Sociossemióticas). Versão revista e ampliada publicado de FECHINE, Y. (2018). Pour une sémiotique de la propagation: invention
et imitation sur les réseaux sociaux. Actes Sémiotiques [En ligne]. 2018, n° 121. Disponível em:
http://epublications.unilim.fr/revues/as/5953.
Yvana Fechine
Universidade Federal de Pernambuco
Resumo: O artigo mostra a operatividade do modelo interacional proposto por Eric Landowski, a partir de
desdobramentos da gramática narrativa greimasiana, na análise de produtos e processos midiáticos que
dependem da propagabilidade, inerente às redes sociais digitais que sustentam a chamada cultura
participativa. Apoiado na observação dos modos de transformação dos memes na internet, uma das formas
mais características dessa cultura participativa, o artigo apresenta quatro procedimentos que descrevem a
interação dos usuários de mídias sociais com este tipo de texto “espalhável”. São eles: invenção, imitação,
replicação e recriação. A descrição desses procedimentos almeja colaborar para a construção de uma
semiótica da propagação nas redes sociais digitais capaz de subsidiar o estudo das mídias no âmbito da
cultura participativa.
Palavras-chave: mídia, cultura participativa, propagação, redes sociais digitais, regimes de interação.
mais restrito dessa expressão, empregando-a para descrever a explosão das tecnologias
digitais interativas que possibilitaram aos consumidores médios registrar, arquivar e
produzir conteúdos de mídia, operando como agentes fundamentais na produção e
circulação midiática, sobretudo, a partir de sua atuação nas plataformas em rede.
Do ponto de vista tecnológico, plataformas são arquiteturas computacionais com
interfaces amigáveis que propiciam determinados processos interacionais e atividades
sociais. Por meio de processamentos de dados, algoritmos e configurações padrão que
refletem as escolhas do seu proprietário, as plataformas traduzem comportamentos sociais
dos seus usuários em linguagem computacional, passando a interferir depois em seu
desempenho (VAN DIJCK, 2013, p. 35). Plataformas tornaram-se grandes redes sociais
digitais – também chamadas de mídias sociais – sustentadas por um conjunto de
aplicativos (software) para internet que permitem a criação e troca de conteúdos gerados
por usuários. A produção e o consumo de conteúdos foram profundamente influenciados
pelo surgimento de plataformas digitais por meio das quais seus usuários têm acesso hoje
à informação, entretenimento, serviços e relacionamentos online inseridos nessa chamada
cultura participativa.
Com base ainda nas postulações de Jenkins (2008) e de modo mais específico,
trataremos como cultura participativa o cenário e o conjunto variado de possibilidades
abertas aos consumidores de maior acesso, produção e colocação em circulação de
conteúdos midiáticos, a partir da digitalização e convergência dos meios. A cultura
participativa define, nessa perspectiva, novas práticas de uso das mídias associadas,
sobretudo, ao compartilhamento, publicação, recomendação, comentários, remix e
reoperação de textos criados e disponibilizados em meios digitais, especialmente, na
internet. A despeito da pouca presença de Greimas no campo da Comunicação, no qual
se concentram os estudos sobre tais fenômenos, é curioso, no entanto, observar o quanto
os desdobramentos teóricos da semiótica greimasiana podem contribuir para explicar o
que se tornou o principal desafio para estudos que envolvem a cultura participativa: a
compreensão dos processos interacionais.
Essa contribuição é dada, sobretudo, pelos trabalhos de Eric Landowski que
culminam com a proposição de um modelo no qual descreve os princípios elementares
relativos à maneira pela qual o sujeito constrói suas relações com o mundo, com o outro,
consigo mesmo. A partir desses princípios, Landowski (2014) monta um sistema com
quatro regimes de interação e sentido – programação, manipulação, ajustamento e
3
acidente – com grande poder operativo para pensarmos, por exemplo, os diversos modos
de consumo ativo das mídias (JENKINS, 1992, p.284).
