestidos comportados, falem só o essencial, mas em hipótese
fachada do sobrado nos dias de verão, e dirigiu-se à terceira coluna de tijolos ingleses envernizados. alguma sejam louras, nem naturais nem artificiais.
*A quem passava na rua, pouco mais lhe era permitido notar que a alta estante de livros, quase a *Não tenho nem pretendo ter procuração das louras para defendê-las das acusações de burrice e
atingir o teto de um dos cômodos, quando as pesadas cortinas não estavam corridas. cafonice, que estão se avolumando nos últimos tempos contra elas.
*João Pedroso herdara do pai, na década de sessenta, o que a cidadezinha preguiçosa gostava de *Leio num jornal que as louras não estão com nada, nem no cinema, na TV, nem na vida em geral.
considerar sua mais bela construção, produto da corretora de café, então localizada no rés-do-chão *As deusas de alguns anos atrás estão com dificuldade para renovar contrato e já não causam gritos
do prédio, amanhada com proficiência e algum descortino comercial, desde os anos trinta. e sussurros por onde passam.
*Seu pensamento voltava ao pequeno pedaço de papel, cuidadosamente dobrado, metido sob o tijolo *As criações mais sólidas do homem, que parecem indestrutíveis, perfeitas, costumam ir para o brejo
da sétima fileira da terceira coluna do alpendre. por motivos banais, como o iceberg que afundou o Titanic.
*Apanhou algo que meteu no bolso da calça e voltou a encaixar o bloco em seu lugar, bem justo, sem *Os dois casos são uma liça de humildade que habitualmente esquecemos não apenas na vida pública,
deixar qualquer irregularidade que o diferenciasse dos demais. mas na vida pessoal de cada um de nós.
*A construção esquinada cavalgava um outeiro que lhe permitia sobrever, da rua em cotovelo que *Não foi o custo do aparelho nem o alto preço das passagens para se voar nele que motivaram a sua
subia à esquerda, as casas menores, pouco acima do peitoril de suas janelas, enquanto à direita, aposentadoria.
telhados e beirais acompanhavam a íngreme descida. *O que espantou os especialistas foi a insignificância da causa que provocou a catástrofe.
20 21
*Ao rolar na pista para a decolagem, um dos pneus do aparelho foi cortado por uma pequena peça *A água barrenta e furiosa tinha vozes de pesadelo, resmungo de fantasmas, timbres de mãe ninando
metálica, de 40 centímetros, desprendida de um outro avião que decolara pouco antes. filhos doentes, uivos ásperos de cães danados.
*A peça fez explodir um dos pneus das rodas que estavam sendo recolhidas. *Abriam-se estranhas gargantas resfolegantes nos torvelinhos malucos e as espumas de noivado
*Um pedaço do pneu bateu com violência na asa esquerda, fazendo um furo, pelo qual saiu o ficavam boiando por cima, como flores sobre túmulos.
combustível, logo inflamado por uma fagulha. *Um tronco de árvore que derivava chocou-se com a embarcação, que agora corria na garupa da
*Vi o documentário sobre o desastre com o Concorde, em Paris, que matou mais de cem pessoas, em correnteza.
não me lembro mais qual ano. *Procurava, por milhares de cálculos, escapar à cachoeira, cujo rugido se aproximava de uma
*Na vida de cada um de nós, no dia-a-dia de nossos desafios e deslumbramentos, o bom senso e a maneira desesperadora.
experiência, a nossa e a alheia, recomendam cuidado a respeito da água que em dado momento *Discerniam-se sobre o líquido grandes manchas, sonambulicamente pesadas, emergindo do
desdenhamos, achando que nunca beberemos dela. insondável.
*O deputado José Genoíno, presidente do PT, no passado e até recentemente, preferiria morrer de *Pelo vão da parede desconjuntada podia-se ver o lençol branco – que se diluía na cortina diáfana,
sede, no mais escaldante dos desertos, a aceitar a água de Paulo Maluf, no suculento oásis criado pelo leitosa do espaço repleto de chuva – e que arrastava as palhas, as taquaras da parede, os detritos da
segundo turno das eleições na capital paulista. habitação.
*Em princípio, não se devia estranhar a opção que o partido dos trabalhadores será obrigado a *Nhola chamou o chulinho, que vinha nadando pelo quarto, soprando a água.
engolir. *O teto agora começava a desabar, estralando, arriando as palhas no rio, com um vagar irritante,
*Se não houver frutos, valeu a beleza das flores; se não houver flores, valeu a sombra das folhas; e, com uma calma perversa de suplício.
se não houver folhas, valeu a intenção da semente. *O menino chorava aos berros, tratando de subir pelos ombros da estuporada e alcançar o teto.
*Se Marta vencer a parada, Maluf terá um argumento poderoso não para pleitear qualquer coisa do *Dentro de casa, boiavam pedaços de madeira, cuias, coités, trapos e a superfície do líquido tinha
governo municipal petista, mas para engrossar a sua crítica com mais autoridade. umas contorções diabólicas de espasmos epilépticos, entre as espumas alvas.
*O juiz teve uma recaída e não reconheceu o direito de Lúcia Lara, brava e digna companheira de *Com essa chuveira de dilúvio, tudo quanto é imundície entra pro rancho e eu num quero drumi no
Henrique por mais de dez anos, impedindo-a de fazer jus a indenização pela brutal perda sofrida. chão não.
*A verdade é que Lucinha não cogitou jamais de receber dinheiro em troca da vida de Henfil, o que *Ela receava a baita cascavel que ainda agorinha atravessara a cozinha numa intimidade
não o traria de volta. pachorrenta.
*Mesmo que, num acesso de loucura, dando uma de amoral nato, exigisse a execução dos responsáveis *No canto escuro do quarto, o pito da velha Nhola acendia-se e apagava-se sinistramente, alumiando
pelo crime nefando, não teríamos de novo o exemplar cidadão. seu rosto macilento e fuxicado.
*Hemofílico, como seus irmãos homens, submetia-se a frequentes e caríssimas transfusões de sangue *Ratos, sapos, baratas, grilos, aranhas, o diabo refugiava-se ali dentro, fugindo à inundação, que aos
para sobreviver. poucos ia galgando a perambeira do morrote.
*A viúva de Chico Mário acaba de ser reconhecida pela Justiça, que condenou a União e o Estado do *Clareava as trevas o branco leitoso das águas que cercavam o rancho.
Rio pelo seu desaparecimento. *A chuva caía meticulosamente, sem pressa de cessar.
*Os jovens que me honram com a sua leitura não fazem ideia do que foi aquele tempo, embora *A palha do rancho porejava água, fedia a podre, derrubando dentro da casa uma infinidade de
estejam sofrendo como todo mundo as consequências do desvario do “Brasil potência”. bichos que a sua podridão gerava.
*O pior é que a pusilanimidade aqui reinante botou uma pedra em cima da imundície e nunca mais *Há quarenta anos a velha Nhola vinha ouvindo aquela conversa fiada.
se tocou no assunto. *Nóis precisa de mudá, pruquê senão a água leva nóis.
*Onde vocês acham que teve início a rebordosa em que estamos? *Este ano,se Deus ajudá, nóis se muda.
*Pelas tardes poeirentas daquele resto de janeiro, quando o sol parecia a gema de um enorme ovo *A casa ficava num triângulo, de que dois lados eram formados por rios, e o terceiro, por uma vargem
frito no azul sem nuvens no céu, ninguém mais conseguiu trabalhar em paz na repartição. de buritis.
