Resumo
Este trabalho tem por objetivo apresentar a escrita da Memória Educativa como singular
dispositivo de pesquisa e utilizado há mais de quinze anos na produção de Dissertações
de Mestrado, Teses de Doutorado. Essas pesquisas fundamentam-se no aporte teórico da
psicanálise em sua conexão com a educação. Muitos trabalhos e/ou publicações
acadêmicas nesta área de estudos indicam que na prática docente estão inscritas “marcas
mnêmicas” que permeiam a subjetividade e identidade docente em todos os âmbitos de
ensino, com possíveis repercussões em sala de aula. Os estudos possibilitaram aos sujeitos
pesquisados um espaço de reflexividade e de retorno ao passado, especialmente as
experiências escolares, na relação com seus professores de tal modo que ao “atualizarem”
as vivências do passado, se depararam com o presente e as vicissitudes enfrentadas diante
do saber que não se sabe. Assim, foi possível inferir nos estudos que as relações em sala
de aula estão permeadas pelo conceito freudiano de transferência, logo compreendida
pelos docentes como um conceito que encerra a chave da operação educativa tanto quanto
o processo de identificação. Ainda mais, colocam-se como prováveis causas do mal-estar
docente, atravessadas pelo “quantum” de afeto atinge o sujeito pessoa/profissional.
Marcas simbólicas e inconscientes, advindas de inscrições que o constituem são
compreendidas como vestígios, signos que continuam produzindo efeitos também na ação
educativa, reconhecendo a importância do inconsciente no processo de sua formação,
quando ao ascender ao lugar de mestres reeditam encontros significativos. Enfim é
possível pensar a escrita da Memória Educativa como a palavra contida na enunciação
mínima do professor, com poder de construir uma verdade histórica e produzir uma nova
relação a partir de suas vivências, reconstruindo sua identidade de educador, com
repercussões no ensinar e aprender, e ressignificando sua prática independente do cenário
pedagógico em que atua.
Introdução
Em um contexto de significativas mudanças nas pesquisas em ciências humanas
e sociais para abordagens qualitativas, em especial na área da educação, a escrita da
Memória Educativa emergiu como possibilidade de expressão da constituição subjetiva e
identidade do professor através das vivências na instituição escolar, pensada como um
conjunto de práticas ou relações sociais “marcadas” por significativas experiências, desde
o período inicial da escolarização até sua prática na sala de aula.
No movimento em busca de uma nova perspectiva que, preserve de modo
indissociável a importância da vida infantil e da educação sobre o devir das crianças que
estão sob a responsabilidade de adultos, lembra-nos Freud, ao se referir às pesquisas de
Charcot:
Charcot costumava olhar repetidamente as coisas que não compreendia,
para aprofundar sua impressão delas dia a dia, até que subitamente a
compreensão raiava nele ...Podia-se ouvi-lo dizer que a maior satisfação
humana era ver alguma coisa nova – isto é, reconhecê-la como nova; e
insistia sobre a dificuldade e importância dessa espécie de “visão” ...Ele se
indagava por que as pessoas enxergavam apenas o que tinham aprendido a
ver...” (Freud, 1892-1899 / 1996, p. 22).
Assim pensamos também que uma nova “visão” foi sendo construída ao longo das
últimas décadas nos estudos envolvendo professores como sujeitos em trabalhos de
pesquisa acadêmica, a partir da publicação, segundo Nóvoa (1992), do livro de Ada
Abraham (1984) O professor é uma pessoa. Desde então, apareceram muitas produções
e estudos sobre a vida dos professores, as carreiras e os percursos profissionais, biografias
e autobiografias uma produção heterogênea, mas com um mérito indiscutível: recolocar
os professores no centro dos debates educativos e das problemáticas da investigação”
(p.15). O olhar sobre a vida do professor e ele enquanto pessoa passaram a ser um
imperativo, ou seja, da ordem do impossível separar o eu profissional do eu pessoal.
Com esta perspectiva, durante os anos de estudos e pesquisa para elaboração da
Tese de Doutorado Re-significação do papel da Psicologia da Educação na Formação
Continuada de professores de Ciências e Matemática (Almeida, 2001), a proposta inicial
para a escrita da memória educativa dos professores foi reconfigurada por meio das
contribuições da teoria psicanalítica, permitindo “ver” para além do que se esperava na
pesquisa sobre formação docente. Com a aproximação educação e psicanálise, amplia-
se a compreensão do significado da constituição subjetiva pessoal/profissional e sobre
possíveis repercussões na sala de aula, pois ao escrever suas memórias o sujeito professor
se inscreve como pessoa, pensado como lugar de expressão da subjetividade na formação
da identidade do educador, remete-nos àquilo que nos constituiu, à nossa realidade
psíquica uma vez que nela se encontra a nossa verdade.
