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Pesquisa FAPESP Julho de 2012

Julho de 2012   www.revistapesquisa.fapesp.br

depressão
Crises podem
acelerar
envelhecimento

partenogênese
Fêmeas de lagartos
se reproduzem
sem machos

Entrevista
Eduardo Moacyr
Krieger

Os
executivos
do conhecimento
Grandes universidades criam novos mecanismos
para transferir capital científico ao mercado e à sociedade
n.197
fotolab

Nanotecnologia e arte
O que parece o movimento de tiras de tecido
entrelaçadas é na verdade um amontoado de
nanopartículas de óxido de ferro. Trata-se de um
semicondutor do tipo n, utilizado na captação de fótons
(partículas de luz) para transformação em energia
elétrica. A foto da nanopartícula é feita por um
microscópio eletrônico de altíssima resolução e depois
colorida por pesquisadores ou técnicos. “O hábito de
pintar as fotos de formações nanométricas deu origem
à nanoarte, que hoje tem espaço garantido em
exposições de galerias no mundo todo”, diz Elson Longo,
coordenador do Laboratório Interdisciplinar de
Eletroquímica e Cerâmica da Universidade Estadual
Paulista, campus de Araraquara. A foto, batizada de Spirals,
participou de uma exposição em Nova York em 2011.

Foto captada e colorida por Rorivaldo Camargo e


Se você tiver uma imagem enviada por Elson Longo, ambos do Liec/Unesp
relacionada a pesquisa, envie
para imagempesquisa@fapesp.br,
com resolução de 300 dpi (15 cm
de largura) ou com no mínimo 5 MB.
Seu trabalho poderá ser
selecionado pela revista.

PESQUISA FAPESP 197 | 3


julho 2012

n. 197

20
20 CAPA
Escritórios de Política científica tecnologia
transferência de e tecnológica
tecnologia de grandes 62 Mineração oceânica
universidades 36 Desenvolvimento Uso de algas calcárias como
ampliam seu papel sustentável adubo em lavouras de cana
e buscam cada vez Conferência Rio+20 pode elevar a produtividade
mais parcerias com produz relatório pouco em até 50%
empresas ambicioso, mas avança em
compromissos voluntários 66 Indústria alimentícia
Ilustração da capa Biofilmes produzidos com
Colagem com imagens
do Google Patents
mandioca, banana e quinoa
crédito  Daniel Bueno
protegem e garantem longa
ciÊncia vida a vários alimentos

40 Doenças mentais 68 Pesquisa empresarial


entrevista Crises de depressão e de Braskem amplia mercados
euforia provocam desequilíbrios com polímero feito a partir
28 Eduardo Moacyr químicos que podem danificar de etanol e investe em rotas
Krieger as células e acelerar o biotecnológicas
Fisiologista criou no envelhecimento do corpo
InCor o mais importante
grupo de pesquisa, 50 Acasalamento
multidisciplinar e Entre lagartos, nem sempre humanidades
integrado, em estudo da o macho é necessário
pressão arterial para a reprodução 72 Desenvolvimento
Estudo mapeia o processo
54 Distrofia muscular de desconcentração industrial
Uso combinado de células- no estado de São Paulo
-tronco e fator de crescimento
seçÕes reduz sintomas da doença 78 Relações exteriores
em camundongos Ideia do Brasil no Conselho
3 Fotolab de Segurança, vista como
6 Cartas 56 Serra da Borborema “capricho” por analistas,
9 Editorial Teoria alternativa propõe partiu dos Estados Unidos
10 Dados e projetos que planalto nordestino
11 Boas práticas se formou há cerca de 82 História da ciência
12 On-line 30 milhões de anos Músico, pai de Galileu
13 Wiki influenciou filho na busca pela
14 Estratégias 59 Redes complexas verdade experimental
16 Tecnociência Padrões descobertos em uma 78
87 Resenhas rede de milhares de açudes no
88 Memória Ceará podem ajudar a enfrentar
90 Arte secas e enchentes
92 Conto
94 Classificados

4 | julho DE 2012
agricultura

biodiversidade

Bioquímica

50
biotecnologia

ciências atmosféricas

diplomacia

40
economia

59 engenharia

evolução

física

genética

geografia

geologia

56
52 história

62 inovação

medicina

música

Neurociência

oceanografia

Psiquiatria

química

72

PESQUISA FAPESP 197 | 5


6 | julho DE 2012
fundação de amparo à pesquisa do estado de são Paulo
cartas cartas@fapesp.br
Celso Lafer
Presidente

Eduardo Moacyr Krieger

Empresa que apoia


vice-Presidente

Conselho Superior

alejandro szanto de toledo, Celso Lafer,


Eduardo Moacyr Krieger, Horácio Lafer Piva,
Herman Jacobus Cornelis Voorwald, joão Revista
a ciência brasileira
grandino rodas, Maria José Soares Mendes
Giannini, José de Souza Martins, José Tadeu Jorge, A edição de maio (nº 195) está simples-
Luiz Gonzaga Belluzzo, Suely Vilela Sampaio,
Yoshiaki Nakano mente magnífica. Ao abrir o envelope
Conselho Técnico-Administrativo deparei-me com a impressionante foto
José Arana Varela
Diretor presidente
do Alpha Crucis, digna de um pôster, e
Carlos Henrique de Brito Cruz já com grande curiosidade, uma rápida
Diretor Científico

Joaquim J. de Camargo Engler


folheada fez antever mais uma vence-
Diretor Administrativo
dora edição. A revista é lisa, limpa, fá-
cil e explicativa; não tem degraus nem
tropeços. As reportagens mais comple-
issn 1519-8774
xas ficam de fácil alcance, o que causa
Conselho editorial
prazer em ler, discutir e apreciar seus
Carlos Henrique de Brito Cruz (Presidente), Caio Túlio Costa,
Eugênio Bucci, Fernando Reinach, José Eduardo Krieger,
artigos. Digna em se mencionar é a
Luiz Davidovich, Marcelo Knobel, Marcelo Leite,
Maria Hermínia Tavares de Almeida, Marisa Lajolo,
matéria sobre a saga da vinda do navio
Maurício Tuffani, Mônica Teixeira Alpha Crucis. A equipe USP-FAPESP
comitê científico
Luiz Henrique Lopes dos Santos (Presidente),
merece aplausos pela demonstração
Cylon Gonçalves da Silva, Francisco Antônio Bezerra
Coutinho, João Furtado, Joaquim J. de Camargo Engler,
de garra, de raça para com os percalços Comissão da Verdade
José Arana Varela, José Roberto Parra, Luís Augusto Barbosa e dificuldades advindas. A depender Parabenizo a Pesquisa FAPESP pela re-
Cortez, Luis Fernandez Lopez, Marie-Anne Van Sluys, Mário
José Abdalla Saad, Paula Montero, Sérgio Queiroz, Wagner deles, que não só venha o Alpha Delphi- portagem “O parto da memória” (edi-
do Amaral, Walter Colli
ni como outros Alphas também. Antes ção 196), sobre as políticas de memória
Coordenador científico que os afogue em elogios, vejam só que no Brasil neste importante momento
Luiz Henrique Lopes dos Santos
interessante: li a revista e a emprestei no qual se iniciam os trabalhos da Co-
Diretora de redação
Mariluce Moura ao meu filho mais velho (engenheiro). missão Nacional da Verdade. Aproveito
editor chefe Neldson Marcolin Depois emprestei para o porteiro do para acrescentar um dado notável e que
Editores executivos Carlos Haag (Humanidades), meu prédio (técnico em mecatrônica), ficou ausente do texto: a condenação do
uma estudante de turismo deu uma Estado brasileiro na Corte de Direitos
Fabrício Marques (Política), Marcos de Oliveira (Tecnologia),
Maria Guimarães (Edição on-line), Ricardo Zorzetto (Ciência)

editores especiais Carlos Fioravanti, Marcos Pivetta espiadela mais demorada na revista e Humanos da Organização dos Estados
Editores assistentes Dinorah Ereno, em seguida ela foi emprestada ao meu Americanos (OEA) ocorreu devido ao
Isis Nóbile Diniz (Edição on-line)
filho caçula (engenheiro) para leitura não cumprimento de sentença da Justiça
revisão Márcio Guimarães de Araújo, Margô Negro
e considerações. Sabem o que parece? brasileira, julgada em última instância em
editora de arte Laura Daviña
Aqueles antigos gibis que passavam de 2006, exigindo do Estado a localização
ARTE Ana Paula Campos, Maria Cecilia Felli
mão em mão... Concluo que a ciência é dos corpos desaparecidos e a responsabi-
fotógrafos Eduardo Cesar, Léo Ramos
uma doença altamente contagiosa, que lização pelos fatos. Tal processo foi pro-
Colaboradores Ana Lima, André Cavalheiro, André
Serradas (Banco de imagens), Claudia Izique, Daniel Bueno,
se adquire para toda a vida. movido por 22 famílias de desaparecidos
Daniel das Neves, Drüm, Eduardo Sancinetti, Evanildo da
Silveira, Gabriel Bitar, Gustavo Fioratti, Igor Zolnerkevic,
Elias Felippe Arbex Netto na guerrilha do Araguaia e teve início
Luana Geiger, Paulo Ravieri Barreto Dourado, Sérgio Kalili,
Victor Gentilli, Yuri Vasconcelos
Piracicaba, SP em 1982. Este fato realça dois aspectos:
É proibida a reprodução total ou parcial
de textos e fotos sem prévia autorização
PESQUISA FAPESP JUNHO DE 2012
PESQUISA FAPESP MAIO DE 2012

Para falar com a redação (11) 3087-4210


cartas@fapesp.br

Para anunciar (11) 3087-4212 mpiliadis@fapesp.br MAIO DE 2012 WWW.REVISTAPESQUISA.FAPESP.BR JUNHO DE 2012 WWW.REVISTAPESQUISA.FAPESP.BR

Para assinar (11) 3038-1434 fapesp@acsolucoes.com.br CLIMA COMISSÃO


Tempestades se tornam DA VERDADE
mais fortes e frequentes Por que só agora o Brasil
em São Paulo investiga o destino dos
desaparecidos políticos
Tiragem 45.500 exemplares EMPRESAS
IMPRESSão Plural Indústria Gráfica Natura estimula conexão
entre áreas para agregar
ESTRELA GÊMEA
Astro a 200 anos-luz

distribuição Dinap conhecimento a produtos da Terra é cópia quase


perfeita do Sol
COMISSÃO RONDON
Estudo revela EXTERMÍNIO
importância da DE SAPOS
Tráfico de animais
GESTÃO ADMINISTRATIVA INSTITUTO UNIEMP ciência na expedição
espalha fungo letal
entre anfíbios
ENTREVISTA
PESQUISA FAPESP Rua Joaquim Antunes, n 727, o WALTER NEVES
Como o homem ENTREVISTA
10o andar, CEP 05415-012, Pinheiros, São Paulo-SP chegou às Américas LUIZ TRAVASSOS
As vitórias do
“Doutor calouro”
FAPESP Rua Pio XI, n 1.500, CEP 05468-901,
o

Alto da Lapa, São Paulo-SP

A organização
Um salto no mar
Secretaria de Desenvolvimento Econômico,
Ciência e Tecnologia
Governo do Estado de São Paulo dos macacos-prego
Alpha Crucis, o novo navio oceanográfico
de São Paulo, dá impulso à pesquisa sobre Nova classificação amplia número de espécies de primatas
n.196
n.195

clima, biodiversidade e pré-sal das Américas Central e do Sul, hábeis no uso de ferramentas

PESQUISA FAPESP 197 | 7


as famílias, desde o fim da ditadura, têm Público, do qual sou aposentado. Anos
buscado por justiça; por outro lado, o atrás os saudosos professores Oscar Sala
Estado de direito, até o momento, optou e Crodowaldo Pavan, num evento na
por bloquear esta possibilidade. Unicamp, me disseram que fora eu o
Edson Teles único bolsista da FAPESP oriundo da
Universidade Federal de São Paulo, Unifesp área jurídica.
São Paulo, SP Renato Guimarães Jr.
Comitê de Ética na Pesquisa Médica, Unicamp
Campinas, SP
FAPESP 50 anos
Os autores da edição especial “50 anos” Quero parabenizar Pesquisa FAPESP
mostraram a criatividade e o potencial pelo excelente conteúdo da edição pu-
do DNA da ciência brasileira quando blicada em comemoração aos 50 anos da
devidamente suportados pelo poder Fundação. A contribuição da Fapesp à
público. Parabéns. ciência e tecnologia brasileira nesses 50
Humberto Torloni anos é realmente fabulosa. Fico muito
Hospital A.C. Camargo orgulhoso de ter participado um pouco 5
São Paulo, SP dessa história, nos idos de 1983/1984, 6
quando fui bolsista de iniciação cien-
3
Nada mais apropriado do que come- tífica da instituição. Apenas a título de
morar os 50 anos da FAPESP com um contribuição, a plataforma P-37 está po- 2
4
1
número especial da revista. E que re- sicionada no campo de Marlim, e não
vista. A ideia de identificar um grupo Marlim Sul, conforme citado na repor-
de pesquisas significativas e mostrá- tagem “Desafios em águas profundas”,
-las diacronicamente foi bem pensada da edição especial.
e melhor realizada. Queira, por favor, Sebastião Benedito Machado Perea Martins Antonio Barros de Ulhôa Cintra, reitor da
elogiar o grupo de intelectuais e jorna- Macaé, RJ Universidade de São Paulo (USP); nº 5,
listas que deram conta da empreitada. Paulo Vanzolini; nº 6, Zeferino Vaz, que
Sei que, como antigo parecerista da FA- Gostaria de parabenizar a FAPESP pelos viria a ser o primeiro reitor da Universi-
PESP, sou suspeito, mas como diretor seus 50 anos, uma Fundação que nos dade Estadual de Campinas (Unicamp).
editorial da Editora Contexto (que, por honra, nos enche de orgulho, que é um
sinal, comemora 25 anos) creio poder exemplo de dignidade e eficiência, que Na foto “Uma imagem da história”, o
avaliar adequadamente o belo trabalho tanto tem ajudado a ciência brasileira e caminhão é um Mercedes-Benz, e não
editorial feito. não só em São Paulo. É um exemplo raro um fenemê (FNM, sigla de Fábrica Na-
Jaime Pinsky em nosso país. Por meio de seus dirigen- cional de Motores).
São Paulo, SP tes e funcionários tem dado exemplo de
dignidade, apoio aos pesquisadores, é
Ao cumprimentar a FAPESP por seus inovadora e empreen­de tarefas fantásti-
50 anos, devo agradecer a bolsa que cas. Enfim, que pena que não tenhamos
me foi concedida para eu poder obter uma centena de FAPESPs em nosso país.
meu Master of Comparative Law, na Em particular, desejaria felicitar a jor-
The George Washington University, nos nalista e editora Mariluce Moura e seu
Estados Unidos, onde, pela primeira vez, staff pela maravilhosa revista que temos
tomei conhecimento de dois temas, en- o prazer e a honra de receber, sempre
tão inexistentes no Brasil: aviation law muito bem escrita e ilustrada. Permite
e environmental law. Foi graças a essa também aos pesquisadores de diferentes
oportunidade que, anos depois, pude re- áreas interagirem entre si.
presentar as famílias das vítimas mortas Lycia Maria Moreira Nordemann
na tragédia do Boeing 707 da Varig, em São José dos Campos, SP
Abidjan, na África, e na do Fokker 100,
da TAM, no aeroporto de Congonhas,
em São Paulo, 99 mortes, ambas condi- Correções
cionadas ao forum non conveniens, da Na fotografia da capa de edição especial
judicial cause norte-americana. Quanto Pesquisa FAPESP 50 Anos, alguns dos
ao meio ambiente, pude colaborar na retratados foram identificados erronea-
elaboração da Constituição e, depois, mente. O correto é: nº 1, gover­nador Car- Cartas para esta revista devem ser enviadas para
em numerosas ações civis públicas, valho Pinto; nº 2, Hélio Bicudo; nº 3, José o e-mail cartas@fapesp.br ou para a rua Joaquim
Antunes, 727, 10º andar - CEP 05415-012,
para nada dizer do pouco que fiz às ga- Elias de Paiva Neto, diretor do Instituto Pinheiros, São Paulo-SP. As cartas poderão ser
rantias constitucionais ao Ministério Agronômico (IAC), de Campinas; nº 4, resumidas por motivo de espaço e clareza.

8 | julho DE 2012
carta da editora

Vias estimulantes para reflexão


Mariluce Moura
Diretora de Redação

P
esquisa FAPESP oferece aos leitores nesta a reportagem tem em seu próprio texto, orgânico,
edição um material de inequívoca consis- fluente e vigoroso, uma razão a mais para ser lida.
tência para o debate atualíssimo – e vital Outra reportagem muito diferente atravessou
para o Brasil – a respeito de como se transforma todo o mês de junho como objeto preferencial da
com eficácia conhecimento científico em produ- capa da revista e só perdeu a posição, na última
tos de alto valor agregado e em outros bens so- hora, pela força que a matéria dos escritórios de
cialmente úteis. Em termos estritos, a reportagem transferência de tecnologia revelou. Refiro-me
de capa elaborada por nosso editor de política aqui à reportagem do editor de ciência, Ricardo
científica e tecnológica, Fabrício Marques, trata Zorzetto, sobre uma nova e audaciosa proposi-
a partir da página 20 do papel dos escritórios de ção teórica no campo neurológico/psiquiátri-
transferência de tecnologia de grandes univer- co, elaborada por um pesquisador gaúcho, bem
sidades. Diga-se logo que, neste momento, de plantado sobre o conhecimento desenvolvido
Harvard às universidades estaduais paulistas, nos últimos anos por colegas de outras partes
esse papel vem sendo repensado, reformado e do mundo a respeito da depressão e do trans-
ampliado em função da necessidade de intensi- torno bipolar. A hipótese em questão vê as crises
ficar e tornar mais e mais eficiente a articulação de depressão e de mania típicas dessas doenças
dos centros produtores de conhecimento com como responsáveis, a partir de um determina-
os produtores de bens e serviços. A sociedade do número de ocorrências, por uma ação tóxi-
do conhecimento desdobra-se para encurtar e ca sobre o organismo como um todo, para além
aplainar o caminho entre uns e outros. dos danos já conhecidos que produzem sobre a
Conforme diz Fabrício, depois de relatar dados capacidade de raciocínio, planejamento e apren-
resultantes da reforma recente por que passou o dizagem, e sobre o humor dos que as sofrem. É
Escritório de Desenvolvimento Tecnológico (OTD) uma abordagem cientificamente bem embasada,
de Harvard, o movimento feito por essa universi- que traz, com novas evidências, a psique para o
dade de classe mundial é exemplar do fenômeno corpo, a doença mental para seu substrato bio-
que se esboça em outros escritórios semelhantes lógico e para seus efeitos sobre o corpo inteiro,
mundo afora. Reproduzo suas palavras: “Além das devolvendo unidade e organicidade ao que tão
tarefas rotineiras, que consistem em identificar des- longamente o conhecimento tentou separar. Vale
cobertas com potencial econômico e protegê-las a pena conferir a partir da página 40.
por meio de patentes, esses escritórios abraçam Por fim, destaco nesta edição a entrevista do
várias outras atividades, como fomentar colabo- professor Eduardo Moacyr Krieger (página 28)
rações de pesquisa de longo prazo entre empresas sobre sua trajetória e seus trabalhos científicos
e laboratórios, auxiliar na criação de empresas seminais no campo da hipertensão, seu papel na
baseadas em tecnologias nascentes, arregimentar organização de um dos grupos de pesquisa mais
investidores privados para financiá-las, oferecer importantes nesta área e sua incansável militância
a consultoria de pesquisadores para a indústria em instituições de cientistas como a Academia
e estimular o empreendedorismo já entre os es- Brasileira de Ciências, destinada a dar relevância
tudantes de graduação”. São vários os escritórios à comunidade científica brasileira nos foros inter-
cujas práticas nesse sentido estão esmiuçadas na nacionais. Acrescente-se que o professor Krieger,
reportagem. E, para além da relevância do tema 84 anos, é dono de uma conversa extraordina-
que ela traz e das reflexões que seja capaz de susci- riamente estimulante para quem gosta de ouvir
tar quanto à necessidade de se multiplicar no país sobre caminhadas singulares pela construção do
experiências parecidas com as desses escritórios, conhecimento e pela vida. Boa leitura a todos!

PESQUISA FAPESP 197 | 9


Dados e projetos
Temáticos e Jovem Pesquisador recentes
Projetos contratados entre maio e junho de 2012

temáticos x Estudo de propriedades do Processo: 2011/18097-5 Processo: 2011/23874-0


x Avaliação da terapia com condensado de Bose-Einstein: átomos Vigência: 01/07/2012 a 30/06/2015 Vigência: 01/06/2012 a 31/05/2014
células-tronco hematopoiéticas na dipolares e condensado de férmions
doença renal crônica em cães Pesquisador responsável: Sadhan x Biorrefinaria na indústria x Caracterização e controle de
Pesquisadora responsável: Lucia da Kumar Adhikari agroalimentar: reaproveitamento mecanismos de internalização celular
Conceição Andrade Instituição: Instituto de Física Teórica de resíduos para produção de novos de nanopartículas
Instituição: Faculdade de Medicina da Unesp compostos químicos e bio-hidrogênio Pesquisadora responsável: Dayane
da USP Processo: 2012/00451-0 Pesquisadora responsável: Tânia Batista Tada
Processo: 2010/19012-0 Vigência: 01/05/2012 a 30/04/2017 Forster Carneiro Instituição: Instituto de Ciência e
Vigência: 01/06/2012 a 31/05/2017 Instituição: Faculdade de Engenharia Tecnologia da Unifesp
x Wittgenstein em transição de Alimentos da Unicamp Processo: 2011/23895-8
x Dinâmica em baixas dimensões Pesquisador responsável: João Vergilio Processo: 2011/19817-1 Vigência: 01/05/2012 a 30/04/2015
Pesquisador responsável: André Salles Gallerani Cuter Vigência: 01/06/2012 a 31/05/2016
de Carvalho Instituição: Faculdade de Filosofia, x Implementação de um laboratório
Instituição: Instituto de Matemática Letras e Ciências Humanas da USP x Estudo de filmes de carbono-tipo para o estudo de funções cognitivas,
e Estatística da USP Processo: 2012/50005-6 diamante contendo nanopartículas por meio de avaliação neuropsicológica
Processo: 2011/16265-8 Vigência: 01/06/2012 a 31/05/2015 incorporadas para aplicações clássica e de técnicas de neuroimagem
Vigência: 01/04/2012 a 31/03/2017 biomédicas estrutural e funcional, em condições
Jovem Pesquisador Pesquisadora responsável: Fernanda normais e patológicas (epilepsias
x O papel da estimação de custos x Síntese e degradação de espécies Roberta Marciano refratárias)
de capital na otimização da estrutura moleculares pré-bióticas em Instituição: Instituto de Pesquisa Pesquisadora responsável: Andrea
de capital das empresas no Brasil atmosferas planetárias, cometas e e Desenvolvimento da Univap Alessio Vieira Alves
Pesquisador responsável: Antonio gelos interestelares simulados Processo: 2011/20345-7 Instituição: Faculdade de Ciências
Zoratto Sanvicente Pesquisador responsável: Sérgio Pilling Vigência: 01/06/2012 a 31/05/2016 Médicas da Unicamp
Instituição: Instituto de Ensino Guapyassu de Oliveira Processo: 2011/50043-2
e Pesquisa (Insper) Instituição: Instituto de Pesquisa e x Classe social e valor na teoria social Vigência: 01/05/2012 a 30/04/2016
Processo: 2011/23090-0 Desenvolvimento da Universidade do contemporânea
Vigência: 01/06/2012 a 31/05/2017 Vale do Paraíba (Univap) Pesquisador responsável: Henrique x Células-tronco mesenquimais
Processo: 2009/18304-0 José Domiciano Amorim humanas do aparelho reprodutor
x Amelioration of the autonomic Vigência: 01/05/2012 a 30/04/2016 Instituição: Escola de Filosofia, Letras feminino como vetores na terapia
imbalances of old age whit exercise e Ciências Humanas da Unifesp celular: avaliação da migração e do
exploring the molecular and x Análise comparativa do transcritoma Processo: 2011/23506-1 efeito de células expressando a il-12
physiological mechanisms de transportadores de membrana Vigência: 01/05/2012 a 30/04/2016 murina no modelo de melanoma
(FAPESP-RCUK) da raiz de arroz associado a fungo e carcinoma
Pesquisadora responsável: Lisete micorrízico arbuscular e em resposta x Estresse oxidativo e plasticidade Pesquisadora responsável: Tatiana
Compagno Michelini a arsênio sináptica no córtex visual primário Jazedje da Costa Silva
Instituição: Instituto de Ciências Pesquisadora responsável: Sara Adrian Pesquisador responsável: Roberto Instituição: Escola Paulista de Medicina
Biomédicas da USP Lopez de Andrade de Pasquale da Unifesp
Processo: 2011/51410-9 Instituição: Instituto de Biologia Instituição: Instituto de Ciências Processo: 2011/51648-5
Vigência: 01/05/2012 a 30/04/2016 da Unicamp Biomédicas da USP Vigência: 01/06/2012 a 31/05/2014

Estimativas de visibilidade
Impacto relativo dos trabalhos produzidos por pesquisadores de alguns países em áreas do conhecimento selecionadas

país agricultura Medicina física química engenharia Biologia molecular e genética


Impacto: 3,05 Impacto: 5,78 Impacto: 4,46 Impacto: 5,47 Impacto: 2,34 Impacto: 10,97
Impacto
Argentina 2,78 6,95 4,09 3,87 2,32 6,13
Brasil 1,38 3,77 3,90 3,71 2,19 4,48
Chile 2,55 4,31 4,34 3,12 2,44 8,46
México 2,37 5,17 4,52 3,34 1,72 6,12
Espanha 3,91 6,56 6,12 6,66 2,65 10,71

Fonte: Dados do Thomson Reuters National Science Indicators (NSI, v. 2010) referentes a 2006-2010.
Observação: As cifras mostram o impacto dos trabalhos na área = número de vezes em que os trabalhos da área foram citados/número de trabalhos na área;
o impacto dos trabalhos dos países na mesma área.

10 | julho DE 2012
Boas práticas
Primeiro-ministro romeno
acusado de plágio
A Romênia vive uma sucessão de “As evidências de plágio são
episódios de má conduta científica avassaladoras”, disse à revista
que já atinge o coração do governo. Marius Andruh, químico
De acordo com a revista Nature, da Universidade de Bucareste
que investigou os casos, uma e presidente do conselho
explicação para a atual situação romeno para reconhecimento
é o fato de que membros da elite de diplomas universitários.
romena pós-comunista, incluindo No dia 21 de junho, a Nature
políticos, têm buscado credenciais publicou uma carta da assessoria
acadêmicas avidamente e de imprensa do governo romeno
muitas universidades se tornaram negando as acusações de plágio.
uma “fábrica de doutores”, Nele, Victor Ponta se oferece
menosprezando a qualidade para submeter seu trabalho
e a ética da produção acadêmica. a “qualquer tipo de teste”.

daniel bueno
O Conselho de Ética de Pesquisa Segundo o diário britânico
romeno julga, no momento, The Guardian (19 de junho),
o caso de Ioan Mang, ex-ministro o primeiro-ministro acusou
da Ciência e Educação. No mês o presidente romeno, Traian do governo do primeiro-ministro
passado, Mang, especialista em Basescu, um rival político, Adrian Nastase, que foi também
computação, renunciou ao cargo de orquestrar o ataque a ele. seu orientador. Ele se tornou
após denúncia de plágio em pelo Ponta fez seu doutorado o primeiro-ministro em maio
menos oito artigos. O evento na Universidade de Bucareste deste ano depois de seu antecessor,
mais ruidoso até agora envolve o enquanto era secretário de Estado Emil Boc, ter renunciado.
primeiro-ministro Victor Ponta,
julgado sob a acusação de ter
copiado grandes trechos de outros
trabalhos acadêmicos, sem citar as Intimados, cientistas entregam e-mails à BP
fontes, em sua tese de doutorado,
defendida em 2003 na área O processo pelo qual os cientistas e mensagens dos pesquisadores
de direito. Se confirmadas, chegam a suas conclusões, detalhando como fizeram
as acusações podem aumentar testam e refinam seus métodos a estimativa do vazamento. A
a pressão para sua renúncia. de trabalho em busca da maior empresa alega que os documentos
A Nature publicou uma precisão possível pode também são necessários para se defender
reportagem sobre esse episódio se voltar contra eles – sob judicialmente. Os pesquisadores
em 18 de junho, após ter tido acesso acusação de má conduta – quando dizem que essa decisão pode
a documentos indicando que mais usados em batalhas jurídicas. prejudicar futuras deliberações
da metade da tese de Ponta, Christopher Reddy e Richard científicas (The Chronicle of
de 432 páginas, consistia de textos Camilli, do Instituto Oceanográfico Higher Education, 5 de junho).
acadêmicos já publicados, mas não Woods Hole (EUA), que Ao jornal The Boston Globe,
identificados. A tese foi republicada ajudaram a estimar a dimensão eles afirmaram que a empresa
como livro em 2004 e usada como do derramamento de petróleo encontraria mensagens em que
base para outro livro, de 2010, sobre no golfo do México em 2010, eles próprios questionavam seus
leis humanitárias internacionais. foram forçados a entregar mais métodos, chegavam a becos sem
Trechos substanciais das três de 3 mil e-mails pessoais à Justiça. saída ou modificavam suas
publicações parecem ser bastante O governo federal processou perspectivas. Segundo os dois
similares aos de artigos publicados a BP, operadora da plataforma que cientistas, esses movimentos
em romeno pelos especialistas em explodiu, que, para se defender, não deveriam servir para pôr
direito Dumitru Diaconu e Vasile requisitou e recebeu mais de em dúvida suas conclusões, pois
Creţu e em inglês por Ion Diaconu. 50 mil páginas de documentos fazem parte do trabalho científico.

PESQUISA FAPESP 197 | 11


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Nas redes

crystal mcmichael / fit


@Lígia Paganini Obrigada,
@PesquisaFapesp, pelo lindo
material sobre a Rio+20 que vou usar
plenamente na minha aula de geo.
Rádio Assim fica fácil preparar aula!

Comissão da @felipemiguel Quero tornar

Verdade e público o meu amor pela


@PesquisaFapesp, onde eu posso
processos de ler artigos sobre bactérias que

anistia na América comiam pterossauros. Obrigado.

do Sul explicados @Leiriane Alves Os artigos

por Glenda publicados na @PesquisaFapesp são


extremamente ótimos. Amo receber
Mezarobba minhas revistas e ler diariamente
Rio Amazonas próximo a Tefé, uma das áreas estudadas algum artigo on-line.

Linauria Do Carmo_ Hoje recebi


Exclusivo no site a revista e digo que ela está perfeita,
estou encantada com as matérias!!!!
} Antes da chegada dos europeus, } Um grupo de pesquisadores observou adorei tudoooo, inclusive a matéria
a Amazônia já era bem povoada. pela primeira vez um lago de metano sobre a Xylella fastidiosa!!!!!!, percebo
Sobretudo na porção leste, ao contrário líquido com cerca de 2.400 km2 que o nosso país começa a mudar
da ocupação difusa imaginada antes. na região próxima ao equador de Titã, a realidade da produção científica
A novidade vem da análise de carvão a maior lua de Saturno. A descoberta no âmbito internacional e nacional
no solo nas regiões central e oeste publicada na Nature indica que para nosso orgulho e admiração!!!!
da Amazônia, por pesquisadores do o trópico árido do satélite pode ter muitos e muitos sucessos à revista!!!!
Instituto de Tecnologia da Flórida (FIT) ainda mais lagos e também sugere que grande abraço. (Especial 50 anos)
com participação de brasileiros. O eles são formados por alguma fonte
carvão indicador de queimadas revelou subterrânea de metano, pois a região @Ana Paula Morales Chocada
a presença de humanos até 4 mil anos dos trópicos aparenta ser mais seca com dados do Núcleo de Estudos
atrás, mas eram populações esparsas que o resto da lua. Os lagos são da Violência da USP em matéria
e pequenas, que provavelmente propícios para as moléculas orgânicas da @PesquisaFapesp deste mês.
não praticavam agricultura, segundo se chocarem e, assim, formarem (Especial 50 anos)
artigo publicado na Science. estruturas mais complexas.

Para ler o código ao lado faça o download do leitor de QR CODE no seu smartphonE

Vídeo do mês
Pontas de flecha e
de lança pré-históricas
podem pertencer Assista ao vídeo:

a cultura diferente
da habitual
tradição Umbu
http://www.youtube.com/user/PesquisaFAPESP

12 | julho DE 2012
WiKi
o que é, o que é?
Norte geográfico e
norte magnético
Por muito tempo se pensou que o norte
geográfico e o norte magnético eram um só.
Em 1831, o explorador inglês James Ross
verificou que não eram iguais ao chegar
ao Ártico e ver que a bússola apontava para
o chão, o norte magnético (as linhas de força
eram verticais e a única posição em que
a agulha aquietava era na vertical).
O norte geográfico resulta do movimento
Pergunte aos pesquisadores de rotação da Terra, enquanto o norte
magnético é o resultado do campo magnético
Como funcionam os hidratantes corporais? gerado pelo movimento do metal fundido
do núcleo externo em torno do núcleo
Jogar água na pele também ajuda a hidratar? metálico sólido da Terra. Os dois nortes,
Claudia Chow [via e-mail] portanto, expressam fenômenos geofísicos
diferentes. Usando esse princípio os chineses
Maria Vitória Lopes Badra Bentley inventaram a bússola e os europeus se
Universidade de São Paulo (USP) lançaram às grandes navegações.
Uma agulha imantada aponta sempre para o
Os hidratantes criam da camada córnea polo norte magnético e, de modo aproximado,
um "filme" sobre a (a mais externa da para o norte geográfico. O ângulo entre o norte
pele evitando a perda epiderme). Com isso, magnético e o geográfico reflete a declinação
de água da epiderme evitam a descamação magnética do lugar e varia geralmente de
(camada externa) e a desidratação. 20 a 30 graus. Como o campo magnético varia
graças aos componentes Outros hidratantes com o tempo, atualmente em São Paulo a
bloqueadores como podem conter diferença entre os dois nortes é de 23 graus.
substâncias gordurosas nanocompostos. Sua Uma confusão frequente é quanto à
ou silicone (oil free). Outra eficácia é maior, pois nomenclatura dos polos. Pela convenção
ação é umidificadora. as substâncias ativas física, o polo magnético norte estaria situado
Substâncias que atraem nanoencapsuladas no sul da Terra e vice-versa. Para evitar
a água como glicerina e ficam mais estáveis, essa confusão, convencionou-se chamar
sorbitol mantêm a pele interagem mais com Mande sua pergunta
de polo norte magnético o polo que está
para o e-mail
hidratada por mais a pele e são liberadas wikirevistapesquisa@fapesp.br, próximo ao polo norte geográfico, o mesmo
tempo. Esse efeito pode gradativamente. pelo facebook ocorrendo com o polo sul.
ou pelo twitter
ser reforçado quando A água na pele @PesquisaFapesp
a fórmula contém hidrata por segundos, Eder Molina, da Universidade de São Paulo (USP)
substâncias do fator de até secar. A exceção
hidratação natural como é a água termal. Esta
a ureia e o lactato de tem maior concentração
amônio, que substituem de minerais (íons como
ou reforçam esses zinco e silicatos) do
componentes em falta. que a água comum.
Já os cremes emolientes, Esses íons participam
Ilustracões daniel bueno

além das duas ações, da manutenção do


têm compostos oleosos conteúdo de água
e lipídicos não gordurosos dentro e fora das células
que aumentam a da pele, mantendo
adesão entre as células a hidratação.

PESQUISA FAPESP 197 | 13


Estratégias
Parcerias com o Reino Unido
A FAPESP assinou Florestas Tropicais
acordos de cooperação Modificadas pelo Homem,
científica com três envolvendo a FAPESP
instituições do Reino e o Natural Environment
Unido: a Universidade de Research Council.
Edimburgo (Escócia), a Também participaram
Universidade Bangor da assinatura dos
(País de Gales) e o acordos representantes
Instituto de Educação da das três universidades
Universidade de Londres britânicas, o embaixador
(Inglaterra). Os acordos do Reino Unido no Brasil,
foram assinados pelo Alan Charlton, o diretor-
presidente da FAPESP, -presidente do Conselho
Celso Lafer, e por Sir John Técnico-Administrativo
Beddington, conselheiro-­ da FAPESP, José
-chefe para assuntos Arana Varela, e o
científicos do gabinete diretor científico, Carlos
de Ciência e Tecnologia Henrique de Brito Cruz,
do Reino Unido. Os entre outros. De acordo
documentos buscam com Brito Cruz, os
estimular a cooperação mais de 30 acordos de Análise do jornalismo
científica entre o Brasil cooperação já assinados
e o Reino Unido a partir com os RCUK e outras Foi lançada em maio redações dos Estados
do desenvolvimento instituições britânicas a Revista de Jornalismo Unidos. O jornalista
de projetos conjuntos são parte importante ESPM, primeira versão Alberto Dines, que
de pesquisa que poderão da estratégia de brasileira da Columbia recentemente
incluir o intercâmbio internacionalização da Journalism Review, comemorou 80 anos
de pesquisadores e de FAPESP. “Trata-se de uma uma das mais influentes (ver Pesquisa FAPESP
alunos de pós-graduação. cooperação que evolui revistas sobre jornalismo nº 194), escreveu sobre
Também foi lançada muito bem. Não apenas no mundo, criada há o imediatismo nas
uma chamada de o número de projetos 50 anos pela Escola mídias digitais e o
propostas de pesquisa aumentou, mas também de Jornalismo de prejuízo que provoca
colaborativa em Processos o de organizações Revista de Columbia, em Nova York. ao jornalismo ao abrir
da Biodiversidade envolvidas”, disse Brito Jornalismo Além de apresentar mão da consistência
ESPM: textos
e de Ecossistemas em Cruz à Agência FAPESP. traduções de artigos da e alimentar-se
traduzidos
e produção edição norte-americana, de uma intensa
própria também traz material carga de frivolidades.
exclusivo produzido “Nossa revista será uma
no Brasil. O primeiro ponte entre o universo
número abordou temas acadêmico e o universo
como os desafios profissional, com a
do jornalismo econômico ambição de gerar
ante suas duas conhecimento crítico
audiências, os sobre a instituição da
investidores e o público imprensa”, diz o editorial
leigo; a relação mal da primeira edição.
resolvida entre A revista é trimestral e
assessorias de imprensa vendida por assinatura,
e mídia e a presença através do link www.
1 dos negros nas espm.br/espmcjr.