*Quase todos ali tinham a nítida sensação de que seriam infelizes para sempre. *Nos tempos de cheias os habitantes ficavam ilhados, mas a passagem da várzea era rasa e podia-se
*Criminosos brasileiros brilham na Inglaterra, cuja polícia só está preparada para crimes vadear perfeitamente.
inteligentes. *No tempo da guerra do Lopes, o avô de Quelemente veio de Minas e montou ali sua fazenda de gado,
*Resolveram fazer a hidrelétrica de Itaipu, de parceria com os donos do Paraguai, e mandaram pois a formação geográfica construíra um excelente apartador.
alagar tudo. *O gado, quando o velho morreu, já estava quase extinto pelas ervas daninhas.
*Ouviu o latido desafinado de um cão, uma tosse noturna, ruídos secos, então sentiu a luz acesa do *No lugar da casa de telhas, que ruiu, ergueram um rancho de palhas.
interior da casa filtrada pelo vidro cair sobre sua cara de barba por fazer, três dias. *A calça de algodão cru do roceiro fumegava ante o calor da fornalha, como se pegasse fogo.
*Meteu as mãos nos bolsos, procurou um cigarro ou um chaveiro para rodar entre os dedos, antes *Dependurou numa forquilha a caroça – que é a maneira mais analfabeta de se esconder da chuva –
que se abrisse a janelinha do alto da porta. tirou a camisa molhada do corpo e se agachou na beira da fornalha.
*Enquadrado pelo retângulo, o rosto dela apertava os olhos para vê-lo melhor. *Onde ele se agachou, estava agora uma lagoa, da água escorrida da calça de algodão grosso.
*Mediram-se um pouco assim – de fora, de dentro de casa –, até ela afastar o rosto, sem nenhuma *Somente para o sul, para a várzea, é que estava mais enxuto, pois o braço do rio aí era pequeno.
surpresa. *A velha voltou para dentro, arrastando-se pelo chão, feito uma cadela.
*Estava mais velha, viu ao entrar. *Havia vinte anos apanhara um “ar de estupor” e, desde então, nunca mais se valera das pernas, que
*Ela resmungou no seu velho jeito azedo, que antigamente ele não compreendia. murcharam e se estorceram.
*Segurando-o pelas duas orelhas, como de costume, ela o beijou na testa. *O menino saiu do rancho com um baixeiro na cabeça e, no terreiro, debaixo da chuva miúda e
*Acendeu a luz do abajur, para que a sala ficasse mais clara quando, sem camisa, começou a acariciar continuada, enfincou o calcanhar na lama, rodou sobre ele o pé, riscando com o dedão uma
as manchas púrpura, da cor antiga do tapete na escada, espalhadas embaixo dos pelos do peito. circunferência no chão mole.
*A verdade é que não havia mais ninguém em volta. *O pior crime para com os nossos semelhantes não é odiá-los, mas demonstrar-lhes indiferença.
*Meses depois, não no começo, um deles diria que a repartição era como “um deserto de almas”. *Quem deseja uma vida feliz com uma mulher bonita assemelha-se a quem quisesse saborear o gosto
*O outro concordou sorrindo, orgulhoso, sabendo-se excluído. do vinho tendo a boca sempre cheia dele.
*Lá se foi Quelemente, gritando dentro da noite, até que a água lhe encheu a boca aberta, lhe tapou *Cabe à mulher casar-se o mais cedo possível e ao homem ficar solteiro o mais tempo que pode.
o nariz, lhe encheu os olhos arregalados, lhe entupiu os ouvidos abertos à voz da mãe que não *A minha especialidade é ter razão quando os outros não a tem.
respondia, e foi deixá-lo, empanzinado, nalgum perau distante, abaixo da cachoeira. *Quando um tolo pratica um ato de que se envergonha, declara sempre que fez o seu dever.
*Quem nunca esperou não pode desesperar nunca.
22 23
*O seu cérebro, torturado pela miséria, era fértil e brilhante, engendrando planos verdadeiramente *Não adianta chorar pelo chopinho derramado, como fazem sempre os cariocas.
geniais, graças aos quais sempre se saía galhardamente das aperturas diárias com que o destino cruel *Seremos governados por um casal peronista tardio, misturado a um Jesus político, enquanto em
o torturava. Brasília o neochaguismo nos representará no Senado.
*Recebera convite para um banquete de cerimônia, em homenagem a um alto figurão que estava *Estou enojado dos dias de hoje, nesta torpe função de comentarista, em que as notícias batem-me
necessitando de claque. na cara com pedras.
*O nosso herói não estava satisfeito, porque não conseguira em convite para o filho. *Sempre que escrevo sobre a violência me dá uma sensação de inutilidade.
*À hora marcada, Joaquim, acompanhado do rapaz, dirige-se para o salão, onde se celebraria a *A discoteca explodiu em sangue em Bali e eu pensei, com ódio, por um segundo: por que não jogamos
cerimônia. logo uma bomba atômica em Meca e torramos aqueles milhões de árabes sujos?
*Antes de penetrar no recinto, diz a seu filho faminto: fica firme aqui na porta um momento, porque *Vejo que no Brasil o feminismo se vulgarizou numa liberdade de “objetos”, produziu mulheres
preciso dar um jeito a fim de que tu também tomes parte no festim. livres como coisas, livres como produtos perfeitos para o prazer.
*Já estavam todos os convidados sentados nos respectivos lugares, na grande mesa em forma de *Só vejo meninas oferecendo a doçura total, todas competindo no mercado, em contorções eróticas
ferradura, quando, ao começar o bródio, Joaquim se levanta e exclama: Senhores, em vista da desesperadas porque não têm mais o que mostrar.
ausência do Sr. Vigário nesta festa, tomo a liberdade de benzer a mesa. *Elas querem dinheiro, claro, marido, lugar social, respeito, mas posam como imaginam que os
*Voltando-se para o rapaz, ordena, autoritário e enérgico: entra de uma vez, menino! Não vês que homens as querem.
estes senhores te estão chamando? *A História tem, de vez em quando, uns ataques epilépticos – me disse outro dia o Cacá Diegues.
*Logo que Santo Ivo morreu, encaminhou-se ao Céu e bateu à porta, que São Pedro não se atreveu *Como sou sujo e pobre, vocês nunca me olharam durante décadas.
a abrir, subestimando as razões do bom santo. *Está tudo tão chato no Brasil, que vou escrever sobre os chatos.
*Faço o que quiseres, mas não acho que deva permitir a entrada a um advogado, não só porque nem *Não sei porquê mas, sempre que desejo meditar venho aqui para esse banheiro da Casa Branca,
um tem assento entre os santos, mas também porque, muito ao contrário, juraria que se encontram com espelhos em paralelo, que me multiplicam ao infinito.
no inferno todos os de sua profissão. *Cresci ouvindo duas teses divergentes, uma dupla mensagem: ou o Brasil era o país do futuro ou
*Como bom advogado, teve tão convincentes razões para rebater as de São Pedro, que este lhe era uma zorra sem nome, um urubu caindo no abismo.
permitiu finalmente entrar no Céu, mas com a condição de permanecer junto à porta. *Se você acordou mal hoje, é melhor não ler este artigo.
*O hóspede entrou calmamente, sentou-se no lugar indicado por Pedro, que foi participar a Nosso *Não esqueço do ataque de riso que tive, muitos anos atrás, quando vi a autocrítica de um alto
Senhor o sucedido. dirigente do PC da China, durante a Revolução Cultural.
