Anda di halaman 1dari 4

1.

Se colocar a mim próprio a questão do «grande escritor» no espaço de língua alemã,


ocorre-me certamente um nome como Günter Grass, que, mais do que um
grande escritor, é – como Thomas Mann antes dele, ou Goethe para este romancista –
um dos grandes «representantes» da literatura de língua alemã do pós-guerra, com
uma Obra que acompanha e reflecte como poucas a sua própria época. Um outro
grande antecessor de Bernhard, simultaneamente espelho de uma época e «escritor da
escrita» – falo de Robert Musil –, distinguia entre os «grandes escritores» (cujo
paradigma seria Thomas Mann) e os «homens do circo» (ele próprio). Bernhard é um
grande escritor – agora sem aspas! – precisamente porque é o grande «homem do
circo» das letras austríacas na segunda metade do século XX. E a arena desse circo,
não diria trágico, mas agónico, é a sua própria existência (a sua alma?) de palhaço
pobre e hiperlúcido, muitas vezes cáustico, outras vezes snobe, sempre capaz de um
humor soberano, no grande lunaparque da sociedade e da história austríaca e
europeia. Ou do mundo em geral, que ele via – não sem razão, constatamo-lo hoje
claramente – como «um lugar cheio de erros». Entre nós, alguns, que podemos ver
como versão menos funambulesca, mas igualmente radical e íntegra, viram também
desse modo aquilo a que se chama «mundo» – que «é um erro», disse um dia Rui
Chafes, que não tem forma fixa nem é lugar idílico, mas um «jardim devastado»,
escreve Maria Gabriela Llansol).

2.
A questão da autobiografia é uma não-questão em Thomas Bernhard, de tal modo a
sua obra é inequivocamente a sua vida genialmente transfigurada – ou nem tanto –
como, uma vez mais, o é numa autora nossa como Llansol. O autobiográfico
enquanto matéria ficcionada (e muito reinventada, em particular nos «factos»
desta Autobiografia) é em Bernhard o equivalente do seu estilo enquanto linguagem
redundante que, como Adorno dizia de Beckett, é espelho de uma «historicidade
imanente». Toda a Obra de Bernhard – em especial a ficção, que é autobiográfica, e a
autobiografia, que não pode deixar de ser lida como ficção, e como tal se apresenta –
é uma construção comparável àquela que serve já a Goethe para definir a forma então
nova da «novela»: a partir de um centro que é «um acontecimento insólito» e
obsessivo (aqui: ele próprio, Thomas Bernhard), vão-se desenvolvendo ondas
concêntricas, semelhantes, mas de amplitude e intensidade diversas, num eterno ciclo
da diferença na repetição. Ler Bernhard é, assim descobrir esse núcleo central e
seguir os círculos que dele nascem e constituem a matéria do romance – ou da
autobiografia, que, deste ponto de vista, não é mais nem menos importante do que o
romance propriamente dito. Aqui, a ficção é autobiografia deslocada e amplificada, e
a autobiografia necessariamente ficcionada, isto é, transfigurada para servir, quer os
mitos pessoais do autor, quer a sua vontade de dar a ler a História na experiência
subjectiva. Esconde-se aqui um paradoxo central da escrita de Thomas Bernhard: o
eu, empolado até ao limite do insuportavelmente reconhecível, é, afinal, o momento
menos importante dessa escrita. É ela, a própria escrita, que verdadeiramente conta,
na sua radicalidade e singularidade. O resto, que está fora dos círculos desse mar de
linguagem, é... o chamado «mundo» – que não existe, e não interessa, a não ser para
denunciar o seu absurdo pela escrita.

