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PÚBLICA NO BRASIL
CRISES E -MUDANÇAS DE
PARADIGMAS

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O MODELO DE GESTÃO PÚBLICA
O modelo de gestão pública pós-burocrático
O CONCEITO DE PÚBLICO COMO REFERENCIAL
PARADIGMÁTlCO
PARTE II
CRISE E MUDANÇA DE PARADIGMAS NA PRODUÇÃO
EM ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA NO BRASIL
C AP ÍT ULO lll-0 PARADIGMA DO "PÚBLICO"
COMO ESTATAL (1930-1979)
SUPREMACIA DO ESTADO E AUTORITARISMO:
THEONEBESTWAY
CENTRALIZAÇÃO E RACIONALIZAÇÃO: NEM TUDO
QUE É LÓGICO É PSICOLÓGICO
CARREIRAS E CONTROLES FORMAIS: A BUROCRACIA
DOS COITADINHOS
CAPÍTULO lV - CRISE DO REFERENCIAL
PARADIGMÁTICO
AREDEMOCRATIZAÇÃOPÓS-45
ODESENVOLVIMENTISMOPÓS-50
A ADMINISTRAÇÃO INDIRETA: O PÓS-64
CRISE DO ESTADO E CRISE DO REFERENCIAL
PARADIGMÁTICO
CONCLUSÕES
BIBLIOGRAFIA
ANEXO: QUADROS
92
104
106 APRESENTAÇÃO
Preocupações e tensões que influenciam o estado de ânimo de
quem escreve uma tese, agora livro, estão bem expressas na citação
"uma tese é uma tese". 1 Preocupações estas que também se encontram
bem presentes, mesmo que com tempo e intensidade menor, em quem
tem a tarefa de apresentar o trabalho.
Procurei, portanto, escrever um texto que não pretende ser o
111 convencional resumo do texto, enriquecido de alguma citação sobre
temas de moda, tarefa relativamente fácil para quem está freqüente-
114 mente em contato com a rede de escolas, universidades e centros de
gestão pública atuantes no continente europeu.
130 Ao pensar nesta apresentação, parti de uma consideração mais
geral e possivelmente um pouco provocativa sobre os livros, como
137 instrnmento de difusão do conhecimento e das idéias, que me foi
sugerida por um recente artigo publicado na imprensa especializada
italiana, por ocasião da feira do Livro de Turim 2000, sobre "fantas-
149 mas editoriais em rede" que assinalou, diante do sucesso internacional
151 de www.amazon.com e na Itália de www.intemetbookshop.it (incre-
158 mento nas vendas entre 1999 e 2000 de 300%) que " cada livraria re-
161 gistra 35 a 40% dos títulos que não vendem nenhuma cópia" e que
"cada ano acabam fora de catálogo pelo menos 30.000 títulos com
166 milhões e milhões de cópias".
185 Isto significa que o "mercado" nem sempre é um bom juiz para
decidir a qualidade e o valor do trabalho. Neste sentido, cabe louvar
193 a iniciativa da Fapesp - Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado
de São Paulo - em instituir uma linha de financiamento destinada a
207 incentivar co-edições de textos com caráter predominantemente
acadêmico. Também cabe destacar o empenho da Annablmne Editora,
através da coleção "Selo Universidade", na divulgação de trabalhos
que atingiriam uma clientela mais restrita.
1. " Escrever uma tese é quase um voto de pobreza que a pessoa se autodecreta. O
mundo pára, o dinheiro entra a peitado, os filhos são abandonados, o marido que
se vire. ' Estou acabando a tese ' . Esta frase significa que a pessoa vai sair do mundo .
Não por alguns dias, mas anos. Tem gente que nunca mais volta."
" Uma tese é uma tese", Mario Prata, in O Estado de S. Paulo, 7. 10.98.
16 ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA NO BRASIL
Procurei, desta fo1ma, responder, nesta apresentação, a duas
questões de fundo que são discutidas (senão solucionadas) para fa-
vorecer a circulação dos resultados do trabalho de pesquisa da
Mezzomo Keineri, hoje livro, para além dos circuitos tradicionais de
difusão, representados pelos cursos universitários, pelas escolas de
formação de funcionários públicos (como a Enap , Egap, dentre
outras), institutos e centros de pesquisa universitários.
A primeira questão é dirigida à efetiva utilidade para os diversos
grnpos de leitores, dos superespecialistas (que são sempre poucos)
aos potenciais interessados (que são muitos, ainda que com muito
menos tempo à disposição), de um texto baseado exclusivamente so-
bre uma experiência nacional, como aquela brasileira, em um contexto
no qual não apenas as empresas, as agências e as fundações sem fins
lucrativos, mas também as organizações não-governamentais e a pró-
pria administração pública são sempre mais internacionais e globais.
Para evitar que um livro especializado em um argumento prova-
velmente pouco acessível para a maioria dos leitores, como a admi-
nistração púbiica, termine por alongar a fila dos textos específicos so-
bre as prateleiras das bibliotecas, toma-se necessário, a meu ver, retor-
nar à relação entre as especificidades dos casos nacionais e as compa-
raç.ões internacionais, e, sobretudo, relembrar com algum dado con-
creto a relevância que assumem atualmente as análises comparadas
sobre temas do setor público e da administração pública.
Se pense , com este propósito , na experiência do Public
1\lfanagement Center da Organização para a Cooperação e o Desen-
volvimento Econômico (OCDE), fundada no ano de 1990 e destinada
a uma comparação sistemática entre as experiências de modernização
adminish·ativa e gerencial dos sistemas de administração pública dos
principais países desenvolvidos e de alguns países emergentes e,
sobretudo, sobre a transferência de conhecimento, know-how, best
practices sobre vários temas - da descentralização institucional à
gestão de recursos humanos, à ética e à accountability dos serviços
públicos , ao desenvolvimento da info rmation communication
technology, à comunicação com o público e ao desenvolvimento da
qualidade (ver com este motivo www.oecd.org).
Outros exemplos significativos são representados pelos progra-
mas de internacionalização das organizações públicas dos países per-
tencentes a instituições supra-nacionais, antes de tudo a União
Européia com inúmeros projetos que favorecem a formação dos fim-
APRESENTAÇÃO 17
cionários, o intercâmbio de kn ow how; bem como a criação do
European Institute for Public Administration.
E, por fim, recorde-se a presença, junto às intervenções mais
institucionalizadas, do número de redes de pesqu isa que internacio-
nalmente reagrnpam funcionári os públicos, universidades e escolas
de administração, centros de pesquisa públicos e privados, sociedades
de consultoria e as próprias associações de consumidores e usuários
cada vez mais interessados no melhoramento da qualidade dos ser-
viços oferecidos.
Emblemático é, na América latina, o caso do CLAD - Conselho
Latino Americano de Administração para o Desenvolvimento - que
congrega inúmeras universidades e centros de pesquisas e que pro-
moveu, recentemente, uma cátedra virtual de Administração Pública
na web e outras importantes redes de pesquisa como o international
nenvork on new public management, que dedica pariicular atenção
à difusão e ao desenvolvimento do paradigma do new public
management ao qual são em parte reconduzíveis as considerações
contidas no trabalho de Mezzomo Keinert, especialmente no tocante
à gestão pública e ao estilo de gestão pós-burocrático.
Ouh·as redes importantes fazem referência às experiências pro-
movidas em países de área anglófona - nelYvork on public sector
management, promovido pela Aston Science Park University of
Birrningham, que recebeu, no último congresso, 300 contribuições
internacionais (dentre elas algumas brasilei ras) - e as redes de
pesquisas de área francófona - promovidas pela Revista Politiques
et Management Public - sem falar nos numerosos (e em competição
entre si) networks americanos de pesquisa.
No quadro da crescente internacionalização, a análise das sim-
ples experiências nacionais, vistas como case studies, tem, a meu ver,
urna significativa validade para o desenvolvimento do conhecimento
sobre o tema da administração pública de cada contexto nacional
específico com direta ligação aos paradigmas de pesquisa defendidos
em nível internacional.
Esta ligação se toma lUTI elemento importante para o trabalho de
Mezzomo Keine1t, tendo em vista que foi o próprio Brasil que sediou
o Global Forum sobre a reinvenção da administração pública através
da discussão de quatro casos nacionais representados pela experiência
americana, do Reino Unido, do Brasil (país anfitrião) e da experiência
já decenal de modernização da Administração Pública Italiana.
18 ADMINISTRAÇAO PÚBLICA NO BRASIL
Perspectiva integrada significa o aprofundamento da evolução
histórica e, sobretudo, das perspectivas futuras, não se limitando a
uma simples descrição do sistema de Administração Pública existente
-as funções atribuídas aos diversos níveis de governo, os processos
de reforma e de descentralização em andamento, as experiências
inovadoras, como, no caso brasileiro, os programas desenvolvidos pelo
antigo Mare - Ministério da Administração e Reforma do Estado, ou,
conjuntamente, pela Ford Foundation e pela FGV/SP, sobre inovações
na dotação de pessoal, receitas, despesas de gestão e de investimentos.
Considerando, portanto, a evolução histórica e as perspectivas
futuras sobre o tema da administração pública como indicadores para
um juízo sobre a utilidade do livro relacionado às expectativas de um
público sempre mais numeroso, tambem graças à Internet, a resposta
à nossa questão inicial não pode ser outra, a não ser positiva, ainda
que com algumas críticas, vistas como estímulos, indicações e suges-
tões à autora, a outros estudiosos e pesquisadores brasileiros dedi-
cados a temas da administração pública, do public management,
sejam eles ligados a tmiversidades, aos centros de pesquisa e, por que
não, à web.
Essas críticas são dirigidas à falta de aprofundamento da espe-
cificidade dos paradigmas de pesquisa sobre a administração pública.
No trabalho de Mezzomo Keinert, de particular interesse é a
parte dedicada aos paradigmas do conhecimento, com a citação
obrigatória a Kuhn e, sobretudo, a identificação, em uma perspectiva
histórica, dos dois paradigmas de Público como Estatal (19 30-79) e
de Público como Interesse Público (período pós-90).
Outra importante contribuição é a ligação dos dois paradigmas
antes colocados aos diversos modelos de Estado que Mezzomo Keinert
identifica no modelo regulador-liberal e no modelo intervencionista,
em parte associável ao bem-estar dos dois paradign1as.
O que falta, então? Em primeiro lugar, na parte final sobre os
modelos de estado "emergentes" no Brasil não são efetuadas ligações
específicas com os dois modelos que estão se consolidando em nume-
rosos países em nível internacional, representados pelo Estado dos
Serviços e pelo Estado Regulador, que são retomados, por exemplo,
nos numerosos trabalhos de Bresser Pereira.
Mas, sobretudo, deveriam ser aprofundadas as ligações entre
os dois paradigmas brasileiros com o debate em ato sobre a existência
dos paradigmas do new public managemente dapublic governance.
APRESENTAÇÃp 19
O primeiro, elaborado patiindo de uma verificação empírica dos
processos de modernização administrativa e institucional em ato a
partir dos anos 80 em numerosos países europeus, antes de tudo o
Reino Unido, o Japão, a Austrália, o Canadá, a Nova Zelândia e,
obviamente, no contexto estadunidense (programa National
Petformance Review).
Esses programas têm em comum o fato de basearem-se na
adoção de ações administrativas específicas, como a criação de
agências públicas, pela redefinição dos limites entre público e privado,
pela adoção de técnicas gerenciais provenientes das empresas priva-
das, em âmbitos como a gestão de pessoal, marketing e comunicação
aos usuários, e, sobretudo, pela adoção difusa de mecanismos de mer-
cado ( contracting out e delegação de serviços, competição entre pú-
blico e privado, competição entre público e público).
O paradigma da public governance, ao contrário, reserva parti-
cular atenção ao sistema de relações que se ativam entre a adminis-
tração pública e os diversos atores do sistema social e econômico, das
empresas privadas, às associações de interesse, lobbies, às organiza-
ções não-lucrativas e àquelas não-governamentais.
Nesta perspectiva a administração pública desenvolve mn papel
de animador e de catalisador de projetos, energias e interesses ope-
rando não mais como "centro" do sistema social e econômico, mas
como um dos tantos "modos" de redes interinstitucionais e interorga-
nizacionais formadas por diversos atores.
As considerações conclusivas fazem referências à segunda per-
gunta de fundo sobre o trabalho de Mezzomo Keinert - reconhecida
a efetiva utilidade do texto em relação ao processo de globalização
do conhecimento - que é a inovação em relação às tendências em
andamento na disciplina de administração pública, que com um jogo
de palavras podemos definir sempre mais multidisciplinar.
O grau de inovação pode ser avaliado fazendo referência à meto-
dologia de pesquisa adotada -a pesquisa foi desenvolvida analisando
os artigos publicados nas duas principais revistas sobre administração
pública brasileira, fazendo referência a tun período de tempo bastante
longo e colocando em destaque a evolução de temas-chave.
A metodologia apresenta um elevado nível de coerência com
outros trabalhos de pesquisa elaborados a partir dos anos 90 por nu-
merosos autores em nível internacional, desde os trabalhos de pes-
quisa conduzidos pela revista estadunidense Public Administration
 20 ADMfNISTRAÇÃO PÚBLICA NO BRASIL APRESENTAÇÃO 21

RevieH' (análise dos artigos publicados no período 1975-1984) e
outros , mais específicos , conduzidos pela revista Politiques et
Management Public. 2
Um elemento de inovação no trabalho de Mezzomo Keinert é
o fato de ter sido aplicado a um contexto de administração pública
de países emergentes uma chave de leitura e de interpretação típica
de sistemas administrativos públicos de países avançados, permitindo
assim desenvolver no futuro interessantes comparações.
Na tabela a seguir decidiu-se, portanto, apresentar os métodos
de pesquisa sobre a administração pública majoritariamente utilizados
nas escolas de pensamento, aquela americana e a dos países fran-
cófonos.
A tabela evidencia como na França são predominantes os mé-
todos ligados ao estudo de casos (de organizações públicas específicas
e de políticas públicas) e em medida menor as pesquisas históricas
as quais pode estar relacionado o trabalho de Mezzomo Keinert.
No conte;üo estadunidense prevalecem - em flagrante contra-
dição com as opiniões consolidadas - metodologias não-empíricas as
quais seguem-se análises de correlação (e outros instrumentos sofis-
ticados como análise longitudinal e path analysis) e, por último, os
estudos de casos.
1 Universidade Roma Tor Vergata
POUTIQUES ET MANAGEMENT PUBLIC PUBLIC ADMfNISTRA TION REvrEw
:11
Reconstrnída a evolução histórica, é agora necessário na "multi-
disciplina" da administração pública brasileira comparar-se os mé-
todos de pesquisa.
A inovação do trabalho de Mezzomo Keinert reside, potianto,
no fato de haver aberto a po1ia para o futuro; o desafio para o mundo
da universidade, das pesquisa, da consultoria e das escolas de for-
mação e gerenciamento público será representado pela escolha de
quais métodos aplicar, da análise dos casos de específicas realidades
públicas, da pesquisa de base quantitativa, da avaliação é do reconhe-
cimento das políticas públicas.
Em conclusão, uma contribuição útil, que se liga estreitamente
às tendências que percebem a administração pública sempre m ais
global, ainda que reconhecendo a especificidade dos contextos e a
inovação que oferece amplos espaços para o aprofundamento de temas
novos.
O que falta, então? Cada vez mais leitores e Lm1 trabalho cons-
tante e contínuo para a divulgação e a difusão de conteúdos.
M ARCO M ENEGUZZO
Professor-Associado da Área de Administração Pública
Universidade Luigi Bocconi Milão

Métodos de Análise Empírica Métodos de Análise Empírica

(1984-1988) (1975-1984)
Número de artigos Número de Artigos
Contribuições teóricas (25) Metodologias não-empíricas ( 138)
Estudos de Caso (Organizações Análises de Correlação, análises
Públicas ou Políticas Públicas longitudinais oupath analysis
Específicas) (25) (92)
Analises comparativas ( 17) Estudos de Caso (56)
Pesquisa Histórica (4)

