Flaubert
Prólogo
Virgínia
Com Virgínia fora assim: difícilaté certo ponto. Ela tinha sido uma garota
sonsa, que cursou Jornalismo por curiosidade e falta de opção, e que teve
que trabalhar pesado no comércio para pagar a faculdade e ajudar a mãe; o
pai, taxista, morreu cedo e de repente, de infarto. Depois de namorar muito,
de algumas aventuras, ficou apaixonada por um escriturário que conheceu
numa balada e quase pensou em se casar com ele. Que burra. Benditas
hemorroidas, que a levaram até o consultório do doutor Júlio: bonito,
charmoso, inteligente, educado e, principalmente, rico. Muito rico. Casado,
mas oras. Eles transaram, naquele mesmo dia da consulta das hemorroidas,
no consultório dele. Foi ali, “por trás”, como ela gostava de dizer. E ele se
apaixonou. “Bendito o meu cu”, pensava baixinho.
Nunca mais trabalhou. Nunca mais pegou ônibus, coisa que odiava.
Ajudou a mãe, que também nunca mais encheu o saco e que passou a viver
sozinha, esperando pelas parcas visitas da filha e da neta, vivendo da
aposentadoria do marido morto e de algumas contribuições da filha.
Casada com o ricaço, Virgínia acordava na hora que queria, comia e bebia o
que queria, ia ao shopping, comprava o que queria, fazia academia. Viajou
para a Itália com Júlio e tirou foto ao lado da torre de Pisa. “Ficar rico
melhora muito a vida da pessoa”, concluiu. Quando engravidou, no segundo
ano do casamento, teve medo. Mas Júlio contratou duas babás e ela quase
só tinha o trabalho de tirar o peito de dentro da blusa na hora de dar de
mamar. Uma beleza. Até fazer a bebê arrotar ou dormir as duas babás
faziam — ela ouviu a Carol chorar apenas umas três ou quatro vezes no
primeiro ano.
Depois, começou a gostar de ser mãe. Sua diversão era comprar
roupinhas e vestir a garotinha. Carol era a sua Barbie. Trocava e destrocava
a roupa da filha três, quatro, cinco vezes numa tarde. Um pouco era falta do
que fazer. Quando a Carol completou cinco anos, Virgínia ficou entediada
de novo. Foi para o analista e intensificou a academia. Na análise, descobriu
que estava fazendo pouco sexo; o Júlio já tinha entrado naquela fase mansa.
Na academia, arrumou um amante. Resolveu seu problema. Mas tinha
medo que o Júlio descobrisse e o caso durou pouco. Foi o suficiente para
apagar aquele fogo que a estava consumindo. “De tempos em tempos uma
mulher precisa de um cara que nem o Bartolomeu”, suspirava, pensando no
personal trainer.
Nesse ínterim, a Carol já estava na escolinha e a rotina de Virgínia era
pautada pelos horários da filha. Virou uma boa rotina. A mãe voltou a curtir
a filhota, que ia perdendo o jeito de criancinha e adquirindo o jeitinho de
menina. De cabelos negros e olhos claros, ia ficar mesmo uma garota linda.
“Essa vai se dar bem na vida”, pensava a mãe.
Um dia, a professora da escolinha, a dona Clarete, chamou a mãe para
uma conversa sobre religião. Reparara que a Carol não sabia rezar, não
conhecia os princípios cristãos, sequer tinha uma ideia de Deus.
Realmente, aquela não era uma família religiosa e Virgínia achou
importante orientar a filha nesse sentido. Virgínia havia sido católica até os
doze anos, quando o pai morreu — depois nunca mais entrou em uma
igreja, vingando-se do Papai do Céu. A empregada da família, a Jane,
frequentava uma igreja evangélica, a Grande Igreja da Santidade
Triangular, e vivia rezando e cantando músicas de louvor e agradecendo
pelo pouco que tinha — e parecia sempre muito feliz, consigo e com a
Igreja. Virgínia foi primeiro, para saber como era. Depois, levou a filha e
arrastou o marido. Conheceram pessoas, fizeram amigos, e viram como
suas vidas eram vazias sem Jesus. Quer dizer, a Carol entendia pouco do
que acontecia ali, o doutor Júlio só ia por causa da mulher, mas Virgínia,
sim, ficou impressionada com os relatos, com os milagres e com o sentido
que tudo aquilo dava à sua vida vazia. Durante um tempo, virou fervorosa
crente, de Bíblia debaixo do braço, lendo trechos em seus longos momentos
de tédio, em casa. Durou uns cinco anos, até que ela desencanou daquilo. As
coisas sempre foram muito sazonais na vida dela. Virgínia continuava indo
à igreja, mas só para encontrar os amigos. Virou uma rotina social. E ia
também pela Carol, claro, que precisava da tal orientação, da tal “ideia de
Deus”.
Com doze anos a Carol era uma crentinha empedernida. Mas os
hormônios estavam ali, conspirando contra Jesus.
Carol
Ninguém perguntava para Carol o que ela sentia ou queria. Ela foi, desde
sempre, a bonequinha da mamãe. O pai estava sempre trabalhando muito
ou em congressos ou numa daquelas misteriosas reuniões noturnas da
maçonaria. Ela foi crescendo, obedecendo às ordens que lhe davam.
Quando entrou para a Igreja, entendeu que o mundo era do jeito que os
pastores diziam. Entendeu e acreditou. Assim, quando, com treze anos, foi
fazer um trabalho de colégio na casa de uma amiguinha, a Isadora, outra
riquinha mimada, e viu a menina dar uns beijinhos inocentes num dos
amiguinhos, ficou meio transtornada. Dentro dela, algo se movimentou.
Como uma onda. Não havia nenhum adulto na casa da amiga naquele dia,
só os cinco coleguinhas que lá estavam para pesquisar sobre Tiradentes. De
repente, ela olhou para um canto do quarto e lá estava a Isadora com a
boquinha colada na do Marquinhos, as duas linguinhas se mexendo. Um
choque.
Quando a mãe passou para apanhá-la, naquela tarde, ela quis contar. Mas
se conteve. Achava pecado. Mas bonito. Uma confusão.
Pensou naquilo durante uns seis meses, período em que desenvolveu um
comportamento meio estranho, evitando a Isadora, o Marquinhos e os
outros amigos. Falou brevemente com a Júlia, outra amiguinha, sobre o
ocorrido. A Júlia disse que era assim mesmo, que logo todas estariam
beijando rapazes, era uma coisa normal.
Umas semanas depois, no colégio, disseram que a Isadora tinha ficado
pelada para o Marquinhos. A fofoca correu a escola num dia em que a
Isadora tinha faltado à aula. Chegaram a dizer que a mãe da Isadora tinha
levado a menina ao médico, ao ginecologista. Naquela noite, Carol sonhou
com aquilo.
Caseira, religiosa, com acesso restrito à Internet — coisa do diabo! — e
com uma rotina que a impedia de ter contato com garotos, Carol teve uma
revelação um dia, numa aula de ciências. Falaram sobre sexo.
O professor, o seu Celso, mostrou fotos, para vergonha e risos incontidos
dos alunos. Num determinado momento, Carol fechou os olhos. Não era
vergonha, não era medo de Deus: era tesão. A calcinha ficou molhada, a
boca salivou e ela quis, pensou, sonhou, num devaneio de instantes, com
um cara grande e bem forte, pelado em sua frente. Queria abraçá-lo,
apalpá-lo, engoli-lo. Colocar o cara inteiro dentro de si, dentro de sua boca.
Ela não sabia, mas tinha herdado isso da mãe, esse tesão todo, esse
descontrole, aquela sanha.
Naquela noite, em casa, no banho, tocou uma siririca. Foi quase sem
querer. Ensaboou o corpo, baixou a mão sobre a barriga, chegou até a
pererequinha e tateou. Chegou a cair no chão.
Era uma putinha fogosa, a Carol.
Outro dia, teve um evento na igreja. Era aniversário do filho dos pastores,
o Fraguinha. Ele era conhecido por Fraguinha porque o pai era o pastor
Fraga, mas não era um garotinho. Longe disso: estava completando
quarenta e cinco anos. Era alto, forte, bonito e... solteiro. A pastora Alaíde, a
mãe, fez uma prece bonita, agradecendo a Deus pelo filho, que era um
exemplo de dedicação e obediência. Em sua fala eloquente, com os olhos
fechados, a pastora disse que queria que o filho encontrasse a mulher ideal
e que ela ia aparecer, no momento certo, para eles. Disse assim mesmo:
para eles.
A Carol já tinha visto Fraguinha por ali, sabia que era filho dos pastores,
mas nunca prestou muita atenção. Nesse dia, ela reparou nele. Fraguinha
desceu do púlpito e foi receber o cumprimento de cada fiel e abraçou a
Carol e ela o beijou no rosto e sentiu um cheiro bom. Era uma pele lisa e
perfumada, ele tinha passado um creme, era vaidoso. Ficou impressionada.
Fraguinha estava fazendo quarenta e cinco e ela tinha acabado de
completar catorze.
Sonhou com ele várias vezes, masturbou-se pensando nele — depois
rezava muito. Em sua cabecinha atrapalhada, ter tesão pelo filho do pastor
podia ser menos pior.
Impressionada pelo Fraguinha, aquele homenzarrão, e com os demônios
e os olhos de Deus a lhe vigiar, Carol beijou um menino. Foi numa festa a
fantasia do colégio. Ela estava vestida de Branca de Neve. Quando
percebeu, estava do lado do Reginaldo, um garoto louro e atlético, do time
de basquete, que vestia uma fantasia de soldado romano. Foi num canto
escuro do salão. Ele segurou no pulso dela e Carol abriu a boca. Não sabia
bem como fazer, mas fez. Lá embaixo, a bocetinha pulava alegre, como uma
rãzinha num lago raso.
Mais esperta, Carol começou a frequentar a casa da Júlia, dormia lá às
vezes. As duas ficavam na Internet vendo putaria. Chegaram a trocar umas
carícias e beijos, mas ambas gostavam mesmo era de homem. A Júlia era
católica, mas não se ligava muito nas coisas da religião. A Carol ficava com
uma culpa danada, chegou até a jejuar uma vez, pedindo perdão a Deus por
ter masturbado a amiga.
No aniversário de quinze anos do Reginaldo, teve uma festa grande, num
clube. Virgínia relutou em deixar a filha ir, mas, ora, ela mesma tinha
frequentado tantas festas, tinha feito tantas loucuras deliciosas, que era
realmente um pecado deixar a filha para sempre dentro da caixa, trancada
no quarto, sem experimentar as delícias da vida. Carol já ia fazer quinze
anos e a mãe preparava uma conversa para ter com ela, aquela conversa
sobre homens e relacionamentos e métodos anticoncepcionais. Sabia que
era inexorável. Deixou a filha ir.
A festa ia começar às dez da noite e Virgínia combinou de apanhar a filha
antes da uma da manhã.
A festa estava legal, divertida, todos dançaram muito, riram muito,
algumas meninas estavam com garotos, pelos cantos, aos beijos e amassos;
outras, mais avançadas, tinham fugido para o jardim — mas Carol estava
estranhamente calma. Olhava para tudo aquilo como se o futuro fosse dela,
como se não devesse ter pressa para coisa alguma.
Foi só quando olhou para o relógio e percebeu que já passava da meia-
noite e meia que teve um estalo. Como se seu coração disparasse, como se
fosse morrer, cair dura em instantes. Dali a pouco a mãe chegaria — e fim.
Aquela festa toda iria continuar ali e ela iria para casa, iria para a cama:
mais uma noite de lubricidade com os dedos e culpa posterior. Ficou
acelerada, desesperada. Se era para ter culpa, que fosse de algo que
realmente valesse a pena, pensou.
Dentro do peito, as batidas aflitas. Saiu em disparada atrás de Reginaldo.
Demorou um tempo para encontrá-lo, sentado em uma mureta próxima à
piscina, conversando com amigos, bebendo. Ela disse que precisava falar
com ele, apanhou-o pelo braço e saiu sem rumo. Não sabia o que queria
direito, não conseguia atinar as ideias, mas sabia que tinha pouquíssimo
tempo. O rapaz balbuciava, não entendia o que estava acontecendo — mas
era uma garota que o conduzia, uma garota bonita, que ele já tinha beijado,
então deixou.
Entraram por uma porta ao lado da casa de máquinas da piscina, Carol
enfiou a língua na boca dele — mas não gostou, estava com um gosto
horrível de cerveja. Levou a mão e agarrou o pinto do moleque, sobre a
calça, que estava endurecendo. Levou a outra mão, abriu a braguilha, tirou
o pinto para fora, arqueou o corpo e o levou à boca, fazendo igual aos
filminhos que tinha visto com a Júlia. Durou um minuto: Reginaldo espirrou
uma gosminha rala na boca da garota. Ela engoliu com gosto, limpou a boca
com as costas das mãos, abriu um sorriso satisfeito, o coração voltando ao
normal.
A festa tinha acabado para ela, foi para o portão esperar pela mãe, deixou
o Reginaldo lá no escuro, com a boca aberta de espanto e o pau para fora,
pingando.
Assim, antes dos quinze anos, começou a fama de Carol, a Rainha do
Boquete do Colégio Dom Aloísio de Oliveira Guimarães.
Fraguinha
“Não é fácil ser filho de pastores” — esse era o mantra de Fraguinha,
frase cunhada tão logo aprendeu a articular ideias.