3.
Daqui, é fácil concluir por que razão a Obra de Bernhard continua a questionar-nos,
mesmo fora do seu habitat mais evidente e natural, a Áustria do autor. Mas, por mais
estranho que pareça, o mais importante nesta Obra não é, nem o autor, nem «a sua»
Áustria (de que ele parece estar sempre hainamouré, diz um crítico francês). Isso
torna-se evidente hoje, quando o podemos ler com maior distância e serenidade. O
que conta e o que fica é essa sua capacidade de transpor para uma linguagem límpida
e limpa (apesar de todo o esterco do mundo que lhe subjaz) um
posicionamento heterofágico, que engole o outro, o social, a História, para o vomitar
no papel, que destila veneno sobre o mundo, mas mais não pretende do que, à
maneira do seu par Samuel Beckett e do seu «realismo» também agónico, ler o
mundo a partir do seu centro – que só por grande hipocrisia ou ingenuidade se
quererá ver fora do próprio sujeito, de um sujeito para quem a escrita é o seu modo de
estar no mundo. Em Bernhard, como em Beckett ou ainda em Llansol, do tecido
subjectivo, objectivado e obsessivo do texto evolam-se os vapores da grande História
do século e do mundo.
4.
Como o próprio Bernhard escreve num dos seus romances traduzidos cá (Betão),
andamos sempre «às voltas com os mortos». O que quer dizer que somos reféns de
passados, o próprio e os alheios. O tema freudiano da «morte do pai» desloca-se, no
caso de Bernhard, para um espaço mais amplo que parece ser o de todos os grandes
pais (e mães) que nos moldam e condicionam, a começar pelos próprios (no caso de
Bernhard a questão nem sequer se pode aplicar ao pai biológico, com quem não
conviveu, sendo, como foi, substituído pelo avô que ele idolatrava) e acabando na
famigerada «pátria/mátria», simbolizada em Bernhard na peça-testamento
intitulada Praça dos Heróis, o locus horrendus vienense que consubstancia todo o
seu amoródio pela Áustria.
Na Autobiografia, esse «pai» odiado é o próprio Estado (o nazi e o austríaco anexado
e todos os outros), origem de todos os males, pessoais e históricos. É este composto
explosivo de ressentimento e exclusão, de abandono e opressão, que alimenta toda
essa narrativa das origens que é a Autobiografia (nisto idêntica a muitas outras obras
do autor), estruturada em cinco partes que trazem nomes que são ao mesmo tempo
«alusão» a uma «causa» («raiz»? «origem»?) de onde tudo nasce (a Guerra e o que se
lhe segue, e esse lugar real-simbólico da morte, de seu nome Salzburg), um
«isolamento» e uma «retirada», até à «decisão» de pôr meia vida em escrita.
As «origens» são importantes em toda a obra de Bernhard porque é o regresso a elas,
sob a forma de ficção, que melhor lhe permite compreender o mundo, igual na sua
essência ontem como hoje, já que, como lemos em A Cave, é pela encenação literária
das origens próprias que melhor se pode realizar um dos pressupostos centrais desta
Obra: a ideia de que «o importante, afinal, é o conteúdo de verdade da mentira».

5.
Penso que a «ferida» não sarável presente em tudo o que Bernhard escreveu divide os
leitores porque, provavelmente, nem os adoradores nem os detractores o entendem –
quero dizer, não é possível chegar perto desta escrita a partir de tais posições (pré-
)determinadas. Isto, porque há na sua Obra um fundo de «a-moralidade» e de
indiferença que dificulta um acesso mais sereno a esta obra. A «genial imperfeição»
de que Bernhard tem consciência em relação a si próprio (apercebi-me disso nas duas
ou três ocasiões em que tive contacto pessoal com ele) vai de par com um sentido de
superioridade que lhe permite ser o lugar irreferenciável da total in-diferença. Sendo
o niilista perfeito que é, Bernhard é também o impossível moralista. O grande
paradoxo desta escrita que parece estar sempre de dedo em riste é que ela não se faz a
partir de um «lugar de sentido» claro e unívoco, muito menos com pretensões de
validade universal. Bernhard é também o perfeito relativista de uma ironia
dissolvente que não poupa nada nem ninguém. A começar por si próprio, ao ver-se
como exímio autor de «fracassos de escrita».

João Barrento | Escrito a lápis | 14 de Março de 2014

Anda mungkin juga menyukai