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Somos as B ruxas que
não puderam queimar
Diálogos entre feminismo e bruxaria

Ana Clara Romanelli e Cinthia Viana

São Paulo, 2015

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Copyright © 2015 by Ana Clara Romanelli e Cinthia Viana

Livro-reportagem apresentado como trabalho de conclusão de curso, uma exigência


para a obtenção do título de bacharel em Jornalismo, do curso de Comunicação Social
da FiamFaam - Centro Universitário.

Diretora dos cursos de Comunicação Social


Prof.ª Dr.ª Marcia Avanza

Coordenador do curso de Jornalismo


Prof. Dr. Vicente Darde

Orientadora
Prof.ª Dr.ª Fhoutine Marie

Diagramação
Israel Dias “Costella” | israel.costella@gmail.com

Qualquer parte desta publicação pode ser reproduzida, desde que citada a fonte:

ROMANELLI, Ana Clara; VIANA, Cinthia . Somos as Bruxas que não puderam
queimar: Diálogos entre feminismo e bruxaria. São Paulo: Edição das Autoras, 2015.

[2015]
Todos os direitos desta edição reservado à
Ana Clara Romanelli | romanelli.clara@hotmail.com e
Cinthia Viana | romeirocinthia@gmail.com

Impressão
Artemidia Gráfica e Editora
Alameda Olga, 422 - Bloco A, Conj. 41 - Barra Funda -São Paulo - SP - CEP 01155-040
Tel. (11) 4305-6101 | http://artemidia.net/

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Agradecimentos

A
gradecemos a bruxa suprema do nosso clã,
a orientadora, Fhoutine Marie, por fazer
este sonho ser possível, vibrar com as nos-
sas evoluções e nos lembrar de que quando somos
mulheres temos que provar sempre que somos
boas, porque se formos medianas, o mundo não
nos perdoa.
Às nossas famílias, que sempre nos apoiaram
com muito amor, paciência e aguentaram todos os
nossos surtos: Viana, Gina, Patricia, Renata, Pe-
reira, Célia e Maria Cecília. Amamos vocês, mes-
mo que às vezes não lembramos vocês disso.
À Maíra Kubik Mano, que além de nos inspi-
rar com sua luta, nos deu a base que precisávamos.
À Nadini Lopes, Claudia Belfort, Vanessa Ro-
drigues, Jarid Arraes, Bianca Santana, Ellen Flam-
boyant, Luana Hansen, Karin Hueck e à todas as
mulheres da Casa de Lua.
Aos amigos e companheiros Jennifer Ribeiro,
Nadja Elora, Rebecca Fraidemberge, Max Costa,
Pedro Martins, Clarice Caldas, Caique Padovan,
Talita Ferreira, Beatriz Paparoto e em especial à
Emanuelle Herrera, que mesmo longe nos ajudou

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a por os pés no chão e Marcos Zibordi, que foi o
primeiro a acreditar neste projeto. E aos que fize-
ram parte direta ou indiretamente para que este
trabalho acontecesse.
À todas as magias inexplicáveis que acontece-
ram ao longo deste trabalho.
Agradecemos uma a outra, pela força e pelos
motivos que nos levaram a escrever este livro.
Às amigas feministas e à todas as mulheres
queimadas na Inquisição e que tiveram ou tem sua
liberdade tirada.

Cinthia e Ana

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“Eu costumava pensar que era a pessoa mais estranha
do mundo, mas então pensei, há muita gente no mundo,
tem que existir alguém como eu, que se sinta bizarra e
danificada da mesma forma que eu me sinto. Consigo
imaginá-la, e imagino que ela também deve estar por
aí, pensando em mim. Bom, eu espero que se você esti-
ver aí e ler isso, saiba que, sim, é verdade, eu estou aqui
e sou tão estranha quanto você.”

Frida Kahlo

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Sumário

Prefácio.................................................................................. 11

CAPÍTULO I
As netas das bruxas que não conseguiram queimar.............................15
Suffragettes................................................................................................29
Apropriação...............................................................................................33

CAPÍTULO II
Resistimos.............................................................................. 43
Nadini Lopes.............................................................................................45
Luana Hansen...........................................................................................61
Claudia Belfort...........................................................................................75
Ellen Flamboyant......................................................................................87
Karin Hueck...............................................................................................105
Vanessa Rodrigues....................................................................................113

Referências............................................................................ 129

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Prefácio

R
ecentemente é possível verificar por meio das re-
des sociais e da grande imprensa um momento de
renascimento feminista. No Brasil, as hashtags
#EuNãoMereçoSerEstuprada e #PrimeiroAssedio mo-
bilizaram centenas de pessoas para a conscientização
sobre a violência contra a mulher no País; movimentos
internacionais como a Marcha das Vadias chegaram a
cidades em todas as regiões do Brasil, ao mesmo tem-
po em que se multiplicam blogs e publicações voltadas
para a discussão de temas que fazem parte da agenda
feminista – tais como o debate sobre o direito ao cor-
po, autonomia em relação aos direitos reprodutivos,
violência doméstica, obstétrica, assédio, abuso sexual e
psicológico, empoderamento. Cantoras populares como
Valeska e Pitty levantam pautas e se declaram feminis-
tas ao mesmo tempo em que fora do Brasil verificamos
celebridades com grande impacto midiático, a exemplo
da cantora Beyoncé e da atriz Emma Watson, levarem
a palavra e a luta feminista para a cultura pop interna-
cional.
Nas páginas feministas das redes sociais, o debate
sobre interseccionalidade (a importância de incorporar
na luta feminista questões de raça, classe, orientação
sexual e identidade de gênero) também tem feito com

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que o movimento, esteja ele nos coletivos, partidos po-
líticos, ONGs ou nas páginas de internet percebesse a
necessidade de refletir sobre si mesma (o erro de con-
cordância é proposital, pois estamos falando de sujeitas
femininas).
Paralelamente a isso, notamos que os meios de
comunicação tradicionais, por meio de uma geração de
profissionais feministas, começam a despertar para a
mudança e, mesmo que timidamente, começaram a in-
corporar pautas feministas para fora das editorias “fe-
mininas”. A revista Superinteressante trouxe na edição
de julho de 2015 o tema da cultura do estupro. A revista
Nova/Cosmopolitan, conhecida por apresentar regular-
mente guias de sexo lacrado ou de como ficar em forma
para o verão, recentemente tem ampliado sua cobertu-
ra, passando a incluir discussões sobre machismo na
publicidade e dar a voz às mulheres que fizeram aborto
para além de uma ótica legalista ou das condenações
morais.
Se, de um lado, assistimos a esse momento de flo-
rescimento do feminismo, por outro nos deparamos
constantemente com uma forte reação conservadora.
Na política institucional verificamos projetos de lei
como o Estatuto do Nascituro e a mudança no atendi-
mento das vítimas de estupro pelo Sistema Único de
Saúde, que representam um enorme retrocesso para os
direitos das mulheres. Campanhas de conscientização
sobre a violência sexual se tornam objeto de chacota
nas redes sociais e a discussão de questões de gênero
no Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) causa re-
volta por parte de membros do Legislativo e estudantes
do sexo masculino. Veículos de comunicação tradicio-
nais mantém como colunistas pessoas que insistem em
relacionar o feminismo a uma conspiração de esquer-

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da, chegando ao cúmulo de nos comparar a nazistas ou
falar de feministas de forma caricata, tratando-as ora
como histéricas, ora como intolerantes – como se a luta
de igualdade de gênero para nós fosse uma questão de
pirraça e não de sobrevivência.
Este livro é um esforço de duas jovens jornalistas
feministas de contribuir positivamente para o debate. No
lugar de devolver acusações e discutir o que colunistas
homens de uma imprensa majoritariamente comanda-
da por homem pensam sobre o feminismo, as feministas
Cinthia e Ana Clara decidiram investigar a relação entre
feminismo e bruxaria dando voz às pessoas que estão en-
volvidas nesta batalha cotidiana: as mulheres feministas.
Partindo da frase popular entre a militância que dá títu-
lo a este livro-reportagem, as autoras discorrem, na pri-
meira parte do trabalho, sobre o controle exercido pela
Igreja e pela sociedade sobre os saberes e corpos das mu-
lheres acusadas de bruxaria desde a Inquisição católica.
Investigam também a comparação recorrente nos meios
de comunicação das feministas às bruxas, essas mulhe-
res perigosas que no limite deveriam ser eliminadas. A
segunda parte traz entrevistas com seis militantes femi-
nistas. Seis “bruxas políticas” que falam sobre diferentes
aspectos da luta feminista atual: espiritualidade, empo-
deramento, apoio mútuo, violência, assédio, racismo,
solidão da mulher negra, machismo no mercado de tra-
balho, na cena hip hop e espaços de militância, violência
obstétrica, direitos reprodutivos e, principalmente, de
autodescoberta e do entusiasmo e esperanças deposita-
dos numa luta que não se deixa abater pelo cansaço.
Há uma revolução em curso. Esperem por nós.

Fhoutine Marie
Jornalista, doutora em Ciência Política

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CAPÍTULO I
As netas das bruxas que não
conseguiram queimar

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O
ser humano habita o planeta Terra há mais
de dois milhões de anos. Segundo Rose Ma-
rie Muraro, importante escritora feminista
brasileira, por mais de três quartos deste tempo
nossa espécie sobreviveu por meio de coleta de
vegetais e caça aos pequenos animais. Neste con-
texto não havia necessidade de força física para a
sobrevivência. Neste período ainda não se tinha
conhecimento do papel masculino na procriação.
A mulher era considerada um ser sagrado, pois
tinha o privilégio de dar continuidade a espécie.
Nos lugares onde os recursos naturais eram
escassos, iniciou-se a caça aos grandes animais,
onde a força física era essencial. Os homens va-
lorizados eram os heróis guerreiros, que conse-
guiam o alimento escasso. Mas como o homem
ainda não tinha noção de seu papel na reprodu-
ção, a mulher ainda possuía poder nas decisões. O
mito era de que elas ficavam grávidas dos deuses.
Praticante de Wicca, a professora
universitária Nadini Lopes, explica que os
homens acreditavam que as mulheres saíam para a
floresta em noite de Lua cheia ou de virada de Lua
e voltavam com a criança nos braços. Ao separar

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os animais machos das fêmeas, perceberam que


os filhotes não eram gerados, assim descobriram
sua participação no processo de fertilização. Com
esta descoberta começaram a surgir mudanças
e desequilíbrios sociais dentro da sociedade.
O homem trabalhava com a força física, a caça
e o sustento da comunidade enquanto a mulher
cuidava da parte ritualística. A partir do momento
em que a sociedade passou a ser patriarcal esse
desequilíbrio passou a ser bem mais constante.
“Antes a mulher era um símbolo de poder. Se
um homem sangrasse numa batalha ou na caça
ele morria, enquanto a mulher sangra todo mês e
permanece viva. A mulher sempre foi símbolo de
mistério”, explica.
Segundo Muraro, quando os grupos deixa-
ram de ser nômades para sedentários, isto é, para
arar a terra, ela era dividida para plantações e co-
meçaram a se estabelecer aldeias, depois cidades,
cidades-estado, Estados e impérios. Os homens
tornaram-se portadores dos valores e da trans-
missão deles de geração para geração. Quanto
mais filhos um homem tinha, mais soldados e
mão-de-obra barata para cuidar da terra. Foi en-
tão que as mulheres passaram a ter sua sexuali-
dade controlada pelos homens – eram obrigadas
a saírem virgens da família do pai para o marido.
Nas sociedades feudais, as propriedades de
terra eram hereditariamente masculinas e as mu-
lheres herdavam apenas em casos extremos, de
acordo com a autora do livro “Calibán y la Bruja”,
Silvia Federici. Os senhores feudais controlavam
as mulheres a ponto de decidirem se uma viúva
poderia casar-se novamente e até quem seria seu

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novo esposo. A autora afirma que Igreja Católi-


ca controlava a taxa de natalidade amedrontando
a população por meio do apelo aos preceitos sa-
grados, por isso, os casamentos eram feitos mais
tarde com o intuito de evitar as relações sexuais
não procriativas. Nos feudos, a mulher exercia as
mesmas funções de trabalho dos homens, mas fa-
ziam ainda os trabalhos domésticos e cuidavam
dos filhos. Até que o trabalho doméstico deixou
de ser visto como um trabalho real e as mulhe-
res passaram a se reunir para realizar tais tare-
fas, mas não tinham apenas esse objetivo, elas
também gostavam de trocar receitas de chás, de
unguentos curativos e conversar sobre os filhos.
Federici explica que mesmo a Igreja pedindo sub-
missão ao homem e a Lei Canônica santificando
o direito do marido de golpear sua esposa, elas
permaneciam firmes perante a eles.
O clero ordenava que se uma mulher se insi-
nuasse deveria ser exorcizada e retirada de qual-
quer momento de liturgia, assim como as esposas
que não se submetessem aos desejos sexuais dos
maridos. A Igreja fez da sexualidade feminina um
objeto de vergonha e qualquer mulher que tivesse
uma experiência não conjugal e que não se casas-
se virgem ou praticasse qualquer ato sexual fora
dos padrões religiosos era considerada impura,
herege e, principalmente, feiticeira. Acreditava-
-se que as mulheres faziam pactos com o demônio
através do coito. A mulher se transformou cada
vez mais na figura da herege, ocorrendo a transi-
ção de perseguição da heresia para a perseguição
da feiticeira, preparando o terreno para o período
de caça às bruxas.

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Heresia e prostituição passaram a ser sinô-


nimos de feitiçaria, pois acreditava-se que as mu-
lheres seduziam os homens a partir de seus feiti-
ços com ervas, animais e sacrifícios com crianças
e levava-os para a cama fazendo com que eles pe-
cassem. Ainda hoje essa imagem permanece. Um
exemplo é a definição dada pelo dicionário Micha-
elis da Língua Portuguesa, que define a feiticeira
como uma mulher que seduz, encanta e faz male-
fícios sobrenaturais. Já a definição de bruxa pelo
dicionário Aurélio é a mulher que é feia e rabu-
genta.
Isso acontecia em um contexto histórico em
que a sociedade já estava submetida a um mo-
delo, condicionada a se reportar a um Deus e a
temer um diabo. Comportamento recorrente nas
culturas judaico-cristãs, nas quais é comum ter
um único Deus e seguir preceitos deixados por ele
em escrituras sagradas, comumente interpretadas
por um líder religioso. Os cristãos cultuavam uma
única divindade, masculina, que representava um
Deus criador que exercia o poder sobre todas as
coisas. Todos deveriam obedecê-lo, servi-lo e se-
guir seus mandamentos. Quando a Igreja Católica
se tornou uma instituição dotada de poder político
e influente no mundo ocidental, a ênfase no poder
masculino, somada à crença em um único Deus
acabou tendo consequências bastante violentas
contra todos que professavam outras crenças reli-
giosas, sobretudo para as mulheres.
De acordo com historiadores, a Inquisição
começou no sul da França, no ano de 1183, com
a perseguição dos hereges por rejeitarem a Igreja
Católica. Posteriormente, em 1252, o papa Inocên-

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cio IV autorizou o uso de torturas com o intuito


de que eles se convertessem. As pessoas eram tor-
turadas em praças públicas e envergonhadas nos
chamados “autos de fé” 1 .
Os cristãos acreditavam que as mulheres fei-
ticeiras causariam mal à população, suscitariam
pestes, causariam sofrimento e morte. Silvia Fe-
derici acredita que os homens em geral temiam as
feiticeiras por um medo oculto de haver qualquer
tipo de dominação das mulheres sobre eles, o que
feriria a honra masculina. Em consequência deste
medo, espalhou-se a crença de que os feiticeiros
recebiam ajuda de espíritos que assumiam a forma
de animais durante a madrugada e de que feiticei-
ras e curandeiros costumavam se reunir sob a luz
da Lua para “pecar” com tais entidades em rituais.
Os pecados que esses feiticeiros eram acusados de
cometer iam desde rituais de possessão pelo so-
brenatural, manipulação de elementos para fins
perniciosos até a copulação com o próprio diabo.
As chamadas bruxas passaram a ser expostas
por religiosos, usadas como exemplo de má condu-
ta e de tudo o que representava o mal. De acordo
com o livro Heresy in the Roman Catholic Church:
A History de Michael C. Thomsett, até os dias de
hoje a imagem que permanece da “típica” bruxa é

1 “O Auto de fé era a cerimônia em que os réus eram obrigados a par-


ticipar, antes de sua condenação. Era iniciado com um sermão e, logo
depois, os réus tinham que pedir perdão por seus crimes sem direito à
defesa. Em seguida, caminhavam em direção a um pátio, ladeados por
expectadores de todas as partes do reino. Primeiro iam os réus que se
salvaram da fogueira. Em suas roupas havia a pintura de uma chama de
cabeça para baixo. Depois iam os réus condenados à fogueira.”JÚNIOR,
Demercino José Silva. “O Auto de fé”; Brasil Escola.

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uma mulher velha e feia que vive sozinha e age ex-


cêntricamente. Até mesmo na hora do julgamento,
homens acusados de bruxaria recebiam privilégios
em relação às mulheres. Os homens tinham direi-
to de defender-se, enquanto mulheres não eram
permitidas falar, assim como chamar testemunhas
a seu favor, ainda de acordo com o autor. “As mu-
lheres eram mais suscetíveis às acusações de cum-
plicidade com o diabo e, devido a tais convicções,
elas eram levadas a imaginar que outras mulheres
também estivessem condenadas”, de acordo com a
autora de estudos em gênero Elizabeth Reis.
Muitos fatores poderiam levar uma mulher a
ser acusada por bruxaria. De acordo com a publi-
cação Mental Floss, uma simples marca de nas-
cença ou verruga, já era o suficiente para uma
mulher ser condenada. Assim como ser muito ve-
lha aos padrões da baixa expectativa de vida da
época. Parteiras também poderiam ser acusadas,
pois normalmente elas possuíam status em sua co-
munidade e detinham conhecimento sobre ervas
medicinais e sua manipulação para produção de
efeitos curativos, o que consideravam um compor-
tamento pagão. Algumas destas bruxas viviam so-
zinhas, o que era mal visto, já que eram mulheres
que se sustentavam sem um homem, e nem sempre
cultuavam o Deus cristão. Basicamente, qualquer
comportamento fora do padrão poderia fazer uma
mulher ser julgada e morta.
Os líderes religiosos encararam com violência
essa manifestação de autonomia feminina e passa-
ram a recompensar as pessoas que identificassem
essas mulheres e as levassem aos julgamentos nos
tribunais eclesiásticos. Os primeiros julgamentos

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de bruxaria, de acordo com a escritora Silvia Fe-


derici, tiveram lugar no fim do século XIV, pela
primeira vez a Inquisição registraria a existência
de uma heresia e uma seita de adoradores do de-
mônio completamente feminina. De acordo com
Nadini Lopes, feito o julgamento, a Igreja Católi-
ca recolhia os bens das acusadas e dividia metade
para o delator e a outra metade para a Igreja.
Federici explica que posteriormente, nos sé-
culos XVI e XVII, na Europa, as mulheres pariam
às escondidas sem registrar a criança e muitas ve-
zes elas morriam devido às condições do parto,
portanto, as mulheres eram consideradas bruxas e
assassinas de crianças, infanticidas. Uma mudan-
ça importante aconteceu, a acusação se estendeu
para as parteiras da época e elas passaram a ser
marginalizadas, começou um processo pelo qual
as mulheres perderam totalmente o controle que
haviam exercido sobre o parto. Este momento era
considerado exclusivamente de cooperação femi-
nina, as mulheres se ajudavam, cada uma com uma
função para que aquela criança viesse ao mundo,
mas com a marginalização das parteiras, a pre-
sença da figura do médico homem no momento do
parto foi devastadora.
A partir disso, o homem exercia o papel de
herói, era ele o responsável pelo parto bem feito
e não a mulher, que foi tirada de seu protagonis-
mo, recebendo papel passivo no momento em que
a criança nascia. A presença do médico homem na
sala de parto é debatida por feministas, como a
parteira Ellen Flamboyant, que explica essa revol-
ta. “Hoje, o parto é totalmente instrumentalizado.
É visto como uma doença, assim como a própria