Ele tinha razão. Ser o exemplo de exatidão, retidão e conduta cristã,
desde a mais tenra idade, tinha um custo muito alto. Significava rotina
rígida, educação austera, privações de todos os tipos. Quando os pais, o
pastor Fraga e a pastora Alaíde, fundaram a Igreja, ele tinha três anos — e a
família era bem pobre. O pai contava que um anjo apareceu-lhe numa
madrugada, pedindo que fundasse a sua própria denominação para a
salvação da humanidade. O tal anjo havia confirmado a ideia, que Fraga
também partilhava, de que sexo era uma coisa suja, só destinada à
procriação; que a oração e a adoração deviam tomar pelo menos duas
horas do cotidiano das pessoas, sob quaisquer circunstâncias; que o dia do
juízo final viria nos próximos cinquenta anos e que a criança que nasceria
de seu filho, o Fraguinha, seria o salvador da humanidade. Ou um dos
salvadores, isso não tinha ficado muito claro. Mas seria o seu neto um dos
condutores, através de sua Igreja, da salvação de todos os seres; uma
espécie de “novo Noé”, algo assim. Muito tempo depois, o próprio
Fraguinha diagnosticou o pai como esquizofrênico, mas era tarde.
A última parte da profecia do pastor havia colocado Fraguinha no centro
da igreja, justamente como exemplo dos ensinamentos. Conforme o garoto
foi crescendo, junto com a igreja, essa parte foi sendo deixada meio de lado.
O dinheiro estava entrando, alugaram um salão maior para os cultos,
depois construíram um templo grande. E uma casa grande, para a família,
em um condomínio fechado. E compraram carros. E blindaram os carros. E
mandaram Fraguinha para um internato evangélico austero, na capital. Ele
tinha doze anos, conhecia trechos inteiros da Bíblia de cor, todas as orações
e salmos e todos os preceitos estapafúrdios que orientavam a doutrina do
pai, os fundamentos da Grande Igreja da Santidade Triangular. No internato
da capital, só para garotos, conheceu os esquemas de poder, de
relacionamento social, de abuso e das injustiças de Deus: os mais fortes
sempre levavam vantagem, os mais articulados conheciam favores, os mais
ricos subornavam. Ele foi seviciado, obrigado a abusar de outros, castigado
com crueldade por seus cuidadores; aprendeu a corromper e a se deixar
corromper. E foi obrigado a dizer sempre “Amém”.
Nos cinco anos que Fraguinha ficou no internato, tornou-se um homem
completo, com uma visão total do mundo. A sua visão. Na verdade, não era
muito diferente de seu pai; talvez ambos tivessem o mesmo tipo de
transtorno mental, algo genético: ele via o mundo de uma maneira muito
específica e isso o colocava como o centro do Universo. Podia bem ser
classificado como sociopata — e sabia disso. Adquiriu uma visão objetiva
de si mesmo.
O período em que esteve no internato foi também de grande
desenvolvimento físico, de esmero nas aulas de educação física — já que
sabia que o mundo era dos mais fortes. Desenvolveu um corpo atlético, de
músculos definidos. Quando saiu, não quis mais estudar: foi ajudar os pais
na construção e expansão da Grande Igreja da Santidade Triangular —
sabia que ali estava um instrumento de dinheiro e poder.
Outra coisa que sabia era que não gostava de mulheres. Achava-as fracas,
opacas, sem capacidade intelectual, ingênuas. Os anos de dominação no
internato formaram nele um tipo de gosto sexual que podia ser chamado de
sadomasoquista — e ele também sabia disso, mas tinha uma teoria
amparada na doutrina cristã para seu comportamento sexual: sempre
evocava para si Efésios ou Colossenses. Mas antes de ser um ser sexual,
Fraguinha tinha um grande autocontrole: nunca pensava em sexo; sexo não
estava em sua pauta, só o poder, a dominação e o dinheiro.
Depois que deixou o internato, teve uma postura de observação e
avaliação de tudo. Viu e estudou como funcionava o trânsito de dinheiro
dentro da Igreja, como era feito o pagamento de propinas a fiscais de todos
os tipos, como ficavam os impostos, como era a contabilidade. Descobriu
que o escritório de contabilidade estava desviando dinheiro e decidiu
contratar um contador para ter um controle maior sobre as finanças.
Conversou com o pai, que gostou do envolvimento do filho. Na verdade,
Fraguinha queria ter o domínio total sobre as finanças, preparava a sua
tomada de posse irrestrita. Sua importância foi crescendo dentro da Igreja
ao longo de vinte anos.
Durante um culto, pai e filho anunciaram: procuravam contadores para
trabalhar na Igreja — foi ideia de Fraguinha. Algumas pessoas se
ofereceram, Fraguinha falou com elas, mas achou que nenhuma tinha o
perfil que procurava. Nesse culto estava o Santino, ex-presidiário que havia
encontrado Jesus. Ele tinha um amigo que sabia tudo sobre contabilidade,
igualmente ex-presidiário, que estava procurando uma oportunidade de
reintegração na sociedade.
Foi assim que Fraguinha conheceu Vermelho.
Vermelho
André Cardoso, ruivo como o fogo, de família humilde e apelidado de
Vermelho logo quando apareceram os primeiros fios de cabelo, tinha sido
um aluno exemplar. Com dezessete anos concluiu o colégio e prestou
vestibular para Ciências Contábeis, em faculdade pública, passando em
primeiro lugar. Comemorou os dezoito anos com a família, durante as férias
de dezembro, em Ubatuba. Todos vislumbravam um horizonte brilhante
para ele. Tudo ia bem, muito bem.
Numa tarde qualquer, ainda durante as férias, antes de começar a
faculdade, comprou umas cervejas e foi visitar um amigo, o Sandrinho, um
ano mais novo. Assim que chegou, notou que o Sandrinho estava com uma
amiga em casa, a Laura, da mesma idade. E não havia mais ninguém por lá,
os pais do amigo tinham saído.
Quis ir embora, achou que estivesse incomodando, mas os dois,
Sandrinho e Laura, pediram que ele ficasse. A Laura era desinibida, estava
com uma saia curtinha, andava para lá e para cá, cantava, distribuía energia
sexual. Todos beberam as cervejas que Vermelho levou.
O sol estava alto, era verão, os meninos tiraram as camisetas — e
Laurinha disse que também ia tirar. Todos riram e se animaram e ela subia
e descia a camiseta sem mangas, deixando que os meninos vissem seu
umbigo, o início do vão do colo. Não era uma menina bonita, mas era bem-
acabada, magra falsa, cabelos negros escorridos, aparelho nos dentes. Fazia
o tipo safadinha.
Como também havia bebido e estava um pouco zonza, Laurinha jogou-se
no sofá depois da brincadeira da blusa, abrindo um pouco as pernas.
Vermelho era o mais sério entre eles e o único que não era mais virgem: já
tinha pegado uma prostituta bancada pelo pai. Ele observava com atenção a
excitação de Sandrinho, que tinha o pau visivelmente tinindo dentro da
calça.
De súbito, a menina disse que estava ficando tarde e que precisava ir
embora — mas antes tinha que ir ao banheiro. Foi quando Sandrinho falou
com Vermelho.
— Essa menina tá louca pra dar. A gente vai deixar ela ir embora? Ela vai
dizer pra todo mundo que veio aqui, esfregou-se na nossa cara e nós não
fizemos nada.
— Eu não...
— Ela está só esperando que a gente pule em cima dela!
Eles estavam bêbados. E assim que Laurinha saiu, Sandrinho a agarrou,
pedindo ajuda a Vermelho. Vermelho a segurou e Sandrinho tirou o pau
para fora. Vermelho quis participar daquilo, animado com a visão do pau
intumescido do amigo.
Depois de bons minutos de abuso, quando a menina se deixou abater e
Vermelho caiu estirado no tapete, um pouco pela bebida e muito pelo
esforço de ter segurado Laura, e Sandrinho estava desnorteado pelo gozo,
ela conseguiu se levantar e correr para a porta. Estava sem roupa e assim
ganhou a rua, gritando. Um carro parou, os vizinhos saíram, Vermelho e
Sandrinho enfiaram-se nervosos dentro de suas roupas. A polícia chegou
logo.
Foram todos para a delegacia, onde dois policiais e um garoto, aprendiz
de repórter policial, curraram ambos, Sandrinho e Vermelho, a pedido do
pai da menina, um conhecido comerciante local. Sandrinho, menor de
idade, foi liberado, mas Vermelho foi recolhido por seis meses. Passou
quase duzentos dias na cadeia, onde foi submetido a todos os abusos
imagináveis pelos presos da cela dezenove, a maioria composta por
criminosos sexuais.
O episódio marcou a vida de todos, especialmente a de Vermelho, o
brilhante estudante. A família o renegou, os amigos sumiram e ele,
envergonhado de tudo, só encontrou abrigo com uma prostituta, aquela
com quem tivera a sua primeira experiência sexual. Ninguém sabia o
verdadeiro nome dela, era conhecida na zona por Sara Kubitcheca.
Vermelho virou protegido de Sara, tornando-se, na sequência,
administrador da casa Recanto Drinks. Sua experiência com números fez
com que os negócios progredissem no puteiro. Em alguns momentos,
Vermelho parecia até mesmo feliz, vivendo em um dos aposentos da casa,
juntando algum dinheiro. Mas dentro dele crescia o ódio e o desejo de
vingança. Especialmente contra aquele aprendiz de repórter que abusara
dele na delegacia. Ele acompanhou a carreira de jornalista daquele garoto,
viu-o crescer como alguém importante dentro da imprensa da cidade. Lia
suas matérias, recortava-as, colecionava. Todos os seus dias foram
cadenciados por aquele nome: Geraldo Assis.
Geraldo Assis
Geraldo Assis começou cedo no jornalismo policial. Com doze anos ficava
ouvindo, com atenção demasiada, as notícias no rádio. Gostava do jeito
como o locutor Castanheira Júnior contava os causos e notícias. A
dramaticidade, os pormenores. Depois imitava.
O pai de Geraldo era alfaiate, tinha feito umas camisas para Castanheira.
E conseguiu que o locutor o recebesse, com o filho. Foi um dos dias mais
felizes da vida do garoto. Geraldo tinha catorze — e com quinze anos estava
ajudando Castanheira, em um estágio não remunerado na emissora. Um dia
foi designado para cobrir um acidente de trânsito, um repórter havia
faltado. Castanheira chamou um táxi, entregou o pesado gravador de rolo
para o garoto e... não é que ele se saiu muito bem? Passou a repórter
policial.
Alto e magricela, Geraldo vivia para a rádio, para as coberturas policiais.
Praticamente abandonou os estudos: visitava delegacias, frequentava
reuniões de policiais, ia a churrascos da PM. Não tinha interesse em
garotas, não tinha amigos que não fossem tiras, gambés, guardas
municipais. E Castanheira. Não gostava nem dos outros locutores ou do
pessoal da rádio: achava gente besta, interessada em música besta, uma
turma vaidosa e mais ligada em status que em trabalho. Ele estava
interessado em trabalho — trabalho que, no caso, era chegar sempre
primeiro nas ocorrências, levantar as circunstâncias, descobrir detalhes,
entrevistar envolvidos. Tinha nascido para aquilo.
Um dia apanharam dois garotos que haviam estuprado uma jovem. Era
filha de um comerciante, uma menina bonita de dezesseis ou dezessete
anos. Os garotos chamaram a garota para a casa de um deles, os pais
estavam viajando. Deram bebida para a menina e a molestaram. Com medo
do que podia acontecer, um deles ameaçou-a e bateu nela. A garota
conseguiu escapar, fez um escândalo na rua e logo a polícia chegou e
apanhou os rapazes. Um era menor, o outro era maior de idade. Enquanto
os PMs falavam com os suspeitos, o pai dela chegou. Queria matar os
garotos, os policiais não deixaram. Geraldo viu uma conversa estranha
entre o pai e os PMs.
Na delegacia, antes de contatar os pais dos garotos, os policiais levaram
os dois para uma salinha nos fundos. Um dos PMs chamou Geraldo.
— Nós vamos comer os moleques.
Geraldo foi junto. Foi sua primeira grande matéria para a rádio, mas ele
não contou sobre a curra, claro. Aquela foi também sua iniciação sexual.
Sara Kubitcheca
Sara Cristina de Almeida nasceu em Goiânia, a família foi para Brasília
em busca de oportunidades quando ela tinha sete anos. Era a mais nova de
três irmãs: havia ainda Márcia e a Maria Estela, com nove e dez anos.
A mãe era analfabeta, o pai era mestre de obras, fã do Juscelino, o
“grande incentivador da construção civil no Brasil”. Brasília se expandia,
vivendo dias de migração. Muita casa para fazer, muito prédio para erguer,
seu Joselito, o pai, ganhava dinheiro. Não muito, mas o suficiente para dar
boas condições para todas. Foi quando aconteceu a febre do ouro de Serra
Pelada.
Todo mundo começou a subir para a Serra, à procura de pepitas. E muita
gente estava, de fato, encontrando-as. Joselito fez um caixa, deixou um bom
dinheiro para a esposa e foi para o garimpo. Nunca mais voltou. Na última
carta, dava instruções claras para as meninas, já que a mulher não sabia ler:
a vida estava por conta delas. Elas bem podiam considerar pintar a casa de
vermelho, botar uma lâmpada vermelha na porta, e atender alguns homens.
Nada havia de errado naquilo, já que era a única maneira de ganhar algum
dinheiro. Quando as meninas contaram para a mãe a sugestão do pai, ela
acatou. A mãe ficaria na administração da casa, oferecendo cerveja, beliscos
e as próprias filhas para os abastados trabalhadores braçais do Planalto
Central. Era mesmo a única opção.
Mas as três garotas ainda eram menores de idade. Maria Estela, a mais
velha, estava prestes a completar dezessete. A mãe considerou, dentro de
sua lógica restrita: mal não deve fazer. A casa vermelha, da rua Piauí,
número 493, na Asa Norte, tornou-se uma das mais frequentadas da cidade.
Sara começava na vida com catorze.
Aí tudo aconteceu rápido demais: as irmãs começaram a emprenhar;
homens, que não iam mais embora, começaram a mandar na casa; a mãe
adoeceu e morreu em cinco anos. Com vinte e cinco, Sara era experiente
para saber que Brasília não dava mais futuro. E sabia também que devia ter
algum problema físico que a impedia de engravidar. Era infértil — essa era
outra certeza.