Na produção midiática contemporânea, a ideia de “consumo ativo”, empregada
por Jenkins (1992), remete às possibilidades abertas para os destinatários da comunicação
de intervirem sobre aquilo que lhes é ofertado: eles buscam e correlacionam
dados/informações nas diversas plataformas; enviam mensagens aos produtores por meio
das redes sociais, afirmando seu direito de fazer julgamentos e expressar opiniões sobre
o desenvolvimento dos produtos audiovisuais, atendem aos pedidos de colaboração com
dos produtores e, nas experiências mais bem extremas de engajamento, produzem seus
próprios textos a partir de outros existentes (é o caso dos fandoms). Diante de textos que
pressupõem esse consumo ativo, tornou-se ainda mais evidente a necessidade de
pensarmos a produção de sentido como um processo interacional no qual as
manifestações resultam de diferentes modalidades de participação propostas pelo
enunciador ao enunciatário no fazer-se do próprio enunciado.
Torna-se agora ainda mais evidente a necessidade de pensarmos a enunciação não
apenas como uma instância logicamente pressuposta à existência do enunciado, mas
como uma relação concreta e efetiva entre os sujeitos envolvidos na enunciação ou, em
outras palavras, como “um ato instaurador do sentido na e pela interação entre os dois
parceiros do discurso” (OLIVEIRA, 2013, p. 239). Subjacente aos novos arranjos
enunciativos nas mídias, há procedimentos da sintaxe narrativa que, agora, saltam para o
primeiro plano na análise quando nos dispomos a pensá-los semioticamente no ambiente
de convergência e frente à transmidiação3. É nesse nível de análise e frente a esses novos
modos de manifestação das mídias que o modelo interacional de Landowski (2014) torna-
se uma ferramenta teórica importante na Comunicação. Segundo Landowski (2017,
p.201), o que o modelo interacional propõe “não é nada mais do que uma sintaxe – uma
3
A transmidiação é uma das principais características da produção midiática contemporânea. Em estudos
anteriores (FECHINE, 2012, 2014; FECHINE ET AL., 2013), definimos a transmidiação como um modelo
de produção orientado pela distribuição em distintas mídias e plataformas tecnológicas de conteúdos
associados entre si e cuja articulação está ancorada em estratégias e práticas interacionais propiciadas pela
cultura participativa estimulada pela digitalização e convergência dos meios. Essas estratégias transmídias
envolvem necessariamente a participação dos destinatários dessa comunicação (espectadores, usuários de
redes sociais, consumidores de mídia em geral), ainda que seja apenas para buscar e correlacionar os
conteúdos ofertados nas várias mídias/plataformas. Muito frequentemente, as estratégias transmídias
convocam também uma intervenção direta dos destinatários sobre ou a partir dos textos ofertados pelo
destinador da comunicação.
4
Programação Acidente
Regularidade Probabilidade
Manipulação Ajustamento
Intencionalidade Sensibilidade
É essa dinamicidade do modelo que o torna tão proveitoso no estudo das práticas
midiáticas observadas na cultura participativa, sobretudo, aquelas ensejadas pelas
tecnologias digitais interativas e apoiadas em alguma atuação do destinatário já prevista
pelo destinador da comunicação na estrutura geral da enunciação. Seu alcance explicativo
deve-se ainda à centralidade que Landowski confere ao modo como um actante age ou
intervém sobre o outro. Esse tipo de abordagem parece ainda mais pertinente na descrição
de produtos e processos midiáticos que dependem da propagabilidade, uma propriedade
que se tornou mais evidente nas redes sociais digitais com suas dinâmicas de influências
recíprocas entre seus usuários.
3. imperativo da propagabilidade
4
A ideia de uma “economia do engajamento”, baseada nas postulações de Jenkins, Ford e Green (2014,
p.92), remete às ações corporativas que buscam rentabilizar os comportamentos do público nas redes sociais
digitais. O termo engajamento designa também um envolvimento do consumidor/usuário com
determinados produtos da indústria midiática capaz de levá-lo a um agenciamento sobre os mesmos, ou
seja, a uma intervenção sobre conteúdos que lhe são ofertados.
5
Em 27/06/2017, Mark Zuckerberg, presidente-executivo do Facebook, anunciou que a rede social contabilizou 2
bilhões de usuários em todo o mundo. Cf. http://g1.globo.com/tecnologia/noticia/facebook-atinge-os-2-bilhoes-
de-usuarios.ghtml, acesso em 20 out. 2017.
9
fim, a expressão passou a ser usada para nomear um tipo específico de texto em circulação
na web orientado por uma lógica de imitação.