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gestação é vista como tal. É o profissional médico


que fará, um grande herói que vai salvar aquela
criança da mãe incapaz, porque o corpo da mulher
é defeituoso na visão biomédica.”
De acordo com o livro O Que é Feminismo das
autoras Branca Alves e Jacqueline Pitanguy, com
essa substituição, uma série de afrontas contra
o corpo feminino foi lançada, os médicos diziam
que as mulheres menstruavam pois seus corpos
eram histéricos e o conduzia à desordem moral.
Diziam que em relação ao homem, a mulher ti-
nha uma temperatura fria e sua alimentação não
se transformava em sangue saudável, a indigestão
dessas partes se transformava em menstruação. O
inquisidor Leonard de Vair também tinha uma te-
oria sobre a menstruação: “Mensalmente elas se
enchem de elementos supérfluos e o sangue faz
exalar vapores que se elevam e passam pela boca,
pelas narinas e outros condutos do corpo, lançan-
do feitiços sobre tudo o que elas encontram”. Além
da menstruação, o sexo também era considerado
impuro e perverso, pois havia uma crença de que
as mulheres copulavam com o demônio nos rituais
de bruxaria. De acordo com as autoras, o discurso
inquisitorial era de que “é pelo sexo que a mulher
se faz bruxa”.
Com os julgamentos, uma série de torturas
foi inventada para punir as acusadas de bruxaria.
Uma prática bastante comum era a tortura através
do pêndulo, um instrumento no qual a mulher era
pendurada pelos braços e pelas canelas por corren-
tes suspensas no ar, sem sustentação elas acaba-
vam quebrando alguns ossos. Muitas morriam por
não suportarem a dor. A forma de punição para

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aquelas que haviam sido condenadas pelo Tribunal


do Santo Ofício, contudo, foi a que se tornou mais
emblemática no processo de caça às bruxas: a fo-
gueira. A prática de torturar mulheres se alastrou
por Portugal, Espanha, França, Inglaterra e Alema-
nha, acendendo fogueiras com cada vez mais fre-
quência. Como a religião vigente era o Catolicismo,
quem denunciasse a heresia ganhava prestígio so-
cial. Não demorou para que não apenas as mulhe-
res, mas a liberdade do gênero feminino também
começasse a arder nas chamas da Inquisição.
Após falhar em condenar uma mulher após tê-
-la acusado de promiscuidade sexual em um dos tri-
bunais da Inquisição o frade alemão Heinrich Kra-
mer deixou a cidade em que residia. Envergonhado
pela derrota, preparou uma vingança: um livro que
se tornaria o mais influente manual na história da
caça às bruxas. Publicado em 1486, com a ajuda de
James Sprenger, o Malleus Maleficarum, traduzi-
do como O Martelo das Feiticeiras contém densos
textos em latim que remetem as escrituras sagra-
das, contendo instruções de como reconhecer uma
bruxa, descrevendo como elas se comportavam, se
vestiam e como deveriam ser perseguidas e mortas.
De acordo com o documentário Malleus Malefica-
rum, produzido pela Hoff Productions para o canal
National Geographic Channel, o volume, mais co-
nhecido como a “bíblia do inquisidor”, espalhou-se
pela Europa entre os séculos XVI e XVII e levou
cerca de 60 mil mulheres à morte.
No livro, Kramer afirma que as bruxas de-
vem ser capturadas e queimadas vivas na foguei-
ra porque elas são motivadas pela fraqueza e pela
luxúria, pois essas são brechas por onde o diabo

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encarna. Pesquisadores acreditam que o livro te-


nha sido uma forma de vingança por ter fracassa-
do diante do tribunal. A caça às bruxas já existia
antes do Malleus Maleficarum, mas esta foi a úni-
ca obra que intelectualizou a perseguição, fazendo
com que as pessoas que duvidassem das bruxas ti-
vessem agora certeza de sua existência. Com isso
aumentou significativamente o número de pesso-
as que passaram a apoiar a perseguição, ainda de
acordo com o documentário.
Exatamente 55 anos antes de Kramer publi-
car sua obra, uma figura importante na história da
perseguição contra as bruxas era queimada viva
em uma fogueira francesa: Joana D’arc. Líder do
exército francês durante a Guerra dos Cem Anos,
Joana afirmava ter ouvido a voz de Deus e dos san-
tos católicos chamando-a para lutar e expulsar os
ingleses do norte da França. A jovem cortou seus
cabelos, se vestiu com trajes masculinos e enviou
uma carta ao Rei Carlos VII, que lhe conferiu uma
espada, um estandarte e a liderança dos exércitos
para dar início à batalha. Dois anos antes de fin-
dar a Guerra dos Cem Anos, em 1430, ela foi jul-
gada durante seis meses e morta no ano seguinte
em um auto de fé acusada de bruxaria, heresia e
outros crimes religiosos. A Igreja Católica, através
do papa Bento XV, reabilitou as acusações contra
Joana D’arc, que ironicamente acabou por ser re-
conhecida como santa padroeira da França, 500
anos após sua morte.
Na história de perseguição às bruxas outro
caso de julgamento bastante conhecido ocorreu
na cidade de Salem, no estado norte-americano
de Massachussettes durante o período de coloni-

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zação daquele país pelos ingleses. De acordo com


o livro The Specter Of Salem: Remembering the
Witch Trials in Nineteenth-Century America, um
casal de escravos foi vendido para a família do re-
verendo Samuel Parris, na aldeia de Salem, Esta-
dos Unidos. Esse casal era formado por Tituba e
John Índio. A filha e a sobrinha de Parris, Betsey
e Abigail costumavam pedir para que Tituba con-
tasse histórias de terror. Quando as meninas se
sentiam mal, era a escrava quem fazia chás para
elas e dava banhos de ervas para melhorarem. As
jovens tiveram alucinações e febre, entre outras
sintomas, que os médicos da época diagonostica-
ram como bruxaria.
Três mulheres locais da aldeia, que tradi-
cionalmente, se encaixariam no perfil de bruxas
(mulheres mais velhas, o que na época não era tão
comum de existir) foram rapidamente acusadas e
presas. Normalmente, essas mulheres teriam sido
condenadas e executadas. Mas acreditava-se em
uma conspiração de bruxas que estaria atacando
a colônia. Mais de 200 pessoas foram acusadas, a
maioria delas foi detida e presa. Betsey e Abigail
foram pressionadas a falar quem as tinha ator-
mentado. E elas deram o nome de Tituba. Duas
outras mulheres, Sarah Osburn, que morreria na
prisão, e Sarah Good, que seria julgada e execu-
tada, também foram classificadas como bruxas.
Tituba confessou ter assinado um contrato, indi-
cando um formal contrato com o diabo e o mais
importante para o decorrer dos fatos: haveriam
mais bruxas em Salem. Muitas hipóteses acerca do
caso são levantadas até os dias de hoje: se teriam
as meninas aprendido os sintomas de uma pessoa

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enfeitiçada e usado isso apenas para ganhar aten-


ção, e se Tituba teria sido forçada a confessar o
crime de bruxaria para o extermínio de diversas
pessoas consideradas perigosas.
Na visão da escritora Silvia Federici, o perío-
do de caça às bruxas foi um momento decisivo na
vida das mulheres, pois acabou por destruir todo
um mundo de práticas femininas, relações coleti-
vas e sistemas de conhecimento que haviam sido
a base do poder das mulheres na Europa pré-capi-
talista.

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Suffragettes

O
movimento em prol do voto feminino, no
início do século XX, foi organizado pelo
grupo de mulheres, no Reino Unido, que ficou
conhecido como suffragettes. Essa foi a primeira
organização na luta pelos direitos chamada de
primeira onda do feminismo. Militantes do grupo
organizavam manifestações coletivas que geraram
diversas polêmicas na época, de acordo com a
historiadora Mônica Karawejczyk. As mulheres
saíram às ruas com as palavras de ordem “Votes
for women – Voto para as mulheres” exigindo
a participação na escolha dos representantes,
em busca de igualdade política. Na época as
manifestações eram recebidas com risos e calúnias.
Tudo isso era documentado tendenciosamente em
matérias nos grandes jornais para que a imagem
das sufragistas fosse distorcida. Muitas charges
satirizando o movimento foram criadas, algumas,
inclusive, comparando essas mulheres a bruxas
– algumas eram retratadas como velhas, com
verrugas, nariz pontudo e voando em vassouras.
“Imagens denegrindo [sic] o movimento foram
tão fortes que, até hoje, perpassam o imaginário
popular quando se fala em sufragistas e feministas.

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Mulheres-homens, solteironas, velhacas, mulheres


rancorosas e sem amor, esses e outros estereótipos
passaram a servir de epítetos para descrever tais
mulheres”, defende a autora. Segundo ela, para
chamar a atenção do público e da imprensa, as
militantes passaram a empregar táticas como
atear fogo em caixas de correio, quebrar vidraças
de lojas e casas, acorrentar-se a portões de prédios
públicos até interromper discursos de políticos.
Na Inglaterra, um dos mais destacados gru-
pos sufragistas era o Women’ s Social and Political
Union (WSPU), que acabou influenciando vários
grupos em diversos países do Ocidente. Segundo
Karawejczyk, através dos contatos entre mulhe-
res dos Estados Unidos com militantes inglesas
do WSPU que a campanha pró-sufrágio feminino
estadunidense recebeu uma inovação, responsável
por atrair a atenção para a causa. “No Brasil, os
atos das militantes inglesas parecem ter influen-
ciado as que reivindicavam o direito ao sufrágio
feminino no início do movimento organizado fe-
minino. Esses atos foram amplamente divulgados
através da imprensa do nosso país, principalmen-
te em 1913”, afirma.
A mobilização das suffragettes recebeu ampla
cobertura por parte dos periódicos brasileiros,
que enfatizavam que não era um bom exemplo a
ser seguido pelas brasileiras. “O impacto dessas
e outras notícias não devem ser subestimados –
ainda mais se levarmos em conta a repercussão
negativa na opinião pública. Tal carga negativa se
deveu e muito a interpretação dada pela imprensa
tanto na forma de textos quanto a visualidade das
fotografias, desenhos, cartoons e charges”, explica.

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Após a adoção dessas táticas radicais de pro-


testo, as suffragettes foram perdendo cada vez
mais a simpatia do público. Mas em contraponto,
a partir deste momento é que as autoridades, po-
líticos e imprensa da época começaram a levar a
sério a campanha pelo voto feminino na Grã-Bre-
tanha, segundo Maria Zina Gonçalves de Abreu
na publicação Luta das Mulheres pelo Direito de
Voto. Antes do final da Primeira Guerra Mundial,
março de 1917, no Reino Unido, um novo proje-
to de lei concedendo voto para as mulheres acima
dos 30 anos foi apresentado, sendo aprovado em
janeiro de 1918. Somente em 1928, a idade entre
os sexos permitidos a votar foi equiparada – 21
anos de idade. e acordo com a revista do Tribunal
Regional Eleitoral de Santa Catarina, no Brasil, as
mulheres receberam o direito ao voto em 1932 no
governo Getúlio Vargas, confirmado pela Consti-
tuição de 1934. A grande mentora da campanha
sufragista brasileira foi Bertha Lutz. Já nos Esta-
dos Unidos, a conquista pelo voto feminino foi em
1920, de acordo com o artigo Woman Suffrage Ti-
meline (1840-1920) do portal National Women’s
History Museum.

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Apropriação

C
om o passar dos anos o movimento feminis-
ta se apropriou da história de perseguição
das bruxas e do estigma que pesava sobre as
militantes dando a essa associação um novo signi-
ficado. Isso ocorreu tanto por meio da aproxima-
ção de militantes com o paganismo – que diferen-
te das religiões de matriz juidaico-cristãs inclui o
culto ao sagrado feminino em suas práticas rituais
– como pelo uso de uma frase que já se tornou
emblemática: “somos as netas das bruxas que não
conseguiram queimar/ matar”. O que significa que
mesmo após anos de tortura e opressão, as mulhe-
res resistiram.
De acordo com Claudiney Prieto no livro Wicca
para Todos, a Wicca é uma das poucas religiões
na atualidade, se não a única, que se propõe a
celebrar uma divindade feminina como Criadora
de toda vida. Segundo o autor, o feminismo
resgatou elementos da religião que cultua a
Deusa. “Mulheres que lutavam pelos direitos de
igualdade entre os gêneros encontraram nessa
religião um porto seguro para se sentirem fortes,
vivas e ativas. Foi na Wicca que elas encontraram
uma religião capaz de resgatar sua dignidade,

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tanto social quanto religiosa. Da busca por uma


nova religião onde mulheres não fossem excluídas
surge nos EUA, através do esforço de inúmeras
mulheres engajadas em causas feministas, uma
Wicca com uma nova identidade mais focada na
figura da Deusa. Deste movimento crescente
surgiram várias Tradições desta religião, desde
as ramificações onde a Deusa e o Deus possuem
a mesma importância, até outras onde o Deus
é menos visível e a Deusa exerce supremacia e
preponderância”.
No artigo da Universidade de Londrina Neopa-
ganismo: uma análise sobre dominação de gênero
e religião, publicado em 2014, os autores Adriana
Lima e José Gonçalves defendem que nas religiões
patriarcais 2, a mulher e sua sexualidade são consi-
deradas pecaminosas e que, se não forem contro-
lados pelo homem, podem desviar a criação do tão
almejado céu.
A escritora e ativista política de pseudônimo
Starhawk enxerga os primeiros passos do culto ao
feminino como forma de questionamento aos pa-
drões religiosos impostos desde a Santa Inquisição:
“quando a consciência feminina começou a acordar

2 “Segundo Christine Delphy, há mesmo uma falta de unanimidade


quanto à utilização do conceito de patriarcado entre as feministas, e as
dessemelhanças nas funções atribuídas ao termo nas diversas análises
são reveladoras das clivagens mais elementares existentes no interior
do movimento feminista. Para as feministas socialistas a opressão das
mulheres se deve, em última instância, ao capitalismo, e seus beneficiá-
rios são os capitalistas, enquanto para as feministas radicais a opressão
feminina deve-se a um sistema diferente e original – o sistema patriar-
cal – e seus beneficiários são os homens como uma categoria social.”
MORGANTE, Mirela Marin; NADER, Maria Beatriz. O patriarcado
nos estudos feministas: um debate teórico.

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a respeito da opressão, sempre achei que uma parte


do papel da mulher era desfazer o papel do Deus.
Essa imagem Dele como o pai que fica lá em cima jo-
gando todas as leis do universo, que deve ser temido
porque pode punir e isso era uma forma de validar
todas as estruturas de dominação na sociedade”.
Esta forma de desfazer o papel do Deus e re-
conhecer uma mulher como criadora poderosa do
mundo é sobre todas as coisas o que acredita a bru-
xaria moderna, ou Wicca. De acordo com a bruxa
Nadini Lopes, a etimologia da palavra Wicca vem de
witch e wise, respectivamente bruxa e sabedoria. A
Wicca possui algumas tradições mais importantes
como a Gardneriana, a Alexandrina, Old Dianic que
originou a que chamamos hoje de Diânica. Essas tra-
dições funcionam como espécies de clãs, onde todos
possuem a mesma crença, mas cada grupo possui
práticas particulares. A tradição Diânica acredita na
Deusa e no Deus, porém Ele possui papel secundá-
rio. Esta tradição é mais focada na figura feminina e
faz com que a da mulher se sobressaia em relação a
do homem. Sendo esta a religião da Deusa, o sagra-
do se inclina ao corpo e a sabedoria feminina. Nem
todo sagrado feminino trata-se apenas de religião,
mas também de descobrir ou redescobrir o divino
dentro de si.
Ao longo do tempo o sagrado feminino foi evo-
luindo e se redescobrindo por muitas mulheres que
optaram pela liberdade e independência de seus cor-
pos, mas também pela liberdade religiosa, revolu-
cionando o sagrado e focando cada vez mais em seu
interior, exaltando e cultuando aspectos femininos
que antes eram menosprezados, um processo de au-
tocura e autoinvestigação.

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Essa nova visão religiosa e de conceito sa-


grado possibilitou envolvimentos e caminhos vi-
gorosos para as mulheres. “A tradição da Deusa
oferecia novas possibilidades. O meu corpo, ago-
ra, em toda a sua feminilidade, seios, vulva, útero
e fluxo menstrual, era sagrado. A força primitiva
da natureza, o intenso prazer da intimidade sexu-
al assumiu papeis centrais como caminhos para
o sagrado, em vez de serem negados, denegridos
[sic] ou encarados como periféricos”, declara a es-
critora Starhawk no livro A Dança Cósmica das
Feiticeiras.
Para o feminismo, o corpo não deve ser tra-
tado com tabu, ao contrário, sugere que as mulhe-
res devem valorizar tudo que lhes é natural. Ana
Rita Dutra do site Blogueiras Feministas explica
um pouco sobre essa questão no texto Empode-
rar!. “Mulheres tem vergonha de tocar seu corpo,
de falar sobre seu corpo. Quantas meninas de 10,
11 anos ficam menstruadas e não tem ideia do que
está acontecendo, nada lhe é falado, é tudo fe-
chado, vergonhoso, escondido, ser mulher desde
a mais tenra idade vai se tornando um fardo, um
peso, um problema.”
De acordo com Claudiney Prieto foi em 1970
que o movimento feminista abraçou a Wicca como
sua religião “oficial”, encontrando na Deusa uma
figura forte e capaz de provocar mudanças na so-
ciedade. As feministas perceberam na figura da
bruxa um forte instrumento político e passaram a
se identificar cada vez mais com seu processo his-
tórico. A partir de então tornou-se comum em mar-
chas e espaços feministas as associações às bruxas
em cartazes e faixas e até mesmo em elementos do

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imaginário popular como chapéus pontudos. Isso


pode indicar que muitas feministas se consideram
bruxas no sentido político, sendo ou não pratican-
te das religiões pagãs, há sempre com relação à
essas mulheres perseguidas e mortas uma relação
de orgulho e respeito.
Nos blogs, nas revistas online e em redes so-
ciais esse discurso é recorrente. As ciberativistas
comparam feministas e bruxas pela liberdade sexu-
al, religiosa, pela livre escolha sobre seus ventres.
Como acontece em dois textos da revista online
para adolescentes Capitolina, no Quem tem medo
de bruxa? de Lorena Piñeiro: “O historiador Ro-
bert Thurston acredita que 85% das vítimas eram
mulheres. Ainda que existissem alguns acusados
do sexo masculino, é impossível negar o caráter
misógino da caça às bruxas. O pânico está liga-
do à estigmatização da mulher: falava-se do poder
feminino, da maldade feminina, identificados es-
pecialmente naquelas mais velhas que viviam fora
dos parâmetros da sociedade patriarcal”. Helena
Zelic, autora na mesma revista, publicou o texto
Somos as netas de todas as bruxas que não conse-
guiram queimar. A autora acredita que matar mu-
lheres por “dançarem nuas ao luar” independente
do contexto histórico não passa de feminicídio e
misoginia. “E o que faziam essas mulheres de tão
terrível? Nada. Eram simplesmente mulheres que
não faziam questão de se enquadrar na ideia de
mulher proposta pela Igreja e pela sociedade como
um todo. Eram mulheres que não acreditavam no
Deus dos católicos, mulheres que desenvolviam e
reproduziam suas próprias sabedorias, mulheres
que abortavam, mulheres parteiras, mulheres que

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dançavam, que tinham prazer, mulheres lésbicas…


mulheres que, de uma maneira ou de outra, ‘peca-
vam’ ”, argumenta.
As feministas se apropriaram da bruxa como
ato político, como forma de defender e vingar as
milhares de mulheres mortas na caça às bruxas.
E claro, olhar para a história criticamente, ter a
consciência de que as bruxas foram mulheres que
sofreram e morreram com algo em comum: tive-
ram sua liberdade e vida tiradas por interesses
políticos e religiosos. Uma feminista que se con-
sidera bruxa é Ellen Flamboyant: “Gosto de usar
a questão da bruxaria sendo feminista, porque
eu não me identifico como uma bruxa no sentido
clássico da Wicca ou uma questão religiosa. É por
um ideal político mesmo, por todo o significado da
história das bruxas, da perseguição. Eu me consi-
dero uma bruxa política”.
Nos extras do documentário Um Beijo para
Gabriela, a prostituta e militante, Gabriela Leite,
ajuda a compreender a ideia de apropriação das
palavras como ato político: “Se a gente não toma
as palavras pelo chifre e assume, a gente não muda
nada. Você não pode chamar a favela de favela, é
de comunidade. Favela é favela e tem uma origem
lindérrima, vem da Guerra de Canudos, mas não
pode se falar. Precisa ter identidade, aí a gente
muda alguma coisa”. Leite se referiu a questão de
não a chamarem de “puta” e sempre de socióloga
e ex-prostituta, embora ela nunca tenha concluí-
do seu curso. Até o fim da vida ela se considerava
uma puta aposentada, nunca uma ex-prostituta.
Para ela, é dessa maneira tiramos os tabus da so-
ciedade.