14 | julho DE 2012
Novo conselheiro Fundaj ganha José Reis
O governador Geraldo de São Paulo, que pela A Fundação Joaquim pesquisadores e
Alckmin nomeou legislação participa de Nabuco (Fundaj), de interessados em ciência
Fernando Ferreira Costa, outra representação), Recife, ganhou o Prêmio em geral; o Pesquisa
reitor da Universidade inscreveram 19 José Reis de Divulgação Escolar on-line, criado
Estadual de Campinas candidatos. Costa fez Científica e Tecnológica em 2002, que é uma
fotos 1 eduardo cesar  2 Antoninho Perri – Ascom – Unicamp. 3 universidade de indiana  ilustraçãO daniel bueno

(Unicamp), para integrar graduação, mestrado, 2012, concedido pelo atividade de divulgação
o Conselho Superior da doutorado e livre- Conselho Nacional científica e apoia a
FAPESP. O mandato é de -docência na Faculdade de Desenvolvimento formação escolar
seis anos. Ferreira Costa, de Medicina de Ribeirão Científico e Tecnológico realizada pela Biblioteca
2
Erney Plessmann de Preto (USP). Entre 1987 (CNPq). A 32ª edição Central Blanche Knopf
Camargo e Cláudio e 1989 cumpriu estágio do prêmio, o mais da Fundaj; e o Museu do
Shyinti Kiminami foram de pós-doutorado na Fernando importante da Homem do Nordeste,
os nomes indicados por Yale School of Ferreira Costa: divulgação científica do espaço de difusão do
escolhido
uma eleição, realizada Medicine, nos Estados país, contemplou a patrimônio científico
para o
pela internet entre Unidos. Ingressou no Conselho categoria Instituição e e cultural da região.
11 e 15 de junho, Departamento de Superior Veículo de Comunicação. Idealizada pelo
destinada à elaboração Clínica Médica da Entre os serviços de sociólogo Gilberto
da lista tríplice para a FCM-Unicamp em 1990 divulgação científica que Freyre, a Fundaj foi
escolha do conselheiro. e se tornou professor a Fundaj disponibiliza criada em 1949 como
As instituições de ensino titular em hematologia estão a Revista Coletiva Instituto Joaquim
superior e de pesquisa, e hemoterapia em 1996. (www.coletiva.org), Nabuco de Pesquisas
oficiais ou particulares, em Foi coordenador do publicação eletrônica Sociais. A menção
funcionamento no estado Instituto Nacional de dirigida a professores honrosa da 32ª edição
de São Paulo (com Ciência e Tecnologia e estudantes do 2º grau, do prêmio foi concedida
exceção da Universidade do Sangue (2009-2011). universitários, ao Instituto de
Estudos Avançados
da Universidade de
São Paulo (USP),
em São Carlos, no
interior paulista, pelo
Elinor Ostrom projeto Ciência Web,

(1933-2012) portal da Agência


Multimídia de Difusão
Elinor Ostrom, primeira mulher a ganhar Científica e Educacional.
um Prêmio Nobel de Economia, morreu Projeto Shoal: Coordenado pela
no dia 12 de junho, aos 78 anos, vítima robô aquático professora Yvonne
identifica
de câncer. Professora da Universidade Primerano Mascarenhas,
chumbo e
de Indiana e formada não em economia, cobre no mar o Ciência Web publica
mas em ciência política, ela foi laureada vídeos na área de
em 2009, juntamente com Oliver Wil- difusão científica e
liamson, por pesquisas no campo da go- educacional. A produção
vernança econômica. Formada pela é feita por estudantes de
Universidade da Califórnia em Los Ange- ensino médio de escolas
les, ela estudou como as pessoas se or- 3 públicas de São Carlos,
ganizam e colaboram para gerir recursos A Nobel de auxiliados por alunos
comuns, como florestas ou a pesca. Ela do Estado ou do mercado. Em 1973, ela Economia dos cursos de jornalismo
de 2009:
contradisse a armadilha social conhecida e o marido, Vincent Ostrom, fundaram o e imagem e som.
como gerir
por “tragédia dos comuns”, na qual inte- Workshop em Teoria Política e Análise de recursos Os vídeos têm como
resses individuais se sobrepõem a um Políticas da Universidade de Indiana, comuns objetivo apoiar o ensino
objetivo coletivo, resultando em destrui- ambiente de colaboração com pesquisa- de ciências e divulgar a
ção dos bens públicos e dos recursos dores de disciplinas diversas. Uma de produção universitária.
escassos. Comprovou, na prática, que suas últimas atividades foi a chefia do A entrega do prêmio
interesses isolados de certos grupos po- comitê científico da Planet Under Pres- para a Fundação será
dem ser mais benéficos à economia e ao sure, conferência preparatória da Rio+20, na Reunião Anual da
meio ambiente do que uma intervenção que ocorreu em Londres em março. SBPC, neste mês,
em São Luís (MA).

PESQUISA FAPESP 197 | 15


Tecnociência
Aplicativo para celular
auxilia deficiente visual
Um aplicativo para georreferenciadas
celular destinado (gravadas por outra
a facilitar a integração pessoa usuária do
dos deficientes visuais software) com dados
ao ambiente urbano foi enviados pela rede de
desenvolvido por Renata maneira colaborativa.
Claro, Gabriel Reganati “A navegação não é
e Thiago Silva, alunos exclusiva para deficientes
do último ano do curso de visuais”, diz o professor
ciência da computação Artur Rozestraten, da
do Instituto de Faculdade de Arquitetura
1 Matemática e Estatística e Urbanismo (FAU),
Pular a (IME) da Universidade de que participou do
primeira São Paulo (USP), sob a desenvolvimento do
Benefícios do café da manhã refeição matinal
estimula a
orientação do professor projeto. O programa
obesidade Marco Aurélio Gerosa. ficou com o terceiro lugar
Por falta de hábito dos meninos e meninas Chamado Smart Audio na Imagine Cup, um
ou por estarem em briga tomava café da manhã, City Guide, o programa, concurso mundial de
com a balança, crianças de longe a refeição que está em fase inovação promovido
e adolescentes obesos que era mais ignorada experimental, consiste pela Microsoft. Qualquer
deixam, às vezes, de fazer (apenas 10% não em um sistema baseado pessoa que possua
uma refeição. A prática almoçavam e pouco mais em GPS e informações o aplicativo pode enviar
não é recomendável, de 20% não jantavam). e receber informações,
especialmente se o café Os pesquisadores transmitidas em áudio,
da manhã for a refeição acreditam que, ao sobre o espaço urbano.
abolida. Um estudo pularem o café da manhã, Os avisos indicam desde
de pesquisadores das as crianças passam a existência de uma
universidades Estadual um período muito longo árvore ou degraus até
Paulista (Unesp), do sem comer. O mau hábito uma banca de flores.
Oeste Paulista (Unoeste) altera mecanismos A gravação é feita com
e Estadual de Londrina neuroendócrinos e um simples toque na tela.
(UEL) indica que não estimula a produção pelo Quando um usuário
comer na hora certa, estômago da grelina, um do sistema passar pelo
em especial a primeira hormônio ligado à fome. mesmo local em que foi
refeição matinal, pode Dessa maneira, a maior gravado um aviso, ele
estar relacionado com produção de grelina recebe uma notificação
índices mais elevados levaria os adolescentes com uma mensagem de
de glicose e lípideos e crianças a terem mais voz. A avaliação de quais
nas crianças. O estudo apetite nas demais informações são úteis
analisou 174 crianças e refeições. Comendo mais fica a critério dos demais
adolescentes obesos e no resto dia, teriam usuários. “A ideia é que
sedentários (80 meninos índices maiores de açúcar o aplicativo seja
e 94 meninas), com idade e gordura no sangue do complementar a outros
entre 6 e 16 anos, que que as pessoas que fazem recursos de amparo
moram na cidade de as três refeições do dia. à mobilidade, como
Presidente Prudente, Em última instância, não bengala, cão-guia e piso
interior paulista (Journal tomar café da manhã apropriado para cegos”,
of Pediatrics, 7 de junho de pode até ser um fato que diz Rozestraten (Agência
2012). Menos da metade estimula a obesidade. USP, 5 de junho).

16 | julho DE 2012
fotos 1 léo Ramos  2 Frédéric Vincent / wikimedia commons  3 eduardo cesar  ilustraçãO daniel bueno

Um gene da pluripotência
A introdução de um e está associado à
único gene numa capacidade que essas
linhagem de células células têm de gerar
humanas do endotélio, a vários tipos de tecidos
camada que reveste os e de se autorrenovar.
vasos sanguíneos, ativou De difícil cultivo em
ao menos seis genes de laboratório por
extrema importância sucessivas gerações,
para os processos de as células endoteliais
reprogramação celular. normalmente não usam
Pesquisadores do Centro ou usam muito pouco
de Terapia Celular esses seis genes. Com a
e do Hemocentro da implantação do Nanog
Círculo de Faculdade de Medicina ou de outros genes,
pedras serviu da Universidade de São essa limitação pode vir
As pedras da unificação para unir
os antigos
Paulo (USP) de Ribeirão a ser contornada ou
povos da Preto inseriram o gene minimizada. “Estamos
Depois de 10 anos de Bournemouth – exploraram Grã-Bretanha Nanog nas células tentando entender qual
trabalho, arqueólogos não apenas o conjunto endoteliais e viram que, é o papel específico do
concluíram que de rochas, mas também apenas com essa Nanog e de cada um
Stonehenge foi um o contexto social e alteração, os genes Sox2, desses genes ligados à
monumento construído econômico da época FoxD3, Oct4, Klf4, c-myc pluripotência das CTEs”,
para unificar os povos da de construção do e β-catenin passaram a explica Virgina
Grã-Bretanha, depois de monumento, entre 3.000 ser expressos (ativados) Picanço-Castro, uma
um longo período de e 2.500 antes de Cristo. por esse tipo de tecido das autoras do estudo.
conflitos internos (Science Para os pesquisadores, o (Celullar Reprogramming, O próximo passo é
Daily, 22 de junho). Agora próprio ato de construção junho de 2012). O Nanog introduzir outros
se acredita que do monumento foi em si é um gene muito ativo genes em células do
Stonehenge deve um ato de unificação, nas células-tronco endotélio e observar
simbolizar os ancestrais por exigir o trabalho de embrionárias (CTEs) quais são os resultados.
dos diferentes povos do milhares de pessoas para
reino, alguns vindos da mover e reunir os blocos
Inglaterra, ao sul, e outros de rochas. Eles também 3

do oeste, no País de rejeitam a possibilidade


Gales. Os pesquisadores de Stonehenge ter sido
– das universidades de usado como observatório Lâminas de
Sheffield, Manchester, pré-histórico, um lugar células solares
fazem conversão
Southampton e de cura ou um templo.
da energia
do sol em
eletricidade

Silício brasileiro para células solares 3

Pesquisadores da Universidade Estadual cânica, que coordena as pesquisas de na fabricação dos painéis fotovoltaicos.
de Campinas (Unicamp) conseguiram células solares em parceria com o pro- “O país exporta o silício metalúrgico a
obter células solares com a mesma pure- fessor Francisco das Chagas Marques, do US$ 2 o quilo. Depois de purificado no
za das importadas. “Partimos do silício Instituto de Física. A rota metalúrgica é exterior é transformado em lâminas usa-
metalúrgico fornecido pela empresa Rima, mais simples e sem os problemas de re- das na fabricação de semicondutores ou
de Minas Gerais, com 99% de pureza, e jeitos químicos produzidos pela rota células fotovoltaicas que custam entre
o purificamos através da rota metalúrgi- química utilizada no exterior para pro- US$ 50 e US$ 1.000, dependendo da pu-
ca, utilizando um forno de fusão por feixe duzir silício de alta pureza. Detentor das reza e da cristalinidade”, compara Mei.
de elétrons, atingindo uma pureza de maiores reservas mundiais de quartzo, A empresa Tecnometal, de Campinas, a
99,999%”, diz o professor Paulo Rober- mineral utilizado para fabricação do silí- única fabricante de painéis fotovoltaicos
to Mei, da Faculdade de Engenharia Me- cio, o Brasil importa as lâminas utilizadas no Brasil, também é parceira da pesquisa.

PESQUISA FAPESP 197 | 17


Máquina fotográfica em gigapixel
Quem não está feliz com sua câmera mera capaz de capturar uma foto de 50 máquina no campus da Universidade de
fotográfica com 12 megapixels não perde gigapixels ou 50 mil megapixels. As câ- Duke e os resultados surpreenderam. O
por esperar. Pesquisadores das universi- meras comerciais usadas por profissionais campo de captura de fotos é de 120° e
dades de Duke e do Arizona, e da empre- na atualidade atingem até 40 megapixels. pequenos detalhes não identificados na
sa Distant Focus, dos Estados Unidos, Superando dificuldades próprias dessa foto comum podem aparecer depois da
mostraram em artigo na revista Nature magnitude em câmeras fotográficas como ampliação digital. Eles também garantem
(20 de junho) um protótipo de uma câ- distorções geométricas nas lentes, sen- que a câmera tem baixo custo e que em
sores de captação da imagem e sistemas cinco anos ela pode se tornar comercial,
de captura digital e processamento de quando os componentes eletrônicos da
imagens, os pesquisadores, coordenados máquina deverão estar mais miniaturi-
pelo professor David Brady, testaram a zados e eficientes.

Protótipo
da câmera
que capta
pequenos
Migrações de leveduras
detalhes nas
imagens Uma espécie rara de identificação em locais
levedura pode contribuir tão distantes um do
para o entendimento outro está relacionada
da dispersão mundial à dispersão humana.
de microrganismos Os locais onde foi
por humanos. A encontrada a S. fodiens
1 Saccharomycopsis fodiens podem ser explicados por
foi isolada do néctar de uma hipótese que leva
uma flor visitada por aos antigos polinésios
Sem cheiro de cola besouros da família dos em migrações para o sul,
nitidulídeos presentes em Taiwan, e ao leste,
Uma cola sem cheiro e substância altamente em todos os continentes. para as ilhas do Pacífico
que traz mais eficiência aromática e alergênica. Mas essa levedura e eventualmente para
ao processo de blindagem “Desenvolvemos foi identificada, por a América do Sul,
em automóveis foi tecnologias em escala pesquisadores das levando plantas de
desenvolvida pela nanométrica para universidades Federal batata-doce cujas flores
Adespec, uma pequena adesivos e selantes, uma de Minas Gerais (UFMG), atraem besouros e
empresa paulistana. à base de água e outra Western, do Canadá, abrigam leveduras. O
O novo adesivo que já de poliéteres siloxanos, e Católica do Equador, trabalho foi liderado pelo
está em uso na Truffi produto neutro e apenas em três locais: canadense Marc-André
Blindados, instalada inodoro”, conta a Austrália, Costa Rica Lachance e contou
também em São Paulo, engenheira química e Ilhas Galápagos, com os brasileiros Carlos
utiliza na sua composição Wang Chen que fundou no Equador. Outras Rosa e Larissa Freitas
partículas na escala a empresa em 2001 e espécies de levedura (International Journal
nanométrica e por isso é teve financiamento da são encontradas em of Systematic and
chamado de nanosselante. FAPESP em três projetos besouros no mundo Evolutionary Microbiology,
Essas nanopartículas do Programa de todo. Para eles, a junho 2012).
são responsáveis pela Pesquisa Inovativa em
eliminação do cheiro, Pequenas Empresas
além de contribuir para (Pipe). A novidade foi
melhorar a adesão entre apresentada no Simpósio
o aço da carroceria e a Novos Materiais e
manta de aramida, tecido Nanotecnologia, realizado
de fibras sintéticas que em junho em São Paulo,
resiste ao tiro de uma promovido pela SAE
arma. O nanosselante Brasil, entidade que
entra no lugar de reúne engenheiros das
colas com base indústrias automobilística
em poliuretano, uma e aeronáutica.

18 | julho DE 2012
Buracos negros obesos
Um estudo divulgado em massa de 10 a 35 vezes
junho está fazendo os maior do que o esperado.
astrônomos reverem O halo de matéria escura
o que sabiam sobre a que envolve essas
evolução dos buracos galáxias também é muito
negros, corpos com maior que o normal.
densidade tão elevada Esses dados sugerem que
que nada escapa de sua a evolução dos buracos
atração gravitacional, de massa muito elevada
nem a luz. Imagens feitas está ligada à massa dos 2

pelo telescópio espacial halos de matéria escura, Galáxias NGC


Chandra, da Nasa, e não à do bojo das 4342, à

mostraram que os galáxias. “Esse trabalho


esquerda, e NGC
4291: buracos
Esculpindo as rochas
buracos negros que nos dá mais evidências negros com
ocupam o centro de duas da ligação entre dois massa maior As elegantes ondulações Politécnica de Turim,
galáxias relativamente dos mais misteriosos que o esperado das estalactites resultam mostraram que as
próximas à Via Láctea fenômenos da astrofísica, de padrões regulares montanhas e vales
estão ganhando massa os buracos negros na taxa de deposição de que se repetem
mais rápido do que e a matéria escura”, minerais trazidos pela em intervalos de
deveriam. A massa disse Akos Bogdan, água que flui do teto das 5 a 10 milímetros nas
desses buracos negros do Centro de Astrofísica cavernas, concluíram estalactites podem
em geral é centenas de Harvard-Smithsonian, dois pesquisadores surgir da dinâmica de
milhões a bilhões de coordenador do estudo, italianos, por meio de fluxos – neste caso,
vezes maior que a do Sol apresentado na reunião uma teoria que inclui a o fluxo de água que
e equivalente a 0,2% anual da Sociedade dinâmica da água desce do teto trazendo
da massa total do bojo, Astronômica Americana. pingando do teto de minerais, especialmente
a região mais central Ele acredita que esses cavernas e simulações calcita. A água, eles
e luminosa da galáxia. buracos negros ganharam em computador verificaram, se move
Nas galáxias NGC 4342 massa rapidamente e (Physical Review Letters, em camadas paralelas a
fotos 1 Universidade de Duke  2 Nasa / CXC / SAO / 2MASS / UMass /IPAC-Caltech / NSF  3 David Monniaux / Wikimedia Commons  ilustraçãO daniel bueno

e NGC 4291, porém, consumiram o gás que 8 de junho). Carlo uma superfície de rocha
o Chandra detectou poderia ter originado Nas cavernas, Camporeale e Luca plana e a concentração
buracos negros com mais estrelas. estalactites Ridolfi, da Universidade de minerais varia
podem ajudar a
suavemente de cima
contar a história
das chuvas para baixo, diminuindo
à medida que a água
desliza. Segundo eles,
em qualquer ponto sobre
a superfície da rocha
a taxa de deposição
depende principalmente
da concentração local
de solutos. Os vales e as
montanhas apareceram
de acordo com a
variação da taxa de
deposição de minerais.
Os pesquisadores
italianos acreditam
que as equações que
apresentaram, prevendo
a formação das
irregularidades das
estalactites, podem
ajudar a reconstruir
os padrões de chuva de
3 milhares de anos atrás.

PESQUISA FAPESP 197 | 19


capa

Muito além
das patentes

N
Escritórios de transferência de os últimos seis anos, a Universidade
Harvard conseguiu melhorar seus
tecnologia de grandes universidades indicadores relacionados à transfe-
rência de tecnologia, que represen-
ampliam seu papel e estreitam tavam um ponto opaco no desem-
a cooperação com empresas penho da líder de vários rankings internacionais
de instituições de ensino superior. O número de
invention disclosures, documentos com a des-
Fabrício Marques crição de resultados de pesquisas para avaliar a
possibilidade de sua proteção por meio de direi-
tos de propriedade intelectual, aumentou de 180,
no ano de 2006, para 351, em 2011. No mesmo
período, o número de patentes obtidas no escri-
tório de marcas e patentes dos Estados Unidos
(Uspto, na sigla em inglês) subiu de 35 para 60,
enquanto o de tecnologias licenciadas cresceu de
11 para 45. O combustível dessa mudança foi uma
reforma na estrutura e nas práticas do Escritó-
rio de Desenvolvimento Tecnológico (OTD) de
Harvard, voltada para multiplicar a coo­peração
entre a universidade e o setor privado. Não por
acaso, subiu de 12 para 75 o número de acordos
entre Harvard e empresas envolvendo a chama-
da pesquisa patrocinada, modalidade em que
companhias financiam o trabalho realizado em
um laboratório da universidade muitas vezes em
troca de privilégio no licenciamento de desco-
bertas resultantes. O montante investido nesses
acordos chegou a US$ 37,2 milhões em 2011, qua-
tro vezes mais do que o total de 2006. Entre as
empresas que celebraram parcerias estratégicas

20 | julho DE 2012
recentes com Harvard destaca-se, por exemplo, a A mudança em Harvard foi liderada por Isaac
Novartis, para desenvolver fármacos a partir de Kohlberg, desde 2005 o chefe do OTD. Depois de
células-tronco junto com Lee Rubin, do Instituto trabalhar na Universidade de Tel-Aviv, em Israel,
de Células-Tronco de Harvard. onde fundou uma empresa com fins lucrativos
O movimento feito por Harvard é exemplar de para comercializar as patentes de pesquisado-
um fenômeno que se esboça nos escritórios de res, Kohlberg ajudou nos anos 1990 a New York
transferência de tecnologia de universidades – University a construir um ativo escritório de li-
e não apenas naquelas de classe mundial. Além cenciamento de patentes. Em Harvard, fundiu
das tarefas rotineiras, que consistem em iden- dois escritórios existentes, ampliou o número de
tificar descobertas com potencial econômico e funcionários de 12 para 35 e renomeou os anti-
protegê-las por meio de patentes, estes escritó- gos agentes de licenciamento de tecnologia co-
ilustrações desenhos técnicos de patentes registradas pelo MIT, Harvard e stanford  imagens google patents

inovação
rios abraçam várias outras atividades, como fo- mo “diretores de desenvolvimento de negócios”.
mentar colaborações de pesquisa de longo prazo Um dos destaques de sua gestão foi a criação
entre empresas e laboratórios, auxiliar na cria- do Fundo Acelerador de Desenvolvimento Tec-
ção de empresas baseadas em tecnologias nas- nológico, com recursos de doadores privados,
centes, arregimentar investidores privados para com a vocação de catalisar o desenvolvimento
financiá-las, oferecer a consultoria de pesquisa- de tecnologias ainda em estágio embrionário e
dores para a indústria e estimular o empreen­ facilitar o caminho para o licenciamento e a co-
dedorismo já entre os estudantes de graduação. mercialização. O fundo fornece aos cientistas de
“A experiên­cia mostra que é possível alcançar Harvard os recursos necessários para conduzir
resultados altamente positivos quando empresas pesquisas naquela fase posterior à descoberta e
e universidades, a despeito de suas diferenças anterior à comercialização, como experimentos
culturais, comprometem-se com parcerias em para gerar provas de conceito, modelos práticos
que ambos os lados saem ganhando”, diz Todd capazes de testar descobertas. “Provas de con-
Sherer, presidente da Associação de Gestores de ceito ampliam bastante a possibilidade de atrair a
Tecnologia das Universidades (AUTM), entida- indústria para o licenciamento de uma tecnologia
de que congrega 3,5 mil profissionais vinculados promissora”, disse Curtis Keith, diretor científico
a 350 universidades, instituições e hospitais de do fundo. Profissionais da indústria participam
pesquisa em vários países e lhes oferece treina- do processo de tomada de decisões do fundo,
mento e apoio sobre mecanismos de transferên- que já investiu US$ 5,2 milhões em 33 projetos.
cia de tecnologia. Doze deles resultaram em colaborações de pes-

PESQUISA FAPESP 197 | 21


2

quisa com a indústria e licenças de transferên- de Berkeley, que pesquisa tecnologias para au-
cia de tecnologia, que atraíram mais de US$ 10 mentar a qualidade ambiental e a eficiência no
milhões em parcerias para a universidade. Uma uso de energia em construções. Mais de 40 em-
pesquisa do professor de Harvard Tobias Ritter presas de engenharia e arquitetura afiliaram-se
sobre a adição de flúor em medicamentos para ao centro. Com isso, conquistaram o direito de
1 torná-las mais estáveis, potentes e capazes de influenciar a escolha de linhas de pesquisa de
Pesquisa sobre células- penetrar no cérebro foi apoiada parcialmente curto e de longo prazo que sejam de seu interesse,
-tronco da multinacional pelo fundo acelerador. O projeto deu origem a além de ter acesso a dados e pesquisas. Já o cen-
Novartis e o prédio da
uma empresa de Boston, SciFluor Life Sciences. tro de pesquisa Impact, voltado para ciência da
Harvard Medical School:
computação e modelagem, oferece às empresas

A
colaboração em busca
de novos medicamentos Universidade da Califórnia, em Berkeley, associadas o trabalho de recém-formados “com
criou seu Escritório de Licenciamento de formação multidisciplinar e habilidades reque-
Tecnologia em 1990, influenciada pela Lei ridas pela indústria” e prioridades em contratos
Bayh-Dole, de 1980, que assegurou às institui- de licenciamento de propriedade intelectual.
ções de pesquisa norte-americanas o direito de O modelo da Universidade de Oxford, no Reino
patentear descobertas feitas com investimentos Unido, tem duas peculiaridades: criou uma em-
federais em pesquisa e licenciá-las para empresas. presa para tratar do assunto e oferece sua experti-
Nos primeiros tempos, a estrutura do escritório se para universidades e empresas de vários países
separava o trabalho da proteção da propriedade na forma de serviços e aconselhamento. Oxford
intelectual e a missão de busca de parceiros pri- aplicou na empresa, batizada de Isis Innovation,
vados para a pesquisa na instituição. Em 2004 £ 2,5 milhões no ano passado. O retorno desse
foram unificados o escritório de projetos pa- investimento chegou a £ 4 bilhões, na forma de
trocinados e o de licenciamento de tecnologia, royalties e venda de participação em empresas.
dando origem ao Ipira, sigla para Escritório de A empresa de Oxford atua em três frentes. Uma
Propriedade Intelectual e Alianças de Pesquisa delas é a comercialização da propriedade intelec-

US$37,2
com a Indústria. Segundo Michael Cohen, espe- tual gerada pela universidade. Em média, a Isis
cialista em licenciamento e empresas start-ups registra uma patente por semana. Atualmente

milhões
do Ipira, o escritório hoje se preocupa não ape- gerencia cerca de 400 patentes e um portfólio de
nas em dar apoio a pesquisadores, como também 200 licenças de comercialização de tecnologias.
em estabelecer relações de múltiplas faces com “As ideias saem da cabeça dos pesquisadores e a
foram obtidos as empresas no longo prazo. Em 2009, Berkeley transferência de tecnologia não existe sem eles”,
por Harvard firmou 97 acordos de pesquisa patrocinada com diz Tom Hockaday, diretor da Isis Innovation.
o setor privado, 25% mais do que em 2008. O “Nosso papel é ajudá-los e também lembrar a
em projetos Ipira busca aproximar empresas de todo tipo aos universidade dos benefícios que ela pode trazer
13 centros de pesquisa de Berkeley que criaram à sociedade”. Uma segunda frente consiste em
com empresas
programas de interação com o setor privado. Um oferecer consultoria de pesquisadores de Oxford
em 2011 exemplo é o Center for the Built Environment a empresas e órgãos públicos. E a terceira fren-

22 | julho DE 2012
te dedica-se a ajudar instituições de 30 países ateresse, naturalmente, é de mão dupla. Para as
comercializarem suas invenções. Recentemente empresas, as parcerias com as universidades
firmou acordos com instituições de pesquisa da são uma forma de partilhar custos em pesquisa
Rússia e abriu um escritório no parque científicoe desenvolvimento em tempos de crise – o que
de Madri, para ajudar suas empresas a comercia- tem sido uma necessidade principalmente pa-
lizarem tecnologias. ra as indústrias farmacêuticas, carentes de lan-
Um fator extra a impulsionar a transferência çamentos de fármacos inovadores. De acordo
de tecnologia e as parcerias com a indústria é com o estudo da AUTM feito com universidades
a crise de financiamento pela qual passam as afiliadas, a pesquisa patrocinada por empresas
manteve-se estável entre 2009 e
2010, com investimentos na casa
dos US$ 4 bilhões, enquanto os
fundos federais subiram de US$
Crise de financiamento à pesquisa 33 bilhões para US$ 39 bilhões.
No Brasil, a missão de bus-
deu novo impulso à transferência car parcerias estratégicas com
empresas ainda é incipiente. A
de tecnologia nos Estados Unidos Agência de Inovação da Univer-
sidade de São Paulo (USP) só re-
centemente começou a criar ini-
ciativas concretas para desen-
volver colaborações. “Estamos
universidades de pesquisa, que viram diminuir procurando setores da economia carentes de
investimentos de governos e doações de empre- inovação e propondo parcerias orgânicas”, diz
sários desde 2008, ano que marcou o início de um Vanderlei Salvador Bagnato, diretor da agên-
período de retração econômica mundial. “Nossa cia. Em dezembro de 2011, a agência lançou um
preocupação principal em relação à crise econô- programa em conjunto com a Associação Brasi-
mica é seu impacto no financiamento federal à leira das Indústrias Têxteis (Abit) para estimu-
pesquisa”, diz Todd Sherer, da AUTM. “O nível lar colaborações entre pesquisadores da USP e
de investimento federal determina o ritmo das empresas. “Nossa indústria têxtil vem perdendo
invenções nas universidades, hospitais e insti- competitividade”, afirma Bagnato. “A pesquisa da
tuições de pesquisa. Se o número de invenções USP pode ajudar as empresas de várias formas a
cresce, avançam também as patentes, os licencia- enfrentar a concorrência”, afirma. A agência já
mentos, as start-ups e os empregos.” Segundo es- mira outros setores para interagir nos próximos
tudo da AUTM, seus afiliados registraram cifras anos, como o da indústria eletromecânica e de cos-
da ordem de US$ 2,4 bilhões com licenciamento méticos. Segundo Bagnato, uma dificuldade para
de tecnologia no ano fiscal de 2010. O montante as agências de inovação do país consiste em en-
é 3% superior ao de 2009, mas 30% abaixo dos contrar a clientela para suas tecnologias. “Temos
US$ 3,4 bilhões contabilizados em 2008. O in- de ir atrás dos clientes e mostrar como podemos
fotos  1 novartis ag  2 see-ming lee / wikicommons  3 carlos fioravanti

Universidade de Oxford, no
Reino Unido: uma empresa
comercializa a propriedade
intelectual, oferece mão
de obra de consultores e treina
instituições de outros países 3

PESQUISA FAPESP 197 | 23


A clientela dos
escritórios de
transferência
de tecnologia
brasileiros
ainda está
em formação

2
ajudá-los. Somos uma universidade pública que Peixe-robô (acima),
tem entre suas missões transformar o conheci- luvas que podem
substituir mouses e
mento em bem-estar para a sociedade”, afirma. avião que consome
Outra preocupação da agência da USP é azeitar menos combustível
os convênios entre universidades e empresas. (dir.): exemplos de
“Temos pelo menos duas centenas de projetos pesquisas do MIT que
geram novas empresas
desse tipo na universidade e conseguimos avan- e criam novos padrões
çar no combate à burocracia. Por determinação para a indústria
da reitoria, o trâmite de uma parceria, depois que
a empresa demonstra interesse prático em fazer
um convênio com a USP, não pode demorar mais
do que 30 dias”, diz Bagnato.
No caso da Agência de Inovação da Univer-
sidade Estadual Paulista (Unesp), o trabalho de de natureza burocrática”, afirma. Na esperança de
aproximação com empresas tem se baseado em ampliar a interação, a agência da Unesp planeja
rodadas de interações tecnológicas, encontros lançar um cadastro de pesquisadores reconhecidos
entre pesquisadores da instituição e representan- pela agência por sua vocação para celebrar par-
tes de empresas com as quais poderiam colaborar. cerias com indústrias. “Nossa expectativa é que
“Mesmo não suscitando colaborações imediatas, muitos pesquisadores não citados tomem a inicia-
essas rodadas são importantes para mostrar para tiva de se cadastrar”, afirma Vanderlan. Criada em
as empresas como poderíamos ajudá-las e mostrar 2007 e regulamentada em 2009, a Agência Unesp
para os pesquisadores como podem interagir com de Inovação registrou nos últimos dois anos 133
o setor privado”, diz Vanderlan Bolzani, diretora patentes, 53 contratos de inovação com empresas
da agência. Entre as companhias que participaram e 2 licenciamentos de tecnologia, um deles para
dessas rodadas, iniciadas em 2009, destacam-se a uma empresa norte-americana.
Natura, a Whirlpool, a Cristália, a AstraZeneca, a A ideia de associar o trabalho de proteção de
Biolab, a Sabesp e a Sadia. As universidades brasi- propriedade intelectual com a prospecção de par-
leiras têm se notabilizado pela produção científica, cerias com empresas não chega a ser uma novida-
diz Vanderlan, mas ainda persistem dificuldades de no Brasil, observa Roberto de Alencar Lotufo,
em aplicar este conhecimento em projetos de in- diretor da Agência de Inovação Inova Unicamp,
teresse do setor industrial e também em atrair as da Universidade Estadual de Campinas. “A nossa
empresas para investimentos em pesquisa funda- agência foi criada em 2003 já reunindo estas três
mental que possa resultar num desenvolvimento atividades que em muitas universidades aconte-
mais tardio. “Embora a Lei de Inovação tenha cem em órgãos separados”, diz Lotufo, que par-
sido implantada para agilizar as parcerias entre ticipa da Associação de Gestores de Tecnologia
univesidades e empresas, ainda há dificuldades das Universidades (AUTM). A grande diferença

24 | julho DE 2012
constituem atores imprescindíveis do ecossistema
fotos  1 patrick gilooly / mit  2 jason dorfman / csail  3 mit / aurora flight sciences

de inovação da região, trazendo oportunidades,


orientação e financiamento no apoio na criação
de empresas start-ups”, diz Lotufo. A FAPESP
mantém desde 2000 o Programa de Apoio à Pro-
priedade Intelectual (Papi), criado para estimular
a proteção da propriedade intelectual e o licen-
ciamento de direitos sobre os resultados de pes-
quisas financiados pela Fundação. O programa
apoia pesquisadores e instituições, e também é
voltado para o aprimoramento dos Núcleos de
Inovação Tecnológica (NIT) das universidades
e instituições de pesquisa paulistas.