2. Ver, por exemplo, o trabalho de Meneguzzo, M. " Metodologie di ricerca sulle

aziende e amministrazioni pubbliche: una analisi comparata", in Azienda Pubblica
n. 3, dei 1990; o artigo de Perry J. L. e Kraemer K. L. " Research methodology in
Public administration research 1975- J 984", publicado na Public Administartion
Review, may june 1986, além de outros trabalhos publicados por Mezzomo Keinert,
constantes da bibliografia deste livro.

llJ
 INTRODUÇÃO
r
~i A questão inicial que motivou este trabalho pode ser resumida
no seguinte enunciado: o que é "Administração Pública" no Brasil?
Detalhando-se, pode ser acrescentado: Como a disciplina se constituiu
historicamente? Quais suas características e especifi cidades? Há
aproximações com outros campos? Qual seu obj eto de eshtdo? É
possível construir uma periodização? Pode-se falar em referenciais
parad igmáticos? Em função de que noções se estruturam estes
consensos que se estabelecem na comunidade de esh1diosos?
Posteriormente, vinculou-se o referencial paradigmático da
disciplina de AP no Brasil ao conceito de "público". Esta é a pro-
blemática que aprofundou-se neste estudo: a caracterização elos
Paradigmas da Administração Pública no BrasiL em função do
conceito de público.
O trabalho divide-se em duas partes. Na Parte I, reconstitui-se
o "caminho da pesquisa", desde os primeiros levantamentos quan-
titativos e os resultados preliminares obtidos, até a nova proble-
matização e operacionalização ela pesquisa, desta vez utilizando urna
metodologia qualitativa.
Os artigos publicados na Revista do Serviço Público (a partir
de 1937) e Revista de Administração Pública (1967) foram anali-
sados tendo em vista estabelecer relações entre os "sentidos dos refe-
ridos ariigos" e o conceito de público subjacente a eles.
Utilizando-se o método de análise de conteúdo, passou-se então
ao tratamento dos resultados, à inferência e à interpretação. Para tanto,
construiu-se um referencial analítico com base nas proposições e
construções teó1icas selecionadas, apresentado no Quadro I.
Posteriormente, na Parte II, apresenta-se em detalhe a análise
de conteúdo efetuada nos ariigos publicados pelas duas Revistas, a
partir da década de 30. Aponta-se no sentido da existência de um
14 ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA NO BRAS IL

Paradigma do "Público como Estatal" que vigora no período de 1930

a 1979, mesmo que sofrendo algumas oscilações, especialmente nos
anos de 1945, 56 e 67 . No entanto, estes pontos de inflexão não foram
suficientemente fortes para abalar aquele consenso. o que ocoJTe
somente a partir da década de 80, quando, em função de uma série
de crises em diversos âmbitos, aquele entendimento torna-se
insustentável.
Crises são momentos de fragmentação e instabilidade. O campo
se pulveriza, abrindo espaço para a emergência de um novo consenso.
Surgem evidências de que existe um Paradigma Emergente: "O
Público como Interesse Público". Sustenta-o uma visão de público
PARTE!
como espaço institucional complexo, mais amplo que o estatal,
norteado por uma noção de valores morais e éticos. As conclusões
do trabalho apontam nesta direção.

PARADIGMAS DA
ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA
NO BRASIL EM FUNÇÃO DO
CONCEITO DE PÚBLICO
'
i

A PROBLEMATIZAÇÃO lNIClAL: O QUE É

ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA NO BRASIL

A questão inicial que se procurava responder era: o que é

"Administração Pública" no Brasil? Corno a disciplina se constituiu
historicamente? Quais suas características e especificidades? Há
aproximações com outros campos? Qual seu objeto de estudo? É
possível construir lm1a periodização?
Para responder a estas questões utilizou-se, como ponto de
partida metodológico, os trabalhos de Golembiewski ( 1974; 1977) 1
e Henry (1975) 2 - os quais desenvolveram os conceitos de locus e
focus - dando-se início ao trabalho de pesquisa,3 tendo corno objeto
empírico de análise a produção acadêmica divulgada nas duas revistas
de administração pública mais importantes no Brasil. Por outro lado,

1. A proposição inicial do autor foi publicada em Robert T. Golembiewsk i, "Public

Admin istration as a Field: Four Developmental Phases". Georgia Political
Science Journal , v. 2 (Spring 1974), p. 21-49; e, posteriormente. desenvolvida
em "Public Adm ini stration as a Developing Discipline". New York: Decker. 1977.
2. HENRY, N. "Paradigms of Public Administration". Public Admini sn-a tion Review
35 (Ju ly 1975): 384. Este trabalho foi desenvolvido posteriormente ao primeiro
trabalho de Golembiewski dedicado ao tema. e, anteriormente ao segundo; de
maneira que eles se influenciam mutuamente. Hemy, assim como Golembiewski.
trabalha com obras-marco no campo de Admini stração Pública atribuindo-lhes
importância de acordo com sua vivência profissional, e não por meio de pesquisa
exaustiva. O autor adverte que as obras servem mais para datar os períodos que
para caracterizá-los, e que devem ser tratados como " rough indicators" .
3. A pesquisa qLtantitativa, iniciada em março de 1993 , teve como título inicial "A
Evolução do Campo de Adminisa-ação Pública no Brasil ( 1930-1 992). projeto
desenvolvido junto ao Centro de Estudos de Administração Pública e Governo da
EAESP/FGV com o apoio do Núcleo de Pesquisas e Publicações da mesma
instituição. Posteriormente, inic iou-se o trabalho qualitativo o qual contou com o
apoio do PAP - Program a de Apoio à Pesquisa em Administração Pública -
CAPES/ENAP/ ANP AD.
 30 A DMINISTRAÇÃO PÚBLICA NO BRAS IL
A CONSTRUÇÃO DO OBJETO DE ESTUDO 31

utilizou-se como referência básica para compreender o período

Kliksberg ( 1996, 1997) retoma a questão da dicotomia política-
analisado o trabalho de Warhlich (1978) . administração, procmando resgatar a complexidade do processo ele
O locus é o que delimita o tetTitório a ser explorado pelo estudo,
implementação elas políticas púb licas, superando, inteiramente, a v isão
definindo os fenômenos empíricos que constituem o objeto da mecanicista segundo a qual, ai, apenas se "executam instruções":
pesquisa. O locus é o local institucional do campo (institutional
where) . No caso da administração pública, um locus reconente tem Segundo tal dicotomia (política-administra-
sido a burocracia governamental , embora esta localização venha
ção), o problema central circunscreve-se ao
sendo questionada e substituída por um leque de estudos bem mais
campo do planejamento e da.formulação de
amp lo, relativos a um número maior de iniciativas relacionadas ao
estratégias. Superado este problema. me-
" interesse público".
diante uma concepção adequada das polí-
O.focus é a perspectiva teórica que coloca à disposição conceitos
ticas públicas, empreender-se-ia a etapa
para selecionar e interpretar os fatos reais e as observações integrativas
administrativa de ·pura implementação ".
relevantes para as principais questões, o que individualiza as posições
na qual poderia haver dificuldades que.
e dá meios para mapear o tenitório. O.focus é o instrnmental analítico
contudo, seriam de caráter secundário
utilizado, um certo "e nfoque es peci alizado" sobre o campo
(KUKSBERG, 1996 : 79).
(specialized what). Um jocus usual na Administração Pública tem
sido os "P1incípios da Administração", que expressam uma idéia de
O que se coloca, desta forma, é o fato de que todos os processos
neutralidade e aplicabilidade a qualquer contexto . Mas, novamente,
são políticos, inclusive a implementação . Por outro lado, existe a
o .focus da disciplina vem sendo alterado com as mudanças em suas
necessidade de tecnologias adequadas, adaptadas a administração
1 concepções.
1
pública - ou seja, tudo não se resume à política. É preciso superar a
I" Como a Ciência Social Aplicada a Administração Pública,
concepção dicotômica com abordagens integrativas.
semp re sofreu de um m al congênito - a dicotomia "política-
Foi esta a preocupação que deu origem à pesquisa. ou seja, a ne-
administração .., o que impediu que se definisse com mais clareza seus
cessidade de se conhecer mais a fundo as características ela produção
lows e.focus.
em Administração Pública com v istas a contribuir para o avanço ela
Henry ( 197 5) advoga a necessidade de uma certa "autonomi-
mesma em tem1os ele ensino e pesquisa. Aquela inquietação repousava
zação da disciplina" para que a mesma se fortaleça, superando aquela
na observação da inexistência ou do pouco desenvolvimento de tecno-
polarização inicial, e, inclusive, incorporando as contribuições da
logia administrativa adequada às especificidades da gestão pública. Em
Ciência Política, sem , no entanto, perder sua identidade.
termos simples, ou a disciplina se voltava para o jurídico - dentro de
Warhlich (1978), por sua vez, relaciona o desenvolvimento da
uma visão legalista-ou passava a privilegiar a questão política-dentro
disciplina àquele das Ciências Administrativas, na América Latina,
de urna visão baseada na famosa dicotomia antes mencionada.
acrescentando - tendo em vista a realidade latino-americana - a
Com este intuito - o de conhecer o campo ele Administração
questão da administração para o desenvolvimento. A autora critica
Pública no Brasil - utilizou-se, como unidade de análise, os artigos
seu mecanicismo que, não obstante, inspirou vários processos de
publicados em Revistas especializadas, uma vez que, as mesmas,
reforma.
constituem-se o veículo que com maior rapidez expressa as mudanças
Destaca, ainda, o forte impacto que a Ciência Jurídica teve na
ocotTiclas no campo. 4 Assim foram utilizadas as publicações Revista
gênese da disciplina de Administração Pública na América Latina
diferentemente do que ocorre nos EUA, por exemplo-responsável, 4. A uti lização das Revistas como objeto empírico para a identificação de paradigmas
até hoje, por uma grande dose de " legalismo" nos estudos e na prática de um grupo de pesquisadores pode ser justificada utilizando-se as noções de Kuhn.
administrativa pública. Confonne observa Hochman: "Para Kuhn, a aceitação de um paradigma pode ser
verificada com o surgimento de jornais. revistas especializadas, fundação de socie-
32 ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA NO BRASIL
A CONSTRUÇÃO DO OBJ ETO DE ESTUDO 33