Com o sonho de ser mãe, através de algum método científico moderno, e
de ter uma vida decente, decidiu deixar tudo ali e ir para o real centro do
país: São Paulo. Queria encontrar um emprego e um cara legal, fazer um
tratamento médico para engravidar. Mas descobriu, assim que chegou, que
a capital era muito grande e assustadora para ela. Escolheu, então, na
sequência, uma cidade de médio porte, no interior do estado.
Foi, mas não conseguiu atingir quaisquer metas de seus sonhos. Era
limitada demais, ignorante demais para trabalhar em qualquer coisa que
fosse. Só conhecia homens e paus e suores e hálitos fedidos. E sabia como
faturar em cima disso, tinha essa experiência.
Procurou uma casa de má fama na cidade e jogou a âncora. Como
conhecia o riscado como ninguém, logo virou sócia. Depois patroa. A
ascensão coincidiu com seu declínio físico precoce. Não era feia nem gorda,
mas exalava aquele ar de mulher rodada demais.
A crise aconteceu quando os travestis começaram a dominar o espaço
historicamente dedicado a casas de meninas, no centro da cidade. Ela ainda
resistiu por um tempo, mas teve que sair. A situação coincidiu com a
chegada daquele garoto, o Vermelho, que ela tinha descabaçado há tempos
e que sabia como ganhar dinheiro. Ela fez dele filho e marido. E mudou,
com ele, o Recanto Drinks para a área rural. E Vermelho mostrou para ela
como faturar ainda mais com aquele negócio decadente.
Carol e Fraguinha
O avanço sexual de Carol apontava para uma carência de menina
mimada. Tornou-se uma devoradora de garotos do colégio, embora
mantivesse uma postura de garota íntegra, religiosa e vaidosa. Vestia-se
muito bem, tinha as melhores amigas, todas da mais alta sociedade. Ia aos
cultos dominicais, trabalhava nos eventos sociais da igreja, estava sempre
disponível para as atividades religiosas. Ia crescendo e encorpando,
virando uma mulher vistosa e atraente. Com dezessete, conhecia bem os
homens e o sexo. Foi quando teve a oportunidade de um contato mais
próximo com Fraguinha.
Em uma tarde de adoração, Fraguinha, já batendo nos quarenta e oito
anos e preocupado com a pressão dos pais para se casar e ter um filho, viu
aquela garota jovem e linda, que estava sempre por ali com a Bíblia em
mãos. Ele se aproximou e conversaram um pouco. Não foram mais que
cinco minutos e a proposta veio, direta e fulminante, para espanto da
garota:
— Quero te levar para conhecer meus pais. Quem sabe não podemos ter
um futuro?
Carol ficou confusa. Um futuro? Mas aceitou. Marcaram para o próximo
domingo, ali mesmo, na igreja. Ela devia chegar por volta das três da tarde,
ele ia marcar com os pais.
Quando ficou sabendo, Virgínia exultou. A diferença de idade era brutal,
mas isso podia não ser exatamente um ponto desfavorável. Dentro de sua
lógica particular, Virgínia pensou que a filha iria ter uma vida abastada e
que podia se tornar uma viúva rica ou, na pior das hipóteses, podia fazer
um belo pé de meia durante um tempo e depois deixar o velho filho do
pastor. Carol era jovem e dez anos passam assustadoramente rápido. Vinte
anos passam assustadoramente rápido, ela sabia. E incentivou a filha.
— Mas, mãe... Eu quero curtir a vida, viajar, conhecer pessoas. E também
quero estudar, fazer faculdade, quem sabe Jornalismo...
A mãe estremeceu. Lembrou-se dos tempos de faculdade, das bebedeiras
e ressacas e orgias e da chatice das pesquisas, dos estudos, dos professores
ensebados. Depois, do trabalho em si, dos jornalistas egocêntricos e
metidos, do chefe machista e tarado. E do salário de merda. E das coisas
terríveis que via no dia a dia do jornalismo, nas ruas.
— Pense no futuro, minha filha. O pastor Fraguinha pode te dar a vida
que toda mulher sonha.
A filha considerou. E ela bem que achava o pastor bonito e magnético.
No dia combinado, a mãe a vestiu com sobriedade, conversou com ela,
pediu que ela mais ouvisse do que falasse. Depois, as duas iriam avaliar o
que havia sido dito. Levou a filha até a igreja para a tal conversa, deixou-a
na porta e ficou esperando.
Fraguinha não estava lá. Um homem recebeu Carol e a levou até um
aposento nos fundos da igreja, onde havia uma cadeira e, diante da cadeira,
um sofá de três lugares. Ele apontou, para que Carol sentasse na cadeira, e
disse que os pastores já viriam. Ela ficou lá, parada, apreensiva, quando
entraram os dois, o pastor Fraga e a pastora Alaíde, e sentaram no sofá,
cada um em uma ponta. Por um instante, Carol achou que o lugar vago, no
centro, seria de Fraguinha, mas logo percebeu que aquele lugar era a
distância que o casal mantinha um do outro, respeitosamente.
Eles fitaram a garota durante alguns instantes, até que a pastora abriu
um sorriso e iniciou a conversa.
— Oi, Carol. Nosso filho gosta muito de você, disse que te observa há
algum tempo e acha que você também gosta dele. É verdade?
Era um interrogatório. Pensando na mãe, Carol preferiu responder com
monossílabos.
— Sim.
— Nós conhecemos você e sua família, sabemos que são fiéis em nossa
congregação há muito tempo. E ficamos muito felizes que nosso filho tenha
se interessado por uma... das nossas.
Carol meneou a cabeça, sem saber o que dizer. Isso era ainda melhor que
monossílabos.
— Você gosta da nossa igreja e pretende continuar fiel aos nossos ideais?
— Sim.
— Você sabe que o pastor Fraga teve uma revelação de que o nosso neto
será o continuador da nossa Igreja, o salvador da Humanidade, e um grande
peso estará sobre os seus ombros?
O pastor Fraga estava ali, afundado no sofá, como se tudo aquilo não
fosse com ele, com uma cara amorfa, talvez cochilando atrás dos óculos
grossos.
— Sim.
A apreensão crescia e uma pequena ânsia de vômito parecia chegar a
Carol. Ela se sentia desconfortável na cadeira dura, diante daqueles dois
pesos mortos sobre o sofá. Por um instante, achou que Fraguinha
observava tudo de algum lugar estratégico, talvez estivesse mesmo atrás
dela, assistindo à conversa.
— Você sonha em ter filhos, Carol?
— Sim — respondeu, titubeante. Na verdade, nunca havia pensado
naquilo.
— É uma questão importante, queremos que nosso neto seja criado
dentro da Igreja e preparado para ser um pastor, como o nosso filho.
— ...
— Se você aceitar, bem, namorar com o nosso filho e vier a se casar com
ele, acha que pode ter um filho que vá continuar o nosso trabalho?
Carol hesitou ainda mais. A pergunta envolvia várias condicionais que
faziam parte de um futuro distante. Não era apenas uma conversa para ver
se ela satisfazia a expectativa dos dois, se poderia haver um namoro, uma
aproximação entre Fraguinha e Carol. Já estavam fazendo planos para seu
filho homem, que ela sequer sabia se ia nascer um dia. Arriscou:
— Mas... E se o filho não for homem?
O pastor Fraga tossiu seco, a pastora emendou:
— Querida, conhecemos alguns desígnios de Deus. Além do mais, está na
Bíblia. E o meu marido viu isso em sonhos. O filho do nosso filho será
homem e irá conduzir a Humanidade pelo melhor caminho. Palavra da
salvação!
O pastor juntou as mãos e fechou os olhos — ou o que dava para ver de
seus olhos atrás daquelas lentes. Carol também fechou os seus — de medo.
A pastora achou que fosse resignação.
— Acho que podemos observar as coisas, ver como tudo vai caminhar,
Carol. Gostamos de você, sabemos que é uma menina direita, justa e fiel. Eu
e meu marido aceitamos que você e nosso filho se conheçam melhor. E
vamos orar para que tudo caminhe bem.
— ...
— Mas, para que tudo se confirme, para que toda profecia se cumpra e
para que você possa desposá-lo e ter o filho que irá nos conduzir à salvação
você precisa...
— ...
— Você, minha filha, você precisa...
— ...
— Ser virgem.
Carol gelou.
— Você é virgem, não é, minha filha?
— Sim.
Ela mentiu com temor, mas com uma ponta de satisfação.
Fraguinha e Vermelho
Pode-se dizer que foi amor à primeira vista. Fraguinha estava sentado
em seu escritório, na igreja, entrevistando candidatos para a vaga de
contador. Todos pareciam sérios demais para ele, para o que ele desejava
de verdade: a autonomia das contas, o desvio do dinheiro. Primeiro, tudo
devia parecer bastante honesto para os pais. A cota de 40 por cento do total
arrecadado ia para uma conta secreta dos pais, em nome de um laranja — e
isso, é claro, devia continuar. Os outros 60 por cento eram para a
manutenção da Igreja, para alguns auxílios sociais e para as altas despesas
da família. A ideia de Fraguinha era otimizar tudo, negociar reduções de
despesas, subornar algumas pessoas, conseguir uns 20 por cento desses 60
para uma conta dele, em nome de um outro laranja que ele escolhesse —
talvez o próprio contador. Mas devia ser alguém de confiança. De confiança
— e não necessariamente honesto.
Quando Vermelho entrou na sala, conduzido por Santino, Fraguinha
corou — ele não corava desde o dia em que tomou banho com um amigo no
internato e o rapaz, de treze anos, igualmente ruivinho, disse que o amava.
Vermelho era um homem bonito e imponente, com viço — mas, claro, longe
de ser um garoto. Um pensamento fugidio de Fraguinha foi que aquele
homem podia fazê-lo feliz. Restava saber se ele entendia mesmo de
números.
Vermelho se sentou e começaram a conversa. Em alguns minutos,
Fraguinha teve que pedir para que Santino saísse. Eles iam começar a falar,
de fato, sobre valores reais. Santino obedeceu e Fraguinha se abriu.
— Quero enxugar essas contas, quero parar de pagar uns impostos,
quero renegociar uns subornos e desviar uma grana. Você está comigo
nessa?
O fato era que Vermelho estava bastante impressionado com Fraguinha.
Vermelho encontrava-se diante de alguém importante, influente, poderoso,
rico e que reunia todas aquelas características que, estranhamente, o
atraíam sexualmente: era alto, grandalhão, uns bons quilinhos acima do
peso e parecia ser bastante peludo e bruto por debaixo do paletó.
Imaginou, dentro de sua mente racional e de sua capacidade assertiva, que
podia ficar com esse homem para o resto de seus dias. Com ou sem sexo.
A tensão sexual podia ser sentida por alguém que estivesse ali. Mas, além
disso, havia em ambos uma vontade de independência e uma sede por
poder que os unia.
Vermelho podia continuar ajudando Sara e o Recanto Drinks.
E podia trabalhar, durante o dia, na administração da Igreja, pensou.
Aceitou o salário e as condições oferecidas pelo novo patrão.
— Esse dinheiro... que será desviado...
— Realocado — corrigiu Fraguinha.
— Realocado... Você pensa em aplicá-lo?
Era uma boa pergunta. Fraguinha não tinha pensado nisso, mas achava
que um fundo de renda fixa seria o mais indicado.
— Pode ser — considerou Vermelho —, mas acho que é possível
multiplicar esse dinheiro de maneira considerável.
Fraguinha arqueou as sobrancelhas.
— Como?
— Com drogas — respondeu Vermelho. — Com drogas?
Carol e Reginaldo
Tão logo terminou a conversa com os pastores, Carol ganhou a rua e
entrou no carro da mãe, que cochilava — mas acordou curiosa. Carol
parecia meio em choque e a mãe não parava de fazer perguntas. Carol
apenas disse que as coisas estavam indo rápido demais, que os pastores
falaram em casamento e em filhos — ou melhor, em filho e não era
qualquer filho — e ela não estava exatamente animada em se casar com um
cara trinta anos mais velho do que ela. Virgínia achou melhor não forçar a
barra naquele momento.
Em casa, Carol ligou para Reginaldo, chamou-o para tomar um lanche à
noite. Informou a mãe que não ia ao culto, que ia sair com uns amigos. Sim,
pensou Virgínia, era tudo estranho e rápido demais para ela, era bom que
espairecesse um pouco.
Reginaldo tinha acabado de ganhar um carro do pai, presente de
aniversário de dezoito anos, um carro negro, importado e grande, com um
som fantástico. Foi estacionar em frente ao casarão da família para todo
mundo saber que ele tinha chegado.
Carol deu um beijo na mãe e procurou o pai, mas o doutor Júlio estava
em mais uma reunião da maçonaria, uma daquelas reuniões de domingo,
onde os bodes decidem o destino da Humanidade.
Carol entrou no carro e, com ela, seu perfume delicioso que denunciava o
que Reginaldo já sabia: ela queria foder. Não iria ligar, convidando para um
lanche, se não quisesse trepar. E bastou entrar no carro, com aquele vestido
esvoaçante e aquele cheiro de volúpia, para Reginaldo sacar que a noite ia
ser boa.
Andaram um pouco pelo centro da cidade, passaram por alguns bares,
Carol dizendo “esse não, aquele não”.
— Vamos pegar umas bebidas e cair na estrada, que tal?
A sugestão de Reginaldo foi acatada pela Carol: apanharam um litro de
vodca, gelo e alguns copos plásticos em uma loja de conveniência. Logo
estavam em uma rodovia, ouvindo rock no volume máximo e entorpecendo
os sentidos.
A noite estava quente e Reginaldo abriu o teto solar. Em um trecho
especialmente escuro da rodovia, parou no acostamento. Desligou o carro,
ficou em pé em seu banco, tirando o tronco para fora, através do teto solar.