Genericamente, a expressão “meme da internet” tem designado as mais variadas
manifestações da cultura popular nos ambientes digitais – fotos legendadas, cards, gifs,
expressões, vídeos etc. – que se espalham nas mídias sociais, a partir do
compartilhamento entre os seus usuários. Os memes assumem, geralmente, a forma de
conteúdos efêmeros, com um apelo frequente ao humor, à ironia, à crítica política e social.
Não são unidades avulsas, mas uma cadeia de peças originárias de um mesmo campo
conceitual e cujo significado depende do conjunto no qual estão inseridas (MUSEU DO
MEME, 2017). Pesquisadores do #MUSEUdeMEMES6 explicam que, quando uma
determinada peça se propaga pelas mídias sociais como uma unidade isolada não se pode
falar de um meme, mas de um viral. Os memes atuam necessariamente como uma
“coleção” de textos, formando um arranjo complexo de conceitos e comportamentos que
podemos chamar de cadeia memética. A propagabilidade e o apelo a elementos da cultura
popular nos ambientes virtuais não caracterizam por si sós o tipo de texto da internet que
se convencionou chamar de meme. Por terem seu sentido necessariamente dependente de
um ou mais textos com os quais está associado, todo meme pode ser considerado também
uma manifestação dotada de hipertextualidade, uma propriedade fundamental das novas
formas de comunicação (MARINO, 2015; FECHINE, 2014; SCOLARI, 2008).
A noção de hipertextualidade que caracteriza o meme deriva das ideias pioneiras
de Genette (1989) sobre a transtextualidade (tudo o que coloca um texto em relação
explícita ou implícita com outros textos ou elementos textuais). Para Genette (1989),
podemos falar em hipertextualidade quando um texto A (hipotexto) deriva de um texto B
(hipertexto) e ainda que B não fale nada de A, B não poderia existir tal como é sem A,
pois dele se desdobra. O meme pode ser considerado como uma manifestação hipertextual
porque o sentido de cada unidade depende igualmente de uma relação que se estabelece
com uma determinada forma que deu origem ao conjunto. Ou seja, um meme só pode ser
considerado um meme porque estabelece uma relação hipertextual com outro meme, a
partir de derivações existentes entre eles.
6
O #MUSEUdeMEMES é um projeto vinculado ao Departamento de Estudos Culturais e Mídia da
Universidade federal Fluminense que, além de oferecer publicações e realizar eventos sobre o tema,
mantém um acervo de referência (webmuseu) para pesquisadores interessados na investigação sobre o
universo dos memes. Cf. www.museudememes.com.br
10
7
Segundo Fiorin (1994, p.65), o sentido se constrói em “um continuum em que se vai, de maneira gradual,
do mais abstrato ao mais concreto”. O tema remete ao nível mais abstrato de manifestação do sentido e a
figura, ao mais concreto (remete geralmente a algo da ordem da percepção, ao mundo natural e ao mundo
construído). Há sempre uma tematização subjacente à figurativização. Mas, segundo Fiorin (1994, p.69),
não devemos buscar o sentido de um texto a partir unidades isoladas em qualquer dos dois níveis: todo
texto precisa ser interpretado a partir dos percursos figurativos e temáticos que constrói.
12
também das ideias do teórico francês Gabriel Tarde sobre imitação8, tal como foram
recuperadas no Brasil por trabalhos como o de Ericson Telles Saint-Clair (2007), que
estudou suas contribuições para a Comunicação.
8
Gabriel Tarde (1843-1904) foi jurista e professor da cadeira de Filosofia Moderna do Collège de France.
Diretor de estatística criminal do Ministério da Justiça, cargo que conservou até a morte. Publicou textos
de caráter filosófico-sociológico que não tiveram o menor êxito quando foram publicados, entre eles, Les
lois de l’imitation (1890). Suas ideias sobre imitação e invenção, repetição e diferença foram retomadas
depois por filósofos importantes do século XX, como Gilles Deleuze.
13
diferença. Por outro lado, no entanto, não podemos, identificar a “imitação” à semelhança
porque, no pensamento tardeano, repetições são sempre repetições variadas. Por essa
razão, mas também para manter a coerência do quadrado semiótico no qual ocupa uma
posição contraditória em relação à invenção, a imitação precisa ser pensada como uma
não diferença.