A
lgumas instituições foram pioneiras na
criação das novas estratégias para transfe-
rência de tecnologia. A Universidade Stan-
ford é uma delas. Incrustada no Vale do Silício,
berço de empresas inovadoras desde a década de
1950, Stanford foi especialmente feliz na criação
do que se convencionou chamar de um “ecossis-
3 tema de inovação”. No ano fiscal que terminou
em agosto de 2011 obteve uma receita de royalties
de US$ 66,8 milhões – 98% desse montante veio
de tecnologias licenciadas há vários anos. As 501
invenções apresentadas ao escritório, 60% em
Em 1970, o programa-piloto ciências físicas e 40% em ciências da vida, resul-
taram em 101 licenciamentos. Ao final de 2011,
de Stanford substituiu advogados Stanford tinha participação em 109 empresas
oriundas de tecnologias criadas na instituição. A
por funcionários encarregados venda da participação em cinco empresas no ano
de comercializar as invenções fiscal rendeu US$ 2,4 milhões. Seu Escritório de
Licenciamento de Tecnologias (OTL) concluiu
1.100 acordos com instituições com e sem fins
lucrativos em 2011. Desses, 120 são contratos de
pesquisa patrocinada por empresas. Um fundo
entre o Brasil e os Estados Unidos, observa Lo- de capital semente do OTL oferece quantias de
tufo, diz respeito à capacidade e experiência em cerca de US$ 25 mil para patrocinar protótipos e
inovação, tanto do meio empresarial como aca- experimentos em tecnologias não licenciadas. Oi-
dêmico. “No Brasil, ainda são poucas as empresas tenta e sete projetos já usaram esse financiamento.
que investem em pesquisa e desenvolvimento. Já Stanford criou em 1970 um escritório de pa-
nos Estados Unidos o foco em inovação das em- tentes que se tornaria referência para as demais
presas é muito maior que aqui e uma boa parce- instituições. Seu criador foi o engenheiro Niels
la da comunidade acadêmica lá está engajada na J. Reimers, contratado em 1968 para ampliar o

405
inovação tecnológica. Isso faz muita diferença”, apoio de empresas e do governo a projetos da
afirma. Entre 1980 e 2005, a Unicamp foi a vice- instituição. Ele constatou que existia interesse
-líder no país em patentes, com 405 depósitos comercial em muitas das invenções apresentadas
no Instituto Nacional de Propriedade Industrial pelos pesquisadores de Stanford. Mas, embora a
depósitos de universidade mantivesse parcerias com empresas
(INPI). Só perdeu para a Petrobras, com 804 de-
patentes foram pósitos. Entre 2000 e 2011, celebrou 53 contra- desde a década de 1950, o retorno obtido por li-
tos de licenciamento de tecnologia, sendo 10 só cenciamento nos 15 anos anteriores era pífio. Ele
obtidos pela foi conhecer os modelos de outras instituições,
no ano passado, tendo gerado R$ 2 milhões em
Unicamp entre royalties desde 2005. Ajudou a fechar mais de 300 como os escritórios das universidades da Cali-
projetos colaborativos com empresas, no total de fórnia e do Massachusetts Institute of Techno-
1980 e 2005. logy (MIT), e observou que não serviam a seus
R$ 65 milhões. Também mantém uma rede de re-
Só a Petrobras lacionamentos, denominada Unicamp Ventures, propósitos: eles abrigavam advogados especial-
composta por empresários, na maioria ex-alunos, mente interessados em proteger as invenções,
superou a paten­teando-as, para só depois pensar em levá-
fundadores de mais de 220 empresas com víncu-
marca lo com a universidade. “Esses empreen­dedores -las para a sociedade. Propôs um programa-pi-

PESQUISA FAPESP 197 | 25


Sede do Google (esq.)
e formandos em Stanford
em 2012 (abaixo):
ambiente empreendedor
ajuda a criar start-ups.
Universidade da Califórnia,
Berkeley (dir.): fusão dos
escritórios de patentes
1 e de pesquisa patrocinada

loto que criava um escritório com funcionários


encarregados de comercializar as invenções e
com autonomia para trabalhar, terceirizando a
atividade dos advogados e oferecendo algumas
vantagens para os inventores. Quando o programa
foi avaliado em seu primeiro aniversário, havia
produzido uma renda de US$ 55 mil – mais de 10
vezes o valor recebido em 15 anos de licenciamen-
to. Em 1974, Reimers leu no jornal The New York
Times o anúncio de uma técnica chamada gene
splicing, criada pelos professores Stanley Cohen,
de Stanford, e Herbert Boyer, da Universidade da
Califórnia. Em 1981 ofereceu licenças para uso
da tecnologia. Setenta e três empresas se habili-
taram. Até 1997, quando as patentes expiraram,
rendiam a Stanford US$ 30 milhões por ano.

A
2

experiência influenciou a filosofia do


escritório de Stanford, que se esmera embora o ano de 2011, por conta da crise, tenha
numa estratégia conhecida como home sido fraco: 8 empresas foram formadas, ante 10
run, referência à jogada mais cobiçada do bei- em 2010, 9 em 2009 e 14 em 2008.
sebol. “Estamos mais interessados em patentes Stanford ganha mais em royalties do que em
de conceito amplo do que de interesse restrito”, participação em jovens empresas. Mas a decisão
escreve Katherine Ku, diretora do escritório de de estimular a criação de start-ups é estratégi-
Stanford, num artigo recente. Tentar adivinhar ca para amplificar a transferência de tecnologia
qual será a tecnologia mais apropriada para li- para a sociedade. “Entre as grandes empresas,
cenciamento é tarefa de resultado sempre in- muitas estão satisfeitas com o próprio esforço de
certo. Stanford produz uma invention disclosure pesquisa e desenvolvimento. A maioria de nossa
fotos  1 noah hutton  2 stanford university  3 wikicommons

para cada US$ 2,5 milhões de financiamento da atividade de licenciamento é com as pequenas
pesquisa. Só 32 das 600 tecnologias atualmen- empresas, que não podem se dar ao luxo de gas-
te licenciadas geraram mais de US$ 100 mil em tar muito dinheiro em P&D”, disse Katherine Ku.
royalties. E apenas seis geraram mais de US$ 1 Para outra instituição com grande tradição em
milhão. Para cada caso de sucesso como o Goo- transferência de tecnologia, o MIT, um ponto de
gle (que rendeu a Stanford mais de US$ 300 inflexão remonta ao ano de 1986, quando Lita Nel-
milhões), há um punhado de tecnologias que sen, engenheira química formada na instituição
acabam custando mais do que o investimen- 20 anos antes, assumiu o comando do Escritório
to feito nelas. Um ponto forte de Stanford é a de Licenciamento de Tecnologias (TLO) e mudou
criação de start-ups, empresas desenvolvidas a seus métodos. Antes do TLO, Lita havia atuado em
partir da propriedade intelectual da instituição – empresas de biotecnologia. Sua primeira medida

26 | julho DE 2012
O
modelo do MIT é diferente do de Stanford
e adota a chamada “estratégia de volume”.
Como lida com tecnologias das ciências
físicas, o MIT acredita que é melhor negociar
muitos contratos do que se ater apenas a con-
tratos com as melhores ofertas, a fim de garantir
a transferência para a sociedade. Segundo Lita
Nelsen, a estratégia de volume maximiza tanto
a participação de estudantes e pesquisadores no
processo de transferência tecnológica quanto
a possibilidade de conseguir um home run que
rendeu US$ 3 milhões e 120 divulgações da in-
venção. Em 2010 foram 100 licenciamentos, que
renderam US$ 75 milhões, e 600 divulgações de
invenção por ano. Segundo Lita, o objetivo é fazer
as tecnologias chegarem à sociedade. “Gerar re-
ceita é o resultado disso, não a razão principal”,
sempre repete. Cerca de 300 empresas já foram
3 geradas a partir de tecnologias criadas pelo MIT
desde 1984 – e 80% sobreviveram. Um exemplo
foi excluir os advogados, recente é a 3Gear Systems, que desenvolve apli-
terceirizando seu trabalho. cações para uma luva colorida e um sistema de
Aposta na criação A equipe hoje dispõe de algoritmos que se propõe a substituir o mouse.
34 funcionários, entre os Mais de 700 empresas estão financeiramente
de pequenas quais 10 gerentes e 8 asses- comprometidas com o MIT, seja na participação
empresas é sores de transferência de de consórcios, nos quais as indústrias bancam
tecnologia. Para atuar co- pesquisas sobre um tema específico, ou no cha-
estratégica para mo gerente no TLO é pre- mado investimento de portfólio, em que as finan-
ciso ter formação científi- ciam um conjunto de projetos como parte de um
garantir que ca e experiência de pelo engajamento amplo. Também é comum que em-
menos 10 anos na indús- presas invistam em assuntos que estão longe de
novas tecnologias tria. A brasileira Ana Lo- chegar ao mercado. A companhia Schlumberger,
chegarão pes, 30 anos, que atuou por que oferece tecnologias e serviços em exploração
quatro anos como assesso- de petróleo e gás, patrocinou a pesquisa do robô-
ao mercado ra de transferência de tec- -peixe do MIT, criado para ajudar na inspeção
nologia, sabia que dificil- da exploração submarina. Um modelo conceitual
mente se tornaria gerente, de avião desenvolvido em parceria com a Nasa
a escala seguinte na hie- promete voar com apenas 30% do combustível
rarquia. “Me formei em astronomia e me interes- usado atualmente por um avião de grande porte.
sei por trabalhar com transferência de tecnolo­ O Laboratório de Mídia do MIT reúne empresas
­gia. Mas me faltava a experiência na indústria”, e acadêmicos para a pesquisa interdisciplinar em
diz. Ela deixou o TLO em 2011 para trabalhar na tecnologias de mídia digital – e compartilha os
E-Ink, uma empresa spin-off do MIT, que fabrica resultados com todos os membros associados.
papel digital flexível. Consórcios do MIT já desempenharam papel-
O TLO cuida do relacionamento com a indús- -chave na definição de padrões da indústria, co-

300
tria no que se refere a licenciamentos. Há outras mo os produzidos pelo World Wide Web Con-
estruturas para tratar da cooperação com o setor sortium (W3C), que gerou novos protocolos para
industrial, como o Escritório de Programas Pa- serviços da web, em busca de uma versão mais
trocinados (OSP) e o Programa de Ligação Indus- colaborativa da web. Para Todd Sherer, da AUTM,
empresas trial (ILP). O ecossistema inovador é alimenta- a expe­riência das universidades de classe mun-
dial pode inspirar mudanças em outros países.
foram geradas do por uma série de outras iniciativas. O Centro
Deshpande para Inovação Tecnológica, criado Segundo ele, a AUTM tem um intercâmbio para
a partir de em 2002, financia pesquisas em estágio inicial, ajudar a construir conhecimento e capacidade
com potencial de transferência, e oferece aos em- de transferir tecnologia junto a países parceiros.
tecnologias preendedores aconselhamento de especialistas “De todo modo, é preciso reconhecer que cada
do MIT desde da indústria. Uma competição organizada pelos país tem necessidades e oportunidades diferen-
tes, e que frequentemente demora um bocado de
1984 – e 80% estudantes oferece US$ 100 mil para o melhor
plano de negócios. Clubes de empreendedorismo tempo para ver os benefícios da transferência de
sobreviveram se espalham em todas as unidades da instituição. tecnologia”, afirma. n

PESQUISA FAPESP 197 | 27


28 | julho DE 2012
entrevista  eduardo moacyr krieger

O mestre da hipertensão
Fisiologista criou no InCor o mais importante grupo
nacional de pesquisa integrada de pressão arterial

Mariluce Moura e Ricardo Zorzetto

U
m dos planos que estava na cabeça há que se destacar o trabalho, por 14 anos, como
do jovem gaúcho Eduardo Moacyr presidente da Academia Brasileira de Ciências
Krieger, quando se formou médico (ABC), função em que buscou incansavelmente
em Porto Alegre, em 1953, era se tor­ melhorar o posicionamento da ciência e da comu­
nar cardiologista e trabalhar na Fa­ nidade científica do país na cena internacional.
culdade de Medicina. Mas logo ele seria desviado Pai de dois cientistas respeitados, José Eduar­
para sempre desse caminho, por influência deci­ do Krieger e Marta Helena Krieger, e avô de três
siva de dois eminentes argentinos, os fisiologistas netos, casado com dona Lorena há 55 anos, o pro­
Bernardo Houssay, Prêmio Nobel de Fisiologia e fessor Eduardo Moacyr Krieger, vice-presidente
Medicina de 1947, e Eduardo Braun Menéndez, da FAPESP desde 2010, enquanto finaliza mais
responsável pela descoberta da angiotensina, em um projeto temático que coordena, encara neste
1940. Nesse caso, em vez de reclamar dos vizi­ momento um novo desafio: organizar a disciplina
nhos como de hábito, só cabe aos brasileiros lhes e um grupo de medicina translacional no InCor.
agradecer, porque quem mais ganhou com essa A seguir, os principais trechos da entrevista que
mudança de rota foi o campo da fisiologia cardio­ ele concedeu a Pesquisa FAPESP.
vascular no país e, especialmente, a pesquisa da
hipertensão. O professor Krieger, 84 anos, para Vamos começar pela linha de pesquisa a que o se­
além de suas seminais contribuições diretas ao nhor mais tem se dedicado, os mecanismos de re­
conhecimento dos mecanismos de controle da gulação da pressão arterial. Como isso teve início?
pressão arterial, foi o criador, ainda nos anos 1950, Eu comecei, na realidade, quando iniciei minha
de um importante grupo de pesquisa na Faculdade carreira científica. Recém-formado em Porto Ale­
de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), gre, na Faculdade de Medicina, encontrei o grupo
em Ribeirão Preto, e adiante, em 1985, criador do de fisiologistas argentinos liderado pelo professor
mais respeitado grupo de pesquisa integrada em Bernardo Houssay, Prêmio Nobel de Fisiologia e
hipertensão do país, com considerável inserção Medicina de 1947. E entre os discípulos dele esta­
internacional, o do Instituto do Coração (InCor) va Eduardo Braun Menéndez, que, em 1940, havia
do Hospital das Clínicas da USP, em São Paulo. descoberto a angiotensina, uma das substâncias
Krieger, um dos nove filhos de um comerciante importantes na regulação da pressão arterial. Eu
de origem alemã radicado no pequeno município queria fazer carreira universitária e, em 1954, esse
de Cerro Largo, perto da fronteira do Rio Grande grupo veio a Porto Alegre num programa da Capes
do Sul com a Argentina, e o único destinado pela [Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de
família a cursar faculdade, em paralelo às suas Nível Superior]. Eles vinham em rodízio, ficavam
atividades de professor e pesquisador, manteve um mês. O próprio Bernardo Houssay passou me­
sempre um certo gosto pela política acadêmica. ses em Porto Alegre. Como eu tinha interesse em
léo ramos

E nesse lado do seu currículo, entre vários outros, cardiologia, trabalhei nesta oportunidade com

PESQUISA FAPESP 197 | 29


Braun Menéndez. Depois fui a Buenos prio criador. Foi muito bom, fiquei um ano reflexos, cujo campo eu conhecia bem,
Aires, fiquei lá sete ou oito meses, traba­ e pouco e fiz um treinamento em fisiologia descobri que no rato o nervo que con­
lhando no sistema renina-angiotensina. e farmacologia cardiovascular fantástico. trola e dá informação sobre a pressão
Lá recebi um convite para ir a Ribeirão arterial, que chamamos de barorreceptor
No laboratório de quem? Preto, porque a universidade estava se or­ ou pressorreceptor, era isolado na re­
Do professor Bernardo Houssay, que es­ ganizando, procurando pessoas eminentes gião cervical. Isso era uma novidade. Caí
tava havia quase 10 anos fora da univer­ do exterior e queria alguém do grupo de nesse nervo isolado e resolvi fazer um
sidade. Devido a manifestações contra a Bernardo Houssay. A universidade encon­ estudo sistemático das vias de tráfego
ditadura militar, o grupo foi expulso da trou Miguel Covian, na Argentina. Ele veio de pressorreceptores no rato. Com isso,
Faculdade de Medicina em 1943. Houssay, para Ribeirão e me convidou para formar consegui uma desnervação completa do
que era um patriota, sempre dizia que a o grupo cardiovascular. Tomei a decisão sistema, um modelo usado até hoje. É o
ciência não tem pátria, mas o pesquisador nos Estados Unidos de, em vez de voltar meu trabalho com mais citações, umas
tem e, mesmo prêmio Nobel, ele nunca a Porto Alegre, ir para Ribeirão. Eu não 600. Foi publicado em 1964 na Circula-
quis sair da Argentina. Trabalhava lá em conhecia, mas sabia que era da USP e is­ tion Research, uma revista bastante im­
condições precárias, numa casa adaptada so era uma boa informação. Sabia que era portante. É um trabalho importante que
da família de Braun Menéndez, que tinha uma universidade que estava recebendo nasce de uma observação casual. Eu não
muito dinheiro. Cada quarto se tornara um auxílio maciço da Rockefeller para se estava procurando aquilo. Mas, tendo
um laboratório. A casa ficava na rua Costa dedicar à ciência. Cheguei a Ribeirão Pre­ encontrado, resolvi fazer um estudo sis­
Rica, num bairro bastante distante [Pa­ to em 1957. Estava se formando a primeira temático. Saíram vários trabalhos: como
lermo]. O pessoal da faculda­ trafegam esses nervos, suas
de de medicina não conhecia características nos ratos pa­
mais o Bernardo Houssay, e ra regular a pressão arterial.
toda semana chegavam a seu
laboratório grandes pesquisa­ O senhor lembra o dia da
dores do mundo inteiro. Era descoberta?
um ambiente fantástico. Ao Lembro. Era final dos anos
lado da casa maior tinha uma 1950, começo dos 1960. Não
tínhamos ainda alunos de
Iniciei minha carreira
casinha que alcançávamos
passando por uma cancela pós-graduação (o que acon­
do jardim. Ali era o laborató­ teceria apenas a partir de
rio de bioquímica de Luis Le­
loir, prêmio Nobel de Química
com Eduardo Braun 1970), mas tinha um grupo
que vinha sempre de Buenos
Aires para Ribeirão Preto nas
Menéndez, discípulo
em 1970. Esse era o ambiente,
cheio de prêmios Nobel pre­ férias e cada laboratório mos­
sentes e futuros, ao qual eu trava o que estava fazendo.
chegara pensando só em fazer
um estágio, voltar ao Brasil e
do Prêmio Nobel Ao fazer umas demonstra­
ções para eles, percebi que,
ao estimular a parte central
Bernardo Houssay
fazer cardiologia. Mas tudo
isso me despertou a atenção do nervo vago, às vezes obti­
para a pesquisa básica e fui nha aumento e, às vezes, que­
em seguida aos Estados Uni­ da de pressão. Achei aquilo
dos completar minha formação científica. turma, que começara em 1952, e encontrei estranho e num dia disse a eles que na
Estive na Universidade da Geórgia, no sul um ambiente notável, cativante, uma se­ demonstração procuraria saber se o que
dos Estados Unidos, lugar que Bernardo gunda faculdade de medicina da USP, mas estava achando era verdade, ou seja, que
Houssay me indicou porque, segundo ele, toda voltada à pesquisa. o curare administrado ao animal estava
os melhores fisiologistas cardiovasculares provocando a inversão da resposta. En­
estavam lá. Eu ia com bolsa da Fundação Básica? tão, demos o curare, estimulamos o vago,
Rockefeller, que disse que eu tinha de ir E clínica. Ribeirão Preto foi a pioneira e não aconteceu absolutamente nada. Aí
para uma universidade na costa leste ou em dedicação exclusiva na área clínica observei com uma lupa maior e verifiquei
na costa oeste. Mas Houssay disse: “A da no Brasil. Comecei a fazer pesquisas em que não era um nervo só, mas dois. Ao la­
Geórgia pode não ser a melhor universi­ regulação da pressão em hipotermia até do do vago, um nervo maior que facilmen­
dade, mas ela tem o melhor pesquisador que viesse um equipamento dos Estados te podemos isolar e estimular na parte
cardiovascular”. Unidos. Eu precisava fazer reflexos pa­ central, vi que tinha um outro nervinho,
ra examinar como o sistema nervoso e o simpático, que na maioria das espécies
E quem era ele? a regulação da pressão funcionavam a não se separa, mas no rato estava separa­
Era William Hamilton. Junto com ele ti­ temperaturas cada vez menores. Tinha do. Então estimulei os dois e um dava só
nha Raymond Ahlquist, que descobriu os que estimular o sistema de várias formas, queda de pressão e o outro, só aumento.
alfa e beta adrenorreceptores. Então eu reflexa, central ou periférica. Foi muito Então descobri que no rato é possível ter
aprendi todos os receptores com seu pró­ interessante, porque nessa pesquisa de isolado o simpático do nervo vago e que

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o simpático continha as fibras pressorre­ hipertensão, todos sabem disso. O pro­ seis horas. O que eu buscava com isso era
ceptoras aórticas. E isso era uma beleza! blema era saber como isso ocorre. Ha­ entender como se comporta o principal
via um trabalho no cão segundo o qual a mecanismo reflexo de controle nas di­
Sua conclusão foi: “Acabo de descobrir adaptação começava quatro ou cinco dias ferentes elevações e quedas de pressão.
algo que ninguém sabia”. depois do aumento da pressão arterial. Ele se adapta? Como? E eu iria mostrar
Fiz um estudo sistemático, publiquei vá­ Com o rato, um modelo em que se pode posteriormente que ele se adapta, sua fai­
rios trabalhos sobre como transitavam controlar melhor a pressão, um dos pri­ xa de funcionamento sobe para níveis de
esses nervos, dois ou três deles mostran­ meiros trabalhos que fiz foi a sequência hipertensão, mas sua sensibilidade passa
do as possibilidades de trabalhar com de adaptação dos pressorreceptores na a ser diferente, ele fica menos sensível,
os pressorreceptores do rato. Foi aí que hipertensão. Produzi uma hipertensão como mostramos pela primeira vez na
publiquei o trabalho bem conhecido de súbita por coarctação da aorta [compres­ literatura. Podemos testar a sensibilida­
desnervação dos pressorreceptores. Fi­ são], tratei de mantê-la lá em cima e mos­ de do mecanismo variando agudamente
quei entusiasmado, porque uma das coi­ trei que após seis horas já se verifica uma a pressão e vendo como se comporta a
sas importantes em meu trabalho era pequena adaptação, 30%, e depois de 48 descarga do pressorreceptor que está na
saber como o sistema nervoso se adap­ horas praticamente todos os animais já parede da artéria e que envia informação
ta às hipertensões. E o pressorreceptor estão adaptados. O que é a adaptação? É para o sistema nervoso central. É possí­
está implicado o tempo todo nesse pro­ o deslocamento do limiar de estimulação, vel comparar a curva de descarga de um
cesso. A cada batimento cardíaco, ele deslocando toda a faixa de funcionamen­ animal normal com a de um hipertenso,
descarrega porque a pressão aumenta, to dos pressorreceptores. Mostrei que que é mais inclinada, mais deitada.
distende o vaso e excita os
receptores. Os pressorrecep­ Esse é o seu artigo de 1970?
tores são a principal fonte de Não, o de 1970 mostra a se­
informação para conseguir­ quência da adaptação. De­
mos manter a pressão em pois publiquei muitos arti­
níveis normais. Quando a gos mostrando a reversão.
pressão sobe e as descargas Depois outros mostrando que
aumentam, inibimos o sim­ na hipotensão – muito rara
na clínica – também há adap­
Houssay dizia que
pático para fazer a pressão
diminuir. Igualmente a exci­ tação em cerca de 48 horas
tação dos pressorreceptores e reversão bastante rápida.
estimula o vago para dimi­
nuir a frequência cardíaca e o
a ciência não tem A sensibilidade é outra coisa
e hoje tudo isso voltou a ter
implicação clínica. Porque se
pátria, mas o cientista
débito cardíaco, favorecendo
a normalização da pressão alguém tem uma hipertensão
arterial. É bem conhecido de causa qualquer e o meca­
que na hipertensão crônica
não há bradicardia, mostran­
tem; por isso não quis nismo principal de regulação
está adaptado, mas apresen­
ta sensibilidade menor, ele é
sair da Argentina
do que o reflexo está adapta­
do. Decidi, portanto, estudar menos eficiente em contro­
como esse nervo trabalha nas lar a pressão. A pressão va­
hipertensões. Tinha sido fei­ ria de momento a momento,
ta uma verificação de que quando se im­ uma adaptação completa leva 48 horas quando se dorme, senta, levanta, corre,
planta uma hipertensão, que nesse mo­ – alguns animais um pouquinho mais ou enfim, ela sobe ou desce de acordo com
mento é aguda, esses nervos se adaptam um pouquinho menos. Vamos dizer que, as circunstâncias fisiológicas. Quando se
depois de um tempo. Por isso alguém de cada 10 animais, nove haviam feito tem um sistema de regulação menos efi­
hipertenso não tem uma redução da fre­ uma adaptação completa em 48 horas. ciente, as flutuações são muito maiores.
quência cardíaca, mas isso acontece se Fiz muitos trabalhos a esse respeito e Aí é que vem a explicação: todo hiper­
a pressão sobe de repente, porque há o procurei também mostrar como quando tenso que tem o presso adaptado, com a
reflexo. Em outras palavras, o reflexo se a pressão volta ao normal também nor­ sensibilidade menor, tem uma variabili­
adapta cronicamente. maliza a adaptação. Fazia modelos de dade maior da pressão. E o que significa
hipertensão renal, coisa que já fazíamos isso? Está já provado que não só o nível,
O senhor se referiu a uma bradicardia. havia muito tempo com Braun Menén­ mas também a variabilidade lesa muito
Sim, uma redução da frequência cardía­ dez, colocando um clipe na artéria renal os vasos. E nos últimos anos resolveu-se
ca que é um dos principais indicadores para deixar o rato com a pressão aumen­ retomar algo que no passado não tinha
do funcionamento do pressorreceptor. tada cronicamente e o presso adaptado. funcionado muito bem, que é estimular
Quando se aumenta a estimulação, ele Então eu fazia uma reversão também o pressorreceptor para diminuir o sim­
produz uma bradicardia e uma vasodila­ súbita da hipertensão, retirando o clipe, pático e reduzir a pressão arterial. Com a
tação por diminuição do simpático. Esse e ia ver quanto tempo levava. E eu mos­ melhoria das tecnologias tornou-se pos­
é o reflexo principal e está adaptado na trei que para a reversão precisava-se de sível implantar eletrodos na carótida do

PESQUISA FAPESP 197 | 31


paciente que, aparentemente, não lesam A síntese dos mecanismos pressores e da genética dos últimos anos. Em que
muito o vaso e fazem uma estimulação depressores é feita pelos genes, portanto medida esses avanços ajudaram a di­
mais de campo. E agora já tem vários tra­ a carga genética pode facilitar a produ­ recionar algumas experiências?
balhos na literatura mostrando que em ção de substâncias pressoras ou formar Durante 28 anos, em Ribeirão Preto, com
hipertensões resistentes a estimulação menos substâncias hipotensoras. Através os alunos de pós-graduação – e tinha
do barorreceptor pode ser uma medida da carga genética já temos alguma pre­ muito aluno – as linhas de pesquisa eram
terapêutica. disposição para ser hipertenso ou não. quase todas ligadas ao sistema nervoso
Mas não basta trazer essa predisposição, e a mecanismos de regulação de pressão
Qual o papel do rim na regulação da o problema seguinte é o meio ambiente, arterial. Aí eu vim para São Paulo e con­
pressão arterial? que está o tempo todo suscitando regu­ tinuei essa linha de pesquisa.
Não há mais dúvida de que a hipertensão lação da pressão arterial.
primária é multifatorial. Ela resulta do Quando o senhor veio para São Paulo?
desequilíbrio entre mecanismos pres­ E quando o senhor fala de meio am­ Em 1985 me aposentei em Ribeirão e vim
sores e depressores. Dos primeiros, o biente... para São Paulo, com 56 anos de idade.
mais antigo estudado é o simpático, que É o sal, a inatividade, a obesidade, o es­ Porque fui convidado para desenvolver
controla o calibre dos vasos e o débito tresse e, atualmente, a inflamação. To­ a hipertensão no InCor e de forma inte­
cardíaco. Depois veio o sistema renina­ das essas coisas, de uma forma ou de ou­ grada. Então agora é que começa a parte
-angiotensina. A renina já era conhecida tra, mexem com o sistema de regulação. clínica. Vim continuar minha pesquisa
desde o fim do século retrasado, mas o Então, se você tem um sistema de regula­ experimental, que era o que eu sabia fa­
mecanismo que faz aumen­ zer, tinha o reconhecimento
tar a pressão, a angiotensi­ internacional pelo que eu es­
na, foi descoberto por Braun tava fazendo. Mas eu que­
Menéndez, simultaneamente ria também fazer a pesquisa
com [Irvine] Page nos Esta­ clínica e em Ribeirão Preto
dos Unidos. Isso deu força ao eu trabalhava no Departa­
mecanismo do sistema reni­ mento de Fisiologia só com
na-angiotensina-aldostero­ animais de experimentação.
Aqui tive a oportunidade de
Alguém com o sistema
na. A angiotensina estimula
a glândula adrenal a produ­ desenvolver toda uma linha
zir aldosterona, o que pro­ de pesquisa com o pacien­
voca retenção de sal. Esses
são os dois mecanismos mais
de regulação ruim te. Estudei a regulação da
pressão durante o sono e o
exercício. Procuramos es­
pode ficar sem comer
conhecidos. Já os mecanis­
mos depressores envolvem tudar também a influência
as cininas, como a bradici­ dos reflexos na pressão ar­
nina, descoberta no Institu­
to Biológico, em São Paulo,
sal, deitado na rede, terial, investigando o presso
e o quimiorreceptor, o siste­
ma cardiopulmonar. Desen­
que será hipertenso
por Maurício Oscar da Rocha
e Silva em 1948. Houve um volvemos uma técnica de re­
avanço enorme quando Ro­ gistro do [funcionamento do
bert F. Furchgott, que ganhou sistema nervoso] simpático,
o prêmio Nobel, descobriu há duas dé­ ção muito bom, pode acontecer o que for que se mede com uma agulha colocada
cadas que o endotélio, em vez de apenas que não vai suceder nada com sua pressão. no nervo peroneiro. Conseguimos ver a
proteger o vaso e impedir a coagulação, é Se você tiver um sistema muito ruim, pode atividade basal do simpático e como ele
uma fábrica de produtos hipertensores e ficar sem comer um grama de sal, deitado se comporta nas diferentes circunstân­
hipotensores. Descobriu-se então que o numa rede e vai ficar hipertenso. Esse é o cias. Enfim, montamos uma linha muito
óxido nítrico (NO) é o grande hipotensor estado da arte atual sobre a hipertensão grande. Também estudamos o papel dos
e que tem uma ação tônica. Dentro de essencial, resultado da combinação do pressorreceptores no sono e a partir do
cada sistema que se considerava pressor terreno com o meio ambiente. Não po­ trabalho de um de nossos colaboradores
ou depressor na verdade há elementos demos mexer no terreno, a menos que com o grupo de Geraldo Lorenzo, aqui
pressores e antipressores. Portanto, os futuramente se consiga – e vamos conse­ do InCor, que estuda sono, uma das li­
mecanismos de regulação de pressão são guir – saber a carga genética de cada um. nhas importantes da hipertensão no In­
muito complexos. Mas por que a pessoa Aí se pode até fazer um aconselhamento Cor é a regulação da pressão no sono. A
se torna hipertensa? Com os dados que de casamento a partir dessa carga, no que apneia do sono tem uma ligação muito
temos até agora sabemos o seguinte: pri­ diz respeito à hipertensão. grande com a pressão arterial. Durante
meiro, o sistema de regulação da pressão a apneia, diminui o nível de oxigênio e
arterial está intimamente ligado aos ge­ O senhor já estava no campo da fisio­ aumenta o de gás carbônico. Isso esti­
nes. Recebemos como carga genética os logia, mecanismos de regulação etc., mula os quimiorreceptores, que estão
mecanismos controladores da pressão. quando começaram os muitos avanços localizados na carótida e são sensíveis

32 | julho DE 2012
à tensão dos gases. Quando se para de apresentei na FAPESP nos últimos 10 Santos, patenteou e está desenvolvendo
respirar, os gases se alteram, estimulam­ anos sempre foram temáticos, integrados, com laboratórios brasileiros compostos
-se os quimiorreceptores e a pressão vai em que nós temos a parte experimental com potencial de se tornarem medica­
lá para cima. O efeito desses surtos de­ e a parte da clínica. É isso que eu tenho mentos. E Maria José Campagnole dos
pois de algum tempo deixa consequência feito nos últimos anos. Agora estou pas­ Santos é a outra professora titular. Os dois
permanente. sando para outro campo. Eu consegui, e trabalharam comigo em Ribeirão Preto.
foi isso que eu vim fazer aqui, uma equipe Tem Kleber Franchini, em Campinas, que
A apneia do sono altera a pressão? integrada de profissionais da fisiologia, da também fez doutorado comigo. Ele tem
É muito comum associar-se à hiperten­ clínica, da biologia molecular, educação uma molécula e está procurando fazer a
são. Quando se corrige a apneia, a pres­ física, enfermagem, psicologia, nutrição, inovação com a indústria brasileira. No
são tende a diminuir. todos voltados para estudar hipertensão. grupo de Ribeirão tem dois ou três titu­
lares. Quem lidera a fisiologia cardiovas­
Continuando, essa interação... Essa é a grande equipe de ponta nos es­ cular no Instituto de Ciências Biomédicas
Aí vem a parte clínica. Tínhamos clíni­ tudos da hipertensão no Brasil. da USP é Lisete Michelini, que trabalhou
cos, cardiologistas e pneumologistas. Mas Não tenha dúvida. Conseguimos um dife­ comigo em Ribeirão.
havia também o pes­soal da educação fí­ rencial. Um dos primeiros do grupo que
sica, que é o grupo do Carlos Eduar­do saiu foi para Milão para ver monitorização O senhor tem mais de 200 artigos cien­
Negrão, que começou aqui conosco fa­ de pressão arterial. Outro foi para Paris tíficos. Qual foi o mais importante para
zendo pesquisa em animal de experi­ estudar a propriedade elástica dos vasos o conhecimento da hipertensão?
mentação e depois nos seres Eu diria que é a série de arti­
humanos. Hoje ele tem uma gos em que mostrei o funcio­
linha independente. Na par­ namento dos pressorrecep­
te de enfermagem, comecei tores. É a sequência de adap­
a fazer projetos em que as tação desses receptores na
enfermeiras veem os proble­ hipertensão e na hipotensão
mas de adesão ao tratamento. e a sensibilidade deles. Com
E em seguida veio a biologia a Lisete Michelini, estudei o
mecanismo pelo qual eles se
Achamos cinco regiões
molecular, que entra de for­
ma interessante. Meu filho se adaptam. Conseguimos mos­
formou em Ribeirão Preto em trar que a sequência de adap­
1984. Ele foi para os Estados
Unidos e fez um doutorado
cromossômicas ligadas tação é a mesma da dilatação
da aorta na hipertensão. Asso­
ciamos a adaptação às altera­
à hipertensão em
experimental, em fisiologia
clássica guytoniana. Guyton ções que ocorrem no vaso. A
foi um dos grandes fisiologis­ propósito, no Departamento
tas. Ele terminou o doutora­
do no início de 1990, quando
nosso primeiro trabalho de Fisiologia em Ribeirão ti­
nha um colega espetacular,
José Venâncio de Pereira Lei­
de biologia molecular
a biologia molecular estava
entrando firme no estudo da te, dono de uma cultura técni­
hipertensão. Ele terminou o ca e científica fantástica. Nós
doutorado e foi para Harvard levávamos os problemas a ele,
e depois Stanford estudar a biologia mo­ e como eles se alteram na hipertensão. que procurava resolvê-los. Então lhe pro­
lecular da hipertensão. Na volta, se inte­ Outro foi para Charleston estudar me­ pus o seguinte problema: eu precisaria ver
grou ao nosso grupo. O primeiro trabalho tabolismo na hipertensão. Depois outra como se comporta o local onde estão os
que fizemos foi acasalar ratos hipertensos saiu e foi ver a parte neurogênica. O últi­ pressorreceptores na hipertensão agu­
com ratos normais. Depois de dois cru­ mo saiu para estudar apneia do sono na da. Tinha na literatura um Strain Gauge
zamentos, os netos vão ser muito espa­ John Hopkins.Esse grupo aqui do InCor [dispositivo usado para medir o estresse
lhados, com pressão variada e tal. Então é um grupo de ponta, porque integra o de um objeto], que era um silástico com
a ideia era examinar os netos. Se eles são conhecimento. mercúrio que funcionava numa das pon­
hipertensos, é porque trouxeram alguma tas da ponte de wheatstone [medidor de
coisa do avô hipertenso. Então estudamos E o senhor, como pai desse grupo, tem resistências elétricas]. O silástico era colo­
o genoma deles para ver as diferenças em um imenso orgulho de tudo isso. cado no coração, ou em algum lugar, e era
relação aos normotensos. Tenho. No Brasil formei 32 ou 33 douto­ muito usado em medicina. Mas na aorta
res e uns 10 já são professores titulares. do rato, pequenininha, não dava, porque
Foi aí que identificaram algumas re­ Tem gente muito boa. Tem um grupo de o mercúrio quebrava e tal. José Venân­
giões cromossômicas... fisiologia em Belo Horizonte que é top no cio encontrou um jeito: fez uma solução
Foi o nosso primeiro trabalho em colabo­ mundo. Eles estudam a angiotensina 1-7, saturada de nitrato de cobre e funcionou
ração. Encontramos cinco regiões rela­ que é diferente porque é a angiotensina que era uma beleza. Colocávamos no si­
cionadas à hipertensão. Os projetos que boa. Esse grupo, de Rob­son Augusto dos lástico esse líquido, que é condutor e tem

PESQUISA FAPESP 197 | 33


certa estabilidade, e funcionava dois ou fantástico, mas perigosíssimo. Basta mo­ ou uma que age no sistema renina-an­
três dias, o suficiente para as experiên­ dificar um pouco a torneirinha que dá giotensina-aldosterona. Isso é medicina
cias. Ele desenvolveu isso com a Lisete, hipertensão. É um mecanismo fantástico translacional, que tem dois aspectos. O
que era aluna da pós-graduação. Conse­ que a natureza criou, sem isso teríamos primeiro é passar o conhecimento para
guimos fazer vários trabalhos importan­ um sistema precário. Como oxigenar as a clínica. O segundo é transformar o que
tes, mostrando como funciona o calibre células cerebrais que precisam constan­ se vê na pesquisa clínica em medidas de
da aorta na hipertensão. Relacionamos temente de sangue novo? É preciso ter saúde pública. Falta cerca de um ano e
o tempo de adaptação com o tempo de câmara elástica e alta resistência. pouco para terminar. Estamos com mil
modificação do vaso e vimos que o vaso dos 2 mil pacientes de que precisamos.
se adapta. Nas primeiras seis horas resiste O senhor está deixando a coordenação
ao aumento de pressão, quando então tem de seu grupo no InCor. O que vai fazer? O conceito de medicina translacional
uma pequena adaptação dos pressorre­ Tenho duas tarefas para completar: um tem uns 10 anos...
ceptores. A adaptação completa, a de 48 temático, que deve durar mais um ano O termo é novo, mas a ideia de pesquisa
horas, varia um pouco, de rato para rato, e e pouco, com o qual estamos tentando translacional é antiga, remonta à década
se dá quando a aorta se distende. Ela atin­ obter biomarcadores da evolução tera­ de 1940. Durante a guerra, premido pe­
ge um novo limiar e agora passa a funcio­ pêutica dos pacientes, para saber se um la necessidade de tecnologia militar, foi
nar, digamos, normalmente. Se antes ela paciente pode responder melhor ou pior criado o Vale do Silício em parceria com
funcionava assim, e o receptor estava ali, a um tratamento, e um projeto do Minis­ a Universidade Stanford. Aquilo simbo­
agora ela passa a funcionar com o calibre tério da Saúde e do CNPq sobre hiper­ lizou a rapidez com que o conhecimento
dilatado e o receptor passa a vai da universidade para o se­
ser estimulado de maneira pa­ tor privado. Ali começou um
recida, mas não igual, porque círculo virtuoso resultante da
as dimensões são diferentes e passagem rápida do conhe­
a sensibilidade cai. cimento para a aplicação. A
medicina tardou a fazer isso.
Quando essa aorta está mais Começou há 12 anos. Primei­
alargada, porque acabou se ro o Instituto de Medicina da
adaptando ao processo, ela National Academy of Sciences
não determina que a passa­ Nos meus trabalhos começou a discutir por que a
gem do sangue seja mais len­ investigação clínica no país
ta? O sistema circulatório
não fica mais lento?
mais importantes não avançava como a pesquisa
básica biomédica, que é uma
beleza. Os NIH [Institutos
mostrei a ação dos
Não, porque o problema to­
do da hipertensão é no nível Nacionais de Saúde] come­
das arteríolas, o aumento da çaram a se preocupar com is­
resistência é ali. A aorta sofre
a consequência de ter que a
pressorreceptores so e o principal passo ocorreu
quando Elias Zerhouni se tor­
nou presidente dos NIH. Ele
na hipertensão
aumentar a pressão para ven­
cer a resistência. Ela se adap­ fez o chamado road map dos
ta, porque é bem elástica. Ela NIH para três grandes áre­
armazena parte do volume as: as áreas estratégicas que
sistólico. O coração bate e se a artéria tensão resistente, do qual participam 26 precisavam ser estudadas; a formação de
fosse rígida, o sangue iria direto para centros e hospitais universitários. Quere­ equipes multidisciplinares; e a reengenha­
os capilares e nós ficaríamos sem san­ mos saber a porcentagem de brasileiros ria da investigação clínica ou medicina
gue durante a diástole, desmaiaríamos. resistentes à terapêutica da hipertensão. translacional. Ele achava necessário um
O sistema arterial é muito interessante esforço para a investigação clínica bene­
porque as arteríolas têm uma resistência Há alguma hipótese? ficiar a saúde pública. Criaram o progra­
enorme, são torneirinhas bem fechadas. Sim. Nos países avançados de 20 a 30% ma para financiar os núcleos de medicina
Então quando o coração expele o sangue, dos pacientes, mesmo recebendo um translacional nas universidades. Começa­
ele tem mais possibilidade de distender tratamento ótimo, continuam hiperten­ ram com 10 ou 12 universidades em 2007
as artérias grandes para acumular do que sos. No Brasil não há trabalhos de fôlego. e 2008 e hoje são umas 40 ou 50. Os NIH
para fazer passar o sangue lá. Então as Num primeiro momento, o paciente será pretendem financiar a gestão da pesquisa
artérias acumulam sangue. Quando o submetido ao tratamento padrão, com universitária. Eles querem um núcleo de
coração para de expelir sangue e entra doses ótimas e controladas. Faremos integração na universidade, principalmen­
em diástole, cujo tempo corresponde ao monitorização de pressão para descobrir te na área da saúde, que faça o avanço do
dobro do da sístole, as grandes artérias essa porcentagem. Em seguida, vamos conhecimento básico com interação com
liberam o sangue que tinham. No vaso randomizar os pacientes resistentes e as outras disciplinas (física, química, infor­
capilar, onde o interesse é a troca, o flu­ ver qual é a melhor medicação para eles, mática etc), e que o conhecimento chegue
xo é contínuo, graças a esse mecanismo uma que atua no sistema nervoso central rapidamente à clínica e à saúde pública.