Deu um urro para a lua. Carol sabia o que fazer: desabotoou a braguilha do
rapaz e o chupou. Quando estava prestes a gozar, ele a empurrou, deslizou
pelo teto solar e arrancou a calcinha de Carol. Partiram para o banco de
trás, onde foderam por cerca de vinte minutos, entre goles de vodca que
caíam no assento ainda plastificado, cheirando a carro zero.
Na volta para a cidade, bem bêbados e com o som ainda rolando alto,
Carol tentou conversar.
— Regi, tem um filho da puta de um cara que quer casar comigo.
— Porra.
— É, o cara tá louco, quer casar comigo de to-do jei-to.
— Manda ele se foder, caralho.
— Mas... O cara é rico pra ca-ce-te.
Carol falava separando as sílabas do final da frase quando estava bêbada.
— Puta que pariu! Dá um golpe nesse viado.
— O cara quer casar comigo, esse fi-lho-da-pu-ta!
— Porra, casa com esse filho da puta então, Carol.
— Mas porra, o cara é bem mais velho que eu. Bem-mais-ve-lho!
— Porra, casa e mata o filho da puta!
Os dois riram.
— O cara quer casar comigo, ca-ra-lho!
— Você deve ter dado uma chave de buceta no cara, hein, Carol?
Reginaldo riu, Carol não.
— Ué, que foi? Vai me dizer que o cara quer casar com você e nem te
pegou ainda?
— O cara quer casar comigo, porra!
Carol repetia a frase, meio fora de si.
— E você ainda não trepou com ele, Carol?
Ela ficou quieta, com um ar triste e pensativo.
— Esse é um dos problemas, Regi. O cara quer casar, mas acha que eu
sou virgem. Vir-gem, ca-ra-lho!
— Porra, e você quer casar com o cara?
— Tô pensando nisso, caralho. Mas eu não sou mais vir-gem, por-ra!
— Porra, Carol. Vai te fuder. Costura essa porra de buceta e fica virgem
de novo, caralho.
Uma luz acendeu na cabeça da menina.
Segunda parte: As reformas
A sede da Grande Igreja da Santidade Triangular ficava na região central
da cidade, no local onde havia funcionado o maior cinema da região. A
fachada era pintada de um amarelo opaco e uma espécie de outdoor, grande
e colorido, fazia a propaganda: “Sejam bem-vindos à Grande Igreja da
Santidade Triangular, onde você encontra o Pai, o Filho e o Espírito Santo.”
Do lado direito do outdoor tinha uma foto grande do pastor Fraga, de terno
preto e com uma Bíblia na mão esquerda; na outra ponta, em uma foto
menor, estava a pastora Alaíde, muito maquiada e com um despropositado
vestido florido. Mais no canto, abaixo da pastora Alaíde, em foto ainda
menor, estava Fraguinha, com um paletó bege e sem gravata. Em letras
pequenas, abaixo de Fraguinha, podia-se ler: “Um dia, Ele voltará para
júbilo dos que creem! (Isaías, 3,25)” O outdoor feio e cafona tinha mais de
dez anos e estava desbotado, Fraguinha queria trocar aquilo, colocar algo
mais chamativo, mais bonito, mais moderno.
— Meu filho, logo tudo isso será seu, você continuará o nosso trabalho.
Mas acho importante que você considere que os fiéis não podem achar que
estamos gastando o dinheiro das doações com futilidades.
— Isso não é futilidade, pai, é marketing! — tentava explicar Fraguinha.
— Eu não entendo disso, mas acho que a maior propaganda que
podemos fazer é a nossa postura de humildade e dedicação: é isso que o
povo vê e aprova.
O povo, no caso, não conhecia profundamente a vida abastada daquela
família — e isso era bom. A mansão em que moravam ficava no melhor
condomínio fechado da cidade e tinha sete funcionários. Os pastores não
sabiam dirigir, tinham dois motoristas à disposição o dia todo. Na Igreja, da
administração até o curso de novos pastores, eram quinze funcionários.
Havia ainda uma organização de voluntários para diversas tarefas, muitas
delas servindo a interesses pessoais da família de pastores. Entre as tarefas
e obrigações diárias do pastor Fraga e de seu séquito, estava a supervisão
de cinco igrejas espalhadas pela periferia da cidade e de quarenta e duas
igrejas espalhadas pelo Brasil — e a denominação só crescia, como um bolo
fermentado dentro do forno. Só na cidade, a arrecadação com donativos
chegava a impressionantes sete mil reais por dia, o que dava cerca de
duzentos mil reais por mês. As outras quarenta e duas filiais enviavam
mensalmente, para os cofres do pastor Fraga, cerca de dois milhões de
reais, descontados os custos operacionais. Menos de 10 por cento de todo
esse valor era suficiente para as despesas totais da Igreja, incluindo os
aluguéis dos seis templos na cidade.
O velho Fraga tinha ainda um acordo — que ele chamava de “convênio”
— com a prefeitura. Na verdade era só um acordo escuso com o prefeito:
para não criticar ou não falar mal da prefeitura durante os cultos, recebia
um depósito de trinta mil reais por mês. Rigorosamente 40 por cento de
tudo o que era arrecado com doações nos templos ia para uma conta
secreta do pastor; conta que só os três membros da família conheciam.
Fraguinha chegava à sede da Igreja bem cedo, por volta de sete da
manhã, e ficava até o culto diário mais importante, o das sete e meia da
noite. Geralmente, acompanhava a abertura dos trabalhos do culto, falava
algumas palavras e saía. Algumas vezes, apanhava o carro blindado e
passava pelas outras unidades da Igreja para falar com fiéis da periferia e
para ver como estava o culto naquelas unidades, dar uma olhada na
arrecadação do dízimo, ver se os pastores não estavam roubando nada. Só
lá pelas dez e meia da noite é que ia para casa, direto para o quarto, onde
jantava — o pessoal da cozinha preparava o cardápio que ele indicava,
geralmente frango, salada e arroz integral. Ele tomava um ou fazia um
pouco de exercícios na sua academia privada, que ficava contígua ao
quarto. Por volta da uma da manhã, quase todos os dias, ligava o laptop,
pesquisava um pouco sobre outras denominações religiosas e entrava num
chat fechado, que debatia a expansão das igrejas evangélicas no Brasil.
Eventualmente, via um pouco de putaria no site “Men and Boys”.
O ritmo de Fraguinha era frenético, ele não tinha vida social, não tinha
amigos, não fazia nada a não ser cuidar dos negócios da Igreja, pensar
sobre a expansão da Igreja, imaginando novas maneiras de faturar ainda
mais. Em alguns momentos, achava que estava cansado daquilo, que devia
parar, pegar uma grana e fugir para algum lugar, Caribe, Tailândia, Grécia,
buscar o descanso, o remanso, um cara forte e bonito para chupar. Mas
sabia que era bastante saudável, tinha muita energia, podia deixar isso para
mais adiante, quando tivesse dinheiro suficiente para fazer tudo, tudo!, o
que realmente quisesse. Embora não soubesse, de maneira clara, o que era
aquele tudo.
Foi quando apareceu Vermelho e ele se interessou — primeiro,
fisicamente. Vermelho era um cara estranhamente mesmérico com aquela
cabeleira vermelha, aquelas mãos grandes, aquele jeito rústico de ex-
presidiário. Depois, o interesse recaiu sobre a direção para qual Vermelho
apontava: prostituição e tráfico de drogas. Aquilo não podia ser mais difícil
do que administrar uma Igreja. Mas era ilegal. A excitação por fazer algo
que explorasse e corrompesse ainda mais os outros foi um lampejo
brilhante na mente de Fraguinha. Ele ponderou se o seu interesse pela
Igreja não era, na verdade, uma forma de se vingar da sociedade, essa
sociedade burra e hipócrita. Fraguinha adorava ver aqueles fiéis tão
pobres, humildes e fodidos enfiando as mãos nos bolsos, tirando trocados
amassados e fedidos, tudo o que tinham, e colocando nas cestinhas
enquanto cantavam “Eu dou, Senhor, pois a vida tu me deste”, uma
composição tola que o pastor Fraga tinha escrito, segundo ele, também
inspirada por um anjo.
Explorar garotas através da prostituição e financiar o tráfico de drogas,
saber que esse povo nojento e imundo estaria enfiando a mão no bolso,
atrás dos últimos trocados, para comprar uma trepada com uma
desqualificada qualquer ou ainda uma pedra de crack, fazia o coração de
Fraguinha pular dentro do peito. Era excitação verdadeira; era emoção de
encher os olhos d’água.
Esse cara, o Vermelho, e esse novo horizonte, de sexo e drogas, deram a
Fraguinha um ânimo renovado. Sentia-se motivado, agitado. Mas ele tinha
esse problema, essa menina, a tal Carol, e a pressão dos pais para ter um
neto. Sabia que teria que lidar com isso, mas não sabia exatamente como.
Chegou a pensar em ter uma conversa bastante direta com a garota,
oferecer-lhe dinheiro, e contar que ele não estava nem um pouco
interessado nela, em sua virgindade ou numa porra de filho. Mas e se ela
fosse mesmo uma dessas crentes fervorosas? E se ela achasse que podia ser
a porra de uma nova Nossa Senhora, a porra da mãe de um novo Jesus?
Fraguinha foi conversar com o pai.
— Pai, eu vou pintar a igreja, vou mudar essa fachada horrível,
precisamos modernizar, vamos fazer novas fotos, vou criar um novo
logotipo, vamos inovar...
— Filho...
— Pai, eu entendo que o senhor não quer demonstrar que está gastando
o dinheiro dos fiéis de maneira irresponsável, mas não podemos ficar para
trás. Veja o que as igrejas estão fazendo, com programas em horário nobre
na TV, com boletos bancários e até pagamento de dízimo com cartão de
crédito! Não podemos caminhar tão devagar contra a tendência...
Fraga juntou as mãos e fechou os olhos, como se estivesse pensando
sobre o assunto, mas era só cansaço. Ele estava velho, sabia que não tinha
muito mais tempo de vida, não ia conseguir tocar as coisas do seu jeito para
sempre.
— Faça como bem entender, meu filho. Mas eu quero um neto em dois
anos. Case com a moça o mais rápido possível e nos dê um neto. E tudo será
seu.
— Sara, esse lugar está muito caído, precisamos dar uma ajeitada nesse
puteiro.
Sara lavava a louça da noite anterior, estavam apenas os dois na cozinha,
as meninas dormiam. Vermelho já tinha tocado nesse assunto antes, queria
reformar a casa, fazer um palco decente para os shows das meninas,
comprar umas poltronas mais confortáveis para os clientes e,
principalmente, pintar a fachada, colocar um letreiro luminoso. Era ele
quem controlava o dinheiro, cuidava das contas, mas Sara sabia que as
coisas não iam muito bem.
— Não temos dinheiro para isso, querido.
— Sara, a cada mês abre um puteiro melhor. Você devia dar um pulo na
casa da Amanda, ver o que ela fez por lá. Tem até máquina de fumaça.
Daqui a pouco ninguém vem mais aqui. As pessoas querem um lugar bonito
e sofisticado. Nossas meninas já não são grande coisa; se não tivermos um
ambiente agradável nossa receita vai cair ainda mais.
— ...
— Comecei a trabalhar lá na igreja, vai entrar uma graninha extra, acho
que podemos comprar umas tintas, nós mesmos pintamos, botamos as
meninas para ajudar...
O Recanto Drinks ficava a cerca de quinze quilômetros do centro da
cidade, em uma zona rural marcada pela plantação de laranjas. A estrada
era asfaltada, era bem fácil chegar ali. A área era grande, com uns dois mil
metros quadrados, com cerca de alambrado e um portão eletrônico
encimado por um letreiro pequeno, com o nome da casa, em neon azul.
Havia o estacionamento, em chão de terra batida. A casa, que antes era uma
casa de fazenda, tinha cômodos grandes e estrutura boa, mas conservava a
mesma pintura desde sempre, um amarelo que, um dia, tinha sido vívido.
Ao entrar, o cliente via um balcão do lado direito, onde funcionava o bar, e
um palquinho com cerca de trinta centímetros de altura, onde aconteciam
os strips. Entre o balcão e o palco não havia espaço para mais que cinco
mesinhas com quatro cadeiras cada uma. Adiante, no próximo cômodo,
ficava uma outra sala, que eles chamavam de “reservado”, onde havia mais
seis mesinhas. Ali, era mais escuro do que a sala principal e servia para que
as meninas fizessem o trabalho de entretenimento mais agressivo, com
aqueles que não queriam um programa, só queriam, digamos, “namorar e
beber”. Essa sala dava acesso para dois corredores que levavam aos
quartos, dois à direita e três à esquerda. Durante o dia, esses quartos eram
usados pelas dez meninas que trabalhavam ali. Mais adiante, seguindo pelo
corredor da esquerda, havia a despensa e a cozinha, aos quais os clientes, é
claro, não tinham acesso. Às cinco da tarde, todos os dias, as meninas
tinham que recolher seus pertences pessoais dos quartos, colocar em malas
ou sacolas, e levar para a casa da Sara, uma casinha bem menor, que ficava
nos fundos do terreno e tinha sido, antes, a residência do caseiro da
fazenda. Vermelho morava naquela casa com a Sara, mas cada um tinha seu
quarto. Em dia de grande movimento, geralmente em época de pagamento
ou véspera de feriado, Vermelho apanhava os pertences das meninas e de
Sara e trancava tudo dentro do seu carro, um Escort velho, liberando os
dois quartos da casinha para clientes. Era uma correria, mas funcionava.