Todavia, o quadrado pressupõe não apenas relações de contradição, mas também
de contrariedade. Assim, se um termo da categoria de base é a diferença, temos que
colocar no polo contrário a semelhança e, se existe a semelhança, a organização lógica
do quadrado prevê seu termo contraditório, a não semelhança. Retomando o pensamento
de Tarde, resta-nos, então, descrever em termos de variações possíveis entre a repetição
e diferença estes dois novos termos. Propomos, então, pensar a “semelhança” como o
componente que fundamenta (como o próprio nome sugere) uma repetição em um grau
máximo, muito próxima do que poderíamos considerar como idêntico. Por isso, podemos
falar, nesse caso, de uma repetição completa. Pelo mesmo caminho, podemos pensar a
“não semelhança” como o componente que sustenta uma variação em maior grau de
profundidade, mas que ainda não pode ser considerada como uma completa
diferenciação. Por isso, é necessário considerá-la ainda como uma variação parcial.
Chegamos assim a quatro posições interdefinidas que, de modo coerente com a lógica
relacional do quadrado semiótico, permitem “traduzir” numa perspectiva geral processos
de propagação determinados pela influência entre os agentes em função das relações de
sugestão recíproca que eles entretêm, o que nos permitirá adiante retomá-las para pensar
os processos interacionais. No eixo superior do diagrama posicionamos como termos
contrários a repetição completa, que denominamos de replicação, e a variação completa,
que corresponde à invenção. No eixo inferior, encontram-se como termos subcontrários
a repetição parcial, que corresponde à imitação, e a variação parcial, denominada de
recriação:
Semelhança Diferença
REPLICAÇÃO INVENÇÃO
Repetição completa Variação completa
Figura 02
Categorias de propagação
14
9
Inspirado na Botânica, na qual o termo designa uma raiz que cresce em todas as direções de modo
horizontal, o termo rizoma passou ser empregado também no estudo das redes sociais para designar relações
assimétricas e multidirecionais de comunicação. Segundo Aguiar (2006, p.13), em uma estrutura
rizomática, “o fluxo de informações pode partir de qualquer ponto, ou de vários, e qualquer pessoa pode
enviar mensagens para quem quiser, ou para todos, simultaneamente; os papéis de emissor e receptor são
intercambiáveis; e a circulação de informação por toda a rede independe de uma instância central”.
15
memética. Sua descrição toma como ponto de partida o que, na Linguística, é chamado
de topic e que corresponde, grosso modo, ao enfoque do texto baseado em uma
determinada hipótese de sentido construída pelo leitor. Segundo Ugo Volli (2007, pp.83-
84), somente podemos falar em texto quando houver um topic comum que ligue entre si
os vários enunciados, garantindo a sua coerência semântica. Do mesmo modo, só
reconhecemos uma cadeia memética pela existência de um tópico discursivo comum às
várias unidades.
O conceito de isotopia está relacionado ao de topic. Volli (2007, p.86) explica que
ao passo que o topic é uma operação pragmática realizada pelo leitor, a isotopia é uma
estrutura semântica inscrita na materialidade do texto. No estudo dos memes, a ideia de
tópico discursivo nos permite considerar, ao mesmo tempo, as duas operações: designa a
identificação na cadeia memética de um topic unificador, mas essa identificação depende
de uma competência do usuário para reconhecer sua manifestação em várias isotopias.
Em outras palavras, a configuração de uma cadeia memética depende dos
desdobramentos de um tópico discursivo, o que é possibilitado por mudanças gradativas
de isotopias, a partir de conectores localizados nos planos do conteúdo ou da expressão.
Greimas e Courtés (2008, pp.275-278) definem isotopia como recorrências
sêmicas (“parentescos” de sentido) ou de traços semânticos que se repetem e se reiteram
ao longo do texto, permitindo que este seja interpretado de um determinado modo. Dito
de outro modo: isotopias definem caminhos de leitura a partir dessas recorrências
sêmicas, quer sejam temáticas ou figurativas. Fiorin (1994, p.81) lembra que as diversas
leituras que um texto comporta já estão inscritas nele como possibilidades, a partir de
indicadores de sua polissemia. Há textos, no entanto, que são pluriisotópicos, ou seja,
permitem vários percursos de leitura. Possuem, portanto, determinados elementos –
conectores isotópicos – que abrem caminho para interpretações variadas, instaurando,
assim, isotopias diferentes e, muitas vezes, até divergentes (caso do chamado “duplo
sentido”). Segundo Volli (2207, p.87), a possibilidade de encontrar pontos de contato
entre os significados dos vários elementos empregados por um texto e de levantar
hipóteses mesmo sobre o que o texto não diz, mas que pode ser extraído dele pelo saber
comum entre os falantes, é o que permite a construção de variadas isotopias.