do Serviço Público (1937- ... )e Revista de Administraçiio Pública

produção em Administração Pública, inclusive por conta do longo
l] 967-... ), consideradas rep resentativas da disciplina.
período em que a RSP não circulou ou o fez de forma precária.
A Revista do Serviço Público (RSP) passou a ser publicada em
Analisando o conteúdo dos aiiigos publicados nas duas revistas,
1937, pelo Conselho Federal do Serviço Público Civil. Em 193 8,
é possível obter indicações sobre o comportamento da produção em
passou à responsabilidade do DASP (Depariamento Administrativo
Administração Pública. A análise dos dados mostra que a RAP, como
do Serviço Público) e foi publicada ininterruptamente pelo órgão até
publicação, surgiu muito mais sensível às mudanças que se dese-
1974. Em 1981, vo ltou a ser publicada pel a Fundação Centro de
nharam no campo de conhecimento da Administração Pública a partir
Formação do Servidor Público (FUNCEP), que sucedera o DASP,
dos anos 70. A RSP não deixou de senti-las, mas teve menos cond ições
seguindo até 1989 com muitas interrupções e mudanças de linha
de refleti-las, ptincipalmente nos anos imediatamente anteriores ú
editorial. Finalmente, foi retomada em 1994 pela Fundação Escola
interrupção de 1974. A revista manteve uma relativa inércia na com-
Nacional de Administração Pública (FENAP), por sua vez sucessora
posição de suas edições, em termos de locus e f ocus, que só seria
daFUNCEP .
quebrada na fase irregular da década de 1980. Pode-se, até mesmo,
A Revista de Administração Pública (RAP) teve sua publicação
pergmitar o quanto a interrupção da publicação da RSP não reflete o
iniciada em 1967, pela Escola Brasileira de Administração Pública
fato de que esta não se adaptava às mudanças no campo de conhe-
(EBAP), da Fm1dação Getúlio Vargas, e prosseguiu sem interrupções.
cimento de Administração Pública que se engendravam, ou seja, uma
A RSP assumiu uma importância pioneira na disseminação da
possível tentativa de manter o status quo.
produção em Administração Pública. Nas primeiras décadas de
Para analisar a produção veiculada nas Revistas , foram
circulação, foi, sem dúvida, o principal meio de divulgação das idéias
classificados os artigos publicados por elas até 1992, 5 o que corres-
no campo da Administração Pública. Organicamente vinculada ao
pondeu a 721 artigos da RAP (100%) e 3.898 ariigos da RSP, cor-
DASP, foi perdendo gradualmente sua importância e impacto con-
respondentes, praticamente, a 100%.6
comitante à perda de poder do primeiro. Com o surgimento da RAP
O conteúdo dos ariigos foi classificado segundo seus /oci e loci.
em 1967, a RSP perdeu a primazia anterior, até ser interrompida em
sendo que as categorias para a classificação foram emergindo da
1974. Durante o período 1981-1989, sua instabilidade do ponto de
própria observação. Em algmis casos, especialmente na RSP, essa
vista editorial não pem1itiu que a antiga importância fosse reassumida,
classificação foi bastante trabalhosa, uma vez que nem sempre era
inclusive porque não propiciou a presença de artigos de caráter
possível precisar rapidamente qual/ocus ou locus era utilizado.
acadêmico, em vários momentos, privilegiando a1iigos de interesse
Buscando-se a maior precisão possível, a classificação por locus
restrito ao público interno. A fase iniciada em 1994 tem sido marcada
foi real izada procurando-se pri v ile giar sempre as tem áticas
pela busca de um nível elevado de qualidade dos artigos e pela eleição
específicas, ou seja, evitava-se, por exemplo, locus mais genéricos
de temas diretamente relacionados a questões importantes colocadas
como "Política Social'', a menos que o texto explicitamente trabalhasse
para a Administração Pública.
com este conceito, e não mencionasse nenhuma política específica.
A RAP apresentou, desde 1967, uma maior estabilidade em
Em relação ao focus, para determiná-lo proctu-ou-se verificar:
termos de linha editorial, periodicidade e nível de qualidade dos
a) se o autor se posicionava explicitamente por este ou aquele enfoque;
artigos, e consolidou-se como principal publicação representativa da
5. Como a pesquisa quantitativa foi iniciada em março de 1993, os dados coletados
dades científicas, cunículos de cursos uni vers itários, citações, 1ivros didáticos etc. referem-se ao período 1930-1 992.
Estas são algumas das formas de socialização e comunicação entre os membros do 6. O número de artigos que não puderam ser classificados seguramente equ ivale a
grupo'"(H OCHMAN in PORTOCARRERO (org.)., 1994 ). Ou citando Kuhn : "A transição menos de 1% do total publicado na revista e teria impacto desprezível nos
para uma ciência desenvo lvida será acompanhada da formação de rev istas espe- resultados finais obtidos. Não foram classificados, devido à impossibilidade de se
cializadas, sociedades de especialistas e currículos acadêmicos". The Structure of ter acesso às publicações, os exemplares de out./nov./dez. de 1940. v. IV, nº L 2
Scientic Revo luti ons"', 2nd ed, Chicago Uni versityofChicago Press, 1970. p. I9. e 3; e o nº 3 do vo lume 109, no período de abr./jun. de 1974 e out./dez. de 1981 .
daRSP
 34 ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA NO BRASIL
b) que autores utilizavam como referencial; c) o "jeito" de colocar a
questão (postura do autor, linguagem, etc.).
Como colocou Golernbiewski, "a escolha dual entre locus e
focus ··ajuda a determinar o tipo de trabalho realizado e quem o fez
(1974: 9).
O COMPORTAMENTO DO FOCUS
Estesfoci 7 correspondem aos possíveis "modelos teóricos" que
compõem o campo de Administração Pública. s Ciência Política9 e
Ciência Administrativa 10 constituem-se seus pilares básicos. A
Ciência J mídica pode ser considerada a "disciplina-mãe" urna vez que
a Administração Pública originou-se, como área de ensino, do Direito
Administrativo, especialmente nos países latinos. 11 A Ciência
Econômica sempre tangenciou o campo de Administração Pública,
especialmente no período em que o Estado faz-se mais presente no
planejamento e na atividade produtiva. Os dois restantes - Episte-
miologia e Outros - foram incluídos por serem de especial interesse
para a pesquisa. No que se refere ao primeiro - Epistemiologia -
objetivou-se destacar o grau de reflexão desenvolvido no campo, sobre
ele próprio. Assim, foram incluídos neste/ocus aquelas reflexões que
visavam uma análise do campo de ensino e pesquisa ou da disciplina
ele Administração Pública. Em " Outros" foram classificados diagnós-
ticos, propostas e relatos de experiências, além de reportagens, in1pres-
sões e defesas de opinião. Estes artigos, de caráter mais descritivo,
não tinham um enfoque claramente definido.
7. Ciência Política, Ciência Jurídica, Ciência Administrativa, Ciência Econômica,
Epistemologia e Outros (artigos sem enfoque definido).
8. Os títulos foram sendo abertos con fonne surgia a necessidade.
9. Considerou-se C iência Política aquele/oc11s que utiliza conceitos e autores
considerados " clássicos" da disc iplina tomada de forma "pura", ou seja, não
aplicada.
1O. Entendeu-se por Ciênc ia Administrativa o referencial teórico normalmente
utilizado no Brasil, nas disciplinas de Teoria Geral da Administução e Teoria
Organizacional, além daqueles constantes no grnpo anterior quando utilizados de
fonna aplicada à administração.
1
11. Beatriz Warhlich atribuiu o grande peso do enfoque legalista na América Latina
ao fato destes países terem sido colônias de Portugal e Espanha, que, por sua vez.
caiTegam doze séCL1los de legislação romana. Ver, para este fim: WARHLICH, 1978:
li 70-92.
i
A CONSTRUÇÃO DO OBJETO DE ESTUDO 35
O fàcus Ciência Administrativa é o mais presente na produção
veiculada pelas duas publicações. Especialmente nas primeiras
décadas de existência da RSP, percebe-se que sua importância vai
crescendo, mas em meados da década de 1960 começa um movimento
declinante . Não obstante ele sempre foi dominante.
A hegemonia do focus Ciência Adminish·ativa surge com maior
nitidez na Revista do Serviço Público, que até 1974 ocupa sempre o
primeiro lugar em termos de participação no total de artigos publi-
cados (com exceção de 1972). Na fase da publicação conespondente
ao período 1981-1989, não consegue manter essa hegemonia,
atingindo seus mais baixos níveis de participação no início da década,
chegando a menos de l 0% em 1984. Nesse ano, o locus Ciência
Política consolida uma tendência de crescimento de sua participação,
iniciada no princípio da década de 1970.
Na RAP, ocorre um movimento similar. A paiiir de 1970, o
.focus Ciência Política ganha espaço, enquanto o focus Ciência
Administrativa sofre fortes oscilações. Estes doisfocus são os domi-
nantes na revista. Da mesma forma que, na RSP, é na passagem da
década de 1970 para a década de 1980 que esse mov imento torna-se
mais crítico, não sendo isolado o fato de que é em 1978 e em 1983
que o focus Ciência Administrativa atinge seu nível mais baixo de
participação no total anual de atiigos publicados ( 19,4% e 15,6%,
respectivamente). No primeiro desses dois anos, suplantado pelojàcus
Outros (o que é, na verdade, indicador de indefinição) e pelo.fàcus
C iência Econômica, que a seguir perderia sua importância na
publicação, assim como o focus Ciência Jurídica já vinha reduzindo.
Em resumo, pode-se afirmar que, do ponto de vista do focus dos
trabalhos, as duas publicações apresentam um processo crescente de
permeabilização de suas linhas editoriais a trabalhos fora do foco da
Ciência Administrativa, abrindo-se a novas abordagens, especialmente
à Ciência Política. Focus mais tradicionalmente ligados à Adminis-
tração Pública, como Ciência Econômica e Ciência Jurídica, perdem
importância nesse movimento.
Esse movimento indica uma crescente abertura do campo de co-
nhecimento em Administração Pública a novos enfoques, por um lado,
e, por outro, a absorção de novas temáticas, para as quais ofocus Ciên-
cia Administrativa e, mesmo, osfocus Ciência Econômica e Ciência
Juridica não oferecem instrumental adequado para seu tratamento.
 36 ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA NO BRASIL
O COMPORTAMENTO DO LOCUS
Para a análise dos loci, a classificação exigiu rnn conjunto maior
de categorias.12 Foram identificados 39 toei.
Examinando cada um dos tocus em sua correlação com os
demais, percebe-se, de imediato, uma aglutinação em tomo do tema
" Ensino e Pesquisa". As demais categorias de tocus relacionam-se
diretamente à estruturação e/ou à atuação do Estado, donde foi pos-
sível identificar dois outros eixos temáticos: o relacionado à "Estru-
turação do Estado", que trata de questões internas ao aparelho do
Estado e outro relacionado às "Políticas Setoriais'', caracterizado por
sua atuação e interação com a sociedade.
Resultam assim três grandes grupos temáticos:
O grupo de toei Estruturação do Estado é o que maior freqüência
apresenta, tanto na RSP como na RAP. Os toei Recursos Humanos,
Reforma e Modernização Administrativa e Organização Adminis-
trativa destacam-se no conteúdo deste tocus. Recursos Humanos é o
tocus que mais contribui para a produção em Administração Pública:
23,6% dos mtigos da RSP e 8,74% da RAP, os dois maiores índices
de cada uma delas. Também se destacam, no total de artigos
publicados, os toei Planejamento Governamental, Organização
Política, Organizações e Finanças Públicas.
A distribuição desses loci não é uniforme ao longo do tempo .
Recursos Humanos (27 ,6% até 1945) e Organização Administrativa
(25, l % até 1945), os dois mais destacados no início da circulação
da RSP não mantêm constante esse nível de participação. Reforma e
Modernização Administrativa é um tema que se comporta de forma
cíclica e influi nos resultados do grupo de toei Estruturação do Estado
nos momentos de mudança institucional.
Os índices do grupo de toei Estruturação do Estado o fazem am-
plamente hegemônico. No início da publicação da RSP (1937), atinge
90% dos mtigos publicados pela Revista. Essa participação se reduziu
progressivamente, sem, no entanto, oferecer ameaça ao predomínio
do grupo. Em 1945, constata-se que o tocus Estruturação do Estado
12. Não partiu-se, de antemão , de um conjunto de temGS, ou daquilo que os
especialistas em análise de conteúdo chamam de "código" . As categorias de loci
foram sendo abertas de acordo com a observação. o u seja, a partir do momento
em que os itens existentes não satisfaziam a necessidade de classificação, abria-
se um novo item.
11
A CONSTRUÇ ÃO DO OBJETO DE ESTU DO 37
cresce e volta a ocupar uma pos ição mais destacada (8 l ,5'Yo dos
art igos publicados). Em 1946, há de novo um leve crescimento
(83,2%). Pode-se supor que as mudanças institucionais de 1945 (fim
do Estado Novo) devem ter promovido um aumento da atenção para
temas ligados à reestruturação do Estado brasileiro. Interrompe-se
uma tendência ele leve queda iniciada em 1941 e que se aprofundará
no final ela década ele 1940. Ao longo da década ele 1950, o grupo de
locus Estruturação do Estado cresce novamente, mas entre oscilações,
mantendo-se, na maior parte do tempo, entre 45% e 65% do total de
aitigos publicados. Na passagem para a década de 1960, o movimento
continua, até 1967, quando cai para 52,3%, logo se recuperando para
depois, no início dos anos 70, iniciar nova tendência de queda. Com
a vo lta da publicação em 1981, o grupo de loci surge sujeito a violentas
oscilações, em pmte motivadas pela irregulaiidade da publicação.
Na RSP, o grnpo Políticas Seto1iais ensaia um crescimento a
paitir de 1947 até 1959, quando passa a oscilar em níveis mais baixos
até que em 1983 atinja o pico de 80,4% do total de aitigos publicados
no ano.
É importante notar que os dados nesse grupo encontram-se
bastante desconcentrados: o tocus com maior participação é Saúde e
Previdência, com 3% do total de artigos publicados, seguido por
Política Tecnológica (2,5%) e Educação (l ,6%). Essa desconcen-
tração aumenta com o tempo, pois no início da vida ela Revista o tocus
Saúde e Previdência têm uma participação relativa muito maior, che-
gando a significar 11,l % do total de artigos publicados no ano de
1943. Na década de 80, Saúde e Previdência toma-se menos impor-
tante, aparecendo na revista apenas em 1982 e 198 6. Em troca, há
uma mudança no interior do grupo, e vários toei se destacam, mas
nenhum deles está presente ao longo de toda a década, sendo mai s
comum serem objetos de artigos publicados em do is ou três anos entre
1981 - 1989, quando têm uma expressiva participação no total artigos
publicados. Esse é o caso de Política Tecnológica (7,4% do total ele
1986), Educação (8 ,7% e 4,5%, em 1983 e 1984), Agr·opecuária
(45,5% e 6, 1%, em 1984 e 1987), Políticas Sociais (31 ,5% em 1983 ),
Planejamento Urbano (6,1% e 10,9%, em 1982 e 1983) e Política
Industrial (3% e 22,8%, em 1982 e 1983). Parte dessas osciláções é
explicada pela publicação de números temáticos que afetam o resul-
tado final. Essa influência, entretanto, não foi tratada como um viés
da pesquisa, uma vez que a adoção de edições temáticas deve ser
 ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA NO BRASIL
38
entendida como urna resposta da linha editorial da revista às demandas
específicas do campo de Administração Pública.
O grupo de loci Políticas Setoriais tem uma presença mais forte
na RAP, algumas vezes superando, inclusive, o grupo Estruturação
do Estado, como na segunda metade da década de 80, ou em 1978,
quando responde por 80% da produção veiculada na Revista. No
periodo 1967-1992, responde por 41,l % ela produção total publicada
na RAP. O locus Saúde e Previdência é o mais importante do grupo,
e corresponde a 13 ,2% do total de artigos publicados na Revista,
chegando a 33,3 % em 19 85. Também se destacam os lo ci
Planejamento Urbano (5,3% no total geral, chegando a 19,4% do total
de 1989), Meio Ambiente (3 ,2%) e Política Tecnológica (2,8%).
Como no caso dos últimos anos da RSP, os loci também se comportam
com grande dispersão, e o grupo Políticas Setoriais é justamente o
que apresenta o maior desvio-padrão.
O grupo de loci Ensino e Pesquisa é, dos três, o menos des-
tacado e o que concentra um menor número de loci. Em contraste com
os grupos Estruturação do Estado e Políticas Setoriais, é mais estável,
apresentando o menor desvio-padrão na maioria dos anos.
Na RSP, inicia-se com níveis de participação muito reduzidos
(0% em 1937), e assume o patamar de cerca de 10% em 1940. No
total, o grupo corresponde a 14,2% da produção veiculada na RSP,
mas raramente alcança 20% da produção (em 1951 , 1955 , 1957 a
1960, 1967 , 1981 e 1988). Até 1967, quando alcança 35,3% da pro-
dução total da Revista, segue uma tendência de crescimento, com
algumas oscilações. A partir daí, volta para o patamar médio , mas,
como os ouh·os dois grupos de loci, sujeita-se a grandes variações.
Os principais loci dentro do grupo são Análises Teórico-Conceituais
(8,2% do total da produção veiculada na RSP, chegando a 33 ,3% em
1982), Legislação (4,3% da produção total) 13 e Ensino e Adrninis-
h·ação ( 1,3% da produção total) . O primeiro locus deixa entrever a
entrada de novos conceitos no processo de formação do novo campo
de conhecimento; inicialmente com artigos traduzidos ou escritos pelos
técnicos do DASP, alguns deles com acesso a cursos nos EUA,
posteriormente incorporando produção de outras fontes. O locus
Legislação tem presença mais significativa nos períodos iniciais, mas
verá sua importância crescer ao longo dos anos 50, para, a partir dos
13. Durante as primeiras décadas, a RSP possuía uma seção de Direito Administrativo.