A média de programas era de cem por semana, de segunda a domingo —
a casa abria religiosamente todos os dias. Isso dava um faturamento de
cerca de quarenta mil reais por mês. As meninas ficavam com 40 por cento
do valor do programa, uma inovação de Vermelho, já que Sara, antes,
pagava metade. Dos programas sobravam, então, cerca de vinte e quatro
mil reais por mês. A receita do bar era de cerca de três mil reais por
semana, o que gerava um total bruto em torno de trinta e cinco mil reais
por mês para Sara e Vermelho administrarem a coisa. Aí, havia a folha de
pagamento de propinas mensais para que a casa funcionasse: eram cinco
mil por mês para o delegado seccional, cinco mil para o comandante da
Polícia Militar, quatro mil para o secretário municipal de segurança, dois
mil para o fiscal da prefeitura, dois mil para os três policiais militares
encarregados pela área rural — eles davam uma mão na segurança dos
clientes, na chegada e saída, e eram chamados sempre que acontecia algum
problema: um cliente bêbado e agressivo, alguém que decidia sair sem
pagar. Por sorte — e por causa da amabilidade de Sara e da austeridade de
Vermelho —, os problemas eram poucos.
Havia ainda outra lista de pagamentos: dois seguranças, dois atendentes
do bar, uma cozinheira e um auxiliar. Computadas as compras mensais de
reposição, a alimentação das meninas, mais os pagamentos de telefone,
água, energia elétrica e o garoto nerd do site — que cobrava pouco e às
vezes se contentava com uma trepadinha — sobrava, no final, cinco ou seis
mil reais, que eram divididos entre Sara e Vermelho. Ou seja: era muito
trabalho para pouco dinheiro. Mas era o que tinham e o que sabiam fazer.
Entre a sugestão da reforma do lugar, a conversa com Sara e o convite de
Fraguinha para trabalhar na contabilidade da igreja, Vermelho conheceu
Ideia — o nome verdadeiro era Idalino —, um sujeito bem apessoado, de
carro importado, que frequentava o Recanto sempre acompanhado de
amigos mal-encarados. Numa noite, Ideia chamou Vermelho num canto e
fez a proposta: passar drogas na casa. Vermelho não era inocente, sabia que
havia, no puteiro, uma negociação tímida de drogas, especialmente de
cocaína: sempre tinha alguém passando um saquinho ou uma ampola, o
chamado “papel”, para outro por debaixo das mesas. Na medida do
possível, e desde que não fosse descarado, ele deixava, já que noiados de
cocaína consomem muita bebida e isso era bom para a casa — o lucro com
bebidas era maior do que o lucro com programas. Outros traficantes já
tinham feito propostas a Vermelho, se oferecendo para passar as drogas
com exclusividade no local, com comissão gorda para os proprietários. Sara
nunca quis e Vermelho sempre considerava o risco de voltar para a cadeia,
coisa que, definitivamente, ele não queria. Mas Ideia fez uma proposta que
pareceu mais interessante e mais lucrativa: ele deixaria certa quantidade
de flaconetes de cocaína com Vermelho e, na semana seguinte, passaria
para repor e receber o pagamento. Cada flaconete podia ser vendido a
trinta ou quarenta reais ali, mas ele cobraria, de Vermelho, apenas dez reais
de cada unidade.
— Cada pino — era como Ideia chamava o flaconete — custa cinco reais
para mim. Nas ruas eles são vendidos por vinte, aqui ele pode chegar a
quarenta. O sujeito está na zona, ele paga quarenta para dar umas
cafungadas e ficar mais macho. A gente sabe que esse sujeito vai beber
mais, mas não vai trepar. Eu tenho 100 por cento de lucro, você cobra
quanto quer e só paga o que vender. Que tal?
Vermelho fez as contas e achou interessante.
— Se você quiser comprar de mim, dá pra fazer ainda mais barato.
Por aquele preço, Vermelho sabia que devia ser uma droga chutada, uma
merda de pó. Mas que se foda, pensou.
Em sua mente privilegiada, Vermelho sacou que, se fosse passar drogas
ali era bom que o local estivesse mais bonito e ajeitado, para receber gente
com um pouco mais de dinheiro — pobre noiado é uma merda. Também
viu adiante e considerou que podiam dispensar umas duas ou três
meninas: já que o chapado de pó não trepa, dava para reduzir um pouco o
custo. Mas não sabia quanto podia vender, qual seria seu público
consumidor da droga. Teria que fazer um teste. Achava que valia a pena: o
que podia dar mais lucro que isso? Era um lucro de 400 por cento!
“Talvez só religião seja mais lucrativa”, considerou.
Só faltava convencer Sara. Primeiro a aceitar a reforma, depois o tráfico.
O céu estava bem azul, sem nuvens. O clima, quieto. Nem as folhas das
árvores balançavam. O sol estava quente, embora não fosse ainda sete da
manhã. Ninguém passava por ali, ninguém viu quando Vermelho abriu a
porta e saiu de dentro da casa, segurando um balde cheio.
Debaixo do outro braço, ele tinha uma brocha larga e nova. Olhou para os
lados, como se procurasse alguém, sentiu o ar fresco entrar em seus
pulmões e caminhou até a frente da casa principal. Estava agora bem diante
daquele amarelo esmaecido, que lhe causava enjoo. Olhou com cuidado. A
cor pálida, toda craquelada, era realmente horrível. Era uma casa sem vida,
sem cor, desbotada. O ânimo dele estava assim também.
Há muito tempo que ele queria isso, pintar a casa de vermelho, a sua cor,
o seu nome. Não era um pedido complicado, não havia nenhum sacrifício.
Sara não queria, gostava do amarelo, tinha trauma de casas pintadas de
vermelho. Mas ele ia pintar.
Colocou o balde no chão, enfiou a brocha, ergueu pelo cabo o máximo
que pôde. E começou a cobrir o amarelo com aquele vermelho escuro,
brilhante. A cor aderia totalmente à parede, que parecia sedenta. E ele ia
pintando, obstinado, enquanto a parede sugava.
Fazia já uns vinte minutos que ele estava ali, quando as meninas
começaram a acordar. Os pássaros cantavam, o sol batia forte e ele sabia
que o dia começava cedo no Recanto Drinks.
Não ligou para o barulho das primeiras janelas batendo, os primeiros
olhares curiosos de dentro da casa. Ouviu também um tilintar de xícaras e
seguiu firme em seu propósito. Pintava a casa de vermelho: era isso mesmo
o que ele estava fazendo.
Uma das garotas saiu. Viu-o coberto de respingos, olhou para a parede
vermelha e percebeu as moscas. Muitas. Cobrindo a parte pintada. Fitou
Vermelho e seus olhos vidrados. O olfato foi provocado em seguida, um
cheio podre. Ela entrou correndo em casa, segurando o vômito e o grito.
Quase toda a fachada estava vermelha e as moscas se amontoavam,
vindas de todos os lados. Ele estava respingado; o vermelho misturado ao
ruivo dos cabelos e da barba por fazer. Estalou a língua e sentiu um gosto
ruim na boca, gosto de bílis, metálico. Os carros da polícia chegaram, junto
com algumas pessoas das redondezas.
Os policiais foram se aproximando, cuidadosos, com as armas em punho.
Ele permanecia imóvel, parado em frente à sua última grande obra,
olhando para aquela parede frontal completamente vermelha, com pontos
e pontos móveis negrinhos, as moscas que dançavam.
Vermelho estava ali, inerte, quase sem piscar, contemplando seu
maravilhoso trabalho.
— O que está acontecendo aqui? — perguntou o policial, apontando para
o peito de Vermelho.
— ...
— O senhor mora nessa casa? O que é isso aí na parede?
— ...
— Que cheiro insuportável! Oh, meu Deus! — exclamou, checando o
balde, inerte ao lado de Vermelho. — Isso é... É sangue!
— É sim — respondeu o homem. — É da Sara.
— Filho da puta!
— Quê? — perguntou um atônito doutor Júlio.
— Filho duma puta!
E Virgínia apontou a capa do jornal para o marido.
— Ah, é o Geraldo Assis! O que ele está aprontando dessa vez? Ele não
está paralítico ou algo assim?
Virgínia começou a ler a matéria rapidamente e foi informando o marido
sobre o que estava acontecendo. Júlio disse:
— Ele vai se tratar com o Euclides? Eu o conheço, é um cara bem sério.
Está trazendo para o Brasil uma tecnologia revolucionária de recuperação
muscular. O Geraldo tomou um tiro na cabeça e ficou sem movimentos, né?
— É.
— A área que foi afetada deve ser justamente a área que comanda os
movimentos musculares. Só que agora descobriram que o cérebro pode
realocar esse tipo de informação para outra área...
Virgínia prestava atenção, o marido era bom em explicar essas coisas da
medicina.
— Para estimular o cérebro, devem ser feitos exercícios contínuos e
intensos, coisa que as pessoas afetadas não conseguem. Esse é um princípio
da fisioterapia, na verdade: se você estimular o movimento diariamente, de
forma continuada, o cérebro vai reaprendendo a comandar esse
movimento e os músculos, é claro, vão ficando tonificados.
— ...
— Em alguns casos, e acho que deve ser o que acontece com Assis, o
passar dos anos sem estímulos faz com que os músculos fiquem atrofiados.
Aí entram os equipamentos revolucionários. Eles funcionam como uma
academia de ginástica eletrônica.
— ...
— Em outras palavras, o método revolucionário consiste em colocar o
paciente num equipamento de altíssima tecnologia e esse equipamento fica,
durante horas e horas, movimentando o corpo do paciente, movimentando
todos os seus músculos. Essa movimentação engana o cérebro, faz com que
ele acredite que o corpo voltou a se mexer, voltou a funcionar, e, assim,
volta a comandar os músculos.
— Interessante.
— Tem dado resultado, mas ainda está aquém do esperado...
— ...
— Acho que o equipamento que o Euclides trouxe da Suíça é o primeiro
no Brasil.
— ...
— E acho que o seu amigo vai ser a primeira cobaia do Euclides.
— Tomara que dê certo. Quem conheceu e trabalhou com o Assis sabe
como ele deve estar deprimido por estar assim, paralisado, morto naquela
cadeira.
— Esse tratamento exige muito do paciente, física e emocionalmente. São
horas e horas diárias de dolorosa movimentação muscular, além de doses
maciças de remédios contra a dor. Existem relatos de pacientes que
desistiram, preferiram continuar em cadeiras de rodas a se submeter a
essas dores.
— Acho que o Geraldo vai vencer essa.
— Vá fazer uma visita a ele.
— É, eu vou.
Aquela seria a última semana de aula para Carol, ela já tinha fechado as
notas: era uma putinha safada, mas ia bem nas aulas, tinha uma excelente
memória fotográfica. No intervalo daquela tarde ela conversava com
Julinha e Reginaldo enquanto comiam salgadinhos de saquinho.
— Esses religiosos acham que crentes não trepam.
— Ahn?
— É incrível, estive pensando nisso depois do jantar com o meu... ér...
noivo.
— Ha ha ha ha ha.
— Essas pessoas religiosas não sabem que os adolescentes estão cheios
de hormônios e com uma vontade alucinada e natural de foder?
— Ha ha ha ha ha.
— É sério. Bastaria que eles pensassem: quem fez os adolescentes desse
jeito? Quem fez a gente com essas porras de hormônios, com pintos que
ficam naturalmente duros e bucetas que ficam naturalmente molhadas?
Não foi Deus? E por que Deus fez a gente assim? É pra que a gente tivesse
essa vontade louca de foder e aprendesse a controlar isso ou é pra que a
gente simplesmente... fodesse?
— Ha ha ha ha ha.
— Não era bem mais fácil se o tal Fraguinha chegasse e dissesse: ei,
gostei de você, vamos foder pra saber se temos química?
— Ha ha ha ha ha ha.
— Mas não: ficou num puta papo chato sobre a dieta de Jesus, eu tava
com um sono do caralho. A gente podia ter bebido umas cervejas e trepado
numa jacuzzi, num motel caro, mas está bem claro que foder, pra ele, é só
depois do casamento. Caralho, punheta ele deve bater, né? Senão a porra do
cérebro dele deve estar cheio de esperma.
— Ha ha ha ha ha ha ha ha ha ha.
— Tenho a impressão de que se eu enfiar a língua na boca dele vai sair
porra pelos ouvidos. É sério!
— Para, Carol! Para! Pelo amor de Deus! Não aguento mais rir!
Julinha e Reginaldo cuspiam salgadinhos, de tanto que riam. A Carol era
mesmo uma palhaça.
— Estou fazendo piada para não enlouquecer. Imaginem que vou selar a
bucetinha daqui a uns dias e depois terei que ficar uns bons meses na seca,
sem pica.
— Ora, Carol, ainda tem dois buraquinhos.
— É, foi assim que a Sandy se manteve virgem durante todo aquele
tempo, só pagando boquete e dando o cuzinho.
— Ha ha ha ha ha.
— Vou dizer a vocês, que são meus melhores amigos e que fazem parte
desse seleto grupo de pessoas com quem trepo oca-sionalmente...
Deu um piscadinha para cada um dos dois.
— Eu até acho legal dar o cu, mas tenho muito mais tesão em chupar.
— Como é que é? — quis saber a Julinha.
— Pois é. Às vezes tenho mais prazer em chupar do que levar na
bucetinha. É sério.
— Ué.
— Estranho, né? Busquei isso na Internet uma vez e achei um filme, foi
um dos primeiros filmes pornôs já feitos, chama-se “Garganta profunda” e é
a história de uma garota que tem um clitóris na garganta. Aí ela tem que
achar caras com paus enormes para chupar e poder gozar.
— Caralho!
— Pois é, parece ser um filme interessante, vou tentar baixar.
— Será que isso é possível? Ter um clitóris na garganta?
— Não sei, mas às vezes acho que é assim comigo. A garota que fez o
filme, eu li num site, tinha sido engolidora de espadas num circo.
— Ha ha ha ha ha.
— Ah, Carol, porra, num inventa!
— Pô, tou falando sério!
— Ha ha ha ha ha.
— Se pelo menos meu noivo quisesse uma chupadinha...
Foram comprar uns refrigerantes para fazer um festival de arrotos.