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A mesma situação ocorreu com a apropriação


da palavra queer. O uso dessa palavra por um de-
terminado grupo social fez com que as pessoas pas-
sassem a ter uma identidade, eles “tomaram a pa-
lavra pelo chifre”, como acreditava Gabriela Leite
e mudaram a forma de se enxergar, de ser quem re-
almente são. Para entender a palavra queer temos
que voltar na Inglaterra há 400 anos. Havia uma
rua em Londres conhecida por abrigar prostitutas,
vagabundos e outros tipos de “pervertidos”, como
eram conhecidos, chamada Queer Street. A pala-
vra era utilizada como ofensa para homossexuais,
transexuais, travestis e qualquer um que fugisse
das formatações heternormativas. Nos anos 1970,
as universidades americanas criaram os estudos
culturais tendo em vista o crescente movimento
popular em defesa de minorias e causas sociais,
a teoria queer foi estabelecida como tudo o que
foge do senso comum e todos estes sujeitos sociais
passaram a se denominar queer. Com a definição
dessa teoria, muitos homossexuais que não se en-
quadravam nos termos gay ou lésbica passaram a
ter uma identidade.
No caso do feminismo a apropriação da
figura da bruxa não é feita por acaso. Mais do que
uma identificação com as mulheres que foram
oprimidas no passado, demonstra solidariedade
para com outras mulheres no mundo que continuam
sendo perseguidas acusadas de serem bruxas.
Cinco mulheres foram acusadas de bruxaria em
uma aldeia na Índia e morreram linchadas, de
acordo com matéria publicada pelo portal G1
em 8 de agosto de 2015. Elas foram acusadas de
tratar crianças com bruxaria ao invés de usarem

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remédios da medicina alopática. Um porta-voz


local afirmou que uma das mulheres foi obrigada
a dizer que não atuou sozinha, então eles foram
atrás das outras quatro e as mataram de forma
brutal. Um superintendente do distrito de Ranchi,
Pravat Kumar, afirmou que “não é a primeira vez
que acontece algo assim neste distrito” do estado
de Jharjand. Kumar também destaca que desde
2001 existe uma lei para evitar este tipo de caso,
mas que não evitou que desde então 400 mulheres
tenham morrido acusadas de bruxaria, das mais
de 2000 assassinadas sob esta acusação em todo
o país. Os linchamentos por bruxaria são tão
comuns na Índia, que governos regionais investem
em campanhas de sensibilização a fim de evitar
tais casos. Assim como na Arábia Saudita, que
também executa “bruxas” e aprisiona e chicoteia
homossexuais, que de acordo com o portal UOL
em matéria do dia 30 de outubro de 2015, é um
sistema de justiça criminal medieval. São marcas
da Inquisição que ficaram na sociedade.
No dia 5 de maio de 2014, o portal G1 publi-
cou matéria sobre Fabiane Maria de Jesus, que foi
espancada até a morte após boatos no Facebook
de que fazia magia negra com crianças. A vítima
foi amarrada e agredida por dezenas de moradores
da região do Guarujá, litoral de São Paulo. O por-
tal explica que moradores afirmaram que a mulher
foi imobilizada por vários “homens não identifica-
dos”. A PM não comprovou a participação da mu-
lher no suposto sequestro da criança.
O advogado da família, Airton Sinto, revelou
em entrevista ao portal G1 no dia 13 de maio de
2014 que um projeto de lei com o nome de Fabiane

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Maria de Jesus seria apresentado pelo deputado


federal Ricardo Izar Junior. Airton teria feito uma
relação com a Lei Maria da Penha, que tem esse
nome por homenagem a mulher de mesmo nome
que lutou durante 20 anos para que seu agressor
fosse preso.
Em 21 de outubro de 2015, houve a admissão
do projeto de lei (PL) 5069/13 do deputado Eduar-
do Cunha pela Comissão de Constituição e Justiça
(CCJ) da Câmara dos Deputados a favor de difi-
cultar o acesso a procedimentos abortivos, previs-
tos em lei, de acordo com Alyson Freire do portal
Outras Palavras. O PL também pretende exigir de
vítimas de estupro a submissão a exame de corpo
de delito e registro de boletim de ocorrência, para
comprovar a violência sexual, invalidando apenas
a palavra da vítima.
Em resposta ao retrocesso, grupos feminis-
tas se posicionaram contra a lei. Além de atos nas
ruas, criaram a campanha “Pílula fica, Cunha sai”,
de acordo com o portal Catraca Livre em 22 de ou-
tubro de 2015. As ações movimentaram as redes
sociais.
Apesar de toda toda a perseguição, as bruxas
sobreviveram, e agora assumem papeis de rappers,
jornalistas, parteiras, professoras, empresárias.
Elas estão em todos os lugares, querem ocupar es-
paços e conquistar mais vitórias.
No capítulo seguinte daremos voz à mulheres
feministas, que resistiram apesar do mundo tentar
jogá-las na fogueira. Elas nos mostram que a luta
continua.

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CAPÍTULO II
Resistimos

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Na Inquisição, as mulheres, que queriam ser livres
em suas práticas e milhões de outras coisas da
forma que elas queriam, na verdade são as avós
das mulheres que hoje reivindicam essa mesma
liberdade.“

Sacerdotisa wiccaniana e mestre em comunicação.

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Nadini Lopes

Q uando você se descobriu bruxa?

Eu tinha 15 anos quando comecei a me sen-


tir estranha, não sei explicar o porquê. Meu co-
ração estava prestes a encontrar algo. Depois en-
tendi o que isso queria dizer, era o chamado da
Deusa. Eu vi uma matéria numa revista, chamada
revista Da Hora, do jornal Agora, com o sacerdote
da minha religião, da minha tradição, que é a Tra-
dição Diânica Nemorensis. Quando eu vi essa ma-
téria, fez completo sentido para minha vida. Me
sentia completa, plena absurdamente.

A tradição diânica é uma tradição femi-


nista?

Não que seja feminista, mas por motivos ób-


vios nós temos visões de entendimento e de em-
poderamento da mulher. Todas as tradições wic-
canianas são assim, embora tenham algumas que
enxergam a figura feminina e a masculina como
equiparadas. A diferença é que os diânicos são
muito focados na figura feminina, então sim, a fi-
gura da mulher se sobressai em relação à figura do

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homem. Nemorensis, por exemplo, é uma palavra


que vem de Diana do bosque Nemo, na Itália, e
esse bosque que era o culto à Diana e admitia ho-
mens. Então por mais que seja o culto à uma di-
vindade feminina, é um culto que tem a admissão
de homens, embora toda a Wicca admita homens.
Quem é diânico tem uma visão que pode, sim, ser
considerada feminista, mas a gente não pode dizer
que as outras não são, pois na verdade essa é uma
característica da Wicca.

Você acredita que existe uma ligação


entre a bruxaria e o feminismo?

Completamente. Vamos voltar para a histó-


ria, durante um tempo os homens não souberam
da sua participação na fertilização da mulher, eles
achavam que as mulheres tinham filhos do nada,
elas saíam para uma floresta escura, à noite, em
noite de Lua cheia ou de virada de Lua e volta-
vam com uma criança nos braços. Depois de muito
tempo eles foram perceber que quando deixavam
os animais fêmeas separados dos animais machos,
não gerava filhotes. O homem passou a compreen-
der o seu papel na fertilização da mulher e a so-
ciedade começou a mudar. Antes, o homem era a
força física, a caça o provedor da comunidade e a
mulher cuidava da parte ritualística e de outras
questões. Quando eles perceberam que eles ti-
nham um papel na fertilização da mulher, a socie-
dade se desequilibrou em outros aspectos. Antes
a mulher era um símbolo de poder. Se um homem
sangrasse numa batalha ou na caça ele morria,
enquanto a mulher sangra todo mês e permanece

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viva. A mulher sempre foi símbolo de mistério, do


desconhecido. Como a sociedade passou a ser pa-
triarcal, esse desequilíbrio passou a ser cada vez
mais constante, diferente da matriarcal nessa épo-
ca do neolítico, paleolítico e em tempos antigos.
Por exemplo, a Grécia com uma das sociedades
que fundamentou a maior parte dos conceitos que
a gente vive até hoje como a democracia, busca-
vam os filósofos, o conceito de felicidade dentre
outras coisas. Eles mesmos se formatavam como
uma sociedade machista e preconceituosa em re-
lação à mulher. Tanto que eles diziam que se eles
se aproximassem de mulheres eles iam pegar bur-
rice e muitos homens se relacionavam com outros
homens. Eles tendo, por exemplo, a figura de Zeus
como sendo um Deus supremo também escondeu
a divindade feminina, que tinha sido cultuada des-
de sempre por todos. Só que poucos sabem, por
exemplo, que Zeus tem uma mãe, Eurínome, que
ela seria de fato a criadora de todas as coisas. Foi
nessa época, das questões da Grécia e das questões
romanas, que o Cristianismo se fortaleceu. Muitos
cristãos foram perseguidos, inclusive, mas quan-
do a religião se fortaleceu e se estabeleceu como
oficial em Roma pelo imperador Constantino, a
gente pode visualizar o papel da mulher, que foi se
desligando de pontos importantes da sociedade. A
Wicca é uma religião neopagã, então ela faz uma
releitura das práticas pagãs antigas, reconecta a
mulher a esses valores, feministas e de empode-
ramento. Então é por isso que é muito difícil você
dissociar a Wicca do feminismo porque sim, nós
lutamos pela equidade social, nós lutamos pelo
poder da mulher ser respeitada e ser estabelecida

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novamente na sociedade. Nós sabemos que todos


os homens, por piores que sejam ou por melhores
que sejam, sempre nasceram de mulheres. Então
quem tem o dom da vida, de dar à luz é a mulher
e isso deve ser preservado. Por isso existe essa co-
nexão da Wicca com o feminismo, é inerente, uma
relação intrínseca.

A Wicca acredita no Deus e na Deusa?

Sim. Só que o Mito da Roda do Ano, que é o


que a gente segue, conta a história de um Deus
que nasce da Deusa, no dia 21 de junho, pra quem
segue a roda a partir do hemisfério Sul, e se for-
talece. Chega a primavera e em outubro é quando
a Deusa e o Deus se amam, só que esse Deus é o
filho e consorte da Deusa, o que não quer dizer de
forma nenhuma uma relação incestuosa. É uma
simbologia mostrando as estações do ano e tudo
o que acontece. Esse mesmo Deus se fortalece,
fica viril, depois ele morre e renasce pra socie-
dade através dos grãos que a gente colhe. Então
existe a figura do Deus, só que pra muitas tradi-
ções da Wicca, o Deus tem um papel secundário.
Como, por exemplo, a Tradição Gardneriana e a
Tradição Alexandrina, que equiparam a Deusa e
o Deus. As tradições Diânicas veem a Deusa de
uma maneira, não como superior, mas dão mais
ênfase. O Deus existe, nós cultuamos, mas quem
é criadora de todas as coisas é a Deusa, então ela
tem um papel que é fundamental. Eu não posso
dizer mais importante porque tem tradições que
equiparam o poder dessas duas questões, só que
o Deus pra gente é o filho da Deusa, o consorte da

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Deusa, a representação da fertilidade e dos grãos


na terra. Mas a Deusa é a criadora de tudo, ele
também veio dela, Deus também nasceu da Deu-
sa, então é como se ela fosse mais importante.

As tradições são espécies de clãs? Como


funcionam?

Podem ser vistas como clãs, é uma boa ana-


logia. Algumas tradições, claro. Outras vão sur-
gindo, mais oficiais e importantes. A gente tem
nos Estados Unidos e Inglatrra, a Tradição Gard-
neriana, a Tradição Alexandrina, a Tradição Old
Dianic que vem do dianismo e outras tradições.
A Tradição Old, foi a que originou a minha tra-
dição, que é a Tradição Diânica Nemorensis, o
meu sacerdote foi iniciado por uma pessoa, que
foi iniciado por uma pessoa, que foi iniciada pela
Morgan McFarland, criadora da Old Dianic. Em
janeiro desse ano fomos iniciados na Tradição
Gardneriana, nos Estados Unidos. Ele no 3º grau
e eu no 1º, então somos os únicos Gardnerianos
de verdade no Brasil. São vários caminhos que
você tem, na verdade praticas distintas, mas com
a mesma raiz para chegar no mesmo lugar. En-
tão por exemplo, na Tradição Gardneriana eles
fazem rituais de uma forma, eles funcionam de
uma forma e tem alguns instrumentos. A Tradi-
ção Alexandrina, Alexander era um discípulo de
Gerald Gardner, então quando ele fundou a tra-
dição dele, baseada na Gardneriana, obviamente
ele acrescenta ou tira coisas que são importantes
ou não são importantes pra ele, mas a matriz, a
raiz é a mesma, é a religião Wicca.

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S omos as Bruxas que não puderam queimar

As tradições acreditam em coisas dife-


rentes?

Muito dificilmente. A Tradição Alexandrina,


por exemplo, tem uma influência muito forte da
cabala então eles colocam as figuras dos anjos,
mas eles não são acreditados por mais nenhuma
outra tradição wiccaniana. Então algumas peque-
nas coisas podem mudar, mas a grande raiz e a
prática ritualística é a mesma.

Os elementos da Wicca tem alguma ana-


logia com o feminismo? O que eles repre-
sentam?

Tem. O pentáculo, que é uma estrela de cinco


pontas envolta por um círculo, simboliza a terra, o
ar, o fogo, a água e o espírito. Tudo isso junto envol-
to por uma única alma viva, isso na minha tradição,
porque tem tradições que invertem esses elementos,
instrumentos mágicos, como a gente chama. O atha-
me, que é o punhal, representa o ar, serve pra dire-
cionar energia e algumas pessoas colocam ele como
elemento fogo. Por que direcionar energia? Quando
a gente traça um círculo mágico ao redor de um ri-
tual, a gente está desenhando num mundo imaginá-
rio, pode se dizer assim, aquele círculo. É como se
o athame fosse uma extensão do nosso braço e aí
ele faz esse desenho da forma que a gente gostaria.
No fogo, nós temos o bastão, que seria o que mui-
tas pessoas enxergam como uma varinha mágica,
um catalisador energético tanto quanto o athame e
simboliza o fogo, normalmente é de cobre, por ser
um bom condutor energético. Na água, nós temos

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Ana C lara Romanelli e C inthia Viana

o cálice, que até o cristianismo tem, que é na ver-


dade a busca do útero da Deusa. Então várias ana-
logias que O Código Da Vinci explica direitinho e o
caldeirão é o útero da Grande Mãe. Ele é o útero da
Deusa mesmo, uma panela que serve pra fazer po-
ções, cozinhar, colocar ervas, mas é também um lu-
gar que você colocando água pode fazer divinações.
Tem alguns mitos que contam que as pessoas quan-
do morrem vão pra esse caldeirão e são misturadas
novamente antes de retornarem. Outras pessoas
acreditam que não são misturadas porque existem
essências diferentes e não pode misturar. Na mito-
logia celta, por exemplo, Baghdad é um deus homem
que é o único deus homem que possui um caldeirão,
então ele é um símbolo que está muito presente em
várias mitologias, mas esses instrumentos mágicos
eles recebem essas conexões.

O que pode ser considerado ser iniciado


pra Wicca?

A Wicca é uma religião iniciática, então quem


não é iniciado não é wiccaniano. Wicca para nós é
sinônimo de bruxo, então quando falam que conhe-
cem uma bruxa que benze, ela não é bruxa para nós,
é benzedeira. Quando dizem que na tradição de ma-
triz africana tem um bruxo, para nós não, ele tem
a tradição dele de matriz africana. Pra nós, a pala-
vra bruxo ou bruxa se relaciona a wiccanianos ou
wiccanianas, quem não é iniciado não faz parte da
religião. É como se todo mundo pra ser católico ti-
vesse que ser padre. É basicamente essa a analogia.
Então que não tem uma iniciação formal é um sim-
patizante da religião, mas não faz parte dela. Você

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pode fazer a autoiniciação, que é super aceita, qual


é a justificativa? “Por que eu tenho que receber ini-
ciação formal de alguém se a primeira pessoa foi
iniciada pela própria Deusa? Quem foi que iniciou
a primeira pessoa?” A autoiniciação é validíssima,
então se a pessoa se autoinicia, faz um ritual pra ela
mesma, se consagra sacerdote da Deusa. Além dis-
so, tem as iniciações formais dentro das tradições.
A iniciação é um ritual formal que marca o ingres-
so daquela pessoa naquela tradição, então tem um
dia que tem várias práticas ritualísticas, que eu não
posso descrever, mas as que são públicas. Vocês
vão encontrar num livro que chama Witch’s Bible,
a bíblia das bruxas, da Janet Farrar, que descreve
muitas coisas que realmente acontecem no ritual de
iniciação. O grande segredo não é você saber o que
acontece no ritual de iniciação, é você passar por
ele, então a gente acredita muito que é isso que faz
com que a pessoa ingresse. Todo bruxo é sacerdote,
oficia casamento, rituais de morte e outras celebra-
ções. Aquelas pessoas que não se autoconsagraram
ou não foram consagradas numa tradição não têm
esse poder nem são wiccanianos. O autoiniciado não
pode iniciar outra pessoa porque ele acredita que se
ele mesmo foi iniciado pela Deusa, ele não precisa
iniciar o outro. Mas, a iniciação formal dentro de
uma tradição acontece não porque quem inicia dei-
xa de ser a Deusa, mas a iniciação formal transmite
pra quem está entrando nos caminhos, preceitos e
mistérios daquela tradição. Qual mistério um autoi-
niciado vai passar pra uma outra pessoa se ele quem
criou aquilo? Pode ser que com o tempo isso se de-
senvolva e fortaleça e aí sim faz sentido. Atualmente
a gente não acredita nisso.

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É como se fosse um batizado?

Não, o batizado para o Cristianismo acontece,


principalmente, quando a pessoa é criança e é como
se fosse pra divindade tomar conta dela. No Cristia-
nismo, o batismo representa o ingresso da pessoa
naquela religião. Já na Wicca se chama wiccaning
e não representa o ingresso da pessoa naquela re-
ligião, representa que os deuses tomarão conta da-
quela criança ou daquela pessoa. Existe o batismo na
Wicca, mas ele não determina que a pessoa é wicca-
niana porque a pessoa pode crescer e ser budista, ser
hinduísta, então a gente não tem o direito de fazer
isso com uma criança, determinar a vida dela sendo
que ela é pequenininha. O wiccaning é diferente da
iniciação, é como se eu dissesse assim “Deusa, Deus,
cuida dessa criança até ela crescer e definir o que
ela quer pra vida dela” e os deuses se responsabili-
zam por tomar conta daquela criança. Quando ela
cresce e decide se ela quer ser um sacerdote, se ela
vai ser wiccaniana, aí é uma decisão dela, ninguém
pode influenciar. Então a diferença entre batismo e
a iniciação é bem grande.

A partir de que idade a pessoa pode se


iniciar?

Teoricamente quando a pessoa tem 15, 16 anos


ela já tem esse tipo de discernimento, mas na minha
tradição temos uma prática que só iniciamos maior
de idade. Tem muitas questões legais, embora nós
não façamos nada ilícito, não usamos drogas, não
usamos álcool, não comemos criancinhas e não fa-
zemos pacto com o demônio. Principalmente por-

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que o demônio é uma criação do cristianismo e não


nossa. Embora não tenha nada ilícito a gente acha
importante que a pessoa tenha essa maturidade de
decidir o caminho religioso dela, a não ser que seja
filho de um dos membros da religião e que tenha um
acompanhamento da mãe. Seja iniciado pela própria
mãe ou pelo próprio pai, aí é uma outra coisa, é uma
escolha familiar, que aí existe um clã, uma tradição
familiar sendo construída de bruxaria hereditária.

Como a Wicca enxerga o casamento e o


adultério?

Nós enxergamos o casamento como livre, tanto


que temos uma frase que atribuímos à Deusa, que é
da carga da Deusa que diz assim “todos os atos de
amor e prazer são meus ritos sagrados”. Então duas
mulheres casarem, dois homens casarem não tem
problema, o adultério não é visto da forma que a so-
ciedade enxerga hoje, eu tenho amigas casadas com
dois maridos e os três vivem bem. Eu tenho amigos
casados com duas mulheres e também vivem bem.
O que está bem para o casal, para o trio ou para os
membros envolvidos, está ótimo.

Ambos têm que ser iniciados na Wicca


para se casar?

Não. Pra se casarem não, nada a ver, nenhuma


relação. É como se fosse um relacionamento aber-
to. Vocês não precisam ser de nenhum caminho, o
acordo é de vocês. Agora se você quer fazer um ca-
samento na Wicca você não precisa ser wiccaniano
pra ter um handfasting, é só uma cerimônia e claro,

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minimamente acredito que alguma fé nos Deuses a


pessoa tem, mas não precisa ser wiccaniano e nem
iniciado.

Você descobriu o feminismo depois da


bruxaria?