A CONSTRUÇ.Ã.O DO OBJETO DE ESTUDO 39
anos 60, declinar considera ve lmente ; o que, provave lmente, é
conseqüência da consolidação do campo de Administração Pública,
marcando seu afastamento do Direito Administrativo.
Atiigos sobre Ensino e Pesquisa em Administração Pública têm
uma freqüência muito baixa no início da RSP, em alguns anos igual
a zero. Somente em 1945 atingem uma patiicipação mais destacada,
e na década de 1960 este locus apresentará valores mais significativos,
superando l 0% da produção total veiculada na RSP em l 96 1, 1962
e 1966. Na RAP, o locus tem destaque desde o início da publicação
da revista. Entre 1967 e 1970, corresponde a 20%, 27,3%, 30% e
l 0%, respectivamente.
Na RAP, o compo1iamento do grupo de loci é similar, com
variações significativas dos valores anuais, uma queda ao longo elos
anos 70, um pico em 1983 (56,3 %) e volta a um patamar baixo. No
total, o grupo de loci Ensino e Pesqui sa responde por 14,6% ela
produção total publicada na RAP, um valor praticamente igual aos
14,2% da RSP. A composição do grnpo, no entanto, tem diferenças.
Considerações sobre os dados quantitativos obtidos
As duas publicações coexistiram entre 1967 e 1974, sendo que
pelas três décadas iniciais do período estudado a RAP ainda não era
publicada e, por sua vez, nos anos finais a RSP tivera sua publicação
interrompida. A superposição entre as duas revistas corresponde a um
pequeno intervalo de tempo, relativamente ao período estudado, o que
impede que se avance em trabalhos comparativos, inclusive porque a
RSP, no período posterior ao lançamento da RAP, visivelmente se
enfraquece e passa por um período de instabilidade editorial.
Os primeiros anos desse período de superposição apontam
semelhanças entre a participação dos grupos de loci no total anual
publicado das duas revistas. Nos quatro anos iniciais (1967-1970),
tanto RAP como RSP ostentam forte liderança do grupo Estrutmação
do Estado. É verdade que essa liderança é muito mais hegemônica
na RSP, seguindo a mesma tendência desde seu ano de fundação ,
enquanto na RAP os grupos Políticas Setoriais e Ensino e Pesquisa
têm uma participação maior, relativamente à RSP.
A partir de 1971 , essa semelhança se quebra. A RAP entra em
um período em que o grupo de loci Políticas Setoriais toma a liderança
em alguns anos, seguindo, a partir daí, em alternância na dianteira
40 ADMI NIST RAÇÃO PÚBLICA NO BRASIL
da participação no total de artigos publicados pela Revista, anual-
mente, com o grupo Estruturação do Estado. Na RSP, esse movimento
não chega a se constituir, mas nestes anos ( 1971 - 1974), a participação
do grupo de /oci Estruturação do Estado também se reduz. 14.
Os anos 70 irão se caracterizar, do ponto de vista das publi-
cações estudadas, como um período de instabilidade da participação
dos grupos de loei no total de artigos publicados que marca a emer-
gência de novas preocupações, como também ocorre com os foci. Os
movimentos anunciados timidamente pelas tendências da produção
veiculada pela RSP se realizam de forma mais marcada na RAP e irão
se estender também pela década de 1980.
Esse momento, especialmente a segunda metade da década de
1970 e início da década de 1980, marca uma situação de profunda
mudança no campo de conhecimento. No final da década de 1970 e
ao longo dos anos 80, o comportamento dos grupos de toei sofre
grandes oscilações . Essas oscilações caracterizam o momento de
transição atravessado no período, e se combinam com mudanças
também na participação dos/oei .
A RAP antecipa já em 1971 essa mudança, quando o grupo
Estruturação do Estado cai de 80% para 36,36%, sendo suplantado
pelo grnpo Políticas Setoriais. A partir daí, o comportamento dos
grupos de toei oscila ao longo da década de 1970. Na verdade, pode-
se entender que o comportamento dos grupos de toei indica a
emergência de novas temáticas e de novas abordagens.
Dentre os fatores que influenciéu-am esse processo de mudança,
é inevi tável não mencionar as mudanças institucionais. Não é sem
motivo , por esse ângulo de análise, que se pode identificar na
passagem da década de 70 para a de 80 o momento em que as novas
tendências emergentes começam a ser vislumbradas, à medida que
se torna mais claro o processo de transição da ditadura militar para o
governo civil.
Observando-se o comportamento dos grupos de toei ao longo
do tempo, é possível sugerir que nos momentos de mudança ou ins-
tabilidade institucional mais forte o grupo de toei Estruhtração do
Estado tende a aumentar sua participação, ainda que após algum
14 . Nesse período, a RSP sofre várias mudanças editoriais e proliferam os artigos de
membros do Judiciário e de altos escalões do Executivo. Cf. KEINERT & VAZ
(1994: 17).
A CONSTRUÇÃO DO OBJETO DE ESTUDO 41
tempo esse grupo de loci reduza sua participação. Nesses momentos,
as tendências vigentes sofrem desvios, ai nda que temporários .
Da mesma forma, pode-se considerar o crescimento do grupo
Estrnh1ração do Estado em meados da década de 1940, na RSP, um
reflexo do fim do período ditatorial de Getúlio Vargas, e seu cresci-
mento nos anos imediatamente após 1964 como reflexo da instauração
da ditadura militar.
Entretanto, estas duas mudanças, ainda que atestem a influência
dos câmbios institucionais sobre a produção em Administração Pú-
blica, não apontam mudanças que caracterizem crise ou emergência de
novas tendências no campo de conhecimento. Ao contrário, ao longo
do periodo que vai até os anos 70, a distribuição porcentual dos artigos
publicados em grupos de toei observada é consistente com a centra-
lidade nas questões referentes à estruh1ração do Estado que o campo ele
conhecimento da Administração Pública apresenta no perioclo.
A trajetória das duas publicações, portanto, do ponto de v ista
do comportamento dos toei, apresenta um ciclo longo e nítido de
absoluto predomínio de uma produção com focus em Ciência
Administrativa e tocus em Estruturação do Estado. Os toei destacados
no grupo Estruturação do Estado são , exatamente, aqueles mais
envolvidos com o processo de constituição de um no vo arcabouço
institucional para o Estado brasileiro. Essa é a preocupação dominante
do período. O Estado não é apenas o centro, mas praticamente, o
único objeto de atenção dos artigos publicados.
À medida que esse arcabouço instih1ciona! vai sendo conso li-
dado e, a seguir, questionado - em relação à visão de Estado que o
sustenta - , a discussão sobre o papel do Estado e suas ações se torna
mais importante que a discussão sobre sua estruturação. O predomínio
do focus Ciência Administrativa e do tocus Estrnturação do Estado
se enfraquece pelo surgimento de uma tendência à incorporação de
outros.foei e toei. Observa-se um deslocamento da participação dos
grupos de Zoei e dosfoei no conjunto de artigos publicados por ano:
os artigos com tocus Estruturação do Estado efocus Ciência Admi-
nistrativa perdem sua importância relativa, e emergem ofocus Ciência
Política e o grupo de tocus Políticas Setoriais, que chega a ultrapassar
70% de participação do total de artigos publicados, em anos da década
de 1980, tanto na RAP como na RSP. Seu crescimento está visivel-
mente relacionado à emergência de novas temáticas, como se percebe
pelos vários toei que se tornam objeto de atenção .
 42 ADM INISTRAÇÃO PÚBLICA NO BRASlL
A produção em Administração Pública, assim, entra em um
período de irregularidade do ponto de vista do locus e, como dito
acima, também do fo cus. A interpretação mai s segura para este
fenômeno é que se trata de uma crise no campo de conhecimento em
Administração Pública, que deve, de alguma maneira, produzir um
novo consenso em seu interior.
Daquela preocupação e desenvo lvimentos iniciais, o trabalho
acumulou condições de permitir uma releitura da s conclusões
preliminares. Em especial, do último artigo publicado (KEINERT,
15
l 994a), em que se utiliza, pela primeira vez, a noção de paradigma
fazendo-se uma análise mais ampla dos dados obtidos, tanto no plano
da abrangência histórica quanto no plano da inferência realizada.
Realiza-se, também, uma periodização especialmente referida
ao contexto político-histórico, que fo i uma forma inicial e preliminar
de organização dos dados (ver Quadro II). Entendida como ponto de
chegada, naquele momento, demandou uma releitura posterior,
especialmente a partir do aprofundamento dos conceitos de KUHN
(1975; 1970; 1977a; 1977b), que discutiremos em seguida.
Paradigmas e produção de conhecimento
A história do conhecimento, contemporaneamente, re úne abor-
1 dagens interdiscip linares - notadamente históricas, filosóficas e
sociológicas - objetivando a constituição de um espaço independente
para a ciítica e a reflexão acerca dos caminhos e descaminhos do de-
senvolvimento científico. 16
15. A noção de paradigma era utilizada de fo n11a mais resn;ta, provavelmente mais
próxima da idéia de mode lo, a qual foi ampliada posterio1111ente. A própria idéia
de "evolução" da disciplina foi substih1ída pela de "desenvolvimento" , uma vez
que, para ser coerente com a noção kuhniana, deve-se respeitar alguns princípios
como o da descontinuidade, do externalismo, da incomensmabilidade, dentre
outros, na produção do conhecimento; isto é, o não-evo lucionismo.
! 6. Agradec imentos devem ser dirigidos ao grupo de estudos do Programa de Pós-
Grad uação em Comunicação e Semiótica do. PUC/SP - que reali za quinze-
nalmente os Seminários sobre Historiografia e 1vfetodologia em História da
Ciência - pela grande contribui ção que representou para esta reflexão a
participação da autora naqueles encontros. Um agradecimento especial é dirigido
à Professora Ana Maria Alfo nso-Go ldfarb. sua coordenadora. pe lo convite à
participação.
A CONSTRUÇÃO DO OBJETO DE ESTUDO 43
Este tipo de abordagem, conhecido hoje como HisLória da
Ciência, inicialmente configurou-se num formato chamado de Histó-
ria Pedigree, ou seja, um tipo de e laboração de caráter notadamente
evolucionista que buscava, seletivamente, em épocas antigas, idéias,
teorias ou personagens que tivessem contribuído para que as formas
de conhecimento vigentes na época evoluíssem até aquilo que se
conhece hoje como ciência moderna.
A ciência moderna seria, assim, o apogeu desta marcha através
de um caminho histórico inevitável pelo qual passaria a ciênc ia na
busca do verdadeiro conhecimento sobre a natureza. Além disso, a
ciência vinha da teoria e não da prática, o que impedia que forma s
diferentes de conhecimento - como aquelas das civilizações 01ientais
- pudessem ser consideradas ciência (ALFONSO-GOLDF ARB, 1994 ).
A visão evolucionista abrigava, internamente, a noção de con-
tinuidade, a qual dava ênfase à linearidade, destacando elementos de
ligação entre os diferentes estágios do conhecimento.
E, por último, acreditava-se que o desenvolvimento científico
estaria condicionado aos problemas históricos internos à própria
Ciência, ou seja, à evolução de seus conceitos e teorias, independen-
temente da sociedade ou deis meios nos quais estes são produzidos.
Este pressuposto ficou conhecido como interna/ismo.
A partir dos anos 60, algum as novas teorias foram desenvol-
vidas como alternativas ao positivismo ou empirismo lógico - a cor-
rente dominante que abrigava os pressupostos antes colocados - den-
tre as quais destaca-se a obra de .Thomas Kuhn.
Tomas Kuhn tornou-se especialmente conhecido por sua obra
The Structure of Scienti.fic Revolutions ( 1962), 17 que se tomou um
best-seller da História da Ciência. Este livro, escrito em tom radical
e apaixonado e, utilizando uma série de interessantes exemplos histó-
ricos, em pouco tempo revolucionaria os pilares da reflexão histórico-
filosófica sobre a ciência.
Além de ter contribuído para pôr termo efetivamente às
doutrinas centrais do positivismo, tais como a cumulatividade e o
17. O livro The Structure o.fScientific Revotutions fo i publicado m;ginalmente em
1962, tendo levado mais de quinze anos para ser conc!L1ído. A segunda edição.
revista e ampliada, fo i publicada em 1970. Nesta nova edição. o autor aperfeiçoa
alguns de seus conceitos anteriores, moti vo pelo qual utilizaremos a segunda
ed'ição como referência. Será utilizada a versão em inglês, uma vez que, somente
se tem notícia da tradução, para a língua porh1guesa, da primeira edição (KUHN,
T. A Estrutura das Revoluções Científicas", Perspectiva, São Paulo, 1975).
 44 ADMIN ISTRAÇÃO PÚBLICA NO BRASIL
evolucionismo, o campo de História da Ciência "foi enormemente
beneficiado com a obra de Thomas Kuhn" . 18
O filósofo americano Richard Rorty, em aiiigo recente-atribui
grande importância ao trabalho de Kuhn desde uma perspectiva
filosófica tratando-o, inclusive, como "filósofo", 19 dado que o trabalho
de Kuhn remapeia a cultura, isto é, " sugere um modo original e
promissor de pensar a relação entre vários setores da atividade huma-
na" (RORTY , 1996: 5-10).
Com The Structure o/Scientific Revolutions Kuhn questiona
a crença de que o sucesso da ciência se deva à aplicação de um "mé-
todo científico" específico, e ainda que a substituição de uma teoria
científica por outra seja algo que dependa apenas da lógica fria e
precisa, sendo, antes , análoga ao processo de substituição de uma
instituição política por outra.
Assim começa a desmoronar a hierarquia tradicional de dis-
ciplinas, segundo a qual acreditava-se, por exemplo, que os cientistas
naturais tetiam uma via de acesso privilegiado à realidade e à verdade.
Citando novamente Rorty:
A leitura de Kuhn levou-me a pensar que, em
vez de mapear a cultura com uma régua hie-
rárquica epistêmico-ontológica, encimada
pelas categorias de "lógico '", "objetivo" e
"cientifico ", deveríamos antes tentar ma-
pear a cultura por meio de um espectro
sociológico indo da esquerda caótica - em
18. Laudan (1993: 19). Os autores afirmam que a obra de Kuhn é responsável. em
grande medida. pela vitalidade e autoconfiança expressa pelo campo nas últimas
duas décadas .
19. Como se sabe Thomas Kuhn doutorou-se em fisica antes de se tornar historiador
autodidata da C iência do Século XV li. O próprio Kuhn se autodenominava desta
fonna: histo1iador da ciência. R01ty afirma que se ele "tivesse escrito mn obituáiio,
não teria deixado de chamar Kuhn de filósofo", referindo-se a uma ceita resistência
na comunidade filosófica em aceitá- lo como um integrante legítimo. Sem
querennos nos delongar excessivamente nesta questão. acreditamos que a citação
é elucidativa, uma vez que o autor - na condição de um dos mai s importantes
filósofos americanos da atual idade -manifesta seu "ressentimento pelo fato de
Kuhn ter sido constantemente n·atado por meus (de Rorty) colegas filósofos como,
na melhor das hipóteses, um cidadão de segunda c lasse na comunidade filosófica,
quando não como mn inn·uso que não tinha por que se meter com uma disciplina
para a qual não tinha fonnação adequada" (RORTY, 1996: 5-1 O).
'I
11
A CONSTRUÇÃO DO OBJETO DE ESTUDO 45
que critérios estão sempre em mutação - à
direita conformista - em que eles estão. ao
menos por algum tempo, firmemente estabe-
lecidos ( 1996).
Pensar nos termos de um tal espectro possibilita perceber o
movimento de uma dada disciplina rnmo à esquerda nos períodos
revolucionários e rumo à direita nos períodos estáveis e monótonos
- que Kuhn chamava de períodos de "Ciência Normal" .20
Convém salientar que, diferentemente do que ambicionava, o
ve1ificacionismo e o falsificacionismo, não há em Kulm a intenção de
estatuir um ctitério capaz de distinguir, com alguma nitidez, o que é
ciência e o que é pseudociência ou metafisica. Em momento algum
Kuhn estipula a forma a ser ostentada pelas teorias e os modos pelos
quais devem buscar evidência favorável ou contrária às suas pretensões
de verdade para que possam ser consideradas científicas. Sua análise
se limita a mostrar como tem sido historicamente construída a
científicidade, e não que requisitos lógico-empÍlicos precisam ser sa-
tisfeitos para que uma disciplina se conve1ia em ciência (OLI VA, 1994 ).
O livro A Estrutura das Revoluções Cientificas foi o marco
inicial de uma obra polêmica e relevante na discussão histórico-
filosófica a respeito da produção do conhecimento. Como co loca
Rorty, " ... a essa altura, todas as ciências sociais passaram por um
processo de 'kuhnização' , marcado por uma maior disponibilidade
para admitir que não há um modelo único de pesquisa relevante num
dado setor da cultura" (1996). Foi naquela obra que Kuhn inicialmente
expôs os conceitos que julgava fundamentais na explicação da mu-
dança científica: paradigma, ciência nom1al, crise, revolução cientí-
fica . É destes conceitos que provém a idéia de incomensurabilidade.
importante elemento na superação da visão evolucionista.
20. R01ty se alinha entre os defensores da abordagem pragmatista. junto com Foucau lt,
Habennas, Kuhn, dentre outros. O pragmatista desconfia no mais alto grau possível
da idéia positi vista de que a racionalidade é uma questão de aplicar critétios. Na
abordagem pragmatista os "fatores culturais" evidentemente desempenham um
papel central, mas colocados "dentro" da comunidade onde ganham sentido, de
tal sorte que entre o indivíduo que busca a liberdade e o Estado. o mercado , o
meio ambiente, a emp' csa ou o que é que seja. é preciso sempre identificar
processos de mediação historicamente determinados, ao in vés do espaço vazio
onde se instala a ética da unanimidade. Ver. por exemplo. Rorty, R. "Solidariedade
ou objetividade?" . Novos Escudos, n. 36, julho 1993, p. 113-20.

