O texto aqui apresentado é um ensaio em torno das seis questões propostas para o grupo
de trabalho Narrativas de Mídias Eletrônicas, reunido por ocasião do I Encontro Entre
TELAAS. O conjunto de interpelações sugeridas para a mesa de discussão se refere aos
impactos da comunicação mediada por telas sobre a narratividade. Ao comentá-las,
pretendo indicar proposições especulativas de caráter experimental. Para isso, tomo
como base as referências acumuladas em meu percurso de comunicador, crítico de artes
e cultura, pesquisador e professor dedicado ao campo da estética.
Por outro ângulo, contudo, o extravasamento da função fática indicada por Jakobson
corresponde a demandas operativas de narração que vão além da dialogia recursiva de
um sinal natural (“hein?”, “era uma vez...”) ou de baixa codificação (como o tom de
disponibilidade telefônica e o toque inverso de desconexão ou terminal ocupado). Na
relação tela-a-tela, é necessária a aborção de um código no próprio canal. Na internet,
esse código é composto pelos protocolos de transmissão (TCP/IP 1) e de controle dos
endereços (DNS2).
O fato de haver mais comunicabilidade entre as telas em rede não resulta em mais
entendimento. Pelo contrário, o excesso pode resultar em distorção e pane, quando
privilegia determinados pontos, em detrimento da inapreensível totalidade do conjunto. A
sobrecodificação do mundo, por outra parte, acumula excedentes que propagam ruído
sobre a própria habilidade para codificar e decodificar a mensagem. Tal efeito ultrapassa
a temporalidade de uma algazarra, ao acrescentar a espacialização absurda de escalas
intangíveis que se comprimem em bytes estocados em conjuntos de microchips cada vez
mais compactos.
2. Datacorpo
No contexto entre-telas, somos agentes duplos – ou múltiplos. Os corpos biológicos
convivem há algum tempo com a fidelidade e infidelidade de sinal de seus dublês, aptos
para as proezas de “estar” e agir em muitos lugares ao mesmo tempo. Essas figuras
fantasmagóricas são compostas pela narração do registro incessante dos dados colhidos
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(desde a modernidade) pelos exames clínico-laboratorais, as políticas de Estado, a
performance cultural no cotidiano vivido e a produção de rastros que visam constituir
arquivos de memória e propiciar o encadeamento futuro de mais e mais comunicação.
Temos, porém, um problema: os corpos desses dublês não nos pertencem, embora sejam
alimentados por nós. A situação é próxima do que a ficção científica demonstra com o
cultivo de colônias de humanos para servir como fontes de energias, baterias biológicas,
na trilogia cinematográfica Matrix. Na prática, porém, os protocolos das políticas de uso,
propriedade e privacidade das mídias sociais nos impõem variados graus de alienação.
O coletivo Critical Art Ensemble (2001) previa o embate entre o nomadismo do corpo
virtual e o controle sobre o corpo de dados. Se o primeiro se apresenta como potência
recombinante biotecnológica, usufruída desde as simulações de identidades e de
vivências nos ambientes eletrônicos de socialização e de jogo, o corpo de dados é
computado a partir das informações pessoais monitoradas e organizadas para assegurar
e ampliar o poder das corporações e das forças de repressão do Estado.
Parece que somente o instante estaria sob o domínio autônomo. Desde então, existir
além do instante telemático é resistência ou re-existência. Pois o que perdura pode ser
batalha contra o apagamento (quando interesses espetaculares tentam livrar espaço para
novas cargas por meio da promoção do esquecimento) ou o soterramento (quando o
acúmulo de dados em si já nos faz esquecer do que havia há pouco ou muito tempo). Mas
o que é decorre da resistência contra obliteração e o sufocamento pode se converter em
existência multiplicada, reexistências.
Em segundo lugar, poderíamos falar de uma metafísica vetorial. Nesse caso, a definição
de pontos, distâncias e direções determina a existência de algo. Como na computação
gráfica, a opção vetorial confere escalabilidade muito mais flexível, em prejuízo do
detalhamento possível quando se lida com as matrizes. Uma metafísica vetorial
ofereceria, portanto, percursos de relacionamento capazes de constituir existências de
modo mais esquemático. Em relação ao big data, essas rotas constituiriam um nível mais
elevado de abstração, ou seja, de escolha parcial de elementos que seriam significativos
ou da própria fonte de dados (nesse caso, portanto, indiciais), ou de associações
propriamente simbólicas. Por sua vez, a mobilidade resultaria no reforço da
adaptabilidade vetorial, em um aqui-e-agora atópico e atemporal.