Já passava das sete da noite quando a atendente foi informar Virgínia que
ela podia entrar, que o doutor ia recebê-la. Pelo jeito, a moça ia embora
mesmo, iam ficar apenas os dois na clínica.
Assim que Virgínia entrou pela porta, o médico se colocou em pé e abriu
um sorriso. Era um coroa magro e alto, calvo e com olhos grandes, verde-
escuros. Tinha um jeito meio diabólico, foi o que Virgínia pensou. Parecia o
Jack Nicholson.
— Ora, mas a senhora é mesmo persistente.
— Doutor, faz mais de quatro horas que eu estou aqui. E espero não
tomar o seu tempo tanto quanto esperei.
— Desculpa, é que as consultas estavam encavaladas, já havia um atraso
e eu não podia encaixar a senhora. Ia atrasar ainda mais o atendimento.
— Virgínia.
— Desculpe?
— Pode me chamar pelo nome, “senhora” é um pouco pesado para mim.
— Ah, sim. Parece que a senhora quer insistir na operação de
reconstrução de hímen da sua filha para a véspera do feriado, mas eu não
vou atender.
Virgínia levou o braço por sobre a mesa e apanhou um porta-retrato. A
foto mostrava quatro pessoas, o doutor, uma mulher e um casal de crianças
— Sua família?
— Sim.
Virgínia botou reparo na mulher, uma coroa de cinquenta e tantos,
bastante enrugada e acima do peso. O doutor Alcântara devia dar um duro
para comer a gorducha.
— Linda família. Você tem uma filha...
— Angélica.
— Pois bem. Doutor, minha filha vai se casar, conforme eu te disse.
Imagine que a sua filha fosse casar com um homem perfeito, um homem de
boa família, rico e que ela amasse pro-fundamente...
Bem, Carol não amava o cara, mas Virgínia tinha que ser convincente
com o médico.
— Imagine que esse homem perfeito colocasse apenas uma condição
para o casamento: que ela fosse virgem.
— Conheço esse tipo de situação.
— Sim, o senhor deve conhecer. Minha filha é quase virgem, teve uma
breve relação com um moleque da escola, uma coisa inconsequente.
— Sim, dona Virgínia, eu entendo e acho que posso operar com sucesso
sua filha, mas não vai ser na véspera do feriado.
— O senhor vai viajar?
— Não, minha mulher vai fazer um almoço especial nesse dia, convidou
uns amigos.
— Quanto tempo demora essa cirurgia?
— Cerca de uma hora.
— E você não pode operar minha filha às nove da manhã e depois ir para
a porra do seu almoço?
Ela havia sido incisiva e usado um palavrão, coisa que raramente fazia.
— Acho que a senhora está nervosa.
O doutor Alcântara levantou-se, como que para indicar que Virgínia
devesse ir embora. Ela também levantou. Aproximou-se dele.
— É Virgínia.
— Perdão...
— Você me chamou de senhora de novo e meu nome é Virgínia. Não me
chame de senhora, eu sou jovem e não um bagulho, como a sua mulher.
E então puxou o homem pelo jaleco e enfiou a língua na boca dele.
Carol queria mais homens que meninas em sua festinha privé, então
chamou apenas a Julinha e a Isadora. Aí, ligou para o Reginaldo e para o
Marquinhos e pediu para que cada um convidasse dois amigos legais, que
estivessem a fim de foder e não fossem sair por aí dando com a língua nos
dentes.
Todos, é claro, concordaram. Marcaram para a noite de quarta, no Motel
Aurora, suíte 500, nove da noite. Às oito, Carol e Reginaldo chegaram para
dar um conferida no lugar, ajeitar as coisas, pedir mais toalhas. Como
terminaram tudo antes das oito e meia aproveitaram e deram uma
trepadinha em pé: Carol só subiu a minissaia, Reginaldo só abriu o zíper.
— Filho da puta sortudo esse pastor: vai ter a melhor buceta da cidade só
pra ele.
— Ei, Regi, acho que ele não vai dar conta não, acho que vamos ter que
manter nossos encontrinhos.
Riram.
Estava um calor dos infernos, era época de Carnaval, Assis estava ligado
nos aparelhos, na clínica do doutor Euclides, inchando cada vez mais,
quando Betão informou:
— Assis, tem uma pessoa aí que quer falar com você. Disse que é uma
amiga sua.
— Quem é?
— O nome dele, dela, é Janice.
Assis quase pulou dos equipamentos. Achava que Janice já tivesse
morrido, quase não se lembrava mais dela.
Janice era um dos travecos do Reduto da Marta, um prostíbulo de
travestis que ficava na região central da cidade. Foi no Reduto que Assis
conheceu Tiago Zanco, morto num acidente de carro quedetonou os “Três
dias de inferno na cidade”. Janice e Marta tinham ajudado Assis naquele
período; Marta acabou matando o homem que atirou em Assis, um
assassino conhecido por Anísio do Lírio; Janice ajudou-o no período mais
crítico, quando ficou internado entre a vida e a morte. Mas, depois, sumiu e
ele nunca mais tinha ouvido falar dela.
E lá estava Janice, sentada no sofá de couro, na recepção da clínica. Feia,
desmantelada, um arremedo de ser humano.
— Janice!
Assis exclamou de saudade real, de emoção verdadeira. Janice começou a
chorar, levantando-se e indo ao encontro do amigo na cadeira de rodas.
Abraçaram-se.
— Betão, arrume um local pra nós dois. Preciso conversar com minha
amiga aqui.
Virgínia estava tensa com tudo o que vinha acontecendo, com todas as
emoções. O intestino estava preso, isso sempre acontecia quando o estresse
batia.
Botou um som alto no carro e ficou dirigindo pelas ruas da cidade, sem
rumo, tentando não pensar em nada, fugindo do tédio. Até que pensou:
— Preciso de uma trepada.
Mas não tinha com quem trepar. Isso era um problema. Pensou em
procurar o ex-personal trainer, mas não queria reviver um caso antigo.
Quem poderia lhe ajudar com isso?
Lembrou de um massagista, um cara que havia sido indicado por uma
amiga uma vez.
— Pode não dar em trepada, mas ao menos uma massagem pode me
ajudar.
Ligou para a amiga.
Fazia muito tempo que Carol não via o noivo e estava quase se
esquecendo da fisionomia dele. Um fim de tarde de março, quando folheava
revistas com a mãe, na sala de casa, o telefone tocou e era Fraguinha.
— Desculpe pela ausência.
— Tudo bem.
— Depois tudo vai se ajeitar. Você quer sair, jantar, conversar?
Carol nem fazia tanta questão. Mas dizer isso, naquele momento, podia
soar como desinteresse puro.
— Podíamos nos encontrar uma hora dessas, se você quiser.
— O que você quer fazer?
Ela queria sair. Pensou que queria conhecê-lo de verdade. Queria saber o
que ele pensava sobre a vida, sobre a porra da profecia do pai. Queria saber
se ele já tinha ouvido Black Keys. Queria convidá -lo para assistir ao último
filme do Tarantino. Queria saber onde eles iriam em Paris; no Louvre? Na
Torre Eiffel? Ele conhecia a história da Torre Eiffel? Ele já tinha ido a Paris?
Carol queria convidá-lo para nadar, ela tinha uma piscina linda em casa e
ninguém usava a porra da piscina há anos — “que tal você botar uma
sunga, espalhar um pouco de bronzeador e vir até aqui para ficarmos
bebendo caipirinha na beira da piscina, contando piadas sujas?”. Ela queria
beijá-lo, saber o gosto da sua boca. “Você já beijou alguém? Prefere com
língua?” Ela queria saber o que ele estava lendo, se gostava de literatura
brasileira, se tinha lido algum conto do Marcelo Mirisola. “Porra, Fraguinha,
a gente precisa pirar de vez em quando!” Ela queria saber se ele já tinha
bebido, se gostava de vodca com gelo, de dirigir rápido pelas estradas com
as luzes do carro apagadas. Ela queria comer um sonho de padaria com ele,
lambuzar os dedos com o creme, “é impossível comer sonho de padaria
sem lambuzar os dedos”. Carol estava parada há tanto tempo, naquela
cápsula caseira... Ela queria tanta coisa!
— Quero ir ao shopping. Vamos?
Fraguinha não se lembrava da última vez em que tinha pisado em um
shopping. Era uma coisa horrível para ele: aquelas pessoas só pensando em
consumir, olhando vitrines, tendo sonhos bobos de consumo. Um shopping
era um inferno para ele.
— Vamos, adoro shoppings.
— Quando?
— Te pego na quinta. Seis da tarde. Tá bom?
— Tá bom.
Carol quase não conseguia ver o que estava acontecendo por causa da
quantidade de flashes fotográficos que espocavam em sua direção. Ela
demorou cerca de quarenta minutos entre sair da limusine e chegar à mesa
em que estavam seus pais. Eles levantaram-se para beijá-la.
— Que festa monstruosa! — exclamou Carol, assustada com o som, com
as pessoas que apanhavam, ávidas, os salgadinhos.
— É o estilo de vida deles, querida.
“Que estilo!”, pensou.
Passaram-se mais uns quarenta minutos até que Fraguinha chegasse à
mesa. Todos se levantaram, mas ele não cumprimentou ninguém,
sentando-se abruptamente.
— Estou terrivelmente cansado.
— ...
— Amanhã apanhamos o avião logo cedo, um táxi irá nos levar ao
aeroporto. Está tudo certo, passo com o táxi às oito da manhã em sua casa,
OK?
— Hmmmm, OK.
— Vou cumprimentar algumas pessoas e daqui a pouco volto. Temos que
fazer umas fotos e vamos cortar o bolo. Aí podemos ir embora.
Levantou-se, quase sem olhar para Virgínia ou o doutor Júlio, que
comentou baixinho para a esposa:
— Eu disse que esse sujeito é estranho.
— ...
O doutor Júlio olhou profundamente para a filha. Ela já era uma mulher e
era linda. Não seria realmente um erro aquele casamento? O pensamento
surgiu tardiamente, ele sabia.
— Filha, se você quiser desistir de tudo agora mesmo eu te apoio, OK?
Virgínia se zangou, Carol sentiu uma ponta de felicidade. Mas como
desistir de tudo àquela altura? Depois de ter abandonado os amigos, de ter
feito a cirurgia, dos pastores terem gasto aquela fortuna com o casamento?
Os pensamentos corriam quando Assis se aproximou, conduzido por
suas assistentes. Virgínia levantou-se para abraçá-lo, apresentou-o à filha.
— Esse é um grande amigo da mamãe, o jornalista Geraldo Assis.
— Olá. Parabéns, Carol. Essas são minhas ajudantes, Betão e Janice.
— É um prazer vê-lo bem, Assis. O doutor Euclides parece estar tratando
muito bem de você.
— Sim, doutor Júlio. O Euclides foi um milagre em minha vida.
— ...
— Vim até aqui apenas para um oi e para felicitar a família...
Os olhos observadores de Assis notaram que Carol não estava tão feliz
quanto deveria.
— E desejar que esse seja um casamento repleto de amor e realizações.
Certo, Carol?
Ela levantou os olhos e Assis olhou direto para eles. Carol estava triste e
amarga, os olhos a denunciavam. A sensação que Assis teve foi que ela
tinha morrido ali, naquela noite. E pensou em sua própria filha.
Era estranho estar numa festa de casamento e pensar que não esteve no
sepultamento da filha. Sua filha Camila, tão linda, levada pela mãe para
longe do pai. E essa menina, a Carol, sendo levada para longe de sua vida,
corrompida por uma ideia de riqueza material. Aquilo tudo não estava
certo. Pensou em dizer algo, talvez usar sua retórica infalível para
desmontar aquela farsa ali mesmo. Ia contar sobre Vermelho e Ideia e
sobre todas aquelas autoridades que estavam na igreja e sobre como os
esquemas de corrupção funcionavam; ia falar sobre o sacrifício que ela
estava fazendo, de se dar, jovem e perfeita, a um homossexual enrustido e
violento, em troca de dinheiro; ia perguntar aos pais o que eles achavam da
prostituição, se havia diferença entre a filha, essa bela criança, e aquele
travesti sem opção que fica nas esquinas do centro da cidade pagando
boquetes por cinco reais. E depois ia apontar para Janice, ia dizer que ela
era uma fodida que havia sido obrigada a vender o corpo, mas Carol não,
Carol não precisava fazer aquilo. O discurso estava armado em sua mente e
iria custar-lhe a amizade de Virgínia, ele sabia. Mas preferia perder uma
amizade e salvar uma vida. Respirou fundo e ia abrir a boca quando
Fraguinha chegou.
— Quanta honra! O senhor deve ser o jornalista Geraldo Assis.
E esticou a mão para um cumprimento.
— Senhor Fraguinha, eu dependo de um esforço enorme para
movimentar meus braços e acho que não posso e não quero me esforçar
tanto neste momento. Desculpe.
— Ora, senhor Geraldo, não se preocupe. Entendo que deva ser
difícilviver com essas limitações.
— Todas as pessoas têm limitações e certamente é difícil conviver com
elas.
— Espero que o senhor esteja gostando da festa.
— A festa está boa, com muita gente humilde e honesta por todos os
lados. Mas algumas pessoas aqui e ali acabam tornando o ambiente
insuportável, então, estou indo embora.
— Não se pode agradar a todos.
— Certamente, senhor Fraguinha. Mas quando se tem muita informação,
muito conhecimento sobre como os relacionamentos se estabelecem nesta
cidade fica quase impossível alguém se sentir confortável tendo ao redor
tanta gente hipócrita e corrupta.
Virgínia ficou em pé para interceder, Fraguinha fez um sinal com a mão.
— Fique à vontade, senhor Geraldo. Conheço gente que não está aqui por
pensar o mesmo sobre o senhor.
Ambos sabiam que ele falava de Vermelho.
— Afinal, quem nunca se corrompeu ou corrompeu o outro nesta vida?
