Daniel Kupermann*
Para Chaim Samuel Katz
RESUMO
Introdução
1
A versão oficiosa desse episódio nos conta que Breuer teria fugido dessa atribuição de paternidade,
agendando uma segunda lua-de-mel com a esposa. Nessa viagem, teria concebido sua filha Dora (Forrester,
1990, p. 50).
transferência positiva erótica, bem como nas análises, por outro esbarrara nos limi-
a transferência negativa, composta pelos tes impostos pela sua teoria da clínica. A
impulsos agressivos e hostis, são conside- situação paradigmática, que tem como
radas formas de resistência ao trabalho referência a clínica da histeria, é a do
analítico, constituindo os maiores obstá- enamoramento de uma analisanda por
culos ao tratamento. Assim, se a transfe- seu analista – característica da época.3
rência é, efetivamente, o modus operandi Postulando que essa situação crítica de-
do processo analítico, sendo no campo manda um manejo específico, não deven-
transferencial que a “vitória” tem de ser do a demanda de amor ser atendida,
conquistada, é também indiscutível que tampouco radicalmente recusada, Freud
“...controlar os fenômenos da transferên- adverte que as intensidades afetivas são
cia representa para o analista as maiores arriscadas: “Nosso controle sobre nós
dificuldades” (idem). mesmos não é tão completo que não
Pode-se desde já perceber que, no possamos subitamente, um dia, ir mais
percurso freudiano, apesar de a transfe- além do que havíamos pretendido (...)
rência ter sido assimilada ao processo portanto, não devemos abandonar a neu-
analítico, tendo seu manejo se tornado o tralidade (...) que adquirimos por manter
principal desafio, as dificuldades em apre- controlada a contratransferência (...) o
ender os sentidos das intensidades afeti- tratamento deve ser levado a cabo na
vas que invadem o espaço analítico con- abstinência” (Freud, 1915/1980j, p. 214).
duziram Freud a confundi-la ora com a Os termos empregados – controle,
repetição dos complexos infantis edipia- neutralidade, abstinência – remetem ine-
nos, ora com a sugestão – pelo uso por quivocamente a uma concepção segundo
parte do analista da sua forma positiva a qual o psicanalista precisa se proteger
terna –, ora com a resistência à análise,2 das intensidades afetivas suscitadas pela
nas suas manifestações eróticas e nega- transferência. Além disso, outra figura
tivas, o que culminou nos impasses de crucial referente à relação analista-anali-
“Observações sobre o amor transferen- sando é retomada, apesar de pouco ex-
cial” (Freud, 1915/1980j). plorada por Freud: a da contratransferên-
De fato, se por um lado Freud cia. Noção surgida alguns anos antes, em
reconhecera o primado da afetividade “As perspectivas futuras da terapêutica
2
Remeto o leitor ao artigo de Jacques-Alain Miller, “A transferência de Freud a Lacan” (Miller, 2002).
Apesar de não acompanharmos o argumento do autor – que pretende que as dificuldades de definição da
transferência terminaram desde a formulação, por Lacan, do “sujeito suposto saber” como transfenômeno
ou pivô em torno do qual os fenômenos da transferência girariam –, contrário aos objetivos do nosso ensaio,
suas indicações são valiosas para acompanharmos algumas das dificuldades encontradas por Freud,
expostas a seguir.
3
Atualmente, nem as analisandas parecem ser tão histéricas, nem os analistas são, em sua maioria, homens.
estética, e cuja tradução literal seria “sen- teimoso”,4 e se oferecer como suporte
tir dentro”. Mas o fundamental de “Elas- das mais intensas manifestações afetivas
ticidade da técnica...”, ao contrário do previstas pela transferência, será recom-
que se poderia precipitadamente inferir, pensado com o ultrapassamento de mui-
não é a proposta de uma identificação do tas das “resistências objetivas” impostas
analista com o analisando, ou mesmo, e pelo tratamento-padrão.5 Assim, a “ino-
mais grave, de uma projeção sobre este vação” de Ferenczi, segundo sua própria
de conteúdos psíquicos do próprio psica- avaliação, foi resgatar, da regra funda-
nalista. O aspecto decisivo apreendido no mental, a dimensão de liberdade – perdida
curso das formulações de Ferenczi, que em grande parte ao longo do processo de
reside no recurso a essa categoria empre- institucionalização da psicanálise.
gada pelos estetas do século 19 e início do Acompanhando os ensaios clíni-
século 20 (cf. Pigman, 1997), é a compre- cos de Ferenczi, a surpresa revelada a
ensão do campo transferencial como um partir do emprego da sua “técnica elásti-
plano de compartilhamento afetivo que, ca” foi a de que seus analisandos passa-
através do encontro lúdico, favorece a ram a se permitir sofrer processos re-
produção de sentidos para as experiênci- gressivos intensos, nos quais as formas de
as de cada um dos parceiros da análise. expressão apresentadas se aproximavam
Porém, para se apreender o que está em das de crianças, tanto em sua dimensão
jogo no estilo clínico assim proposto, é lúdica, quanto em sua dimensão de dor
preciso avançar mais lentamente. traumática. Pode-se contrapor, claro, que
Na experiência ferencziana, na as regressões eram provocadas, e não
medida em que a fixidez da técnica torna- espontâneas, crítica merecida, posterior-
va-se mais elástica, os analisados passa- mente, também por Winnicott. Mesmo o
vam a encontrar condições de expressão termo utilizado por Ferenczi para nomear
afetiva inusitadas, sobretudo pelas mani- o que ocorria em sua clínica, “neocatar-
festações de hostilidade (transferência se”, é fértil para provocar equívocos (Fe-
negativa) agora favorecidas. Segundo renczi, 1930/1992e).