Dialogando com Kupfer (2000), compreendemos que um professor ao entrar em
contato com a psicanálise, ouve falar do sujeito mas não sabe como atingi-lo, manipulá-
lo ou enfiar em sua cabeça o que a racionalidade adulta ou pedagógica supõe que ele
deveria aprender e continua sem métodos, o sujeito do qual ouviu falar torna-se mais
misterioso do que nunca. Mas esse professor aprende levá-lo em conta o que é, realmente,
o mais importante, aprende que visa um alvo e acerta em outro, enfim reaprende que visa
à consciência de seu aluno, mas atinge o Sujeito quando ele efetivamente aprende.
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Este trabalho tem por objetivo apresentar a escrita da Memória Educativa como
significativo dispositivo de pesquisa utilizado há mais de quinze anos na produção de
Dissertações de Mestrado e Teses de Doutorado sob orientação desta pesquisadora. As
pesquisas referenciadas no aporte teórico da Psicanálise em conexão com a Educação
integram a linha de pesquisa Escola, Aprendizagem, Ação Pedagógica e Subjetividade na
Educação.
Revisão da Literatura
Em uma revisão de literatura sobre o tema Memória, retornamos às “origens”, ao
berço do pensamento ocidental: a Grécia dos deuses e dos heróis.
Um dos grandes responsáveis pela “eternização” dos deuses gregos, ao lado de
Homero, foi Hesíodo, um sábio e poeta que viveu por volta do século VIII a.C. Em
Teogonia (2003, p. 113) ele informa que, no princípio dos tempos, a memória era
representada por uma divindade, Mnemósine, filha de Urano (Céu) e Gaia (Terra), tão
importante que suas filhas se tornaram as Musas das Artes. Dentre elas destaca-se
Calíope, musa da epopeia que estimulava a memória dos aedos para que esses se
lembrassem dos grandes feitos dos heróis arquetípicos de um tempo muito distante,
associada à sabedoria e ao pensamento contrapondo-se à Lethe, deusa que personificava
o esquecimento.
Segundo Meneses, "a sacralização da memória revela, por si só, o alto valor
que lhe é atribuído numa civilização de tradição oral, como foi, entre os séculos XII e
VII, e antes da difusão da escrita, a da Grécia”. De acordo com a autora, Mnemosyne
revela as ligações obscuras entre o "rememorar e o inventar", esse topos fecundo que
se tornará uma das mais arrojadas afirmações da Psicanálise vinte e quatro séculos
mais tarde (1993, p.15).
A memória tem sido objeto de estudo em muitas áreas do conhecimento humano
desde as lifes stories (anos 50-60) em ciências sociais e na psicologia, neurociência,
psicologia cognitiva, mas na psicanálise ocupa lugar princeps. Desde seu início, Freud
em A Interpretação dos Sonhos (1900/1996), escreveu as associações que lhe ocorriam
em sua autoanálise e consolidou a compreensão sobre o lugar da infância na constituição
do psiquismo.
Garcia-Roza (1998) destaca a importância concedida por Freud à memória,
retomando dos escritos freudianos as abordagens mais significativas iniciando pela
Comunicação Preliminar ([1893-1895] 1996), segundo a qual os “histéricos sofrem
principalmente de reminiscências” (p.43), passando pela declaração no Projeto para uma
Psicologia Científica ([1893-1895]1996) de que “toda teoria psicológica que se pretenda
digna de consideração tem que fornecer uma explicação para a memória” e atribui às
experiências infantis valor determinante e fundante do psiquismo, estabelecendo o
desamparo infantil e a busca de satisfação como elementos constituintes da subjetividade.
Na Carta 52 ([1886-1899] 1996) da correspondência à Wilhelm Fliess, Freud afirma que
o reordenamento de traços mnêmicos responde pela própria formação do aparelho
psíquico (p.281). Nessa carta, discute o processo de transcrição das inscrições deixadas
no psiquismo, não especificamente ao que foi vivido, mas às marcas deixadas pelas
experiências que a criança vivenciou, ou seja, Freud nada mais fez do que assinalar o
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lugar central que a memória ocupa em sua construção teórica, atravessando-a de ponta a
ponta, dando um novo status ao lugar das experiências que deixam traços.