Mais uma vez, um discurso se armou no cérebro do jornalista, mas
Fraguinha foi mais rápido apanhando Carol e saindo para a sessão de fotos;
Virgínia e o doutor Júlio foram juntos. Assis ficou ali, com as ajudantes,
puto.
— Vamos embora para casa.
O casal e seus pais fizeram centenas de poses para as fotos. Carol cortou
o bolo. Antes da meia-noite estavam todos em suas casas. Mas a festa
continuou até de manhã, com os convidados se empanturrando de
salgadinhos e refrigerantes, com a banda tocando música gospel ruim.
Alguns casais fugiam para áreas mais escuras da chácara para uma
trepadinha rápida ou um boquete.
— Olhe, seu Fraguinha, entendo sua dor, seu desânimo, sua vontade de,
como o senhor disse, “cair fora”. Mas não pode achar que envolve a mim,
meus homens e um dos maiores traficantes do país num esquema
gigantesco de desova de centenas de quilos de cocaína por mês e pode,
como o senhor disse, “cair fora”, na hora que quiser, entende?
— ...
— Já faz quase quatro meses que estamos distribuindo o sal ungido. Eu
me comprometi com o fornecedor, ele preparou todo o esquema, contratou
pessoas, subornou autoridades, tudo para que o senhor tivesse o que
planejamos. Houve um investimento, há uma expectativa de retorno que o
senhor tem que ratificar, senhor Fraguinha.
— O meu... secretário, Vermelho, te deu os quinhentos mil. Estou
precisando desse dinheiro.
— Senhor Fraguinha! O senhor monta um esquema, decide casar e viajar
para a França, deixa as coisas aqui para cuidarmos, aí, seu... secretário
decide parar tudo por três dias por causa de uma notinha no jornal, isso
gera um prejuízo e o senhor não quer pagar?
— Senhor Ideia, eu passei por momentos que fizeram com que eu
repensasse minha vida. E não quero mais fazer parte desse... esquema.
— Ora, senhor Fraguinha, o senhor não faz parte do esquema, o senhor é
o esquema. Sem o senhor o esquema não existe: é o senhor quem tem as
igrejas, quem faz a venda e distribuição da droga, quem recebe o dinheiro e
quem nos repassa. Sem o senhor não tem esquema.
— Então não tem mais esquema.
— Mas é o que eu estou explicando, senhor Fraguinha: o senhor não vai
sair, o esquema não vai parar. Se o senhor insistir nisso é bom que o senhor
repense novamente a sua vida, pois ela vai acabar bem rápido.
Fraguinha gelou. Ele falava com Ideia pelo telefone, sentado em sua
cama, com Vermelho em pé, ao lado.
— Neste momento, eu preciso que o senhor autorize seus homens a
receber a carga do sal ungido, vou descarregar nos fundos da sede da sua
igreja, amanhã, e o senhor carrega duas vans no esquema que combinamos.
Daqui a dez dias quero mais duzentos e cinquenta mil.
— ...
— É bom que seus homens estejam lá para encaminhar as coisas
Fraguinha, ou a polícia vai baixar na sua igreja e encontrar duzentos quilos
de cocaína. E aí sim o tal Geraldo Assis vai ter uma grande matéria.
— Ora, seu... Você acha que pode me chantagear?
— Senhor Fraguinha, entenda: só estou falando assim com o senhor
porque o senhor quis, como disse, “cair fora”, como se fos-se... uma
“franguinha”.
— ...
— Seja homem e cumpra seus compromissos. Sua mulher morreu?
Arrume outra. A vida não é para amadores chorões.
E desligou o telefone com um palavrão.
Assis ligou para Virgínia e ela ainda não tinha acordado. Ligou de novo. E
de novo.
— Por favor, acorde Virgínia. Diga que é Geraldo Assis e que tenho que
falar com ela agora.
Acordaram-na.
— Virgínia, sua filha está morta e pode ser que Fraguinha seja culpado.
Então, pare de chorar, tome um banho e um café e me encontre na clínica
do doutor Euclides. Vá sozinha. Diga a todos aí que você está bem e que tem
um compromisso comigo. Algumas coisas devem ser feitas no momento
certo e essa é a coisa para fazermos agora.
A tristeza era grande, mas quando se está sem ação é bom que alguém
comande.
— Estarei lá em uma hora.
Não havia saída para Fraguinha: ele tinha que continuar com o esquema
de distribuição da droga até juntar mais dinheiro. Havia a reserva de quase
cem milhões na conta do laranja dos pais, mas ele não podia ter acesso
àquilo antes que eles morressem. Fez algumas contas com Vermelho e
chegou à conclusão que a coisa não estava tão ruim: em menos de um ano
iriam faturar o suficiente para abandonar tudo e fugir.
Fraguinha estava incomodado por causa da conversa com Ideia. Não
gostava do tom de coação, mas tinha sido ele o mentor do esquema, estava
obrigado a prosseguir com tudo — e tinha, pela primeira vez, medo.
Vermelho estava confuso: as coisas no Recanto iam muito bem, ele nem
precisava mais da Igreja, não precisava estar naquele turbilhão. Mas era
chegado demais a Fraguinha, estava sexualmente ligado ao pastor, não
podia deixá-lo na mão.
— Do jeito que as coisas andaram até agora, e como podem estar em um
ano, teremos perto de seis milhões, Fraguinha.
Foi quando a secretária bateu à porta para dizer que Virgínia estava ao
telefone.
Havia uma entrada de carros no fundo da igreja, pela rua paralela, com
um portão e uma cancela. Foi por ali que os carros de Ideia e seus homens
entraram, como de costume. No estacionamento, estavam cinco vans, que
deviam ser carregadas com a droga e com as sacas de sal que estavam
empilhadas debaixo de um toldo.
Os homens começaram a fazer o trabalho, mas o sol estava quente, os
sacos estavam pesados e decidiram chamar os pastores que estavam
dentro da igreja para ajudar. Num momento, Janice olhou para os lados e
não viu nenhum pastor. Achou estranho e circulou por ali, procurando-os.
Esgueirou-se por uma porta e viu-se numa área reservada. Passou por
outra porta e chegou a uma saleta que dava acesso ao estacionamento nos
fundos. Viu o pessoal trabalhando debaixo do sol, carregando sacos.
Escondeu-se, observando por alguns minutos. Fraguinha e Vermelho
apareceram por lá, dando instruções, apontando para um carro e outro,
orientando a distribuição do material. Ela voltou para a igreja e ligou para
Assis novamente.
— Estão na função aqui, Assis. É hora de um flagrante.
— Estamos indo!
Havia mais de cem pessoas nos bancos da igreja, esperando pelo culto
das quatro. Um pastor apareceu, iniciando a venda de garrafas d’água,
oferecendo copos para quem quisesse. Virgínia e Betão esperavam em pé,
nos fundos, apoiadas nos últimos bancos do salão.
— Fique calma, Virgínia.
Ela tremia um pouco. Sentia-se confusa, sem saber direito no que aquilo
tudo ia dar. Mas confiava em Assis, achava que aquela ação podia resultar
em alguma verdade sobre o que tinha acontecido com Carol. Nada sabia
sobre as suspeitas de cocaína na água, tráfico ou traficantes, pessoas
armadas ou Vermelho. Ela estava ali para confrontar Fraguinha, era isso o
que devia fazer duramente. E tinha o apoio de Betão e Janice — e do doutor
Euclides e de Assis, que estavam no furgão e que podiam entrar a qualquer
momento.
Virgínia viu Fraguinha e um sujeito ruivo surgirem dos fundos da igreja,
caminhando em sua direção. Eles vinham andando devagar, falando coisas
baixinho, olhando fixamente para ela. Aquilo demorou uma eternidade, e
ela compreendeu que aqueles dois tinham alguma coisa entre si, que
Fraguinha pouco estava se importando com a morte de Carol, sepultada na
véspera.
— Oi, dona Virgínia. Eu sinto...
— O senhor sente? Sente muito? Minha filha foi sepultada ontem e o
senhor está aqui resolvendo alguns problemas?
Estavam um diante do outro, assim como Betão e Vermelho.
— Vamos subir para a minha sala para conversarmos?
— Eu não quero subir, quero conversar aqui.
— Teremos um culto daqui a pouco, as pessoas estão chegando...
— Mande as pessoas embora.
— O quê?
— Mande essas pessoas embora. Se querem rezar, que rezem em suas
casas.
— ...
— Você disse a elas que minha filha morreu?
Virgínia falou alto, quase gritando. Algumas pessoas olharam para trás
para verem o que estava acontecendo.
— Dona Virgínia, eu entendo a sua dor...
— Entende? O senhor acha que entende a minha dor? Tudo o que eu e
minha filha fizemos para o senhor e o senhor... Deixa minha filha morrer em
sua lua de mel?
Ela estava falando mais alto e Vermelho se aproximou para apanhá-la
pelo braço, para levá-la para cima. Betão olhou feio e direto para Vermelho,
mostrando uma reação.
Fraguinha pensou em várias coisas, várias possibilidades, em fazer um
drama, uma atuação, chorar pela morte de Carol, ajoelhar-se aos pés de
Virgínia. Mas ele estava tão cansado, tão extenuado, tão terrivelmente
inconformado com os rumos que as coisas haviam tomado, que soube que
não seria convincente. Decidiu partir por outro caminho.
— Dona Virgínia, a senhora está desequilibrada. Creio que não possa
fazer nada pela senhora no momento. Não posso trazer sua filha de volta,
não tenho muito a lhe falar...
— Tem sim. Tem que me falar muita coisa. Tem que me contar como
minha filha morreu.
— Isso eu já disse e todos sabem: ela bebeu e dançou e se desequilibrou
e caiu. Foi um acidente.
— Um acidente? Na segunda noite da lua de mel?
— Sim. Infelizmente.
— E por que... por que, no segundo dia em Paris, vocês ainda não
tinham... transado?
Fraguinha ficou vermelho. Como ela podia saber disso?
— Eu falei com minha filha naquela noite. Carol disse que você não tinha
dormido com ela...
— ...
— O senhor não gosta de mulheres, senhor Fraguinha? Para se livrar da
minha filha, o senhor atirou-a do apartamento em plena lua de mel, seu
canalha?
A frase calou fundo nele. Fraguinha ficou momentaneamente sem ação.
— Dona Virgínia, a senhora está passando dos limites.
— Tire essas pessoas daqui!
Virgínia gritou. Os crentes ouviram, alguns se levantaram, pastores
chegaram.
— Saiam todos daqui. Vão embora. Essa igreja vermelha está marcada
pelo sangue inocente de minha filha!
Ela acenava para as pessoas saírem, Vermelho tentou detê-la, Betão
segurou o braço dele.
— Não quero bater em você — avisou Betão, sério.
Fraguinha achou melhor que as pessoas saíssem: não sabia o que ela ia
dizer, se ia fazer algum tipo de espetáculo ainda mais descontrolado.
— Por favor, caríssimos irmãos: estamos com um problema, peço
encarecidamente que saiam.
As pessoas foram saindo, até que sobraram apenas Fraguinha e
Vermelho, Virgínia e Betão, três pastores que ficaram por ali, apreensivos, e
aquela pessoa estranha, próxima ao altar. Era Janice, com o celular na mão.
— Irmã, peço que saia...
— Ela está comigo — avisou Virgínia.
Vermelho botou reparo e a reconheceu: era a amiga de Assis. E aquela
grandalhona que o segurou pelo braço era... a enfermeira dele!
— Isso é algum tipo de armação de Geraldo Assis? Onde está ele?
Inteligente, Vermelho estremeceu. Nos fundos da igreja havia uma
operação de cocaína, sacos e mais sacos da droga: se a polícia chegasse
seria o fim deles.
— Dona Virgínia, não sei o que podemos resolver aqui...
— Não tenho nada para resolver. Só quero que você me conte o que
houve. Quero a verdade!
Fraguinha deu um sinal e um dos pastores fechou a porta da igreja.
Naquele amplo salão, andando através dos bancos compridos, eles
discutiam. Vermelho decidiu intervir.
— O pastor já disse tudo o que tinha a dizer. Peço que vocês saiam.
Temos mais o que fazer!
Virgínia foi se aproximando de Vermelho enquanto ele fugia através dos
bancos.
— Quem é você? Você é o namorado dele?
— Dona Virgínia! — gritou Fraguinha, descontrolado, aproximando-se.
Betão foi ao seu encontro.
— Toque em mim e eu acabo com você, sua lésbica dos infernos!
Janice apanhou o celular e ligou para Assis. Era o primeiro toque: o sinal
de que o plano estava funcionando. Sorrateiramente, ela saiu novamente
pela porta para espiar o que estava acontecendo nos fundos e viu que a
operação estava acabando, dos quatro homens que faziam o serviço apenas
um carregava os sacos, enquanto outros três conversavam. Voltou para o
salão.
— Me diga o que aconteceu! Me diga por que você não dormiu com
minha filha!
— ...
— Me diga por que você se casou com ela!
— ...
— Ela era... uma menina! Uma doce menina! E você...
Chorar não estava no plano, Assis avisara. Mas ela não conseguiu.
Fraguinha ficou condoído por um segundo e se aproximou. Foi quando
ela partiu para cima dele, como estava no plano. Empurrou-o forte uma,
duas, três vezes.
— Me diga! O. Quê. Você. Fez. Com. A. Minha. Filha?
Fazia já umas dezoito horas que Fraguinha vinha cheirando cocaína. A
droga estava entranhada em seu sangue, em sua mente.
Ele raciocinava de maneira aleatória, imaginando, às vezes, que estava
em um sonho. Mas articulava bem as palavras, tinha aprendido isso nas
dezenas de cursos de oratória para pastor. Agora, ali, em seu templo
vermelho como sangue, com seu grande amor, com a cocaína sendo
manejada no fundo da igreja, imerso em seu próprio domínio, teve um
pensamento claro: ele era o dono e senhor do Universo, um verdadeiro
Deus, o Salvador da Humanidade e nada podia detê-lo. Viu-se como um
monstro imbatível. Podia tomar a decisão que quisesse: era maior que o
mundo.