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Visitei a Universidade da Pensilvânia, que O senhor ajudou a criar o Brazilian publicado sobre a qualificação das re-
tem um núcleo de medicina translacional Journal of Medical and Biological Re- vistas. Há um trabalho publicado por
que é uma beleza. search? nós que é a primeira classificação das
Eu era presidente da Sociedade Brasi- revistas. Precisávamos daquilo para de-
Aí o senhor pensou: como faço algo se­ leira de Fisiologia. Vínhamos conver- cidir o que fazer.
melhante no Brasil? sando com o pessoal da bioquímica e
Pensei: o InCor nasceu translacional, da farmacologia que estava na hora de De tudo o que senhor fez na política
nasceu com a ideia de que o conheci- as áreas básicas de biomedicina criarem científica, o que lhe é mais caro?
mento precisa passar da bancada pa- uma revista nacional em inglês, por que O que teve mais repercussão foi a minha
ra o leito. Então achei que era hora de já tinha densidade e trabalhos o sufi- atuação como presidente da ABC porque
ter uma disciplina chamada cardiologia ciente. Fomos procurados por Alberto conseguimos, na esfera nacional e inter-
translacional. Procuro auxiliar o pessoal Carvalho da Silva, que era fisiologista, nacional, projetar a ciência brasileira.
a fazer projetos e a introduzir a inovação, e pelo pessoal do CNPq, com a seguinte E ter o reconhecimento da academia
uma das coisas que permeia esse tipo ideia: Michel Jean, hematologista, tinha como um órgão de assessoramento do
de medicina. Houve um simpósio sobre criado a Revista Brasileira de Pesquisas governo. Estou até hoje como membro
inovação no InCor, fiz uma revisão da lei Metrobiológicas, que era indexada. Eles do Conselho Nacional de Ciência e Tec-
federal de inovação, a Lei do Bem, e da queriam que a gente pegasse a revista. nologia, subordinado à presidente, e vivo
lei estadual, mostrando a importância de Mas queríamos uma revista em inglês. cobrando que aquilo tem de funcionar
ter núcleos de inovação tecnológica em A solução seria mudar o nome. Então o melhor. A fundação da FESBE também
vários centros. Também es- foi importante, assim como a
tou auxiliando o diretor a in- criação da Sociedade Brasi-
ternacionalizar as atividades leira de Hipertensão. Sempre
da Faculdade de Medicina. fiz parte dessas associações,
porque eu estava trabalhan-
E sua expe­riên­­cia na Acade­ do e continuei trabalhando
mia Bra­­­sileira de Ciências? na bancada. Sou professor e
Foram 14 anos. Me tornei cientista, e também ativista.
Quando nós criamos o IAP,
O InCor nasceu
presidente em 1993 e, em
1997 ou 1998, a academia re­ Bruce Alberts, que foi presi-
ce­beu um convite para inte- dente da Academia America-
grar uma espécie de federa-
ção das academias, a Inter­­-
com a ideia de que o na por 12 anos, escreveu um
artigo de que gostei muito. A
tese dele é que as academias
conhecimento precisa
-Aca­demy Panel, IAP, com
quase uma centena de as- deviam se tornar mais ativis-
sociados. Em 2000 fizemos tas. O cientista tem obrigação
uma reunião em Tóquio e
o estatuto foi aprovado. Fui
passar da bancada social de trabalhar para fazer
com que a ciência reverta
eleito presidente para repre- em benefício para a socieda-
sentar os paí­ses em desen- para o leito de. O esforço que tenho feito
volvimento de 2000 a 2003. hoje é o de entender a medi-
Também representei a ABC cina com foco na prevenção.
no Interacademy Council, composto por Michel disse: “Eu passo a revista para E a prevenção é educação.
13 academias. Essas duas entidades pro- vocês fazerem o que quiserem”. O CNPq
porcionaram à ABC inserção internacio- apoiou. E foi o que fizemos. Para tornar Sua relação com a medicina translacio­
nal. Conheci a política científica, como as viável, criamos a Associação Brasileira nal mostra essa preocupação?
academias se auxiliam, os temas globais de Divulgação Científica, formada pelas É o foco. Estamos programando na fa-
com que as academias e os pesquisadores mesmas sociedades que iriam integrar a culdade uma conferência internacional
devem se preocupar. Mas preciso des- Fesbe, criada quatro ou cinco anos de- sobre educação médica. Não podemos
tacar que minha chegada à presidência pois. Para fazer a revista criamos uma formar um médico que conheça todas
da ABC coincidiu com uma oportuni- associação que é a dona da publicação e as especialidades e sem noção do que vai
dade de participar da política nacional. eu passei a ser presidente da associação trabalhar na atenção primária. É preciso
José Israel Vargas foi nomeado minis- e o editor, junto com o Sérgio Henrique ao mesmo tempo ensinar a curar o doente
tro da Ciência e Tecnologia quando era Ferreira. Fiz parte também do comitê e prevenir a doença. Não temos recursos
vice-presidente da ABC. Ele promoveu de revistas da FAPESP. Trabalhei com financeiros para dar tratamento a todos
a academia, que se tornou reconhecida a bibliotecária Rosali Duarte, que era da com a sofisticação tecnológica atual. Te-
em plano nacional. A SBPC dominava o Revista de Genética, e percebemos que mos de trazer à cena a prevenção da do-
terreno. Conseguimos equilibrar o jogo recebíamos pedidos das revistas e não ença, ela é muito mais barata e tem muito
e hoje as duas são consideradas impor- sabíamos o que aquilo significava. Então mais repercussão. Assim, as pessoas fica-
tantes, se entendem e colaboram. fizemos o primeiro trabalho brasileiro rão mais tempo gozando de boa saúde. n

PESQUISA FAPESP 197 | 35


política c&T  Desenvolvimento sustentável y

Consenso
mínimo
Conferência Rio+20 produz relatório
pouco ambicioso, mas avança em
compromissos voluntários

A
Conferência das Nações Unidas sobre Desenvol-
vimento Sustentável (Rio+20), realizada no Rio
de Janeiro entre 20 e 22 de junho, aprovou um
documento final que ficou longe de caminhar na
mesma velocidade com que os problemas ambien-
tais do planeta avançam, embora tenha sido capaz de evitar
retrocessos. Com 53 páginas, o relatório aprovado pelos 190
chefes de Estado ou seus representantes, intitulado O futuro
que queremos, deixou a definição das questões importantes
para o ano que vem, quando devem começar a tomar forma os
objetivos de desenvolvimento sustentável (ODS), com metas
para água, cidades, energia e oceanos. Se as discussões pros-
perarem, os objetivos passarão a vigorar em 2015. “A estrada
será longa e difícil”, admitiu o secretário-geral da ONU, Ban
Ki-Moon, referindo-se ao trabalho que a diplomacia terá nos
próximos três anos, uma vez que a Rio+20 não obteve con-
senso sobre o alcance desses objetivos.
Dois grupos de trabalho serão criados: um vai delimitar
as metas, enquanto o outro discutirá meios de ajudar os paí-
ses pobres a alcançá-las. A adesão às metas, de todo modo,
será voluntária. Um avanço foi o compromisso dos gover-
nos de viabilizar um programa de 10 anos para reavaliar os
padrões de produção e consumo, que vinha sendo discutido
desde 2004. “A direção do documento é positiva, mas a ve-
locidade é muito lenta”, diz Jacques Marcovitch, reitor da
Universidade de São Paulo entre 1997 e 2001. “Um desafio
agora é construir novas coalizões, no âmbito setorial ou sub-
nacional, a fim de avançar através de métricas apropriadas 2

36  z  julho DE 2012


fotos  1 un photo / mark garten  2 un photo / rossana fraga

Ban Ki-Moon e Dilma,


após o anúncio do em tópicos específicos”, afirma ele, citando o Universidade Estadual de Campinas (Unicamp),
documento final,
e estande
exemplo bem-sucedido da moratória da soja, coordenador do Biota-FAPESP e assessor sênior
no Riocentro: compromisso dos produtores e exportadores de em biodiversidade do Ministério da Ciência, Tec-
45 mil participantes não comercializarem soja plantada em áreas de nologia e Inovação (MCTI). A Eco-92 beneficiou-
desmatamento na Amazônia a partir de 2006, -se do Relatório Brundtland, documento de 1987
ou do avanço da etiquetagem de automóveis que estabeleceu o conceito abrangente de desen-
segundo a sua eficiência energética, adotada volvimento sustentável. Seu desdobramento levou
por vários países. Marcovitch coordenou o es- à percepção global de que a questão se apoia não
tudo Economia da mudança do clima no Brasil: só sobre um pilar ambiental, mas também sobre
custos e oportunidades, feito por um consórcio os pilares econômico e social. Tal clareza não se
de instituições, que identificou as principais repetiu no conceito de economia verde. “Eu nunca
vulnerabilidades da economia e da sociedade entendi quando alguém fala que a economia ver-
brasileira em relação às mudanças climáticas. de vai tomar lugar do desenvolvimento susten-
Os dois temas principais da conferência, que tável, porque o desenvolvimento sustentável já é
eram a economia verde e a reforma na estrutura algo concordado amplamente”, diz Gro Harlem
das Nações Unidas para o desenvolvimento susten- Brundtland, ex-primeira-ministra da Noruega,
tável, acabaram esvaziados. O mote da economia responsável pelo relatório de 1987. “Os países em
verde, conjunto de estratégias voltadas a reduzir desenvolvimento acharam que a economia verde
o impacto ambiental do desenvolvimento eco- embutia o risco de barreiras comerciais no futuro,
nômico, permeou a conferência de modo amplo enquanto os desenvolvidos se viram pressionados
e vago. Contemplaria desde o consumo eficiente a reduzir sua pegada de carbono. Como não hou-
da energia e dos recursos naturais até o investi- ve consenso sobre a forma de financiar os países
mento em tecnologia agrícola de baixo impac- em desenvolvimento, ela se manteve no terreno
to em países pobres. “Foi uma tentativa de criar das intenções”, diz Carlos Joly. A criação de um
uma nova expressão motivadora, mas ela é fraca, fundo de US$ 30 bilhões para fomentar projetos
ao contrário do que aconteceu com o conceito no campo da sustentabilidade, proposta pelo G-77,
de desenvolvimento sustentável, carro-chefe da grupo que reúne países como Brasil e China, foi
conferência Eco-92”, diz Carlos Joly, professor da excluído do texto final da Rio+20.

pESQUISA FAPESP 197  z  37


1 2

“Em vez de deixar alguns pontos entre colchetes,


que na linguagem diplomática significa ausência
de acordo, para serem discutidos pelos chefes de
Estado, preferiu-se um documento com um de-
nominador comum mínimo minimorum, exclu-
sivamente com pontos previamente acordados
nas negociações até então”, diz Joly. Se a confe-
rência de 1992 foi prestigiada por 114 chefes de
Estado, a Rio+20 atraiu 86, e o documento final
já estava pronto no dia 19, véspera do início da
reunião dos chefes de estado. “Como não havia
3
nada de concreto para ser decidido, muitos países
foram representados por ministros, não por seus
A ideia de criar uma organização voltada para mandatários”, afirma. O resultado, diz Joly, foi
o meio ambiente da ONU, combatida pelos Esta- um documento tímido. “Havia uma expectativa
dos Unidos e pelo Brasil, mas acalentada por 140 de apoio ao imediato desenvolvimento de um
países, não saiu do papel. Os países aceitaram, plano para conservação dos oceanos, mas no do-
contudo, fortalecer o Programa das Nações Uni- Índios em evento cumento final isto foi empurrado para 2014.” As
das para o Meio Ambiente (Pnuma). Sediado em paralelo no Aterro questões relacionadas à biodiversidade também
do Flamengo, plenária
Nairóbi, no Quênia, o Pnuma sofre um isolamen- tiveram sua relevância esvaziada e enfraqueci-
de chefes de Estado
to na estrutura da ONU e, em quatro décadas de e a norueguesa Gro da. O recém-criado Painel Intergovernamental
existência, amealhou pouca influência e escassos Harlem Brundtland, para Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos
recursos. Uma novidade é que todos os países líder da Eco-92 (Ipbes), por exemplo, precisava de um forte im-
terão participação obrigatória no programa, o pulso. “Mas, no documento, os chefes de Estado
que não ocorria até agora. A Rio+20 fortaleceu afirmam que apenas ‘tomaram ciência’ do painel,
o Pnuma por meio de um aumento dos fundos o que é muito fraco”, diz Joly.
que a ONU repassa ao organismo. “Trata-se de Ministros de Estado reunidos num dos eventos
um aumento importante se for levado em conta da Rio+20 mostravam manchetes de jornais que
que atualmente 96% dos recursos são proce- declaravam o fracasso da conferência – mas os
dentes de contribuições voluntárias”, afirmou o jornais eram de 20 anos atrás e tratavam do re-
diretor-executivo do programa, Achim Steiner. sultado da Eco-92, cujos desdobramentos trans-
formaram-na numa reunião muito bem-sucedida.
“Ponto de partida, não de chegada” Com isso buscavam mostrar que o sucesso ou o
A liderança brasileira na Rio+20 foi criticada por fracasso da cúpula só poderão ser avaliados mais
patrocinar um consenso pouco ambicioso, na adiante. “A reunião foi positiva, pois apresentou
tentativa de evitar que a conferência terminasse temas de maneira objetiva e pode acelerar pro-
sem um documento final. “É um ponto de partida, cessos. Mas tenho medo de que fique parecida
não de chegada”, defendeu a presidente Dilma não com a Eco-92, mas com a Rio+10, realizada
Rousseff pouco antes de encerrar o encontro de em Johannesburgo em 2002, da qual ninguém
cúpula. O Brasil assumiu a responsabilidade de se lembra”, diz Carlos Joly.
redigir o documento final, apresentando-o na Cerca de 110 mil pessoas foram ao Rio de Janei-
véspera do início da reunião de chefes de Estado ro participar da Rio+20 – e metade desse contin-
sem os dispositivos que geravam divergências. gente esteve presente no Riocentro, que sediou o

38  z  julho DE 2012


encontro de cúpula e debates sobre
fotos  1 un photo / nicole algranti  2 un photo / guiherme costa  3 e 4 un photo 

temas diversos, da intolerância ra-


cial à situação dos oceanos ou às es-
tratégias para melhorar o transporte
urbano. Entre os eventos paralelos,
destacaram-se a Cúpula dos Povos,
no Parque do Flamengo, o Espaço
Humanidade 2012, no Forte de Co-
pacabana, e as exposições no píer
Mauá. Se a reunião oficial alcançou
um resultado aquém das expectati-
vas, os eventos paralelos produziram
compromissos mais fortes.

Internacional e multidisciplinar 4

No Fórum de Ciência, Tecnologia e A foto oficial dos


Inovação para o Desenvolvimento chefes de Estado FAPESP de Pesquisa sobre Mudanças Climáticas
na Rio+20:
Sustentável, realizado entre os dias Globais (PFPMCG), o Biota-FAPESP e o Progra-
presença menos
11 e 15 de junho na Pontifícia Uni- expressiva do que ma FAPESP de Pesquisa em Bioenergia (Bioen).
versidade Católica do Rio de Janeiro na Eco-92 Foram firmados, na órbita da Rio+20, 705
(PUC-RJ), foi lançada a iniciativa acordos voluntários entre empresas, governos
Future Earth, um projeto interna- e sociedade civil que deverão garantir R$ 1,6
cional e multidisciplinar que busca trilhão a programas nos próximos 10 anos. No
coordenar pesquisas e políticas re- evento paralelo Diálogo Global de Bolsas Sus-
lacionadas às mudanças ambientais tentáveis, representantes de bolsas de valores
globais. O comitê científico do pro- Prefeitos de 59 de países como Estados Unidos, Brasil e África
grama será criado até 2013. do Sul firmaram um compromisso para estimu-
Os temas dos estudos serão o esta- grandes cidades lar boas práticas ambientais e sociais nas 4.600
do do planeta, os riscos de catástrofe, empresas afiliadas. Um grupo de representantes
as regiões mais críticas, as maneiras
lançaram metas das 59 maiores cidades do mundo, sob a coorde-
de reduzir as emissões de carbono, para a redução nação de Michael Bloomberg, prefeito de Nova
a relação com os oceanos e os cami- York, lançou metas para a redução de gases do
nhos para transformar a sociedade, de gases do efeito estufa, num evento paralelo à conferência.
entre outros. “Precisamos de uma De acordo com o grupo, estratégias de redução de
abordagem mais interdisciplinar, efeito estufa, seus membros poderão reduzir a emissão de po-
mais internacional, mais colabora- luentes em até 248 milhões de toneladas de gases
tiva e mais ágil para lidar com os de-
num compromisso por ano, a soma das emissões de Argentina e de
safios críticos da mudança ambiental voluntário que Portugal. O Banco Mundial vai disponibilizar R$
global e o desenvolvimento sustentá- 13 bilhões por ano para sustentar as iniciativas.
vel”, diz Diana Liverman, codiretora animou a A conferência também foi o palco para o
do Instituto do Meio Ambiente da anúncio dos vencedores do Blue Planet Prize
Universidade do Arizona e uma das conferência de 2012, considerado uma espécie de Nobel do
coordenadoras da Future Earth. A meio ambiente. Foram agraciados os cientistas
iniciativa congrega instituições co- Thomas Lovejoy, da Universidade George Ma-
mo o Conselho Internacional para a son, Estados Unidos, William Rees, da Univer-
Ciência (Icsu, na sigla em inglês), que organizou sidade de British Columbia (Canadá) e Mathis
o fórum, e a Unesco, braço das Nações Unidas Wackernagel, da Global Footprint Network, da
para educação, ciência e cultura. Como membro Suíça. O prêmio é concedido pela Asahi Glass
do Belmont Forum – consórcio que reúne agên- Foundation, do Japão. Lovejoy, responsável pela
cias de financiamento a pesquisas no campo das introdução do termo biodiversidade na comu-
mudanças climáticas globais –, a FAPESP parti- nidade científica, também foi agraciado com o
cipará da iniciativa auxiliando na escolha dos te- Prêmio Muriqui 2012, instituído pelo Conselho
mas das pesquisas, na elaboração das chamadas Nacional da Reserva da Biosfera da Mata Atlân-
e na análise, seleção e cofinanciamento dos pro- tica em reconhecimento a ações que contribuam
jetos. Também no fórum da PUC-RJ os resulta- para a conservação da biodiversidade. Também
dos de três grandes iniciativas da FAPESP, que receberam o prêmio Carlos Joly, do programa
estabeleceram uma nova abordagem em termos Biota-FAPESP, e a Sociedade Brasileira para o
de organização científica, foram apresentados à Progresso da Ciência (SBPC). n
comunidade científica internacional: o Programa Fabrício Marques, do Rio de Janeiro

pESQUISA FAPESP 197  z  39


ciência  doenças mentais y

Tempestades
do corpo e da alma
Crises de depressão e de euforia provocam
desequilíbrios químicos que podem danificar as células
e acelerar o envelhecimento do corpo
Ricardo Zorzetto

ilustrações  eduardo sancinetti

40  z  julho DE 2012


Bioquímica

medicina

Neurociência

Psiquiatria

pESQUISA FAPESP 197  z  41


D
esde 2009 o psiquiatra Rodrigo Bressan
e outros pesquisadores da Universidade
Federal de São Paulo (Unifesp) acom-
panham um grupo de adolescentes com
alto risco de desenvolver doenças mentais graves
como o transtorno bipolar e a esquizofrenia. Eles
querem descobrir o momento adequado para agir
antes que os problemas se manifestem e, assim,
tentar evitar que se instalem. Ao mesmo tempo,
procuram ensinar os adolescentes e seus familia-
res a lidar com situações estressantes que podem
disparar as crises. Assim que possível, Bressan e
os psiquiatras Elisa Brietzke e Ary Araripe Neto
querem ver se compostos anti-inflamatórios,
antioxidantes ou neurotróficos poderiam prote-
ger as células cerebrais e,
quem sabe, reduzir o ris-
co de desenvolver essas
doenças mentais.
A estratégia de tentar
proteger o cérebro com
esses e outros compos-
tos se baseia na hipóte-
se de que os neurônios e
outras células cerebrais
sofrem danos gradati- A ideia de que
vos a partir do primeiro
episódio mais intenso da o transtorno bipolar
doença – há quem sus-
peite de que os danos po-
e a depressão se
dem começar até mesmo agravam a cada
antes. Estudos recentes
indicam que nesses dis- surto pode indicar
túrbios o cérebro produz
certos compostos em ní- a necessidade
veis nocivos que atrapa-
lham o funcionamento
de diagnóstico e
das células e podem cau- intervenção precoce
sar danos irreparáveis à
medida que se sucedem,
levando à deterioração
das capacidades de ra-
ciocínio, planejamento
e aprendizagem e até a uma alteração leve e As crises que de tempos em tempos atormentam
definitiva do humor. Simultaneamente ao au- a mente também intoxicam o corpo, acredita Kapc­
mento na concentração dessas substâncias, ha- zinski. Elas seriam como tempestades químicas
veria também uma diminuição nos de compos- que desfazem o equilíbrio das células cerebrais
tos neuroprotetores naturalmente produzidos e liberam compostos que, carregados pelo san-
pelo organismo. gue, inundariam o organismo – às vezes levando
Um dos pesquisadores que ajudou a desen- a um grau de intoxicação quase tão grave como
volver essa hipótese é o psiquiatra Flávio Kapc­ o enfrentado por quem desenvolve uma infecção
zinski, professor da Universidade Federal do generalizada (sepse). Repetidas ao longo de anos
Rio Grande do Sul (UFRGS) e coordenador do ou décadas, essas avalanches tóxicas precipitadas
Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em por surtos de depressão ou de mania produziriam
Medicina Translacional. Ele está convencido um desgaste lento e progressivo do cérebro e de
de que a evolução dramática dos casos graves todo o corpo, reduzindo a capacidade de recupe-
de transtorno bipolar e de depressão é conse- ração e acelerando o processo de envelhecimento.
quência de alterações fisiológicas causadas pelas Kapczinski começou a elaborar esse modelo
crises recorrentes. teórico com base em experimentos feitos por sua

42  z  julho DE 2012


equipe e por outros grupos para explicar como e
por que a depressão e o transtorno bipolar, uma
vez instalados e sem o tratamento adequado, se-
guem um padrão de agravamento progressivo que
pode culminar com a morte precoce por proble-
mas cardiovasculares e até câncer. De acordo com
o modelo, as outras doenças que aparentemente
nada têm a ver com o que se passa no cérebro
poderiam evoluir como resultado dos desequilí-
brios orgânicos gerados pelos episódios severos
de depressão e mania.
Apresentada inicialmente em 2008 na Neu-
roscience and Behavioral Reviews, essa hipótese
vem ganhando reconhecimento internacional.
No último ano os estudos de Kapczinski já fo-
ram citados cerca de mil vezes em outros traba-
lhos. O psiquiatra australiano Michael Berk, da
Universidade de Melbourne, acompanha essas
pesquisas e, com Kapczinski, chamou esse novo
modelo de neuroprogressão.
“Sabemos que esses distúrbios são progres-
sivos e essa proposta teórica explica por quê”,
diz Berk. Para ele, a interpretação de que essas
doenças se agravam a cada surto pode gerar um
impacto importante no tratamento por indicar
a necessidade de diagnóstico e intervenção pre-
coce e por sugerir que terapias neuroprotetoras
possam atenuar o efeito desses problemas.
“A ideia está posta”, diz o pesquisador da
UFRGS. “Agora é possível trabalhar para tentar
confirmá-la ou refutá-la.” Ele sabe que o mode-
lo é ousado e que é necessário reunir mais evi-
dências para demonstrar que ele representa de
modo adequado a evolução da depressão e do
transtorno bipolar. “Temos trabalho para umas
duas décadas”, diz Kapczinski.

conceito e realidade
Corpo envenenado Segundo alguns especialistas, o conceito de neuro-
progressão explica bem os sintomas clínicos, mas
O gráfico abaixo mostra o nível médio de compostos tóxicos no é possível questionar se essas alterações biológicas
sangue, que, nos surtos de mania ou depressão, é superior ao de de fato ocorrem, uma vez que as evidências ainda
pessoas saudáveis ou tratadas e inferior ao de pessoas com sepse são incipientes. Exames de imagens que indicam
redução no volume de algumas áreas cerebrais em
Índice de geral são feitos com pacientes de idades diferentes,
toxicidade que passaram por números distintos de surtos de
2,0 mania e depressão. Provas mais consistentes exi-
giriam o acompanhamento de pacientes por vá-
rios anos, com a realização de exames de tempos
em tempos para avaliar a evolução do problema.
fonte  Kapczinski et al. / molecular psychiatry 2010

1,0
Ainda que esteja longe de ser comprovada, es-
sa proposta está abrindo caminhos para a busca
de terapias mais específicas e eficientes e para o
0,0 desenvolvimento de estratégias que permitam
identificar precocemente as pessoas com risco
de desenvolver esses problemas, como vem fa-
-1,0
zendo a equipe da Unifesp.
Se estiver correta, pode ajudar a entender como
Saudáveis Tratadas Mania Depressão Sepse uma doença que de início se manifesta com um

pESQUISA FAPESP 197  z  43


quadro relativamente benigno, em alguns anos tado de alterações que surgiram no organismo
deteriora a capacidade de raciocínio, planeja- bem antes.” Ante essa interpretação, completa
mento e aprendizagem e altera definitivamente Araripe, “o objetivo do tratamento deixa de ser
o humor a ponto de impedir uma pessoa de le- apenas a remissão dos sintomas e passa a ser
var uma vida normal, como Kapczinski e outros evitar a recaída e auxiliar na manutenção da ca-
médicos estão habituados a ver. pacidade funcional”.
“Esse é um dos múltiplos mecanismos de pro-
gressão da doença”, afirma o psiquiatra norte- Danos às células
-americano Robert Post, autoridade internacional O modelo sobre a progressão das
em transtorno bipolar. “A evidência mais clara doenças mentais proposto por Com a repetição
[de que pode estar correto] é que o número de Kapczinski e seus colaboradores
episódios precedentes de depressão ou mania representa um avanço em relação das crises,
está correlacionado com o grau de disfunção aos anteriores. A proposta teórica
cognitiva”, afirma Post, com quem Kapczinski mais aceita considera os transtornos
a disfunção
colabora desde 2008. mentais resultado da interação entre cognitiva
Em um artigo publicado em maio deste ano no as condições sociais, econômicas,
Journal of Psychiatric Research, Post, Kapczinski psicológicas e culturais em que o aumenta,
e Jaclyn Fleming analisaram quase 200 traba- indivíduo vive (os fatores ambien-
lhos com evidências de que a disfunção cogni- tais) e sua propensão a desenvolver as alterações
tiva aumenta, as alterações em algumas regiões o problema, determinado por suas
cerebrais se intensificam e o tratamento perde características genéticas.
cerebrais se
eficiência à medida que cresce o número de cri- Essa abordagem mais antiga co- intensificam
ses e a duração da doença. No artigo, os pesqui- meçou a ser construída há uma déca-
sadores reconhecem que não é possível saber se da pelos psicólogos Avshalom Caspi e o tratamento
toda essa transformação é causa ou consequência e Terrie Moffit, pesquisadores do
da doença. Mas sugerem que, do ponto de vis- King’s College, em Londres, a partir perde eficiência
ta clínico, parece prudente pensar em iniciar o dos resultados de estudos em que
tratamento o mais cedo possível e mantê-lo por acompanharam 1.037 crianças dos
um período mais prolongado. 3 anos de idade até os 26 anos. Nes-
“De acordo com essa visão, um surto de mania ses trabalhos, eles observaram que
ou depressão pode ser entendido da mesma forma certas alterações em genes responsáveis pela
que o infarto”, diz Elisa Brietzke, ex-orientanda produção de mensageiros químicos do cérebro
de Kapczinski. “Todos são eventos agudos, resul- (neurotransmissores) aumentavam o risco de

Círculo vicioso
A partir da décima crise de mania ou depressão os surtos passam a ocorrer mesmo na ausência de fatores que provocam estresse

estresse
no
ambiente resposta ao tratamento
4 5 6 7 8 9 10
2 3
1 Pacientes com múltiplos episódios apresentavam
pior resposta ao tratamento, especialmente ao lítio

Reorganização 10
Valproato
patológica
Melhora dos sintomas de humor

Lítio
crise de mania 8
ou depressão Placebo

dano 2
Nº de
celular episódios
0
0  
2  
4  
6  
8 10 12 14 16

44  z  julho DE 2012


Tormenta química
Há tempos se sabe que em cada episódio leve ou
intenso de estresse, provocado por um perigo
real ou imaginado, o organismo reage liberando
o hormônio cortisol. Produzido por glândulas
situadas sobre os rins e lançado na corrente san-
guínea em pequenas quantidades e
por pouco tempo, o cortisol aumen-
ta os batimentos cardíacos, eleva a
pressão arterial e acelera a produção
À medida que a doença de energia. Enfim, prepara o corpo
para fugir do perigo ou enfrentá-lo.
progride, os surtos de mania Mas, em doses altas e por períodos
prolongados como pode acontecer
e de depressão podem antes das crises, o cortisol começa
ganhar autonomia e se a lesar os órgãos, entre eles o cére-
bro (ver Pesquisa FAPESP n° 129).
tornar independentes dos Pouco tempo atrás pesquisadores
do Instituto Nacional de Saúde Men-
fatores que os disparavam tal dos Estados Unidos verificaram
que, no interior das células cerebrais,
em especial os neurônios, os níveis
elevados de cortisol danificam as mi-
tocôndrias, compartimentos em que
o açúcar dos alimentos é convertido
em energia. E danos nas mitocôndrias
uma pessoa desenvolver comportamento antis- significam problema na certa. Elas produzem 85%
social ou depressão. da energia que as células consomem para se man-
Além da influência dos genes e do ambien- terem vivas. Ainda que de modo indireto, o exces-
te, Kapczinski e seus colaboradores incluem no so de cortisol faz surgirem poros nas paredes das
modelo novo um terceiro elemento: os danos às mitocôndrias, por onde vazam compostos tóxicos
células do cérebro e de outros órgãos causados que avariam os lipídeos e as proteínas e alteram
pelos surtos da própria doença psiquiátrica. Es- a estrutura da molécula de DNA no núcleo das
ses surtos em geral se iniciam como uma resposta células. Toda essa transformação aciona os meca-
do organismo a um evento estressante, que po- nismos de apoptose, a morte celular programada.
de ser intenso e breve, como um assalto a mão Por meio de uma técnica que permite avaliar as
armada, ou mais ameno e duradouro, a exemplo milhares de proteínas produzidas pelo organismo
daquele vivido por quem trabalha o tempo todo em certo momento, o biólogo brasileiro Daniel
sob tensão. Repetidos muitas vezes, os episódios Martins-de-Souza, pesquisador do Instituto Max
de mania ou de depressão acabariam por minar a Planck para Psiquiatria, na Alemanha, também
capacidade do corpo de lidar com novos eventos obteve indícios de que o funcionamento dessas
estressantes. “Nossa hipótese é que a doença se organelas está alterado nas doenças psiquiátricas.
realimenta”, conta Kapczinski. Em especial, na depressão verificou diferenças
Essa proposta parece explicar melhor o agra- na fase final da produção de energia, a chamada
vamento dos distúrbios psiquiátricos marcados fosforilação oxidativa ou respiração celular, que
por crises sucessivas, como a depressão e o trans- ocorre no interior das mitocôndrias.
torno bipolar. Nessas enfermidades, a influência As consequências dos danos às mitocôndrias não
de fatores ambientais sobre a propensão genéti- se restringem às células. Os compostos liberados
ca seria fundamental para disparar os primeiros por elas alcançam a corrente sanguínea e ativam
episódios de mania ou de depressão. Mas esses proteínas do sistema de defesa que disparam a
fatores perderiam importância à medida que a inflamação, como a interleucina-6 (IL-6), a inter-
doença avança e os surtos se tornam cada vez leucina-10 (IL-10) e o fator de necrose tumoral alfa
mais frequentes e prolongados – em alguns ca- (TNF-alfa). Chegando ao cérebro, essas proteínas
sos, mesmo com o uso de medicamentos – e o ativam outras reações bioquímicas que causam a
intervalo entre eles menores. Com o tempo, em morte de mais neurônios. Segundo Kapczinski, esse
geral a partir da décima crise, os surtos ganham processo realimenta a destruição celular, reforçada
autonomia e podem se tornar independentes das por outro fenômeno típico do transtorno bipolar:
condições estressantes que antes os disparavam a superprodução do neurotransmissor dopamina,
(ver infográfico na página ao lado). que também aciona a apoptose.