Com esse termo, fazemos referência ao objétil, conceito que Deleuze (1988, p. 32–
33) atribui à maleabilidade desdobrável de um objeto ou projeção genérica, um
“geometral”, com características transitórias de instanciação. O objétil é reinterpretado por
Mario Carpo (2011) como “a função paramétrica que pode determinar uma infinita
variedade de objetos, todos diferentes (um para cada conjunto de parâmetros) embora
similares (já que a função subjacente é a mesma para todos).
Torna-se indispensável pensar que essa superjetividade se dissemina dos humanos aos
aparatos, à medida que eles se tornam inteligentes e replicantes, capazes de
reprodutibilidade e diferenciação. Nessa evolução artificial, experimentamos o paradoxo
de uma crescente in-falibilidade. Para que a reprogramabilidade algorítmica continue
gerando informação relevante (capaz de agregar valor semiótico ou financeiro), ela deve
estar preparada para acolher o imponderável que lhe contagia sem que se possa
absorver por inteiro. Essa abertura leva Luciana Parisi (2013)a conceber uma arquitetura
digital contagiosa. Sem essa predisposição, adentramos no estado da iminência do
colapso entrópico, problema que leva à desorganização informacional por efeito do uso de
programas maliciosos e das falhas internas.
Como vimos, essa abertura da circunscrição algorítmica (sua unidade) ao inesperado tem
aqui um sentido diverso, mas complementar, ao modelo de código aberto e livre
defendido nos arranjos produtivos colaborativos (como na FLOSS 3 arte) e no design
participatório. A adaptabilidade é paralela à solidariedade que Benjamin, aliás, observa
nas lutas emancipatórias que fragmentam a massificação sem, no entanto, provocar uma
total dispersão sem vínculos de interesse. A ampliação de agentes que o código aberto
propicia expropria o poder que algumas estratégias de espetacularização tenta sequestrar
e reservar aos privilégios da astrarquitetura4, do culto às celebridades e da afetividade
rendida ao consumo do valor associado às marcas.
Nesse sentido, o excepcional pode unir o diverso em ações díspares mas colaborativas.
Pois se a autonomia pudesse ser completamente conferida a uma máquina, não restaria
3 Sigla para Free/Libre Open Source Software. A sigla é usada como adjetivação da produção artística baseada em
programas ou plataformas livres e em código aberto.
4 Tradução livre para o amálgama inglês starchitecture, que designa a produção de arquitetos cuja celebridade e
aclamação crítica os tornam ídolos do público especializado ou geral. Entre outros nomes da astrarquitetura podem
ser mencionados Frank Gehry, Rem Koolhaas, Zaha Hadid e a dupla Herzog & de Meuron.
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espaço para a variabilidade digital. Em termos éticos, no entanto, o acesso ao erro
converte-se em questão fundamental para o agenciamento superjetivo, tanto no caso de
explorações hackers não consentidas (o que inclui não só invasão de sistemas), mas
também o aproveitamento de lacunas para a realização de processos inusitados (os
exploits). Conforme a analogia de Benjamin, em lugar do mágico e do pintor, o cirurgião, o
cineasta e, mais recentemente, o hacker recorrem a interferências diretas no equipamento
adotado como realidade fragmentada.
5. Medi-ação in-direta
A produção hacker é inerente e está inevitavelmente atrelada à controvérsia que orbita ao
redor de toda prática tecnológica exploratória descentrada. Por conta disso, sua dimensão
política se configura pelas margens de contato com as batalhas contra o poder opressivo.
O contorno que resulta desse contato se constitui como o parergon cartografado pelos
laços ético-estéticos entre a externalidade e internalidade da produção artística e lúdica.
Projetos de arte de grupos como Electronic Disturbance Theater – EDT, Critical Art
Ensemble – CAE e UBERMORGEN.COM despontam em evidente contraposição a
atividades governamentais e corporativas. Por usos divergentes nas ações baseadas no
Tactical Zapatista FloodNet (1998), na série biotecnológica do CAE e na paródia
empresarial de UBERMORGEN.COM, a indeterminação da telemática é decidida em
singularizações narrativas que dissidem (divergem) dos padrões protocológicos de
dominação.
Com o projeto Tactical Zapatista FloodNet (1998), o coletivo EDT5 (em atividade desde
1997) disponibiliza um sistema para ações de desobediência civil eletrônica. Por meio
dele, cerca de 10 mil indivíduos dispersos se engajam em protestos virtuais contra a
opressão neoliberal e em apoio ao movimento rebelde dos indígenas zapatistas. Ao
5 http://www.thing.net/~rdom/ecd/ecd.html
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carregar uma página web, os ativistas acionam uma aplicação para envio de mensagens
com nomes de indígenas assassinados pelas forças armadas mexicanas e expressões
associadas às suas lutas contra o poder. O objetivo é sobrecarregar e interferir no
funcionamento de sites escolhidos como alvo: presidências do México e EUA, bolsas de
valores mexicana e de Frankfurt, Pentágono e bancos.
