XXVII Encontro Anual da Compós, Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Belo Horizonte - MG, 05 a 08 de junho de 2018
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Trabalho apresentado ao Grupo de Trabalho Estudos de cinema, fotografia e audiovisual do XXVII Encontro
Anual da Compós, Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Belo Horizonte - MG, 05 a 08 de junho de
2018.
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Pós-Doutoranda no Departamento de Rádio, Cinema e TV da Escola de Comunicações e Artes, da
Universidade de São Paulo (ECA-USP), com projeto de pesquisa financiado pela FAPESP (15/06383-4).
Doutora em Teoria e História Literária pela Universidade de Campinas (UNICAMP), megchristie@gmail.com.
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1. Introdução
Este trabalho centra-se na circulação cinematográfica brasileira no período dito
“silencioso”, no que toca à relação estabelecida, em solo nacional (mais especificamente no
Rio de Janeiro, a capital do Brasil à época), entre o cinema e o som – trabalho fundamental
para que se compreendam os mecanismos de transferências culturais em movimento no
período.3 Fundamenta a pesquisa a hipótese de que os filmes veiculados no Brasil utilizaram-
se largamente de gêneros musicais e de estratégias da cena teatral musicada já consolidados
no país, visando à conquista do público que a fruía. Trata-se de um trabalho calcado na
historiografia do cinema brasileiro (BERNARDET, 2008; MORETTIN, 2009), cuja análise
se constrói por meio da investigação de fontes primárias.
Considerando-se as incontornáveis ausências inerentes ao seu objeto – seja no que toca
ao material fílmico, dado que uma porção importante da cinematografia da época se perdeu,
seja das partituras que faziam o acompanhamento musical das fitas, sejam ainda de
informações detalhadas e organizadas concernentes ao espaço sonoro dos cinematógrafos da
cidade –, a pesquisa volta-se ao levantamento extensivo de jornais da época, buscando-se
averiguar as modalidades de uso das sonoridades apresentadas nos salões, parques, cinemas e
demais estabelecimentos que projetavam imagens em movimento, no intuito de se tecer uma
reflexão teórica sobre a questão em pauta. Dado o imbricamento existente então entre as
manifestações artísticas, em especial o teatro, a música e o cinema, procuram-se relacionar os
dados dos repertórios cinematográfico, musical e teatral apresentados no Rio de Janeiro,
visando-se a compreender os entrecruzamentos estabelecidos não apenas entre as artes, mas
entre a produção popular e a erudita.
A Europa é mais pródiga em informações acerca do tema que o Brasil, devido à sua
histórica preocupação com a conservação e a sistematização das fontes primárias. Pesquisas
desenvolvidas na Europa, nas últimas décadas, apresentam análises esmiuçadas que tocam
aos usos empíricos dos sons no cinema silencioso (por exemplo, MARKS, 1997; NASTA,
HUVELLE, 2004; ABEL, ALTMAN, 2001), em âmbito mundial, as quais procuram
descrever contextos geográficos específicos, relacionando a descrição do fenômeno à análise
3
Inspira este trabalho a reflexão sobre “transferência cultural” tecida por Espagne e Werner: não se trata de
pensar a questão em termos da “influência” unívoca do contexto estrangeiro no nacional, mas sim de se analisar
em amplitude o modo como as escolhas realizadas em âmbito nacional aproximaram-se ou se diferenciaram do
internacional, e de que forma isso dialoga com as especificidades de cada sociedade. (ESPAGNE, 2013, p. 1)
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de seu papel no interior das sociedades analisadas: a especificidade dos sons nos
nickelodeons; os talker pictures norte-americanos (fitas cujas sonoridades eram produzidas in
locus, por cantores dispostos atrás da tela, processo semelhante ao que ocorre no Brasil
contemporaneamente); o papel dos sons na construção de sentido da narrativa paralela; os
sentidos almejados por meio da inserção de tessituras sonoras consideradas “selvagens”, na
construção das personagens negras de O nascimento de uma nação (1915)4.
No fundamental Music and the Silent Film (1997), Martin Marks apresenta uma
elucidativa relação das pesquisas acerca das relações entre cinema e música, publicadas desde
fins da década de 1920, dotadas de graus variáveis de abstração – maior, à medida que se
recua no tempo. A resenha apresentada pelo historiador toca questões como a preferência dos
estúdios pela música romântica e o repúdio paulatino da música moderna, que já nos anos de
1930 o artista de vanguarda George Antheil criticava na série cronística por ele assinada na
revista Modern Music (apud. MARKS, 1997, p. 14). Publicada em fins dos anos de 1990, a
obra de Marks testemunha e alavanca uma historiografia que se propõe a pensar este cinema
a partir da esfera da exibição (MARKS, 1997, p. 3-25). O autor toma como objeto de análise
as partituras remanescentes de obras cinematográficas rodadas de 1895 até o início dos anos
de 1920, procurando ainda relacionar às sonoridades dos anos iniciais da cinematografia
aquela presente nos espetáculos ópticos que antecederam as imagens em movimento (a
exemplo das lanternas mágicas, que recebiam acompanhamento sonoro). Neste sentido,
analisa tanto o cunho do acompanhamento musical de certos programas das exibições do
Bioscópio de Max Skladanowsky, anteriores ao próprio cinematógrafo dos Lumière (exibidos
no interior de espetáculos de variedades alemães entre 1895-1896), quanto as reações do
público norte-americano frente à referida música de O nascimento de uma nação, a qual
construía os caracteres de negros e brancos a partir da dicotomia racista
selvagens/civilizados, em consonância com o filme (MARKS, 1997, p. 3-25).