O caráter pluriisotópico do meme está na base das transformações de sentido pelas
quais ele passa dando lugar a outras manifestações. Isto é, um meme só é meme em
relação a outro meme com o qual mantém algum conector isotópico, ou seja, um elemento
comum de ligação, a partir do qual se dá e se reconhece a variação entre eles. A
16
10
Iniciada em março de 2014 com uma operação em um posto de gasolina, de onde surgiu seu nome, Lava
Jato foi o nome dado à investigação de um grande esquema de lavagem e desvio de dinheiro envolvendo a
Petrobrás, grandes empreiteiras do país e políticos.
11
Cf. http://www1.folha.uol.com.br/poder/2016/09/1813265-lula-e-denunciado-na-lava-jato-por-caso-do-
triplex.shtml, acesso em 20 out. 2017.
17
Imagem 01
Print da notícia publicada pela Folha de São Paulo e portal UOL em 18/09/2016.
5.1. Replicação
5.2. Imitação
a uma forma geradora. Por se tratar necessariamente de uma repetição variada, a imitação
implica em modificações em distintos graus de um texto preexistente, a partir de
reinterpretações do tópico discursivo em torno do qual este se organizou. As formas
imitáveis possuem, portanto, elementos variáveis que podem ser modificados de acordo
com sua estruturação, com os propósitos da repetição e com as determinações do contexto
(MARINO, 2015, p.53-55). Ou seja, as formas imitadas manifestam-se sempre como
versões de uma outra cuja organização a torna imitável. Nas mídias sociais, a propagação
por imitação costuma estar associada, por exemplo, aos mais diversos usos do sampling
e do remixing. Este último corresponde, geralmente, a remontagens, “reedições” e
reorganizações do texto preexistente. O sampling, por sua vez, costuma estar associado a
extração de partes de um texto para uso em outro.
Ocupando posição contrária à recriação, a imitação distingue-se dela, sobretudo,
porque envolve uma modelagem, o que implica na existência de um condicionamento
mais direto do fazer criativo de quem modifica a forma imitável. Dito de outro modo, a
imitação envolve um fazer “orientado” mesmo que este seja ditado pela própria vontade
imitativa de usuários sugestionados uns pelos outros no ambiente instaurado pelas mídias
sociais, bem como por elementos marcantes presentes na forma imitável que nelas circula
(“ganchos” semânticos ou sintáticos)12. Por isso, podemos associar a imitação ao regime
de interação e sentido da manipulação, que, tal como descrito por Landowski (2014), tem
como uma de suas principais características um jogo de convencimento entre sujeitos.
Como em toda interação manipulatória, existe um posicionamento ainda hierárquico na
imitação, uma vez que o imitador está sempre, por definição, submetido a um fazer
daquele (ou daquilo) ao qual imita.
Embora comporte necessariamente uma variação, a forma imitada não se distancia
completamente do tópico discursivo acionado pela forma imitável. Do contrário, deixaria
de ser um tipo de repetição (trata-se, no entanto, de uma repetição apenas parcial). O que
caracteriza a propagação por imitação é o aproveitamento de um mesmo tópico
discursivo, explorando sua variação a partir de repetições recontextualizadas de
determinados temas e/ou figuras, mas ainda dentro de um mesmo enfoque ou campo
semântico. É o que podemos observar nos memes que se espalharam pela internet depois
da denúncia do MPF contra Lula. O tópico discursivo que deu origem aos memes
12
A ideia de “ganchos” semânticos e sintáticos é inspirada em Marino (2015, p.60-61). Para ele, um meme
típico da internet possui uma estrutura que funciona como uma “fórmula” ( um “gancho” sintático) e um
elemento impressionante, um punctum (um “gancho” semântico).