pESQUISA FAPESP 197  z  45


os transtornos de humor como doenças neu-
rodegenerativas. Tanto no transtorno bipolar
como na depressão o problema maior é que os
neurônios que sobrevivem não permanecem
íntegros: eles aparentemente perdem prolon-
gamentos chamados neuritos, que os conectam
com outros neurônios.
Muitos pesquisadores da área acreditam que
é a perda de conectividade neuronal que com-
promete o funcionamento das regiões cerebrais
mais afetadas nos distúrbios do humor. O fato
de serem alterações sutis pode explicar por que
o neuropatologista alemão Alois Alzheimer,
que descreveu 100 anos atrás os danos neuro-
nais típicos da doença que leva seu nome, não
encontrou alterações importantes no cérebro
de pessoas com depressão – razão por que se
passou a dizer na época que a neuropatologia
era o túmulo dos psiquiatras. “Apesar de sutis,
essas transformações seriam suficientes para
causar uma reorganização patológica do cére-
bro”, afirma Kapczinski.
As transformações anatômicas do cérebro nas
doenças do humor começaram a ficar evidentes
há cerca de 10 anos, quando Grazyna Rajkowska
e seu grupo na Universidade do Mississípi veri-
ficaram uma redução no volume do córtex pré-
-frontal de pessoas com depressão. A diminuição
de volume nessa área e também na região dos
ventrículos vem sendo confirmada por exames
de imagem também no transtorno bipolar. Lo-
Foi medindo os níveis desses compostos no calizado na parte anterior do cérebro, o córtex
sangue que o grupo de Kapczinski identificou pré-frontal é responsável pela estruturação do
Os Projetos um fenômeno ao qual pouco se dava atenção: os raciocínio, pela tomada de decisões e pelo con-
1 Análise estereológica surtos causam uma toxicidade sistêmica. Segundo trole do comportamento. Essa alteração morfo-
post mortem das principais ele, durante os episódios de mania e depressão, lógica permite explicar por que, com o avanço
regiões cerebrais de
indivíduos portadores de o nível de compostos associados à inflamação da doença, quem tem transtorno bipolar perde
transtorno afetivo bipolar era bem mais elevado que o normal no sangue progressivamente a capacidade de planejamento
nº 09/51482-0 de pessoas com transtorno bipolar – em alguns e aprendizado. Essas pessoas também se torna-
2 Prevenção na casos, era semelhante ao de pessoas internadas riam mais impulsivas e suscetíveis às emoções
esquizofrenia e no em unidade de terapia intensiva com infecção por ocorrer simultaneamente um aumento do
transtorno bipolar da
neurociência à comunidade: generalizada (sepse). volume da amígdala, que coordena a resposta ao
uma plataforma multifásica, Em roedores, já foi demonstrado que a toxici- medo e às emoções negativas.
multimodal e translacional dade que se vê no sangue corresponde às altera-
para investigação e
intervenção ções nas células cerebrais. Mas isso ainda precisa Hipótese em formação
nº 11/50740-5 ser comprovado em seres humanos. “O melhor Kapczinski começou a colecionar evidências
teste para comprovar os efeitos tóxicos dos epi- de que uma tormenta química se instala no or-
modalidade sódios seria fazer uma intervenção para evitá- ganismo de quem sofre de transtorno bipolar
1 Auxílio Regular a Projeto -los e verificar se essa intervenção seria capaz em 1997, quando retornou de seu doutorado
de Pesquisa
2 Projeto Temático/Pronex de evitar alterações neurobiológicas”, diz Post. na Inglaterra e de um período de estágio no
A maioria das células parece sobreviver a essa Canadá. Na época o grupo chefiado por ele no
Co­or­de­na­dores tormenta química, ainda que com danos. Ima- Laboratório de Psiquiatria Molecular da UFRGS
1 Beny Lafer – USP gens do cérebro em funcionamento e exames havia notado que pessoas com transtorno bipo-
2 Rodrigo Affonseca
Bressan – Unifesp de microscopia do tecido cerebral post mortem lar, além das alterações psicológicas e cognitivas
indicam que, nas crises de mania ou de depres- em geral observadas pelos psiquiatras, apresen-
investimento são, algumas regiões perdem 10% a 20% mais tavam no sangue níveis elevados de compostos
1 R$ 130.249,30 neurônios do que em condições normais. De que indicam danos nas células cerebrais e taxas
2 R$ 2.378.201,50
acordo com psiquiatras e neurologistas, esse baixas de fatores que protegem essas células.
nível de perda não é suficiente para classificar “As moléculas que estudamos funcionam como

46  z  julho DE 2012


biomarcadores [indicadores de alterações bio-
lógicas] que permitem distinguir se a doença
se encontra num estágio inicial ou avançado”,
afirma Kapczinski.
E conhecer o estágio da doença é importante
para se indicar o tratamento adequado – e essa
nova hipótese pode ajudar a aprimorar o uso dos
medicamentos. Há evidências de que o controle
da enfermidade logo após os primeiros episódios
de depressão ou de euforia preserve a capacidade
de recuperação do organismo, impedindo a de-
gradação psicológica e cognitiva. Os medicamen-
tos – estabilizadores do humor, antidepressivos,
antipsicóticos e anticonvulsivos, usados sozinhos
ou em combinação – em geral
são eficazes em 80% dos casos de
transtorno bipolar e de depres-
são e, comprovadamente, pro-
duzem efeito neuroprotetor, em
especial o lítio, um estabilizador
do humor barato e eficiente, que
antes era usado para combater
estresse, gota e pedras no rim.
Mas os psiquiatras nem sem-
pre conseguem acertar a medi-
cação e a dose na primeira ten-
tativa. Um estudo norte-ame-
ricano recente, conduzido por
pesquisadores da Escola Médica
Mount Sinai com 4.035 pessoas
com transtorno bipolar, verifi-
cou que 40% delas, em especial início do tratamento varia de 5 a 10 anos, tempo
aquelas com quadros depressivos suficiente para surgirem complicações no traba-
mais graves, só conseguiam man- A cada crise, as lho, na convivência com a família e os amigos e
ter a doença sob controle toman- a vida se desestruturar.
do três ou mais medicamentos. células cerebrais
Kapczinski acredita que, em
geral, essas doenças atingem um
podem sofrer As partes e o todo
Foi analisando as variações nos níveis desses bio-
estágio muito mais difícil de ser danos e perder marcadores no sangue de pacientes que Kapc­
controlado após a décima crise, zinski sentiu necessidade de buscar uma explica-
que costuma ocorrer por volta parte das ção mais abrangente, que permitisse associar os
de 10 anos após as primeiras sinais clínicos da doença às alterações fisiológicas
manifestações da doença. Por ramificações que e anatômicas que a ciência começava a detectar
essa razão, os psiquiatras con- no cérebro de pessoas com transtorno bipolar, que
sideram fundamental iniciar o
as conectam com em média atinge 1% da população – calcula-se que
tratamento com medicamentos outras células até 8% possam apresentar formas mais leves –,
o mais cedo possível. Também e outro distúrbio do humor bem mais comum: a
já se havia observado que o lí- depressão maior ou unipolar, que quase 15% dos
tio, um dos medicamentos mais adultos desenvolvem ao longo da vida.
usados para tratar o transtorno Kapczinski viu que não estava satisfeito com o
bipolar, perde eficácia após o dé- que tinha em mãos quando recebeu um convite
cimo surto (ver gráfico na página 44). para apresentar os resultados de seu grupo em
As pessoas com transtorno mental normalmen- um simpósio internacional no Hospital Clínic
te só vão ao psiquiatra muito tempo depois de de Barcelona, na Espanha, em meados de 2006.
surgirem os primeiros sinais da doença. Podem “Faltava uma cola teórica que mostrasse como os
correr anos até um especialista fazer o diagnósti- dados se encaixavam”, diz Kapczinski.
co correto e receitar os medicamentos adequados. Ele e sua equipe haviam coletado amostras de
No caso do transtorno bipolar, o período decorri- sangue de pessoas com transtorno bipolar durante
do entre a primeira manifestação do problema e os períodos em que se experimentam os estados

pESQUISA FAPESP 197  z  47


extremos de humor, que variam de uma tristeza cola teórica
intensa e baixa autoestima a uma grande vitalidade Kapczinski encontrou a cola teórica que pro-
e energia muito além do normal. Em uma bateria curava nos estudos do neurocientista norte-
de testes, o psiquiatra Angelo Miralha da Cunha, -americano Bruce McEwen. Em 2000 McEwen
então na UFRGS, observou um fenômeno novo havia proposto a hipótese de que situações es-
tanto nas crises depressivas como nos episódios tressantes obrigam o organismo a fazer ajustes
de mania: os níveis do fator neurotrófico derivado para recuperar a estabilidade perdida. McEwen
do cérebro (BDNF), de ação neuroprotetora, eram chamou essa adaptação de alostase, uma mu-
ao menos 25% mais baixos do que nas pessoas que dança necessária para restabelecer o equilíbrio
não apresentavam o transtorno ou que o manti- (homeostase). E disse mais. Ao longo do tempo
nham sob controle com a ajuda de medicamentos. essa adaptação cobrava um preço: causava o
Ao mesmo tempo, Ana Cristina Andreazza e desgaste do organismo.
Elisa Brietzke, que integravam a equipe de Kapc­ As propostas teóricas do psiquiatra Robert
zinski, detectaram taxas mais elevadas de pro- Post completavam essa ideia. Na década de 1980,
teínas indicadoras de inflamação, além de níveis Post havia sugerido que os sinais clínicos do
mais altos de radicais livres, moléculas altamente transtorno bipolar se tornariam mais intensos
reativas, com potencial para lesar as células, du- a cada crise, em consequência da maior sen-
rante os períodos de alteração do humor. Esses sibilidade dos circuitos cerebrais afetados nos
dados sugeriam que o sangue poderia guardar episódios anteriores. O fenômeno, chamado em
pistas do que se passava no cérebro. Mas, àquela inglês de kindling, havia sido descoberto duas dé-
altura, não era possível saber com segurança o que cadas antes por Graham Goddard, neurocientista
essa alteração significava nem por que ocorria. inglês que estudava a epilepsia. Durante testes

48  z  julho DE 2012


unificação de conceitos poderia explicar a origem
dos sinais clínicos característicos dessas doenças
e, além disso, por que as pessoas com transtorno
bipolar e depressão podem morrer entre 25 e 30
anos mais cedo do que as pessoas sem distúrbios
psiquiátricos. Uma proporção maior das pessoas
com transtorno bipolar e depressão desenvolve
câncer e problemas cardiovasculares.
Por influência do neurocientista Iván Izquier-
do, Kapczinski fez algo pouco comum na área da
saúde no Brasil: a formulação de uma teoria para
Os medicamentos explicar o desenvolvimento e os desdobramentos
de doenças psiquiátricas. Como toda tentativa
controlam 80% de reproduzir uma realidade a partir dos frag-
mentos que podem ser identificados e medidos,
dos casos de o modelo teórico idealizado pelo grupo gaúcho
transtorno bipolar continua em constante aperfeiçoamento. Des-
de a apresentação em Barcelona, Kapczinski e
e depressão, mas seus colaboradores no Brasil, na Austrália, nos
Estados Unidos e na Espanha trabalham para
os pacientes aprimorar essa proposta teórica e ver se estão
no caminho certo.
demoram a buscar O próprio Kapczinski está pondo sua hipótese
tratamento e à prova ao testar em camundongos uma versão
modificada do antidepressivo tianeptina, desen-
os médicos nem volvida na UFRGS, com o propósito de aumentar
a proteção dos neurônios. Outra forma de ve-
sempre acertam na rificar se a hipótese está correta é examinar as
alterações químicas e celulares em amostras de
primeira tentativa bancos de encéfalos de pessoas com doenças psi-
quiátricas, como o que os psiquiatras Beny Lafer e
Helena Brentani estão organizando na Faculdade
de Medicina da USP. Em outra linha de trabalho,
Lafer iniciou recentemente um teste clínico com
suplementos do aminoácido creatina, que deve
melhorar o funcionamento das mitocôndrias e
também pode aumentar a proteção celular.
com roedores, Goddard notou que estímulos Ana Cristina Andreazza, atualmente pesquisa-
elétricos de baixa intensidade, inicialmente in- dora da Universidade de Toronto, onde investiga
capazes de causar danos ao animal, passavam a os efeitos do mau funcionamento das mitocôn-
disparar crises epilépticas depois de repetidos drias nas células cerebrais, lembra que uma dieta
algumas vezes – sinal de que o cérebro havia se adequada e rica de antioxidantes também pode
tornado mais sensível. ajudar na proteção cerebral.
“A partir desses experimentos, outros autores “A hipótese da neuroprogressão é um dos mo-
começaram a conceituar a ideia de que o cére- delos importantes hoje em dia para explicar a
bro aprendia a ficar doente também em outras progressão dessas doenças”, comenta Lafer,
situações, em especial no transtorno bipolar”, colaborador do grupo gaúcho. “Há outras hipó-
conta o neurofisiologista Luiz Eugenio Mello, teses, baseadas na genética, na interação entre
da Unifesp. “De acordo com essa ideia, modifica- genes e ambiente e na inflamação, mas ainda
ções no sistema nervoso central, possivelmente não existe consenso.” n
no nível das sinapses [conexões entre as células
cerebrais], seriam capazes de transformar um
cérebro pouco doente em muito doente”, explica. Artigos científicos
Ao analisar seus dados à luz da ideia de alostase 1 KAPCZINSKI, F. et al. Allostatic load in bipolar disorder:
e de sensibilização – mais tarde reunidas no con- Implications for pathophysiology and treatment.
Neuroscience and Behavioral Reviews. v. 32, p. 675-92. 2008.
ceito de neuroprogressão –, Kapczinski encontrou
o vínculo entre o que seu grupo havia observado e 2 BERK, M. et al. Pathways underlying neuroprogression in
bipolar disorder: Focus on inflammation, oxidative stress
as alterações de volume em algumas áreas do cé- and neurotrophic factors. Neuroscience and Behavioral
rebro que equipes estrangeiras detectavam. Essa Reviews. v. 35, p. 804-17. 2011.

pESQUISA FAPESP 197  z  49


acasalamentos y

A
flexibilidade
sexual Entre lagartos, nem sempre o macho
é necessário para a reprodução  |  Carlos Fioravanti

das fêmeas
“S
e Deus existe e tem sexo, certamente é mulher”, diz o
biólogo Rodrigo Marques Lima dos Santos, entusias-
mado ao ver o que os lagartos – ou melhor, os lagartos
fêmeas – conseguem fazer.
Várias espécies de lagartos exibem formas surpreenden-
tes de se reproduzirem. As fêmeas geram filhotes de modo
assexuado, sem a participação de qualquer macho. São in-
dependentes, mas não são radicais: em algumas espécies, se
um macho passa por perto, permitem a cópula e podem ser
fecundadas. A autonomia reprodutiva chega a tal ponto que
em algumas espécies só existem fêmeas, que se reproduzem
de um modo assexuado conhecido como partenogênese, que
parece ser mais flexível do que se pensava.
Biólogos da Universidade de São Paulo (USP), da Univer-
sidade Federal de São Paulo (Unifesp) e do Laboratório Na-
cional de Biociências (LNBio), estudando diferentes aspectos
da partenogênese, concluíram que alterações em um gene co-
nhecido como c-mos poderiam permitir a transformação das
células reprodutoras femininas (óvulos) em embrião, mesmo
sem um espermatozoide.
Rodrigo Santos entrou na pista desse mecanismo em seu
doutorado, enquanto estudava os lagartos teídeos, grupo que

50  z  julho DE 2012


evolução

genética
tino mauricio

Duas Aspidoscelis se abraçam no deserto: só assim é que o óvulo continua a se dividir e a formar um embrião, clone da mãe

inclui espécies de 10 centímetros de comprimento Se avançar, esse trabalho poderá elucidar um


até os teiús, de até um metro e meio de compri- dos mecanismos da partenogênese. Hoje mal se
mento. Sem esperar, ele começou a ver mutações sabe como surgiram as espécies de lagartos ca-
no gene c-mos em grupos com espécies parteno- pazes de se reproduzirem de modo assexuado
genéticas. Em 2008 ele começou a trabalhar com – e menos ainda como elas adquiriram e man-
Andréa Balan, do LNBio, para modelar as formas têm essa habilidade. De acordo com a hipótese
da proteína produzida pelo c-mos nos lagartos e mais aceita, cobras e lagartos partenogenéticos
em cobras e, em conjunto, identificaram mutações podem ser resultado do cruzamento entre es-
em um dos quatro sítios ativos (pontos de intera- pécies próximas.
ção) da proteína, reforçando as hipóteses iniciais. O Leposoma percarinatum, uma das espécies
O gene c-mos produz uma proteína que blo- encontradas no Brasil, está mostrando o alcan-
queia o final da divisão celular do óvulo até a ce desse labirinto genético. Os lagartos dessa
chegada do espermatozoide. A célula sexual mas- espécie, reconhecida como partenogenética em
culina, ao fertilizar o óvulo, desativa a proteína, a 1952, têm no máximo cinco centímetros de com-
divisão celular termina e um embrião se forma. A primento e vivem entre folhas nas matas de uma
hipótese dos pesquisadores é que, quando sofre região ampla – da Venezuela até o norte do es-
alterações, o c-mos não funciona direito e pode tado de Mato Grosso, dos Andes até o leste do
fazer com que o óvulo continue a se dividir, mes- Pará. Uma hipótese apresentada nos anos 1970
mo sem o espermatozoide. Eles acreditam que sugere que o L. percarinatum seria o resultado
defeitos nesse gene poderiam atenuar o bloqueio do cruzamento entre duas espécies diferentes,
da divisão do óvulo e permitir que outros estímu- Leposoma guianense e L. parietale, encontradas
los, como hormônios, reativem a divisão celular. em florestas úmidas da América do Sul.

pESQUISA FAPESP 197  z  51


Fotos  miguel rodrigues
Iguais por fora,
geneticamente
diferentes: os Leposoma
percarinatum podem ser
diploides (acima)
ou triploides (ao lado)

Katia Pellegrino, da Unifesp, e Miguel Rodri- centímetros de comprimento. Segundo Santos,


gues, da USP, encontraram uma situação inusi- outras espécies partenogenéticas que vivem na
tada: as fêmeas de Leposoma percarinatum eram Amazônia, como Cnemidophorus lemniscatus e Os Projetos
praticamente iguais por fora, mas apresentavam Gymnophthalmus underwoodi, parecem mesclar 1 Sistemática e evolução
uma espantosa diferença do ponto de vista ge- populações diploides e triploides. da herpetofauna neotropical
nº 2003/10335-8
nético. Algumas fêmeas, as diploides, tinham 44 Os biólogos trabalham com a possibilidade de
cromossomos (dois conjuntos iguais de 22 cro- a partenogênese não formar apenas clones da 2 Diversidade genética
mossomos) em cada célula, enquanto as triploides mãe, mas também permitir alguma variabilida- em espécies unissexuais
e bissexuais de
tinham 66 cromossomos (três conjuntos de 22). de genética, embora menor que a da reprodução Cnemidophorus do grupo
“Dentro do que se supunha ser uma mesma sexuada, por meio da recombinação entre os cro- Ocellifer (Teiinae)
espécie existem duas linhagens diferentes, que mossomos do óvulo. “Um estudo recente mostrou e caracterização estrutural
da proteína Mos
nos permitirão reconstruir sua história e seus que uma cobra, por partenogênese, gerou um nos Squamata
mecanismos de origem”, Katia concluiu. Para ela, filhote albino, indicando que há, sim, recombi- nº 2008/56444-6 
a variedade triploide deve ter surgido de outro nação genética mesmo na reprodução assexua- 3 Estudos citogenéticos
evento de hibridização entre a forma diploide de da”, argumenta Santos. “A origem espontânea da e moleculares em lagartos
microteídeos (Squamata,
L. percarinatum e L. osvaldoi, já que L. guianense partenogênese, uma hipótese alternativa à teoria Gymnophthalmidae)
não ocorre tão ao sul do país. híbrida, não pode ser descartada em Leposoma e com ênfase em espécies
Às vezes surgem bichos que desfazem as ex- Cnemidophorus, uma vez que esse mecanismo já do gênero Leposoma das
florestas amazônica
plicações que estavam se formando. De uma via- foi sugerido para exemplares de Gymnophthal- e atlântica
gem ao arquipélago de Anavilhanas, no rio Ne- mus underwoodi de Roraima”, acrescenta Katia. nº 1998/05289-7
gro, Rodrigues trouxe exemplares de Leposoma
guianense, e alguns indivíduos que se revelaram Abraço indispensável modalidade
pertencer a um novo clone de Leposoma perca- Santos cogita que o Cnemidophorus nativo possa 1 Projeto Temático
rinatum e outros diferentes a ponto de represen- ter um comportamento similar ao dos lagartos 2 e 3 Bolsa de
tarem uma nova espécie, que ganhou o nome de do gênero Aspidoscelis. Encontrados em regiões Pós-doutorado

Leposoma ferrerai – todos diploides, vivendo no desérticas da Ásia e América do Norte, os Aspi- Co­or­de­na­dores
mesmo espaço. doscelis só começam a formar embriões depois 1 Miguel Trefaut
Rodrigues – USP
O calango da restinga, ou Cnemidophorus na- de um abraço, que os biólogos chamam de pseu- 2 Rodrigo Marques Lima
tivo, uma das poucas espécies exclusivamen- docópula. Uma delas, detectando o toque ou o dos Santos – USP
te partenogenéticas de lagartos brasileiros – e raspão da outra, deve ativar a liberação de hor- 3 Katia Cristina Machado
Pellegrino – Unifesp
ameaçada de extinção –, é apenas diploide, de mônios que desbloqueiam o c-mos, acreditam
acordo com as análises de Santos. Encontrados os biólogos da USP. investimento
nas matas do norte do Espírito Santo e do sul da “Para algumas espécies partenogenéticas do 1 R$ 975.589,35
2 R$ 277.872,66
Bahia, esses animais pertencem a uma família gênero Aspidosceles se reproduzirem”, comenta 3 R$ 37.720,00
irmã à dos Leposoma, mas podem chegar a 30 Santos, “a cópula entre as fêmeas é obrigatória”.

52  z  julho DE 2012


David Crews e Jon Sakata, da Universidade do favorecer o desenvolvimento de em-
Texas, Estados Unidos, mostraram em 2000 que briões machos em algumas espécies
as fêmeas abraçadas apresentavam um ciclo hor- ou fêmeas, em outras.
monal inverso, uma com altos níveis de estrógeno, A sala de Yatiyo, onde Santos
hormônio mais abundante nas fêmeas, e outra conta de seu trabalho, exibe algu-
com altos níveis de testosterona, produzida mais O estudo da mas pinturas de flores, algumas fi-
intensamente pelos machos. gurativas, outras abstratas. “Esse
Em 2011, pesquisadores da Universidade de partenogênese foi o começo. Já pintei mais de 300
Kansas, Estados Unidos, conseguiram induzir a quadros depois que me aposentei”,
hibridação e confirmar que a reprodução sexuada
talvez traga diz ela, imaginando o sol que pre-
pode formar uma espécie partenogenética ao cru- respostas novas tendia pintar no dia seguinte, um
zarem duas espécies de Aspidosceles. Fazer uma sábado. “Mas ainda venho para cá
fêmea partenogenética se reproduzir em labora- para uma todos os dias.”
tório, sozinha ou sob o aconchego de outra fêmea,
porém, permanece um dos sonhos dos biólogos. pergunta básica Clonagem induzida
Entre as 5.634 espécies de lagartos já identifi- “A partenogênese meiótica é uma
cadas, cerca de 40 são partenogenéticas – e ge-
da biologia: forma de clonagem natural com al-
ralmente vivem em regiões de florestas tropicais para que serve gumas semelhanças à clonagem in-
ou de climas desérticos da Ásia ou Oceania. “A duzida para reprodução de animais
reprodução por partenogênese resulta em uma o sexo? de interesse comercial”, observa. Em
variabilidade genética menor que a reprodução 2004, pesquisadores da Universi-
sexual, mas pode ser uma resposta adaptativa de dade Estadual Paulista (Unesp) de
sobrevivência a ambientes extremos”, comenta Jaboticabal indicaram que o etanol
Yatiyo Yassuda, geneticista especializada em ge- e o elemento químico estrôncio po-
nética de lagartos que acompanha o estudo sobre dem induzir os óvulos de vacas a seguir a divisão
as possíveis origens da partenogênese. celular, funcionando como um estímulo externo
Na década de 1980, Yatiyo enfrentou um pro- análogo à célula sexual masculina.
blema semelhante e, a muito custo, conseguiu Do mesmo modo, os óvulos de animais ex-
convencer outros geneticistas de que os lagartos perimentais como a ovelha Dolly só se desen-
do gênero Tropidurus apresentavam diferencia- volveram depois de terem recebido um choque
ção sexual – os machos tinham um cromossomo elétrico, que deve desativar o c-mos. Santos acre-
diferente do das fêmeas, mas, de tão pequeno, era dita que a partenogênese, se puder ser regulada,
quase imperceptível. Muitas espécies de lagartos Calango da poderia ajudar na pecuária ou na conservação
apresentam o mesmo conjunto de cromossomos restinga: uma das de espécies silvestres em risco de extinção. “Os
poucas espécies
e se diferenciam sexualmente por meio de genes mamíferos têm mecanismos que evitam a par-
brasileiras de
desconhecidos ou da variação de temperatura lagartos formadas tenogênese, como o imprinting”, observa. Outra
enquanto se desenvolvem – se mais alta, pode apenas por fêmeas aplicação seria médica, já que mutações nesse
gene poderiam fazer os óvulos se dividir sem
controle, originando tumores.
Se avançarem, os biólogos talvez encontrem
respostas novas para duas perguntas básicas da
biologia. A primeira: para que serve o sexo? A
outra: qual a vantagem da reprodução sexuada?
Segundo Santos, a reprodução sexuada exige
que dois organismos se encontrem para formar
filhotes, enquanto na partenogênese apenas um
organismo já é o bastante para gerar outro. E
nem sempre a variabilidade genética trazida pela
reprodução sexuada é benéfica para as espécies,
argumentam os biólogos.
“A reprodução sexuada é melhor para ambien-
tes em transformação, com alto risco de predação
e doenças, mas é ruim em ambientes estáveis e
populações saudáveis, pois um indivíduo bem
adaptado pode formar filhotes mal adaptados”,
diz ele. “Em ambientes estáveis, a reprodução
clonal, como se faz com animais de criação e
plantas, resultando em filhotes com rendimento
ótimo, é a mais indicada.” n

pESQUISA FAPESP 197  z  53


Distrofia muscular y

Tratamento em dobro
Uso combinado de células-tronco
e fator de crescimento reduz sintomas
da doença em camundongos

Marcos Pivetta

O
emprego de injeções periódicas de um co mesenquimais têm propriedades imunossu-
tipo de célula-tronco humana adulta pressoras”, explica Mayana Zatz, coordenadora
combinadas com doses diárias de um da equipe que fez o estudo e do centro da USP,
fator de crescimento pode ser uma um dos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão
alternativa promissora para o tratamento de (Cepid) financiados pela FAPESP. “Com elas,
distrofias musculares progressivas. Pesquisado- reduzimos o risco de haver rejeição do material
res do Centro de Estudos do Genoma Humano injetado.” O sistema imunológico dos camundon-
da Universidade de São Paulo (USP) obtiveram gos do experimento, por exemplo, não precisou
resultados animadores com essa abordagem em ser “desligado” antes de os animais receberem as
testes com células musculares de pacientes com injeções de células-tronco humanas.
distrofia de Duchenne e em camundongos com Normalmente, quando o doador e o receptor de
uma forma congênita de distrofia muscular. A tecidos ou células não são o mesmo indivíduo, é
terapia em dose dupla usou células-tronco me- preciso destruir temporariamente as defesas imu-
senquimais (CTMs) obtidas do cordão umbilical nológicas do organismo alvo do implante, proce-
de recém-nascidos conjuntamente com doses dimento sempre arriscado que deixa o paciente
do fator de crescimento semelhante à insulina vulnerável a agressões externas. No entanto, se
1 (IGF-1). Nos tecidos humanos, o esquema te- isso não for feito, o material cedido pelo doador
rapêutico aumentou a expressão (ativação) da será interpretado pelas defesas do receptor como
distrofina, proteína essencial para a manuten- um agente potencialmente perigoso e o implante
ção da integridade dos músculos. Nos roedores, será fatalmente rejeitado. Com o emprego de cé-
o protocolo de tratamento testado diminuiu a lulas mesenquimais, a questão da rejeição pode
inflamação e a fibrose dos músculos, levando a ser aparentemente contornada sem a necessida-
uma melhora da condição clínica dos animais. de de anular o sistema imunológico do doente –
Os resultados do trabalho foram publicados em mesmo em casos extremos, como no experimento O Projeto
4 de junho na versão on-line da revista científica feito na USP, em que o receptor (camundongo) e Centro de Estudos
Stem Cell Reviews and Reports. o doador (ser humano) são de espécies distintas. do Genoma Humano
nº 1998/14254-2
A dobradinha células-tronco mais IGF-1 não Há indícios de que ambos os componentes da
gerou novos músculos sadios, como, em princípio, candidata a terapia conjugada contra distrofia modalidade
era esperado. Mas parece ter criado condições podem ser benéficos para os músculos. As células- Centros de Pesquisa,
Inovação e Difusão (Cepid)
mais favoráveis para a preservação da funciona- -tronco mesenquimais são bastante indiferencia-
lidade da musculatura já existente. Dessa forma, das e têm a capacidade de gerar muitos tipos de Co­or­de­na­dora
a abordagem poderia ser uma alternativa para tecidos, como ossos, cartilagem, gordura, células Mayana Zatz – IB-USP

evitar ou minorar a degeneração causada por de suporte para a formação do sangue e também investimento
distrofias em geral. A terapia conjugada também tecido fibroso conectivo. Suspeita-se também R$ 34.412.866,53

apresenta uma vantagem extra. “As células-tron- que elas podem desempenhar algum papel no

54  z  julho DE 2012


Uma possível terapia contra a distrofia
imagens mariane secco infográfico  laura daviña  fonte  Centro de Estudos do Genoma Humano da Universidade de São Paulo (USP)

Uma vez Bomba de


por semana dose diária

IGF-1

Células-tronco Fator de A combinação de


células-tronco e do fator de
mesenquimaIS crescimento
crescimento não gerou novos
músculos, mas diminuiu a
Uma terapia que combina Os roedores apresentavam As injeções de CTMs eram inflamação e a fibrose nos já
o uso de células-tronco um quadro clínico semanais. Uma bombinha existentes. Animais tratados
mesenquimais (CTMs) tido como modelo das implantada sob a pele dos apenas com as CTMs ou só
humanas, obtidas do cordão distrofias congênitas. roedores fornecia uma dose com o IGF-1 tiveram uma
umbilical de recém-nascidos, Tinham fraqueza muscular diária de IGF-1. Ao final do melhora discreta
e do fator de crescimento e expectativa de vida experimento, houve uma
semelhante à insulina 1 (IGF-1) reduzida, em razão de uma melhora clínica significativa Fibras musculares:
foi testada por dois meses em disfunção causada por uma dos animais submetidos terapia combinada reduz inflamação
camundongos doentes mutação genética ao tratamento e tecido conjuntivo (pontos brancos)

Sem tratamento Com IGF-1 Com CTMs IGF-1 + CTMs Músculo sadio

processo de regeneração muscular. En- Os roedores foram divididos em qua- ra consta­tada foi ocasionada pela dimi-
tre outras funções, o IGF-1 está envolvi- tro grupos: o primeiro não foi tratado e nuição da inflamação e do nível de fi-
do nos processos de desenvolvimento e funcionou como controle; o segundo re- brose muscular, que, por sua vez, po­­dem
crescimento muscular. Avaliar, portanto, cebeu apenas injeções de células-tronco; ter levado a um aumento na forca da
os possíveis efeitos de um esquema te- o terceiro, somente doses do fator de musculatura esquelética dos animais
rapêutico com os dois ingredientes fazia crescimento; e o quarto foi alvo da tera- doentes. Aparentemente, o fator de
todo o sentido. pia combinada. As células-tronco foram crescimento potencializa os efeitos das
Nos testes in vivo, os pesquisadores injetadas uma vez por semana nos roe- células-tronco e vice-versa. “Acredita-
avaliaram por cerca de 60 dias diferen- dores. Uma bombinha implantada sob a mos que não é necessário ocorrer a di-
tes protocolos de tratamento em 46 ca- pele fornecia diariamente uma dose de ferenciação das células-tronco injetadas
mundongos que apresentavam um qua- dois miligramas de IGF-1 por quilo cor- em células musculares para que haja
dro clínico tido como modelo das dis- póreo dos animais. No final do estudo, um benefício clínico”, diz Mayana. O
trofias musculares congênitas. Devido a foi feita a biópsia dos tecidos musculares tratamento com­binado será testado em
uma mutação no gene da laminina alfa e constatada uma melhora significativa cachorros com distrofia para ver se os
2, os animais tinham uma deficiência entre os animais que receberam a tera- resultados positivos também se mani-
na produção da proteína merosina, dis- pia conjugada. festam nesses animais. n
função que provoca fraqueza muscular Diante dos resultados positivos, Maya­
e reduz a expectativa de vida. “Eles ar- ­­­na, Mariane e seus colaboradores sus­
Artigo científico
rastam a pata traseira e têm considerá- peitaram, inicialmente, que o IGF-1 ti-
vel redução na força muscular”, afirma nha estimulado as CTMs a virar células SECCO, M. et al. Systemic delivery of human
a bióloga Mariane Secco, principal res- musculares. Mas essa transformação mesenchymal stromal cells combined with igf-1
enhances muscle functional recovery in
ponsável pelos experimentos em tecidos não foi detectada em nenhum dos qua- LAMA2dy/2j dystrophic mice. Stem Cells Reviews
humanos e nos animais. tro grupos de camundongos. A melho- and Reports. Publicado on-line em 4 jun. 2012.

pESQUISA FAPESP 197  z  55


Serra da Borboremay

A origem
da montanha
Teoria alternativa propõe que planalto nordestino
se formou há cerca de 30 milhões de anos

A
lguns estudos atribuem as origens do do Rio Grande do Norte (UFRN), e Roberto Gus-
planalto ou serra da Borborema aos mão de Oliveira, do Serviço Geológico do Brasil
efeitos do clima. Ao longo de milhões (CPRM), defende a hipótese de que outro me-
de anos, as intempéries teriam moldado canismo geológico, mais recente e de natureza
o relevo acidentado dessa região, formada pelas distinta do esticão ocasionado pela separação dos
terras altas que dão um ar montanhoso a porções continentes, também pode ter desempenhado um
do interior de Pernambuco, Paraíba, Alagoas e papel importante na formação do planalto nor-
Rio Grande do Norte. Outros trabalhos debitam as destino. Segundo um artigo da dupla de pesqui-
origens do platô na conta de processos geológicos sadores, a ser publicado em agosto no Journal of
que ocorreram no período Cretáceo, entre 136 e South American Earth Sciences, o soerguimento da
65 milhões de anos atrás. A separação da América Borborema pode ser consequência de atividade
do Sul e da África, que até então formavam um magmática e de uma anomalia térmica profunda Trecho da serra do Bodopitá,
único bloco no antigo supercontinente Gondwa- que teriam se iniciado há cerca de 30 milhões de na Paraíba: magma basáltico
aprisionado na zona limítrofe
na, fez nascer o oceano Atlântico e, segundo a anos naquele trecho do Nordeste. entre a crosta e o manto
teoria mais aceita, provocou um estiramento da Durante seu trajeto de ascensão das profunde- terrestre estaria na origem
crosta terrestre em trechos do Nordeste brasi- zas para a superfície do globo, material quente e do planalto da Borborema
leiro. A camada mais externa da Terra se tornou fundido, basicamente magma basáltico, teria fi-
mais fina na região e uma das consequências cado aprisionado na zona limítrofe entre a crosta
desse estirão seria o aparecimento de elevações e o manto, respectivamente a camada mais ex-
em certos pontos, como o planalto da Borborema. terna e a intermediária da Terra. A diferença de
Um novo trabalho, feito pelos geofísicos Walter densidade entre o magma e as rochas vizinhas
Eugênio de Medeiros, da Universidade Federal teria provocado uma força no sentido vertical, o

