Esta epígrafe foi escolhida por Manacorda para iniciar o livro sobre o princípio
educativo de Gramsci, no intuito de fazer uma provocação. Numa leitura rápida e
desatenta, ou seja, numa leitura que não leva em consideração o contexto histórico
cultural de Gramsci e o conhecimento da totalidade de sua obra, esta citação solta no
texto parece um paradoxo, ou até mesmo um erro do editor. Imediatamente, podemos
formular a seguinte pergunta: Gramsci defende o americanismo2 e o conformismo
social? É possível que a resposta seja sim e não, simultaneamente.
Marx, apesar de não ter se dedicado especificamente sobre o tema da educação
em si, apresenta uma dimensão pedagógica, que se apresenta ao longo de toda a sua
obra, é o seu próprio método, e dá suporte ao princípio educativo em Gramsci. Através
da teoria que surge na cabeça, mas parte da realidade concreta, relacionada ao método,
Marx e Gramsci demonstram o esforço necessário em produzir um conhecimento que
sirva para a possibilidade transformação social. Assim, há uma preocupação, tanto de
Marx quanto de Gramsci, mesmos em contextos históricos distintos, de fazer uma
diferenciação bem marcada e contrária de suas teorias diante de posições abstratas e
individualistas que limitam ou impossibilitam a necessidade de uma transformação
social real. As revoluções burguesas e a modernidade propuseram tal transformação,
mas não foi possível realizá-la por completo, pois o modo de produção capitalista era o
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Esta citação é a epígrafe do livro de Mario A. Manacorda O princípio educativo em Gramsci. Porto
Alegre, Artes Médicas, 1990. Manacorda cita uma frase de Antônio Gramsci.
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Organização da produção capitalista nos Estados Unidos conhecida como taylorismo.
horizonte limitador das utopias iluministas, de igualdade e liberdade, por exemplo.
Assim, há, ao mesmo tempo, uma aceitação e uma crítica do pensamento pedagógico
contemporâneo por cada um dos autores, que reconhecem os progressos humanos
advindos das revoluções burguesas e da própria revolução industrial, mas sem perder de
vista as contradições sociais que as sustentam. O vínculo com a classe operária, com a
perspectiva de luta de classes, é o que salva a teoria e a prática revolucionárias do
idealismo e individualismo, possibilitando uma proposta concreta e internacional.
Para que se compreenda o que sugere Gramsci em sua epígrafe contundente
argumenta-se que ele aceita e rejeita ao mesmo tempo a cultura, cultura entendida por
ele como organização da sociedade. Defende um americanismo não americano. A
pedagogia gramsciana, que está também entrelaçada à política, se contrapõe
frontalmente ao autoritarismo jesuítico e não à autoridade em si, e ao libertarismo
rousseauniano e não à liberdade humana. Também defende e relaciona a instrução
tradicional com a moderna quanto ao conteúdo, em contraponto a inovações artificiais, e
novos métodos que não promovem novas atitudes. A relação que Gramsci estabelece
entre autoritarismo e libertarismo, não vem acompanhada da qualidade jesuítica nem
rousseauniana, que caracterizam estas duas formas de desenvolvimento humano
dicotômicamente, e unilateralmente, no sentido da relação mecânica entre autoridade e
liberdade, portanto, de maneira abstrata. A pedagogia para o “novo homem” deve
admitir tanto o libertarismo como o autoritarismo de forma concreta, ou seja numa
relação dialética entre um e outro. Para Gramsci autoritarismo e libertarismo são
importantes na conformação do “novo homem”. Alguns sinônimos destas duas formas
da dinâmica do processo de formação humana, que se articulam dialeticamente na
escola unitária pensada por Gramsci, aparecem nas cartas e cadernos manuscritos pelo
autor como também na interpretação e na tradução de Manacorda da seguinte forma:
autoritarismo tem sinônimos tais como conformismo, disciplina, diretivismo,
heteronomia, pedantismo e americanismo; e libertarismo também pode ser lido como
autonomia, ativismo, espontaneísmo e bohème3.
A opinião comum de Gramsci objeta que a escola tradicional era
oligárquica não pelo seu método e ensino, nem pela sua tendência a formar
homens superiores, mas porque estava reservada apenas a uma élite de
futuros dirigentes, a um determinado estrato social. (MANACORDA, 1990,
p. 178)
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Bohéme é a contraposição da indústria européia frente ao taylorismo norte americano.
Nesta perspectiva, Manacorda demonstra como Gramsci não rejeita a escola
enquanto instituição legítima de organização e transformação social e nem mesmo,
aparece em suas reflexões, a escola como um mecanismo limitado unilateralmente pela
reprodução dos valores hegemônicos dominantes. O limite da escola não é a escola em
si, nem sua forma e conteúdo enquanto organizadora da sociedade, mas o papel social
que desempenha no horizonte capitalista, uma alusão a divisão entre trabalho manual e
intelectual dicotomizado na formação escolar, processo ao qual Gramsci se contrapõe
através da proposta de escola unitária do trabalho.