Eu acredito que foi depois. Foi através da minha


compreensão do sagrado feminino. Existem danças do
sagrado feminino, existem milhões de questões sobre
e eu acho que essa visão da Wicca, de compreensão do
poder da mulher e do sagrado, me fizeram enxergar e
assumir uma bandeira política. Porque na verdade eu
não consigo entender como uma mulher não é femi-
nista, eu acho que devia nascer feminista. Nasceu, é
feminista? É lógico. “Ah é menina? É. Olha, mais uma
feminista!” Não é? Porque é uma coisa que devia ser
inerente aos seres humanos do gênero feminino. Mas
comigo acredito que foi junto com a Wicca.

Como você vê as outras religiões em rela-


ção ao feminismo?

É muito complicado, eu enxergo muitas religi-


ões de maneira muito preconceituosa, muito misógi-
nas. Muitos caminhos neopentecostais, por exemplo,
em que a mulher não pode se depilar, não pode tirar a
saia, é submissa, não pode cortar o cabelo e não pode
praticamente sentir prazer numa relação sexual. Isso é
um absurdo, uma forma de você ferir a mulher. Exis-
tiam tradições, por exemplo, que nem são do Brasil,
que são do Oriente Médio, por exemplo, na Somália,
em que as mulheres tinham o clitóris extirpado. Agora
acabou, não tem mais. Mas por que elas não podem

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sentir prazer? Por que a mulher é impura? Por que a


mulher não pode ter prazer? Por que o homem pode
ter cinco mulheres? Então, muitas outras religiões en-
xergo de maneira absurdamente negativa com relação
aos valores do feminismo, muitas. Infelizmente ao
nosso redor, principalmente as religiões cristãs.

Existem homens bruxos na Wicca?

Sim, que enxergam a sabedoria e a importância da


mulher acima da visão masculina, por mais que sejam
bruxos.

Você já viu algum homem na Wicca sendo


machista?

Muito difícil. Às vezes o que acontece são forma-


tações machistas que a pessoa tem e ela nem percebe.
Pra sociedade é tão natural, tão estrutural, tão conecta-
do a ela que ele não percebe. Mas logo a gente trata de
explicar e a pessoa tira aquilo da cabeça dela. Às vezes
a gente tem frases tão engessadas que a sociedade repe-
te e você reproduz, mas quando o homem vem e toma
consciência desse universo todo acho praticamente im-
possível que ele seja machista. A não ser de que sejam
de algumas tradições que às vezes são mais tradiciona-
listas e muito antigas, mas na Wicca é muito difícil.

Existem bruxos envolvidos com satanismo?

Não. Bruxaria é sinônimo de Wicca, então não tem


nada a ver com satanismo. Satanistas existem, são pes-
soas que cultuam o que elas entendem como sendo o
demônio, que não tem absolutamente nada a ver com

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Wicca/bruxaria. As pessoas utilizam o nome bruxaria


de maneira errada porque eles atribuem à bruxa a quem
tem um dom. Isso também é uma outra história e temos
várias discussões com relação a isso. Mas a gente tem
uma questão etimológica, Wicca vem de witch, vem de
wise, vem sábio, de bruxo, então essa é a nossa visão.
Quando essa pessoa escreve bruxa satânica, ela não está
se referindo à Wicca, está se referindo à visão que ela
tem de bruxaria que não tem nada a ver com Wicca.

Existe alguma diferença entre bruxaria e


feitiçaria?

Existe uma diferença muito grande. Bruxaria é


aquela prática devocional aos deuses, que você faz
rituais. Feitiçaria é a arte de fazer feitiços. É exata-
mente isso que a gente enxerga com relação a outras
pessoas que se dizem bruxos. Pra nós, eles são fei-
ticeiros porque eles utilizam a magia e as práticas
ritualísticas para conseguir aquilo que eles querem.
Um bruxo wiccaniano pode passar a vida inteira, tal-
vez, sem fazer um feitiço, porque não é necessário.
Você tem a pratica devocional que te leva em contato
com os deuses e que é muito mais profundo do que
qualquer outra coisa. Claro que a gente também faz
feitiço, só que o que estou dizendo é que os conceitos
são desconectados. A feitiçaria é a arte de você usar
os elementos da natureza para conseguir aquilo que
você deseja, nós fazemos feitiço também, a diferença
que quando você fala bruxaria, você está conectan-
do a prática da feitiçaria à devoção ou ter a devoção
acima da feitiçaria e quando a pessoa é feiticeira ela
não tem a parte devocional, ela tem somente a parte
de feitiço, ritualística.

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A Wicca revê a história da Inquisição em


algum momento?

Não temos muito que tratar na verdade. Nós sa-


bemos que a Inquisição era muito cômoda pra Igreja
Católica e pra algumas pessoas porque se você acu-
sasse uma mulher de heresia você tinha metade dos
bens dela que iam pra você e outra metade que ia pra
Igreja, daí tanta riqueza no Vaticano. Muitas pessoas
eram mulheres comuns não tinham nada a ver com
bruxaria e nada do gênero, mas muitas eram pesso-
as que praticavam essa fé, então era uma tentativa
da Igreja de exterminar. Tem lugares, por exemplo,
na Hungria, em que tem vilarejos que deixaram com
apenas uma mulher. Matavam gatos e matavam mu-
lheres. Então o que era o período da Idade Média?
Eles tinham uma divindade como uma grande jus-
tiça que rege o mundo e essa justiça, na verdade,
seria um equilíbrio. E nessa parte não era, eles so-
brepunham aos desejos e vontades das mulheres e
das pessoas, impunham uma religião e falavam “é
isso aqui, você não pode seguir nada diferente dis-
so”. Chamavam de herege as pessoas que faziam chá,
que usavam o poder das plantas para qualquer outra
coisa, para cura. E não existia farmácia, na época.

Você acha que a Wicca tentou resgatar


elementos do feminismo ou o feminismo ten-
tou resgatar elementos da Wicca?

Eu acho que a Wicca resgata elementos do pa-


ganismo que tem por si só intrinsecamente a con-
cepção do feminismo, do empoderamento feminino.
Claro, vamos diferenciar feminismo como bandeira

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e luta política. A Wicca incorporou enquanto reli-


gião, mas as visões do empoderamento feminino
acho que já vieram relacionadas à prática.

Você acha que a religião oficial do femi-


nismo é a Wicca?

Eu não posso dizer isso porque eu estaria dei-


xando de fora muitas religiões que também têm ban-
deiras e que trabalham muito bem. Inclusive religiões
cristãs que trabalham muito bem com a bandeira do
feminismo. Mas eu diria que é uma das que se apro-
ximam, grandemente nesse contexto. Não posso dizer
que é a religião oficial porque eu não seria justa com
os outros caminhos e eu não tenho poder para falar
de outras religiões, eu posso falar sobre a minha. Eu
acho que se a gente for decidir e pensar uma que se
aproxima bastante, a Wicca está nas “top ten”.

Tem uma frase muito recorrente nas mar-


chas de feminismo que é “somos as netas de
todas as bruxas que não puderam queimar”. O
que você acha dessa frase?

Eu acho uma frase bem legal e é verdade. Na In-


quisição, as mulheres, que queriam ser livres em suas
práticas e milhões de outras coisas da forma que elas
queriam, na verdade são as avós das mulheres que
hoje reivindicam essa mesma liberdade. Eram mu-
lheres que batiam de frente com a Santa Inquisição e
agora são mulheres que estão lutando contra outras
opressões do sistema.

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É mais cobrado de mim, por ser uma mulher
negra, que eu sempre esteja lutando e sempre
seja melhor. Eu não posso ser 9,9 eu tenho que
ser 10, porque se eu não for 10 as pessoas nunca
vão me dar credibilidade.”

Rapper feminista e militante do movimento negro.

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Luana Hansen

C
omo foi o início do mundo militância, foi
junto com a música?

De verdade, ativista esse tipo de estar mesmo nas


lutas, de ir em assembleia, por exemplo, lutar por di-
reitos, começou depois, através da música Ventre Livre
de Fato que eu tive o contato com a Elisa Gargiulo, da
Dominatrix. Depois que eu fiz o Quatro Minas, no fim
de 2012, logo em seguida a gente fez um vídeo que está
no YouTube falando sobre a legalização do aborto. De-
pois veio o Ventre Livre de Fato e foi quando eu percebi
que era militante. Antes disso eu só entendia no sentido
de vivência, de ver coisas erradas e não concordar com
certo tipo de hierarquia, por exemplo, mas nunca tinha
pensado que seria militante com a música.

O que veio primeiro, a militância do movi-


mento negro ou do feminismo?

Primeiro veio o feminismo, embora eu tenha todo


esse conhecimento de ser negra através do Hip Hop. Já
entrei no movimento feminista com a percepção de ser
negra. A Ventre Livre, por exemplo, é uma luta a favor da
mulher com um recorte em cima da mulher periférica e

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S omos as Bruxas que não puderam queimar

negra porque são as que mais morrem. Mas a priori, era


uma música feita para as mulheres. Depois eu venho
com Flor de Mulher, que também é uma música que
tem esse recorte pra qualquer tipo de mulher. Depois,
com a Negras em Marcha falamos do feminismo negro,
eu meio que me encontrei depois de participar de várias
rodas de conversas. O feminismo apareceu em vários
lugares, foi nas faculdades que eu comecei a perceber a
ausência do povo negro nesses lugares, fui entendendo
cada vez mais e comecei a militar pelo feminismo negro.

Como é ser lésbica na periferia?

Acho que é como ser lésbica em qualquer lugar.


Não é mais fácil, nem mais difícil. Por exemplo, no cen-
tro de São Paulo às vezes tem dez vizinhos do seu lado
e você não sabe quem são por causa da coisa do cotidia-
no, de você sair todo dia correndo. A maioria das pesso-
as que está na quebrada já está há muito tempo ali e já
acaba conhecendo fulano, já sabe quem é o ciclano. Na
quebrada, as pessoas acham que por te ver todo dia e
por estar mais próximo de você, tem o direito de se me-
ter mais na sua vida. Acho que as pessoas se escondem
mais para não sofrer tanto preconceito direto, porque o
vizinho vai na sua casa pedir açúcar e vai falar do outro.
Então a gente sabe que do jeito que ele fala do vizinho,
ele pode falar de você.

Você nasceu na periferia?

Não, eu nasci no Centro da cidade de São Paulo,


na Beneficência Portuguesa. Minha mãe é nordestina e
veio pra São Paulo. Como todo nordestino ou como toda
pessoa que vem de fora, tem aquele conceito de que o

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Centro da cidade é o lugar que tem tudo mais perto, que


vai ficar fácil para se locomover. Então eu fui criada até
meus 15 anos de idade, quando estava na adolescência
acabei migrando para a periferia de São Paulo, em Pi-
rituba.

Como é ser mulher no rap? Você se sen-


te representada pelo movimento, incluindo
os homens?

É uma militância diária você ser mulher dentro


do rap. Eu tenho parcerias hoje com a Frente
Nacional de Mulheres no Hip Hop e com o Hip
Hop Mulher, a gente percebe o quanto é polêmico
conseguir fazer um evento que tenha 50% de homens
e 50% de mulheres. A gente só consegue viabilizar
esse tipo de evento quando é fora de movimento
de hip hop, se for uma ONG ou uma instituição. O
rap nacional tem 32 anos de história, a gente teve o
primeiro DVD de mulher sendo produzido esse ano.
Depois de 32 anos de história a gente conseguir ter
um DVD produzido de mulheres mostra o quanto o
rap é machista e o quanto o rap ainda deve à mulher,
em primeira instância. No meu caso, além de ser
mulher e lésbica e levantar a bandeira do feminismo,
a luta se torna ainda mais árdua. Encontro barreiras
dentro de lugares que achava que já tinha dominado,
a gente briga muito pra ter espaço. Os manos do
rap são poucos que realmente respeitam a mulher
dentro do hip hop com o contexto que ela quer fazer.
É sempre meio que menosprezando, tipo, se a mina
é DJ sempre rola uma frasezinha “ah é, você manja
mesmo, nem sabia que você era DJ”, se a mina é
B-Girl “nossa, não é que as mina dança mesmo”,

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se a mina é grafiteira “pô, nem sabia que tinha


mina que grafitava”. Em São Paulo eu sou uma das
poucas que tem estúdio e que consegue produzir seu
próprio trabalho, então eu percebo que ainda tem
que caminhar muito o hip hop pra ser igualitário.

Quem é o seu público hoje?

As mulheres feministas, com certeza. As lésbi-


cas, a galera LGBT, eu tenho muita gente que curte
meu trabalho, que sempre foi excluída dos shows de
rap e hoje a gente tem parcerias com a festa Don’t
Touch My Hair, que é uma festa em São Paulo, que
chega a 400 pessoas no porão da São Francisco. È
uma festa feita por mulheres lésbicas, gays, trans e
a gente consegue movimentar uma galera dançando
até o chão dançando. Tem a galera LGBT tendo dis-
puta de batalha de bate trança, bate black power, en-
tão as mulheres têm a liberdade de dançar e serem
livres sem estar naquele ambiente de show de rap,
eu sei porque já canto rap há 14 anos. A gente está
militando dentro do movimento, mas tem muito a
galgar ainda. Meu público com certeza são as mulhe-
res e as feministas.

Você vê alguma diferença entre feminis-


mo branco e feminismo negro, já sofreu pre-
conceito por alguma feminista branca?

Como eu entrei no movimento feminista já


sendo conhecida, eu vou ser hipócrita ao falar que
entrei ontem no movimento e sofri preconceito.
Não sofri de nenhuma parte, porque onde eu che-
go as pessoas me reconhecem, então eu não sofri.

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Mas eu sei que existe uma diferença grande do fe-


minismo radical, das duas partes vamos dizer as-
sim, porque existe radicalismo de um feminismo e
de outro também. A minha parceira, por exemplo,
a Drika Ferreira, já sofreu represálias por estar
num lugar e as pessoas chamarem ela de branca
por ter a cútis mais clara sendo que ela é uma mu-
lher negra. A gente sente que tem muita coisa para
conquistar dentro do próprio feminismo, tudo isso
para que a gente lute de verdade em prol daquilo
que é a principal luta, que é contra o machismo.
Nós, mulheres negras, temos que estar nas mesas
quando estiverem falando sobre feminismo. Tem
que ter mulher negra, indígena, mulheres diferen-
tes e trans. Todas somos mulheres e somos dife-
rentes.

Você tem o apoio da sua família sendo


militante pela causa feminista e pelo movi-
mento negro?

A minha família é meio complicada. Nós so-


mos em seis. Sou filha de uma mãe solteira e te-
nho minha mãe como mestre de cerimônia lá em
casa. Tenho um irmão gay e ele apoia totalmente
minhas lutas e uma irmã que faz enfermagem na
USP, acho que a medicina e a faculdade mexem
muito com a cabeça das pessoas, que não con-
seguem enxergar que o próprio Estado te coloca
numa condição inferior. Uma vez conversando
com ela perguntei o porquê do enfermeiro homem
ganhar mais do que uma enfermeira mulher sendo
que ambos exercem a mesma função, que ambos
estudam o mesmo tanto para serem enfermeiros e

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ela me deu a resposta acadêmica de que o homem


é mais forte. Então é muito difícil perceber que
a gente tem que lutar, eu acho que eu ainda es-
trago o jantar quando é natal, quando alguém faz
alguma piadinha sem graça, racista ou misógina,
eu sempre comento. Acho que a gente sempre tem
que militar dentro da nossa própria casa, porque
são pessoas que a gente ama e que a gente não quer
ver cometendo erros que serão graves pra elas. Eu
amo minha família acho que eles têm que mudar,
assim como muitas pessoas da sociedade.

Você sente que ainda tem algo para ser


descontruído em você em relação a privilégios?

Sim, eu sempre falo que embora eu seja uma mu-


lher negra eu ainda tenho uma aparência vendável na
mídia. Se me colocarem um cabelão do tipo Taís Araú-
jo eu passo batido numa mídia. Eu sou uma mulher
magra, por exemplo, que está dentro dos padrões de
estética e isso já é um privilégio. Tenho que ter essa
consciência em todos os lugares que eu vou mesmo
sendo uma mulher negra, reconhecer esse privilégio
perante minhas outras irmãs de luta. Tenho que ter
a consciência de ser uma pessoa dotada de todos os
dons, que são ler, escrever, até ser alfabetizada mes-
mo. Se eu não tiver essa consciência eu nunca vou po-
der representar ninguém, nem a mim mesma. Carrego
isso comigo antes de defender qualquer bandeira. As-
sim como também tenho a consciência de que se tiver
eu, uma outra mulher negra e uma mulher branca, loi-
ra, numa sala, ela pode ser escolhida pra um emprego
que eu nunca seria escolhida. Eu nunca, por exemplo,
fui secretária, nunca me encaixei nesse perfil e sem-

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Ana C lara Romanelli e C inthia Viana

pre achei estranho porque eu venho de uma mãe que


sempre foi secretária. Mas minha mãe é loira dos olhos
verdes, ela é filha de alemão, meu sobrenome é ale-
mão. Então eu achava muito louco porque minha mãe
conseguia trabalhos que eu nunca consegui, eu sempre
tive subempregos e hoje eu entendo porque que eu tive
subempregos e não tive os mesmos empregos que ela.
Mesmo uma vez sendo indicada pela minha mãe para
trabalhar num escritório, quando eu cheguei lá, a mu-
lher me perguntou três vezes se eu era mesmo filha da
Sônia. Porque eu sou negra e minha mãe é branca.

Como é o ativismo na periferia?

Na minha quebrada, por exemplo, a gente tenta


fazer muito sarau e existem grupos de teatro que fa-
zem as peças, encontros de várias militâncias, tanto
antigas quanto novas que estão ocupando um espaço,
o grafite, um espaço pra adolescente também se arti-
cula. Acho que a quebrada aprendeu a se articular, a
gente tem agora o Hip Hop Mulher que está criando
a primeira sede que vai ser de mulheres. As mulheres
vão poder produzir e criar. Eu aprendi na periferia, me
tornei pensadora e consumidora na periferia. Vira e
mexe estou em algum lugar, de alguma quebrada, arti-
culando com o pessoal de lá, com verba ou sem verba a
galera está fazendo o movimento e fazendo acontecer.

O que você acha das cotas raciais?

Eu sou totalmente a favor. O Brasil deve e muito


ao povo negro, principalmente, porque eu ando nas fa-
culdades do Brasil inteiro e nunca pensei na minha vida
que eu ia andar por esses espaços. Quando estou em

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S omos as Bruxas que não puderam queimar

uma faculdade de Direito do Paraná, saio da faculdade


de lá e vou para uma faculdade do Mato Grosso do Sul,
também de Direito e depois vou pra Bahia, a percepção
sempre é a mesma. Vejo que o povo negro nunca está
em excesso dentro das faculdades. Acho que as pessoas
vendem a ideia de que para a periferia você ser negro, é
você ser cotista, é você ser menos, esquecem de que pra
estar ali você tem que ter tirado uma nota boa, pra você
se manter sendo cotista você tem que ter uma boa nota.
É geralmente a pessoa mais cobrada porque tem que
trabalhar e tem que fazer a faculdade e além de tudo
se manter sempre na média. O Brasil deve muito ainda
não só para negros, eu estive em Tocantins e tem uma
faculdade com cota pra índios e eu acho que aqui tam-
bém tem que ter essa cota. Também tem que ter esse
recorte porque não só somos negros, o povo brasileiro
também tem o índio, também tem o nordestino, tem vá-
rias outras pessoas que não são privilegiadas com isso.

O que você pensa sobre a representativida-


de negra na mídia, ainda não é uma realidade
ter essa representação?

Nossa, tá longe, a gente só se vê em novela temá-


tica com escravidão. E se não é escravidão é ironizando
o povo negro. Ainda falta muito pra representar. São
poucas atrizes que pegam algumas personagens que
não tem aquele recorte de pobre, miserável, de perifé-
rica e sempre reportam da mesma maneira. Nunca es-
tamos, por exemplo, em âncora de Jornal Nacional, e
nem em nenhum jornal de grandes emissoras. Não tem
representatividade em programas infantis, parece que a
gente não consome aquilo. Temos que ter uma mais TV
negra. Tem alguns canais de televisão que eu vejo que

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Ana C lara Romanelli e C inthia Viana

tem um pouco de iniciativa, mas perto de uma grande


massa ainda tem muito o que conquistar e não só na TV,
falo na mídia em geral, como no mundo da moda e mí-
dias de todos os sentidos. Senão as pessoas sempre vão
fazer o recorte do negro vulgar e nunca imaginarão um
negro engenheiro, médico, cirurgião geral, juiz, então
precisa mudar muito ainda. O povo brasileiro tem 53%
da sua população sendo esquecida.