*Havia resolvido que nenhum advogado entraria no Céu, e tinha cá minhas razões para isso. *Naquele diz o ministro chegou de mau humor ao seu gabinete e, imediatamente, mandou chamar o
*Não deixes que ele se misture com os outros santos, pois do contrário acabarão no Céu a paz e a boa diretor-geral da Secretaria.
harmonia. *Este, como se movido fosse por uma pilha elétrica, estava, poucos instantes depois, sem presença de
*Aborrecido e cabisbaixo, voltou Pedro aonde estava Ivo e comunicou-lhe as ordens dadas pelo Sua Excelência, que o recebeu com duas pedras na mão.
Senhor. *Como os pais se esqueceram de mandar educá-lo, e ele mal sabia ler e escrever, o mais que arranjou
*O advogado encolheu os ombros e, à guisa de passatempo, começou a entabular conversa com Pedro. foi ser soldado do exército e, depois de obtida a sua baixa, contínuo de secretaria.
*Não estás vendo, grande ingênuo, que qualquer dia Deus pode ter a ideia de te destituir, sem mais *Releva dizer que o Romualdo só deixou crescer as barbas depois de contínuo.
nem menos, do cargo que com zelo vens desempenhando há tanto tempo, sem que possas fazer valer *Alto, gordo, ereto, com aquelas opulentas suíças brancas a emoldurar-lhe a cara, sem bigodes, mais
seus direitos? parecia um magistrado, cuja figura estava ao pintar para presidir a um júri sensacional, e essa ilusão
*Preciso de um contrato em que se declare que sou o porteiro do Céu para todo o sempre. só se desfazia quando ele falava, porque o Romualdo, benza-o Deus!, por mais que compusesse a sua
*Tudo isso são trapaças daquele advogadozinho que tens na porta e que soube encher-te a cabeça. fisionomia austera e veneranda, tinha o estilo e a prosápia do “povo da lira”.
*Anda, Pedro, corre e manda-o entrar imediatamente, pois prefiro tê-lo perto de mim e vê-lo junto *Embora seja necessário esclarecer a origem das fotos e os motivos da divulgação inesperada, tem
à porta. importância secundária a identificação do ser humano que aparece naquelas imagens ultrajantes.
*Joaquim estava desempregado e lutava com grandes dificuldades para se manter. *Seja o jornalista Herzog, seja o padre Leopoldo, ali está um homem – um homem brutalizado por
*A sua situação ainda mais se agravava pelo fato de ter que dar assistência a um filho, rapaz torturadores a serviço da ditadura militar.
inexperiente que também estava no desvio. *Norberto Mânica, o “rei do feijão”, lidera o grupo dos acusados de planejar o massacre dos fiscais
*Não sei o que fazer com ele, é de outra maneira que procuro o meu nada. em Unaí.
*Capturou o sanduíche de mortadela e, com expressão faminta, devorou-o com poucas dentadas. *Animados com o triunfo de candidato a prefeito Antério Mânica, suspeito de integrar o grupo de
*O capitalismo onipotente faz o que quer no mundo, e no plano ético os EUA estão virando a Nigéria. mandantes do massacre de quatro funcionários do Ministério do Trabalho ocorrido no começo do
*Nós, os idiotas da esperança, sentamos no meio fio e choramos lágrimas de esguicho. ano, alguns nativos de Unaí passaram a exibira arrogância dos impunes frente a cobranças reiteradas
*Existe um avião que explode, um piano que cai sobre tua cabeça, um infarto fulminante. por homens de bem.
*Eram tragédias inevitáveis, mas foram preparadas como um bolo maldito. *O pretexto é a preservação da imagem de um celeiro de trabalhadores exemplares, fustigada por
*Não precisa mandar repórter para filmar os mortos. jornalistas irresponsáveis.
*A única tragédia que não foi prevista pelos podres poderes foi a violência. *Não podiam prescindir da influência eleitoral indispensável a famílias decididas a mandar no Brasil.
*Ninguém contava com que um dia os miseráveis teriam armas e dinheiro da cocaína. *Norberto resolveu que o braço político seria o irmão Antério, agora com 49 anos.
*Como o presidente da República diz que foi pegado de surpresa? *Só depois de apertar muitas vezes a campainha foi que escutou o rumor de passos descendo a escada.
*É inacreditável, doentio que um governo com três agências de energia são soubesse do perigo. *Na promiscuidade dos bairros que crescem em sentido vertical, há binóculos de comprovada
*Um governo que nunca soube se explicar à opinião pública ficou com medo de dar notícias ruins e experiência sexual.
resolveu-se auto-enganar, tipo, tudo bem, Deus é brasileiro.
*No desejo de combater o crônico pessimismo brasileiro, o governo inventou a bandeira tucana do FIM
otimismo irresponsável.
*No país só temos bacharéis, literatos e ideólogos que odeiam o mundo real.
*Houve também o inferno das sabotagens da oposição e o inferno dos conchavos dos coronéis e
fisiológicos, que não deram um dia de trégua a FHC.
*A única vantagem desse apagão é descobrirmos que esse papo de Brasil moderno é furado.
*Não tivemos guerra, não tivemos revolução, mas teremos o apagão.
1 2
UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ de sujeito indeterminado. Correntemente, o que se percebe é a intuição de sujeito
Faculdade de Filosofia D. Aureliano Matos – L. do Norte indeterminado em todas as ocorrências sob a fórmula –
Curso: Letras
Disciplina: Sintaxe VERBOsingular-se
Professor: Bento
– incluindo-se, logicamente, a não observância da requerida concordância verbal.
INDETERMINAÇÃO DO SUJEITO EM PORTUGUÊS Soa-nos mais “natural” a expressão –
a)Colocar o verbo na terceira pessoa do plural Fora das condições estritamente gramaticais, ora reveladas, a indeterminação
do sujeito, que absorve diretamente ingerências do nível semântico-pragmático-
VERBO3ª pessoa/plural situacional, pode se pautar em função de outros mecanismos:
b)Adjungir ao verbo no singular a partícula “se”, chamada (por isso mesmo) de a)Modalizar o verbo na forma infinitiva (ex., “não pisar na grama”);
índice de indeterminação do sujeito
b)Modalizar o verbo no imperativo (ex., “não pise na grama”);
VERBOsingular-se
c)Utilizar-se da segunda pessoa do singular/plural, como também da terceira pessoa
Estes recursos devem ser interpretados conforme o contexto linguístico-discursivo, do plural (ex., “você é responsável por seus atos” / “nós somos responsáveis por
pois que nem sempre as fórmulas – nossos atos” / “eles – os estrangeiros – têm ressalvas quanto aos brasileiros”), ou
expressões substantivas equivalentes.
VERBO3ª pessoa/plural
Conforme o contexto discursivo, em sentenças como estas, apesar de
& estipularem sujeitos gramaticais, inclusive até explícitos (como na letra “c”), a noção
subjacente em si é de natureza tão vaga e abstrata, que não deixam de representar
VERBOsingular-se indeterminação de sujeito. Quando se diz –
– reportam-se a uma indeterminação do sujeito; pode-se tratar de sujeito implícito, *Não pisar na grama.
ou desinencial, no primeiro caso, ou (conforme certa leitura) sujeito posposto no
segundo caso. – o sujeito é qualquer um que venha a tomar ciência desta informação, afixada a uma
No que concerne à leitura de sujeito posposto, é preciso relatar que o modelo plaqueta, e não apenas João, Maria, Antonieta... Naturalmente, será o contexto
linguístico tradicional só aceita a fórmula – discursivo que, em todo caso, definirá a análise: esta mesma sentença poderia estar
direcionada a alguém em particular, a depender da situação comunicativa.