ADMINISTRAÇÃO PÚl3LICA NO BRASIL
46
Kubn consegue, com a noção de paradigma, justificar a descon-
tinuidade da ciência, à medida que lhe atribui a propriedade de ser
incomensurável. ou seja, o novo paradigma não engloba nem deriva
do velho, não podendo ser considerado nem superior, nem inferior,
não podendo, inclusive ser medido ou comparado ao anterior.
Desta fom1a, o conceito kuhniano de mudança científica a ca-
racteriza como um processo descontínuo dado por um salto não quan-
tificável entre o velho e o novo, o que obviamente desmonta com a
i visão positivista de cumulatividade.
l" Ainda, na proposição kubniana o conceito de revo lução
cientifica é de imp01iância fundamental, à medida que representa uma
"quebra" no pensamento científico. Estes períodos revolucionários -
momentos em que vários candidatos a paradigma, ainda incompletos,
tentam substituir o anterior - são, para Kubn, sempre precedidos de
períodos de crise -períodos de insegurança em que o paradigma vi-
gente não mais consegue explicar satisfatoriamente os fenômenos a
serem analisados. Da transição de um paradigma em crise para outro
pode surgir um novo período de Ciência Normal, período no qual volta
a prevalecer o consenso em torno de um paradigma.
21
O termo paradigma - apesar de sua definição pouco precisa
- pode ser considerado "chave" no entendimento da proposição
kubniana, e, essencial, para os propósitos deste trabalho.
Para Kubn esta importância se expressa já no prefácio da obra
antes citada quando se manifesta
... especia lmente impressionado com o
número e a extensão dos desacordos expres-
sos existentes entre os cientistas sociais no
que di::: respeito à nature:::a dos métodos e
problemas cient(ficos legítimos (grifo nos-
so). Conforme expressou-se o autor: A ten-
tativa de descobrir a fonte desta diferença
levou-me ao reconhecimento do papel de-
sempenhado na pesquisa científica por
2 l. Margaret Masterman em seu trabalho "A Natureza do Paradigma", in L AKATOS.
l. & ML!SGRAV E, A. (orgs.). "A Crítica e o Desenvolvi mento do Conhecimento'',
São Paulo": Cultrix/E DUSP, 1979, discute as múltiplas definições de paradigma
na obra de Kuhn.
-
A CONSTRUÇÃO DO OBJETO DE ESTUDO 47
aquilo que. desde enteio. chamo de ··para-
digmas ,. (KUHN , l 970).
Paradigma pode ser definido como o conjunto de regras,
normas, crenças, valores e teorias que direcionam a ciência produzida
por uma determinada comunidade científica em um período de tempo
específico, o qual fornece a esta mesma comunidade soluções mode-
lares nas quais surgem as ·tradições coerentes e especificas da pes-
quisa científica. Por meio do paradigma se estabelece uma espécie de
consenso intersubjetivo influenciado por motivos inconscientes, esté-
ticos, metafisicos, teológicos emocionais e até políticos, o qual vai
detenninar o que deve ser considerado autêntico problema no âmbito
de detenninada disciplina.22
Como j á foi colocado, não se pode afinnar que exista na obra
de Kubn uma definição unívoca. Citando uma de suas veiculações
mais elucidativas: "Considero 'paradigmas' as realizações científicas
universalmente reconhecidas que, durante algum tempo, fornecem
problemas e soluções modelares para uma comunidade de praticantes
de uma ciência" (1970: 58).
Em "Second Tbougbts on Paradigms"( l 977a), Kubn reconhece
que seu antigo uso do termo paradigma confunde duas noções
bastante distintas: exemplares, que são tipologias de solução de pro-
blemas concretos aceitas pela comunidade científica e matrizes disci-
plinares, que são os elementos compartilhados que explicam o caráter
relativamente não-problemático da comunicação profissional e a
relativa unanimidade de julgamento profissional subsistente numa
comunidade científica:
Um sentido de paradigma é global, abran-
gendo todos os compromissos compartilha-
dos por um grupo científico; o outro isola
um tipo particularmente importante de com-
promisso e é, portanto, um subconjunto do
primeiro.( ... ) No livro (Tbe Structure), o ter-
mo paradigma tem praticamente o mesmo
significado da expressão ''comunidade
22. Trata-se de uma leitura de várias definições possíveis existentes em Kuhn.
fonnulação esta adotada neste trabalho .
 48 ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA NO BRASIL
científica ". Um paradigma é o que os mem-
bros de uma comunidade cient(fica, e ape-
nas eles, partilham, e. inversamente, uma
comunidade científica consiste em homens
que partilham um paradigma 23 (KUHN,
1977a: 460).
Assim, pode-se afimrnr que "a Ciência Normal é praticada por
uma comunidade científica que compartilha uma matriz disciplinar
baseada num estoque pmtilhado de exemplares" (OLIVA, 1994).
"A pesquisa normal, mesmo em seus melhores produtos, é uma
atividade altamente convergente baseada filmemente num consenso
alcançado através de educação científica e reforçado pela posterior
vida profissional", afinna Kuhn ( l 977a: 227).
O paradigma tem, assim, o poder de estipular o que deve ser
considerado problema e soluções modelares, criando em torno de si
um consenso especial capaz de levar todos que a ele aderem a ver o
mundo de maneira convergente. A visão de mundo contida num
l paradigma tem a peculiaridade de ser compartilhada consensualmente
como se fora inevitável (OLIVA, 1994).
Com base nesse padrão , o desenvolvimento ocorre de um
1
li consenso para outro, e enfoques alternativos não estão nmmalmente
em competição. Exceto sob condições bastante especiais, o praticante
de uma ciência não pára para examinar modos divergentes de expli-
cação ou experimentação (Ku1-1N, 1977c: 232).
CONCLUSÕES PRELfMlNARES E
NOY A PROBLEMATIZAÇÃO: O QUE É
PÚBLICO NO BRASIL?
Analisando-se as primeiras agregações de dados, verificou-se
existir uma concentração de locus - objeto empírico estudado - e
focus - instrumental teórico utilizado - dos artigos analisados em
23. Trata-se daquilo que o próprio Kuhn reconhece (no seu posfácio de 1969 ao
"Estrutura"), esta como sendo uma "definição circular", ou seja. o paradigma
define comunidade científica ao mesmo tempo que é por ela definido. Uma
discussão interessante sobre esta questão encontra-se em Hochman ( 1994).
j
.1
A CONSTRUÇÃO DO OBJETO DE ESTUDO 33
produção em Administração Pública, inclusive por conta do longo
período em que a RSP não circulou ou o fez de fom1a precária.
Analisando o conteúdo dos artigos publicados nas duas revistas,
é possível obter indicações sobre o compmiamento ela produção em
Administração Pública. A análise dos dados mostra que a RAP, como
publicação, surgiu muito mais sensível às mudanças que se dese-
nharam no campo de conhecimento da Administração Pública a pa1tir
dos anos 70. A RSP não deixou de senti-las, mas teve menos condições
de refleti-las, principalmente nos anos imediatamente anteriores à
interrupção de 1974. A revista manteve uma relativa inércia na com-
posição de suas edições, em tem1os de locus e .focus, que só seria
quebrada na fase irregular ela década ele 1980. Pode-se, até mesmo,
perguntar o quanto a inte1111pção da publicação ela RSP não reflete o
fato de que esta não se adaptava às mudanças no campo de conhe-
cimento de Administração Pública que se engendravam, ou seja, uma
possível tentativa ele manter o status quo.
Para analisar a produção veiculada nas Revistas , foram
classificados os artigos publicados por elas até 1992, s o que corres-
pondeu a 721 artigos da RAP (100%) e 3.898 artigos da RSP, cor-
respondentes, praticamente, a 100%.6
O conteúdo dos artigos foi classificado segundo seus foci e loci.
sendo que as categorias para a classificação foram emergindo da
própria observação. Em alguns casos, especialmente na RSP, essa
classificação foi bastante trabalhosa, uma vez que nem sempre era
possível precisar rapidamente qualjàcus ou locus era utilizado.
Buscando-se a maior precisão possível, a classificação por locus
foi realizada procurando-se privilegiar sempre as temáticas
específicas, ou seja, evitava-se, por exemplo, locus mais genéricos
como "Política Social", a menos que o texto exp licitamente trabalhasse
com este conceito, e não mencionasse nenhuma poíítica específica.
Em relação ao focus, para determiná-lo procurou-se verificar:
a) se o autor se posicionava explicitamente por este ou aquele enfoque;
5. Como a pesquisa quantitativa foi iniciada em março de l 993, os dados coletados
referem-se ao período l 930-1992.
6. O número de artigos que não puderam ser classificados seguramente equivale a
menos de l % do total publicado na revista e teria impacto desprezível nos
resultados finais obtidos. Não foram classificados, devido il impossib ilidade de se
ter acesso às publicações, os exemplares de out./nov./dez. de l 940, v. IV, nº l. 2
e 3; e o nº 3 do vo lume 109, no período de abr./jun. de l 974 e out./dez. de l 98 l.
daRSP.
34 ADMINISTRAÇÃO PÚBLl CA NO BRASIL
b) que autores utilizavam corno referencial ; c) o "jeito" de colocar a
questão (postura do autor, linguagem, etc.).
Como colocou Golembiewski, "a escolha dual entre locus e
focus ., ajuda a determinar o tipo de trabalho realizado e quem o fez
( 1974: 9).
O COMPORTAMENTO DO FOCUS
Estes/oci 7 cotTespondem aos possíveis " modelos teó ricos" que
compõem o campo de Administração Pública.s C iência Política 9 e
Ciência Aclministrativa 10 constituem-se seu s pilares básicos. A
Ciência J Lu·ídica pode ser considerada a "disciplina-mãe" urna vez que
a Administração Pública originou-se, como área de ensino, elo Direito
Administrativo, especialmente nos países latinos. 11 A C iência
Econômica sempre tangenciou o campo de A dministração Pública,
especialmente no período em que o Estado faz-se mais presente no
planejamento e na atividade produtiva. Os dois restantes - Episte-
miologia e Outros - foram incluídos por serem de especial interesse
para a pesquisa. No que se refere ao primeiro - Epistemiologia -
objetivou-se destacar o grau de reflexão desenvolvido no campo, sobre
ele próprio. Assim, foram incluídos nestejocus aquelas reflexões que
visavam uma análise do campo de ensino e pesquisa ou da disciplina
de Adminish·ação Pública. Em " Outros" foram classificados diagnós-
ticos, propostas e relatos de expe1iências, além de reportagens, impres-
sões e defesas de opinião. Estes artigos, de caráter mais descritivo,
não tinham um enfoque claramente definido.
7. Ciência Política, C iência Jurídica, C iência Administrativa, Ciência Econômica,
Epistemologia e Outros (artigos sem enfoque de tinido).
8. Os títulos foram sendo abertos conforme surg ia a necessidade.
9. Cons iderou-se Ciência Política aquele jàcus que utiliza concei tos e autores
considerados "clássicos" da disciplina tomada de fo rma "pura" , ou seja, não
aplicada.
1O. Entendeu -se por C iência Administrati va o refe rencial teóri co normalmente
utili zado no Bras il , nas disc iplinas de Teoria Gerai da Ad ministração e Teoria
Organizac ional , além daqueles constantes no grnpo anterior quando utilizados de
forma aplicada à administração.
11 . Beatriz Warhlich atribuiu o grande peso do enfoque legalista na América Latina
ao fato destes países terem sido colàn ias de Portugal e Espanha, que, por sua vez.
caITegam doze séculos de legislação romana. Ver, para este fim : WARHUCH, 1978:
70-92.
A CONSTRUÇÃO DO OBJETO DE ESTUDO 35
O focus Ciência Administrativa é o mais presente na produção
ve iculada pelas duas publicações. Especia lmente nas primeiras
décadas de existência da RSP, percebe-se que sua importância vai
crescendo, mas em meados da década de 1960 começa um movimento
declinante. Não obstante ele sempre foi dominante.
A hegemonia do focus Ciência Administrativa surge com maior
nitidez na Revista do Serviço Público, que até 1974 ocupa sempre o
primeiro lugar em tem10s de participação no total de artigos publi-
cados (com exceção de 1972). Na fase da publicação con-espondente
ao período 1981-1989, não consegue manter essa hegemoni a,
atingindo seus mais baixos níveis de participação no início da década,
ch egando a menos de l 0% em l 984. Nesse ano, o locus Ciência
Política consolida uma tendência de crescimento de sua participação,
iniciada no princípio da década de 1970.
Na RAP, ocorre um movimento similar. A paiiir de 1970, o
jocus Ciência Política ganha espaço, enquanto o .focus Ciência
Administrativa sofre fortes oscilações. Estes doisfocus são os domi-
nantes na revista. Da mesma forma que, na RSP, é na passagem da
década de 1970 para a década de 1980 que esse movimento torna-se
mais crítico, não sendo isolado o fa to de que é em 1978 e em 1983
que o focus Ciência Administrativa atinge seu nivel mais baixo de
pmiicipação no total anual de artigos publicados (19.4% e 15 ,6%,
respectivamente). No primeiro desses dois anos, suplantado pelofocus
Outros (o que é, na verdade, indicador de indefinição) e pelo jocus
Ciência Econômica, que a seguir perderia sua importância na
publicação, assim como o focus Ciência Jurídica já vinha reduzindo.
Em resumo, pode-se afirmar que, elo ponto de vista do focus dos
trabalhos, as duas publicações apresentam um processo crescente de
permeabilização de suas linhas editoriais a trabalhos fora do foco da
Ciência Administrativa, abrindo-se a novas abordagens, especialmente
à Ciência Política. Focus mais tradicionalmente ligados à Adminis-
tração Pública, como Ciência Econômica e Ciência Jurídica, perdem
importância nesse movimento .
Esse movimento indica urna crescente abertura do campo de co-
nhecimento em Administração Pública a novos enfoques, por um lado,
e, por outro, a absorção de novas temáticas, para as quais ofocusCiên-
cia Administrativa e, mesmo, osfocus Ciência Econômica e Ciência
Jurídica não oferecem instrumental adequado para seu tratamento.
36 A DMINISTRAÇÃO PÚBLICA NO BRASIL
O COMPORTAMENTO DO LOCUS
Para a análise dos toei, a classificação exigiu um conjunto maior
de categorias.12 Foram identificados 39 toei.
Examinando cada um dos locus em sua correlação com os
demais, percebe-se, de imediato, uma aglutinação em torno do tema
"Ensino e Pesquisa". As demais categorias de tocus relacionam-se
diretamente à estrnturação e/ou à atuação do Estado, donde foi pos-
sível identificar dois outros eixos temáticos: o relacionado à "Estru-
h1ração do Estado", que trata de questões internas ao aparelho do
Estado e outro relacionado às "Políticas Setoriais", caracterizado por
sua ahiação e interação com a sociedade.
Resultam assim três grandes grnpos temáticos:
O grnpo de toei Estruturação do Estado é o que maior freqüência
apresenta, tanto na RSP como na RAP. Os toei Recursos Humanos,
Refom1a e Modernização Administrativa e Organização Adminis-
trativa destacam-se no conteúdo deste tocus. Recursos Humanos é o
toeus que mais contribui para a produção em Administração Pública:
23,6% dos artigos da RSP e 8,74% da RAP, os dois maiores índices
de cada uma delas. Também se destacam, no total de artigos
publicados, os to ei Planejamento Governamental, Organização
Política, Organizações e Finanças Públicas.
A distribuição desses toei não é uniforme ao longo do tempo.
Recursos Humanos (27 ,6% até 1945) e Organização Administrativa
(25 , l % até 1945), os dois mais destacados no início da circulação
da RSP não mantêm constante esse nível de participação. Reforma e
Modernização Administrativa é um tema que se compmta de forma
cíclica e influi nos resultados do grupo de toei Estruhlfação do Estado
nos momentos de mudança instih1cional.
Os índices do grupo de toei Estruh1ração do Estado o fazem am-
plamente hegemónico. No início da publicação daRSP (1937), atinge
90% dos artigos publicados pela Revista. Essa participação se reduziu
progressivamente, sem, no entanto, oferecer ameaça ao predomínio
do grnpo. Em 1945, constata-se que o loeus Estruturação do Estado
12. Não partiu -se, de antemão. de um conjunto de temas, ou daquilo que os
especialistas em análise de conteúdo chamam de "código" . As categorias de /oci
foram sendo abertas de acordo com a observação, ou seja, a partir do momento
em que os itens existentes não satisfaziam a necessidade de classificação, abria-
se um novo item.
A CONSTRUÇÃO DO OBJETO DE ESTUDO 37
cresce e volta a ocupar uma posição mais destacada (8 1,5% dos
art igos publicados). Em 1946, há de novo um leve crescimento
(83,2%). Pode-se supor que as mudanças institucionais de 1945 (fim
do Estado Novo) devem ter promovido um aumento da atenção para
temas ligados à reestrnturação do Estado brasileiro. Interrompe-se
uma tendência de leve queda iniciada em 1941 e que se aprofundará
no final da década de 1940. Ao longo da década de 1950, o grupo de
loeus Estruh1ração do Estado cresce novamente, mas entre oscilações.
mantendo-se, na maior parte do tempo, entre 45% e 65 % do total de
artigos publicados. Na passagem para a década de 1960, o movimento
continua, até 1967, quando cai para 52,3%, logo se recuperando para
depois, no início dos anos 70, iniciar nova tendência de queda. Com
a volta da publicação em 1981 , o grupo de toei surge sujeito a violentas
oscilações, em parte motivadas pela irregularidade da publicação.
Na RSP, o gmpo Políticas Setoriais ensaia um crescimento a
partir de 1947 até 1959, quando passa a oscilarem níveis mais baixos
até que em 1983 atinja o pico de 80,4% do total de artigos publicados
no ano.
É importante notar que os dados nesse grupo encontram-se
bastante desconcentrados: o loeus com maior participação é Saúde e
Previdência, com 3% do total de artigos publicados, seguido por
Política Tecnológica (2,5%) e Educação (l ,6%). Essa desconcen-
tração aumenta com o tempo, pois no início da vida da Revista o locus
Saúde e Previdência têm uma patticipação relativa muito maior, che-
gando a significar l l, l % do total de artigos publicados no ano de
1943 . Na década de 80, Saúde e Previdência toma-se menos impor-
tante, aparecendo na revista apenas em 1982 e 1986. Em troca, há
uma mudança no interior do grupo, e vários loci se destacam, mas
nenhum deles está presente ao longo de toda a década, sendo mais
comum serem objetos de aitigos publicados em dois ou três anos entre
1981-1989, quando têm uma expressiva participação no total artigos
publicados. Esse é o caso de Política Tecnológica (7,4% do total de
1986), Educação (8 ,7% e 4,5%, em 1983 e 1984), Agropecuária
(45 ,5% e 6,1%, em 1984e 1987), Políticas Sociais (31,5% em 1983),
Planejamento Urbano (6,1% e 10,9%, em 1982 e 1983 ) e Política
Industrial (3% e 22,8%, em 1982 e 1983 ). Parte dessas oscilações é
explicada pela publicação de números temáticos que afetam o resul-
tado final. Essa influência, entt·etanto, não foi tratada como um viés
da pesquisa, uma vez que a adoção de edições temáticas deve ser
38 ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA NO BRAS IL
A CONSTRUÇÃO DO OBJETO DE ESTU DO 39