Qual é o papel dos brancos no movimento


negro, o que ajuda e o que atrapalha?

Acho que todo mundo pode ajudar. Eu sou filha de


mestiço, minha mãe é branca, como eu já disse, e o meu
pai era negro. Não o conheci, porque ele fez o aborto,
que eu falo que o homem tem esse privilégio de fazer o
aborto legal. A pessoa branca pode estar ali para lutar,
para somar, desde que saiba que naquela luta o prota-
gonismo é do povo negro. Na luta, pelo menos do povo
negro, deixa o negro ser protagonista já que em todas as
outras lutas a gente tem que pedir licença.

O que é cobrado da mulher negra em


sentidos sociais?

Da mulher negra as pessoas sempre cobram


que a gente seja mais forte, que a gente carre-
gue nas costas toda aquela luta. A mulher negra,
por exemplo, é uma das mulheres mais solitárias.
Sempre cobrada de estar ali na militância firme e
forte. É mais cobrado de mim, por ser uma mulher
negra, que eu sempre esteja lutando e sempre seja
melhor. Eu não posso ser 9,9 eu tenho que ser 10,
porque se eu não for 10 as pessoas nunca vão me

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S omos as Bruxas que não puderam queimar

dar credibilidade. As pessoas só dão credibilidade


pra mulher negra quando ela é a melhor, quando
é condecorada e todo mundo para pra ouvir e fala
“nossa, é mesmo”. Mas se ela não chegar nesse pa-
tamar, ela passa como invisível.

Você acha que assumir o cabelo é im-


portante para o negro? O que você acha de
negros que optam pelo alisamento?

Eu acho que o negro tem que ser feliz com


ele mesmo, ele tem que se autoafirmar negro in-
dependente do cabelo e do alisamento. Por exem-
plo, se você vir minhas fotos na internet, vai ver
que eu já tive todo o tipo de cabelo, todos os tipos
de alisamento e todos os tipos de cores. E nunca
deixei de ser negra por isso. O que me faz negra
ou menos negra não é o meu cabelo, mas sim ter a
consciência do que eu sou e que eu tenho toda uma
representatividade do meu corpo, do meu cheiro,
da minha origem, da minha ancestralidade, é isso
o que eu tenho que saber, o cabelo é uma outra
referência. Lógico que meu cabelo é minha coroa e
se eu quiser meu black lá em cima, mais alto, mi-
nha coroa vai ficar mais alta. Se eu puser um tur-
bante, minha coroa vai ficar mais alta, são coro-
as que a gente carrega na nossa cabeça. A mulher
que se sente bem alisando e pra ela está bom, não
deve ser menos do que eu. Desde que ela se afirme
como uma mulher negra, pra mim tanto faz. Exis-
tem pessoas negras de cabelo liso, existem pessoas
totalmente afro de cabelo liso, nós sermos negros
não quer dizer que nós temos todos que nascer
com cabelo afro.

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Ana C lara Romanelli e C inthia Viana

Como você acha que as pessoas podem


orientar as meninas que estão sofrendo machis-
mo e racismo muito jovens?

A gente faz muito trabalho em escolas, em CEDE-


CAs, CEUs. Quando eu vou falar numa escola e chego lá
de black, ou de dread, ou agora de trança, as crianças se
identificam. Elas olham as cores e já começam a conver-
sar, acho que quando a gente tem o privilégio de ter essa
troca desde a infância nas escolas e mostrar, a gente
cria seres humanos menos racistas e também consegue
identificar problemas. Porque eu percebo muitas vezes
nas piadinhas. Eu sei disso porque ouvi na minha casa
um tipo de piada que sempre foi racista e eu só percebi
que era racista depois que eu cresci “vamos dar choco-
late pra Luana na páscoa, vamos dar chocolate branco
pra Luana não morder o dedo”, “esqueceram a Luana no
forno”. A gente tem que se conscientizar porque muitas
vezes a criança nem sabe que está sofrendo racismo e a
escola é o lugar onde mais tem esse tipo de problema.
Estou trabalhando com uma garotada agora na Fábrica
de Cultura do Sacomã e eles estão fazendo uma peça
justamente falando sobre isso: o bullying nas escolas.
Como atinge a molecada de 16, 17, 18 até os seus 20
anos, é bem legal, que é justamente quando precisamos
nos conscientizar.

Você acha que a solidão da mulher negra só


ocorre em relações heterossexuais ou isso tam-
bém acontece sendo uma mulher lésbica?

Posso falar de mim, porque eu tenho 34 anos e sou


lésbica desde que me conheço por gente. Antes de eu ser
quem eu sou hoje, às vezes eu me estranhava porque eu

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S omos as Bruxas que não puderam queimar

chegava num lugar e as pessoas me olhavam tanto que


eu ficava até sem graça. É até engraçado porque a gente
por ser mulher negra nunca foi tão assediada, as pessoas
te olham, mas você está sempre acostumada a ser invi-
sível. Lembro que quando eu ia pra eventos LGBT, Café
Vermont essas coisas que tem em São Paulo, lembro que
eu era a única que ninguém queria ficar. Todo mundo
ficava com todas as minhas amigas e eu sempre me ar-
rumava toda. Foram várias as vezes que eu saí da mi-
nha casa arrumada falando “hoje eu vou pegar alguém”.
Era sempre aquele negócio de você sair, chegar no lugar
e passar a noite trocando a ideia com as pessoas, todo
mundo te achando hiper da hora pra trocar uma ideia,
mas você nunca vai ser escolhida pra ficar. È muito louco
isso. Falam assim pra você “porra, mas você é linda”, as
pessoas te acham linda, maravilhosa, mas pra ficar com
você não. Nas baladas, eu nunca fui escolhida. Até na es-
cola, por exemplo, quando tinha festa junina eu já sabia
que eu nunca ia ser a noiva, porque eu sou uma mulher
negra. Então sempre eu sempre ia ser a menininha esco-
lhida pela professora para ficar com o menininho negro
da sala. A gente não percebe, mas a sociedade meio que
estipula os negros serem esquecidos. Hoje a gente ainda
tem uma mídia em que as adolescentes tem uma Beyon-
cé, mas mesmo assim segue aquela estética de beleza
padronizada. Muitas mulheres não se identificam com
aquele padrão de estética e de beleza e acabam sendo
sempre a que ninguém vai escolher, mesmo que indire-
tamente. Eu posso falar por mim porque eu sempre fui
uma mulher que saía muito, fui muito em balada, vivi
minha adolescência em balada, e eu vejo na minha vida
que sempre me relacionei com mulheres negras. Sempre
foram ou mulheres negras ou aquele estereótipo de mo-
renas, porque eram as pessoas que me odiavam.

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Ana C lara Romanelli e C inthia Viana

Você sente que é assim até no próprio mo-


vimento feminista?

Pelo pouco que caminhei eu percebo, por


exemplo, que tem lugares que a mulher negra já
tem bastante representatividade e já tem outros
movimentos que não. Por exemplo, eu participei de
vários movimentos da UNE, da União Nacional dos
Estudantes e lá eu pude perceber que existe um padrão
de direção da mulher que assume a diretoria, o padrão
de mulher branca, ou seja, sempre o mesmo padrão de
mulheres pra ser diretora e pra ser presidenta. Você
vai em lugares que tem várias mulheres feministas e
vê que tem sempre o mesmo padrão de mulher, que é
doutora, e sempre falta mulher negra. Eu sinto essa
ausência até no movimento.

Como você vê meninas brancas se apro-


priando de elementos da cultura negra?

A gente já fez várias conversas entre nós, ne-


gras, sobre isso e uma coisa que eu cheguei a con-
clusão é que é engraçado como aceitam o turbante,
aceitam os adereços e aceitam os dreads. Tudo no
negro é aceitável, menos o negro. E é só isso que
eu tenho a dizer. Todo mundo pode usar qualquer
coisa, pra mim nunca foi dito que não precisaria
ou não poderia usar, só acho que sempre tem que
ter esse recorte de você saber que uma negra, por
exemplo, de turbante tem um significado, é tudo
uma militância, todo um recorte cultural. E uma
branca de turbante está de acessório.

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Eu vejo movimento social retratado quando ele
faz barulho e não como uma peça importante na
sociedade. Quando ele invade, faz passeata, tira a
roupa e se abraça na árvore, aí o movimento social
aparece.”

Jornalista e pós-graduada em filosofia, trabalhou no Jornal da Tarde (SP), na


Gazeta do Povo (PR) e foi editora-chefe de conteúdos digitais de O Estado de São
Paulo. Atualmente é coordenadora de pesquisas na O2 Filmes e uma das fundadoras
da Ponte Jornalismo, um canal de informações online sobre direitos humanos, onde
debate questões de gênero.

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Claudia Belfort

Q ual você acredita ser o papel da mídia


para a mulher?

Eu acho que o papel da mídia tem que ser o


mesmo pra todo mundo. Tem que ser o papel de in-
formar, orientar para que isso se transforme numa
ferramenta de poder. A mídia não exerce esse papel
e seria importante pelo menos para todos os gêne-
ros. A imprensa tradicional é hoje, e sempre foi,
comandada por homens. O jornalismo sempre foi
um instrumento de poder e durante muito tempo o
poder esteve só na mão dos homens. As empresas
de comunicação foram criadas por famílias podero-
sas que estiveram sempre ligadas nesse jogo de po-
der. Como a imprensa foi comandada por homens,
acabou pautando o que é importante para o jorna-
lismo inteiro, a política e a economia. As informa-
ções que dariam empoderamento à mulher, é uma
informação que não entra na imprensa tradicional
porque não está no DNA. É muito recente você ter
mulher em comando de redação, fui a primeira edi-
tora-chefe no Jornal da Tarde e no Estadão Digi-
tal. Fui a primeira editora-chefe do maior jornal do
Paraná, quando entrei eram todos homens. Eram

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S omos as Bruxas que não puderam queimar

oito executivos e uma mulher, então o modelo de


pensamento acabou moldando o que é importante.
Falta abrir o leque para a vida, não vê-la só com
os olhos dos homens. Não é colocar só uma pauta
feminista, apesar de achar importante, mas é tam-
bém por na balança que outros assuntos são tão im-
portantes quanto a política. Quando vemos matéria
sobre licença maternidade? É muito difícil e quan-
do você vê é uma “tripinha”. A licença maternidade
tem tudo a ver com economia e com política. Às ve-
zes cai num caderno de cotidiano ou numa notinha
pequena. Não se deu ênfase de que o Bolsa Família
ia para a mulher, porque é ela que cuida do dinhei-
ro. O Bolsa Família sempre foi tratado do ponto de
vista do programa social ou da crítica como uma
esmola, mas é um instrumento de desenvolvimento
econômico. Na medida em que a mulher consegue
colocar o seu filho numa escola, ela pode sair para
trabalhar e movimentar a economia. Essa ligação
de que o empoderamento da mulher e a igualdade
de gênero tem um componente que afeta a política
e a economia não passa na cabeça da grande im-
prensa. Não tem uma cobertura da vida do ser hu-
mano, isso não aparece, tem que ter essa pauta de
gênero justamente por causa de todo esse histórico
que eu falei. Uma pauta que foque na igualdade de
gênero não é “vamos falar sobre feminismo”, isso
não funciona, é “vamos falar sobre economia, so-
bre como você colocar criança na creche vai aju-
dar no desenvolvimento econômico da sociedade”.
Essa também é uma pauta de gênero e de economia,
não é uma pauta de “coitadas das mulheres pobres
que não têm onde deixar os filhos na creche”, essa
é uma visão rasa da sociedade.

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Ana C lara Romanelli e C inthia Viana

De que maneira você acredita que a im-


prensa brasileira fala sobre a mulher, que
imagem ela passa para as pessoas do que é a
mulher hoje em dia?

A imprensa ainda retrata a mulher de um jei-


to muito bobo. Ainda bem que não existe mais os
“cadernos femininos”, porque eram feitos só com
temas idiotas. Isso pelo menos tem diminuído,
mesmo assim quando você fala de atrair a atenção
da mulher, você sempre está falando de batom, de
beleza, de homem, de sexo. É ótimo, eu gosto de
batom, de beleza, de homem e de sexo. Mas não é
só isso, então quando se trata de focar no persona-
gem mulher é sempre o estereótipo que só se inte-
ressa por beleza, por filhos e por homens. Fora es-
sas revistas podres que tem por aí que promovem
“dez maneiras de você gozar de um jeito, gozar de
outro”, é sempre o mesmo assunto. Quantas vezes
você já viu alguém comentar o terno do Fernando
Henrique Cardoso? Quantas vezes você já viu as
pessoas comentarem a roupa da Dilma? Por que
isso é pauta pra Dilma e não é pauta pro Fernando
Henrique? Cristina Kirchner e Angela Merkel, por
exemplo. A própria imprensa provoca isso porque
ainda vê a mulher debaixo de uma camada estéti-
ca, não como uma pessoa competente. Os desfiles,
por exemplo, quando a imprensa se preocupa com
a saúde das meninas da São Paulo Fashion Week?
Quando alguma fica doente? Elas estão magérri-
mas de novo, saem na capa do jornal com aquela
roupa maravilhosa e você está falando só da capa.
Não vê que tem uma pessoa anoréxica ali atrás, é
uma camada estética que é colocada em cima da

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S omos as Bruxas que não puderam queimar

mulher. Por que a mulher responde a pergunta


de como conciliar a carreira com filho e o homem
não responde essa pergunta? Nenhum jornalista
faz essa pergunta ao homem. A mulher é retratada
primeiramente como mãe, que tem que cuidar da
casa e tem que ser bonita, claro. E ela tem direito a
todos os restos porque hoje em dia “somos iguais”.
Outro dia vi uma história ótima, em um restauran-
te na hora de dividir a conta o garçom deu a parte
mais cara para o homem e a menor para a mulher e
o homem perguntou: mas por que isso? Porque ela
ganha 30% a menos que você, vamos dividir igual
então?! Os salários são diferentes. Mas por que?
Eu ganhava menos no Estadão, quando eu era edi-
tora. E todas as diretoras de lá ganhavam menos
do que os diretores homens. Isso estava no rela-
tório de governança corporativa. Absolutamente
todas as mulheres ganhavam menos do que os ho-
mens.

De que maneira você acha que a im-


prensa retrata os movimentos sociais, como
o feminismo?

Eu nem vejo feminismo na imprensa. Eu vejo


movimento social retratado quando ele faz ba-
rulho e não como uma peça importante na so-
ciedade. Quando ele invade, faz passeata, tira
a roupa e se abraça na árvore, aí o movimento
social aparece. Agora, quando tem uma pauta so-
bre os movimentos sociais, não os ouvem. Quando
tem uma pauta, por exemplo, sobre um novo plano
da cidade o jornalista fala “o prefeito disse isso, o
empresário disse isso, mas os movimentos sociais

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não ficaram satisfeitos”, nem dão um nome. Você


tem que se destacar muito como o Guilherme Bou-
los, que fez barulho. Ele é muito competente para
poder aparecer. Quando aparece o movimento fe-
minista? Quando é para defender mulher que foi
estuprada, quando aparece estatística. Elas não
são procuradas para uma pauta que não seja fac-
tual.

Como você acredita que um veículo de


comunicação pode ajudar nas questões da
mulher, de gênero e trans?

Nesse momento a gente tem que ter uma área


que trate e pense nisso. O ideal é que isso não pre-
cisasse existir, mas se entrar nesse discurso a gen-
te continua invisível. Não podemos entrar no dis-
curso dos homens de que a pauta feminista é velha,
apenas porque nós já podemos votar e trabalhar.
Ouvi isso diversas vezes. Sempre me disseram que
era pauta uma pauta datada, que já tinha acabado
aquele assunto. Se a gente entrar nesse discurso,
a gente está entrando nesse jogo heteronormativo
de domínio. E aí faz de conta que homem é igual a
mulher, como na história do Brasil na democracia
racial. É a velha história de que a pessoa diz que
até tem amigos negros. Não podemos entrar nesse
jogo de que somos iguais, nem os negros, nem os
gays, nem os trans, nem as mulheres. A gente não
é, mas deveria ser. Deveria haver uma área de co-
bertura específica para isso. Pelo menos uma área
de igualdade como faz o El País, onde partem do
princípio da igualdade e ali cabem várias matérias
sobre economia, política, saúde, beleza e emprego.

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S omos as Bruxas que não puderam queimar

O que pode ser benéfico sem nos compartimentar


porque se separar as minorias a gente fica menor
ainda. Do ponto de vista da igualdade cabe a igual-
dade de gênero, a igualdade racial, a igualdade de
etnias, a igualdade social, mas sempre tendo esse
ponto de partida, porque o pano de fundo é um
jogo de poder do homem dominando a mulher, do
rico dominando o pobre, do branco dominando o
negro, é um jogo de domínio.

Você acha que deveriam preparar o jor-


nalista na faculdade para essas questões?

O estudo da sociologia, da filosofia já prepara


o jornalista. Poderia ter a história do feminismo,
a história do movimentos negro, do movimento
trans, pegar vários elementos. A gente aprende
história na faculdade, temos política, antropolo-
gia, filosofia, mas temos uma outra história que
não aparece. Houve um movimento feminista for-
te, uma ruptura em um determinado momento, o
movimento anti-segregacionista americano teve
influência no mundo inteiro e não teve cobertu-
ra, mudou o jeito de cobrir. A faculdade tem que
mostrar a história e sensibilizar o jornalista pra
igualdade, tem que falar de jornalismo feminista,
assim como tem que falar do jornalismo econômi-
co. Temos que estudar jornalismo e estar prepa-
rado para aquele tema. Imagina que você se es-
pecializa em jornalismo feminista e vai trabalhar
em economia, o cara da economia tem que saber o
que é igualdade, assim como o quem está em po-
lítica, cidades, esportes tem que ter a igualdade
como pano de fundo. Talvez na faculdade devesse

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Ana C lara Romanelli e C inthia Viana

ter uma cadeira focada nisso, em igualdade, ou em


história desses movimentos sociais que pautaram
muitas revoluções, reformas e pautas.

Na Ponte vocês têm uma editoria volta-


da para direitos humanos e questões de gê-
nero. Como vocês tiveram essa ideia e como
aplicam isso nas pautas?

Nosso ponto de partida é a violência. Violên-


cia policial, racial e de gênero. Às vezes a gente tem
algum artigo, mas o nosso ponto de partida é esse:
denunciar a violência em gênero, raça e a violência
policial que envolve desigualdade social. São as-
suntos que quase não vemos na imprensa e tinha
um grupo de “revoltados online” do bem. Eu me in-
teresso muito por gênero e racismo, acabei fazendo
muita reportagem de violência policial. Entrevistei
a mãe daquele menino que foi roubar, subiu no te-
lhado e o policial o matou com quatro tiros. O que
me chocou nessa mulher é que aquele menino é fi-
lho de um estupro cometido por um policial. Então
tem uma questão de gênero, de raça e social. Ela é
o ciclo completo da violência que um excluído sofre
no Brasil. Foi estuprada aos 17 anos por um policial
militar em Belo Horizonte, o pai dela não aceitou o
filho, então ela veio para São Paulo para criá-lo e 18
anos depois o menino é assassinado por um policial
militar. Ela é negra e pobre, então eu acho que é um
exemplo perfeito das coisas que a gente briga na
Ponte. No começo a gente abriu mais o leque, mas
o leque aberto faz você desfocar e hoje nenhum ve-
ículo de comunicação faz o trabalho que a gente faz
na Ponte com esse enfoque.

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S omos as Bruxas que não puderam queimar

O que você indica para alguém que quer


escrever reportagens com enfoque em ques-
tões de gênero e feminismo?

Determinados assuntos eu acho que você tem


que ler bastante sobre o tema, procurar livros e ver
o que os outros jornais estão fazendo no mundo. A
primeira coisa é procurar se informar sobre o que já
está sendo feito, começar a participar de eventos, de
congressos e ir entrando no tema, procurar um cole-
tivo e dizer que gostaria de colaborar com uma pauta
de gênero. Você não vai fazer uma pauta de gênero do
nada, tem um chão para percorrer. Se você não tiver
um embasamento intelectual, não vai ver a matéria.
Essa história que a mulher foi estuprada saiu na Fo-
lha, numa “tripinha”. Era pra ser uma pauta de pági-
na inteira, no final de semana, matéria especial. Dá
para fazer um artigo acadêmico com a história dessa
mulher.

Você já sofreu preconceito por ser mulher


nos veículos de comunicação?