20
Imagem 02
Gráfico apresentado pelo Procurador da República.
13
Todos os memes utilizados como exemplos foram coletados a partir do perfil pessoal da autora no
Facebook, em setembro de 2016.
21
5.3. Recriação
24
14
No seu estudo sobre os memes, Marino (2015, p. 48) recorre ao texto de Roman Jakobson intitulado “On
Linguistic Aspects of Translation”, in Reuben A. Brower (org.), On Translation, Cambridge (MA), Harvard
University Press, 1959, pp. 232-239. No Brasil, o texto “Aspectos Linguísticos da Tradução”, foi publicado
no livro Linguística e Comunicação (JAKOBSON, 2007).
15
A ideia de enciclopédia foi proposta originalmente por Umberto Eco (1986) e retomada por Ugo Volli
(2007, pp. 84-85) em cuja descrição nos apoiamos aqui.
25
desejos e criatividade. Uma vez que uma determinada forma é posta em circulação nem
sempre há como prever no que vai se transformar, pois é a partir da competência
enciclopédica de cada um e nos ajustamentos mútuos propiciados pela própria interação
que emerge a sua variação mais profunda.
O que é próprio do regime interacional que Landowski chama de “ajustamento”
é, como vimos, a imprevisibilidade e a reciprocidade dos comportamentos. Um actante
não planeja nem controla o que vai resultar de sua interação com o outro. A transformação
que ocorre na interação resulta justamente desse contato no qual se estabelece um fazer-
junto, que faz deles parceiros em um processo enunciativo ancorado na intercambialidade
de papeis (OLIVEIRA, 2013). No ajustamento, o gesto de um convida ao do outro, um
se deixa levar pelo movimento criativo do outro. É nesse jogo de influência recíproca,
sem qualquer adaptação unilateral (definidora da programação) ou imposição de um ao
outro (marca da manipulação), que se abre caminho para o criar-junto, seja um modo de
vida qualquer, seja uma forma.
A recriação surge, portanto, como fruto da atualização de um “estoque” de
significados que as formas transformáveis (os memes) comportam e que são convocados
em meio a sugestibilidade que se estabelece no próprio contato entre os usuários das
mídias sociais. O que nos permite reconhecer a forma recriada como parte da mesma
órbita de sentidos é justamente o jogo intertextual, apoiado nesse saber enciclopédico dos
usuários, inclusive sobre a própria dinâmica das redes sociais digitais (as variações
inerentes à propagação). Isso inclui, como foi dito antes, conhecer o que foi objeto de
imitação nas mídias sociais para dele derivar rumo aos seus ajustamentos. As imagens 08
a 10 são resultado desse processo.
16
Marinheiro só é uma das mais tradicionais cantigas de roda do Brasil. Muito usada para ensinar às
crianças a ter ritmo, a canção é baseada na repetição exaustiva do refrão, como se pode observar na letra:
“Eu não sou daqui/Marinheiro só/Eu não tenho amor/Marinheiro só/ Eu sou da Bahia/Marinheiro só/De
São Salvador/Marinheiro só/ Ô, marinheiro marinheiro/Marinheiro só/ Ô, quem te ensinou a nadar/
Marinheiro só/ Ou foi o tombo do navio/ Marinheiro só/ Ou foi o balanço do mar/ Marinheiro só/ Lá vem,
lá vem/ Marinheiro só/ Como ele vem faceiro/ Marinheiro só/ Todo de branco/ Marinheiro só/ com o seu
bonezinho/ Marinheiro só”. Cf., por exemplo, https://www.youtube.com/watch?v=1_A1hclhXPI, acesso
em 21 out. 2017.
28
Esse jogo de “desvios”, que culmina nas recriações, torna ainda mais evidente a
pluriisotopia que caracteriza a “forma meme”. Essa “forma meme”, que depende
necessariamente de uma dinâmica de imitações e recriações para existir, é sustentada pela
abertura de sentidos e pela multiplicidade de interpretações inerente ao processo de
circulação dos conteúdos nas mídias sociais. O reconhecimento e, ao mesmo tempo, a
transformação dos tópicos discursivos por sucessivas apropriações é o que está na base
dessa circulação, razão pela qual as mídias sociais são o domínio por excelência da
invenção.