VERBOsingular-se Compreensão parecida talvez deva ser invocada quando o sujeito gramatical
é representado pelos chamados pronomes indefinidos (como “alguém”, “todos”...) ou
– como indeterminação do sujeito quando se trata de verbos intransitivos ou verbos expressões equivalentes (“um homem”, “uma pessoa”, como em “uma pessoa esteve
transitivos indiretos. Em verbos transitivos diretos, o sujeito é, nesta linha de aqui procurando por você”, etc.). Enfim, quando a concepção de indeterminação do
raciocínio, posposto (ou seja, é o elemento sintático-semântico que vem adiante do sujeito transcende os limites estritamente gramaticais, a complexidade analítica
verbo) e, além disso (ou por conta disso), haveria a necessidade de aplicação da amplia-se vertiginosamente.
concordância verbal, sujeito/verbo.
Não obstante, na realidade linguística do português contemporâneo, parece fim
fazer pouco sentido a manutenção destes parâmetros, normativos, para a definição
1 2
TEXTO: Se eu pudesse copiar teu lume transparente que contemplou a fronte amada, bela e
suspirosa, da coluna grega à janela gótica.
Círculo Vicioso 4.
[Machado de Assis]
Se eu pudesse copiar o teu transparente lume que contemplou suspirosamente a
fronte amada e bela da grega coluna à gótica janela.
Bailando no ar, gemia inquieto vagalume:
“Quem me dera que fosse aquela loura estrela, 5.
Que arde no eterno azul, como uma eterna vela!”
Mas a estrela, fitando a lua, com ciúme: Se eu pudesse copiar teu transparente lume que contemplou a suspirosa fronte,
amada e bela, da coluna grega à gótica janela.
“Pudesse eu copiar-te o transparente lume,
Que, da grega coluna à gótica janela, 6.
Contemplou, suspirosa, a fronte amada e bela!”
Mas a lua, fitando o sol, com azedume: Se eu pudesse copiar teu lume transparente e suspirante que contemplou a fronte
amada e bela da coluna grega à janela gótica.
“Mísera! Tivesse eu aquela enorme, aquela
Claridade imortal, que toda a luz resume!”
Mas o sol, inclinando a rútila capela:
O propósito, aqui, consiste em verificar:
“Pesa-me esta brilhante auréola de nume…
Enfara-me esta azul e desmedida umbela… a)Se a construção interpretativa está de acordo com os padrões sintáticos da língua;
Por que não nasci eu um simples vagalume?” b)Uma vez conforme a sintaxe da língua, se a construção interpretativa está de
acordo com o(s) sentido(s) veiculado(s) no texto-fonte.
A estrela falando para a lua: *agramaticais e, por conseguinte, assemânticas (ou com rigoroso prejuízo
semântico);
“Pudesse eu copiar-te o transparente lume, *gramaticais, mas assemânticas (ou semanticamente destoantes do sentido textual);
Que, da grega coluna à gótica janela, *gramaticais e semânticas (ou semanticamente adequadas ao sentido textual).
Contemplou, suspirosa, a fronte amada e bela!”
3 4
1. 3.
Se eu pudesse copiar o teu lume transparente da grega coluna à gótica janela, Se eu pudesse copiar teu lume transparente que contemplou a fronte amada, bela e
contemplou a lua suspirosa, a fronte amada e bela! suspirosa, da coluna grega à janela gótica.
Se... O Se... O
cv cv
S V
S V ↓ ↓
↓ ↓ eu pudesse copiar teu lume transparente que contemplou
eu pudesse copiar o teu lume transparente da grega coluna a fronte amada, bela e suspirosa,
à gótica janela, contemplou a lua da coluna grega à janela gótica
suspirosa, a fronte amada e bela
gramaticalidade/
agramaticalidade/ assemanticidade
assemanticidade ↓
↓ o teu lume transparente contemplou a fronte
desprovido de sentido amada, bela e suspirosa, da coluna grega
palpável à janela gótica
2. 4.
Se eu pudesse copiar-te o transparente lume que a fronte amada e bela, da grega Se eu pudesse copiar o teu transparente lume que contemplou suspirosamente a
coluna à gótica janela, contemplou suspirosa. fronte amada e bela da grega coluna à gótica janela.
Se... O Se... O
cv cv
S V
S V ↓ ↓
↓ ↓ eu pudesse copiar o teu transparente lume que contemplou
eu pudesse copiar o teu transparente lume que a fronte suspirosamente a fronte amada e bela
amada e bela, da grega coluna à gótica da grega coluna à gótica janela
janela, contemplou suspirosa.
gramaticalidade/
gramaticalidade/ assemanticidade
semanticidade ↓
↓ o teu transparente lume contemplou
a fronte amada e bela (da coluna grega suspirosamente a fronte amada e bela, da grega
à gótica janela) contemplou coluna à gótica janela
suspirosa o teu lume transparente
5 1
cv
S V J. Bento
↓ ↓
eu pudesse copiar teu transparente lume que contemplou
a suspirosa fronte, amada e bela, da
coluna grega à gótica janela MAL SECRETO
Raimundo Correia
gramaticalidade/
assemanticidade
↓ Se a cólera que espuma, a dor que mora
teu transparente lume contemplou N´alma e destrói cada ilusão que nasce;
a suspirosa fronte, amada e bela, Tudo o que punge, tudo o que devora
da coluna grega à gótica janela
O coração, no rosto se estampasse;
6.
Se se pudesse o espírito que chora
Ver através da máscara da face,
Se eu pudesse copiar teu lume transparente e suspirante que contemplou a fronte
Quanta gente talvez que inveja agora
amada e bela da coluna grega à janela gótica.
Nos causa, então piedade nos causasse!
Se... O
Quanta gente que ri, talvez consigo
Guarda um atroz, recôndito inimigo,
Como invisível chaga cancerosa!
cv
Quanta gente que ri, talvez, existe
S V
Cuja ventura única consiste
↓ ↓
Em parecer aos outros venturosa!
eu pudesse copiar teu lume transparente e suspirante
que contemplou a lua suspirosa,
a fronte amada e bela da coluna
ANÁLISE
grega à janela gótica
Período1
gramaticalidade/
Se a cólera que espuma se estampasse no rosto, talvez tanta gente que nos causa
assemanticidade
inveja agora, nos causasse piedade.
↓
teu lume transparente e suspirante
contemplou a lua suspirosa, a fronte O1
amada e bela, da coluna grega
à janela gótica Se a cólera que espuma se estampasse no rosto, talvez tanta gente que nos causa
fim inveja agora, nos causasse piedade.
2 3
O2 Período3
Talvez tanta gente que nos causa inveja agora, nos causaria piedade. Se tudo o que punge se estampasse no rosto, talvez tanta gente que nos causa inveja
agora, nos causasse piedade.
O3
O1
Que [= tanta gente] nos causa inveja agora.
Se tudo o que punge se estampasse no rosto, talvez tanta gente que nos causa inveja
O4 agora, nos causasse piedade.
O5 Talvez tanta gente que nos causa inveja agora, nos causaria piedade.
Se a dor que mora na alma e destrói cada ilusão que nasce, se estampasse no rosto, O4
talvez tanta gente que nos causa inveja agora, nos causasse piedade.
Tudo o que punge se estampa no rosto.