Claro. Quando eu trabalhava no Estadão, éra-


mos o Gazi, editor-chefe de desenvolvimento, eu
como editora-chefe do Estadão digital e o Gandur,
o diretor geral, éramos três. Tinham duas entradas,
uma por trás que era onde entrávamos quando tinha
muita gente na redação e um corredor que dava aces-
so a redação, onde a gente ficava. Normalmente as vi-
sitas vinham pela porta da frente e quando o Gazi não
estava, eles vinham na minha sala e diziam assim:
— Por favor o Gazi?
— A sala dele é aqui do lado.

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Ana C lara Romanelli e C inthia Viana

— A senhora sabe que horas ele volta?


— Não, não sei que horas ele volta.
— Você pode anotar um recado?
— Você não quer falar com a secretária dele?
— Ah, não é você?
Foram inúmeras vezes. Eles achavam que se ti-
nha uma mulher do lado era a secretária. Era tão
frequente que eu já me divertia “lá vem outro achan-
do que eu sou secretária”. Fora assim “ai, Claudinha,
por que você não liga pra copa e pede um café?”. Por
que não fazem “ah, Joãozinho, por que você não liga
pra copa e pede um café?”. Sempre que uma mulher
diz que está passando mal, já perguntam se está grá-
vida. Por ser nordestina também, já ouvi “como co-
locaram uma nordestina pra cuidar desse jornal?”,
disseram na minha cara lá no Paraná. O preconceito
dos homens é mais velado, sempre exaltam o fato
de eu gostar de futebol apenas porque sou mulher.
Pra que esse comentário? É um estereótipo. Uma vez
fui fazer uma reportagem numa campanha política,
cheguei no aeroporto e estava cobrindo um evento,
por acaso, eu estava indo ao lado do candidato e veio
uma pessoa com flores, me deu as flores como se eu
fosse a primeira dama. A jornalista eu não podia ser,
eu não era uma mulher que estava trabalhando, eu
estava ali acompanhando um homem.

Você acha que esse cenário mudou desde


o início da sua carreira?

Melhorou bastante. Tanto melhorou que eu


assumi funções que nunca uma mulher tinha as-
sumido na imprensa, tanto no Paraná quanto aqui
em São Paulo. Você tem mais confiança de que a

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S omos as Bruxas que não puderam queimar

mulher pode exercer de igual pra igual. Isso não


significa que mudou a visão estereotipada, de
que se está do lado é a secretária, de que numa
reunião, por exemplo, o homem pode falar mais
alto que uma mulher e normalmente as mulheres
são mais educadas. Em reuniões eu nunca entrei
em disputa de quem fala mais alto, não é minha
praia, não é meu estilo e era muito difícil às vezes
falar porque quando você começa eles se acham
no direito de interromper. Às vezes eu tinha que
dizer “pare, que eu ouvi você até o fim” e tinha
que colocar a mão ainda. Você tem o acesso, mas
a visão de que você é igual ainda não existe. Eles
nem pensam que você não é igual, não é um a coi-
sa racional, é intrínseca. Sempre me perguntam
inúmeras vezes se meu marido não se incomoda
por eu trabalhar demais, ganhar mais do que ele
e exercer uma função de direção. Essa pergunta é
preconceituosa, ela parte do princípio de que isso
não é uma situação aceitável.

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Eu nunca tive filho, mas olho as mulheres parindo
e vejo que mulher é um bicho muito forte. Imagina
se todas as mulheres começam a descobrir essa
força e acreditar nelas mesmas (...)”

Parteira feminista e bruxa política.

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Ellen Flamboyant

O
que começou primeiro: o feminismo,
se identificar como bruxa ou o desejo
por ser parteira?

Eu não sei dizer o que começou primeiro.


Foi tudo meio junto nessa história de me consi-
derar feminista. Gosto de usar a questão da bru-
xaria sendo feminista, porque eu não me identifi-
co como uma bruxa no sentido clássico da Wicca
ou uma questão religiosa. É por um ideal político
mesmo, por todo o significado da história das bru-
xas, da perseguição. Eu me considero uma bruxa
política. E junto com isso veio a parteria, mas eu
já estudava a autonomia da saúde. A partir de um
momento passei a me interessar por isso, buscar,
conhecer mais sobre fitoterapia. Passei a fazer
meus próprios absorventes de pano, isso foi muito
importante, comecei novinha, tinha uns 16 anos,
hoje eu tenho 29. Isso tudo porque eu não queria
gerar lixo. Esse universo despontou um braço de
várias coisas dessas mulheres que buscam resga-
tar o autoconhecimento do próprio corpo. Eu não
me aproximei muito da história do sagrado femi-
nino porque eu acho muito biologizante, um culto

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ao corpo que eu não me interesso. Mas a parte que


eu gosto dialoga bastante nessa história de costu-
rar absorvente, fitoterapia, agricultura orgânica e
permacultura. Eu faço parte de um espaço que é
anarquista, lá em Santo André, a Casa da Lagarti-
xa Preta. Lá foi um lugar onde encontrei muitas
pessoas, uma casa parecida com a Casa de Lua,
um espaço que agrega um monte de coisas. E nele
eu tive a oportunidade de desenvolver o conheci-
mento com as plantas. Mas isso também aprendi
com a minha mãe, que é da roça, sempre tratou a
gente com planta medicinal e procurou essa via.
Eu descobri o curso de Obstetrícia na USP e fui
fazer. Não tinha vontade de fazer faculdade an-
tes, mas conheci o curso e foi muito bom, já es-
tou no último ano e gostando muito. As coisas
foram se conectando. Isso de bruxa é verdade, a
perseguição não começou na Inquisição, nunca
acabou e ainda está aí velada. Nós obstetrizes,
gostamos de ser chamadas de parteiras, apesar
de não acharmos que estamos tomando o lugar
das parteiras tradicionais. Apoiamos e queremos
que elas continuem existindo, mas as obstetrizes
são muito perseguidas. A corporação médica nos
identifica como uma ameaça. O parto humanizado
é ameaçador porque falarmos de empoderamen-
to feminino. Eu levo muito a questão da bruxaria
com as minhas colegas, eu falo que somos bru-
xas e elas dão risada. Mas nós estamos falando
para as mulheres se empoderarem, cuidarem do
seu corpo, cuidarem da alimentação, se perceber
nada mais é do que o que as bruxas faziam. Não
tem como não relacionar com feminismo, por-
que é isso que ele faz. Na década de 1960, com a

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questão dos direitos sexuais reprodutivos, eram


as feministas que traziam o discurso do parto hu-
manizado, hoje temos um movimento de humani-
zação de parto que se afastou do feminismo, mas
na verdade quem começou com esse papo foram
as feministas. Então não tem como dissociar isso,
para mim é tudo muito junto.

O seu curso discute bastante as ques-


tões de feminismo? (Ela cursa Obstetrícia
na Universidade de São Paulo, um curso ex-
tinto nos anos 1970 e recriado em 2005 pela
USP).

Sim, a gente tem disciplinas obrigatórias so-


bre gênero. Tem uma disciplina que chama Gêne-
ro, sexualidade e direitos humanos e estudamos
Antropologia. Quando a gente vai para o estágio se
depara com violência doméstica o tempo todo. São
mulheres que vão para o pré-natal e não querem
estar grávidas, elas choram, pedem pra abortar e o
que podemos fazer é dar instruções como redução
de danos. Isso tudo faz cair a ficha da questão da
mulher na sociedade.

O que é o parto humanizado?

Eu costumo brincar que parto humanizado é


um termo que não devia existir, que todos os par-
tos deveriam ser humanizados. Mas na teoria é o
parto em que a mulher seja protagonista. Então
falamos que não fazemos parto, apenas acompa-
nhamos, porque quem faz é a mulher. De fato é
um processo fisiológico e a parteira está ali para

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S omos as Bruxas que não puderam queimar

auxiliar se precisar dar um suporte. E nisso tudo


tem recursos não-farmacológicos para alívio da
dor, exercícios para ajudá-la no trabalho de par-
to, no pré-natal, etc. Para ser mais respeitoso com
corpo dela. Quanto mais intervenção, mais coisas
terão de ser feitas. É um processo que o corpo vai
dar conta, a parteira está ali para observar algu-
ma intercorrência. Em 75%, 80% dos casos vai
acontecer tranquilamente. O parto humanizado é
manter a mulher mais livre e informada possível
sobre aquele acontecimento e promover um am-
biente em que ela possa passar por esse período.
Poder comer, beber, se movimentar, ter um acom-
panhante, escolher que posição ela quer ficar, ba-
sicamente, é respeitar a mulher.

Já ouvi dizer que a melhor posição para


o parto é a de cócoras. É possível?

É super possível. A melhor posição é


questionável porque vai depender da mulher.
Essa posição que você está descrevendo, que é
de cócoras, é super legal. Recomendamos que
preferencialmente ela fique numa posição vertical
porque tem o apoio da gravidade para o bebê descer.
E a mulher não está pressionando os ossos de trás,
assim eles se movem. As gestantes têm uma fibra
muito maleável, o corpo está muito mole, então o
corpo se abre para aquela criança nascer. Se ela
pressiona o cóccix, seja deitada ou sentada, vai
dificultar um pouco mais. Existe um banquinho de
parto, que é como se a mulher se posicionasse de
cócoras, mas fica sentada. Ele possui um buraco,
seja de quatro apoios, de lado ou semi-sentada.

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Ana C lara Romanelli e C inthia Viana

Existem contraindicações para o parto


humanizado?

Não, de modo algum. Se está de pézinho, com


a bundinha ou com os pézinhos para baixo pode
nascer, mas se foi detectado um bebê transverso
que é quando ele está de compridinho (posição
horizontal), não vai. A necessidade da cesárea, de
uma intervenção, é se houver um risco. Isso é uma
indicação verdadeira de cesárea. Infelizmente,
hoje existem indicações absurdas. A mulher tem
direito de entrar em trabalho de parto, de deam-
bular 1 se ela quiser, de ter um acompanhante e de
ser bem tratada. Ela só não pode comer porque vai
tomar anestesia. Tudo isso pode caracterizar um
nascimento humanizado.

Quem são essas pessoas que procuram


o parto humanizado? São feministas?

Elas procuram, mas existem as feministas que


são contra o parto sem nenhum tipo de analgesia.
Elas falam que a mulher não precisa sentir dor
e interpretam isso como uma punição para a
gestante. Só que a gente interpreta essa “dor” não
como uma dor, mas como uma sensação. Se for
carregada a sensação de sofrimento, de punição,
de culpa, de que é difícil, de que não é capaz, aí
sim é um sofrimento. Nós tentamos trazer para a
mulher que essa dor é um processo do corpo que
vai passar, não é pra sempre. E principalmente,

1 “Passear; vaguear.” DICIONÁRIO AURÉLIO da Língua Portuguesa. 2


Ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.

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S omos as Bruxas que não puderam queimar

que não é punição. Existem feministas que criticam


esse modo de conduzir o trabalho de parto, mas eu
acho que a maioria das pessoas que busca esse tipo
de parto são pessoas de classe média. Embora isso
esteja se popularizando aqui em São Paulo. Tem
serviços gratuitos do SUS muito bons que atendem
dessa maneira, tem a Casa de Parto de Sapopemba,
tem uma no Jardim Monte Azul, na Zona Sul e a
Casa Angela que atende as mulheres da favela e da
periferia. Em geral são mulheres que já tem uma
perspectiva de saúde diferente, não gostam muito
de medicina pesada, carregada, intervencionista e
estão informadas.

Qual o custo para fazer um parto huma-


nizado?

Muita gente fala sobre parto domiciliar. Isso


varia muito, tem parteira que cobra de R$2500
até R$20 mil por uma equipe que vai te atender
em casa. No SUS tem lugares bem legais com um
antendimento bacana e lugares que não, que sa-
bemos que são complicados. Tem que procurar. A
mulher tem que estar muito empoderada para che-
gar e defender o seu direito.

Elas têm um acompanhamento psicoló-


gico durante a gravidez?

Isso seria o pré-natal. E no Brasil isso é muito


mal feito, tanto no sistema público quanto no sis-
tema privado, que é ainda pior porque o Ministé-
rio da Saúde fica muito em cima. Por isso no SUS
o pré-natal é melhorzinho. No nosso, a gente faz

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esse trabalho de conversar sobre o parto, o que vai


acontecer, para não chegar lá e ser uma surpresa.
Em geral não acontece isso, ninguém explica pra
mulher o procedimento, que acontecem tais coi-
sas. Elas chegam sem saber o que é placenta e bol-
sa d’água, não tem esse preparo, que não é neces-
sariamente psicológico. É feito pelo profissional
de saúde que está fazendo o pré-natal. A ideia é de
que a mulher esteja empoderada. O que significa
isso? Que ela esteja ciente do seu corpo, do que ele
é capaz e que muito provavelmente vai alcançar,
que é parir. Eu nunca tive filho, mas olho as mu-
lheres parindo e vejo que mulher é um bicho mui-
to forte. Imagina se todas as mulheres começam
a descobrir essa força e acreditar nelas mesmas,
aqui que associamos a questão do feminismo, por-
que elas viram algo impressionante quando estão
conectadas, quando são permitidas a isso.

Qual é a conexão que você faz entre par-


to, feminismo e até mesmo bruxaria?

É um momento de transcendência, em que


a mulher está se transformando em mãe. As que
não são mães ainda estão passando por um perío-
do de transição de filha pra mãe, de ser racional,
humano pra deixar que a sua animalidade venha
à tona. Ela está permitindo que o corpo dela faça
o que ele tem de fazer. Ela não está controlando,
rígida, está deixando o corpo dela fazer o que tem
que ser feito. Eu associo isso a uma questão mais
“animal” porque o racional tende a ficar ofuscado
nessa situação. Com a bruxaria eu acho que tem a
ver com confiar no próprio corpo, nessa conexão.

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É um papo meio hippie, mas temos que confiar


na natureza porque somos seres humanos. Queira
você sim, queira você não, você é um animal e faz
parte da natureza.

Existem homens fazendo partos?

Sim, existe o parteiro que é chamado de obs-


teriz. Nunca vi um parteiro atuando, a formação é
a mesma, mas com certeza a prática deles não vai
ser igual à de uma mulher. Não sei até que ponto
ele consegue desenvolver uma empatia, mas eles
estão trabalhando.

Existem rituais religiosos durante o


parto?

Sim, eu nunca presenciei, mas no tipo de


atendimento que a gente faz a mulher tem total
liberdade pra fazer o que ela quiser. Seja ela da
Umbanda, da Wicca ou evangélica ela pode fazer o
que quiser, botar lá o hino dela, dançar o batuque
dela.

O que você indica para uma mulher que


quer fazer parto humanizado? Onde ela vai
primeiro e como ela se informa?

É legal participar de grupos de gestantes,


principalmente para as mulheres que nunca tive-
ram filhos. Lá ela encontrará pessoas em situação
parecida e compartilhará suas dúvidas e medos.
Existem grupos de gestantes em São Paulo inteiro,
no ABC e no interior. Geralmente são organizados

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por profissionais da saúde, em postos de saúde,


algumas igrejas também fazem e alguns grupos fe-
ministas. Eu acho bem legal participar disso por-
que a pessoa tem esse contato. Na internet tem
uma infinidade de coisas, mas tem muita besteira
também. A pessoa não deve acatar somente o que
o seu médico fala. Eles têm uma formação escolar
muito complicada, saem feito maquininhas pron-
tas pra uma linha de produção. Infelizmente, a
maioria deles é assim. Eles induzem às mulheres
no caminho que eles querem, não permitem que
ela se empodere porque a relação médico-paciente
nessa relação de poder é muito complicada. Então
precisa ter um controle, um biopoder. Eu costumo
indicar que se a mulher está fazendo um pré-natal
com um médico do convênio, também faça com um
do SUS e melhor ainda se for em um grupo de ges-
tantes.

Como funcionavam os partos antiga-


mente e como eles são feitos hoje em dia?

A obstetrícia é uma ciência que foi uma das


últimas a ser invadida pelo poder médico e pelos
homens. No Brasil, quando veio a Família Real, foi
construída uma escola de medicina e de parteiras.
Lá apenas podiam entrar mulheres jovens da
classe alta, de imediato as parteiras tradicionais
foram excluídas, não podiam assistir mais partos.
Apenas as que começaram a ser formadas na escola
de enfermagem. Quando começaram a ter essas
parteiras diplomadas houve muita influência da
medicina e a partir daí começou a ficar esquisito, a
ter uma visão mais biomédica. As parteiras foram

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criminalizadas porque são consideradas sujas,


que não sabem mexer com medicamentos. Quando
a ciência descobriu as bactérias, as parteiras
ainda estavam com suas práticas tradicionais
com plantas e não tinham a preocupação de
lavar as mãos e o instrumento que vai cortar o
cordão do bebê. Esse tipo de coisa realmente é um
problema, mas elas tinham seu jeito de resolver.
Não são, de jeito nenhum, totais ignorantes que
não sabem o que fazem, senão a gente não estaria
aqui hoje, pois nossas avós nasceram assim. Elas
foram excluídas para a medicina convencional
conseguir abocanhar essa parte da obstetrícia,
que depois de tomada das parteiras, não teve
um desenvolvimento de pesquisa. Em questão
científica mesmo. Então temos práticas hoje, em
2015, que são completamente contraindicadas,
desenvolvidas há cem anos e continuam fazendo
aqui no Brasil. Por exemplo, episiotomia, um corte
na vagina pra facilitar a saída da criança, isso foi
inventado na década de 1940 ou um pouco antes
e hoje se sabe que é uma prática completamente
desnecessária. E ainda é ensinada nas aulas de
enfermagem e de medicina aqui no Brasil. Em
outros países é diferente. É uma ciência que tem
pouco interesse de pesquisa, muito carente dessa
parte de evidências científicas no sentido de ter
mais produção. A gente se apega às que tem.
Existem coisas maravilhosas fora do Brasil, aqui
ainda é carente, mas lá fora não. A diferença é
que o parto hoje é totalmente instrumentalizado,
visto como uma doença. A gestação é vista como
tal e o profissional médico que vai fazer o parto
é um grande herói, que vai salvar aquela criança

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Ana C lara Romanelli e C inthia Viana

da mãe incapaz. O corpo da mulher é defeituoso


na visão biomédica. As parteiras tem uma visão
de que quem faz o parto é a mulher e de que não
é um problema, que a gestação não é uma doença
e que ela é capaz de botar a criança para fora.
Acreditar na mulher é um fator importante, por
isso eu relaciono com o feminismo. Eu acredito
nas mulheres, que elas são fortes, que elas
são capazes. Falar isso para uma mulher em
trabalho de parto, e principalmente, para uma
mulher da periferia que apanha do marido e que
provavelmente o bebê foi resultado de um estupro
dele, olhar nos olhos dela e falar “você é forte,
você é capaz, você consegue”, ela olha de volta e
pari o bebê.

Qual a diferença entre alguém que fez


obstetrícia e uma parteira, que teoricamen-
te não estudou aquilo?

Para diferenciar as parteiras diplomadas,


que é o que somos, e as parteiras tradicionais é
que geralmente elas aprenderam a cuidar de mu-
lheres com suas próprias mães, avós, foram vendo
aquilo desde criança e aprendendo durante sua
vida inteira. Muitas têm uma questão religiosa,
elas dizem que ouviram um chamado divino para
ser parteira, então tem uma conexão religiosa im-
portante. Ou simplesmente por tradição. Meu pai,
que nasceu na roça com parteira, conta que quan-
do ele e os nove irmãos nasceram, tinham que ir
na fazenda dos fulanos, chamar a parteira, seja a
avó, a mãe, quem estivesse lá, porque sabiam que
naquela família tinha uma parteira que atendia.

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O que é a cesárea, como ela foi criada e


o que ela virou hoje em dia?

A cesárea é uma cirurgia, de terceiro grau,


de alto risco, bem intervencionista que exige uma
anestesia importante para o corpo. Ela mexe mui-
to com o organismo inteiro, pois corta sete cama-
das, um corte no útero, para extrair a criança. É
uma cirurgia muito bem-vinda, muito boa, que
salva vidas todos os dias no mundo inteiro, mas
que tem sido usada de forma banal. As mulheres,
aqui no Brasil e nos países pobres em geral, são
muito maltratadas durante o parto. Dizem para
elas que na hora de fazer não doeu, não reclamou.
É uma punição, elas têm medo do parto, aque-
la história da Bíblia “parirás com dor, sangrarás
para o resto da vida”. Desde criança ouvimos que
a dor do parto é a pior dor do mundo, que é ruim,
que sofre, dói e deixa a buceta arreganhada. En-
tão não aprendemos que parto é vida, que é em-
poderador, que é legal. E a corporação médica se
aproveita desse contexto cultural frágil do parto
para dizer “olha, tem uma alternativa, a cesárea”.
Hoje, só em São Paulo a gente tem 90% de cesárea
nos hospitais. Será que 90% de mulheres precisam
de uma cirurgia que ponha ela em risco de vida?
Será que todas essas mulheres estão doentes, que
elas não podem parir? Então ela tem sido usada
como escape de uma coisa que foi culturalmente
criada, que é esse atendimento de parto que em
muitos lugares é péssimo. Ainda bem que existe a
cesárea, mas ela tem sido usada dessa forma banal
e irresponsável. Porque para mulher ter um cho-
que, morrer de hemorragia, perder o útero, o bebê

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ficar mal, muitas coisas ruins podem acontecer e


ninguém fala. A questão da cesárea ser livre de dor
é uma grande mentira, ela vai ter muita dor pós-
-parto, isso se não tiver uma infecção. Tem que
medir riscos, é irresponsável sair fazendo cesárea
marcada.