— Eu não a empurrei, mas devia ter empurrado! Eu devia mesmo ter
empurrado aquela nojentinha! Ela estava se esfregando em mim como uma
puta, era isso o que ela era! Uma puta fedida, com sua maquiagem
carregada, com seu perfume de merda. Ela despencou e morreu. Melhor
assim. E a senhora chega aqui, com essas duas aberrações, achando que
pode fazer alguma coisa? Volte para a sua ignorância, minha senhora!
Os três pastores ficaram estarrecidos com a fala do pastor. Vermelho
levou a mão à testa, esperando pelo pior. Por que dizer aquilo?
Por que torturar assim uma mãe que perdeu a filha? Vermelho achou
que, além da cocaína que ele vinha consumindo, o estresse tinha alterado
sua capacidade de raciocínio. Ter sido forçado a continuar com o esquema
da cocaína, estar nas mãos de Ideia, aquilo tudo minou sua energia. E a
morte de Carol tirou-o definitivamente dos eixos.
— Eu só casei com sua filha... Só casei com ela... porque ela era a mais
boba, a mais desesperada por dinheiro e poder, a mais fútil de todas as
crentinhas.
Virgínia chorava, abalada, esquecendo-se do plano: avançou sobre
Fraguinha. Vermelho foi ao socorro do amante e, em segundos, todos
estavam engalfinhados no chão, entre os bancos. Betão juntou-se ao trio,
assim como Janice. Os pastores correram para apartar, mas os dois,
Vermelho e Fraguinha, já tinham levado as três a nocaute. Não sem
sequelas: estavam com arranhões vertendo sangue nas faces, roupas
rasgadas, cabelos arrancados.
— Caralho! O que vamos fazer agora, Fra?
Fraguinha arfava. A adrenalina tinha subido muito, o coração pulsava em
suas artérias no pescoço.
— Vamos levar as três para cima. Vocês aí, nos ajudem!
Os pastores ficaram receosos. Olharam entre si, duvidando da ordem e
cogitando darem o fora dali. Eles tinham ouvido tudo e não gostavam de
ver aquelas três mulheres ali, estendidas no chão, com dentes saltando
para fora da boca, o sangue escorrendo pela bochecha.
— Eu... Eu estou mandando vocês me ajudarem! Vocês não sabem quem
eu sou? Eu sou a porra do salvador da porra da humanidade!
Fraguinha gritava descontrolado. Lá fora, dentro do furgão, Assis
estranhou a demora delas. Elas já deviam ter saído ou Janice devia ter
ligado novamente para dizer o que estava acontecendo. Avisou para
Euclides:
— Vamos entrar!
Lá dentro do templo, os pastores tremiam e Fraguinha gritava. Foi
quando apareceram os quatro homens de Ideia, que já tinham terminado o
serviço e ouviram os gritos que vinham dali.
— O que está acontecendo?
— Ei, vocês, ajudem! Venham! Ajudem a levar essas mulheres para cima!
— Quê? Não temos nada a ver com isso!
— Essas mulheres...
Fraguinha tentava envolvê-los.
— Essas mulheres descobriram o nosso esquema. Precisamos acabar
com elas!
A frase fez os pastores saírem correndo: um foi direto para os fundos, os
outros dois abriram a porta da frente e ganharam a rua, correndo, sem
olhar para trás.
Foi quando Assis entrou, em sua cadeira de rodas, com doutor Euclides.
Cada um tinha uma arma na mão. Dois dos homens de Ideia também
correram, saíram pelos fundos. Os dois que ficaram também estavam
armados.
— Filho da puta! — exclamou Vermelho, olhando para a cena.
Assis viu as amigas caídas, movimentando-se fragilmente, com sangue
pelas faces e roupas.
— Parados! A polícia está chegando. Ninguém quer mortos aqui, certo?
Fraguinha respirou fundo, estufou o peito. Ele e Vermelho estavam entre
Assis e o doutor e os homens de Ideia.
— Estamos todos mortos! Não faz nenhuma diferença!
Fraguinha estava possuído por duas drogas inflamáveis: cocaína e
adrenalina. Continuou:
— Olhem para essas pessoas aqui no chão. O que elas são? Uma oferece a
filha em troca de algumas moedas, Judas terrível nessa sociedade sem
Deus. As outras duas são apenas perdidas no mundo da devassidão,
desajustadas em seus corpos, seres hediondos produzidos pela libido.
E ia aproximando-se de Assis.
— Olhe para você, senhor Assis: um homem sem corpo, também um
devasso. Alguém que sofreu o peso da mão do Senhor, mas não o aceitou.
Um anjo caído que quer se levantar? É isso o que o senhor é?
Assis também respirou profundamente, apoiou-se nos braços da cadeira
e ficou de pé, sôfrego.
— Eu estou de pé, seu assassino!
— Não, Satã! O seu lugar é o chão, você é a serpente, você rasteja na
escuridão!
Próximo de Assis, Fraguinha saltou sobre ele. O repórter tentou atirar,
mas não havia força suficiente em seus dedos para acionar o gatilho:
caíram os dois no assoalho. Euclides apontou a arma para Fraguinha, mas
ele já havia desarmado Assis e apontava igualmente para Euclides. O
médico colecionava armas e era bom com elas, mas nunca tinha alvejado
um ser humano — salvava vidas, não estava habituado a tirá-las.
Um dos homens de Ideia apanhou o celular e ligou para o patrão, que
mandou que saíssem de lá o mais breve possível. Eles estavam partindo
quando Fraguinha dirigiu-se a eles.
— Não saiam! Eu vou pagar a vocês o que quiserem para acabar com
todos aqui!
Ambos ficaram parados por um momento, olhando-se, sem saber o que
fazer.
Vermelho tremia. Jamais imaginou estar em uma situação como aquela.
Não queria voltar para a cadeia, não queria ver Fraguinha em maus lençóis.
Olhava para Assis, caído no chão, sem conseguir se levantar. Pegou-se
pensando em Sara por um instante, sua vida parecia passar-lhe pela mente,
como um filme.
Fraguinha voltou a falar, impávido, arma na mão, apontando
agressivamente para Euclides.
— Todos aqui já estão mortos, e a morte física de todos nós só irá
apressar o julgamento pelo qual todos iremos passar em breve, quando o
Nosso Senhor Jesus nos receber no outro lado.
As órbitas de seus olhos estavam reviradas, todos pressentiram que um
tiroteio inconsequente estava próximo de ser deflagrado. Foi quando
Euclides falou:
— Ninguém precisa morrer para encontrar Jesus.
A frase desconcertou Fraguinha, que olhou fixamente para o doutor.
Euclides era inteligente e pensou que, se atirasse em Fraguinha, os
homens armados também atirariam. Baixou a arma, mostrando-se dócil.
Entre os bancos, Virgínia, Betão e Janice recuperavam-se,
testemunhando a cena entre gemidos. Assis olhou para elas e percebeu que
o plano tinha dado errado, era quase certo que todos morreriam.
— Vamos acertar nossas contas aqui — disse Assis, fitando Vermelho.
Vermelho encontrou os olhos de Assis. Todo o ódio de mais de trinta e
cinco anos veio à tona — e ele saltou sobre o jornalista. Assim que
Fraguinha virou-se para olhar, Euclides atirou, de maneira estratégica: uma
bala na cabeça do fêmur do pastor; um tiro que provocaria o desequilíbrio
dele e uma dor extrema — e que não iria matá-lo. Assim que disparou, e
Fraguinha gritou, caindo no chão, soltando a arma, os homens de Ideia
passaram a retaliar contra Euclides, que jogou-se entre os bancos.
Vermelho estava ainda sobre Assis e os homens de Ideia não estavam
dispostos a perder a vida por uma causa que não era a deles. Fugiram. O
chefe era Ideia, Fraguinha era apenas um parceiro de negócios.
Vermelho esmurrava Assis. Socava-lhe a face, o peito, o estômago
enquanto sussurrava palavras incompreensíveis.
Virgínia esgueirou-se por entre os bancos até alcançar a arma que estava
com Fraguinha. O pastor estava ali, urrando de dor, com sangue a jorrar
pela perna, ensopando a calça e o chão. Euclides levantou-se e apontou
para Vermelho, dando ordem para que ele deixasse Assis — mas o homem
não o escutava.
Foi quando todos ouviram o grito de “pelo amor de Deus, não” e o
estampido que ressoou por todo o templo. Virgínia acabava de matar
Fraguinha com um tiro no peito.
Vermelho se levantou e foi se aproximando do pastor, Virgínia tremia
com a arma na mão. Ele gritou um “não” que ecoou pela igreja — e avançou
em Virgínia, que estava estática. Ele ia matá-la. Euclides pressionou o
gatilho.
Foi quando a polícia chegou.
Sétima parte: Milagres
Geraldo Assis estava morto. Bastaram alguns poucos socos de Vermelho
em sua face para que a fissura do crânio, resultado do tiro que havia levado
há anos, reabrisse.
Mas o jornalista era mais inteligente e intuitivo do que todos supunham:
deixara tudo pronto para sua morte. Numa noite, quando preparava o
plano, pediu ajuda de Betão para encontrar uma câmera de vídeo antiga,
que ele nem sabia se ainda estava funcionando. Testou e viu que estava.
Pediu que Betão ligasse e que saísse do quarto: gravou um longo
depoimento para Beto, seu eterno patrão e amigo, dando instruções sobre a
matéria que ele deveria escrever, sobre o que devia fazer, caso ele
morresse. Entre outras coisas, Beto devia manter a chácara: Betão e Janice
deviam morar ali e criar um abrigo para prostitutas e travestis
aposentadas. “Essas pessoas não têm para onde ir, não podem ficar
desabrigadas. Ajude minhas amigas a montar essa instituição, peça auxílio
para todas as pessoas que devem favores a você e a mim — você sabe quem
são. Chame de Casa Geraldo Assis.” E escreveu, com dificuldade, uma carta
para Betão e Janice, que foi colocada dentro de um envelope lacrado:
deixava o pouco que tinha para elas e gostaria muito que elas cuidassem da
tal Casa Geraldo Assis.
No Recanto Drinks, Sara tentava dar conta de tudo sem Vermelho. Ela já
havia chorado tudo o que podia e as contas continuavam chegando, sem
trégua.
A justiça tinha negado seu pedido de adoção e ela se conformava com a
ideia de viver só, agora ainda mais só, sem Vermelho.
Semanas se passaram quando ela recebeu, numa manhã de sábado, a
visita de Ideia. Ele trazia uma sacola.
— Já disse, seu Ideia, que não quero mais vender drogas aqui. Quem
lidava com isso era o Vermelho e agora não quero mais.
— Dona Sara, estou aqui por outro motivo.
— ...
— As pessoas acham que nós, marginais, somos todos pessoas más. Mas
não somos. E não queremos matar ninguém...
— Mas as drogas matam e vocês vendem drogas...
— Sim, mas nós não damos drogas. Nós vendemos. E não obrigamos
ninguém a comprar ou a consumir. Nós mantemos um produto no mercado,
como cerveja ou cigarros. Ou bacon. Quer dizer: muita coisa faz mal, mas as
pessoas compram porque querem.
— ...
— Só queremos a possibilidade de manter o produto no mercado. Como
quem vende cigarros, bebida ou bacon.
— ...
— O plano do seu marido com o pastor era bom, mas fugia um pouco da
nossa, como direi?, da nossa ideologia.
— ...
— É: nós vendemos um produto e esperamos que esse produto satisfaça
as expectativas do nosso consumidor. Não gostamos da ideia de esconder
nosso produto, enganar o consumidor. Não me agrada saber que o
hambúrguer do McDonald’s tenha farinha de minhoca ou que a Coca-Cola
tenha cocaína na fórmula. Isso parece estelionato, pra mim.
— ...
— Assim, não gostei da cocaína na água que Fraguinha criou. Mas estava
dando um lucro alto, não podia perder a mamata. Vive mos num mundo
capitalista. E não tinha riscos pra gente, o que era muito bom.
— Agora acabou, né?
— Mais ou menos. Pessoas que tomaram a água ficaram bem animadas
com o resultado. E muitas delas viraram consumidoras dos nossos
produtos. Estamos até pensando nuns flaconetes especiais, com uma cruz,
sabe? Cocaína Jesus, algo assim.
Ideia riu. Era uma brincadeira, mas não uma má ideia.
— De qualquer maneira, as últimas operações com Fraguinha e a igreja,
comandadas por Vermelho, deram um resultado excepcional. E eu enganei
seu marido...
— Vermelho era meu sócio. E meu amigo.
— Seu sócio e amigo... Na última conversa que tivemos, eu peguei
quinhentos mil reais com ele. Fiz mais de dois milhões com aqueles
quinhentos mil. E vim trazer a comissão dele.
— Quê?
— Dentro desta sacola tem duzentos mil reais. E são seus. Você não era
sócia dele?
Sara não podia acreditar. Aquele dinheiro era o suficiente para ela viver
sua vida. Ela podia vender o Recanto e entrar com um novo pedido na
Justiça: talvez até conseguisse seu filho.
— Nem todos os marginais são pessoas más, há gente leal, dona Sara. E
justa! Eu podia ficar com esse dinheiro, mas não iria me sentir bem... Aqui
está ele: é da senhora. Eu sou uma pessoa má?
Olharam-se nos olhos, Sara não acreditava no que estava ouvindo.
— Você... o senhor... é... um... santo!
— Não, dona Sara. Somos pessoas normais, pessoas como todas
deveriam ser.
— Eu... eu não tenho como agradecer!
— Não precisa. Acenda uma vela para o seu marido. Desculpe, sócio e
amigo.
E Ideia partiu, com a consciência leve, deixando o dinheiro para Sara. No
jukebox do puteiro tocava uma música do Odair José.
FIM