O1
O5
Se a dor que mora na alma e destrói cada ilusão que nasce, se estampasse no rosto,
talvez tanta gente que nos causa inveja agora, nos causasse piedade. Que [= o = aquilo] punge.
O2 Período4
Talvez tanta gente que nos causa inveja agora, nos causaria piedade. Se tudo o que devora o coração se estampasse no rosto, talvez tanta gente que nos
causa inveja agora, nos causasse piedade.
O3
O1
Que [= tanta gente] nos causa inveja agora.
Se tudo o que devora o coração se estampasse no rosto, talvez tanta gente que nos
O4 causa inveja agora, nos causasse piedade.
A dor que mora na alma e destrói cada ilusão que nasce se estampa no rosto. O2
O5 Talvez tanta gente que nos causa inveja agora, nos causaria piedade.
O5 O1
Que [= o = aquilo] devora o coração. Talvez exista tanta gente que ri, cuja única ventura consista em parecer venturosa
aos outros.
Período5
O2
Se se pudesse ver o espírito que chora através da máscara da face, talvez tanta gente
que nos causa inveja agora, nos causasse piedade. Que [= tanta gente] ri.
O1 O3
Se se pudesse ver o espírito que chora através da máscara da face, talvez tanta gente A única ventura cuja [= sua = de tanta gente] consiste em parecer venturosa aos
que nos causa inveja agora, nos causasse piedade. outros.
O2 O4
Talvez tanta gente que nos causa inveja agora, nos causaria piedade. Tanta gente parece venturosa aos outros.
O3
O4 fim
O5
Período6
Tanta gente que ri, talvez guarde consigo um atroz, recôndito inimigo, como
invisível chaga cancerosa.
O1
Tanta gente que ri, talvez guarde consigo um atroz, recôndito inimigo, como
invisível chaga cancerosa.
O2
Período7
Talvez exista tanta gente que ri, cuja única ventura consista em parecer venturosa
aos outros.
1 2
Oinicial Ocoordenada
Voc S P Atit
S P S P
mod V CV 1,2 PRED AGP ADV
Existente ênfase Intransitivo algo/ atributo {agente} modo
Inexistente intensidade Transitivo alguém modo lugar
negação Ligação lugar tempo tempo
dúvida Passivo assunto função/
finalidade (Osub) V (Osub) (Osub) V (Osub)
causa
meio/
instrumento
companhia
comparação
conformação ISTO mais AQUILO
contrariedade [aditiva]
condição
consequência
assunto ISTO mas AQUILO
proporção [adversativa]
valor
Não confundir explicação (coordenação) com causa (subordinação): UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ
Faculdade de Filosofia D. Aureliano Matos – L. do Norte
*Aconteceu alguma coisa com o João, porque ele nunca chega atrasado. Curso: Letras / Disciplina: Sintaxe / Professor: Bento
[dado] [explicação]
MODELOS ESTRUTURAIS DE ORAÇÃO
J. Bento
*GRAMÁTICA TRADICIONAL
O
É DITO O QUE É DITO [DADO] COM BASE NESTA INFORMAÇÃO [EXPLICAÇÃO]
Voc S P Atit
classificação
dependente da
proposta de
Osub Osub Osub sentido
(acepção)
inscrita na oração
fim
*BENTO *KOCH
O O
Pred Voc
TÉCNICA GERAL DE DESCRIÇÃO
Δ Δ
VERBO
X Y
Suj NV Aux NdP OD CP Pv Atr AA AO AC
↓ ↓ ↓ ↓ ↓ ↓ ↓ ↓ ↓
+CV ... -CV -CV -CV -CV -CV -CV -CV
em que X/Y: ... ... +Ant +Ant -Ant +Ant -Ant +Ant +Ant
... ... +Q +Q +Q -Q -Q -Q -Q
a]Se ocorrem na construção, estão impedidos de não-ocorrer ... ... -CN +CN +CN +CN -CN -CN -CN
[agramaticalidade/alteração de sentido/indeterminação do sujeito] ... +pNdP -pNdP -pNdP -pNdP -pNdP -pNdP -pNdP -pNdP
b]Se não ocorrem na construção, estão – ... ... +Cl +Cl +Cl +Cl +Cl -Cl +Cl
*impedidos de não-ocorrer ... ... -PA -PA -PA +PA -PA +PA -PA
[agramaticalidade/alteração de sentido/indeterminação do sujeito]
*impedidos de ocorrer
[alteração de sentido/determinação do sujeito]
4 1
J. Bento
ESTRUTURA SINTÁTICA
Suj Predicado Obj Dat Gen Nom Acus Abl Lim ou
ESTRUTURA MORFOSSINTÁTICA
signoX signoY/Z/W
D E L P R T F V M I C A
↓ ↓
núcleo periferia
determinado determinante
*ROCHA LIMA
vocabular
nominal
* V Od Oi Cr Cc Agp Pred (Adv)
verbal
Nota:
fim a)A diferença essencial entre complemento e adjunto é que o complemento é uma exigência estrutural
(pertencente ao sistema linguístico stricto sensu), enquanto o adjunto é indicação comunicativa
(conforme a situação de fala).
b)O complemento, como termo obrigatório, age sob duas vias antagônicas:
*obriga à atualização física → X;
*obriga à não-atualização física → ∆.
O adjunto, como termo facultativo, deve ser entendido como:
*explícito → X [enunciado];
*implícito → Ø [compreensível]
2 3
O nível vocabular (ou morfológico) assim se faz, em tese: O nível nominal (ou sintagmático) assim se faz, em tese:
ESTRUTURA SINTÁTICA
ESTRUTURA SINTÁTICA ou
ou ESTRUTURA MORFOSSINTÁTICA
ESTRUTURA MORFOSSINTÁTICA
signoX signoY/Z/W
signoX signoY/Z/W ↓ ↓
↓ ↓ núcleo periferia
núcleo periferia determinado determinante
determinado determinante
complemento ∆ adjunto Ø
complemento ∆ adjunto Ø
Nominal
vocabular
ORAÇÃO NO TEXTO
signoX signoY/Z/W
↓ ↓
núcleo periferia
determinado determinante
SIGNIFICANTE SIGNIFICADO
complemento ∆ adjunto Ø
Verbal
–, é uma estrutura que comporta a seguinte urdidura fundamental –
ORAÇÃO
– em que, de maneira geral: (Só lembrando, de passagem, que a estrutura variável postulada no esquema acima
termina sendo – por óbvio – uma premissa restritamente teórica, com viés
a)o sujeito é relativamente obrigatório; detidamente explanatório, pois que será preciso distinguir, no estudo de um sistema
b)o(s) complemento(s) é(são) relativamente facultativo(s); linguístico particular e a depender do grau de abstração assumido, as eventuais
c)o(s) adjunto(s) é(são) meramente circunstancial(is)[= dependente(s) do ato comunicativo] estruturas subjacentes, diversificadas, que compõem o organismo sintático do
respectivo sistema.)
Mas acontece que, nos discursos realizados, consumados em textos De todo modo, o que vamos encontrar nos textos reais são, numa palavra,
(escritos/orais), os elementos que configuram a oração nem sempre são devidamente orações reais, e não orações ideais, as quais emanam da análise linguística
explicitados (há elipses ou afins), ou organizados sob a chamada forma canônica (há implementada, estando, por conseguinte, atreladas ao mecanismo lógico-dedutivo
inversões, truncamentos ou afins), ou prontamente isolados dos demais construtos aplicado, ou pela competência linguística do falante nativo, ou pelo arcabouço
oracionais que concorrem para a feitura textual (há intercalações, conglomerações, teórico-metodológico do especialista em linguagem verbal. No que tange ao
implementos coesivos). conhecimento especializado, nada obsta que a diretriz seguida possa provir de
Poderíamos dizer, em síntese e em termos aproximadamente saussurianos ou esquemas equivalentes ao já esboçado anteriormente (e agora retomado) –
algo parecido, que uma coisa é ver a oração como estrutura da língua, outra coisa é
experimentar a oração como investidura da fala.