56  z  julho DE 2012


foto  Fabio jr sm / wikimedia

geologia

empuxo. “Essa força teria deformado a crosta e No caso do planalto da Borborema, os dados
feito a região se elevar, dando origem assim ao da dupla de pesquisadores sugerem que essa
planalto da Borborema”, diz Oliveira. “Não es- serra foi formada pelo soerguimento da crosta
tamos dizendo que esse foi o único processo que em razão de forças localizadas imediatamente
levou à formação do planalto, mas, sim, que esse abaixo da camada mais superficial da Terra. As
mecanismo também pode ser a causa profunda medições indicam, segundo a interpretação dos
do surgimento da Borborema”, afirma Medeiros. geofísicos, que as forças na base da crosta são
O foco do estudo são as chamadas condições maiores do que o peso da topografia ali forma-
isostáticas do planalto da Borborema, ou seja, as da. “Aparentemente, a julgar pela intensa ati-
alterações no equilíbrio gravitacional entre duas vidade sísmica da região, o processo ainda está
estruturas internas da Terra: a litosfera, parte rí- ativo”, afirma Medeiros. Ou seja, o planalto da
gida que abrange a crosta e a parte superior do Borborema ainda não teria atingido o equilíbrio
manto, e a astenosfera, segmento fluido do manto. isostático e, na medida em que a denudação das
Variações nesse equilíbrio produzem modifica- rochas ocorre, a crosta lentamente retorna de
ções no relevo terrestre e podem dar origem a forma elástica para sua condição inicial.
montanhas ou depressões. As alterações podem Dados produzidos em viagens pela região ser-
ser causadas por forças localizadas na superfície rana do Nordeste amparam a tese dos geofísicos,
ou no interior do planeta, ou em ambos. “O sis- cujo estudo faz parte dos trabalhos patrocinados
tema funciona como uma estrutura elástica que pelo Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia
flexiona quando as cargas são colocadas, mas (INCT) de Geofísica do Petróleo. A dupla de pes-
recuperam sua condição inicial quando elas são quisadores realizou medições da intensidade do
removidas”, compara Oliveira. campo gravitacional (gravimetria) em vários pon-

pESQUISA FAPESP 197  z  57


tos do planalto da Borborema e também
usou informações produzidas por outros Uma serra no Nordeste oriental
centros de pesquisa. A partir desse tipo
de dado, é possível inferir a densidade das O planalto da Borborema tem altitude média de 500 metros
rochas e a espessura das camadas geo- e seus pontos mais elevados passam dos mil metros
lógicas numa região. Os pesquisadores
registraram alguns tipos de perturbação,
como a chamada anomalia de geoide posi-
tiva, que pode ser interpretada como um
indicativo de que ali a camada geológica
mais superficial é mais espessa. “A crosta
é cerca de quatro quilômetros mais grossa
sob o planalto do que fora dessa região”,
diz Oliveira. Em certos pontos da serra
Altitude
ela atinge 35 quilômetros de espessura. (em metros)

De Campina Grande a Caruaru


Com altitude média de 500 metros e
picos extremos que chegam a 1.200 me-
tros, o planalto da Borborema é uma das
formações naturais mais interessantes Planalto da
Borborema
e desafiadoras para os geofísicos brasi-
leiros. Seus domínios englobam cidades

fonte  OLIVEIRA, R.G. e MEDEIROS, W.E. JSaES. 2012


conhecidas, como a paraibana Campina
Grande e a pernambucana Caruaru. Seu
formato se assemelha a uma elipse alon-
gado na direção norte-sul, atingindo um
comprimento máximo de 470 quilô-
metros e uma largura que varia de 70 a
330 quilômetros. Ao lado da depressão
sertaneja, uma planície com altitudes
entre 0 e 200 metros situada no norte
do Nordeste, e da chapada do Araripe, flutuar e se deslocar para profundidades Para José Eduardo Soares, geofísico
um planalto mais modesto do interior menores. Esse pode ser um mecanismo da Universidade de Brasília, as análises
de Pernambuco, Ceará e Piauí, a serra alternativo para o levantamento e a ero- com a técnica de refração sísmica pro-
da Borborema faz parte de um enorme são de partes da província Borborema”, funda sinalizam que a gênese da serra
bloco de rochas que abarca quase todo o cogita Naomi. da Borborema ocorreu de forma diversa
Nordeste: a província Borborema. A hipótese formulada por Medeiros e da proposta por Medeiros e Oliveira.
“No passado tectonismo e vulcanismo Oliveira para explicar a formação do pla- “Nossa ideia é que o processo de forma-
foram duas marcas significativas dessa nalto da Borborema não é consenso entre ção do planalto foi muito simples”, afir-
região serrana, ainda hoje palco de pe- os estudiosos. Trabalhos feitos com outras ma Soares. “Houve uma delaminação da
quenos terremotos e falhamentos que técnicas, como a refração sísmica profun- litosfera, uma perda de material que le-
reforçam os indícios de que a província da, permitem formular teorias distintas vou ao soerguimento do planalto.” O pro-
Borborema tem uma litosfera diferen- sobre o surgimento dessa importante serra cesso teria ocorrido no Cenozoico, como
te da do restante do escudo brasileiro”, nordestina, mais na linha de que as ori- consequência da separação dos conti-
comenta Naomi Ussami, geofísica da gens da serra estariam mais associadas ao nentes iniciada cerca de 100 milhões de
Universidade de São Paulo e estudiosa processo de separação da América do Sul anos atrás. Como se vê, as técnicas até
da Borborema. Sob a província, a aste- do continente africano. A refração sísmi- hoje usadas para estudar esse importan-
nosfera, onde a temperatura do manto ca consiste em gerar explosões próximas te acidente geográfico ainda não levaram
passa de 1.300 graus, é mais rasa. Estima- à superfície a fim de medir a propagação a um consenso sobre as origens das ele-
-se sua profundidade em 80 quilômetros, das ondas de choque no interior da Terra. vações que marcam o interior de uma
enquanto no restante do Brasil – em es- Quando passam de um meio a outro, as parte do Nordeste. n Marcos Pivetta
pecial nos crátons, pedaços antigos e ondas são parcialmente refletidas e refra-
frios de continente – é de 200 quilôme- tadas, mudando de velocidade. Como as
tros. Como consequência, a litosfera da camadas geológicas da Terra apresentam Artigo científico
Borborema deve ser mais fina e quente. densidades diferentes, a velocidade va- OLIVEIRA, R.G. e MEDEIROS, W.E. Evidences
“Uma grande região no interior da litos- ria em distintos pontos das entranhas do of buried loads in the base of the crust of
Borborema Plateau (NE Brazil) from Bouguer
fera com maior temperatura faz diminuir planeta. Dessa forma, é possível estimar admittance estimates. Journal of South
a densidade das rochas, que tendem a onde fica a divisa entre a crosta e o manto. American Earth Sciences. v. 37, p. 60-76. ago. 2012.

58  z  julho DE 2012


redes complexas y
ilustração gabriel bitar

A ordem U
ma equipe internacional de físicos e
hidrólogos se surpreendeu ao analisar
como a água flui pelos rios e riachos que
conectam as quase 4 mil barragens ou

da escassez
açudes da bacia hidrográfica do Alto Jaguaribe, no
sudoeste do Ceará. Eles descobriram que, embora
a maioria das barragens tenha sido construída sem
levar em conta nenhum planejamento regional,
juntas elas formam uma rede que está longe de ser
aleatória. Ao contrário, a rede parece organizada
de forma a fazer com que a água seja relativamente
bem captada e distribuída pela região. “O homem
Padrões descobertos em uma rede do campo, mesmo tomando decisões locais, sem
olhar para o todo, construiu um sistema muito
de milhares de açudes no Ceará podem próximo daquele que teria sido construído se fosse
planejado para ser ótimo”, afirma o engenheiro
ajudar a enfrentar secas e enchentes hidráulico José Carlos de Araújo, da Universidade
Federal do Ceará (UFC), um dos autores do estudo
Igor Zolnerkevic publicado em abril no site da revista Proceedings
of the National Academy of Sciences (PNAS).
Várias propriedades dessa rede de açudes, em
especial a frequência com que acontecem trans-
bordamentos em série nos períodos de chuva, obe-
decem a padrões probabilísticos bem conhecidos
dos físicos que estudam redes complexas como as
redes de centrais elétricas, os neurônios no cérebro

pESQUISA FAPESP 197  z  59


fotos  1. arquivo dnocs / 2. George Mamede
1 Açude Orós,
o segundo maior
do Ceará, na bacia
do rio Jaguaribe

2 Açude Riacho
Verde, um dos
4 mil reservatórios
de pequeno
porte da região
1 2

a estação seca, pois armazenam pouca


água e perdem muito dela por evapora-
Embora traga ção e infiltração. Depois, por estarem
geralmente rio acima em relação aos
benefícios grandes reservatórios estratégicos, os
pequenos açudes retêm água que che-
e a internet. Explorando essas regularida-
como a melhor garia a esses últimos, onde o uso dela é
des matemáticas, seria possível intervir na distribuição da mais bem controlado.
rede para torná-la mais eficiente e menos
vulnerável a secas, a enchentes e ao rom- água, o número A vez dos pequenos
pimento de barragens. Mas o Grupo de Pesquisa Hidrosse-
Inserido no polígono das secas, o Ceará de pequenos dimentológica do Semiárido da UFC,
sofre o ano todo com a estiagem, interrom- coordenado por Araújo, vem acumu-
pida apenas na estação chuvosa, que dura
açudes ultrapassou lando evidências de que os pequenos
de fevereiro a maio. A evaporação média o limite dos açudes têm seus aspectos positivos. O
anual ali supera de três a quatro vezes a mais evidente é a distribuição espacial
precipitação, fazendo com que a maioria recursos hídricos mais igualitária e econômica dos recur-
dos cursos d’água sejam efêmeros. Para sos hídricos pela região. Se toda a água
complicar a situação, a maior parte de seu disponíveis escoasse diretamente para os grandes
território é de rochas cristalinas, imper- açudes rio abaixo, haveria um custo de
meáveis, cobertas por um solo raso, que energia para bombeá-la de volta.
quase não armazena água subterrânea. de armazenar quase 2 bilhões de metros Os estudos do grupo também sugerem
Toda a água das chuvas escorreria di- cúbicos de água, a bacia conta ainda com que os pequenos açudes retêm boa parte
reto para o mar não fosse pelas mais de outros 17 açudes estratégicos de capaci- dos sedimentos arrastados pela água que,
30 mil barragens espalhadas pelo estado, dade superior a 1 milhão de metros cúbi- caso contrário, se acumulariam nos gran-
que formam uma das redes de açudes cos, que garantem água mesmo durante des açudes, diminuindo sua capacidade
mais densas do mundo, com uma média períodos de secas contínuas de até três de armazenamento. Há ainda indicações
de um reservatório a cada seis quilôme- anos. Esses reservatórios estratégicos de que a rede de pequenos açudes fun-
tros quadrados. “Houve ao longo das são monitorados constantemente pelos cione como uma espécie de filtro para
décadas uma construção desenfreada técnicos da Companhia de Gestão de os grandes reservatórios, retendo a po-
dessas barragens, para dar certa seguran- Recursos Hídricos (Cogerh) do Ceará. luição gerada sobretudo pela pecuária.
ça hídrica para as populações”, explica A maioria dos quase 4 mil açudes do Mesmo com esses benefícios, porém,
o hidrólogo George Leite Mamede, da Alto Jaguaribe, entretanto, são pequenas os pesquisadores alertam que a constru-
Universidade da Integração Internacio- construções, com volume inferior a 100 ção de mais pequenos açudes – que pros-
nal da Lusofonia Afro-Brasileira (Uni- mil metros cúbicos, feitas por fazendei- segue na região, ainda que em um ritmo
lab), autor principal do artigo na PNAS. ros e pequenos agricultores, às vezes menor que no passado – precisa parar.
Os pesquisadores analisaram uma por- com apoio das prefeituras locais, mas Um estudo liderado por Vanda Malvei-
ção da bacia do Jaguaribe, o principal sem nenhum levantamento dos impac- ra, da UFC, e publicado em janeiro no
rio do Ceará, que vai de suas cabeceiras, tos que a obra poderia causar. “Além dis- Journal of Hydrologic Engineering, com-
no sudoeste do estado, na divisa com so, eles não são usados racionalmente”, parou o crescimento da rede de açudes
o Piauí, até onde o rio deságua no se- explica Araújo. “Não há um sistema de no Alto Jaguaribe de 1961 a 2005 com o
gundo maior açude cearense, o Orós. A gestão para os pequenos açudes.” de redes simuladas por computador. Os
chamada bacia do Alto Jaguaribe cobre De fato, essa profusão de reservatórios pesquisadores concluíram que uma rede
uma área de 25 mil quilômetros qua- pequenos não é vista com bons olhos atinge um ótimo de aproveitamento de
drados, onde 500 mil habitantes vivem pela maioria dos gestores de recursos seus recursos hídricos quando a soma
principalmente da criação de gado e da hídricos do estado. Primeiro, porque não da capacidade dos açudes chega a três
agricultura. Além do Orós, que é capaz conseguem suprir a população por toda vezes o volume da água que escoa pela

60  z  julho DE 2012


Conexões inesperadas
Interligados por rios e riachos, os 3.978 açudes (pontos coloridos) da bacia do Jaguaribe formam uma rede
complexa, mostrada em parte no gráfico à direita. As cores representam faixas de valores para o número
de açudes que ligam o açude em questão ao Orós, o segundo maior do Ceará

graus de separação
em número de açudes
ceará

15 a 20 2
10 a 14 1
5a9 0
3a4

Açude Orós
mapa e infográfico  PNAS

bacia anualmente. Além desse ponto, ul- o tamanho dos açudes, cuja área varia de babilidade típica de outros fenômenos,
trapassado no Alto Jaguaribe nos anos 10 mil a 10 milhões de metros quadrados. como os terremotos e os blackouts em
1990, não há ganho com novos açudes. O mesmo vale para o número de suas co- redes elétricas, que os físicos explicam
A água que seria armazenada por um nexões: há açudes isolados, conectados por meio de modelos conhecidos como
açude rio abaixo simplesmente é trans- somente com o Orós, bem como outros sistemas criticamente auto-organizados.
ferida para outro rio acima. interligados com quase 400 açudes. “Há Eles são chamados assim porque são sis-
Intrigados com as semelhanças entre uma heterogeneidade muito grande, o temas feitos de muitas partes interagin-
a rede real de açudes e a rede virtual oti- sistema não tem um tamanho caracte- do aparentemente de maneira aleatória,
mizada, Mamede e Araújo procuraram a rístico”, explica Nuno Araújo. “Dizemos mas da qual emergem leis estatísticas
ajuda dos físicos especialistas em siste- que é uma rede livre de escala.” simples, ditando que pequenas altera-
mas complexos Nuno Araújo, Christian Com o mapa completo da rede e os ções têm chance de provocar grandes
Schneider e Hans Herrmann, do Institu- dados de precipitação de 131 estações reações em cadeia pelo sistema.
to Federal Suíço de Tecnologia de Zuri- meteorológicas espalhadas pela região e No momento, o grupo da UFC usa es-
que (ETH), para analisar a dinâmica do dados de evaporação da estação Campos se modelo para quantificar o papel dos
transporte de água na bacia. O primeiro Sales, os pesquisadores criaram um mo- pequenos açudes em atenuar o impacto
desafio da equipe foi determinar a locali- delo hidrológico que computou o quanto das enchentes nos grandes reservatórios.
zação e a área máxima de cada açude da de água cada açude recebia e vertia dia- Eles esperam em breve acrescentar mais
bacia, desconhecidas para mais de 95% riamente, de 1991 a 2010. Descobriram detalhes ao modelo, como o transporte
desses reservatórios. Caracterizaram que, nos dias de chuva intensa – pelo fato de sedimentos e poluição e a integridade
os 3.798 reservatórios por imagens de de os açudes receberem água de um ou estrutural dos açudes, para que ele possa
satélite disponibilizadas pelo Instituto mais rios e riachos, mas só verterem por ser usado na avaliação de áreas de risco. n
Nacional de Pesquisas Espaciais, toma- uma única saída –, aconteciam trans-
das em anos excepcionalmente úmidos bordamentos em série. Em um efeito
(2004, 2008 e 2009). Em seguida, usan- em cascata, o vertimento de um açude Artigos científicos
do imagens de alta resolução do relevo desencadeava o transbordo de outros rio MALVEIRA, V. T. C.; ARAÚJO, J. C.;
obtidas pela Missão Topográfica Radar abaixo. As cascatas geralmente envol- GUENTNER, A. Hydrological impact of a high-
density reservoir network in the semiarid north-
Shuttle, da Nasa, reconstruíram em com- viam apenas dois açudes, mas podiam eastern Brazil. Journal of Hydrologic
putador o traçado de cada curso d’água com frequência considerável alcançar Engineering. v. 17, p. 109-17. 2012.
da bacia, descobrindo assim como cada 10, 100 e até mil reservatórios. MAMEDE, G.L.; ARAUJO, N. A. N.; SCHNEIDER,
açude se ligava a outro. As frequências com que cascatas de C. M.; ARAÚJO, J. C.; HERRMANN, H. J.
Overspill avalanching in a dense reservoir
Para a surpresa de todos, verificaram intensidades diferentes aconteceram network. Proceedings of the National Academy
que não havia um valor típico médio para obedecem a uma distribuição de pro- of Sciences. v. 109, p. 7.191-95. 2012.

pESQUISA FAPESP 197  z  61


tecnologia  mineração oceânica y

Fertilizante
marinho
Uso de algas calcárias como adubo
em lavouras de cana pode elevar
a produtividade em até 50%

Yuri Vasconcelos

P
ode estar no fundo do mar a solução para o Brasil
elevar em até 50% sua produção de açúcar e eta-
nol sem que seja necessário plantar nem um metro
quadrado a mais de cana-de-açúcar. O montante
que o país deve produzir este ano é de 37 milhões
de toneladas de açúcar e 23,6 bilhões de litros de etanol. Es-
tudos realizados pela Universidade Federal de Lavras (Ufla),
no interior de Minas Gerais, em parceria com a empresa TWB
Mineração, com sede no Guarujá, no litoral paulista, revela-
ram que o uso de biofertilizante a partir de algas marinhas
calcárias, chamado granulado bioclástico, é capaz de gerar
um significativo ganho de produtividade nos canaviais por
elevar o teor de açúcar – ou sacarose – presente na planta.
Os pesquisadores descobriram que, ao ser aplicado na lavoura
como adubo misturado à vinhaça, um resíduo da produção su-
croalcooleira já empregado como fertilizante por várias usinas
do país, o granulado bioclástico possui um efeito reminerali-
zador e condicionador do solo e agrega mais de 40 nutrientes
importantes para o desenvolvimento da cana, entre eles cálcio,
silício e magnésio. “Essa nova fonte de nutrientes para a agri-
cultura tem um papel importante na correção da acidez do solo.
Ela retifica o pH dos solos ácidos, melhorando a assimilação dos
elementos nutritivos”, afirma o engenheiro agrônomo Paulo Cé-
sar Melo, professor da Ufla e um dos primeiros pesquisadores a
analisar o uso do granulado na adubação de lavouras no Brasil.
“Ao mesmo tempo, o granulado elimina o característico odor
fétido da vinhaça, ao absorver os gases voláteis exalados por ela.”

62  z  julho DE 2012


agricultura

Os granulados bioclásticos são areias e cascalhos mica das algas na plataforma brasileira é maior
constituídos principalmente por algas marinhas da do que a dos depósitos franceses”, ressalta Melo.
família Corallinaceae. Essas algas, cuja espécie mais O uso do granulado bioclástico como fertili-
conhecida é a do gênero Lithothamnium, precipitam zante foi objeto da tese de doutorado defendida
magnésio em suas paredes celulares, além do car- pelo pesquisador no departamento de ciência do
bonato de cálcio num volume de concentração em solo da Ufla. Na ocasião, ele avaliou a eficiência do
seu corpo maior do que qualquer outro organismo produto nas lavouras de milho-doce e feijão. Isso
vivo. De origem vegetal, elas crescem em profundi- foi em 2002. Seis anos depois, Melo foi procurado
dades que variam de 10 a 40 metros e em seu estado pela empresa TWB, que explorava uma jazida de
natural possuem uma tonalidade avermelhada ou algas calcárias a 300 milhas da costa do Espírito
azulada. A plataforma continental brasileira de- Santo, e queria encontrar aplicações economica-
tém um dos maiores depósitos de algas calcárias mente rentáveis para a matéria-prima. “Naquela
do mundo, numa faixa de 4 mil quilômetros que época, meus estudos já mostravam que o granulado
se estende do litoral do Pará ao do Rio de Janeiro. aumentava a concentração de açúcar em frutas,
A existência de amplas ocorrências dessas al- como laranja, maracujá, pitaia, mamão e goiaba.
gas na plataforma continental das regiões Norte Tivemos, então, a ideia de testá-lo na lavoura de
e Nordeste foi relatada na década de 1960 por cana-de-açúcar, uma das mais importantes do
pesquisadores da Universidade Federal de Per- país”, lembra o pesquisador. Para isso, foi firmado
oceanografia
nambuco (UFPE). A última descoberta foi uma um acordo com a Cooperativa Agroindustrial de
área de 21 mil quilômetros quadrados identificada Rolândia (Corol), no interior do Paraná, para uso
na região do arquipélago de Abrolhos no sul do do granulado em canaviais da Fazenda Santa Rosa,
litoral do estado da Bahia (ver Pesquisa Fapesp no município paranaense de Jaguapitã. Antes da
nº 196). “Na Europa, principalmente na França, aplicação no campo, foram conduzidos estudos
essas algas já são empregadas há décadas para nos laboratórios da Ufla para definição da dose
ilustração drüm

nutrição animal e vegetal. Aqui no Brasil seu recomendada do produto, de acordo com a aná-
uso é recente e foi iniciado apenas há cerca de lise do solo do local, o histórico da área cultivada
20 anos. Mas o potencial de exploração econô- e a quantidade de adubo aplicado na plantação.

pESQUISA FAPESP 197  z  63


Alta produtividade
Saiba quais foram os ganhos gerados pelo uso do granulado bioclástico limites marinhos

na usina da Cooperativa Agroindustrial de Rolândia (PR)


davis
Vitória
sem vinhaça com Vinhaça com Vinhaça + Granulado bioclástico ilha de
trindade

ilhas
0m

71 87 132
20

ilhas
0m
35
t/ha t/ha t/ha
aumento aumento
de de No litoral do Espírito
Santo existem vários
32% 52%
4,8 t/ha
5,9
t/ha
9
t/ha
campos de algas. O Davis
foi explorado comercialmente,

4.210
mas a licença foi cancelada
2.244l/ha
2.771 l/ha
porque estava fora do mar
l/ha territorial de 200 milhas.
O governo brasileiro reivindica
a ampliação para 350 milhas.
cana-de-açúcar álcool açúcar

Em novembro de 2009, os pesquisadores mistura-


ram o granulado em 18 mil litros de vinhaça, um O granulado é um produto orgânico e
resíduo da indústria sucroalcooleira, que foram
aplicados no canavial. Para avaliar a eficiência atóxico ao homem, mais barato e mais
agronômica da inovação, o pesquisador utilizou
uma metodologia chamada de arranjo produtivo
eficiente do que os fertilizantes químicos
local (APL), usado pela Empresa Brasileira de
Pesquisa Agropecuária (Embrapa), que consiste
em avaliar e validar determinado produto numa não é necessário nenhum tipo de beneficiamento
cultura e num local específicos, comparando seus industrial. O processamento das algas se dá por
resultados com o de uma lavoura que não recebeu secagem natural, ensacamento e estocagem do
aquele produto. No estudo conduzido por Melo, produto. “O granulado bioclástico é um produ-
uma área de 3.600 metros quadrados de canavial to orgânico e atóxico ao homem, mais barato e
da Fazenda Santa Rosa foi dividida em três partes. mais eficiente do que os fertilizantes químicos
A primeira teve aplicação de granulado e vinhaça; convencionais. Todo seu ciclo produtivo – ex-
a segunda, somente de vinhaça; e a terceira não tração, processamento e transporte – não traz
recebeu nenhum dos dois produtos. impacto ao meio ambiente”, afirma o professor
Onze meses depois, a cana foi colhida e foram da Ufla. “Durante a dragagem, extraímos apenas
realizados testes para avaliar a eficiência agro- as formas livres das algas – ou seja, o exoesque-
nômica do granulado. “O emprego do granulado leto, que é a parte morta delas –, como rodolitos,
associado à vinhaça, em comparação ao uso ape- nódulos e seus fragmentos. A área do fundo do
nas da vinhaça, gerou um aumento significativo mar desses bancos de algas se parece com um
de açúcar. Constatamos também que houve uma deserto, praticamente sem vida marinha, a não
elevação de 52% na produção de açúcar e álcool. ser pela presença de grandes peixes.”
O granulado bioclástico potencializou a ação da
vinhaça”, diz Melo. A produção por hectare de Impacto ambiental
álcool na área adubada com granulado e vinhaça Esse tipo de exploração das algas preocupa a co-
atingiu 4.210 litros, ante 2.770 litros na área tratada munidade científica que estuda os rodolitos. “A
apenas com vinhaça. A produção de açúcar, por exploração das algas calcárias provoca impactos
sua vez, alcançou 9.020 quilos, ante 5.937 quilos. ambientais por tratar-se, na prática, de um recurso
A comparação entre a área onde foi aplicada a natural não renovável. Os rodolitos crescem muito
mistura de granulado e vinhaça com aquela que lentamente e têm o tamanho um pouco maior do
não recebeu nenhum dos dois produtos revelou que uma bola de tênis. Eles podem levar mais de
um ganho ainda maior, da ordem de quase 100%. 8 mil anos para serem formados”, diz o biólogo
Uma vantagem do uso do granulado como bio- Rodrigo Leão de Moura, professor do Instituto de
fertilizante, de acordo com Melo, é seu baixo cus- Biologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro
to de processamento. Depois que as algas calcá- (UFRJ). Segundo ele, os rodolitos são responsáveis
rias são retiradas do fundo do mar, por dragagem, pela complexidade do fundo e agregam biomassa

64  z  julho DE 2012


de algas, invertebrados e uma série de espécies de

4.210
importância comercial, tais como lagostas e pei-
xes de recife. “O impacto sempre irá existir, mas
pode ser reduzido se a extração se der em áreas
ilustração drüm fontes paulo césar melo / ufla, rodrigo leão de moura / ufrj e twb

litros
pequenas e cuidadosamente selecionadas, o que
não temos visto nesse tipo de empreendimento.”
Pelo menos três empresas brasileiras com minas
aprovadas pelo Ministério de Minas e Energia já
comercializam o produto ou demonstraram in- é o volume
teresse na extração de algas calcárias no litoral
brasileiro. A Oceana Brasil explora atualmente
de etanol
uma jazida a 50 quilômetros da costa de Tutoia, produzido
no Maranhão. O produto moído e ensacado custa
na fábrica o valor de R$ 750,00 a tonelada e recebe
com adubo
o nome de Algen. Outra empresa, a Algarea Mi- composto
neração, extrai o recurso de uma reserva na costa
do Espírito Santo. A TWB explorou por três anos
por granulado
uma grande jazida de algas calcárias no chama- de algas
do banco Davis, situado há cerca de 300 milhas
náuticas da costa, na cadeia submarina Vitória-
e vinhaça
-Ilha de Trindade, no litoral capixaba. Em 2008,
a empresa obteve a concessão de dois alvarás do
Departamento Nacional de Produção Mineral
(DNPM), órgão ligado ao Ministério de Minas e
Energia, para exploração da jazida, mas em 2011
teve as licenças anuladas sob a alegação de que a
reserva estava em águas internacionais, além da
fronteira marítima brasileira, cujo limite são 200 23

milhas náuticas (370 quilômetros) a partir da costa.


O potencial de exploração dessa reserva, de resse no projeto.” A empresa investiu aproxima-
150 mil hectares, é enorme. Segundo Paulo César damente R$ 5,8 milhões sem que tivesse obtido
de Melo, num ritmo de extração de 1 milhão de uma perspectiva de solução para uma operação
toneladas por ano, a jazida só se esgotaria em 2 continuada”, afirma o consultor e sócio da TWB,
mil anos. “O cancelamento das autorizações de João Manoel de Lima Monteiro. “A empresa para-
pesquisa fez com que a TWB perdesse o inte- lisou o projeto e está se concentrando em outras
áreas de suas atividades”, diz ele.
Uma das alternativas para viabilizar a explo-
ração do banco Davis seria estender a platafor-
ma continental brasileira para além das atuais
200 milhas náuticas. O governo brasileiro está
1 e 2 Granulado calcário pleiteando, junto à Comissão de Limites da Pla-
já triturado e a aspersão taforma Continental (CLPC) da Convenção das
na lavoura de cana com
a vinhaça
Nações Unidas sobre o Direito do Mar (CNUDM),
a extensão de sua plataforma continental com a
3 Amostra de alga incorporação de uma área de quase 1 milhão de
calcária com coral quilômetros quadrados aos 3,5 milhões de quilô-
fotos  1 léo ramos  2 paulo melo / ufla  3 guilherme H. Pereira-filho / ufrrj

metros quadrados de espaços marítimos que já


pertencem ao país. Chamada de “Amazônia Azul”,
em função de sua grande extensão e dos recursos
naturais que abriga, essa região guarda em seu
subsolo uma extensa lista de recursos minerais,
como diamante, zircônio, potássio, areia e cas-
calho – além dos depósitos de algas calcárias. n

Artigo científico

Moreira, R.A. et al. Crescimento de pitaia-vermelha com


adubação orgânica e granulado bioclástico. Ciência Rural
2 online. v. 41, n. 5. mai 2011.

pESQUISA FAPESP 197  z  65


Indústria alimentícia y

Proteção A
s mudanças nos hábitos alimentares e
a falta de tempo no dia a dia de quem
vive nas grandes cidades, além da busca
por um consumo sem desperdícios, têm

vegetal
provocado aumento nos estudos sobre alimen-
tos frescos que possam durar mais tempo na
prateleira ou na geladeira. As novidades estão
surgindo na forma de embalagens dotadas de
biofilmes biodegradáveis e coberturas comes-
tíveis que estão ganhando forma na Faculdade
de Engenharia de Alimentos da Universidade
Biofilmes produzidos com mandioca, Estadual de Campinas (Unicamp). Nos grupos
de pesquisa das professoras Miriam Dupas Hu-
banana e quinoa protegem e garantem binger e Florência Cecilia Menegalli o desafio
é conseguir embalagens baratas, práticas e não
longa vida a vários alimentos poluentes, além de fáceis de produzir.
Desde 2000, o grupo de Florência se volta para
o desenvolvimento de embalagens biodegradáveis
Sergio Kalili e coberturas comestíveis para frutas secas. Miriam
e suas orientandas especializaram-se em cobertu-
ras para frutas frescas e hortaliças, os chamados
produtos minimamente processados. “Nossas co-
berturas aliam dois benefícios: a praticidade para
quem vai consumir, já que a fruta está prontinha,
descascada e cortada, e o aspecto saudável do ali-
mento”, diz Miriam. Ela explica que suas cobertu-
ras funcionam como uma barreira, conservando a
água e os sais minerais da fruta, protegendo-a de
microrganismos e do contato com o ar.
Simplicidade foi uma das razões que levaram
Miriam a trabalhar com coberturas à base de fa-
rinha de fécula de mandioca na forma de gel. A
concentração desse material para formar uma
cobertura é menor do que a usada para fazer um
filme sólido, semelhante ao plástico, que neces-
sita da adição de agentes plastificantes para ficar
flexível. “Privilegiamos o custo, a disponibilidade
e a facilidade no preparo da cobertura, em uma
farinha que se gelatiniza a baixas concentrações e
1 não altera o sabor dos alimentos”, explica Miriam.
“As coberturas precisam ter resistência ao oxi-
gênio do ar, ao vapor de água e a microrganismos,
sem esquecer o principal: a aceitação sensorial do
consumidor.” Somada aos polissacarídeos da fari-
nha, que é a base da cobertura, a professora utiliza
uma mistura de dois componentes naturais, o áci-
1 Filme de banana para do cítrico, encontrado na laranja, por exemplo, e o
uso em sacolas ácido ascórbico (vitamina C). Eles são adicionados
2 Laranjas e carambolas antes de mergulhar a fruta na cobertura, inibindo a
cortadas e protegidas atividade enzimática, um dos fatores que levam ao
com biofilme
escurecimento do alimento em contato com o ar.
3 Aplicação de gel de Depois o alimento é deixado para escoar o líquido
2 mandioca em morangos em temperatura ambiente.

66  z  julho DE 2012


biofilmes eficientes para diferentes funções co-
mo resistência, flexibilidade e comestível. Entre
os ingredientes utilizados estão fontes não con-
vencionais para a produção de farinha e amido
de cereais como o amaranto, originário da região
dos Andes, na América do Sul, e mais recente-
mente de banana, em um filme reforçado por na-
nofibras de celulose obtidas da casca da própria
fruta, além do uso de nanocompostos com base
na montmorilonita, uma argila mineral presente
no subsolo de algumas regiões de Minas Gerais.
Do amido de quinoa, uma planta também nativa
dos Andes, foram produzidos filmes incolores
com reduzida solubilidade em água.
A professora esclarece que as experiên­cias com
nanocompostos são as mais recentes e complexas.
“Usamos a própria farinha da banana e do biri, que
é uma planta ornamental. Isolamos os biopolíme-
ros e fizemos a produção de uma fibra celulósica
dos resíduos. A microfibra feita de nanopartículas
deixa o filme menos permeável, menos solúvel”,
diz Florência. Esse produto, no entanto, vai levar
mais tempo para chegar ao consumidor. “Não po-
demos buscar acordos comerciais porque precisa-
3
mos primeiro observar qual é o efeito no homem
da ingestão de nanopartículas.” Outro estudo do
grupo é na área de coberturas de frutos secos com
A solução de cobertura de fécula de mandioca cria biopolímeros que são aplicados antes da secagem.
fotos  léo ramos

uma barreira com baixa permeabilidade do oxigênio Já foram testados em carambola, figo e caqui.
Os Projetos do ar, mas não protege o produto do vapor-d’água, No âmbito comercial, nos Estados Unidos, a em-
1 Amido de amaranto: presente na atmosfera. O recurso encontrado para presa Nature Seal produz coberturas comestíveis que,
estudo das propriedades proteger o alimento foi a produção de coberturas aplicadas à superfície de frutas e hortaliças, mantêm,
reológicas e termofísicas,
características estruturais emulsionadas ou em camada dupla que mistura a por exemplo, maçãs em pedaços com coloração clara,
e fisioquímicas de amido farinha de mandioca com lipídeos como, por exem- sem perder sabor e vitaminas por mais de 10 dias.
e de seus produtos (géis, plo, cera de carnaúba ou de abelha. Os resultados Os trabalhos do grupo de Miriam, precisamente a
coberturas e biofilmes)
nº 2002/12137-6 oriundos dessa estratégia foram animadores. pesquisa com morangos, chamou a atenção de uma
importante cadeia de lanchonetes dos Estados Uni-
2 Avaliação da qualidade Atividade correta dos e de uma grande empresa da Bélgica que comer-
de frutas minimamente O morango coberto com fécula de mandioca, sem cializa cerejas, framboesas e mirtilos. Um mercado
processadas com
coberturas comestíveis nenhum agente antimicrobiano, durou 12 dias, bilionário está se formando porque lanchonetes
nº 2009/51420-4 quando o normal são cinco. No caso do abacaxi como McDonald’s, Burger King, Wendy's e Jack in
sem casca, que normalmente tem uma vida de the Box tornaram seus cardápios mais verdes, adi-
modalidade prateleira de quatro dias, a sobrevida também cionando saladas e frutas frescas ao menu. O que as
1 e 2 Auxílio Regular foi em torno de 12 dias. A manga cortada, coberta coloca entre potenciais consumidores de biofilmes. n
a Projeto de Pesquisa com cobertura de mandioca, chegou a resistir 15
Coordenadoras dias. O normal é escurecer em dois dias apenas.
Florência Menegalli – Unicamp Marcela Chiumarelli, aluna que colaborou no Artigos científicos
Miriam Dupas Hubinger – estudo das coberturas, explica que “o manuseio CHIUMARELLI, M. et al. Stability, solubility, mechanical
Unicamp
de produtos minimamente processados ainda é and barrier properties of cassava starch – Carnauba wax
investimento recente no país, e muitos mercados e atacadões edible coatings to preserve fresh-cut apples. Food
Hydrocolloids. v. 20, n. 1, p. 59-67. jul. 2012.
R$ 47.909,00 e não realizam a atividade corretamente”.
US$ 16.092,00 (FAPESP) ANDRADE-MAHECHA, M.M. et al. Development and
R$ 33.108,04 (FAPESP) Florência e seu grupo estão testando várias optimization of biodegradable films based on achira flour.
composições para a produção laboratorial de Carbohydrate Polymers. v. 88, n. 2, p. 449-58. abr. 2012.  

pESQUISA FAPESP 197  z  67


Pesquisa empresarial y

Além dos
derivados
de petróleo
Braskem amplia mercados com
polímero feito a partir de etanol e
investe em rotas biotecnológicas

Dinorah Ereno

A
petroquímica brasileira Braskem, petroquímico de Triunfo (RS), onde está loca-
sexta colocada no ranking mundial lizada a petroquímica, também contribuiu para
do setor, produz anualmente mais esse resultado. Sozinha ela representa 28% do
de 16 milhões de toneladas de inter- mercado mundial de biopolímeros produzidos em
mediários químicos e resinas termo- 2010, que totalizou 724.500 toneladas, segundo
plásticas, como polietileno, polipropileno e PVC, a European Bioplastics, associação europeia que
e lidera a produção do chamado polietileno verde, representa os fabricantes, transformadores e usu-
feito a partir do etanol da cana-de-açúcar, resul- ários de bioplásticos e polímeros biodegradáveis.
tado de um trabalho de pesquisa e desenvolvi- A projeção é de um mercado com grande fôlego
mento tecnológico dos pesquisadores da área de de crescimento. A associação europeia estima que
polímeros. Apenas três anos atrás ela ocupava a em 2015 a produção atinja 1,7 milhão de toneladas.
11ª posição. A rápida escalada deve-se principal- No Brasil, o polietileno verde é usado, por
mente à compra da empresa brasileira Quattor exemplo, pela Danone em embalagens de iogurte,
e da divisão de polipropileno da petroquímica pela Faber Castell em embalagens de lápis e pe-
norte-americana Sunoco, na Filadélfia, em março la Natura nos seus produtos da linha erva-doce.
de 2010, o que abriu espaço para a atuação fora A Braskem vende o polímero bruto para os seus
do Brasil, e de quatro fábricas de polimerização clientes, que se encarregam da transformação da
Da esquerda para da Dow Chemical, duas nos Estados Unidos e resina em embalagens de cosméticos, protetores
a direita, Patrick duas na Alemanha, no ano passado. solares, brinquedos, sacolas de supermercado e
Teyssonneyre, Marcelo
Farah e Mauro
A inauguração da fábrica de polímero do etanol outras aplicações. Fora do Brasil, os acordos co-
Oviedo, na fábrica de cana em setembro de 2010 com capacidade de merciais para a utilização do polímero da cana
em Triunfo (RS) produção de 200 mil toneladas por ano no polo têm se ampliado, a exemplo da parceria firmada

