ISSN: 1415-711X
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Academia Paulista de Psicologia
Brasil
1. Introdução
- Estilo adotado na redação do trabalho :
Considero ser importante esclarecer, inicialmente, que este trabalho
encontra-se redigido em uma linguagem ora autobiográfica, ora coloquial, que
poderia contrariar o que é esperado, normalmente, em um texto de natureza
científica. Entretanto, como se trata de um relato de pesquisa fundamentado
em uma abordagem fenomenológica, tal estilo é aceito, e freqüentemente
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Professor Titular e Livre Docente pelo IPUSP, professora do Curso de Formação em
Psicoterapia Fenomenológico-Existencial do Centro de Psicoterapia Existencial. Endereço
para correspondência: Rua Estado de Israel, 847, ap.31, Vila Clementino, CEP 04022-002,
46 São Paulo / SP. Tel (11) 5571-2787.
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2. A Pesquisa
- Tema : Saúde e adoecimento na totalidade do existir humano .
- Objetivos: Investigar as peculiaridades das vivências de contrariedade e
de bem-estar intensos e suas relações com o adoecimento e a saúde
existenciais, dentro da totalidade do existir humano .
- Material de estudo e participantes: relatos pormenorizados de dez
universitários pós-graduandos, com idades compreendidas entre 35 e
48 anos, de ambos os sexos.
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dizer que vemos o significado que as coisas tem para nós. Se não vemos o
significado , não vemos coisa alguma.” (Van den Berg, 1973 p.39). É por isso
que nenhum mundo exterior puramente objetivo, assim como nenhum mundo
interior, puramente subjetivo pode ser demonstrado. Existimos sempre “em
relações definidas pelos significados que percebemos nos entes” (Boss, 1979,
pp. 183-184).
E acontece que um mesmo objeto pode ter significados diferentes para
várias pessoas. Isto pode ser observado em um exemplo no qual a frondosa e
florida paineira esteja sendo contemplada por uma jovem romântica apaixonada,
um madeireiro ambicioso ou um biólogo estudioso. Para a moça romântica, a
frondosa paineira provavelmente lhe parecerá como um local agradável e fresco
para estar com o seu amado. Para o madeireiro poderá ter o significado de uma
ótima madeira para negociar. E para o biólogo poderá ser motivo de estudo de
suas folhas, seu tronco para classificá-los de acordo com a espécie e a idade.
Entretanto, os mesmos objetos podem ter significados diferentes para a
mesma pessoa. No exemplo seguinte, mais pormenorizado podemos observar
isto. Uma jovem de nome Maria está andando pela rua quando, de repente, vê
José um antigo namorado, a quem muito amou e até agora não conseguiu
compreender porque se separaram. Ao avistá-lo fica muito emocionada e corre
ao seu encontro. Ele também lhe parece contente ao vê-la. Ambos abraçam-se
comovidos, porém estão com muita pressa e, então combinam um encontro
para o dia seguinte, na residência dela. Para recebê-lo, ela prepara com muita
satisfação a sua sala, coloca flores no vaso, ajeita as almofadas do sofá, separa
o CD que ambos gostavam de ouvir juntos, o vinho que ele aprecia, etc Todo o
ambiente lhe parece partilhar de sua satisfação: o vaso florido, as almofadas no
sofá, o CD que já está tocando para tornar a sala ainda mais agradável. No
horário combinado a campainha toca; seu coração bate mais forte: é ele que
chega, alegre, apaixonado e com carinho oferece-lhe um ramalhete de rosas
vermelhas, símbolo para ambos de amor, amor que já os uniu no passado e que
sentem reviver no presente. A expectativa de Maria é confirmada. Ambos sentem-
se imensamente contentes e tudo o que está à sua volta parece-lhes sorrir.
Fazem planos para as férias que estão próxima , querem recuperar o tempo
perdido. E como diz o final dos romances “casaram-se e foram muito felizes”.