5.4. Invenção
Como já foi dito, nas mídias sociais, é praticamente impossível determinar onde e
quando começa a transformação de determinado conteúdo. Mas, ainda que seja numa
perspectiva lógica, a invenção pode ser considerada, ao mesmo tempo, o ponto de partida
e de chegada do ciclo de transformações acionado pela circulação dos conteúdos nas
mídias sociais. A invenção corresponde àquele momento de “acidente criativo” no qual
surge algo completamente diferente de tudo que já possui existência como causa e
consequência desse ciclo mesmo de propagação. O termo “acidente” empregado aqui
remete, evidentemente, ao regime de interação e sentido fundado sob o princípio da
probabilidade, do absolutamente inesperado, do acaso. Em determinadas circunstâncias e
sob certas condições, tais “acidentes” podem resultar no surgimento de algo que ainda
estava por ser criado e que surge de um encontro imprevisível ou, como já foi dito, de um
cruzamento aleatório de duas trajetórias quaisquer. Considerado como o regime do “puro
risco”, a caracterização da interação por acidente é impressionantemente próxima do
modo como intérpretes do pensamento de Gabriel Tarde, como Dominique Reynié,
descrevem a invenção em sua obra, associando-a também ao acaso (ou a um “misterioso
desígnio”):
(...) a invenção tardeana atravessa o indivíduo, parece extrair-se do mundo vital para atingir o
mundo social graças à mediação do sujeito que, sem o saber, não é mais que o instrumento de
misterioso desígnio. A partir daí, a invenção torna-se um cruzamento feliz, num cérebro
inteligente, de uma corrente de imitação que o reforça, seja com uma outra corrente de imitação,
seja com uma percepção exterior intensa que lança uma luz imprevista sobre uma ideia recebida,
ou com o forte sentimento de uma necessidade da natureza que descobre num procedimento usual
recursos inesperados. (REYNIÉ, 2005, p.XI).
Do modo como foi descrita até aqui, a invenção é uma espécie de “marco zero”
das transformações que ocorrem no processo de propagação: por um “acidente” ou
29
“misterioso desígnio”, cria-se algo. Dessa “fratura” criativa, surge uma forma qualquer
que, posta em circulação, pode dar lugar, ao mesmo tempo e sem direção, a sucessivas
replicações, imitações ou recriações, até o momento em que, a partir do “estoque” de
significados desencadeado por um determinado tópico discursivo, irrompe a descoberta,
a ideia e a forma novas. É o que observamos nas imagens 11 a 14, com memes produzidos
a partir da mesma apresentação da famosa frase “Não tenho provas, mas tenho convicção”
atribuída aos procuradores do MPF na apresentação da denúncia contra Lula. De modo
bem humorado, e usando versões diferentes e deturpadas das declarações dos
procuradores, os usuários das redes sociais digitais criticaram a arbitrariedade da
denúncia produzindo memes com situações completamente non sense. A percepção de
que o procurador Deltan Dallagnol estava disposto a incriminar Lula de todas as formas,
motivou inclusive uma piada (imagem 14) em que o ex-presidente é acusado pelo
procurador da República por matar Odete Roitmam, personagem da novela “Vale Tudo”
da Rede Globo, exibida entre 1988 e 1989, que entrou para história da teledramaturgia
brasileira pelo mistério que conseguiu criar em torno do assassinato da protagonista. Deu
lugar também as mesmas constatações absurdas contidas nas imagens 11, 12 e 13.
Não há como garantir que a invenção de uma nova cadeia memética, como a
apresentada nas imagens 11 a 14, resulta de transformações sequenciais e sucessivas de
outras (imagens 02 a 06 e 08 a 10). Para isso, seria necessário, no mínimo, termos como
realizar um acompanhamento diacrônico das transformações, o que é praticamente
impossível diante da natureza rizomática das redes sociais digitais. No conjunto de
31
exemplos que estamos utilizando, não há, portanto, como precisar se os memes criados a
partir da frase atribuída aos procuradores surgiram antes ou depois da cadeia memética
acionada pelo powerpoint de Dallagnol, ou vice versa. Mesmo que tenham sido criadas
em momentos distintos – sucessivos ou não –, as cadeias meméticas apresentadas podem
circular ao mesmo tempo em função das determinações dos algoritmos baseadas no perfil
de cada usuário. Se admitirmos, como estamos fazendo aqui, que a invenção corresponde
a um ato criativo pressuposto a qualquer propagação, o estabelecimento de uma linha do
tempo das transformações, na qual seja possível determinar seu surgimento, parece
desnecessária, pois o que importa, nessa perspectiva, é compreendê-la como etapa lógica
de um processo que possui uma natureza necessariamente cíclica. Nessa circulação
cíclica, cada invenção esgota-se por si mesma, podendo dar lugar aos diferentes
procedimentos de propagação (replicação, imitação, recriação), até que novo ciclo se
instaure a partir de outra invenção.
