Cássia Charrison
Professora de dança do CAPS Rubens Corrêa. Pós-graduada em terapia através do
movimento, corpo e subjetivação
E-mail: cassiacharrison281@gmail.com
Resumo
O presente artigo busca discutir as potencialidades de uma clínica permeada pela
dança, corpo e movimento no campo da Saúde Mental. Para tal, inicia-se por um breve
percurso histórico, crítico e político acerca da relação entre a experiência da loucura e a forma
de tratamento dado aos corpos entendidos como loucos, sobretudo, os institucionalizados,
pensando nas relações de poder que os colocam como alvos de investimentos coercitivos,
disciplina e docilização. Com o surgimento do modelo de Atenção Psicossocial, serviços
substitutivos ao manicômio foram construídos e assim, observa-se todo um esforço para que
novas formas de clínica sejam operadas. O campo de análise deste estudo, pautado na
cartografia, foi a participação nas aulas de dança que acontecem semanalmente no Centro de
Atenção Psicossocial – CAPS Rubens Corrêa, situado em Irajá, no município do Rio de
Janeiro. A partir da adaptação de diários de campo, foram trazidas situações vivenciadas no
encontro com o grupo de maneira a pensar a dança como uma prática que extrapola a noção
de terapêutico, se configurando como uma estratégia de resistência à medida que corrobora
com a construção de novos estados corporais.
Palavras-chave: Corpo, loucura, dança, resistência
Abstract
This article seeks to discuss the potentialities of a clinic permeated by dance, body and
movement in the Mental Health field. To do this, it starts by a short historical, critical and
political course about the relation between the experience of madness and the kind of
treatment that is given to the bodies entitled as insane, specially those institutionalized,
thinking about the relations of power that put them as targets of coercive investments,
discipline and docilization. With the emergence of the model of Psychosocial Attention,
substitute services to the asylum were built and so, we observe a great effort for new ways of
making the clinic to be possible to operate. The field of analysis of this study, based on the
cartography, was participation in the dance classes that happen weekly in the psychosocial
Care Center – CAPS Rubens Corrêa, situated in Irajá, in the municipality of Rio de Janeiro.
From the adaptation of field diaries, situations such as experiences at the encounter with the
group were brought in such a way as to think of dance as a practice that extrapolates the
notion of therapeutic, becoming a strategy of resistance as it corroborates with the
construction of new body states.
Keywords: Body, madness, dance, resistance
Introdução
O presente artigo se deu a partir da experiência durante o estágio integrado em Saúde
Mental no Centro de Atenção Psicossocial – CAPS Rubens Corrêa, situado em Irajá, no
município do Rio de Janeiro, entre os meses de maio e outubro de 2018. Esse serviço se
configura como uma das principais estratégias de desinstitucionalização no contexto pós-
reforma psiquiátrica, na medida em que se articula como um organizador da rede de
assistência e cuidado, operando a partir da lógica territorial e comunitária em substituição aos
hospitais psiquiátricos. As atividades em grupo são consideradas como ferramentas
importantes em tais serviços, uma vez que possibilita o convívio entre os usuários e a troca de
experiências, objetivando o fortalecimento da autonomia. Dentre muitas possibilidades,
destacam-se as aulas de dança, que é o campo de análise deste estudo.
Nesse sentido, a partir da vivência nesse espaço foi possível perceber um novo modo
de fazer clínica, diferente daqueles pautados em uma lógica manicomial de anulação do
sujeito e seu corpo. Situa-se na articulação entre clínica, movimento e dança um dispositivo
potente, no sentido de fomentar as possibilidades que um corpo tem de agir e ser no mundo e
assim, poder criar estratégias de cuidado de si e do outro. No entanto, para refletir e analisar a
experiência da dança na Saúde Mental atualmente, primeiramente se faz necessário situar o
lugar atribuído historicamente ao corpo na experiência da loucura, pensando nas relações de
poder que o colocam como alvo de investimentos coercitivos, de disciplina e docilização.
Nota-se que, atualmente, novas maneiras de conceber a loucura vêm sendo forjadas.
Isso contribui para que a experimentação de outras práticas ganhe espaço de existência
afirmando outras corporeidades possíveis, a partir do reconhecimento de um corpo singular
como lugar de expressão e que tem possibilidade de resistir, como é o caso da dança. Desse
modo, pode-se dizer que a aula de dança se configura como um dispositivo potente e
producente de vida, na medida em que corrobora para que o sujeito seja protagonista de sua
própria história. Contudo, apesar de sua relevância, ainda são poucos os trabalhos que
admitem o caráter de (re)existência da dança, extrapolando a noção de um uso meramente
terapêutico desta prática.
Este estudo, portanto, visa refletir sobre o modo de fazer operar uma clínica permeada
que seja pela dança no campo da Saúde Mental, trazendo possíveis formas de como tal prática
pode se configurar como um dispositivo fomentador para a criação de estratégias de
resistência, à medida que reinventa os modos de existir dos corpos.
Metodologia
A estrutura desta pesquisa se deu por dois vieses. Realizou-se em um primeiro
momento, uma pesquisa bibliográfica a partir de livros e publicações eletrônicas acerca de
como se deu historicamente a relação entre corpo e loucura. Desse modo, foi possível,
problematizar certos olhares e práticas utilizadas para com esse corpo rotulado como louco
em diversos contextos, as marcas inscritas nele e o que vem sendo feito atualmente para
ressignificá-las.