Dito de outra maneira (e considerando que isto se passa também, ORAÇÃO
impreterivelmente, com os demais constituintes linguísticos, de todos os níveis e de
todas as naturezas), é como se tivéssemos a correlação entre um elemento variável –
a oração originária na perspectiva da língua –, que se produz sob distintas variantes
– as orações derivadas na perspectiva da fala –, conforme uma série bem complexa
de fatores discursivo-textuais:
ORAÇÃO
↑
[fala]
VARIANTES
1 2
1]sujeito: João
PERÍODO E ORAÇÃO 2]predicado: comprou que (= a casa)
De maneira simplória, período é uma construção sintática que engloba uma ou – pelo menos quando a consideramos sob os aspectos em que se estrutura
mais orações, caraterizada pela enunciação completa de uma trajetória de superficialmente:
pensamento. Oração é uma construção sintática composta de sujeito e predicado.
Assim, podemos dizer que todo período consiste, a rigor, de uma oração, mas nem que João comprou
toda oração se define como período.
Por exemplo, em – Em tais circunstâncias, quem poderia, sequer, articular alguma modalidade de
pensamento, ao auscultar uma sentença como esta? Logicamente, se retiramos a
*A casa que João comprou é muito bonita. referida oração do seu contexto original e a recompomos em sua canonicidade –
a)um período =
&
Observemos que –
UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ b1 - dialogais, que pertencem à alçada das interações comunicativas interpessoais: vocativos e
Faculdade de Filosofia D. Aureliano Matos – L. do Norte atitudinais;
Curso: Letras b2 - informacionais, que se referem ao conteúdo discursivo propriamente dito, enredado pelo sentido
Disciplina: Sintaxe do verbo: os demais circunstanciais, incluindo os modificadores verbais.
Professor: Bento
2.Os periféricos –
– podem ser duplicados, no sentido de haver mais de um na construção, do acordo com a natureza
J. Bento semântica do verbo:
– a análise sintática tradicional prevê a distinção entre objeto direto (complemento verbal1) e objeto
indireto (complemento verbal2).
VERBO {você} → vocativo
↓ 3.De uma maneira geral, a grande questão envolvendo os periféricos essenciais –
modificadores {com tal juízo...} → atitudinal
- {eu/alguém/algo/Δ} → sujeito
{eu/alguém/algo/Δ} → sujeito - {(a/para)eu/alguém/algo/Δ} → complemento verbal
- {com o atributo tal/Δ} → predicativosujeito/objeto
{(a/para)eu/alguém/algo/Δ} → complemento verbal - {por eu/alguém/algo/Δ} → agente da passiva
neutro
negação {com o atributo tal/Δ} → predicativosujeito/objeto – particularmente –
ênfase
intensidade {por eu/alguém/algo/Δ} → agente da passiva - {(a/para)eu/alguém/algo/Δ} → complemento verbal
dúvida - {com o atributo tal/Δ} → predicativosujeito/objeto
{em/de/para lugar tal}
{em tempo tal} – e em especial –
{de modo tal}
{sobre assunto tal} - {(a/para)eu/alguém/algo/Δ} → complemento verbal
{por causa/motivo tal}
{com finalidade/função de tal} – é saber se, quando estão ausentes na construção, mas são teoricamente aceitos pelo verbo, deverão
{por meio/instrumento (de) tal} ser interpretados como inexistentes ou elípticos. Uma solução é verificar a alteração semântica do
{acompanhado de talcompanhia} adjunto adverbial verbo com a inclusão de um elemento hipotético na referida função: se houver uma alteração
{pelo valor tal} significativa, inexistência (Δ); caso contrário, elipse (Ø). Em –
{como talcomparação }
{conforme tal} *João considera Pedro.
{apesar de tal}
{com a condição tal} – há inexistência do predicativo, pois a alocação de uma hipótese muda a semântica do verbo:
{com a consequência tal}
{à proporção tal} *João considera Pedro. = respeita
*João considera Pedro [inteligente] = julga
Notas adicionais: Da mesma forma com:
1.Os periféricos se classificam em: *João comeu. = alimentou-se
*João comeu uma melancia. = ingeriu
a)Essenciais, indicados pelas setas pontilhadas, e existem ou não existem (Δ) de acordo com a
natureza semântica do verbo; no caso do agente da passiva, a existência/inexistência se relaciona à Como é possível estipular que a regra geral é de que a ausência/presença altera a significação
estrutura ativa/passiva do verbo (estrutura passiva: ser + particípio + preposição). do verbo, devemos aplicar este princípio à análise sintática, considerando a ausência como
inexistência. Esta regra geral, não obstante, é sistematicamente quebrada nos casos que envolvem os
b)Circunstanciais, subdivididos em:
3 4
chamados objeto indiretos. Com efeito, aqui se passa o contrário, pois os objetos indiretos tendem a *Joao é inteligente em companhia de Pedro.
poder ser apagados quando se adjungem a objetos diretos na mesma construção. O exemplo –
– “em companhia de Pedro” deve ser interpretado mais como condição ou tempo, do que mesmo
*João deu um relógio para a namorada. companhia, que se revelaria numa frase como –
– é ilustrativo nesta direção. Sob a oração – *João foi ao teatro com Maria.
– pode-se argumentar que o objeto indireto está apenas elíptico (Ø). Afinal de contas, “dar”, no - {em/de/para lugar tal}
sentido aplicado à oração, não prescinde do “receptor do relógio”, ou a quem foi dado, não se - {em tempo tal}
alterando, portanto, a sua configuração semântica. - {de modo tal}
Lembremos, de passagem, que estamos tratando de elipse linguística, e não de elipse discursiva,
que pode atingir qualquer elemento da construção, inclusive o verbo. A elipse discursiva é recuperada – podem ser tidos como universais, por se adequarem, praticamente, a todo e qualquer verbo da
pelo contexto de fala, linguístico ou extralinguístico; já na elipse linguística, recorre-se à estrutura da língua.
língua em si. Nesta perspectiva, o verbo “comer”, por exemplo, deve ser linguisticamente –
g)Por mais que venham a ser aceitos isoladamente por determinado verbo, nenhuma construção pode
alguém comer algo ser composta integrando todos os periféricos. A frase se torna, quando não agramatical, inaceitável
por razões pragmáticas, psicolinguísticas (memória) ou adjacentes.
– razão pela qual nada obsta que haja uma interpretação única de um verbo que exige complemento
verbal, a despeito da ausência ocorrida em –
*João comeu.
fim
– que será sempre analisada, por elipse, como –
– ainda que não se saiba – digamos – “o que foi comido”, por não se ter a informação contextual
devida.