entendida como uma resposta ela linha editorial da revista às demandas

anos 60, declinar considerave lmente; o que, pro vavelmente, é
específicas do campo de Administração Pública.
conseqüência da consolidação do campo de Administração Pública,
O grnpo de loci Políticas Setoriais tem uma presença mais forte
marcando seu afastamento do Direito Administrativo.
na RAP, algumas vezes superando, inclusive, o grupo Estruturação
Artigos sobre Ensino e Pesquisa em Administração Pública têm
do Estado, como na segunda metade da década de 80, ou em 1978,
uma freqüência muito baixa no início da RSP, em alguns anos igual
quando responde por 80% da produção veiculada na Rev ista. No
a zero. Somente em 1945 atingem tuna participação mais destacada,
pe1iodo 1967-1992, responde por 41 , l % da produção total publicada
e na década de 1960 este locus apresentará valores mais significativos,
na RAP. O locus Saúde e Previdência é o mais importante do grnpo,
superando l 0% da produção total veiculada na RSP em 196 1, l 962
e corresponde a 13 ,2% do total de artigos publicados na Revista,
e 1966. Na RAP, o locus tem destaque desde o início da publicação
chegando a 33 ,3 % em 19 85 . T am bém se destacam os loci
da revista. Entre 1967 e 1970, corresponde a 20%, 27,3%, 30% e
Planejamento Urbano (5,3% no total geral, chegando a 19,4% do total
10%, respectivamente.
de 1989), Meio Ambiente (3,2%) e Política Tecnológica (2 ,8%) .
Na RAP, o compo1iamento do grupo de loci é similar, com
Como no caso dos últimos anos da RSP, os loci também se comportam
variações significativas dos valores anuais, uma queda ao longo dos
com grande dispersão, e o grnpo Políticas Setoriais é justamente o
anos 70, um pico em 1983 (56,3 %) e volta a um patamar baixo. No
que apresenta o maior desvio-padrão.
total, o grupo de loci Ensino e Pesquisa responde por 14,6% da
O grupo de loci Ensino e Pesquisa é, dos três, o menos des-
produção total publicada na RAP, um valor praticamente igual aos
tacado e o que concentra um menor número de loci. Em contraste com
14,2% da RSP. A composição do grupo, no entanto, tem diferenças.
os grupos Estrnturação do Estado e Políticas Setoriais, é mais estável,
apresentando o menor desvio-padrão na maioria dos anos.
Considerações sobre os dados quantitativos obtidos
Na RSP, inicia-se com níveis de participação muito reduzidos
(0% em 1937), e assume o patamar de cerca de 10% em 1940. No
As duas publicações coexistiram entre 1967 e 1974, sendo que
total, o grupo conesponde a 14,2% da produção veiculada na RSP,
pelas três décadas iniciais do período estudado a RAP ainda não era
mas raramente alcança 20% da produção (em 1951 , 1955 , 1957 a
publicada e, por sua vez, nos anos finais a RSP tivera sua publicação
1960, 1967 , 1981 e 1988). Até 1967, quando alcança 35,3% da pro-
intenompida. A superposição entre as duas revistas corresponde a um
dução total da Revista, segue uma tendência de crescimento, com
pequeno intervalo de tempo, relativamente ao período estudado, o que
algumas oscilações. A partir daí, volta para o patamar médio, mas,
impede que se avance em trabalhos comparativos, inclus ive porque a
como os outros dois grupos de loci , sujeita-se a grandes variações.
RSP, no período posterior ao lançamento da RAP, visivelmente se
Os principais loci dentro do grnpo são Análises Teórico-Conceituais
enfraquece e passa por um período de instabilidade editorial.
(8,2% do total da produção veiculada na RSP, chegando a 33,3% em
Os primeiros anos desse período de superposição apontam
l 982), Legislação (4,3% da produção total) 13 e Ensino e Adminis-
semelhanças entre a participação dos grnpos de loci no total anual
tração ( 1,3% da produção total). O primeiro locus deixa enh"ever a
publicado das duas revistas . Nos quatro anos iniciais (1967- 1970),
entrada de novos conceitos no processo ele formação do novo campo
tanto RAP como RSP ostentam forte liderança do grnpo Estrnturação
de conhecimento; inicialmente com artigos traduzidos ou esc1itos pelos
do Estado . É verdade que essa liderança é muito mais hegemónica
técnicos do DASP, alguns deles com acesso a cursos nos EUA,
na RSP, seguindo a mesma tendência desde seu ano de fundação ,
posteriormente incorporando produção de outras fontes. O lo cus
enquanto na RAP os grupos Políticas Setoriais e Ensino e Pesquisa
Legislação tem presença mais significativa nos períodos iniciais, mas
têm uma participação maior, relativamente à RSP.
verá sua importância crescer ao longo dos anos 50, para, a partir dos
A partir de 1971 , essa semelhança se quebra. A RAP entra em
um período em que o grupo de loci Políticas Setoriais toma a liderança
13. Durante as primeiras décadas, a RSP possuía uma seção de Direito Admi nistrati v0.
em alguns anos, seguindo, a partir daí, em alternância na dianteira
40 ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA NO BRASIL
da participação no total de artigos publicados pela Revista, anual-
mente, com o grupo Estruturação do Estado. Na RSP, esse movimento
não chega a se constituir, mas nestes anos ( 1971-1974), a participação
do grupo de loci Estruturação do Estado também se reduz. 14
Os anos 70 irão se caracterizar, do ponto de vista das publi-
cações estudadas, como um período de instabilidade da participação
dos grupos de loci no total de artigos publicados que marca a emer-
gência de novas preocupações, como também ocorre com osjàci. Os
movimentos anunciados timidamente pelas tendências da produção
veiculada pela RSP se realizam de fom1a mais marcada na RAP e irão
se estender também pela década de 19 80.
Esse momento, especialmente a segunda metade da década de
1970 e iní cio da década de 1980, marca uma situação de profunda
mudança no campo de conhecimento. No final da década de 1970 e
ao longo dos anos 80, o comportamento dos grnpos de loci sofre
grandes oscilações. Essas oscilações caracterizam o momento de
transição atravessado no período, e se combinam com mudanças
também na participação dosfoci .
A RAP antecipa já em 1971 essa mudança, quando o grupo
Estruturação do Estado cai de 80% para 36,36%, sendo suplantado
pelo grnpo Políticas Setoriais. A partir daí, o comportamento dos
grnpos de loci oscila ao longo da década de 1970. Na verdade, pode-
se entender que o comportamento dos grupos de loci indica a
emergência de novas temáticas e de novas abordagens.
Dentre os fatores que influenciaram esse processo de mudança,
é inevitável não mencionar as mudanças institucionais. Não é sem
motivo, por esse ângulo de análise, que se pode identificar na
passagem da década de 70 para a de 80 o momento em que as novas
tendências emergentes começam a ser vislumbradas, à medida que
se torna mais claro o processo de transição da ditadura militar para o
governo civil.
Observando-se o comportamento dos grnpos de loci ao longo
do tempo, é possível sugerir que nos momentos de mudança ou ins-
tabilidade institucional mais forte o grnpo de loci Estrnturação do
Estado tende a aumentar sua participação, ainda que após algum
14. Nesse período, a RSP sofre várias mudanças editoriais e proliferam os artigos de
membros do Judiciário e de altos escalões do Executivo. Cf. KE!NERT & VAZ
( 1994: 17).
A CONSTRUÇÃO DO OBJETO DE ESTUDO 41
tempo esse grupo de loci reduza sua participação. Nesses momentos,
as tendências vigentes sofrem desvios, ainda que tempo rários.
Da mesma forma, pode-se considerar o crescimento do grupo
Estruturação do Estado em meados da década de 1940, na RSP, um
reflexo do fim do período ditatorial de Getúlio Vargas, e seu cresci-
mento nos anos imediatamente após 1964 como reflexo da instauração
da ditadura militar.
Entretanto, estas duas mudanças, ainda que atestem a influência
dos câmbios instih1cionais sobre a produção em Administração Pú-
blica, não apontam mudanças que caracterizem crise ou emergência de
novas tendências no campo de conhecimento. Ao contrário, ao longo
do período que vai até os anos 70, a distribuição porcentual dos atiigos
publicados em grupos de loci observada é consistente com a centra-
lidade nas questões referentes à estrnturaçào do Estado que o campo de
conhecimento da Administração Pública apresenta no período.
A trajetória das duas publicações, portanto, cio ponto de vista
do comportamento dos loci, apresenta um ciclo longo e nítido de
absoluto predomínio de uma produção com focus em Ciência
Administrativa e locus em Estruhrração do Estado. Os loci destacados
no grupo Estruturação do Estado são, exatamente, aqueles mais
envolvidos com o processo de constituição de um novo arcabouço
institucional para o Estado brasileiro. Essa é a preocupação dominante
do período. O Estado não é apenas o centro, mas praticamente, o
único objeto de atenção dos artigos publicados.
À medida que esse arcabouço instihtcional vai sendo consoli-
dado e, a seguir, questionado - em relação à visão de Estado que o
sustenta-, a discussão sobre o papel do Estado e suas ações se torna
mais impo1iante que a discussão sobre sua estruturação. O predominio
do focus Ciência Administrativa e do locus Estrnturação do Estado
se enfraquece pelo surgimento de uma tendência à incorporação de
outrosfoci e loci. Observa-se um deslocamento da patiicipação dos
grnpos de loci e dosfoci no conjunto de artigos publicados por ano:
os artigos com locus Estrnturação do Estado ejàcus Ciência Admi-
nistrativa perdem sua importância relativa, e emergem ofocus Ciência
Política e o grupo de locus Políticas Setoriais, que chega a ultrapassar
70% de participação do total de artigos publicados, em anos da década
de 1980, tanto na RAP como na RSP. Seu crescimento está visivel-
mente relacionado à emergência de novas temáticas, como se percebe
pelos vários loci que se tomam objeto de atenção.
42 ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA NO BRASlL
A produção em Administração Pública, assim, entra em um
período de inegularidade do ponto de vista do locus e, como dito
acima, também do focus. A interpretação mais segura para este
fenômeno é que se trata ele uma crise no campo de conhecimento em
Administração Pública, que deve, ele alguma maneira, produzir um
novo consenso em seu interior.
Daquela preocupação e desenvolvimentos iniciais, o trabalho
acumulou condições de permitir uma releitura da s conclusões
preliminares. Em especial, do último artigo publicado (KE!NERT,
15
l 994a), em que se utiliza, pela p1imeira vez, a noção de paradigma
fazendo-se uma análise mais ampla dos dados obtidos, tanto no plano
da abrangência histórica quanto no plano da inferência realizada.
Realiza-se, também, urna periodização especialmente referida
ao contexto político-histórico, que foi urna forma inicial e preliminar
de organização dos dados (ver Quadro II). Entendida como ponto de
chegada, naquele momento , demandou uma releitura posterior,
especialmente a partir do aprofundamento dos conceitos de KUJ-IN
(197 5: 1970; 1977a; l977b), que discutiremos em seguida.
Paradigmas e produção de conhecimento
A história do conhecimento, contemporaneamente, reúne abor-
dagens interdisciplinares - notadamente históricas, filo sóficas e
sociológicas - obj etivando a constituição de um espaço independente
para a ctítica e a refle xão acerca dos caminhos e descaminhos do de-
senvo lvimento científico. 16
15. A noção de parad igma era utilizada de fo rma mais restrita, provavelmente mais
próxima da idéia de modelo. a qual foi ampliada posteriomiente. A própria idéia
de "evolução" da disciplina foi substih1ída pela de "desenvolvimento", uma vez
que, para ser coerente com a noção kuhniana, deve-se respeitar alguns p1incípios
corno o da descontinuidade, do externai ismo. da income11SL1rabilidade, dentre
outros, na produção do conhecimento; isto é, o não-evolucionismo.
! 6. Agradec imentos devem ser dirigidos ao grupo de estudos do Programa de Pós-
Graduação em Comuni cação e Semiótica da PUC/SP - que realiza quin ze-
nalmente os Seminários sobre Historiograjia e t'vletodologia em História da
Ciência - pe la gra nde contribuição que represe ntou para esta reflexão a
paiticipação da autora naqueles encontros. Um agradec imento especial é dirigido
à Professora Ana Maria Alfonso-Goldfarb. sua coordenadora. pelo convite à
participação.
A CONSTRUÇÃO DO OBJETO DE ESTUDO 43
Este tipo de abordagem, conhecido hoj e corno História da
Ciencia, inicialmente configurou-se num fomrnto chamado ele Histó-
ria Pedigree, ou seja, um tipo ele elaboração de caráter notadamente
evolucionista que buscava, seletivamente, em épocas antigas, idéias,
teorias ou personagens que tivessem contribuído para que as formas
de conhecimento vigentes na época evo luí ssem até aquilo que se
conhece hoje como ciência moderna.
A ciência moderna seria, assim, o apogeu desta marcha através
de um caminho histórico inevitável pelo qual passaria a ciênc ia na
busca elo verdadeiro conhecimento sobre a natureza. Além disso, a
ciência vinha da teoria e não da prática, o que impedia que fonnas
diferentes ele conhecimento - como aquelas das civilizações orientais
- pudessem ser consideradas ciência (ALFONSO-GOLDFARB , 1994 ).
A visão evolucionista ab1igava, internamente, a noção de con-
tinuidade, a qual dava ênfase à lineaiidade, destacando elementos de
ligação entre os diferentes estágios do conhecimento.
E, por último, acreditava-se que o desenvolv imento científico
estaria condicionado aos problemas históricos internos à própria
Ciência, ou seja, à evolução de seus conceitos e teorias. independen-
temente da sociedade ou dos meios nos quais estes são produzidos.
Este pressuposto ficou conhecido como interna/ismo.
A partir dos anos 60, algumas novas teorias foram desenvol-
vidas como alternativas ao positiv ismo ou empirismo lógico - a cor-
rente dominante que abrigava os pressupostos antes colocados -den-
tre as quais destaca-se a obra de Thomas Kuhn.
Tomas Kuhn tomou-se especialmente conhecido por sua obra
The Structure of Scientific Revolutions ( 1962), 17 que se tornou um
best-seller da História da Ciência. Este livro, escrito em tom radical
e apaixonado e, utilizando uma série de interessantes exemplos histó-
ricos, em pouco tempo revolucionaria os pilares da reflexão histórico-
filosófica sobre a ciência.
Al ém de ter contribuído para pôr termo efetivamente às
doutrinas centrais do positivismo, tais como a cumulatividade e o
17. O livro Th e S1ruc111re o/Scie111ific Revol111ions foi publicado origin al mente em
1962, tendo levado mais de quinze anos para ser concluído . A segunda edição.
revista e ampliada, foi publicada em 1970. Nesta nova edição. oautoraperte içoa
alguns de seus conceitos anteriores, motivo pelo qual utilizaremos a segunda
edição como referência. Será utilizada a versão em inglês, uma vez que, somente
se tem notícia da tradução, para a língua portuguesa, da primeira edição (KUH N.
T. A Estrun1ra das Revo luções Científicas'', Perspecti va, São Paulo, 1975).
 44 ADM INISTRAÇÃO PÚBLICA NO BRASIL
evolucionismo, o campo de História da Ciência "foi enormemente
beneficiado com a obra de Thomas Kuhn". 18
O filósofo americano Richard Rorty, em aiiigo recente- atribui
grande importància ao trabalho de Kuhn desde uma perspectiva
filosófica tratando-o, inclusive, como "filósofo", 19 dado que o trabalho
de Kuhn remapeia a rnltura, isto é, "sugere um modo original e
promissor de pensar a relação entre vários setores da atividade huma-
na" (RORTY, 1996: 5-10).
Com The Structure o.f Scientific Revolutions Kuhn questiona
a crença de que o sucesso da ciência se deva à aplicação de um " mé-
todo científico" específico, e ainda que a substituição de uma teoria
científica por outra seja algo que dependa apenas ela lógica fria e
precisa, sendo, antes, análoga ao processo de substituição de uma
instituição política por outra.
Assim começa a desmoronar a hierarquia t·adicional de dis-
ciplinas, segundo a qual acreditava-se, por exemplo, que os cientistas