Garcia-Roza (1998) ainda ressalta as primeiras considerações teóricas e clínicas
de Freud sobre a memória:
• não é a experiência vivida pela criança que é considerada traumática, mas a sua
lembrança. São as representações reinvestidas num après coup que vão produzir
um efeito traumático e não o acontecimento na sua forma original (p.50) e
utilizando-se da metáfora do fragmento de cerâmica descoberto pelo arqueólogo
diz que os pequenos signos de nossa história oculta valem pelo seu caráter
indicial, pelo que apontam para um passado arcaico e não pelo que são em si
mesmos (p.10).
• as lembranças encobridoras são recordações de acontecimentos infantis que se
caracterizam pela insignificância dos seus conteúdos que, apesar disso, não apenas
não foram esquecidos como permaneceram na memória com nitidez
surpreendente e contudo essa lembrança encobre outros fatos de maior
importância, textualmente Freud diz que “[...] os elementos essenciais de uma
experiência são representados na memória pelos elementos não essenciais da
mesma experiência” (1889, p.291)
• um terceiro fato que atesta a importância da memória na teoria psicanalítica, é a
amnésia infantil, responsável pelo esquecimento de quase todos os
acontecimentos dos primeiros anos de vida de um indivíduo (pp.50-51). Para
Freud (1913): somente alguém que possa sondar as mentes das crianças será
capaz de educá-las e nós, pessoas adultas, não podemos entender as crianças
porque não mais entendemos a nossa própria infância. Nossa amnésia infantil
prova que nos tornamos estranhos à nossa infância. A Psicanálise trouxe à luz os
desejos, as estruturas de pensamento e os processos de desenvolvimento da
infância (p.190). Portanto, jamais abandona a questão das origens, é como
argamassa da construção teórica da psicanálise.
projetar um futuro possível” conforme Tanis (1998), pois “o tempo e memória são
elementos constitutivos da experiência subjetiva com os quais nos defrontamos em nossa
existência. O modo pelo qual o psíquico registra ao mesmo tempo em que se constitui
pelas Erlebnisse infantis” (p 32-33).
Refazendo o longo percurso de Freud em sua criação, caminho feito de avanços e
recuos, por vezes até de descaminhos na prática clínica, depara-se dentre outras com
noções como de transferência, que não se restringe à exclusividade da clínica. É possível
identificar trabalhos sobre o fenômeno da transferência produzidos não apenas por
autores e pesquisadores vinculados à prática clínica, como também por aqueles que têm
se dedicado a investigá-la em outros contextos favorecedores de relações transferenciais,
como é o caso da instituição escolar, especificamente na sala de aula, setting por
excelência do encontro e/ou (des)encontro professor-aluno.
A relação intersubjetiva professor-aluno pode (re)produzir, segundo as leis do
funcionamento do inconsciente, uma relação transferencial imaginária. Freud,
(1914/1996) em “Algumas Reflexões sobre a Psicologia Escolar”, escrito em
comemoração ao sexagésimo aniversário da escola onde estudou enquanto jovem,
tomado pela emoção ao se deparar com seu velho mestre-escola, lembra de sua idade e a
de seus professores com um certo estranhamento que o leva a pensar se será possível que
“os homens que costumavam representar para nós protótipos de adultos, fossem
realmente tão pouco mais velhos que nós?” Estabelece relação entre o afeto dirigido ao
pai com os relacionamentos posteriores, obrigados a arcar com uma espécie de herança
emocional, como primeiros protótipos (p.249) e diz textualmente que
[...] estes homens, nem todos pais na realidade, tornaram-se nossos pais
substitutos. Foi por isso que, embora ainda bastante jovens, impressionaram-
nos como tão maduros e tão inatingivelmente adultos. Transferimos para eles
o respeito e as expectativas ligadas ao pai onisciente de nossa infância e depois
começamos a tratá-los como tratávamos nossos pais em casa. (p. 249)
uma viagem ao passado através da trajetória como estudante, de tal forma que resgate, na
memória do tempo, episódios, situações, pessoas e processos dessa experiência vivida.
Em um segundo momento, regressando dessa“ viagem” será possível sistematizar,
criticamente, as representações e sentimentos acerca de sua experiência como aluno,
compreender/mapear as relações educativas vivenciadas na história pessoal/escolar,
identificando algumas questões psicopedagógicas que, se por um lado permearam o seu
passado como aluno, produzindo resultados na qualidade de sujeito-aprendiz, por outro,
possivelmente, permeiam/integram também sua prática docente atual, compreendendo
que a arqueologia dos processos pedagógicos, insere-se em uma proposta de formação
que leva em conta a dimensão histórica do sujeito professor. (p.12)
A escrita da memória educativa como dispositivo de pesquisa possibilita uma
investigação ancorada no aporte psicanalítico acerca da forma como se estrutura o sujeito
professor, que começa a se constituir a partir dos primeiros contatos da criança com esse
lugar simbólico do ensinar. Abaixo figura espiral da memória educativa que reflete uma
dimensão integrativa em níveis crescentes de complexidade.