Até que ponto a gestante tem voz no parto


com o médico do hospital?

Nenhum. Eles dizem que sabem, porque


estudaram oito anos e a pessoa não tem como ensinar
para ele. Existe uma coisa chamada “plano de parto”,
o pessoal do movimento de parto que criou, é um tipo
de diário em que a mulher pode colocar que gostaria
que o marido estivesse, ou a mãe, irmã, amiga, enfim,
seja quem for. Fala se gostaria de não ser cortada, de
não ter soro, então ela escreve tudo o que quer e mostra
para o médico. Esse recurso é o que as mulheres têm
usado para comunicar ao médico o que ela deseja ou
não. Só que temos que voltar um pouco na medicina
geral que a partir do momento que você entra numa
instituição médica, o Foucault explica bem, você não é
mais dono do seu corpo. Você passa a pertencer àquela
instituição e ela vai fazer o que ela quiser de você. Então
se a mulher bater o pé, vai sofrer as consequências.
Agora, se ela vai encontrar um profissional que está
interessado em saúde, em cuidado, vai se dar bem, ser
ouvida, discutir. O profissional vai ouvir e dizer “olha,
mas isso aqui talvez precise. O que você acha?” ele vai
debater com ela. Quando a gente vai ao dentista tirar
um dente, pode levá-lo embora, geralmente a mulher
que tem um parto e quer levar a placenta não pode. É
o corpo dela, ela pode sim levar o que ela quiser dela

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embora. Geralmente, o médico se faz de amigo, aquele


sedutor, amante latino e vai enrolando como pode.
Vimos histórias de cesáreas agendadas que a mulher
fica em depressão pós-parto porque caiu na cilada, mas
para o médico ele está fazendo o melhor. Na cabeça dele,
ele está sendo extraordinário, é uma questão cultural.

O parto termina assim que a criança nasce


ou existe algum trabalho que a parteira pode fa-
zer após o nascimento?

Depois que o bebê sai, vem a placenta, que faz a


conexão entre mãe e bebê. Depois que ela sai, tecnica-
mente é o quarto período do parto. A mulher ainda fica
com a gente em observação por algumas horas, para ver
como vai ser a estabilização do corpo, porque ele sai de
um estado hemodinâmico muito louco pra outro com-
pletamente diferente em poucos minutos. Podem ter al-
gumas complicações que precisam ser observadas. De-
pois, tem o puerpério que dura 40 dias mais ou menos
e aí a mulher é chamada de puérpera. È recomendado
que a gente a acompanhe durante esse puerpério pra
ver como ela está, se ela está bem, se ela precisa de algu-
ma coisa. Então o parto termina quando a placenta sai
e esse período de quatro horas ela fica em observação.

O que é a depressão pós-parto?

Existem duas coisas, tem a baby blues e tem a de-


pressão pós-parto. A maioria das mulheres tem baby
blues, que é um processo de transição desse novo ser
que ela se transformou. Muitas mulheres não se trans-
formam em mães depois que ganham o bebê. Existem
casos de infanticídio, ela mata o bebê, porque não o re-

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conheceu como seu filho. Têm mulheres que não que-


rem amamentar, que são extremamente violentas e que
queriam a gestação. Vira um processo psicossomático
muito exacerbado. Existe um fator hormonal importan-
te, mas também tem uma questão psicossocial que ex-
plica muita coisa. Tanto o desejo daquela gestação como
a relação com o pai da criança, são muitas coisas en-
volvidas. A depressão pós-parto é muito real e é muito
negligenciada. Chamam de frescura, assim como qual-
quer coisa que a mulher reclama. “Ai, cólica é frescura,
TPM é frescura, depressão pós-parto é frescura, matou
a criança é assassina”. Mas por que acontece isso? Ela
não teve ajuda, é uma carga de novidades, principal-
mente paras primigestas, que são as mães que tem bebê
pela primeira vez. A mulher não dorme porque tem que
dar mamar, o bebê também não, ele acabou de chegar
no mundo e está aprendendo a lidar com ele mesmo
fora da barriga. É muita novidade de uma vez e a mãe
tem que dar conta dessa criança e muitas vezes dos ou-
tros filhos, da casa, do marido, de voltar a trabalhar e de
amamentar. Além disso tudo, tem o peito que machuca,
é muita sobrecarga na mulher. Quando a gente fala pra
não visitar, esperar pelo menos um mês, espera mes-
mo. Ela pode não estar com cabeça, ficou cinco dias sem
dormir, é muita coisa pra assimilar.

Quais são as formas de violência obstétrica?

Eu diria que a violência obstétrica é a violên-


cia contra a mulher. Pode acontecer durante o pré-
-natal, parto, pós-parto ou até mesmo na recusa
de um atendimento de depressão pós-parto. Tudo
o que desconsiderar a mulher como sujeito do seu
próprio corpo, privá-la de se movimentar, comer,

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ir ao banheiro, estar com alguém, saber o que está


acontecendo no corpo dela e ser informada do re-
médio que estão colocando na sua veia eu caracte-
rizo como violência obstétrica, pois apenas chegar
e colocar o remédio é violento. É também obrigar a
mulher a fazer um procedimento que ela não quer,
existe a discussão se episiotomia é violência obs-
tétrica, se ela não concordar com aquilo, se não é
consentido, é. Kristeller, que é uma pressão que
alguns médicos fazem, em que a mulher está dei-
tada e pressionam o braço para o bebê sair mais
rápido, considero extremamente violento, para
mim é como bater na mulher, violência física. São
todas as intervenções que não são consentidas,
violências como as verbais do tipo “na hora de fa-
zer não reclamou”, não tratar a pessoa pelo nome,
tratar por “mãezinha”, ela tem um nome, ela tem
que ser chamada por ele.

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Porque uma coisa muito louca com assédio, com
violência sexual, é que as vítimas ficam com tanta
vergonha que acabam não falando, como se elas
tivessem feito algo errado.”

Editora da Superinteressante e colaboradora na campanha Chega de Fiu Fiu.

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Karin Hueck

V
ocê acha que tem espaço para o feminis-
mo na mídia tradicional? Você consegue
aplicar isso no seu dia a dia?

São duas questões bem diferentes. Acho que


as pessoas ainda não têm muita noção do que é o
feminismo, muitas vezes “feminismo” é um palavrão
associado a uma coisa ruim. Pensam que é o oposto do
machismo como se fosse comparado. Sendo que não, é a
luta pela igualdade e direitos das mulheres. Quando um
jornal cobre algo falando que é feminista, geralmente, é
levando pro lado ruim. Felizmente, nos últimos tempos,
muitas mulheres, celebridades e pessoas envolvidas
no mundo da música, estão começando a se identificar
como feministas e colocando esse assunto em pauta. Aí
os jornais e TVs vão atrás e acabam defendendo uma
agenda feminista sem saber o que é e sem se identificar
como tal. E tudo bem, desde que as coisas estejam
acontecendo. Eu sou editora da Superinteressante e lá
os editores têm bastante autonomia. Como eu estou
como parte da imprensa, parte da mídia, tenho uma
agenda sim e tento incluir pautas na revista e no site
que são declaradamente feministas o tempo inteiro.
As pessoas fazem a diferença, repórteres, jornalistas,

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editoras, mesmo os homens, com alguma consciência


que se identificam com a causa, acabam fazendo isso
por conta própria. Tem espaço desde que as pessoas
que estejam produzindo a notícia se identifiquem com
ela, por isso é tão importante.

Como foi a experiência de fazer a matéria


sobre estupro na Superinteressante?

Essa é uma pauta que eu tinha desde que voltei


a trabalhar lá, no fim do ano passado. Falei que de-
veríamos abordar sobre cultura do estupro. Toda mu-
lher sabe o que é assédio sexual, já passou por isso,
em maior ou menor grau. Está tendo um debate im-
portante nos Estados Unidos, que é sobre estupro
universitário. As pessoas estão começando a discutir
consentimento, o que pode e o que não pode numa fes-
ta, o que pode e o que não pode quando as pessoas
estão bêbadas, enfim. Discuti essa pauta e sugeri pela
primeira vez em setembro do ano passado, foram seis
meses falando que tínhamos que fazer até que um dia
o pessoal concordou e deu super certo. Foi uma das
maiores divulgações da revista no ano. Fez um barulho
imenso na redes sociais e pegou super bem. A revista
voltou a ser associada a algo legal, a algo moderno. A
maior parte das pessoas na redação ainda é homem,
por isso que teve essa resistência.

Qual o seu envolvimento com a campanha


Chega de Fiu Fiu?

A Ju (Juliana de Faria) criou o Think Olga, ela é


uma amiga minha, e assim que ela lançou essa cam-
panha sobre assédio de rua, percebi que era uma das

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Ana C lara Romanelli e C inthia Viana

grandes questões do nosso tempo e ninguém falava.


Eu já achava um absurdo ser considerado normal
você andar na rua e estranhos começarem a falar
sobre o seu corpo. Quando a campanha Chega de
Fiu Fiu foi lançada eu pensei “bom eu sou jorna-
lista, sei o que o jornalista gosta de noticiar e sei
como chamar atenção, vamos dar números para
essa causa”. Então eu falei para ela que faria uma
pesquisa online para mulheres responderem sobre
assédio de rua e ela se animou muito. Fiz essa pes-
quisa que ficou aberta uma semana e tiveram quase
9 mil respostas de mulheres indignadas contando
suas histórias. Elas responderam perguntas sim-
ples do tipo: “você já foi assediada? Já deixou de fa-
zer alguma coisa com medo do assédio?”. E a gente
divulgou o resultado e começou a “bombar” muito,
saiu em todos os lugares, em jornal, em revistas,
escrevi artigo e ajudei um milhão de entrevistas.
Isso tudo foi em agosto de 2013, bem quando o as-
sunto entrou em pauta.

O que você esperava quando elaborou


essa pesquisa para a campanha? Você acha-
va que tantas mulheres em tão pouco tempo
responderiam?

Esperava isso mesmo, eu achava que sim. Cla-


ro que tem mulher que fala que gosta de ouvir can-
tada, mas eu tenho certeza que a maior parte, na
maioria das vezes não gosta. Pelo menos não do
jeito que ela é feita, não do jeito que os homens
se relacionam com as mulheres no espaço público.
E acho que era uma coisa que todo mundo estava
pensando e aproveitou para responder.

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S omos as Bruxas que não puderam queimar

Quais critérios você utilizou para a pes-


quisa?

Eu usei critérios com os quais eu me identificasse.


Porque eu lembro que já deixei de fazer coisas com medo
de passar na frente de lugar que sabia que ia ter um mon-
te de homem. Já troquei de roupa como se isso tivesse
qualquer coisa a ver com algo que eu fosse ouvir. Então
passei a pensar em perguntas que eu achava que todo
mundo se identificaria. Eu não sou pesquisadora, não
sou antropóloga, até estudei Ciências Sociais, mas eu não
me formei. Eu sei que os dados não tem validade cientí-
fica. Mas como ressoou tão bem com as mulheres acho
que tem uma validade empírica que vai se comprovando.
Tinha uma parte da pesquisa que as mulheres con-
tavam relatos.
Isso, eu pedi para elas contares histórias e para ser
o mais detalhado possível. Porque uma coisa muito louca
com assédio, com violência sexual, é que as vítimas ficam
com tanta vergonha que acabam não falando, como se
elas tivessem feito algo errado. Então as coisas que você
ouve na rua são tão íntimas e agressivas que você não re-
pete para ninguém. Na pesquisa, pedi para descreverem
com as palavras que elas ouviram, onde isso aconteceu,
como elas se sentiram e a cara que o homem fez. Tudo
isso para as pessoas entenderem que é real e acontece
dessa forma.

Teve alguma história que te marcou de algu-


ma maneira?

São tantas. Essa campanha que a Ju fez agora


do primeiro assédio (no Think Olga), meninas de
9, 10, 11 anos contando histórias horríveis.

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Ana C lara Romanelli e C inthia Viana

Teve alguma menina muito nova de 10,


11 anos que respondeu a pesquisa?

Muitas, acho que infelizmente é a regra e


não a exceção. Você começa a ser assediada com
10 anos, 11 anos. O que aconteceu semana passa-
da no MasterChef Junior 2 mostra que é natural o
homem achar que uma criança de 12 anos foi fei-
ta pro prazer dele, que pode ser considerada uma
parceira sexual. Criança não tem como dar con-
sentimento, então não pode. Mas muitos, muitos
relatos foram dessa faixa etária.

Sua visão sobre assédio sempre foi des-


sa maneira ou mudou ao longo da sua vida?

Eu lembro de quando eu era mais nova,


achava que era um fato da vida. A gente cresce,
acorda, escova os dentes, sai na rua e vai ouvir
merda. Achava que seria assim para sempre e
não tinha o que fazer. Isso que é muito louco do
feminismo, das questões de gênero. Você precisa
parar para pensar, precisa ou que alguém te fale
ou pensar no que deveria ser o mundo, o que é
certo e errado. Claro que eu já sabia que me in-
comodava, já sabia que me deixava triste, que era
uma coisa horrorosa, mas daí juntei A com B e vi
que não é normal. Não pode ser normal e nunca
deveria ser normal. Foi aí que eu resolvi fazer a
pesquisa.

2 Valentina Schulz, de 12 anos, foi alvo de comentários pedófilos pelo


Twitter na estreia do programa de culinária para crianças da Rede Ban-
deirantes em outubro de 2015.

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S omos as Bruxas que não puderam queimar

Você acha que alguma coisa mudou de-


pois da sua pesquisa, tanto nas mulheres
que responderam quanto nas pessoas que
viram e com os homens também?

Acho que sim. A percepção geral de que can-


tada pode não ser legal e de que pode estar agre-
dindo mulheres, isso com certeza surgiu depois da
campanha da Ju. É uma coisa que mudou nos últi-
mos dois anos. Isso não se falava e agora eu ouço
as pessoas de mais diferentes tipos repetindo isso.
Então eu tenho certeza que teve algum efeito sim.

Como os homens reagiram à campanha


geral e a pesquisa?

Como tudo o que liga ao feminismo, quando


a gente começa a falar do que incomoda, do que
a gente acha que tem que ser diferente tem uma
resistência muito grande. A questão por trás é a
perda de privilégios, para um homem o mundo é
muito mais fácil. Ele tem uma série de compor-
tamentos que acha que são direitos adquiridos
simplesmente pelo fato de ser homem. Entre eles,
assediar mulher, fazer piada, enfim, todas essas
coisas que você sabe. Então quando a gente come-
çou a falar “olha, isso não é legal, isso machuca,
isso tem que ser combatido e vocês são bostões por
não perceberem isso, vocês não são legais”, mui-
ta gente chiou. A mídia faz tudo errado. Começa
fazendo artigo ouvindo os ‘dois lados’. Como se a
luta das mulheres é não ser assediada e a luta dos
homens é o direito de assediar. Não existe esse pa-
ralelismo, assediar uma pessoa não é um direito.

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Ana C lara Romanelli e C inthia Viana

Eu lembro também de um artigo, o cara escreveu


no Globo falando que ele sabia que as mulheres
gostavam sim de assédio na rua. Quem é esse ho-
mem pra dizer o que a gente gosta ou não? Então
teve muita reação esquisitíssima e acho que vai
continuar tendo.

Você acha que dá para falar de assédio


sem falar de feminismo?

Acho que não. Tudo o que a gente tenta fazer


para que os gêneros sejam tratados como iguais,
tenham as mesmas oportunidades, as mesmas
chances de bem-estar, de felicidade, de carreira e
de todo o resto, tudo isso passa pelo feminismo.
Acho que as pessoas muitas vezes não ligam uma
coisa a outra, acham que a mulher tem que ganhar
o mesmo que homem por uma questão de justiça,
mas a questão por trás é o feminismo. Então acho
que não, é impossível você discutir essas causas
sem passar pelo feminismo.

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Coloco as minhas mãos sobre as suas para que
possamos fazer juntas aquilo que eu não sei fazer
sozinha.”

Fundadora da ONG feminista Casa de Lua com participação de Jarid Arraes,


escritora e colaboradora na ONG.

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Vanessa Rodrigues

O
que é a Casa de Lua e como ela funcio-
na?

A Casa de Lua é uma ONG feminista. A


gente se constituiu como ONG há um ano, mas
já existimos como coletivo há dois. Surgimos
primeiro como um grupo virtual, mas já com a
intenção de se tornar um grupo real. No começo
éramos de oito, depois foi aumentando e no final
tínhamos umas 20 mulheres que estavam em
momentos diferentes de vida. Mas a maioria tinha
uma realidade de trabalhar em casa, de fazer home
office, mas sempre questionando essa dinâmica,
que pode ser muito penosa para as mulheres
porque tudo acumula ao mesmo tempo, estávamos
vivendo esse nó. O home office é você sair de casa,
ter um convívio criativo com outras pessoas e não
precisar sacrificar coisas como ir ao cinema no
meio da tarde, poder estar com os filhos às 16h,
olhar a casa, enfim, essas coisas do cotidiano.
Então surgiu a ideia de fazer um coworking de
mulheres para mulheres e com mulheres, que seria
para a mulher que tem filhos, então poderia levá-
los para o trabalho, que teria um espaço físico pra

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S omos as Bruxas que não puderam queimar

poder acolher a criança também. Nossa primeira


reunião presencial foi no sítio da Lu, onde ficamos
o fim de semana inteiro. A Jarid entrou agora, mas
tinha um grupo de 20 que se conhecia virtualmente
e passou a se conhecer pessoalmente. A ideia era
fazer um plano estratégico pra constituir esse
grupo que ainda não tinha uma personalidade,
era apenas um coletivo de mulheres querendo
fazer alguma coisa mais acolhedora para outras
mulheres. Começamos com uma temperatura bem
alta de querer mudar e pensar o mundo numa
lógica mais feminina dentro do estereótipo do que
se entende como feminino. A desconstrução do
feminino seria uma segunda etapa, porque a ideia
era fazer um centro de estudos pra entendermos
o quanto esse feminino é essencialista, o quanto
é construção cultural, enfim, o quanto ele pode
ser realmente uma energia específica da mulher.
O processo foi ficando muito duro, fomos muito
fundo em algumas coisas e quando acabou a reunião
sentimos necessidade de se afastar um pouco
daquilo. Teve muita energia, foi um fim de semana
de imersão, mas fomos acomodando algumas coisas
e a proposta foi ficando gigantesca. A conclusão
que chegamos, era de que precisávamos de um
espaço físico. Era o plano zero, e começou a busca
pela casa. Nesse processo estiveram envolvidas
a Lu, a Bianca Santana, uma das fundadoras da
casa e a Marta. As três começaram a procurar uma
casa para materializar esse espaço e a partir disso
construir o que a gente queria com esse coletivo. Na
procura da casa, a mãe da Marta estava passando
por um problema sério de saúde e queria deixar
um imóvel pra filha. A Marta falou que não, que

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Ana C lara Romanelli e C inthia Viana

já tinha um imóvel e não precisava dessa herança,


mas quando veio a possibilidade da Casa de Lua,
a Marta pensou que uma casa para mulheres seria
melhor para administrar emocionalmente. A mãe
dela deu uma grana para ela fazer o financiamento.
E a gente, como coletivo, tem o compromisso de
pagar o que seria o aluguel, o financiamento da
casa e que sai muitíssimo mais barato. Um imóvel
desse localizado aqui (na Pompeia) vocês podem
imaginar que não é barato, mesmo por um valor
melhor, ainda é caro. Tem todo um caminho árduo,
mensal, para conseguirmos manter essa casa em
pé. O primeiro evento que fizemos foi um evento
bruxo, tiveram muitas danças, muitos rituais, foi
bem ritualístico. A casa é uma área de livre acesso,
qualquer pessoa vir aqui, sentar e trabalhar o dia
inteiro, usar o Wi-fi e as tomadas para carregar.
A gente abastece a geladeira com algumas coisas,
vendemos água, bebidas, mas o uso do espaço é
free. Em cima são três salas que seriam as salas
do coworking e cada uma pagaria para usar o
espaço e pode trazer os filhos porque tem quintal
e cozinha. A cozinha é uma parte fundamental da
casa e muito do nosso encantamento veio quando
entramos nela. Achamos que essa era a cozinha
da Casa de Lua, inclusive os azulejos remetem um
pouco a Lua, tanto que virou nossa logomarca. Ela
é de fácil acesso porque está perto do metrô e isso
é uma coisa super importante. Essa história do
coworking funcionou por um tempo, mas a gente
se deu conta que o que estávamos fazendo eram
eventos, então fazíamos muita roda de conversa
sobre temas relacionados a gênero, assuntos
do universo da mulher, violência obstétrica,

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S omos as Bruxas que não puderam queimar

empoderamento do corpo, temas que nos afligem.