A menos que se adote o argumento de que em “considerar” há uma alteração significativa, em
contraste com “comer”, cuja alteração não se mostraria tão relevante, podemos manter que, em
ambos os casos, há alteração semântica no verbo que justifica o posicionamento de item inexistente
(Δ), e não de item inexistente para “considerar” e item elíptico para “comer”.
a)Um ou mais deles podem exercer a função de periférico essencial, quando é reclamado pelo sentido
do verbo; o caso mais notável é {em/de/para lugar tal}, como na oração –
- {como talcomparação }
- {apesar de tal}
- {com a condição tal}
- {com a consequência tal}
- {à proporção tal}
c)O periférico {pelo valor tal} é específico de verbos cuja significação envolve transação monetária
ou equivalente: “comprar”, “vender” etc.
d)O periférico {sobre assunto tal} é específico dos chamados verbos dicendi: “dizer”, “falar”,
“perguntar” etc.
e)Verbos há que podem rejeitar ou dificultar este ou aquele periférico circunstancial; na construção
–
1 2
J. Bento
2.Rede de especificadores e parâmetro estrutural
1.Oração
Especificador é o nome que se dá a cada um dos elementos lógico-semântico-
O
discursivos que servirá para complementar o construto oracional, ladeando o núcleo
verbal. Sua lista inclui os seguintes:
ESPECIFICADOR
↓
algo
Esp-esq Esp-dir alguém
atributo/
modo
lugar
Estrutural Mod V Estrutural Adestrutural tempo
assunto
valor
função/
Δ Δ Ø finalidade
causa
expl.(des.)/indet. expl. expl./indet. meio/
[+] [+/-] [+/-] [+] instrumento
↓ ↓ ↓ ↓ companhia
algo neg. algo valor comparação
alguém duv. alguém função conformação
. enf. atributo finalidade contrariedade
intens. modo causa condição
lugar meio consequência
tempo instrumento proporção
assunto companhia
comparação
conformação Nota: A colocação de barrinhas entre determinados especificadores visa chamar a atenção para
contrariedade certas dificuldades em relação à distinção semântica dos respectivos especificadores.
condição
consequência Cada verbo, ou categoria verbal, em particular, devido à sua natureza lógico-
proporção
N
semântica, aceita, resiste a ou rejeita membros da rede de especificação. É por essa
razão que um especificador como {valor}, por exemplo, é praticamente privativo de
Notação: verbos como [comprar], [vender] etc., e normalmente proibitivo em verbos como
[amanhecer], [sonhar] etc.:
Esp-esq. → especificador (estrutural) esquerdo
Esp-dir. → especificador (estrutural/adestrutural) direito *?João sonhou por 10 reais.
Mod. → modificador
V → verbo
Expl. → especificador (estrutural/adestrutural) explícito Faz sentido, por conseguinte, que estabeleçamos uma classificação dos verbos,
Des. → especificador (estrutural) explícito por desinência verbal com base nos especificadores, em aceitos/resistentes a/rejeitados, em que “resistentes
Indet. → especificador (estrutural/adestrutural) indeterminado a” possa representar uma faixa limítrofe entre aceitar totalmente e rejeitar
Δ → índice de impedimento estrutural de ocorrência/não-ocorrência, pelos fatores: totalmente, até quanto isto seja uma realidade efetiva a nível do sistema linguístico
a]alteração de sentido
b]gramaticalidade
considerado.
3 4
Do ponto de vista sintático-semântico, também podemos classificar os – que, à direita do verbo, dependem da auscultação direta sobre a caracterização
especificadores em três categorias. Levando em consideração a estrutura sintática sintático-semântica do item verbal analisado; e essencialmente adestruturais –
de línguas como o português, dividimos a tabela de especificadores em:
valor
O função/
finalidade
causa
meio/
instrumento
companhia
comparação
conformação
contrariedade
Especificador-esquerdo Verbo Especificador-direito condição
consequência
proporção
alteração de sentido, agramaticalidade ou alteração sintática (no caso do *João está doente.
especificador estrutural direito); *?Ø está doente.
b)Se há um especificador estrutural implícito, este é, de fato, quando não um *?João está tarde.
especificador estrutural requerido (para obtenção da gramaticalidade), um
especificador estrutural impedido de explicitação na estrutura sintática avaliada,
devido à alteração de sentido ou alteração sintática (no caso do especificador b)O verbo “estar”, quando exige a ausência de especificador esquerdo, não admite
estrutural direito como índice de indeterminação do sujeito). a sua presença, por agramaticalidade; ao mesmo tempo, obriga o especificador
direito a se referir a tempo:
Assim é que podemos estipular um modelo geral de descrição dos itens verbais
da língua, na perspectiva da especificação estrutural:
*Ø está tarde.
*?algo/alguém está tarde.
{especificador-esquerdo/Δ}VERBO{especificador-direito/Δ} c)O verbo “estar”, quando acionado um dos especificadores estruturais direitos,
torna os demais especificadores estruturais previstos, adestruturais; quando não
acionado nenhum especificador direito, agramaticaliza-se a oração:
ESTAR b)O verbo “considerar”, quando exige a presença de especificador direito, não
admite a sua ausência, por alteração de sentido, e vice-versa – quando exige a
ausência do especificador direito, não admite a sua presença, por alteração de
sentido:
COMER
– em que a seleção de uma das especificações à direita dispensa as outras
especificações, rebaixando-as à categoria de especificação adestrutural.
Além disto, é conveniente verificar construções do tipo –
*Está frio. (em que “frio”, para todos os efeitos, toma a função de [tempo])
*O tempo está frio.
1 2
As duas construções são gramaticais, e se faz necessário explicar suas ocorrências
em razão da análise sintática ora proposta. Penso que se trata de variantes sintáticas
livres, ou seja, são estruturações sintáticas abonadas pelo sistema para representar
o mesmo ordenamento semântico. Podemos arriscar que a segunda construção
decorre exatamente da intuição linguística do falante a respeito do modelo de
alocação quase absoluta do sujeito em sentenças do português. Situações como esta
se parecem, mais ou menos, com o que atestamos em sentenças com o verbo “haver” {algo-alguém}COMER{algo} {algo-alguém}COMER{Δ}
Façamos o mesmo com o verbo “comer”, relativamente a alimento: E assim, reformulemos o diagrama proposto, de compreensão única para verbos do
tipo “comer”:
{algo-alguém/Δ}COMER{algo/Δ}
COMER
a)O verbo “comer” exige a presença de especificador esquerdo, não admitindo a sua
ausência, por agramaticalidade:
*?Comeu a melancia.
9 10
Finalmente, elaboremos a descrição sintático-semântica do verbo 3.Enredo simplificado das estruturas sintáticas
“considerar”:
{algo-alguém/Δ}CONSIDERAR{algo-alguém/atributo/Δ} COMPONENTE
1]Se o que está explícito, não pode ser omitido sem alteração do sentido verbal ou
agramaticalidade:
componente estrutural explícito
CONSIDERAR 2. {algo-alguém}CONSIDERAR{algo-alguém}
2]Se o que está explícito, pode ser omitido, sem alteração do sentido verbal ou
agramaticalidade:
componente adestrutural explícito
3]Se o que se sabe implícito, não pode ser explicitado sem alteração do sentido
3. {algo-alguém}CONSIDERAR{Δ}
verbal:
componente estrutural impedido
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4]Se o que se sabe implícito, não pode ser explicitado sem alteração da organização obrigatoriedade do rearranjo estrutural incidindo sobre o uso da partícula “se” ou
sintática: do verbo na terceira pessoa do plural. Ao contrário, a indeterminação adestrutural,
componente estrutural indeterminado concernente ao especificador direito, é basicamente discursiva: sua incidência/não-
incidência se deixa enredar apenas pelos propósitos comunicativos do ato de fala.