Para tal, foram utilizados conceitos propostos por Michel Foucault, enquanto
ferramentas para auxiliar nesse processo de análise. No entanto, não é de interesse deste
artigo, se apegar a minunciosidades históricas, mas sim, fazer um recorte acerca do tema,
objetivando discutir as transformações trazidas pelo modelo da Atenção Psicossocial sobre o
modo de compreender a loucura, relacionando-o ao trabalho corporal em um serviço como o
CAPS.
Entende-se que a importância do aprofundamento teórico histórico-crítico se constitui
exatamente no fato de que, somente a partir dele, é possível entender as relações que
estiveram e estão em jogo em um determinado campo de pesquisa para que a partir daí, se
possa pensar em possíveis estratégias de intervenção.
Em um segundo momento, foi feita uma adaptação dos diários de campo referente às
aulas de dança, que ocorrem semanalmente no Centro de Atenção Psicossocial- CAPS Rubens
Corrêa, situado no bairro de Irajá, zona norte do município do Rio de Janeiro a fim de relatar
aspectos da experiência enquanto participante deste grupo entre os meses de maio e outubro
de 2018, tornando-se possível, assim, uma melhor análise sobre os efeitos que essa prática
provoca no corpo dos participantes.
Acredita-se que os diários de campo são ferramentas importantes para a composição
da pesquisa, uma vez que “possibilitam registrar como o meio nos afeta quase no mesmo
momento, in loco, onde os dados são construídos na relação com o outro. A implicação do
pesquisador com o campo de pesquisa é documentada em sua escrita”1 e por esse motivo, o
relato está em primeira pessoa.
Para alcançar os objetivos propostos neste estudo, utilizou-se a cartografia como
metodologia de pesquisa. O método cartográfico “propõe que se trabalhe com o entre, sugere
que a pesquisa acontece no que se vivencia entre o pesquisador e o território de pesquisa”2, ou
seja, a inserção do pesquisador no campo o qual ele está estudando, consiste em um dos
princípios deste método. Isso porque a cartografia entende que é “no encontro entre
pesquisador e campo que se dão transformações em ambos e se produz conhecimento.” 2
Assim, pode-se atentar para o campo de afetações produzidos nesses encontros, que de certa
maneira, corroboram para as intervenções na área da saúde. O encontro, neste artigo é
colocado como algo inesperado, que “não acontece em linha reta, acontece entre dois ou mais
elementos, onde sobrevoa todos os campos que compõem seu múltiplo território de
pesquisa.”2
A escolha metodológica se deu pelo fato de que a aula de dança se dá em grupo, de
modo a configurar como um potente dispositivo de afetação, onde o coletivo e o individual se
entrelaçam. Dessa forma, todos modificam uns aos outros de maneira constante e sendo
assim, o interesse nesta pesquisa não é uma aposta na neutralidade e objetividade entre sujeito
e objeto. Pelo contrário, considera-se que ambos estão juntos no campo da experiência.
Considerações finais
Através desse artigo, foi possível perceber que o discurso sobre o corpo ao longo da
história foi intimamente definido pelas relações de poder e saber vigentes. Os corpos dos
estigmatizados como loucos foram marcados pela experiência de institucionalização, onde
predominavam técnicas de poderes disciplinares e coercitivas, contribuindo para a anulação
da noção de sujeito e consequentemente um afastamento da noção de liberdade, autonomia e
cidadania. O corpo institucionalizado é um corpo fragmentado, um corpo dócil, sem produção
de vida.
Com o advento da Atenção Psicossocial, tem se observado avanços em direção a um
tratamento que considere a complexidade da dimensão corporal no cuidado ao sujeito em
sofrimento psíquico. A maneira pela qual o indivíduo vem sendo percebido neste novo
paradigma fomenta a expressão de sua singularidade e desloca a patologia para segundo
plano, focando no que o sujeito pode exprimir de potencialidades. É o que se chamou de
“colocar a doença entre parênteses” para conseguir extrapolar a patologia do sujeito e
potencializar sua produção de subjetividade, focando na singularidade de cada sofrimento, em
contraste com a lógica manicomial, que divide o “normal” do patológico. É importante
destacar que as instituições asilares pautadas por esse viés ainda existem, o que põe em xeque
muitas vezes a luta Antimanicomial e o trabalho incessante que vem sendo realizado nos
serviços substitutivos pautados pela lógica territorial.
Nesse contexto, é preciso ratificar novas formas de cuidado e de operação da clínica,
indicando suas potências. É nesse sentido que este estudo se justifica como relevante nas
práticas de saúde. É sugerida aqui, uma clínica permeada pela dança, onde a experiência
prática em contato com esse dispositivo possibilita a percepção de sua potência enquanto
espaço de afetação e produção de resistência. A proposta, através da metodologia de
conscientização do movimento, fomenta a produção de novas possibilidades para o corpo em
sua relação consigo mesmo e com o mundo. Através da dança, corpo e movimento, um modo
de cuidar de si é inaugurado, resultando em indivíduos mais saudáveis, autônomos, criativos,
que possam usufruir de suas potencialidades e saúde integral, fortalecendo os princípios
previstos no SUS.
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