Ferenczi (1928/1992d), se o analista se No entanto, é preciso contextuali-
dispuser a ser usado como um “joão- zar essas experiências com o que se fazia
4
Ou “joão-bobo”, o boneco que oscila de um lado ao outro ao ser empurrado, mas que, pelo fato de não
perder o eixo, não tomba definitivamente, retornando sempre à posição vertical.
5
Convém notar, mesmo sem desenvolver a questão no espaço deste ensaio, que essas contribuições são
herdeiras de uma polêmica entre Freud e Ferenczi acerca da transferência negativa que data do período em
que Ferenczi foi analisado por Freud, nos anos de 1914 e 1916. Em uma carta tardia, Ferenczi acusara Freud
de não ter dado a devida atenção à sua transferência negativa, ao que Freud respondeu em Análise terminável
e interminável (1937/1980b), argumentando que na época da análise não havia sinais dessa transferência
negativa... (Kupermann, 2003, cap. 5).
6
Tendência presente em sua obra, ainda que em estado latente, desde o pioneiro “Transferência e introjeção”
(Ferenczi, 1909/1991).
7
Problemática herdada por Jacques Lacan (1968/2003), que a tornou o principal desafio ético da sua Escola,
nos anos 60: responder acerca dos destinos da transferência no final da análise dos próprios psicanalistas
– tarefa que constituiu o procedimento nomeado como “passe”.
serem seguidos; e a de que, para cada ferência, através do qual o analista busca
“categoria” de sofrimento psíquico, o psi- dosar o quantum ótimo de frustração de
canalista é convocado de modo diferen- maneira a dar prosseguimento à associa-
ciado. ção livre. Refere-se, ao contrário, à pos-
Assim, se para os analisandos que sibilidade de o analista adaptar-se sufici-
apresentam uma constituição narcísica entemente bem aos modos de subjetiva-
integrada, cujas dificuldades residem na ção do analisando, criando um “contexto
gestão dos relacionamentos interpesso- analítico” adequado.
ais, os princípios estabelecidos por Freud É interessante constatar que a te-
para a prática psicanalítica persistiam orização da adaptação ativa do ambi-
adequados; para os analisandos cujo so- ente à criança – inaugurada no campo
frimento se refere especialmente ao “es- psicanalítico por Ferenczi (1928/1992a),
tágio do concernimento” e à aquisição da tornando-se a pedra angular da concep-
posição depressiva (recordemos a influ- ção winnicottiana do desenvolvimento
ência de Melanie Klein sobre a psicaná- emocional primitivo – tem como contra-
lise da época), o laço transferencial se partida a adaptação do psicanalista ao
mostra bem mais delicado, sendo a “so- ritmo e aos rumos do processo de subje-
brevivência do psicanalista” à hostilidade tivação do analisando, bem como a adap-
do analisando o elemento privilegiado. Já tação da própria psicanálise às formas
para a terceira e última categoria descrita de sofrimento psíquico e às demandas de
por Winnicott – certamente a mais rele- intervenção clínica impostas pelo contex-
vante para suas elaborações teórico-clí- to cultural – como no caso da psicanálise
nicas –, a dos analisandos severamente de crianças, e do tratamento de pacientes
traumatizados, cuja integração egóica se traumatizados, borderlines e psicóticos,
encontra comprometida, a análise deverá matrizes clínicas que cunharam o pensa-
lidar com os estágios iniciais do desenvol- mento de Ferenczi e de Winnicott. As
vimento emocional primitivo, e a ênfase maiores resistências à análise se encon-
recairá sobre o “manejo”, o “trabalho trariam, nessa leitura, do lado do psicana-
analítico normal deixado de lado por lon- lista incapaz de se adaptar ao analisando,
gos períodos”, entendendo-se por traba- acolhendo as vicissitudes do seu processo
lho “normal” aquele fundado no princípio terapêutico.
de abstinência e na interpretação do re- Na teoria winnicottiana do desen-
calcado (idem). Tratar-se-ia, nesses ca- volvimento emocional primitivo (Winni-
sos, de criar as condições de confiabilida- cott, 1945/2000), a ênfase recai sobre a
de para que a regressão à dependência importância primordial da adaptação do
seja possibilitada. O “manejo” winnicot- ambiente às necessidades e ao gesto
tiano não equivale, portanto, à concepção criativo do bebê, condição para a conti-
freudiana de manejo na neurose de trans- nuidade da sua existência e a sua conse-
9
Ao longo da história da psicanálise, encontramos inúmeros exemplos nos quais essa situação deixa de
se configurar, especialmente no que concerne ao par transferência-contratransferência nas análises
didáticas, institucionalizadas ou não (Kupermann, 1996).
10
Sándor Ferenczi, em seu Diário clínico, já havia indicado que em muitas ocasiões se tem a impressão
de que o espaço analítico é habitado por duas crianças – o analisando e seu analista – que compartilham
o mesmo estado de desamparo, ligam-se entre si e estabelecem vínculos de amizade. Sua indagação: “Deve
a análise acabar sob o signo de tal amizade?” (Ferenczi, 1932/1990, p. 91).
11
Na clínica com adolescentes, em especial, o analista é convocado em sua sensibilidade para a necessidade
de não-comunicação ou de comunicação indireta (Winnicott, 1963/1983b). Sobre a solidão positiva, ver
também Chaim Samuel Katz (1996).
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SUMMARY
RESUMEN
Daniel Kupermann
R. Carlos Millan, 22/51
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