Esta é uma pequena história que provavelmente, com algumas mudanças nos
detalhes, cada um de nós gostaria de viver ou talvez até já a esteja vivendo.
Porém, os acontecimentos também podem ser diferentes. Suponhamos
que no horário combinado, em lugar da campainha, toque o telefone e seja José
para dizer à Maria, sem maiores explicações; “sinto muito, mas não poderei
comparecer ao nosso encontro”. O contentamento de Maria transforma-se de
repente, em uma enorme frustração. Sente-se humilhada, inferiorizada, incapaz
de ser amada, de manter o afeto de alguém. E tudo isto se manifesta ao
contemplar as almofadas, a garrafa de vinho, as flores no vaso. Todo o ambiente
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próprio existir; temos amplas possibilidades, mas nos confrontamos com nossos
limites. Entre estes encontra-se o maior limite da existência: é a finitude, que se
concretiza com a nossa própria morte. Estamos entrando aqui na questão da
saúde e do adoecimento.
A saúde existencial: Consiste no bem-estar geral que cada um de nós
experiencía no decorrer da própria existência, caracterizado por uma vivência
global de liberdade, acolhimento e sintonia em relação a si, aos seus semelhantes
e ao mundo em geral. “A essência fundamental do homem sadio caracteriza-se
pelo seu poder dispor livremente do conjunto de possibilidades de relação que
lhe foi dado manter com o que se lhe apresenta na abertura livre de seu mundo”.
(Boss, 1983, p.123)
Inversamente, o adoecimento existencial consiste em um mal-estar,
contrariedade e angústia, que se caracteriza por uma vivência global de
impotência, insatisfação em relação a si mesmo, à própria vida e aos seus
semelhantes, e por uma revolta, ou uma apatia, um conformismo pessimista de
que nada adianta fazer para melhorar ou mudar essa situação.” A essência de
todos os sofrimentos humanos fundamenta-se no fato de que a pessoa perdeu
a capacidade de se decidir livremente acerca de suas possibilidades de
comportamento normal.” (Boss, 1975, p.24)
Saúde e adoecimento existenciais fazem parte da vida de todos nós; são
como dois pólos constituintes da totalidade da existência. São maneiras de existir
de certo modo opostas, paradoxais, que se alternam constantemente no decorrer
de nossa existência, às vezes tão próximas que chegam a se entrelaçar. E
nosso existir está sempre fluindo, entre paradoxos de bem-estar e de
contrariedade, de possibilidades e de limites, ora pré-reflexivamente, ora
racionalmente refletindo sobre nossa vivência imediata. Assim, vamos
gradualmente, adquirindo conhecimentos sobre o mundo e sobre nós mesmos,
que nos fornecem parâmetros racionais, de certo modo “objetivos”, para entender
nossas vivências passadas e atuais, assim como fazer planos e agir no sentido
de concretizá-los. E tanto para adquirir, como para modificar ou ampliar esses
conhecimentos, precisamos constantemente, retornar à vivência imediata pré-
reflexiva. Pois só assim conseguimos, como afirma Minkowski (1982), “ recobrar
o contato com a vida e com o que ela tem de mais espontâneo e originário; voltar
à fonte primeira da qual brota não apenas a ciência, mas todas as manifestações
da vida” (p. 9)
4. Metodologia
A Fenomenologia de Husserl na qual procurei fundamentos para a
metodologia deste trabalho, surgiu a partir de 1901 no campo da Filosofia, mas
tem exercido grande influência nas ciências em geral, especialmente na
Psicologia. Para Husserl (1986) “a Fenomenologia é a instância para julgar as
questões metodológicas básicas da Psicologia. O que ela afirma, em geral, o
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pesquisas que realizei anteriormente sobre esse assunto. (Forghieri, 2003, 1998,
1994, 1993). Não menciono outros autores por não ter encontrado na bibliografia,
pesquisas sobre este tema, baseadas na fundamentação e metodologia
fenomenológicas semelhantes às deste trabalho.