A coexistência das cadeias meméticas no momento em que fizemos a coleta de
dados fornece testemunho por si só dessa dificuldade de estabelecer a origem da
circulação nas mídias sociais. Mas, o fato de se desenvolverem em torno do mesmo tópico
discursivo nos ajuda a evidenciar a natureza cíclica da propagação, demonstrando o
caráter “fundador” da invenção dentro dela. Ou seja, toda transformação começa com
uma invenção que, ao ser replicada, imitada ou recriada, desaparece. A invenção, como
o regime do acidente, é momentânea e provisória. Irrompe e, imediatamente, ou dá lugar
a outra categoria ou “morre” por falta justamente de circulação. O destino de toda
invenção é, em suma, deixar de ser invenção pelo processo mesmo de propagação.
Podemos também entender isso melhor, retornando mais uma vez a Saussure
(2006). Ao descrever as transformações da língua, Saussure explica que a analogia surge
necessariamente na fala (processo) e na esfera do indivíduo, mas nem sempre se torna
língua (sistema). Para entrar na língua, precisa ser adotada pela coletividade, ou seja,
precisa que outros a imitem até que se imponha ao uso. Saussure (2006, p.196) lembra
que a “língua retém somente uma parte mínima das criações da fala”. Ou seja, na história
de toda inovação há sempre o momento em que ela surge entre os indivíduos e um outro
em que é adotada e, ao ser incorporada por uma comunidade, deixa de ser novidade.
Parece possível pensar o papel da invenção na constituição dos memes por esse mesmo
caminho de transformação mais geral da linguagem.
regem os regimes de interação e sentido propostos por Landowski e que nos permitem
tratar, em trabalhos futuros, dos riscos envolvidos na propagação, sobretudo quando se
pretende monetizar de algum modo participação dos usuários das mídias sociais.
Assim como admitiu Landowski (2014, p.85) ao sintetizar seu modelo interacional
em um “quadrado elíptico”, também reconhecemos aqui o quanto há de esquemático na
categorização que acabamos de apresentar. Mas, não pretendemos, evidentemente, que
essa esquematização dê conta de todos os aspectos envolvidos na propagação dos memes
ou mesmo de outros textos da internet. É importante deixar claro que nosso objetivo aqui
não foi enfrentar o problema propriamente dito da circulação nas redes sociais digitais,
embora o estudo dos modos de propagação esteja intrinsecamente ligado ao tráfego dos
textos. Não nos preocupamos, porém, nessa etapa do trabalho, em entender por onde os
memes se deslocam, realizando uma espécie de “cartografia” que dê conta dos seus
trajetos e movimentos dentro de uma determinada mídia social, entre elas (do Facebook
ao Twitter, e vice-versa, por exemplo) ou mesmo das plataformas digitais para os outros
meios (portais, jornais, TV). Nosso estudo das interações nas mídias sociais, também
dispensa coleta e processamento de dados para extrair padrões de comportamento, pois,
nossa preocupação é menos com o que se propaga e mais com o como se dá a propagação
de certos tipos de texto da web (memes). Esperamos, por isso, que as categorias aqui
propostas – invenção, imitação, replicação e recriação – possam servir como subsídio
para descrevermos a interação dos usuários de mídias sociais com os textos que nelas
circulam e, consequentemente, entre si. Nessa perspectiva, a construção de uma semiótica
da propagação tem no modelo interacional mais geral desenvolvido por Eric Landowski
uma referência inspiradora, do mesmo modo que a Comunicação pode encontrar na
semiótica da propagação um aparato teórico bastante operativo para o estudo das mídias
no âmbito da cultura participativa.
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