68  z  julho DE 2012


biotecnologia

no início de junho com o grupo alemão Tecnaro, As melhores ideias são convertidas em pro-
empresa que desenvolveu uma espécie de madei- jetos que podem ter como objetivo desde um
ra termoplástica chamada Arboform, para dar novo produto ou tecnologia até um novo servi-
outros usos para a resina. ço e aplicação para algum produto já existente.
A possibilidade de voltar a produzir um po- “Buscamos universidades no mundo que são as
límero verde pela petroquímica, que tem como mais destacadas nos assuntos em pauta nos pro-
principais acionistas o grupo Odebrecht e a Pe- jetos e fazemos propostas de trabalho conjunto”,
trobras, surgiu em 2004, mas só em 2006, quan- diz Teyssonneyre, engenheiro de materiais for-
do a empresa contratou uma consultoria externa mado pela Universidade Federal de São Carlos
para fazer um mapeamento do mercado global, o (UFSCar). O primeiro contato com a Braskem
projeto tomou forma. “Na conversa com clientes, foi durante um estágio feito quando cursava a
percebemos que a questão da sustentabilidade universidade. “Comecei como engenheiro de
estava ganhando importância no mercado con- desenvolvimento de produtos e depois passei
sumidor”, diz Patrick Teyssonneyre, diretor de a gostar dos laboratórios”, conta o diretor, que
inovação e tecnologia para polímeros, de 35 anos fez MBA em gestão na Fundação Getúlio Vargas.
e há 12 na Braskem. Para o trabalho de prospec- Entre as instituições parceiras da empresa es-
ção a empresa tem uma equipe de 70 pessoas, tão a Universidade Estadual de Campinas (Uni-
composta pelas áreas comerciais, de marketing, camp), a Universidade Federal do Rio de Janei-
desenvolvimento de mercado e engenharia de ro (UFRJ), a Universidade Federal do Rio Gran- química
andré cavalheiro

aplicação, que estão sempre em campo consul- de do Sul (UFRGS) e as universidades Clemson,
tando clientes e consumidores finais sobre as Massachusetts e Stanford, nos Estados Unidos.
necessidades e tendências no setor. Com Stanford, por exemplo, a Braskem firmou um

pESQUISA FAPESP 197  z  69


contrato para o desenvolvimento de uma
resina de polipropileno para o segmento
de fibrocimento, que apresentou excelen-
te desempenho em comparação com as
alternativas existentes no mercado. Em
maio, a empresa depositou uma patente da
tecnologia desenvolvida e o lançamento
comercial do produto está previsto para
outubro deste ano.
A Braskem tem 35 plantas industriais
distribuídas pelo Brasil, Estados Unidos e
Alemanha, e dois centros de pesquisa de-
dicados a petroquímicos, um em Triunfo
com 180 pesquisadores e o outro em Pit-
tsburgh, na Pensilvânia, Estados Unidos,
com 40 pesquisadores. Além disso, ela
dispõe de um laboratório de biotecnologia
e um de fermentação, sediados no Labo-
ratório Nacional de Biociências (LNBio),
1
em Campinas, com 25 pesquisadores. Es-
ses laboratórios atuam na pesquisa e de- 1 e 2 Pesquisadores no
senvolvimento de tecnologias renováveis laboratório de biotecnologia “Sabemos que a inovação tem risco e nem
instalado no LNBio,
e contam ainda com uma equipe de pro- todos os projetos vão dar certo, por isso
em Campinas
cessos renováveis. Engenheiros químicos, procuramos identificar nos estágios ini-
engenheiros de materiais, químicos e, mais 3 Maria Carolina Grassi dedica-se ciais aqueles que não são promissores”,
recentemente, biólogos, bioquímicos e à seleção de microrganismos diz Teyssonneyre. A cada etapa do projeto
robustos e competitivos
bioinformáticos compõem o quadro de é feita uma análise detalhada de riscos,
pesquisadores. Cerca de 40% têm gradu- tanto técnico quanto comercial, para
ação, mestrado ou doutorado e o restan- avaliar o grau de viabilidade. Oviedo,
te é formado por técnicos de laboratório. graduação em bioquímica pela Universi- por exemplo, foi convidado para traba-
“Os três laboratórios se complementam e dade de Concepción, no Chile, mestrado lhar na Braskem em junho de 2006 co-
operam de forma integrada”, diz Teysson- em biotecnologia industrial na Universi- mo integrante de um grupo criado para
neyre. Em 2011, a Braskem investiu R$ 155 dade de São Paulo (USP) e doutorado em desenvolver pesquisas na área de na-
milhões em pesquisa e teve renda líquida química na Unicamp, além de um estágio notecnologia para a classe das poliole-
de R$ 33,2 bilhões, um aumento de 19% em química na Universidade Birmingham, finas, da qual fazem parte o polietileno
em relação ao ano anterior. na Inglaterra, onde estudou mecanismos e o polipropileno. “O desenvolvimento
“Um diferencial da Braskem no desen- de degradação de materiais poliméricos, da tecnologia avançou em escala piloto,
volvimento de produtos é a sua proximi- e pós-doutorado em nanotecnologia de mas o mercado para esse tipo de poliole-
dade com o cliente e diferentes centros de polímeros, também na Unicamp. Toda a finas especiais não cresceu conforme o
pesquisa nacionais e internacionais, além sua pós-graduação, inclusive o estágio na previsto, por isso os recursos destinados
da qualificação dos integrantes”, diz Mauro Inglaterra, foi apoiada pela FAPESP. a essa linha de pesquisa foram alocados
Alfredo Soto Oviedo, de 41 anos, pesquisa- A política da petroquímica é garantir para projetos de maior prioridade”, diz
dor da área de polímeros em Triunfo, com que os recursos sejam bem investidos. Oviedo. Enquanto aguarda o momento
certo para produzir essa tecnologia, o
Instituições que formaram os pesquisadores da empresa grupo que durante três anos ficou en-
volvido com o projeto foi realocado para
Patrick Teyssonneyre, engenheiro de materiais, diretor UFSCar – graduação outras áreas. “Hoje trabalho na área de
de inovação e tecnologia para polímeros FGV – MBA
ciência de polímeros.” A equipe conta
Mauro Alfredo Soto Oviedo, bioquímico, pesquisador Universidade de Concepción, Chile – com 18 pesquisadores, entre químicos,
da área de polímeros graduação
engenheiros, farmacêuticos e bioquími-
USP – mestrado
Unicamp – doutorado e pós- cos, todos com mestrado ou doutorado.
doutorado Marcelo Farah, de 37 anos, graduado
Marcelo Farah, engenheiro de materiais, pesquisador UEPG – graduação em engenharia de materiais pela Univer-
da área de polímeros UFSCar – mestrado e doutorado sidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG),
no Paraná, com mestrado e doutorado em
Maria Carolina Grassi, bióloga, pesquisadora Unicamp – graduação e doutorado
do laboratório de biotecnologia ciência e engenharia dos materiais pela
UFSCar, também com bolsa FAPESP, faz
Maria Ignez Broglio, engenheira química, coordenadora Unicamp – graduação, mestrado
de pesquisa no laboratório de tecnologias renováveis e doutorado
parte desse grupo desde 2005. “Trabalha-
mos com assuntos diferentes e um tempo

70  z  julho DE 2012


fotos  léo ramos

Seis alunos 20 anos trabalhou na indústria química


de base e desde 2010 está na Braskem, é
2
da Unicamp desenvolver uma rota inovadora para a
produção de monômeros que serão uti-
de resposta rápida para atender às neces-
que participaram lizados na produção de plásticos verdes.
sidades e estratégias bastante diversas das do projeto Pite No laboratório de biotecnologia são
requisitadas na universidade”, diz Farah. desenvolvidas vias metabólicas para a
Uma das tarefas do grupo é fazer a pon- sobre rotas produção de compostos químicos de in-
te com a academia. “Buscamos capturar teresse. “Buscamos microrganismos que
oportunidades de pesquisas, com resul- verdes foram sejam robustos, com alto rendimento e
tados que nos interessam para incorporar alta produtividade do composto químico
a tecnologia no nosso dia a dia.”
contratados final, a exemplo dos utilizados na produ-
A Braskem não destina um percentual pela ção industrial de etanol e ácido lático”,
fixo para a pesquisa. O valor anual varia diz Maria Carolina.
em função dos projetos em andamento. petroquímica Maria Ignez coordena uma linha de
Para a implantação da fábrica de polie- pesquisa que tem como objetivo chegar
tileno de etanol da cana, por exemplo, mais rapidamente a moléculas verdes com
foram destinados R$ 500 milhões. Em- o uso de fontes de carbono renováveis e
bora não seja biodegradável, já que sua nº 177). Os seis alunos de pós-graduação a utilização de novos catalisadores (res-
estrutura química é idêntica à do plás- que participaram inicialmente do projeto ponsáveis pela aceleração dos processos
tico obtido do petróleo, o que confere à foram contratados pela Braskem. “Meu químicos). Ela cita o exemplo do álcool da
resina as mesmas propriedades físicas e doutorado em genética e biologia molecu- cana que foi transformado em monômero
mecânicas, o polímero verde tem atraído lar, que está sendo finalizado, foi iniciado verde por meio de catálise ácida. Por esse
a atenção do mercado por ser oriundo na Unicamp dentro desse projeto”, diz a método, o catalisador ácido desidrata o
de uma fonte renovável. pesquisadora Maria Carolina Grassi, de etanol, transformando-o em eteno, pro-
27 anos, formada em biologia pela mes- cesso com altíssimo rendimento. “A van-
tecnologias renováveis ma universidade e uma das contratadas. tagem desse processo é que não é preciso
A estrutura de pesquisa de tecnologias “A equipe de processos renováveis mexer nas instalações na etapa posterior
renováveis, instalada no LNBio desde se- acompanha tudo o que é desenvolvido em de polimerização da molécula obtida pela
tembro de 2010, originou-se de uma par- escala microscópica pelos pesquisadores catálise”, diz. Para produzir o polietileno
ceria entre a Braskem e o laboratório de da biotecnologia, avaliando e otimizando verde, por exemplo, a Braskem fez inves-
Genômica e Expressão da Unicamp em os principais aspectos da transformação timentos na primeira etapa, chamada re-
2007, por meio de um projeto coordenado em escala industrial”, diz Maria Ignez acional, e na purificação. A estratégia tem
pelo professor Gonçalo Guimarães Perei- Broglio, 47 anos, engenheira química for- como objetivo dispor de rotas alternativas
ra, que teve apoio da FAPESP na moda- mada pela Unicamp, onde também fez para produzir novas moléculas verdes pa-
lidade Programa Parceria para Inovação mestrado, que coordena uma das linhas ra o mercado e assim ganhar tempo para
Tecnológica (Pite), intitulado Rotas ver- de pesquisa com foco em catálise. A tare- a evolução dos microrganismos modifi-
des para o propeno (ver Pesquisa FAPESP fa da equipe de Maria Ignez, que durante cados biotecnologicamente. n

pESQUISA FAPESP 197  z  71


léo ramos
humanidades  desenvolvimento y

O relevo
econômico
do Estudo mapeia o processo de desconcentração
industrial no estado de São Paulo  |  Claudia Izique

interior
72  z  julho DE 2012
economia

O
geografia
processo de desconcentração industrial
no estado de São Paulo, iniciado na década
de 1970, alterou profundamente seu mapa
e território: a mancha metropolitana da
capital se expandiu em direção ao Vale
do Paraíba, Sorocaba e às regiões de Campinas e Ri-
beirão Preto, conglomerados urbanos especializados
se formaram ao longo de uma densa malha rodoviária
e as cidades médias assumiram a liderança do merca-
do em seu entorno. “O interior não é mais um espaço
plano. Tem ‘relevo’ econômico”, afirma Eliseu Savério
Sposito, do Departamento de Geografia da Faculdade de
Ciência e Tecnologia (FCT) da Universidade Estadual
Paulista (Unesp), em Presidente Prudente.
À frente de um grupo de pesquisadores, Sposito coor-
denou um projeto que mapeou o movimento e as carac-
terísticas do processo de desconcentração da indústria no
estado. Eles constataram, por exemplo, que muitas empre-
sas deslocaram fábricas para o interior, mas mantiveram
a sede, assim como o seu board, na cidade de São Paulo.
Esse divórcio dos processos de gestão e de produção,
que Sposito qualifica de “disjunção produtiva”, obedece
à “lógica da acumulação capitalista” de reduzir custos de
Rodovia dos produção que, nos anos 1980, cresciam significativamente
Bandeirantes, rumo na metrópole. Essa lógica, no caso de São Paulo, confe-
ao interior do
estado: expansão
riu um caráter particular à desconcentração industrial.
do eixo do “O processo limitou-se a uma área bem definida e, por
desenvolvimento extensão, ao território nacional, não se tornando nítida e

pESQUISA FAPESP 197  z  73


forte nas cidades médias do oeste do território do – Campinas, São José dos Campos, Sorocaba e
estado”, diz Sposito. Os pesquisadores utilizaram Santos –, que mantém centralidade em relação
informações do Instituto Brasileiro de Geografia e às demais áreas de produção e de consumo do
Estatística (IBGE), da Fundação Sistema Estadual estado, analisa Maria Encarnação Beltrão Spo-
de Análise de Dados (Seade) e Relação sito, do departamento de geografia da Unesp de
Anual de Informações Sociais (Rais), Presidente Prudente. “Essa formação caracteri-
entre outras organizações. za uma macrometrópole, se quisermos adotar a
ideia de François Ascher para conceituar as no-
Em 2010, Eixos de desenvolvimento vas configurações espaciais de Paris e sua bacia
Os fatores determinantes da nova geo- de influência”, diz Maria Encarnação.
75% da indústria grafia econômica do estado, os eixos de A nova cartografia se traduz num mapa recor-
de alta e média desenvolvimento em torno dos quais se tado por eixos de desenvolvimento orientado pela
aglomeraram indústrias migrantes e a malha rodoviária e infoviária, corredores ferroviá­
tecnologia nova conformação das cidades foram rios e uma hidrovia, em torno dos quais se aglu-
analisadas no âmbito do projeto O novo tinam grandes empresas industriais com acesso
estava mapa da indústria no começo do século ao mercado nacional e global por meio de quatro
XXI: novas dinâmicas industriais e o aeroportos de carga e o porto de Santos. Dinâmi-
concentrada território, coordenado por Sposito, que ca semelhante se reproduz em conglomerados
nas regiões começou em 2006 e foi concluído em urbanos formados por cidades de porte médio,
2011. A iniciativa reuniu 11 pesquisado- em que prevalecem pequenas e médias indústrias
administrativas res do Grupo de Produção do Espaço e fornecedoras de mercadorias e de serviços em
Redefinições Regionais (Gasperr), da âmbito local e regional. Articuladas por eixos de
de São Paulo Unesp, bem como das universidades desenvolvimento, a macrometrópole e o interior
de São Paulo (USP), Federal do Para- do estado formam o maior e mais diversificado
e de Campinas ná (UFPR) e da Estadual do Oeste do parque industrial do país, com participação de
Paraná (Unioeste). O grupo já publicou 33% no Produto Interno Bruto Nacional (PIB).
dezenas de artigos, que serão reunidos Para compreender o novo mapa do território
em três livros, e promete editar um atlas digital paulista, os pesquisadores investigaram a evolução
com cerca de 400 mapas que descrevem a nova da indústria em São Paulo à luz do materialismo
geografia econômica de São Paulo. histórico e seus desdobramentos efetuados a partir
Assim, a atual configuração geográfica do es- das transformações observadas nos séculos XX e
tado não descreve um território homogêneo: XXI. Nessa perspectiva, explicam a desconcentra-
revela uma Região Metropolitana “transborda- ção industrial como resultado da transição de um
da” em direção a quatro regiões administrativas sistema fordista de produção – baseado na estra-

foto  Lucas Lacaz Ruiz/Folhapress  mapa drüm

Linha de montagem
da GM em São José
dos Campos,
região do Vale do
Paraíba: no interior,
mas perto da capital

74  z  julho DE 2012


caminhos de são paulo
Alguns dos
maiores PIBs Goiânia

regionais e
suas principais
conexões
nos diversos
Uberlândia
eixos de Belo Horizonte

transporte
no estado
Campos dos
de São Paulo Goycatazes

Interior de
São Paulo

RMSP

PIB cidade

Eixos rodoviários
Rio de Janeiro
Eixos ferroviários
(bitola mista)
Porto de Santos
Eixos ferroviários
(bitola larga)
Curitiba
Eixos ferroviários
(bitola estreita)

Terminal Mairinque

Joinville
Escala 1 : 7.000.000
Porto de Santos

tégia de linha de montagem e produção em massa, malha rodoviária paulista somava mais de 198 mil
em que é forte a relação entre empresas e territó- quilômetros. Deste total, 5 mil quilômetros de ro-
rio – para um sistema de acumulação flexível do dovias – exatamente aquelas com maior fluxo de
capital –, onde os investimentos não reconhecem transportes, traçados em mão dupla e conectados à
fronteiras, e que também norteiam o processo de capital – já eram operados por concessionárias pri-
globalização de empresas. “As necessidades loca- vadas. “As rodovias são o esqueleto do crescimento
cionais passam a ser ditadas pelo acesso aos trans- econômico do estado”, enfatiza Sposito. O estado
portes, pelas possibilidades de conexão à internet, conta ainda com quatro grandes aeroportos, por
aos satélites e às telecomunicações”, afirma Arthur meio dos quais circulam passageiros e cargas de
Magon Whitaker, da FCT/Unesp. “As distâncias maior valor agregado. O de Viracopos, em Campi-
relativas tornam-se cada vez mais importantes do nas, é o segundo maior terminal de cargas do país.
O Projeto que as distâncias absolutas”, ele escreveu em Uma A infraestrutura de transporte, associada à
O novo mapa da indústria no discussão sobre o conceito de produção do espaço ur- disponibilidade de mão de obra qualificada e
começo do século XXI: novas bano, que integrará a publicação do grupo. especializada, patrocinou o que Sandra Lencio-
dinâmicas industriais e o
território – nº 2004/16069-0 ni, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
investimento público Humanas da USP, qualifica de “desconcentração
modalidade A descentralização da indústria amparou-se nos concentrada”. Nas regiões administrativas que
Projeto Temático investimentos públicos, principalmente esta­duais, circundam a capital, os indicadores mostram que
Co­or­de­na­dor na reorganização do território para atender às o crescimento em valor agregado foi maior que
Eliseu Savério Sposito – demandas corporativas e permitir maior fluidez o número de unidades industriais, demonstran-
FCT/Unesp
e competitividade territorial das empresas, anali- do um movimento de empresas mais capitaliza-
investimento sa Márcio Rogério da Silveira, que foi docente da das e/ou de porte grande ou médio, exemplifica
R$ 196.879,45 (FAPESP) Unesp, no estudo sobre os sistemas de transpor- Maria Encarnação. Em outras regiões – Marília,
te e logística no estado de São Paulo. Em 2007, a por exemplo –, embora a participação no total do

pESQUISA FAPESP 197  z  75


fotos 1 Leonardo Wen/Folhapress 2 Edson Silva/Folhapress, FOLHA RIBEIRÃO
2

Fábrica de máscaras em caminho para minimizar as disparidades regionais,


Itapetininga (esq.) e linha criou diferenças de outra natureza que mantêm o
de produção de calçados
quadro de desigualdade”, observa Sandra.
para exportação em
Franca: maior oferta Distantes da macrometrópole, nas cidades mé-
1 de empregos dias predominam empresas de capital local e os
setores industriais, de serviços e o comércio se
mantêm ligados ao mercado consumidor regional.
No noroeste do estado destacam-se A distância de São Paulo foi, reconhecidamente,
um obstáculo para a diversificação e ampliação do
as atividades relacionadas a parque industrial, mas induziu o fortalecimento
da centralidade dessas cidades, analisa Sposito.
agricultura, pecuária e serviços afins “O mercado consumidor local e regional próximo
é o principal motivo para a predominância das
empresas de micro e pequeno porte em todos os
setores da economia.”
estado em valor adicionado tenha crescido, os da- Essas empresas, em geral, são constituídas por
dos dão conta de que esse movimento é resultado capital local, empregam mão de obra de baixa
do aumento do número de empresas. qualificação e remuneração e, em sua maioria,
A macrometrópole não se diferencia do interior oferecem serviços ou mercadorias básicas para
apenas pelo porte das empresas. “A desconcentração um mercado consumidor pouco exigente. “Mas
industrial se deu em paralelo e simultaneamente à são fundamentais para a economia regional”,
intensificação do adensamento da indústria inova- destaca. Nas duas maiores cidades do oeste pau-
dora na Região Metropolitana de São Paulo e em seu lista, São José do Rio Preto e Bauru, 90% das
entorno”, afirma Sandra. É aí que se adensam “con- empresas são de micro ou pequeno porte. “Nas
dições gerais de produção” necessárias ao desen- demais cidades a proporção é próxima de 80%”,
volvimento de atividades de ponta: universidades, diz Sposito. Predominam o comércio varejista e
centro de pesquisa, parques tecnológicos e apoio reparação de objetos pessoais e domésticos, co-
à pesquisa e desenvolvimento (P&D), bem como mércio e representação de veículos automotores
uma extensa rede de circulação material, de fibra e motocicletas, varejo de combustíveis e serviços
óptica e uma importante concentração de serviços. prestados às empresas, alojamento e alimentação,
Em 2010, o estado de São Paulo abrigava 70% saúde e serviços sociais, segundo a Classificação
das indústrias de alta e média intensidade tecno- Nacional da Atividade Econômica. Mesmo assim,
lógica da Região Sudeste. Deste total, 75% se loca- outra tendência mostra indício de mudanças: há
lizavam em duas regiões administrativas, a de São empresas que, mesmo localizadas em cidades mé-
Paulo e a de Campinas, e empregavam 79% do pes- dias ou pequenas, articulam-se diretamente com
soal ocupado na indústria com curso superior. “A o exterior, sem a intermediação da metrópole.
capacidade da indústria de ponta de gerar riqueza Em Marília, Araçatuba e Presidente Prudente, a
indica que, no bojo do processo de desconcentra- noroeste do estado, destacam-se as atividades re-
ção da indústria paulista, o que parecia indicar um lacionadas a agricultura, pecuária e serviços afins.

76  z  julho DE 2012


Essa especialização entre cidades deixa nítida a A presença da indústria manufatureira do inte-
existência de uma rede urbana em que prevalece rior na pauta paulista de exportação, no entanto, é
uma “divisão do trabalho” entre muni- pequena: em 2006, apenas 3 das 15 regiões adminis-
cípios e regiões do estado. “E o centro trativas do estado eram responsáveis por 70% das
dessa rede é São Paulo”, insiste Sposito. exportações: São Paulo, Campinas e São José dos
A especialização das cidades do Campos. Apenas uma entre as 210 empresas expor-
O Estado teve interior é reforçada por 39 arranjos tadoras de Franca, por exemplo, tinha uma carteira
produtivos locais (APLs) – segundo de exportação superior a US$ 100 milhões por ano.
um papel central estatísticas do Serviço Brasileiro de Na grande maioria dos casos, as vendas externas
Apoio às Micro e Pequenas Empresas não ultrapassavam a casa de US$ 1 milhão por ano.
no processo de (Sebrae) – que articulam cerca de 120 As mesmas estatísticas revelam também que
descentralização municípios em todo o estado. O APL da os produtos da agroindústria e os da indústria de
cadeia produtiva de calçados masculi- alta tecnologia têm participação quase idêntica
da indústria ao nos da região de Franca, por exemplo, na pauta de exportação: as vendas de açúcar de
reúne mais de 3,7 mil micros, pequenas cana e de aviões – primeiro e segundo colocados
dar velocidade e médias empresas de cinco municí- no ranking dos principais setores exportadores,
ao deslocamento pios, gera 51 mil empregos e produz
cerca de 37 milhões de pares de cal-
por exemplo – somaram US$ 2,5 bilhões e US$
2,3 bilhões, respectivamente. Sandra ressalva, no
de pessoas, çados por ano, segundo informações entanto, que do ponto de vista do valor agregado
da Secretaria de Ciência, Tecnologia o preço das commodities e produtos de alta tec-
mercadorias e Desenvolvimento Econômico de São nologia são díspares: “O valor de uma tonelada
Paulo. A indústria calçadista atende ao de circuito integrado, por exemplo, equivale a 21
e informações mercado nacional e é responsável por mil toneladas de minério”, ela compara.
algo em torno de 3% das exportações
de calçados do país. Investimentos públicos
Os negócios da indústria exportado- O estado teve um papel central no processo de
ra instalada no interior com o mercado descentralização da indústria. “Organizou a in-
externo prescindem da metrópole: a conexão fraestrutura regional, dando velocidade ao des-
com o cliente é feita por meio de 30 estações locamento de pessoas, mercadorias e informa-
aduaneiras do interior (Eadi) instaladas em todo ções”, ressalva Sposito. As políticas municipais
o estado. Também conhecidas como Porto Seco, também tiveram peso: as cidades criaram distri-
as EADIs são um dos terminais diretamente li- tos industriais e utilizaram estímulos fiscais para
gados por estrada, via férrea ou área ao ponto de atrair empresas e ampliar a oferta de empregos.
escoamento do produto. Na avaliação de Sposito, a força do interior do
estado tem, ainda, raízes históricas. A economia
do interior para a capital cafeeira, ele lembra, constituiu uma rede de cida-
des dinâmicas e um mercado consumidor forte,
Estimativa de deslocamentos diários em direção à Região Metropolitana de São Paulo
para os próximos anos – em número de veículos formando uma rede urbana no interior. “Na pri-
meira metade do século XX foi no interior que
ocorreu a maior acumulação capitalista. Capitais
Eixo 2010 2013 2023 2038
privados financiaram a construção de galpões, ro-
Anhanguera /
439.019 478.754 636.531 893.441 dovias, ferrovias que posteriormente foram encam-
Bandeirantes
pados pelo estado.” O mesmo aconteceu com os
Castello Branco / bancos regionais que ao longo dos últimos 50 anos
432.271 475.090 609.610 781.830
Raposo Tavares foram sendo incorporados pelos grandes bancos.
No mesmo período, uma parcela de empresas
Régis Bittencourt 220.252 245.362 324.691 452.483 com origem em cidades de interior se metropoli-
zou. O Bradesco, que nasceu em Marília, tem sede
Imigrantes / em Osasco; a TAM, também criada em Marília,
288.647 312.765 419.835 595.133
Anchieta voou para São Paulo, e a rede Eldorado começou
em Catanduva antes de se instalar na capital. “A
Ayrton Senna /
Dutra
315.039 355.261 463.163 646.992 economia de São Paulo não tem um movimento
único. Há agentes do interior fundando empre-
Fernão Dias 123.971 143.525 180.463 236.504 sas que se deslocam para São Paulo, ao mesmo
tempo que se tem um movimento de empresas
em direção ao interior”, conclui Sposito. As três
Total 1.820.096 2.010.756 2.634.293 3.606.384
publicações que estão sendo elaboradas pelos in-
tegrantes do grupo e o atlas da indústria paulista
Fonte  DER, 2012
revelarão o mapa desse intenso movimento. n

pESQUISA FAPESP 197  z  77


Relações exteriores y

A dança das
cadeiras da ONU
Ideia do Brasil no Conselho de Segurança, vista como
“capricho” por analistas, partiu dos Estados Unidos

Carlos Haag

E
strela do encontro, Rui Barbosa confessou membro permanente: o Brasil e a criação da ONU
sua decepção com os rumos práticos da (Contraponto). A sugestão partiu do presidente
Conferência de Haia, de 1907. “Mas seus Roosevelt, que instruiu sua delegação a trabalhar
resultados invisíveis foram muito longe, pela candidatura brasileira. Fazer parte do órgão
pois mostraram aos fortes o papel necessário dos que realmente detinha o poder na ONU, respon-
fracos na elaboração do direito das gentes.” Esse sável pela segurança global, era um sonho de con-
conceito de superação das relações assimétricas sumo, privilégio dos chamados Quatro Policiais:
de poder por novas formas ideais de interação Estados Unidos, Inglaterra, União Soviética e Chi-
diplomática, em que o estatuto igualitário seria na. A França, posteriormente, se juntaria a eles e
um dado essencial, permanece no discurso diplo- formaria o grupo dos P-5.
mático brasileiro até hoje, presente, em especial, “Relatei ao presidente que havíamos levantado
na candidatura do país a um assento permanente a questão de um lugar permanente para o Brasil
no Conselho de Segurança das Nações Unidas. no Conselho de Segurança, que o grupo soviético
Para muitos analistas, essa aspiração é uma mis- e o britânico se opuseram e que pressionar ainda,
perception da nossa real estatura internacional, a esta altura, não seria aconselhável. O presiden-
o desejo por um status que, alcançado, traria te, finalmente, concordou em não incluir o Brasil
um ônus financeiro e militar elevado. A ação na minuta inicial, mas que uma cláusula geral
recente do Executivo nesse sentido seria até uma deveria ser incluída na proposta, de maneira a
“obsessão”. deixar uma porta aberta para que, trabalhando
A história, porém, revela que a pretensão de com Stalin e com o primeiro-ministro britânico,
ser o “sexto membro” do conselho não é fruto de ele pudesse, mais tarde, voltar a tocar no assunto,
uma visão distorcida, mas fez parte da agenda da antes do início do funcionamento da organiza-
criação da Organização das Nações Unidas (ONU) ção”, escreveu o subsecretário de Estado ame-
em seus primórdios. “Em 1944, na Conferência de ricano Edward Stettinius em seu diário pessoal
Dumbarton Oaks, que reuniu as potências alia- em agosto de 1944. Dias mais tarde, completou:
das, foram aprovadas propostas para a criação de “Entreguei ao presidente o memorando sobre o
uma nova organização internacional encarregada Brasil que recomendava que não pressionásse-
de manter a paz futura, pela força se necessário. mos por um lugar permanente para o Brasil. A
O Brasil, ausente do encontro, foi o único país a princípio, ele não gostou, mas depois concordou. Bertha Lutz
ser cogitado como detentor de uma sexta cadeira O presidente declarou que isso era importante assina pelo
Brasil na
permanente no futuro Conselho de Segurança”, porque, no futuro, ele poderia querer propor um
Conferência de
conta o diplomata Eugênio Garcia, professor ti- lugar para um país islâmico e que o Brasil era um São Francisco
onu

tular do Instituto Rio Branco e autor de O sexto trunfo escondido para uso posterior”. (1945)

78  z  julho DE 2012


diplomacia

história

pESQUISA FAPESP 197  z  79


O projeto de um grupo que pairasse Era também a chance de ajustar con-
bem acima de uma assembleia geral de tas com as grandes potências após o de-
países “menores” foi uma maneira de re- EUA voltaram sastrado episódio da Liga das Nações de
partir o papel de “segurança” pelas várias 1926, quando o governo de Arthur Ber-
regiões, desonerando os Estados Unidos atrás e só nardes apostou todas as fichas na “can-
de terem que intervir militarmente em didatura natural” do Brasil a membro
todo o globo. “O governo brasileiro não
se dispuseram permanente do órgão. Preterido pela Ale-
foi consultado e só soube da proposta em a defender o manha, o país desligou-se da instituição.
outubro de 1944, quando foi divulgada O assento traria a retomada do multila-
a minuta de Carta aprovada na reunião Brasil como teralismo brasileiro de escopo universal.
sigilosa. A iniciativa nem sequer foi ama- Vargas, que dirigia pessoalmente a polí-
durecida nos círculos decisórios ameri- membro não tica externa brasileira, em detrimento da
canos, mas assim como incluíra a China chancelaria do amigo Oswaldo Aranha,
no grupo, a despeito da resistência dos
permanente tinha fé na sua amizade pessoal com Roo-
outros aliados, Roosevelt achou que a sevelt e apostou na conversação bilateral
sugestão vingaria”, observa o autor. Um para barganhar seu lugar no conselho.
memorando interno, de setembro de 1944, Mais tarde, conformado com um assento
levou ao Departamento de Estado uma provisório, a diplomacia varguista con-
conversa com o representante brasileiro tinuou focada no conselho. “O Brasil fez
em Washington: “O embaixador explicou essa opção porque viu que ali seria jo-
as dificuldades advindas de completa ig- então, que o apoio de Washington seria gada a partida principal. Que Vargas te-
norância em que são mantidos sobre as limitado à candidatura do Brasil a um nha tomado essa decisão é digno de nota.
negociações de Dumbarton Oaks. Disse lugar temporário no órgão, o que acon- Apesar do seu foco no desenvolvimento
que o presidente Vargas estava muito em- teceu em 1946. “Mas as alegações eram econômico, ele não renunciou a conse-
baraçado por admitir que só sabem o que muito seletivas. Falava-se que o poder guir um papel para o Brasil na esfera da
sai na imprensa e que até o governo ar- militar era condição para um assento, mas segurança internacional”, diz Eugênio.
gentino está tão informado quanto eles”. a China, então, só controlava uma fração A ligação “especial” com Washington
de seu território. A imposição americana fez com que o Brasil mantivesse vínculos
Rio Branco foi estratégica, para fortalecer o aliado débeis com a vizinhança, que retribuía
A resistência imediata da Inglaterra e da asiático na luta contra o Japão”, analisa o “dar as costas” com desconfiança, em
União Soviética ligava-se ao pró-america- Eugênio. A Inglaterra, por sua vez, con- especial a Argentina. “Vargas, no entanto,
nismo brasileiro, explícito desde os tem- trária ao Brasil, deixou de lado sua res- oscilava entre afinar-se com os Estados
pos de Rio Branco. O Brasil, no conselho, trição a um novo membro para dar um Unidos e precaver-se contra a deterio-
diziam, seria “voto duplo” dos Estados assento à França gaullista. No Catete o ração das relações com os argentinos”,
Unidos. Mesmo a delegação americana balão de ensaio de Roosevelt encheu-se conta o autor. Afinal, entre 1944 e 1945,
desaconselhou Roosevelt, porque os Es- de entusiasmo, visto como recompensa com o fim do conflito, o Brasil não era
tados Unidos seriam “responsáveis” pe- ao único país sul-americano a enviar tro- mais um parceiro estratégico e os Esta-
lo desempenho brasileiro. Acordou-se, pas à Europa. dos Unidos foram se afastando do “ami-

A onu em ritmo brasileiro

1944 1945 1946 1994 2003 2011


Em Dumbarton Oaks, Na Conferência de Brasil consegue Brasil, com o Presidente Lula, Presidente Dilma
criou-se a ideia São Francisco, a um lugar chanceler Amorim, em seu primeiro abre a Assembleia
de um organismo de delegação brasileira temporário lança candidatura discurso na ONU, da ONU falando
segurança, a futura aceitou os termos, e participa oficial ao Conselho retoma projeto sobre necessidade
ONU. Roosevelt mas tentou da primeira de Segurança de candidatura da igualdade entre
defendeu a entrada incluir revisão do reunião do e pede a brasileira os países e que o
do Brasil como documento em cinco conselho sua reforma Brasil continua a
membro do Conselho anos em busca do desejar seu assento
de Segurança assento permanente entre os grandes