Como não há registro das vítimas nos bancos de dados assediados, a capacidade de
processamento dos servidores é desviada para a tarefa vã de informar essa inexistência e
acrescentar o evento ao arquivo de registro de ocorrências (log) do sistema (RALEY,
2009). Assim, a mensagem de erro 404 demonstra o que os discursos e ações da
hegemonia política não comportam. O próprio site atacado reconhece pela
desterritorialização: a justiça, a liberdade ou as vítimas da opressão não são encontradas
na lógica institucional corporificada na memória e no ambiente de operacionalidade
fornecido por suas máquinas.
Em GWEI – Google Will Eat Itself9 (2005-2009, Figura 1), por exemplo, o sistema de
receita publicitária da Google adquire comportamento autofágico e é impelido a uma
longínqua e hipotética autoliquidação, insolitamente prevista para mais de 200 milhões de
anos adiante. Seu mecanismo de contabilidade baseada em cliques converte-se em um
ciclo automatizado que gera fundos por meio de sites incógnitos com botnets
programados para gerar mais acessos aos seus próprios anúncios. Os recursos são
usados na compra de ações da Google, então redistribuídas aos usuários.
Pela incisão que rompe com a operacionalidade eficiente e proprietária das redes e da
engenharia genética, arranca-se nestes exemplos a cisão da incongruência dos
interesses políticos e econômicos. Ao corporificar as engrenagens do poder empresarial e
torná-las suscetíveis ao exame crítico, UBERMORGEN.COM, Paolo Cirio e Alessandro
10 Wark (2004, nota 308, na seção Writings) retoma e atualiza o conceito de dádiva, entendido por Marcel Mauss
como o serviço concedido no contato comunitário de sociedades arcaicas, em condição estrutural anterior à
distorção da moralidade das trocas ao utilitarismo liberal da economia de mercado. A dádiva envolve artefatos
carregados de significações identitárias e solidárias estabelecidas por um grupo. Com a abstração informacional,
não só a economia de commodities se expande. O compartilhamento e a adesão coletiva também encontram novas
expressões, uma vez que se realiza à distância, sem privar o doador daquilo que é dado ao donatário. Ainda que
eventuais expectativas de ganho de reputação possam anular a integridade da dádiva, a abstração informacional
em condições de excessividade (em desbloqueio constante, relativamente suficiente ou hipoteticamente total)
sustentaria a disrupção do caráter incondicional de sua performance.
11 Conforme Derrida (1992, p. 7): “If there is gift, the given of the gift (that which one gives, that which is given, the gift
as given thing or as act of donation) must not come back to the giving (let us not already say to the subject, to the
donor). It must not circulate, it must not be exchanged, it must not in any case be exhausted, as a gift, by the
process of exchange, by the movement of circulation of the circle in the form of return to the point of departure. If the
figure of the circle is essential to economics, the gift must remain aneconomic. Not that it remains foreign to the
circle, but it must keep a relation of foreignness to the circle, a relation without relation of familiar foreignness. It is
perhaps in this sense that the gift is the impossible. Not impossible but the impossible.”
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forças. O resultado do jogo é a corporificação mensurável pelos indicadores de valor
acionário, os registros de acessos, o volume de dados capturados.
6. Tela de toque
Para além da tomada de signos pelas táticas de guerrilha comunicacional, acrescenta-se
à produção hacker o imperativo materialista e, de certo modo, tátil ou háptico. Não basta
subverter o discurso e sua contextualidade. Seus circuitos de composição e circulação
devem também ser colocados em disponibilidade para o contato e a recomposição
concreta. Ato que se realiza conforme a permuta que o agenciamento do humano com o
inumano proporciona. Na transdução entre sistemas, a codificação é procedimento
mediador, enquanto a corporificação manifesta as tangências.
A atenção dada às mídias de acesso e uso disseminado surgidas nos anos 1990 desloca-
se para as tecnologias com capacidade de interferir e beneficiar a vida cotidiana. Estão aí
incluídas as tecnologias médicas e os dispositivos de segurança com aplicações
baseadas em GPS (Sistema de Posicionamento Global), bem como a abordagem crítica
do cotidiano denominada como life hacking – o hackeamento da vida.