5]Se o que se sabe implícito, pode ser explicitado sem alteração do sentido verbal: Em outras palavras, o falante não precisa dispor de outra providência linguística,
além de pura e simplesmente omitir a especificação.
componente adestrutural indeterminado
3.3.Diferenças entre especificador estrutural esquerdo e direito
6]Se o que se sabe implícito, deveria ter sido explicitado, para suportar algum
sentido verbal:
componente estrutural requerido
[agramaticalidade]
*instituir informação com rearranjo sintático Comp. estruturalindeterminado Sobre a questão da “ocorrência relativa” do especificador direito, queremos
dizer que há verbos que não pressupõem nenhuma especificação obrigatória à sua
*apenas instituir informação Comp. adestruturalindeterminado direita. Podemos citar como exemplo o verbo “cantarolar”, que seria:
3.4.Demonstração do fato sintático-semântico estrutural Em outras palavras, o verbo “falar” compreende a seguinte dimensão
sintático-semântica:
Surpreendamos o verbo “falar” dentro das seguintes construções:
alguém/ΔFALARΔ/algo/assunto
*João fala.
*João fala um monte de besteiras. Assim sendo, todas as vezes em que a especificação direita do verbo projeta leituras
*João fala inglês. semânticas alternantes sobre o verbo, é sinal de que estamos diante de uma
*João fala sobre a situação política do país. especificação estrutural, visto que o verbo só se configura com determinado sentido
em razão da especificação (ou ausência de especificação) no construto oracional
Talvez seja fácil perceber que o verbo “falar” altera sua semanticidade à considerado. Esse é o fator determinante típico da postulação do caráter estrutural
medida que passemos de uma frase para outra, semanticidade esta que pode ser ou adestrutural da especificação. Há, portanto, especificações cujo comportamento
descrita mais ou menos como segue: sintático-semântico não é interferente na semanticidade do verbo. Numa frase do
tipo –
*João fala. → [domina uma língua]
ou *João fala sobre política, hoje, no auditório da escola.
[pratica atividade discursiva]
*João fala um monte de besteiras. → [é falastrão] – “hoje” e “no auditório da escola” podem ser removidos da oração, sem que isto
*João fala inglês. → [tem habilidade em] implique em alteração semântica do verbo:
*João fala sobre a situação política do país. → [aborda o assunto x]
[abordar um assunto].
Tal constatação, se estiver adequadamente analisada, nos sugere que o sentido
do verbo “falar” depende da construção em que está inserido, na perspectiva de sua O que especificações do naipe de {tempo} ou {lugar} assumem relativamente aos
direita linguística. Não é possível, digamos assim, atribuir a leitura – núcleos verbais do modelo de “falar” é serem compatíveis/incompatíveis com os
mesmos, do ponto de vista lógico-discursivo. Se, por exemplo, a intenção
[domina uma língua] comunicativa é declarar que João é falante do inglês, soará estranho fazer tal
declaração enunciando {lugar}. Em –
ou
*João fala inglês em Nova Iorque.
[pratica atividade discursiva]
– a leitura mais aparente que se deve conceber é aquela segundo a qual –
ou algo parecido com isto
[João profere uma palestra em Nova Iorque fazendo uso do inglês] –
– fora da situação em que “falar” esteja sem uma especificação equivalente a algo
do tipo – e não que –
*inglês (ou outra língua qualquer) [João é competente em inglês em Nova Iorque]
ou – visto que fica difícil imaginar uma pessoa que só domina o inglês se for em
determinado lugar, ou seja, o domínio competente de uma língua independe do
*um monte besteiras (ou algo assim) espaço geográfico de fala.
A propósito, retrocedamos um pouco: não seria “em Nova Iorque”, no
ou exemplo –
*sobre a situação política do país (ou outro assunto qualquer) *João fala inglês em Nova Iorque.
Estamos deduzindo destas observações que um verbo como “falar” consiste de um especificador estrutural, já que adotamos o princípio de que a característica
uma homonímia que inscreve, no mínimo, quatro itens lexicais, conforme a natureza básica do especificador estrutural é alterar o sentido do verbo, através da
do preenchimento sintático-semântico direito, e que, por conseguinte, estes alternância entre sua ausência/presença? Nada obsta que tal interpretação seja
preenchedores são componentes estruturais do verbo “falar”, que o modelam para válida ou corroborada, ou que pelo menos para certas leituras de “falar”, o
o estabelecimento de estruturações sintático-semânticas distintas. especificador {lugar} se apresenta como estruturalmente pertinente:
15 16
O
Esp-esq Esp-dir
Esp-esq Esp-dir
[estrutural] V [estrutural]
Estrutural Mod N Estrutural Adestrutural
fim
Esp-esq Esp-dir
[estrutural] V [estrutural]
{algo/alguém}Δ {alimentar-se/deglutir/consumir} Ø
1 2
UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ se compreenderia a realidade a partir do sistema de linguagem a que denominamos
Faculdade de Filosofia D. Aureliano Matos – L. do Norte de língua portuguesa, e que tende ou não a coincidir com outras universos
Curso: Letras linguísticos, mais ou menos aparentados (francês, alemão, chinês...). Logo,
Disciplina: Sintaxe realidade, de um lado, e cultura/concepção/linguagem, de outro, não assumem um
Professor: Bento compromisso de fidelidade mútua, a despeito de se poder, metodologicamente,
construir-se este compromisso como base para a análise linguística, fazendo vistas
REALIDADE, COSMOVISÃO, INTERPRETAÇÃO E SINTAXE grossas para todos os senões que porventura se intrometam e obnubilem os
caminhos traçados. Em outras palavras, a Linguagem (incluindo-se aqui a
J. Bento cultura/concepção de mundo, pois que parecem ser, de fato, indissociáveis entre si)
representa a Realidade, mas fá-lo de maneira peculiar, a mercê da própria
Atribuindo-se à linguagem a incumbência da representação do mundo, mundo constituição interna (estrutura), que lhe é inerente.
este construído através da elaboração cognitiva humana, respaldada pelo acervo Observemos, outrossim, levando em conta o esquema ilustrativo acima, que
cultural acumulado, cabe analisar esta faculdade dentro da função que exerce. Pelo mesmo os fatos de cultura/concepção/linguagem não estabelecem, de todo,
menos, trata-se da proposta em conformidade com a tradição dos estudos equivalências perfeitas entre si. Teoricamente, sempre há espaço para distorções e
linguísticos, na qual se inclui a sintaxe, e que pode ser desenhada como segue: incongruências, a ponto de podermos surpreender, com frequência, dados do
universo linguístico que não correspondem, ou não correspondem mais, à
concepção/cultura dos falantes. Em –
– como destituída de sujeito, não porque, sobre os fatos percebidos, não possa ser
arregimentado, de alguma forma, um agente para o evento, mas porque é assim que
2
APRESENTAÇÃO
UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ [natureza, metodologia, alcance e objetivos da obra]
Faculdade de Filosofia D. Aureliano Matos – L. do Norte
Curso: Letras
Disciplina:
Professor: Bento
VOCABULÁRIO
DE
.....................
FULANO DE TAL
Limoeiro do Norte-CE
---/---/---
3 4
A K
*Definições: M
1. N
2.
3. O
Etc.
P
*Exemplo(s)/Ilustraçõ(es):
Q
a)
b) R
c)
etc. S
1] U
2]
3] V
Etc.
X
*Comentários adicionais (dúvidas, questionamentos, reflexões pessoais etc.):
Z
1–
2– W
3–
Etc. Y
C FIM