naturais teriam uma via de acesso privilegiado à realidade e à verdade.
Citando novamente Rorty:
A leitura de Kuhn levou-me a pensar que, em
vez de mapear a cultura com uma régua hie-
rárquica epistêmico-ontológica, encimada
pelas categorias de "lógico ", "objetivo " e
"cientifico", deveríamos antes tentar ma-
pear a cultura por meio de um espectro
sociológico indo da esquerda caótica - em
18. Laudan ( 1993: 19). Os autores afirmam que a obra de Kuhn é responsável , em
grande medida, pela vitalidade e autoconfiança expressa pelo campo nas últimas
duas décadas.
19. Como se sabe Thomas Kuhn doutorou-se em tisica antes de se tornar historiador
autodidata da Ciência do Século XVII. O próprio Kuhn se autodenominava desta
forma: historiador da ciência. Roity afinna que se ele "tivesse escrito um obituáiio,
não teria deixado de chamar Kuhn de filósofo", referindo-se a uma celta resistência
na comunidade filosófica em ace itá-lo como um integrante legítimo. Sem
querennos nos delongar excessivamente nesta questão. acreditamos que a citação
é elucidativa, uma vez que o autor - na condição de um dos mais importantes
filósofos americanos da atualidade-manifesta se u "ressentimento pelo fato de
Kuhn ter sido constantemente n·atado por meus (de Ro1ty) colegas filósofos como,
na melhor das hipóteses, um cidadão de segunda classe na comunidade filosófica.,
quando não como um intruso que não tinha por que se meter com uma disciplina
para a qual não tinha formação adequada" (RORTY, l 996: 5-1 O).
1
A CONSTRUÇÃO DO OBJETO DE ESTUDO 45
que critérios estão sempre em mutação - à
direita conformista - em que eles estão. ao
menos por algum tempo,flrmemenle estabe-
lecidos ( 1996).
Pensar nos termos de um tal espectro possibilita perceber o
movimento de uma dada disciplina rumo à esquerda nos períodos
revolucionários e rumo à direita nos períodos estáveis e monótonos
-que Kuhn chamava de petiodos de "Ciência Nonnal''. 2 º
Convém salientar que, diferentemente do que ambicionava, o
verificacionismo e o falsificacionismo, não há em Kuhn a intenção de
estatuir um crité1io capaz de distinguir, com alguma nitidez, o que é
ciência e o que é pseudociência ou metafisica. Em momento algum
Kuhn estipula a forma a ser ostentada pelas teorias e os modos pelos
quais devem buscar evidência favorável ou contrária às suas pretensões
de verdade para que possam ser consideradas científicas. Sua análise
se limita a mostrar como tem sido historicamente construída a
cientificidade, e não que requisitos lógico-empíricos precisam ser sa-
tisfeitos para que uma disciplina se conve1ia em ciência ( Ou vA, 1994 J.
O livro A Estrutura das Revoluções Científicas foi o marco
inicial de uma obra polêmica e relevante na discussão histórico-
filosófica a respeito da produção do conhecimento . C omo coloca
Rorty, " .. . a essa altura, todas as ciências sociais passaram por um
processo de 'kuhnização' , marcado por uma maior disponibilidade
para admitir que não há um modelo único de pesquisa re levante num
dado setor da cultura" (1996). Foi naquela obra que K uhn inicialmente
expôs os conceitos que julgava fundamentais na expli cação da mu-
dança científica: paradigma, ciência nom1al, crise, revo lução cientí-
fica. É destes conceitos que provém a idéia de incomensurabilidade,
importante elemento na superação da visão evolucionista.
20. Ro1ty se alinha entre os defensores da abordagem praf:,'!11atista,jw1to com Foucault,
Habell11as, Kulm, dentre outros. O pragmatista desconfia no mais alto grau possível
da idéia positivista de que a racionalidade é uma questão de ap li car critérios. Na
abordagem pragmatista os "fatores culturais" evidentemente desempenham um
papel central, mas colocados "dentro" da comunidade onde ganham sentido, de
tal sorte que entre o indivíduo que busca a liberdade e o Estado. o mercado. o
meio ambiente, a empresa ou o que é que seja, é preciso sempre identi ticar
processos de mediação historicamente determinados. ao in vés do espaço vazio
onde se instala a ética da unanimidade. Ver, por exemplo, Rolty. R. "Solidariedade
ou objetividade?". Novos Estudos, n. 36, julho l 993, p. l 13-20.
 1
46 ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA NO BRASIL
Kulrn consegue, com a noção de paradigma, justificar a descon-
tinuidade da ciência, à medida que lhe atribui a propriedade de ser
incomensurável, ou seja, o novo paradigma não engloba nem deri va
do velho, não podendo ser considerado nem superior, nem inferior,
não podendo, inclusive ser medido ou comparado ao anterior.
Desta forma, o conceito kuhniano de mudança científica a ca-
ractetiza como um processo descontínuo dado por um salto não quan-
tificável entre o velho e o novo, o que obv iamente desmonta com a
visão positivista de cumulatividade.
Ainda, na proposição kuhniana o conceito de revolução
cientifica é de importância fundamental , à medida que representa uma
" quebra" no pensamento científico. Estes períodos revolucionários -
momentos em que vários candidatos a paradigma, ainda incompletos,
tentam substituir o anterior - são, para Kuhn, sempre precedidos de
períodos de crise - petíodos de insegurança em que o paradigma vi-
gente não mais consegue explicar satisfatoriamente os fenômenos a
serem analisados. Da transição de um paradigma em crise para outro
pode surgir um novo período de Ciência Normal, período no qual volta
a prevalecer o consenso em torno de um paradigma.
O termo paradigma - apesar de sua definição pouco precisa21
- pode ser considerado "chave" no entendimento da proposição
kuhniana, e, essencial, para os propósitos deste trabalho.
Para Kuhn esta impo1iância se expressa já no prefácio da obra
antes citada quando se manifesta
... especia lm ente impressionado com o
número e a extensão dos desacordos expres-
sos existentes entre os cientistas sociais no
que di::: respeito à natureza dos métodos e
problemas científicos legítimos (grifo nos-
so). Conforme expressou-se o autor: A ten-
tativa de descobrir a fonte desta diferença
levou-me ao reconhecimento do papel de-
sempenhado na pesquisa científica por
1 significado da expressão "comunidade
1 21. Margaret Mastennan em seu trabalho "A Natureza do Paradigma" . in L AKATOS,
~
r. & ML!SGRA VE, A. (orgs.). " A Crítica e o Desenvolv imento do Conhecimento",
São Paulo" : Cult1ix/EDUSP, 1979, discute as múltiplas definições de paradigma
na obra de Kuhn.
A CONSTRUÇÃO DO O BJ ETO DE ESTUDO 47
aquilo que. desde então. chamo de "para-
digmas " (KUHN, 197 0).
Paradigma pode ser definido como o conjunto de regras,
normas, crenças, valores e teorias que direcionam a ciência produzida
por uma detenninada comunidade científica em um período de tempo
específico, o qual fornece a esta mesma comunidade soluções mode-
lares nas quais surgem as tradições coerentes e específicas da pes-
quisa científica. Por meio do paradigma se estabelece uma espécie de
consenso intersubjetivo influenciado por motivos inconscientes, esté-
ticos, metafísicos, teológicos emocionais e até políticos, o qual vai
determinar o que deve ser considerado autêntico problema no âmbito
de determinada disciplina.22
Como já foi colocado, não se pode afirmar que exista na obra
de Kuhn uma definição unívoca. Citando uma de suas veiculações
mais elucidativas: "Considero 'paradigmas' as realizações científicas
universalmente reconhecidas que, durante algum tempo, fornecem
problemas e soluções modelares para uma comunidade de praticantes
de uma ciência" (1970: 58).
Em "Second Thoughts on Paradigms"( l 977a), Kuhn reconhece
que seu antigo uso do te rmo paradigma confunde duas noções
bastante distintas: exemplares, que são tipologias de solução de pro-
blemas concretos aceitas pela comunidade científica e matrizes disci-
plinares, que são os elementos compartilhados que explicam o caráter
relativamente não-problemático da comunicação profissional e a
relativa unanimidade de julgamento profissional subsistente numa
comunidade científica:
Um sentido de paradigma é global, abrcm-
gendo todos os compromissos compartilha-
dos por um grupo científico; o outro isola
um tipo particularmente importante de com-
promisso e é, portanto, um subconjunto do
primeiro. ( ... )No livro (The Struchire), o ter-
mo paradigma tem praticamente o mesmo
22. Trata-se de uma leitu ra de várias definições possíveis existentes em l<uhn.
formul ação esta adotada neste trabalho.
 48 ADMIN ISTRAÇÃO PÚBLICA NO BRASIL
científica". Um paradigma é o que os mem-
bros de uma comunidade científica, e ape-
nas eles. partilham. e. inversamente, uma
comunidade científica consiste em homens
que partilham um paradigma 23 (KUHN ,
1977a: 460).
Assim, pode-se afirmar que ''a Ciência Normal é praticada por
uma comunidade científica que compartilha uma matriz disciplinar
baseada num estoque partilhado de exemplares" (OLIVA, 1994 ).
"A pesquisa n01TI1al, mesmo em seus melhores produtos, é uma
atividade altamente convergente baseada firmemente num consenso
alcançado através de educação científica e reforçado pela posterior
vida profissional", afim1a Kuhn (1977a: 227).
O paradigma tem, assim, o poder de estipular o que deve ser
considerado problema e soluções modelares, criando em torno de si
um consenso especial capaz de levar todos que a ele aderem a ver o
mundo de maneira convergente. A visão de mundo contida num
paradigma tem a peculiaridade de ser compartilhada consensualmente
como se fora inevitável (OLIVA, 1994 ).
Com base nesse padrão, o desenvolvimento ocorre de um
consenso para outro, e enfoques alternativos não estão normalmente
em competição. Exceto sob condições bastante especiais, o praticante
de uma ciência não pára para examinar modos divergentes de expli-
cação ou experimentação (KuHN, 1977c: 232).
CONCLUSÕES PREUMINARES E
NOVA PROBLEMATIZAÇÃO: O QUE É
PÚBLICO NO BRASIL?
Analisando-se as primeiras agregações de dados, verificou-se
existir uma concentração de locus - objeto empírico estudado - e
focus - instrumental teórico utilizado - dos artigos analisados em
23 . Trata-se daqui lo que o próprio Kuhn reconhece (no seu posfácio de 1969 ao
"Estrutura"), esta como sendo uma "definição circu lar'', ou seja, o paradigma
l define comunidade cientifica ao mesmo tempo que é por ela definido. Uma
discussão interessante sobre esta quescão encontra-se em Hochman ( 1994).
1
A CONSTRUÇÃO DO OBJETO DE ESTU DO -'I')
determinados períodos, manifestando existir uma homogeneidade de
características da produção.
Aquelas análises preliminares24 revelaram ser os estudos de
Administração Pública no Brasil intimamente relacionados à Ciên -
cia Administrativa, sendo que, uma participação expressiva da Ciên-
cia Política somente ocorre mm1 período mais recente (pós-80 ). Assim,
o focus da disciplina é, durante boa parte do per íodo estudad o,
administrativo.
Ainda, possibilitaram que se efetlrnsse uma periodização inicial
aliando-se o compmiamento dos dados aos diversos contextos his-
tórico-institucionais (ver Quadro II). Posterionnente, observando
aquela periodização, percebeu-se que os três primeiros períodos
apresentam um comportamento bastante semelhante em relação ao
locus - que se mantinha concentrado no grnpo "Estrnturação do
Estado''. As mudanças começam a ocon-er no período pós-79, quando
cresce significativamente o gmpo "Políticas Setoriais".
O mesmo ocorria em relação aos foci que se mantiveram
basicamente vinculados à Ciência Administrativa até meados da
década de 70, ocorrendo, a partir desta época, uma reestmturação nos
enfoques utilizados no campo, com grande crescimento relativo das
análises vinculadas à Ciência Poiítica.
Observando-se o comportamento daqueles dados ao longo do
tempo, constatou-se que tanto os foci quanto os loci mantinham-se
relativamente homogêneos no período 1930-79, experimentando mu-
danças significativas somente a partir dos anos 80. Ou seja, aquela
primeira periodização, basicamente vinculada ao contexto histórico-
institucional, revelava-se insatisfatória até mesmo porque utilizava
c1ité1ios de certa forma "externos" à produção do campo.
Considerando os anos 80, o grande ponto de inflexão foi pos-
sível avançar da problemática inicial -o que é Administração Pública
no Brasil - para a busca de outros caminhos explicativos.
Percebendo-se a possibilidade de relacionar aqueles dois grandes
grnpos ( 1930-79 e pós-80) a duas f01TI1as básicas de raciocínio, inda-
gou-se sobre a validade de associá-las à noção kuhniana de para-
digma.25
24. KEINERT , l 993b: 179-94, l 994a, l 994b; KEINERT & LAPORTA, 1993. 1994:
KErNERT & VAZ, l 994a, l 994b; KEINERT & CASTRO S ILVA , 1994.
25. O conceito básico de paradigma é exposto no conhecido li vro A Estrntura das
Revoluções Científicas, que já completou 30 anos de sua primeira edição e
 50 ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA NO BRAS IL
Retomando o já discutido, pode-se afim1ar que a noção de para-
digma revela a auto-identidade de um campo de conhecimento dada
por um consenso sobre os problemas considerados pertinentes a ele
por uma determinada comunidade científica.26
No presente trabalho, estas fom1as paradigmáticas de conceber
o campo de Administração Pública no Brasil revelaram-se associadas
à noção de público que, num primeiro momento, se reporta à esfera
estatal, sendo que o mesmo não ocone posteriorn1ente.
Assim, inicialmente, havia um consenso sobre o conceito de
público que levava a definir-se como autêntico problema do campo
de Administração Pública o estudo do aparelho do Estado (locus)
através de uma ótica notadamente administrativa ifocus).
Este entendimento, que denominamos o Paradigma do Público
enquanto Estatal. seria questionado especialmente motivado pelas
discussões em tomo da chamada "Crise do Estado", 27 o que instau-
raria a disputa entre vários candidatos a paradigma e forçaria a emer-
gência de um novo consenso.
O esh1do da Administração Pública, passou, então, a não mais
restringir-se ao aparelho do Estado e à burocracia governamental, mas
a estender-se a uma série de atores envolvidos com questões públicas
(locus); através de um enfoque politico-organizacional (focus). O
consenso emergente no campo de Administração Pública passava a
ser, então, o Paradigma do Público enquanto interesse Público.
Os dados obtidos e as análises preliminares pem1item que se es-
tabeleça, desta fom1a, uma no va periodização, atribuindo ao primeiro
paradigma a vigência entre 1930-79, e, ao segundo, o período pós-80. 28
continua sendo uma referencia atual para o campo de história da Ciência. Não
obstante, o próp1io Kuhn. falecido em 1996, veio atua lizando seu polêmico
conceito.
26. Os Conselhos Editoria is das Revistas à medida que são co nstituídos por
pesquisadores renomados representam a "comunidade científica" que paitilha de
um paradigma, já que a decisão de publicar ou não um determinado artigo depende,
além de sua qualidade intrínseca, de ser considerado "pertinente". Ainda, o artigo
científico, entendido como produto de pesqu isa, revela o aval da comunidade na
escolha daquele tema e enfoque pelo pesquisador.
27. Ver Bresser Pereira. 1992.
28. O corte nos anos 80 j ustifica-se a pattir das osci lações ocorridas na década de 70
tanto em tennos de locus quanto de focus , o que se1ia um indíc io da crise e
emergência de novo entendimento. Como diria Kuhn, nestes períodos é comum
brotarem tantas teorias quantos pesquisadores há na área. Cada teó1ico vê-se como
I;
l
que obrigado a partir do zero, como se a começar tudo de novo. de modo a poder
justificar o tipo de enfoque adotado.
ACONSTRUÇAO DO OBJETO DE ESTUDO 51
Assim, torna-se possível avançar do problema inicial que fun-
damentou este trabalho: a comprovação da existência de paradigmas
no1ieadores dos esh1clos de Administração Pública no Brasil espe-
cialmente referidos à noção de público.