80  z  julho DE 2012


estrategicamente vital. Quando o governo
fotos  onu

brasileiro mais ansiava o reconhecimento


de sua lealdade para colher os frutos da
relação especial que acreditava ter com
os Estados Unidos, estes abandonaram o
país. Foi o início do desencantamento”,
observa o autor. Se o país ganhasse o as-
sento em 1945 seria uma consequência da
intervenção americana, como no caso da
China, ou, voltando no tempo, da mesma
forma que o Brasil entrou no Conselho da
Liga das Nações, em 1919, por indicação do
presidente Wilson. Sobraram concessões
como um assento temporário (já ocupado
uma dezena de vezes), a participação de
Oscar Niemeyer na equipe que projetou
o edifício-sede da ONU, em Nova York,
e a convocação de Aranha para presidir
a espinhosa sessão da Assembleia Geral
que ratificou a partilha da Palestina em
2 1947. Os fortes ainda não reconheciam o
1 Encontro de papel necessário dos fracos na elaboração
Dumbarton Oaks, do direito das gentes.
em 1944, que
“inventou” a ONU
Apenas em 1989 o então presidente
José Sarney voltou a tocar na questão
2 Dutra, ao centro, do assento em seu discurso na Assem-
olha o projeto do bleia Geral. Em 1994, durante o governo
prédio da ONU,
em 1947
de Itamar Franco, o Brasil relançou ofi-
cialmente a sua candidatura a uma vaga
permanente e atuou em favor de uma
reforma do conselho. Durante o governo
Lula, a reforma e o assento tornaram-se
um dos principais tópicos da sua política
externa, e o presidente, já em 2003, em
go leal”. A morte de Roosevelt em 1945 serviria para manter a essência da Carta seu primeiro discurso na ONU, defen-
sepultaria de vez a era das relações bi- “na marra”: ou se aceitava a manutenção deu abertamente o projeto. Foi a mesma
laterais “especiais”. A Conferência de das prerrogativas dos membros perma- atitude adotada em 2011 pela presidente
São Francisco foi convocada naquele ano nentes, ou, avisaram, não haveria orga- Dilma Rousseff, que insistiu na defesa da
para formalizar as propostas de Dumbar- nização alguma. candidatura nacional.
ton Oaks com os “45 países menores”. O Brasil, que de início se opôs à con- Para Eugênio, as chances brasileiras,
cessão do veto ante a ameaça de malogro hoje, são maiores. Mas adverte: “A ca-
pressão da conferência, voltou atrás e aceitou deira permanente não significaria que o
Vários países foram pressionados a esta- os termos. Antes de se render, a delega- Brasil se transformou em uma ‘potência
belecer relações com a União Soviética, ção brasileira propôs a revisão da Carta mundial’ da noite para o dia, mas que o
como condição para participar da con- em cinco anos com a “emenda Vello- conselho se abriu a países em desenvol-
ferência, atendendo às reclamações de so”, nome do chanceler que substituíra vimento aceitando-os como membros
Stalin. O Brasil foi o primeiro a ser “tra- Aranha. Seria um mecanismo de revisão permanentes via eleição da Assembleia
balhado” pelos americanos. Desde 1917 quinquenal, a cargo da Assembleia Geral, Geral”. Segundo ele, o órgão, importan-
o país não tinha laços diplomáticos com com poderes constituintes para mudar a tíssimo, não reflete a realidade em sua
os russos. Vargas, a contragosto, viu-se Carta por maioria de dois terços, sem ve- composição. “É preciso que ele seja mais
constrangido a fechar um acordo com to. Foi igualmente derrotada. De notável representativo para ser mais legítimo e
Moscou. A amizade duraria pouco: em restou a participação de Bertha Lutz, a eficaz”, observa. O pesquisador acredita
1947, o presidente Dutra, no fogo cruza- escolha menos conservadora de Vargas que o país está preparado para a função.
do da Guerra Fria, rompeu relações com para a delegação, que se empenhou na “Se em 1945 o presidente Roosevelt acha-
a URSS. Mas a pressão de 1945 já ante- defesa dos direitos das mulheres. va que o Brasil poderia integrar o conse-
cipava o tom do encontro, que deveria “O Brasil apostou na intercessão ameri- lho, quando o país era muito menos do
apenas ratificar as decisões dos Policiais, cana como caminho curto para o seu ob- que é atualmente, porque o Brasil não
incluindo-se o poder de veto dentro do jetivo, mas a estratégia falhou, porque os pode ser hoje o sexto membro perma-
Conselho de Segurança. A conferência Estados Unidos não viam mais o país como nente? É preciso pensar nisso”, diz. n

pESQUISA FAPESP 197  z  81


82  z  julho DE 2012
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história da ciência y

Ainda assim
o som se move
Músico, pai de Galileu
influenciou filho na busca pela
verdade experimental

“A
ciência descreve as coisas como são; a
arte, como são sentidas, como se sente
que são”, escreveu Fernando Pessoa. A
certeza do poeta foi motivo de debates
e de uma profusão de tratados filosóficos na pas-
sagem do século XVI, com sua crença platônico-
-pitagórica na matemática como fundamento da
ciência e da arte, para o século XVII, quando
se percebeu que nem tudo podia ser reduzido a
números. Em especial as coisas sentidas.
Um pioneiro dessa visão crítica foi o músico
Vincenzo Galilei (1520-1590), pai de Galileu Ga-
lilei, que antes do advento da revolução científica
já percebia os limites da “matematização”, capaz
de gerar mudanças positivas na classificação de
algumas ciências, mas ineficaz em outras. “Não
somente porque a busca da natureza dos objetos
de algumas ciências estava sendo posto em dúvi- música
da, mas porque as diferentes formas de interação
entre os conhecimentos práticos, teóricos e dos
artesãos se deram de maneiras diversas”, afirma,
a historiadora Carla Bromberg, que trabalha os
vários tratados teóricos de Vincenzo, a maioria
inéditos, na sua pesquisa de pós-doutorado Do
número ao som: a transformação do conceito qui-
Retrato de um
nhentista de música defendida por Vincenzo Galilei.
cavalheiro que
se presume seja “Ele demonstrou que a música era um fenô-
o compositor meno natural sonoro, contradizendo a tradição
Vincenzo Galilei, vigente que a entendia apenas como número e
pintado por
proporção”, explica. “Em seus escritos, fruto de
Alessando Allori
e datado do experimentações práticas e observações mate-
século XVI máticas, Vincenzo proporcionou esclarecimentos

pESQUISA FAPESP 197  z  83


gada apenas por causa da autoridade

fotos  1 DEA / G. DAGLI ORTI /De Agostini /Getty Images  2 Art Images Archive / Glow Images
do seu criador.
O alvo de Vincenzo era justamente os
adeptos dos conceitos pitagóricos, como
Gioseffo Zarlino (1517-1590), mestre-
-capela da catedral de São Marcos, em
Veneza. Embora tenha sido mestre de
Galilei por algum tempo, Zarlino tinha
uma leitura tradicional da natureza ma-
temática da música, tentando encaixar
na velha moldura pitagórico-platônica
legitimada na tradição textual as “novi-
dades sonoras” advindas dos excessos da
polifonia. Galilei, a partir de seus experi-
mentos, concluiu que muitas das razões
propostas teoricamente não existiam
na prática. Vincenzo também percebeu
que muitos dos intervalos musicais que
o sistema vigente negava existiam e eram
matematicamente representáveis.

incompatibilidade
Segundo a pesquisadora, ao experimen-
tar, na prática, as variações nos compor-
tamentos dos corpos, ou seja, da matéria,
e perceber que isso gerava diferenças
sonoras, Vincenzo viu que havia fatores
que as ciências matemáticas não davam
conta de explicar. Foi essa evidência da
incompatibilidade do mundo matemáti-
co, com seus objetos abstratos, e o mundo
físico, de objetos reais, que levou Galilei
a concluir que, se a natureza do material
estudado, o som, era sensorial, a evidên-
1 cia da experimentação era o caminho in-
A tocadora de alaúde, dicado para a investigação. Não se devia
pintura de Andrea privilegiar o estudo da música especulati-
Solario, datada do
século XVI, em Roma
vam a música. “Foi o choque das formas va ao estudo das sonoridades, campo das
de conhecimento prático e técnico com coisas “como se sente que são”.
o teórico que mostrou a necessidade de Mas, como faria o filho, a briga do pai
sobre o descompasso que havia entre a uma mudança e método. Defender ideias mexia com conceitos já estabelecidos há
teoria e práticas musicais de sua época que contradiziam autoridades e estru- muito tempo. A argumentação de Zarlino
e propôs ideias que se tornaram funda- turas do pensamento ocidental foi algo baseava-se na teoria de razões de núme-
mentos da acústica, da música barroca e que Vincenzo já fazia antes de Galileu.” ros inteiros, transmitida pelo filósofo Se-
do sistema tonal que perdurou por mais Em seus tratados musicais, o toca- vério N. Boécio e baseada nos gregos. Era
de 150 anos”, observa a pesquisadora. dor de alaúde e teórico musical esbo- ilustrada historicamente através da lenda
Embora mais conhecido como o pai de çou um método investigativo inovador. da invenção das consonâncias atribuída a
Galileu, Vincenzo influenciou filósofos “Na contramão da sua época, Vincenzo Pitágoras e seu monocórdio, instrumento
naturais contemporâneos a ele e pos- preconizou a supremacia da observação descrito como composto por uma única
teriores como Marin Mersenne, Simon e dos experimentos”, nota a pesquisado- corda estendida entre dois cavaletes fi-
Stevin e o próprio filho astrônomo. ra. Vincenzo não hesitava em questionar xos. Segundo se acreditava, o filósofo in-
Se, hoje, é mera fonte de prazer, a músi- doutrinas tradicionais. “Como ninguém vestigara a relação entre o comprimento
ca, desde a Idade Média, era considerada havia explicado os problemas de forma a de uma corda vibrante e o tom musical
como uma ciência que tinha por funda- satisfazer o intelecto, foram necessárias produzido por ela. Pitágoras observou
mento a aritmética e, consequentemente, uma averiguação e a arguição dos fatos que pressionando um ponto situado a
seu objeto não era o som, mas o número. teóricos”, escreveu. Para ele, qualquer 3/4 do comprimento da corda em rela-
Nas universidades, só se aceitava que se que fosse o autor, antigo ou moderno, ção a sua extremidade – o que equivale a
teorizasse sobre o mundo sonoro. Dentre era preciso contestar alegações falsas, reduzi-la a 3/4 de seu tamanho original
os autores desses tratados poucos pratica- pois uma ideia não deveria ser propa- – e tocando-a a seguir, ouvia-se uma

84  z  julho DE 2012


quarta acima do tom emitido pela cor- A grande ousadia de Galilei foi tra-
da inteira. Com 2/3 do tamanho original balhar diretamente sobre os corpos so-
da corda, ouvia-se uma quinta acima e noros, experimentando o som usando
com 1/2 obtinha-se a oitava. A música, Vincenzo tratou vasos de metal e outros objetos de tama-
como tudo no Universo, era matemática. nho, largura e volume diferentes, além
Para Vincenzo, porém, números não a música como de cordas feitas de materiais variados,
eram sonoros, mas tinham que ser apli- observando que os sons sofriam altera-
cados a algum corpo sonoro, ou seja, a
se fosse um ções de acordo com o comportamento
música tinha nos números apenas uma fenômeno físico de cada material. “Vincenzo demonstra-
representação dos sons. A matemática va assim, de forma inédita, a relevância
passava a instrumentalizar a música, e e cultural ao da matéria e de seu comportamento”,
não a fundamentá-la. Logo, a música não analisa a pesquisadora.
era um sistema numérico perfeito que mesmo tempo
existia em reinos celestiais, como que- ciência da acústica
riam os pitagóricos, mas composta de Vincenzo, através dos instrumentos
sons emitidos de corpos cujas diferentes musicais, introduziu princípios que se-
composições afetavam a percepção au- riam estudados, no futuro, pela ciência
ditiva das razões teóricas dadas. da acústica, desenvolvida por Joseph
Com seu alaúde, ele demonstrou que natural quanto outro: se ele agradava Saveur no século XVII”, nota Carla. Ao
a altura de uma nota poderia variar não ou não o ouvido não podia ser explica- “desnumeralizar” a música, Vincenzo
apenas em função do comprimento ou do por um sistema numérico, mas pela fez uma investida ousada. “Os teóricos
da tensão da corda, mas também quando própria audição particular e individual. do século XVI enfatizavam as razões pi-
se alterava a sua espessura ou o material A matemática não tinha poder sobre os tagóricas porque estas faziam parte de
do qual era feita. A legitimação dos in- sentidos. Vincenzo libertava a música do uma forma de compreender o mundo.
tervalos musicais de acordo com a teoria domínio dos números ao mostrar que a Segundo o pensamento pitagórico, tudo
pressupunha também que os intervalos realidade empírica não combinava ne- o que existia era representado por nú-
excluídos do sistema não eram naturais. cessariamente com as antigas razões que, meros e suas relações, por razões mate-
Contudo, para Galilei, um som era tão se acreditava, organizavam o Universo. máticas”, lembra a autora. “Ao invalidar,
no campo musical, o conceito das razões
Capa do tratado pitagóricas, Galilei abalava uma ordem
Della musica maior. Mas, talvez por não pertencer a
antica e della
moderna, de
nenhuma corte, entidade religiosa ou
Vincenzo Galilei, universidade, sua obra não causou o im-
datado de 1581 pacto que deveria.”
Vincenzo tratou a música simultanea-
mente como um fenômeno físico e cultu-
ral. Era uma criação humana, baseada em
leis físicas que governavam a produção
do som, bem como um fenômeno sonoro
sujeito a regras culturais definidas. “Pa-
ra ele, a combinação dos sons, descrita
como consonâncias ou dissonâncias, de-
pendia tanto de causas naturais como da
convenção e era isso que explicava por
que a música que agradava aos italianos
não tinha o mesmo efeito sobre outras
O Projeto
nações”, lembra a pesquisadora. Para
Do número ao som muitos, essas visões influenciaram di-
nº 2009/52252-8 retamente o filho, Galileu.
“Os estudos do pai apontavam para o
modalidade que seria a acústica, e os do filho, para
Bolsa de a mecânica. Ambos atacaram pilares da
Pós-doutorado
sabedoria aristotélica, como o funda-
Co­or­de­na­dora mento matemático da música e a per-
Carla Bromberg – feição do mundo celeste e abraçaram
Cesima/PUC-SP
outro pilar, o da relevância da matéria
investimento
R$ 144.869,89 e do comportamento dos materiais para
(FAPESP) o estudo do movimento e da mecânica”,
2 analisa Carla. n Carlos Haag

pESQUISA FAPESP 197  z  85


obituário y

Entre a ética e o espírito


Flávio Pierucci foi um dos

Tuca Vieira / Folhapress


maiores intérpretes da atual
religiosidade brasileira

E
le, que entendia como poucos o “desen-
cantamento do mundo” weberiano, uma
de suas especialidades, sem querer acabou
incrementando com sua morte, em 8 de
junho, aos 67 anos, esse desencanto. O sociólogo
Flávio Pierucci atuou no campo da sociologia da
religião a partir do referencial de Max Weber e,
recentemente, discutia o fenômeno da religiosi-
dade brasileira a partir dos dados dos vários cen-
sos demográficos. Interessava-se em particular
pelo crescimento do pentecostalismo em suas
várias vertentes, pela predominância da Igreja
Católica, a despeito da queda percentual dos
fiéis, e lamentava a diminuição dos adeptos das
religiões africanas como umbanda e candomblé
como fruto dessa expansão neopentecostal.
Especializou-se em teologia pela Pontifícia Pierucci, em
Universidade Gregoriana (1970), graduou-se no Brasil e Igreja: contradições e acomodação. 2004: análise
dos movimentos
em filosofia (1973) e obteve os títulos de mestre Um de seus trabalhos analisava a relação entre pentecostal
em ciências sociais, em 1977, com a dissertação o crescimento das igrejas neopentecostais e seu e católico
“Igreja Católica e reprodução humana no Brasil”, envolvimento com a política. Foi um dos estudos
defendida na Pontifícia Universidade Católica de pioneiros nesse tema.
São Paulo (PUC-SP); doutor em sociologia, em Para Pierucci, o Brasil assiste a uma oferta
1985, com “Democracia, igreja e voto: o envolvi- enorme de religiões, assim, afirmar que religião
mento do clero católico nas eleições de 1982”; e hoje é um negócio não seria um erro. E para aboca­
livre-docente, em 2001, com “Desencantamento nharem mais fiéis, ou clientes, segundo Pierucci,
do mundo: os passos do conceito em Max Weber”, as igrejas usam estratégias de marketing como as
este último pela Universidade de São Paulo, onde empresas. As pessoas não procuram mais a salva-
foi professor titular e chefe do departamento de ção depois da morte, seus desejos são imediatos.
sociologia até o seu falecimento. Entre 1971 e 1987 É isso que as novas religiões procuram oferecer.
foi pesquisador do Centro Brasileiro de Análise As que não oferecem, perdem clientes.
e Planejamento (Cebrap). “As pessoas estão procurando um novo tipo
Entre 1978 e 1985, foi professor do departa- de religião, que são as igrejas pentecostais, que
mento de sociologia da PUC-SP. Entre 1992 e na verdade prometem para você não a lealdade
1996, foi secretário executivo da Associação Na- a seu passado religioso, mas a ruptura com seu
cional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências passado religioso. É uma religião que cola muito
Sociais (Anpocs) e, de 2001 a 2012, foi secretário- na cultura capitalista”, afirmava. “A religião faz
-geral da Sociedade Brasileira para o Progresso hoje muito marketing de si mesma. Ela diz: olha,
da Ciência (SBPC). é preciso religião para ser feliz, para ter saúde,
Entre as dezenas de trabalhos publicados, des- mental e física. Alguns precisam e outros não.
tacam-se os livros A realidade social das religiões Uns vivem muito bem sem religião”, avisava. n

86  z  julho DE 2012


resenha

Getúlio pelo olhar de um repórter


Victor Gentilli

L
ira Neto é repórter. E a magnífi- primeiro, uma briga em Ouro Pre-
ca trilogia sobre Getúlio Vargas, to, onde estudava com seus irmãos
a maior personalidade política mais velhos, resultou na morte do
do século XX no Brasil, cujo primei- filho de um quatrocentão paulista.
ro tomo foi lançado em maio pela Nas centenas de páginas, lidas uma
Companhia das Letras, é seu gran- a uma, Lira encontrou uma descri-
de projeto de vida. Iniciado há dois ção do assassino feita por uma tes-
anos, resultará em três volumes que temunha-chave: usava bigode. Me-
terão, cada um, ao menos 600 pági- ninote, Getúlio naquela época ain-
nas. Completa, a trilogia ultrapassa- da era imberbe. No outro, de uma
rá 1.800. É projeto para cinco anos. índia no interior do Rio Grande,
Este primeiro volume cuida do encontrar o inquérito não foi fácil.
período de formação até a Revolu- Não estava arquivado na pasta em
ção de 1930, quando Getúlio assume Getúlio – Dos anos de que deveria estar. A persistência do
o poder. O segundo, a ser lançado em formação à conquista repórter que não desiste fez com
2013, tratará do período entre 1930 do poder (1882-1930)
Lira Neto
que terminasse encontrando-o.
e 1945, época em que ocupa o poder Companhia das Letras O assassino chamava-se Getúlio
ininterruptamente, a partir de 1937 664 páginas, R$ 52,50 Dornelles de Vargas. Era um homô-
como ditador. O terceiro tratará dos nimo. Na certidão de nascimento
anos de exílio, de seu retorno em 1950 “nos braços do assassino, os nomes dos pais eram outros. Sem
do povo” e culminará com seu suicídio. Será lan- este esforço de busca, tais documentos mofariam
çado em 2014, exatos 60 anos depois da sua morte. nos arquivos sem que ninguém os tocasse.
Cearense, Lira trabalhou em O Povo, onde, mui- Essa obsessão pelas minudências resulta que a
to jovem, chegou a ser ombudsman. Ainda em narrativa de cada episódio de sua vida seja descrita
Fortaleza, fez seu primeiro experimento biográ- num texto leve, fluente e de leitura agradável, que
fico narrando a vida de Rodolfo Teófilo, escritor envolve, encanta e segura o leitor. Embora mer-
e médico sanitarista, um equivalente cearense a gulhe fundo e se envolva profundamente com seu
Oswaldo Cruz. Em 2004, já em São Paulo, lançou a biografado, não se deixa contaminar pela paixão
biografia de Castello Branco. A seguir vieram José e não perde a isenção. A realidade do Rio Gran-
de Alencar (2006) – que lhe rendeu um Jabuti –, de do Sul na virada do século XIX para o século
Maysa (2007) e Padre Cícero (2009). Como se XX e o Brasil da República Velha são bem apre-
vê, Lira sempre escolhe para biografar persona- sentados como pano de fundo da narrativa. E o
lidades fascinantes, complexas e contraditórias. leitor já identificará no biografado atributos que
Getúlio Vargas talvez seja o brasileiro mais es- se tornarão marcas do Getúlio maduro.
tudado. Sobre ele produziram-se livros, perfis bio- Trabalho de jornalista, a obra é dedicada ao
gráficos, biografias, dissertações e teses. Lira leu grande público. Mas para pesquisadores, historia-
tudo o que encontrou. E também buscou fontes dores e outros interessados, todos os fatos narrados
primárias como jornais, documentos em arquivos são referidos em notas ao fim do volume. Neste
e bibliotecas, folhetos, marchinhas, fotos, tudo. tomo, são exatas 1.773. Pela primeira vez, Getúlio
Estudos de primeira qualidade e muito material Vargas contará com uma biografia exaustiva feita
produzido por áulicos ou detratores. Também “com base numa pesquisa impressionante”, como
tirou da poeira inquéritos e processos. anotou Boris Fausto na contracapa. Maria Celina
Todo este garimpo resultou em várias descober- D’Araujo fala em “imensidão de dados”. Os brasi-
tas. Dois assassinatos atribuídos a ele foram escla- leiros precisam conhecer a vida deste homem cujo
recidos: Getúlio é inocente em ambos. Antes de legado permanece e ainda gera tanta polêmica.
Lira, outros pesquisadores já trataram destes ca-
eduardo cesar

sos. Mas o autor, nos dois casos, foi o primeiro a se Victor Gentilli é jornalista, mestre e doutor pela ECA-USP e professor
debruçar e dissecar os inquéritos e processos. No da Universidade Federal do Espírito Santo.

PESQUISA FAPESP 197 | 87


memória

O homem que computava

A
Há 100 anos nascia palavra computador era usada somente
em um sentido até as primeiras décadas
Alan Turing, que criou do século XX. O significado indicava
apenas uma pessoa que fazia cálculos, um
as bases teóricas da profissional envolvido no uso dos algoritmos.
ciência da computação Computar exigia muitas horas de trabalho
com grande concentração e o auxílio apenas
de instrumentos como o ábaco ou a máquina de
Neldson Marcolin somar. Em 1936, o inglês Alan Mathison Turing,
nascido há 100 anos, escreveu um trabalho
acadêmico de lógica propondo uma estrutura
matemática abstrata que chamou de “máquina
universal” capaz de fazer qualquer tipo de
cálculo. O artigo On computable numbers,
with an application to the Entscheidungsproblem,
publicado no início de 1937, é considerado um
dos fundadores da ciência da computação.
Quando escreveu On computable numbers, Protótipo da
ele não estava pensando em uma máquina que máquina ACE,
de 1952, projeto
poderia vir a ser construída – o objetivo era de Turing que
apenas resolver um problema de lógica. posteriormente
foi abandonado

88 | julho DE 2012
“Sua máquina universal,
conhecida como ‘máquina
de Turing’, na verdade era
uma metáfora das ideias
fundamentais que viriam 3

a ser usadas para se Cópia da Bomba (esq.)


construir o computador”, projetada por Turing
para decifrar os códigos
diz o matemático Ubiratan
da encriptadora
D’Ambrosio, professor alemã Enigma (abaixo):
emérito da Universidade trabalho ajudou a
Estadual de Campinas mudar o rumo da guerra

(Unicamp). 2

No mesmo artigo Turing


apresentou uma solução para os ingleses. Os submarinos ‘as máquinas podem
uma questão matemática, alemães impediam a pensar?’”, escreveu ele na
o Entscheidungsproblem circulação dos navios primeira linha do texto.
(problema de decisão): britânicos, quase isolando “Turing introduz uma
determinados problemas Matemático a Inglaterra. Turing discussão sobre se é
não podem ser resolvidos conseguiu quebrar o código justificável chamar um
por máquinas ou
lançou as ao aperfeiçoar uma enorme computador de cérebro
computadores teóricos. primeiras ideias máquina decodificadora eletrônico e lança as bases
fotos 1 NATIONAL PHYSICAL LABORATORY © CROWN COPYRIGHT / SCIENCE PHOTO LIBRARY/ SPL DC / Latinstock  2 LSA 2007  3 NPL Archive, Science Museum  4 Divulgação

O inglês não foi o único a chamada Bomba, cuja do que viria a ser o campo
pensar nisso. Também em
que resultaram primeira versão havia sido de inteligência artificial”,
1936 o lógico americano no campo da construída por cientistas explica D’Ambrósio. “Com
Alonzo Church, já Ph.D., poloneses. Com isso a trabalhos como esse, ele
escreveu e publicou de
inteligência esquadra inglesa deixou exerceu influência em toda
modo independente um artificial de ser surpreendida pelos cultura contemporânea
artigo com a mesma ataques do Terceiro Reich. e não apenas na lógica e
conclusão. Turing, então “Além de ser um teórico na matemática”, diz Costa.
com 25 anos, foi fazer seu brilhante, Turing tinha A vida pessoal de Turing
doutorado sob a orientação um lado prático forte”, foi muito mais difícil do que
de Church na Universidade diz Newton da Costa, a acadêmica. Homossexual,
de Princeton, nos Estados matemático aposentado da ele foi preso em 1952
Unidos. Em 1939 ele voltou Universidade de São Paulo acusado de indecência grave
à Inglaterra e passou a e professor de filosofia com outro homem com base
trabalhar para o governo. da Universidade Federal de em lei de 1885, a mesma
Tudo começou porque Santa Catarina. Entre outros que levou Oscar Wilde
os militares ingleses ficaram projetos, por exemplo, ele à prisão em 1895. O
sabendo de seu gosto por criou a máquina-piloto matemático aceitou trocar
criar e decifrar códigos e o ACE, sigla para Automatic a pena por uma castração
convocaram para trabalhar Computing Engine, uma química e usar estrogênio
com um grupo de cientistas espécie de ancestral do para “ser curado” da
em um projeto secreto. computador, para “atacar homossexualidade.
O objetivo era decifrar as problemas complexos”. Em 1954, aos 41 anos,
ordens alemãs – codificadas Em 1950 o matemático Turing morreu ao morder
por uma máquina publicou seu artigo uma maçã envenenada
chamada Enigma – enviadas seminal, Computing com cianeto. Para a
aos submarinos que machinery and polícia inglesa foi suicídio.
patrulhavam o Atlântico. intelligence. “Proponho A família e os amigos
A questão era capital para 4 que consideremos a questão: nunca aceitaram essa versão.

PESQUISA FAPESP 197 | 89


Arte

Ciranda 1

Figurações orgânicas

T
Anita Colli ubos de ensaio são ferramentas
essenciais para pesquisas
transforma peças de laboratório. Pipetas e ponteiras
podem quantificar medidas milimétricas
de laboratório na manipulação de soluções diversas.
de pesquisa E outros universos podem se esconder por
trás da faceta científica dos pequenos frascos. 

em esculturas Se manipulados por Anita Colli, esses três
materiais se transformam em objetos de arte.
Em sua pesquisa sobre volumetrias produzidas
Gustavo Fioratti a partir de materiais descartáveis, a artista
plástica descobriu que, em galerias de arte
ou na sala de casa, equipamentos das
áreas científicas também dão boa química.
Anita é médica, profissão que exerceu desde
1965, quando se formou pela Universidade de
São Paulo (USP). Ela aposentou-se em 1998 e,
em um primeiro momento, passou a dedicar-se
às oficinas de pintura. Fez retratos e pinturas
abstratas, mas descobriu que tinha mais
afinidades com o plano tridimensional.


90 | julho DE 2012
Suas primeiras colagens uns aos outros; Cirandas,
fotos  Waldo Bravo

foram realizadas com com tubos articulados


materiais escolhidos dentro em dois eixos formando
de casa, em 2010. A artista círculos; Labirintos,
guarda em seu acervo em geral com ponteiras
trabalhos produzidos a encaixadas a um suporte
partir de peças de fogão, de fixo; e Tramas, que se
controles remotos, carretéis assemelham a persianas. 

de linha, válvulas de gás, que A ideia inicial da artista,
receberam um tratamento ela própria conta, era
monocromático com spray, “tirar esses objetos de
nas cores vermelha, verde suas funções cotidianas,
e cinza. Por conta da dando-lhes nova
similaridade com robôs, significação”. Ela não
acabaram ganhando de imaginava qual seria o
Walter, marido de Anita, resultado de sua pesquisa,
um carinhoso apelido: e ainda se surpreende com Anelídeo 6
são chamadas, até hoje, as associações feitas por Embora sejam feitas
de “máquinas mortíferas”.
 aqueles que entraram em a partir de volumes
Anita deu sequência a sua contato com sua obra.
 geométricos, as composições
pesquisa com peças feitas Em geral, essas associações podem formar imagens
a partir de rolhas de garrafas apontam para figurações semelhantes a amebas,
de vinho, depois de fios e orgânicas. “Foram anos por exemplo. Ou remeter
outras sucatas extraídas de trabalhando com medicina, a ossaturas. Ou ainda
equipamentos tecnológicos. com certeza esse imaginário representar sequências de
Até que, por fim, chegou aos ficou em mim”, ela diz. DNAs. 
São associações que,
materiais translúcidos de Trilha 4 segundo análise de Bravo,
laboratório, em geral feitos em algum ponto fazem
de plástico e com detalhes lembrar o trabalho da
nas cores vermelha, verde brasileira Lygia Clark
e azul.
A justaposição (1920-1988), artista que
ou o encadeamento desses a partir dos anos 1960 se
objetos, sempre em torno de dedicou a sua famosa série
um ou dois eixos, dá origem batizada como Bichos.
a formas que transitam entre Bravo explica que os
o orgânico e o geométrico. bichos de Lygia também
São trabalhos carregados de eram feitos a partir de
uma herança construtivista. figuras geométricas
Ou, como escreveu Waldo articuladas, só que de
Bravo, o curador de sua metal.
O curador identificou
última exposição, realizada também um ponto em
na galeria da Unimed comum com o trabalho
Paulistana, “uma opção do americano Alexander
pelo pensamento concreto Calder (1898-1976),
e racional, com base na muito conhecido por seus
aglutinação de objetos móbiles. A maior parte do
multiplicados”. trabalho de Anita pode ser
Para Bravo, ao pendurada e pode se
multiplicarem-se no movimentar ao sabor do
trabalho de Anita as peças de vento. Na exposição
laboratório “multiplicam-se Transformações, os objetos
também seus sentidos e foram dispostos ainda em
significados”.
Anita tem suportes parecidos a mesas.
cinco séries principais. Todos eles podiam ser
Girolos, com peças em geral manipulados, para
fixadas em um único eixo; que o público reinventasse
Anelídeos, feitas a partir também, a seu modo,
de objetos que têm formas as formas possibilitadas
arredondadas encaixados por cada composição.

PESQUISA FAPESP 197 | 91


conto

Bartolomeu Lourenço, inventor


Paulo Raviere Barreto Dourado

B
artolomeu Lourenço, singular entre os — Que coincidência! — exclama Bartolomeu.
mancebos, foi um milagre entre os homens. — Nada disso. Chama-se fé o que aconteceu —
Como contam os livros, nasceu em São responde Alexandre. Simão concorda, rasgando
Vicente, cidade vizinha a Santos, no ano da graça com os dentes a casca do fruto.
de 1685. Por lá cresceu e, no intercâmbio dos — Certamente, então, os senhores não conhe-
séculos, mudou-se com dois de seus irmãos para cem os recentes trabalhos do Mr. Isaac Newton
a Bahia — terra de absurdos sem precedentes. — afirma Bartolomeu, com certo pedantismo.
Cachoeira era uma das maiores cidades do país, — Aquele alquimista? — graceja Alexandre.
e se atualmente parece pequena não é porque — Um sonhador, talvez. Mas estes trabalhos
encurtou, mas o mundo ao redor que cresceu explicam os movimentos propulsores da nature-
muito rápido. A vista atual do rio Paraguaçu não za, sendo que a gravidade é um deles — explica
é tão diferente da que passou por seus olhos, os Bartolomeu.
de Alexandre e os de Simão. — A gravidade? — pergunta Alexandre, en-
Filiou-se à Companhia de Jesus, onde conhe- quanto Simão, com ferocidade, destrói o fruto
ceu o padre Alexandre de Gusmão, de quem mais olímpico.
tarde adotaria o sobrenome. Com apenas 20 anos, — Sim. É a força que rege a queda das mangas
inventou um sistema que bombeava água ladeira e de todas as outras coisas.
acima, livrando o esforço de escravos e animais — Então duvidas da fé de Simão? — desafia
(estavam livres, logo se deduz. Mas nada disso; Alexandre.
apenas gastariam suas energias em atividades — A fé move montanhas — completa Simão,
outras.) Mente engenhosa, memória fantástica; terminando de lidar com o fruto.
o que de mais importante lhe aconteceu nesta — Mas certamente não move mangas — res-
pequenina cidade, porém, não entrou pros anais ponde o inventor, sorrindo.
da história: um milagre substancial. Alexandre propõe uma comprovação divina e
Estavam a passear próximos ao rio, os três ir- também estica o braço. Menos de um minuto, e
mãos, quando avistaram uma frondosa mangueira, também lhe cai uma manga, que ele segura co-
recheada de frutos suculentos. As mangas eram mo um gavião agarra sua presa. Bartolomeu se
novidade no país. Rosadas, macias, lisas, como a assombra. “Dois eventos repetidos estão além
divina Vênus. Zombavam deles, com tanta beleza. da mera coincidência. Testarei, também, minha
Simão, em contrapartida, graceja para uma delas, fé.” E, à maneira dos irmãos, espera seu fruto
a mais gorda de todas, com os olhos cerrados e nervosamente. “Se o próprio Newton tem suas
a mão esticada. crenças, por que haveria eu, reles seminarista,
— Ó, fruto de mel celeste, permiti que Simão, de contestar as forças supremas?” Não foi como
vosso humilde servo, sinta em seus delgados dedos ele planejou.
a aurora que haveis de despertar-lhe. — Para sua Antes que acusem o humor destas celebridades
surpresa, o belo fruto desaba em sua mão. Ele o se- históricas, convoco-lhes, judiciosos leitores, a se
gura com firmeza, como se o milagre fosse esperado. lembrarem de que todos os homens eminentes

92 | julho DE 2012
luana geiger

foram, um dia, garotos. Ao ver o irmão em ago- trolando as suas, ele domina a arte de voar, desen-
nia, um dos galhofeiros lhe lambuza a palma com gonçadamente. Lidava com os ventos como um
o caroço da manga chupada. Não merece julga- nadador, enfrentando-os, ou deixando-se levar.
mento assim como Bartolomeu não o merece, Subia cada vez mais. Viu a mangueira de ci-
pela ira visível e estridente que lhe surgiu com a ma, como um arbusto, e as edificações da cidade,
brincadeira. Eram, antes de tudo, fedelhos. Bar- como uma maquete viva, e as pequenas pessoas,
tolomeu foge pranteando às alturas, menos pela iguais a insetos, e as curvas do rio, uma serpen-
manga que lhe faltava aos dedos, mais pela falta te adormecida. “Como as coisas são minúsculas
de fé que deixava uma lacuna em seu coração. em relação aos poderes do universo.” Percebia os
benefícios da nova técnica, que lhe era a ciência
•• em estado puro. As viagens estariam livres dos
Pensativo, vaga pelos vales que circulam a cida- ladrões e pedregulhos, por terra, e dos piratas e
de e encontra uma mangueira selvagem, pagã, tempestades, por mar. O mundo evoluía. O país
aberração da espécie ainda mais frondosa que a ainda haveria de gerar outros pássaros miracu-
primeira. Resolve testar sua fé novamente: reza losos. Pergunta-se quanto tempo levaria para
temendo os céus; reza para que possa estar com alcançar Salvador, a capital da colônia. Tentaria
seus irmãos, pois eles não tinham culpa de suas mais tarde, com uma bússola. Mas vem abaixo
moléstias; reza para que lhe caia uma manga, antes mesmo que a ideia fugisse por completo de
como prova de sua crença e de sua intrínseca sua mente, e desaba como um meteoro.
força de vontade. No outro dia, após as buscas desesperadas dos
E lá ela estava, lisa, perfumada, porém leve irmãos de sangue e de culto, é encontrado desa-
demais, como se estivesse suspensa por algo. cordado, debaixo da mangueira, rodeado por um
Mais uma peça daquela dupla, logo deduz, e abre mar de frutos verdes, rosas, amarelos.
os olhos. Se num segundo penetrava a copa da — Esse vai longe — diz Alexandre, ignorando
mangueira, no outro caía como um fruto madu- as verdadeiras distâncias.
ro, olhando para o chão com absoluto terror. Mas Bartolomeu, a partir de então, passaria a coletar
antes que toque a sombra na terra, para sua sorte, vontades, na tentativa de realizar voos seguros.
consegue refrear-se no ar, paralisado, sem fôlego. Vontades fortes, ardentes, febris, como a que uma
Controlando sua respiração, ele sobe em linha vez tivera. Dali iria a Salvador, e depois a Lisboa,
reta, como se estivesse preso a uma roldana. A onde estavam os homens mais ambiciosos do pla-
manga ainda estava na árvore, por isso a leve- neta. Foi a esta sensação de ver o mundo de cima
za. Estava marcada por seus dedos como a ferro que Bartolomeu dedicou o resto de sua vida. Esta
quente. Não era obra diabólica, pensa, senão já sensação de se estar mais próximo dos céus. n
teria sido fulminado. Havia alguma relação entre
o calor e a gravidade. Ele reflete, enquanto a chu-
Paulo Raviere Barreto Dourado nasceu em Irecê (BA), em 1986.
pa, no ar: “Claro! Há coisas quentes que flutuam, É mestrando pela UFBA, onde se graduou em língua estrangeira.
e nada há de mais ardente que as vontades”. Con- Publicou em antologias e no blog Confraria de Tolos.

PESQUISA FAPESP 197 | 93


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