O enfrentamento e superação da intensa contrariedade declarados por
todos os participantes, para seis deles foi atribuída à sua profunda crença em
Deus ou em algum santo de sua grande devoção. Isto revela a importância da
religiosidade para a recuperação da saúde existencial. Os quatro participantes
restantes declararam terem se sentido tão aflitos e confusos que chegaram a
pensar em suicídio, só conseguindo desistir dessa idéia, devido à presença de
uma pessoa querida . Isto nos alerta para a grande importância do terapeuta, ou
de qualquer um de nós, ser essa presença para quem dela estiver necessitando.
Pois, como afirma Buber (1982) “o que esperamos nós, quando desesperados,
e mesmo assim, procuramos alguém? Esperamos certamente por uma presença
por meio da qual nos é dito que o sentido ainda existe”.(p. 47)
A ocorrência alternada de vivências de bem-estar e de contrariedade
declarada por todos os participantes, pode ser evidenciada, também, no decorrer
de nossa própria existência. Embora tenhamos o desejo de nos manter sempre
no bem-estar, não conseguimos evitar os momentos de contrariedade intensa;
eles sempre surgem, por mais que procuremos deles escapar. E como a
contrariedade tende, em seus primeiros instantes, a nos alienar da situação, a
não aceitá-la e a não compreender o seu significado, estamos, periodicamente,
ameaçados de adoecer por alguns momentos. Estes podem ser prolongados
se não tivermos coragem para nos envolver na situação e aceitá-la, constatá-la
como realidade, e assim, dar-lhe um significado, um sentido como limite de
nossa existência, entre nossas muitas possibilidades. Tendo essa coragem,
retornamos à nossa saúde existencial, sem estarmos livres de que ela poderá
ser abalada em outra ocasião, e novamente reconquistada. E assim,
sucessivamente, no decorrer de nossa existência, vamos ampliando cada vez
mais nossos conhecimentos sobre o mundo, nossos semelhantes e sobre nós
mesmos. Porém jamais conseguiremos esgotá-los, pois como nos diz
Binswanger (1973) “a vida é e continuará sendo um mistério ... podemos apenas
vivê-la em sua total plenitude, mas não conseguimos captá-la completamente
de forma racional”. (p. 491)
É por tudo isso,como afirma Tillich (1972), que precisamos ter “coragem
de ser”, coragem para viver nossa própria vida.
7. Considerações Finais
Os resultados desta pesquisa realizada com dez participantes e
confirmados por outras que realizei sobre o assunto, totalizam oitenta pessoas.
Esta é uma quantidade pequena para se chegar a generalizações.
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8. Referências Bibliográficas
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- BINSWANGER, L. (1977) Três formas de existência malograda. RJ : Zahar
- BINSWANGER, L. (1973) Artículos y conferências escogidas. Madrid: Gredos
- BINSWANGER, L. (1967) El caso de Ilse, El caso de Ellen West. In: R. May
(org.) Existencia. Madrid: Gredos.
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- BOSS, M. (1979) Na noite passada eu sonhei. São Paulo: Summus.
- BOSS, M. (1975) A Medicina Psicossomática e o princípio de causalidade.
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- BUBER, M. (1982) Do diálogo e do dialógico. São Paulo: Perspectiva.
- BUBER, M. (1977) Eu e Tu . São Paulo: Cortez e Moraes.
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- FORGHIERI, Y. C. (2003), (4ª reimpressão, 1ª edição, 1993) Psicologia
Fenomenológica: fundamentos, método e pesquisas. São Paulo: Pioneira
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- FORGHIERI, Y. C. ( 1998) Saúde e adoecimento: o paradoxo do equilíbrio
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- FORGHIERI, Y. C. (1994) O paradoxo do existir humano: o bem-estar e a
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- FORGHIERI, Y. C. (1993) O ideal do bem-estar e de saúde existencial:
contribuição da contrariedade e da angústia para a sua conquista. Actas do
8º World Congress of Sport Psychology. Lisboa, 545-550.
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