Como demonstrado na epígrafe inicial, Gramsci entende que é tolice separar
conformismo e espontaneísmo no processo de formação pedagógica e podemos dizer
também política, pois o não conformismo, ou, o espontaneísmo como método
educacional e de organização da cultura não é possível de forma absoluta, todo ser
humano é educado pela geração anterior e por vários meios desde a escola até a
imprensa, portanto, a liberdade da espontaneidade, por si só, não existe, estará sempre
sujeita a conformação mesmo em espaços que extrapolam a educação escolar ou formal.
Desta forma percebe-se que se coloca como fundamental a intervenção da escola na
organização da cultura para uma nova sociedade, a necessidade do industrialismo na
formação intelectual, uma relação educativa permanente e coercitiva. É preciso deixar
claro a qual conformação se é contrário, e qual conformação é necessária num projeto
de transformação social, no caso a conformação de classe e a formação do novo homem,
respectivamente. Uma transformação social calcada em perspectivas espontaneístas, tem
o risco de cair em uma conformação liberal burguesa, deixando os indivíduos “livres”
para a conformação do homem na visão da classe que é hegemônica economicamente e
culturalmente. Por isso Gramsci se posiciona e aponta a precariedade do
anticonformismo que tem como conseqüência a reprodução dos valores de classe
dominante, burgueses, e não contribui na formação e na organização da classe
trabalhadora para a transformação social. Assim, parece possível a apropriação do
conhecimento científico e a conformação do conhecimento pela classe trabalhadora, no
caso o “americanismo” não americano, considerando suas contradições, reconhecendo
seus avanços e utilizando-os. Este fragmento do livro demonstra isso:
a exigência técnica pode ser pensada como concretamente
separada dos interesses da classe dominante, e não apenas isso, mas, além
disso, se ela pode ser pensada como ligada aos interesses da classe ainda
subalterna (Cd. 9-XIV, p. 50). (Idem, ibidem p. 205)
Longe de olhar para os aspectos supraestruturais e exteriores
daquilo que ele chama de “americanismo de café”, que não é, ademais,
outra coisa que a manifestação do pânico de que se acham presos os
estratos sociais destinados a serem esmagados pela “nova ordem”, da
qual o desenvolvimento econômico do tipo americano é a premissa, ele
olha, pois, precisamente para a base desse desenvolvimento, e reivindica
para a classe operária a capacidade de partir dessa base para criar uma
civilização realmente “nova”:
Não é dos estratos sociais condenados pela nova ordem que se
pode esperar a reconstrução, mas sim da classe que cria as bases materiais
dessa nova ordem e que deve encontrar o sistema de vida que converta
em “liberdade” aquilo que hoje é “necessidade”. (Cd. 3-XX, p.8). (Idem,
ibidem p. 199)
Uma questão que se coloca aqui é: partir da realidade concreta, e, apontar suas
contradições, é negá-la de forma absoluta? Como partir da realidade concreta para a
transformação social? Partir da realidade concreta significa reproduzi-la? Considerando
todo o trabalho que a sustenta, representado por uma relação histórica entre homem e
natureza e dos homens entre si, não é possível apagar ou simplesmente se descolar do
processo histórico, é dele que se parte, ainda que o conhecimento surja no pensamento,
portanto não se está contra o conformismo ou a indústria, mas sim contra as relações de
classe submetidas pelo conformismo e pela indústria burguesas. O princípio educativo é
o trabalho que sustenta toda essa história, apontadas devidamente suas contradições.
Uma longa citação do livro de Manacorda mostra sua análise entremeada das
citações de Gramsci sobre as tarefas da educação escolar:
O ensino é uma luta contra o folclore, em favor de uma
concepção realista em que se unem dois elementos: a concepção de lei
natural e a da participação ativa do homem na vida da natureza, isto é, em
sua transformação segundo um objetivo que é a vida social dos homens.
Ou seja, essa concepção unifica-se no trabalho, que se baseia sobre o
conhecimento objetivo e exato das leis naturas para a criação da
sociedade dos homens. (pp. 29-29 bis). (Idem, ibidem, p. 172)
...já aqui ele unifica, os dois elementos no conceito e no fato do
trabalho, a atividade “prática” do homem que “enxerta” a ordem social
(direitos e deveres) na ordem natural, e cria os primeiros elementos de
uma visão do mundo livre de toda bruxaria e magia, e “fornece um ponto
de partida para o posterior desenvolvimento de uma concepção histórica,
de movimento” (mais tarde dirá “dialética”) do mundo. (Idem, ibidem, p.
172)
Gramsci defende o trabalho como princípio educativo e a escola como ação
educativa direta das exigências da produção. Podemos começar a visualizar a diferença
que se impõe entre a “educação para o trabalho” e o “trabalho como princípio
educativo”. Este entendimento é necessário para que a proposta de escola unitária, e
aqui explicitamente atrelada à política, não caia numa falsa representação democrática
(burguesa):
A escola profissional existente dá a falsa impressão de ser
democrática, porque tendendo a criar novas estratificações sociais, ou
seja, permitindo que o operário passe de não qualificado a qualificado,
por exemplo, cria aquilo que poderíamos chamar de uma certa
mobilidade social:
Bibliografia
MANACORDA, Mario Alighiero. O Princípio Educativo em Gramsci. Porto
Alegre: Artes Médicas, 1990.