Roteiro
Apresenta-se aos sujeitos da pesquisa, um roteiro elaborado sugerindo alguns
aspectos importantes para registros do percurso desde as primeiras experiências infantis
na instituição escolar até a universidade ( etapas representadas na figura em espiral),
passando pelas relações com os professores, colegas e disciplinas, conteúdos ou
atividades mais prazerosos e/ou dolorosos, metodologias utilizadas, processo de
avaliação, ambiente escolar e relações interpessoais, inclusive quanto à
família/escola/sociedade incluindo-se ao final escritos sobre as razões da sua escolha
profissional a partir do lugar de aluno e professor. Não há limites para a escrita, podendo
incluir imagens (desenho, fotos, filmes) que auxiliem o processo da elaboração.
Entrevista aberta
Após a escrita da memória educativa, entrevistas abertas tem também sido
utilizadas à semelhança da “escuta sensível e atenção flutuante” de inspiração
psicanalítica, recurso concebido por Freud para guiar suas investigações durante a escuta
de seus pacientes, buscando evitar a seleção do material à priori ou fixação em algum
elemento seguindo nossas esperanças ou tendências, correndo o risco de não
descobrirmos jamais senão o que sabemos. Todos os discursos dos sujeitos pesquisados,
ditos e não-ditos, considera-se com o mesmo valor, sem pré-conceitos, não havendo
hipóteses a priori ou generalizações, elementos que estão presentes na clínica
psicanalítica, mas podem ser estendidos a outros lugares onde a psicanálise como parte
da cultura se faz presente, por exemplo, no ensino e pesquisa em universidades.
Sociopsicodrama
Recentemente também foi utilizada para produção de dissertação (2017)
ampliando as possibilidades que a pesquisa acadêmica oferece para articulação de saberes
e aportes epistemológicos-metodológicos singulares, como da psicanálise e do sócio
psicodrama que, cuidadosamente, tecidos e articulados atribuem sentido e significado às
vivências por meio de cenas representadas, por isso mesmo nomeadas memória educativa
em escrita e ação.
2015 Ferreira, B. M. de M. Educação para o transito e o papel dos instrutores: uma Dissertação
leitura psicanalítica.
crianças, adolescentes e adultos. Outro ponto discutido é a relação dos professores com
sua profissão, seu ofício e o núcleo do infantil que o constitui, com os saberes, ainda que
inconscientes, que os circundam e os posicionam em situação de Mestria.
A partir dessas investigações, ancoradas na conexão Educação e Psicanálise, os
estudantes pós-graduandos pesquisadores abordaram, nos 18 trabalhos analisados 03
eixos temáticos e de acordo com o objeto de investigação proposto focamos na
classificação, quantificação e agrupamento, conforme figurado e apresentado a seguir:
nos vínculos entre professor-aluno e seus efeitos que em alguns casos são recíprocos para
os sujeitos afetando-os de forma ambivalente.
Relato de memória educativa:
Para mim, a Memória Educativa tem a ver com afeto. Eu acho que tem
muito a ver com afeto. Eu acho que minha Memória Educativa foi muito
ligada a minha relação interpessoal mesmo, e como isso construiu a
minha relação com as matérias que eram dadas na escola. Acho que é um
autoconhecimento também. Foi um exercício de autoconhecimento.
(estudante 2012)
Discussão
Assim, compreendemos que a memória educativa é um dispositivo que exprime a
dimensão histórica do sujeito-professor e das vicissitudes do seu processo de formação,
sendo importante para a compreensão da prática docente e de sua dimensão inconsciente.
Possibilita uma investigação acerca da forma como se estrutura o sujeito professor, tendo
em vista que esse sujeito começa a se constituir a partir dos primeiros contatos da criança
com esse lugar simbólico do ensinar, lembrando que a preocupação com a educação e as
possíveis contribuições da Psicanálise, foram registradas por Freud em alguns de seus
ensaios:
Apenas um tema eu não posso evitar assim facilmente, não porque entenda
bastante ou tenha contribuído muito para ele. Pelo contrário, quase não me
ocupei dele. Mas é tão importante, tão rico de esperanças para o futuro,
que talvez seja o trabalho mais relevante da psicanálise. Falo de sua
aplicação à educação da próxima geração (Freud, 1933/2009, p. 307).
Referências