Note-se que, se a análise quantitativa pennitiu identificar a
existência de dois possíveis grandes períodos, é por meio da análise
qualitativa, agora realizada, que irá verificar-se o seu conteúdo.
Parte-se, então, de uma hipótese, que fundamenta este trabalho,
na qual se enuncia que "os estudos de Administração Pública no Brasil
refletem a dinâmica da mudança no conceito de público".
Num primeiro momento público referia-se a estatal, sendo as
ações pensadas do Estado para a sociedade. Ocorre um período de
crise e o binômio anterior é questionado. Num momento posterior, o
conceito de público extrapola os limites do estatal tomando-se mais
amplo que este último, uma vez que a sociedade passa a participar
na definição e gestão das políticas públicas, bem corno assume parte
das ações públicas por meio da formação de entidades e associações
do chamado terceiro setor ou setor público não-estatal. O conceito de
público agora envolve trma multiplicidade de atores, fmmas jmídicas
e gerenciais.
Metodologia
Este trabalho valeu-se das conclusões preliminares da pesquisa
quantitativa realizada com o objetivo de conhecer e mapear as
características da produção em Administração Pública no Brasil por
meio de uma metodologia classificatória de conteúdo. Assim, todos
os artigos publicados em seus dois principais periódicos, a saber,
Revista do Serviço Público (1937- ... ) e Revista de Administraçclo
Pública (1967- ... ), foram classificados de acordo com a freqüência
de aparição de detenninado locus - objeto empírico analisado pelo
artigo (institutional where) e focus - instrumental teórico utilizado
pelo artigo (specialized what).29
A paiiir das conclusões preliminares daquela pesquisa, 30 rea-
liza-se uma análise de conteúdo dos mesmos artigos, com vistas a
29. Classificação efetuada com base em Golemb iewski ( 1977).
30. A pesquisa quantitativa foi conc luída em dez./95 e as análises pre lim inares
pub licadas sob forma de di versos a1tigos. Para fins da tese constit11i-se um ponto
 52 ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA NO BRASIL
aprofundar as observações anteriom1ente realizadas que revelavam
alguma homogeneidade em termos de dispersão dos dados, apontando
no sentido da existênc ia de dois possíveis paradigmas. Buscam-se,
nesta fase, elementos explicativos que tornem possível qualificar
aqueles dois grandes peiíodos, que passaram a ser associados à noção
k:uhniana de paradigma - como consenso (nem sempre expiícito)
estabelecido dentro da comunidade de pesquisadores da área.
Enquanto num primeiro momento buscou-se uma categori-
zação que pem1itisse uma organização inicial e, em alguma medida,
uma visão panorâmica do objeto estudado, busca-se, agora, maior pro-
fundidade e força explicativa. Para tanto, retomou-se às publicações,
procurando-se descobrir o "sentido" daquelas temáticas e enfoques,
por meio da utilização de tt·echos, frases ou frases compostas dos arti-
gos das referidas Revistas . Optou-se, portanto, por realizar uma aná-
lise de conteúdo dos artigos antes analisados quantitativamente, por
meio de uma metodologia agora qualitativa.
De acordo com Richardson ( 1985: 197) "entre as diversas técni-
i cas de análise de conteúdo, a mais antiga e a mais utilizada é a análise
1. por categoria( ... ) ela se baseia na decodificação de um texto em di-
i versos elementos, os quais são classificados e formam agrupamentos
analógicos". Entre as possibilidades de categorização, a mais utilizada,
i
mais rápida e eficaz, sempre que se aplique a conteúdos diretos (ma-
nifestos) e simples, é a análise por temas ou análise temática. Consiste
cm isolar temas de um texto e extrair as partes utilizáveis, de acordo
f com o problema pesquisado, para permitir sua comparação com
! outros textos escolhidos da mesma maneira.
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~ Organização da análise
Confom1e coloca Bardin (1979) em seu conhecido trabalho
Análise de Conteúdo, este método analítico compõe-se de três fases
principais:3 1 a) Pré-Análise; b) Exploração do Mate1ial; c) Tratamento
dos Resultados, Inferência e Interpretação.
de partida. Realizou-se nova pesquisa, que embasa esta tese, de cunho qualitativo,
por meio de análise de conteúdo.
31. Não necessariamente seguindo esta ordem, ou seja, às vezes faz-se necessário
retroceder ao passo anterior e mod ificá-lo ; noutrns é preciso "queimar" etapas e
buscar sinalizações da fase seguinte.
A CONSTRUÇÃO DO OBJETO DE ESTUDO 53
a) Pré-Análise
Esta etapa objetiva à escolha dos documentos a serem anali-
sados e à formulação das hipóteses. A pré-análise é a fase de orga-
nização propriamente dita - embora seja composta por atividades
"abertas", ou seja, pouco estmturadas ou sistematizadas. Trata-se de
um período de "intuições", ainda que tenha por objetivo mais amplo
tomar operacionais e sistematizar as idéias iniciais.
Em princípio, a pré-análise visa estabelecer contato com os do-
cumentos a analisar, deixando-se invadir por orientações e impres-
sões, a chamada· "leitura flutuante" , em que o leitor procura distan-
ciar-se da leitura aderente para saber mais sobre o texto .32
Outro passo importante é a determinação do universo de docu-
mentos a serem analisados, o que também poderá ser detem1inado a
priori, em função dos objetivos, e, portanto, convém escolher o uni-
verso de documentos suscetíveis de fornecer infonnações sobre o
problema levantado.
Estando o universo demarcado -o gênero de documentos sobre
os quais se pode efetuar a análise - às vezes toma-se necessário
proceder à constihlição de um corpus. O corpus é o conjunto de do-
cumentos a ser submetido aos procedimentos analíticos. A sua cons-
tituição implica, muitas vezes, escolhas, seleções e regras.33
Após este primeiro contato e, realizada a seleção do material, é
que se formulam as hipóteses e os objetivos.
Uma hipótese é uma afirmação provisória
que nos propomos verificar, recorrendo aos
procedimentos de análise. Trata-se de uma
suposição cuja origem é a intuição e que
permanece em suspenso até ser confirmada.
O objetivo é a finalidade geral a que nos
propomos, o quadro teórico ou pragmático
resultante do trabalho (BARD!N, 1977).
Assume-se, assim, que a definição da hipótese e dos objetivos
a priori podem ser adequados para fazer "falar" o material.
32. O teimo " leitura flutuante " é utilizado por analogia à atitude dos psicanalistas.
33. As principais regras são exaustividade, representatividade (ou não-seletivi-
dade ), homogeneidade e pertinência. Na constituição do corpus documenta/
desta pesquisa procuramos utilizá-las, como discutiremos adiante.
54 ADM INISTRAÇÃO PÚBLICA NO BRASIL
b) Exploração do Material
Esta fase, longa e fastidiosa, consiste essencialmente de opera-
ções de codificação ou enumeração, em função de regras previamente
formuladas.
A codificação corresponde a uma transformação dos dados
brutos do texto, transformação esta q L1e, por recorte, agregação e
enumeração, pem1ite atingir uma representação do conteúdo, ou da
sua expressão, suscetível de esclarecer o analista acerca das caracte-
rísticas do texto.3 4
O critério de recorte da análise de conteúdo por excelência é o
tema, ou seja, um recorte ao nível semântico, dado que é sobretudo,
análise das significações.35
A noção de tema, largamente utilizada em análise de conteúdo,
pode ser entendida, conforme coloca Berelson como "uma afirmação
acerca de um assunto . Quer dizer, uma frase, ou uma frase composta,
habitualmente um resumo ou uma frase condensada, por influência
da qual pode ser afetado um vasto conjunto de formulações
singulares" (1952) .
Assim o tema é a unidade de significação que se liberta natu-
ralmente de um texto analisado segundo certos critérios relativos à
teoria que serve de guia à leitura. Assim o texto pode ser recortado
em idéias constituintes, em enunciados e em trechos portadores de
significações isoláveis.
Fazer uma análise temática consiste em descobrir, portanto, os
"núcleos de sentido" que compõem a comunicação, cuja presença, ou
freqüência, pode significar alguma coisa para o objetivo analítico
escolhido.
34. Torna-se necessário, então, saber a razão por que é que se analisa, e exp licitá-lo
de modo a saber como analisar. Daqui , a necessidade de se precisarem hipóteses
e de se enquadrar a técnica dentro de um quadro teórico de referéncia - a menos
q ue se façamjishing expeditions. como dize m os anglo-saxônicos, ou seja,
análi ses exp loratórias para "ver o que há" . Em ambos os casos, contudo, ex iste
um elo e ntre os dados do conteúdo a ser analisado e a teoria do analista.
35 . Este critério difere especialmente do adotado quando da "análise das expressões",
i sto~. dos aspectos jànnais das significações, como, por exemplo, contagem de
repetição de palavras. Este crité ri o lingüístico, bastante uti lizado e de fáci l
realização com a utilização de so ftwares relati vamente simples. pode, por vezes,
levar a conclusões equivocadas. Para esta di scussão ver Bardi n ( 1977 : 104).
d ' Unrug ( 1974), Minayo ( 1996). Becker ( 1997). Richardson ( 1985). G il ( 1994),
Morgan ( 1983). Alves-Mazzotti e Gewandsznajder ( 1998). Contrnndriopoulos
et alii ( 1997). dentre outros.
A CONSTRUÇÃO DO OBJETO DE ESTU DO 55
Por fim, realiza-se uma categorização a fim de reagrnpar. por
analogia, com base em critérios previamente definidos aqueles ele-
mentos antes ciassificados por diferenciaçâo. As categorias são, des-
ta forma, rubricas que reúnem um grupo de elementos sob um título
genérico, agrupamento esse efetuado em razão dos caracleres comuns
destes elementos. É essencial que se produza um sistema de catego-
rias para codificar o material e que provém, geralmente. do reagru-
pamento progressivo de catego1ias com uma generalidade maisji·aca.
A categorização tem como objetivo fornecer, por condensação, uma
representação significativa dos dados brutos a partir de dete1111inados
critérios (BARDrN: 1977).
c) Tratamento dos Resultados, Inferê ncia e Interpretação
Os resultados brutos são tratados de maneira a serem signifi-
cativos e "falantes". O analista pode então propor inferências e adian-
tar interpretações a propósito dos objetivos, do embasamento teórico
ou de descobertas inesperadas.
Aplicação do método
Como colocado anterio1111ente, num primeiro momento fo i rea-
lizado um trabalho quantitativo em que os temas e enfoques foram
emergindo da própria análise, ou seja, foram sendo criados itens re-
lativos a locus e focus confonne o material a ser class ificado fosse
"solicitando" e as rubricas abertas até então não mais atendessem
àquela necessidade .
Conseguiu-se extrair os temas de maior freqüência e agrupá-los
em eixos temáticos, além dos enfoques utilizados para analisá-los.
Obteve-se uma boa panorâmica da produção em Administração Pú-
blica constante nas duas Revistas no período pesquisado ( 1930- l 992 i.
A preocupação inicial referia-se especialmente ao focus-ou seja,
o pressuposto implícito (empírico) da pesquisa era um certo incômodo
em relação à falta de especificidade do campo de Administração Públi-
ca (ou seja, falta de tecnologia administrativa específica para gerenciar
o aparelho Estado), tendo a disciplina, no período mais recente, cami-
r.ibado para uma maior aproximação com a Ciência Política.
Com a verificação empírica, por meio da análise quantitativa,
de que Administração Pública era sobretudo Ciência Administrativa,
em termos defocus, e que a participação de Ciência Politica era, na
verdade, subsidiária, partiu-se para outro tipo de análise.
 56 A DMfNfSTRAÇÀO PÚBUCA NO BRASIL
Decidiu-se, levando- se em conta aqueles dados como um
primeiro contato com o objeto, partir para uma análise qualitativa.
Da pergunta-mãe "o que é Administração Pública no Brasil'',
parcialmente respondida pelos resultados da pesquisa quantitativa e
por algumas análises destes dados em termos de locus efocus. passou-
se a questões de outra natureza.
Perguntou-se então:
o que significaria aquela alta incidência de estudos sobre o aparelho
do Estado, num primeiro momento, ampliando-se e diversificando-
se noutro?
o que signifi caria aquela falta de umfocus mais específico nos
últimos anos diferentemente do que ocorrera antes?
Foi aí que surgiu a idéia de que, eventualmente, estes dois gran-
des períodos coITesponderiam a dois entendimentos básicos da dis-
cip lina e da comunidade acadêmica a respeito desta. Indagou-se se,
eventualmente, a noção kuhniana de paradigma não poderia auxiliar
no entendimento do que ocotTera com a disciplina neste século. Em-
b1ionariamente, parecia verificar-se, especialmente no período pós-
80, um período de crise de um referencial paradigmático, e que,
aparentemente, estaria relacionado a uma amp liação do conceito de
público.
Passou-se então a uma pesquisa bibliográfica e a uma leitura
de caráter teórico-conceituai com o objetivo de buscar uma com-
preensão mais aprofundada do conceito de público. O conceito de
público tornou-se, desta fornrn, variável de inferência.
Assim, criaram-se as condições necessárias para uma primeira
seleção do material , fo1mulação de hipóteses e categorização.
~
Tomou possível, também, a constrnção do Quadro de Análise
(Quadro I) a partir dos procedimentos explorató1ios junto ao material
'! analisado e da colocação em evidência de algumas propriedades dos
textos como objetos estudados (locus), enfoques (focus) , além de
algumas características que se diferenciavam de maneira acentuada
nos dois períodos identificados.
Posteriormente, a pariir do quadro empírico e do marco teórico
de análise, se formularam hipóteses e foram estabelecidas as ve1ientes
analíticas.
Para a determinação do uni verso a ser pesquisado foram
utilizadas nesta pesquisa as regras da exaustividade, não-seletividade
A CONSTRUÇÃO DO OBJETO DE ESTUDO 57
e pertinência. Uti lizou-se a regra da exaustividade, dado que a inten-
ção era fazer um mapeamento, dar uma visão panorâmica e ampla
do campo de Administração Pública no Brasil. Uma vez definido o
campo do corpus (no caso, Revistas de Administração Pública
ligadas a dois importantes órgãos para a área : DASP/ ENAP e EBAP/
FGV), desde sua c1iação até hoje - considerou-se importante levar
em conta todos os elementos deste colpus.36
Esta regra é completada pela de não-seletividade. ou seja, todo
e qualquer exemplar das duas Revistas foi considerado. Assim. por
exemplo, números especiais (temáticos) foram considerados, e não
excluídos. 37
Ainda, foi considerada a regra da pertinência, ou seja, os do-
cumentos retidos devem ser adequados, como fonte de informação,
de modo a cotTesponderem ao objetivo que suscita a análise. Neste
sentido cons iderou-se o fato de que a históri a da Administração
Pública no Brasil é diretamente vinculada ao DASP/ENAP e à EBAP/
FGV e, por conseqüência, às suas duas Revistas.
Como critérios de categorização foram utilizados:
temas: como elementos diferenciados constitutivos de um conjunto;
- categorias temáticas: como reagrupamento por analogia;
critérios previamente definidos: o conceito de público e suas duas
configurações básicas no tempo (paradigmas);
O critério de categorização utilizado foi o semântico, ou seja,
as categorias temáticas, que "significam" o conceito de público
entendido como estatal, ficam agrnpadas sob este título conceitua!,
enquanto aquelas que "significam" o conceito de público entendido
deforma mais ampla que de estatal, ficam agrupadas sob este outro.
36. O trabalho contou com a colaboração, no período 1992-1 998, de quatTo auxiliares
de pesquisa (n ível de pós-graduação, financiados pelo NPP/ EAESP/FGV). quatro
bolsistas de iniciação cientí fica (níve l de graduação financiados pelo CNPq) e Lm1
aprimorando _(níve l de pós-graduação, financiado pelo IS/SES e FUNDAP).
37. Números temáticos foram considerados im portantes s inais das tendências do
campo.