Inauguramos a Casa com uma exposição de nus
nossos, fotos nuas e semi-nuas porque era muito
importante o desnudar-se, por uma questão
de autoestima, que é de bruxa também. Como a
casa já está num lugar elitizado é muito fácil pra
ela ficar num cluster de classe média alta, mas
queremos muito que essa casa aconteça para que
outras mulheres possam vir aqui, frequentar e
se apropriar da Casa. A maioria dos eventos ou a
gente não cobra, ou cobramos muito pouco para
que as mulheres possam participar e tem uma
questão de renda também, a mulher ganha menos.
Depois de um tempo discutimos se a casa tinha
uma personalidade jurídica para poder fazer
consultoria, chegamos a conservar a hipótese de
sermos uma cooperativa, mas demos conta que
a vocação da Casa de Lua era ser uma ONG para
mulheres, que estimule o protagonismo da mulher.
Queremos que as mulheres sejam protagonistas
de suas vidas e nas escolhas que quiserem fazer,
sejam elas mulheres de negócios, empresárias,
donas de casas, em qualquer escolha que elas
fizeram que sejam protagonistas e fortalecidas.
Nossa sala é muito boa pra dança, é uma sala longa,
contanto que não colocamos móvel nela que é pra
ela estar sempre livre. Aliás, a Jarid já vai trazer
dança afro. A gente queria botar um espelhão, que
é justamente pra ter as aulas de dança e também
para que a primeira coisa que a pessoa veja seja
ela mesma. A Casa de Lua começou antes com o
nome de Oxum, porque na reunião zero, antes
do sítio, eu soube que coincidentemente todas
as mulheres que foram para aquela reunião,

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Ana C lara Romanelli e C inthia Viana

ou quase todas estavam vestidas de amarelo. O


espelho também entra nisso com essa simbologia
de Oxum, mas a gente acabou trocando o nome
porque fundamentalmente aqui não é uma casa de
santo e seria desrespeitoso.

A Casa de Lua tem uma religião? Nos


disseram que vocês são bruxas.

Ai que delícia! Eu sou uma pessoa bastante


desconectada com essa pegada espiritual, obvia-
mente que um lugar que se chama Casa de Lua
não tem esse nome à toa. Claro que existe uma
conexão de muitas das mulheres daqui e muitas
nos procuram também por causa disso. A maioria
das mulheres que circula pela casa, que susten-
ta a casa, faz a gestão, tem alguma ligação com a
questão espiritual. A Lu, por exemplo, é de centro
de umbanda, ela faz muitos rituais, é muito ligada
também aos rituais de bruxaria, a Bianca também
é uma pessoa com uma pegada espiritual bem for-
te. Você vai encontrar leitura de mapa astral aqui,
leitura de tarô, tem uma salinha lá em cima que
é só para abrir o tarô. A Casa de Lua não segue
nenhuma religião porque individualmente mui-
tas das mulheres da Casa têm algum tipo de tra-
jetória ou de ligação com a espiritualidade. Não
é que a gente tenha rituais de bruxaria nem nada
assim, mas temos rituais para a Lua, quando é Lua
Cheia a gente faz alguma coisinha aqui. A Jarid,
por exemplo, está entrando agora na Casa e tem as
bruxarias dela também, ela lê o tarô, temos uma
astróloga que faz o mapa astral e toda segunda-
-feira a gente publica a previsão da semana. Outro

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dia alguém falou que estávamos inaugurando o fe-


minismo esotérico, que eu acho uma ótima defini-
ção para Casa de Lua, inclusive porque tem uma
coisa dos rituais, uma ligação com o sagrado que
pra algumas é importante.

O nome então veio dessa raiz espiritual?

Também. Como a gente estávamos decididas a


mudar o nome de Oxum e botar um outro nome, ti-
nha um espírito que não se queria perder e uma das
mulheres na época sugeriu Casa de Lua. Tem vários
significados pra todo mundo, mas tem muito uma
coisa da gente querer ressignificar a expressão de que
mulher é de Lua. Dizemos que a Lua nos rege e so-
mos de Lua mesmo, temos orgulho disso, de poder se
permitir às mudanças e se conectar com a natureza,
se permitir viver as nossas mudanças, sejam de hu-
mor, de opinião, principalmente porque atualmente
as pessoas não querem mudar suas opiniões. Tudo
bem que tem coisas que você não vai transigir, mas
tem outras que a gente vai ouvir, então a Casa de Lua
tem muito esse espírito. É óbvio que se as fundadoras
trouxeram essa conexão com a espiritualidade, então
a casa tem também. Todo lugar que você olhar tem
referências, se você andar pela casa você vê que tem
Iemanjá, tem Oxum, tem São Francisco.

O que você sente que mudou na sua vida e


na vida das pessoas que vem aqui?

Como eu disse eu sou a mais desconectada com o


processo de ritual, ainda tenho questões com isso. Mas
permiti que essas coisas entrassem mais, me permito

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Ana C lara Romanelli e C inthia Viana

prestar mais atenção, ter mais delicadeza e um cuidado


maior em entender. Inclusive, me entendo melhor em
algumas coisas pelo o que eu ouço aqui, pelo que a Lu
traz, uma coisa muito forte de autoconhecimento. A
Jarid fez uma matéria super legal sobre a Casa de Lua
e uma coisa que para mim foi muito impactante, foi
valorizar características que eu não sabia que tinha
ou não dava tanto valor, nem sequer percebia. Teve
um processo comigo de entender qual é meu papel,
o que eu posso contribuir para a Casa. Agora consigo
entender meu papel e uma série de potencialidades
que eu subestimava ou não observava que eu tinha.
É um processo de autoconhecimento muito grande.
Nas mulheres que circulam na Casa eu vejo uma
concretização na materialização de projetos de vida,
de sonhos mesmo. A Casa de Lua funciona muito
como uma incubadora, tem pelo menos umas quatro
ou cinco ações que surgiram aqui de mulheres que se
encontraram e que reconhecem que essas iniciativas
teriam surgido bem mais tarde se não tivessem a
Casa como espaço de criação. Um dos motivos de
querermos essa casa, é que queríamos pele, contato.
É uma Casa em que as mulheres são protagonistas,
embora seja uma casa aberta para quem queira
entrar, o nosso foco é a mulher, queremos que
elas se encontrem e estejam juntas. Aqui surgiram
várias iniciativas super importantes como o KD
Mulheres, que é um movimento que pergunta onde
estão as mulheres na literatura. Surgiu na esteira da
Flip quando as meninas que querem ser escritoras
olharam e viram que dos 45 convidados para a Flip do
ano passado, apenas oito eram mulheres. E quando
foram olhar o histórico da Flip, em 13 edições apenas
uma mulher foi homenageada até hoje. Olhando para

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S omos as Bruxas que não puderam queimar

esse cenário, as meninas que criaram o KD Mulheres


começaram a questionar. As mulheres são menos
editadas? As mulheres escrevem menos? Por que são
menos premiadas? Por que são menos convidadas
pras feiras literárias? No ano passado fomos para
Parati fazer uma ação de guerrilha, ficamos no meio
da praça distribuindo panfletos, fizemos uma roda de
conversa, foi algo que poderia ter sido invisível, mas
acabou não sendo porque teve impacto na imprensa. A
própria Flip teve que reconhecer que a gente estava
lá e a legitimidade da pergunta. O resultado se deu
nesse ano, quando as meninas foram convidadas
pra uma mesa de debate, tiveram as mesmas
questões, mas as editoras também abriram pra se
perguntar onde estão as mulheres na literatura. Foi
um movimento que teve um impacto muito forte e
elas foram uma das principais líderes sem a menor
dúvida. Outra iniciativa que surgiu aqui, foi a Kayá,
uma editora dessas mesmas meninas do KD, uma
editora para mulheres e escritoras mulheres. Aqui
surgiu também o MAMU, um mapa de coletivo de
mulheres, de georeferenciamento, contendo os
coletivos espalhados pelo Brasil. Serve para que
as pessoas se conheçam, para quem está fazendo
ações para mulheres no Norte conheçam quem está
fazendo ações no Sul. Outra coisa que surgiu é a
Iara, uma agência de empoderamento feminino que
faz um pouco de coaching e um pouco de terapia
para autoestima. A Casa de Lua proporciona
essa possibilidade de transcendência, para essas
mulheres que se encontram e têm uma ideia,
tenham apoio. Uma das nossas rodas é um ritual
super importante que a Maria Carolina, criadora
do MAMU, trouxe. Ela é atriz e fazia muito com o

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pessoal do teatro e isso fez muito sentido pra gente.


É bem ritual mesmo, babauê, de quem faz miçanga,
de pessoal de humanas, que é a nossa cara. É
muito emocionante para todas nós. Fazemos uma
roda, damos as mãos e dizemos: “coloco as minhas
mãos sobre as suas para que possamos fazer juntas
aquilo que eu não sei fazer sozinha”. Desculpem, eu
sempre fico emocionada com essa história, sempre
tenho vontade de chorar. Acho legal quando a
gente faz a roda e a frase, que eu acho muito forte,
resume muito a Casa. Você vem aqui e a gente faz
juntas a coisa que você não está dando conta de
fazer sozinha. Porque a gente não dá conta de fazer
sozinha, ninguém, nenhum ser humano, nenhuma
mulher dá conta de fazer sozinha. As pessoas
precisam das outras numa relação igualitária sem
você estar hierarquizando sua relação.

Jarid: Eu acho que o maior impacto que essa


casa traz para as mulheres é uma lição de coletivi-
dade e de respeitar a pluralidade das mulheres. As
mulheres são muito plurais no feminismo, ninguém
faz parte de uma coisa única, ninguém pensa em
todo mundo igual. Uma coisa que eu observo é que
aqui a gente é muito diferente uma da outra, tem
pessoas muito ligadas a espiritualidade e outras
não. São várias ideias diferentes até mesmo visões
diferentes do que é o feminismo, idades, corpos e
mesmo assim a gente consegue manter a casa e co-
laborar juntas. Toda mulher tem espaço, eu acho
que isso é o mais bonito, a gente aprende a convi-
ver com outras mulheres, a respeitar, apoiar, que é
o oposto do que a gente aprende lá fora, que gente
aprende a competir.

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S omos as Bruxas que não puderam queimar

Vanessa: O dia da inauguração foi uma gran-


de festa, tinha 300 e poucas pessoas circulando
por essa casa, um momento muito feliz. A gente ti-
nha feito um encontro à tarde pra falar como seria
essa dinâmica, como íamos nos dividir no bar, na
limpeza, manter banheiro limpo, fechamos a cozi-
nha porque virou bar mesmo, pra vender bebida e
comida. E estava todo mundo naquele frenesi, sem
conseguir até se concentrar direito, todo mundo
estava muito excitado. Até que a pessoa responsá-
vel por essa parte falou que não ia criar uma esca-
la, para ver no que ia dar. E à noite, quando come-
çou a festa, aconteceu realmente uma mágica. Foi
tudo muito orgânico. A gente teve uma entrega tão
grande, um amor tão grande, que sabia a hora que
tinha que render a outra, para que a outra pudesse
descansar e curtir a festa. Não precisava ninguém
falar “agora é sua vez de ir lá pro bar porque a ou-
tra precisa beijar na boca”. E foi muito fluido, nem
sempre é assim, claro, mas essa imagem pra mim
foi muito forte. Tudo aconteceu organicamen-
te, estávamos muito alinhadas, muito no espírito
de comemorar, de celebrar e de fazer esse evento
acontecer. Queríamos que as pessoas conheces-
sem essa casa e viessem pra cá. Lá em cima teve
a exposição, as meninas que organizaram fizeram
uma instalação bem de bruxa também, com ofe-
renda nos cantos. Essa imagem é muito do espíri-
to que a gente quer manter nessa casa. Você vem,
precisa de ajuda então a gente se junta e vê o que
podemos fazer. A gente precisa dar uma força na
cozinha, enquanto você cuida do evento, a gente
faz a comida, distribui a comida, que seja. A Ja-
rid lançou o livro dela aqui, foi uma noite absolu-

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tamente linda e teve muito esse espírito da gente


aqui cuidando da produção, distribuindo bebida,
comida para que ela pudesse ficar lá fora, sentada
dando autógrafos.

Jarid: Imediatamente pensei em fazer aqui,


porque eu achei que tinha tudo a ver. Não queria
fazer em outro lugar, mas além disso, de ser uma
relação de afeto. Eu não teria conseguido fazer o
que eu fiz em outro lugar com o meu orçamento
que é zero. Então eu contribui, lógico, com a Casa,
eu não era diretora, mas não ia ter outro lugar
mais acolhedor para uma mulher que quer fazer
algo assim, principalmente independente. As pes-
soas não têm grana, você conta realmente com o
apoio das outras. Eu vim aqui e a Lu fez a decora-
ção com a Vanessa, fui pra casa desesperada. Mas
estava lindo e elas falavam “calma, vai dar tudo
certo, a gente já fez isso gata”. A gente fez uma
coisa que eu nunca conseguiria ter feito só.

Você conhece outra ONG feminista?

Tem um coletivo de mulheres, a Casa Crioula,


que fica lá em Perus se não me engano. Nunca fui
visitar, mas é uma casa bem fofa, uma mulher jo-
vem e negra que fundou. Ela tem muito uma coisa
do olhar, do acolhimento para receber as mulheres
da região, que é de uma realidade super dura. Tem
uma pegada forte de empreendedorismo também,
para que elas possam ter mais independência fi-
nanceira. Eu tenho uma pressão enorme de amigas
no Rio de Janeiro pra que a gente leve a Casa de
Lua pra lá.

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Como os homens participam aqui?

Já tivemos eventos realizados por homem, teve


um astrólogo super conhecido, que veio pra fazer
uma coisa mais fechada. Em geral eles vêm aqui
para ouvir mesmo e a gente quer que eles ouçam.
Eles dão muito apoio, principalmente braçal, aju-
dam e emprestam bastante coisa. Tem muita coisa
que é emprestada de uns amigos das mulheres da-
qui. Assuntos de tecnologia e mulheres, vem homem
pra ouvir, a roda de conversa sobre aborto tinha ho-
mens e a de literatura também. Nunca tivemos pro-
blemas, talvez eles guardem pra eles, o que eu acho
bastante decente. Procuramos equiparar homens e
mulheres em eventos que sejam de conjuntura, ou
ter mais mulheres do que homens. Não é por sexis-
mo, o que a gente quer é mostrar que mulher pode
debater sobre qualquer assunto, inclusive assuntos
que não são necessariamente sobre mulheres. No
debate da redução da maioridade penal tinha a Jarid
e a Bianca Santana, mas tinha o Douglas Belchior e o
Henrique Braga. Eu estava como mediadora e acabei
participando um pouco do debate. O debate sobre a
crise hídrica era a Camila Pavanelli, a Rebeca Lerer
e o Délcio, que é especialista em água. E eu como
mediadora também. A gente procura colocar mais
mulheres do que homens falando, mas se tem um
homem que é pertinente ao assunto, ele estará.

Como você vê o futuro da Casa de Lua?

Somos todas voluntárias aqui. Tem uma ques-


tão financeira que é sempre urgente e estamos pro-
curando saber como aliviar. Isso é algo que deixa

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a gente com medo, ainda mais nesse momento de


crise. Pensando em como poderia resolver isso de
alguma maneira temos agora um CNPJ, podemos
participar de editais e conseguir financiamento. Eu
vejo a Casa num momento muito bacana. A gente se
deu conta que era uma ONG, percebendo qual era a
vocação dessa casa. Precisávamos descobrir o nosso
caminho que é o que definiram como feminismo eso-
térico. Vejo coisas lindas acontecendo, por exemplo,
a entrada da Jarid foi uma coisa muito bonita, poli-
ticamente falando, intensifica o olhar interseccional
sobre a nossa atuação. Para que a Casa não seja só
uma coisa classe média paulistana branca. A gente
quer mais inclusão, mais mulheres, mais diversida-
de, de identidade de gênero de orientação sexual,
diversidade de corpos, de histórias de vida, pra que
a gente possa construir também um caminho. Vejo
com muito otimismo que vamos fazer coisas bem ba-
canas. Tem um histórico de projetos bons e outros
não tão bons quanto a gente gostaria. O processo de
aprendizagem foi ótimo porque ampliou nossa visão
e nos tirou da zona de conforto e da teoria. Acho que
2016 vai ser um ano de muita consolidação, estou
bem otimista e bem bruxa também.

Você falou sobre interseccional, tem al-


guma vertente do feminismo que tenha cau-
sado algum conflito?

A gente não tem polaridades tão díspares. Eu


me identifico com algumas coisas de um feminis-
mo mais radical, mas não me identifico com tudo,
me identifico com coisas do feminismo intersec-
cional, mas não com tudo. A gente nunca teve um

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conflito nesse sentido, inclusive, tem mulheres que


até por sua conexão religiosa não fariam um abor-
to, mas essa é uma Casa que defende escolhas, a
gente é pró-escolha. Isso é muito o núcleo da nossa
fala, queremos dar suporte para mulheres em suas
escolhas, então obviamente, somos uma organiza-
ção feminista que defende a legalização do aborto.
Uma mulher, com seus valores morais e religiosos,
que não faria um aborto, também defende que a
mulher tem o direito a escolher na nossa Casa. Isso
é uma decisão absolutamente pessoal. Poderia ser
um ponto de conflito, mas não é, foi resolvido por-
que o direito à escolha da mulher é o que nos une,
o ponto comum de todas nós. Estamos criando um
calendário de muita informação interna, vamos dar
uma reciclada, olhar o que está acontecendo não só
no feminismo de web, mas no feminismo da acade-
mia. Eu não acredito que a gente vai ter um conflito
fundamental. O que já teve, por exemplo, é de al-
gumas falarem “não me identifico com feminismo”
e elas se afastaram, daí não fazia sentido mesmo
ficar aqui. Estamos em uma ONG feminista, com
suas especificidades, então a gente pode falar de
pluralidade dentro do feminismo, mas se você não
se identifica não faz sentido estar aqui realmente.

Como alguém faz para participar ativa-


mente da Casa de Lua?

Entrando em contato, vindo aqui conversar e


ver o que ela pode oferecer pra Casa. Se ela qui-
ser desenvolver um projeto, nós conversamos e se
o projeto estiver alinhado com as nossas linhas ge-
rais, colocamos o projeto pra acontecer. Ela tam-

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Ana C lara Romanelli e C inthia Viana

bém pode se associar, entrar no site casadelua.com.


br/facaparte, pode contribuir financeiramente.
Isso traz uma série de benefícios, de uso da casa, se
quiser fazer eventos, por exemplo. Uma vez, uma
moça precisava fazer atendimento terapêutico, mas
o consultório dela estava muito longe para a pessoa
que ela ia atender e aqui era um lugar melhor por
ser mais perto do metrô. Ela usou a sala, nos pagou
um valor e ficou a tarde toda atendendo, umas duas
ou três pessoas. Então como associada você acaba
tendo um pouco mais de desconto, de benefícios, se
você for fazer uma festa, também é um jeito de par-
ticipar da Casa de Lua. Nossa cozinha é maravilho-
sa, mágica e tudo acontece aqui. A gente também
quis dar um valor político para cozinha como um
espaço de mulheres porque aqui tem altas confabu-
lações, temos planos de dominação do mundo aqui
nessa cozinha.

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Título Somos as Bruxas que não puderam
queimar: Diálogos entre feminismo e
bruxaria

Formato 14x21cm
Tipologia textos Georgia
Tipologia títulos Georgia Bold
Papél miolo Papel: Pólen
Gramatura 80m/g2
Papél Capa Cartão Supremo
Gramatura 250m/g2
Diagramação Israel Dias “Costella”

Artemidia Gráfica e Editora


Alameda Olga, 422 - Bloco A, Conj. 41 - Barra Funda -São Paulo - SP - CEP 01155-040
Tel. (11) 4305-6101 | http://artemidia.net/

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