Marks procura sublinhar a presença dos sons desde a alvorada da cinematografia,
aproveitando-se da documentação que depreende dos arquivos (não apenas partituras, mas
depoimentos de contemporâneos). Ainda assim, a pequena quantidade de partituras restantes
contrasta-se com a multiplicidade dos contextos de exibição, ao redor do mundo. No dossiê
da revista 1895: Mille huit cent quatre-vingt-quinze voltado às relações entre cinema e som,
4
Exemplos retirados da obra de ABEL e ALTMAN (2001). Confiram-se igualmente MARKS (1997) e NASTA
e HUVELLE (2004).
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publicado em 2001, Giusy Pisano aponta para conclusões análogas. Pianos ou fonógrafos – a
depender das condições financeiras da sala – acompanhavam, na França, as primeiras
exibições cinematográficas do século (PISANO, 2002, p. 6), enquanto espaços mais amplos
contavam com orquestra, piano e um gramofone com uma vasta gama de discos, a
trabalharem alternadamente. As conclusões semelhantes às quais chegam os estudiosos vão
de encontro a certos resultados alcançados pela nossa pesquisa, já que, examinando o
contexto carioca, depreendemos informações que apontam, sobretudo, para desatrelamento
dos âmbitos cinematográfico e sonoro, nos anos iniciais da cinematografia.5
O passo da análise de contextos específicos às generalizações, embora pareça curto,
esconde percalços que devem ser trazidos à tona. A inexistência da padronização na esfera de
exibição, no primeiro quarto de século da cinematografia, abre o horizonte a uma variedade
de possibilidades. Por outro lado, dá-se no Rio de Janeiro de meados da década de 1900 o que
se dera no interior das exibições “bioscópicas” de Skladanowsky, ou nas grandes salas de
cinema francesas (como a Dufayel ou a Gaumont-Palace) citadas por Pisano – raramente
compunham-se partituras originais para os filmes; acomodando-se à ação, ao contrário,
músicas já caras ao público. Assim, nesses três contextos discutidos, a cena cinematográfica
de saída permeava-se de sentidos outros, construídos para além de si.
Ao focar o contexto brasileiro, tomando como objeto a capital do país, esta pesquisa
procura preencher uma lacuna incontestável: nenhuma das coletâneas voltadas às relações
entre cinema e sons, publicadas em contexto internacional, veiculou um estudo sobre o
Brasil6. Dentre os raros trabalhos acerca do assunto, voltados às décadas iniciais da
cinematografia7, é importante citar aqui o livro A música no cinema silencioso no Brasil, de
Carlos E. Pereira, publicado no Brasil em fins de 2014, ponto de partida fundamental ao
estudo do assunto, porque sinaliza searas férteis de pesquisa, embora o faça de forma
panorâmica, carecendo por vezes de indicar as fontes donde as informações são compulsadas,
e preferindo, ademais, os relatos memorialísticos publicados após a época do cinema
“silencioso” à análise das folhas contemporâneas. Esta breve reflexão acerca da obra de
5
Malgrado desde anos antes do advento do cinematógrafo as folhas cariocas terem noticiado com euforia os
resultados da pesquisa de Thomas Edison no sentido de alcançar a síntese da imagem e do som, guardando-a
para a posteridade. Cf. Il Kinetografo, 1891, p. 1.
6
É preciso se destacar, todavia, o bom trabalho publicado por CONDE (2011), que discorre sobre as “fitas
cantantes” e as “revistas cinematográficas” cariocas, embora ela tome como foco as relações entre cinema e
literatura.
7
Destacamos de saída o artigo de MORETTIN (2009), fonte de inspiração para a realização desta pesquisa.
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No qual se ombreavam divertimentos como “fio aéreo”, “diorama”, “byciclettes elétricos”, “tiro ao alvo”,
“montanhas russas”, “máquinas automáticas”, além de um “botequim de primeira qualidade” e um portentoso
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própria e original” (Teatro Maison Moderne, 1906, p. 6.). Um descompasso digno de nota no
que tange a essas referências é o quanto a ausência empírica de acompanhamento sonoro, em
contexto carioca, nos primeiros anos da cinematografia, reverte-se numa escuta psicológica,
os espectadores recorrendo à memória no intuito de atribuir às películas as sonoridades
correspondentes àquelas ali figuradas – à maneira como se dera na Inglaterra do século XIX,
na apreciação quadros que evocavam momentos de escuta compenetrada, como “Angelus”
(1859), no qual Jean-François Millet retrata um casal embevecido ante o ressoar do sino da
igreja (CHRISTIE, 2001, p. 5).
As considerações que tece Ian Christie serão oportunamente retomadas neste trabalho,
no qual se analisam, num só tempo, documentos que explicitam empiricamente aspectos da
exibição cinematográfica e textos de maior ou menor cunho ficcional, que explicitam como a
recepção do cinema era permeada por elementos exteriores à sala de exibição – aos quais as
fitas aludiam de bom grado, já que elas também brotavam desse encorpado cadinho cultural
do qual as audiências daqueles tempos se alimentavam. Principia-se, assim, pelos textos
ficcionais (as crônicas e contos, sobretudo – gêneros que então mutuamente compartiam as
suas características – mas também peças de teatro), voltando-se a seguir às vistas, fitas e
filmes nos quais a esfera do som comparece de forma patente, reproduzindo mesmo
tematicamente o quadro de Millet. Tais fontes serão relidas a contrapelo dos documentos
pertencentes à Família Ferrez, que fazem referência à organização do âmbito sonoro não
apenas do Cinema Pathé, mas do conjunto de salas a cujas programações assistiam e/ou para
as quais forneciam fitas e equipamentos. Procura-se, aí, pensar que relação as sonoridades
presentes nas salas passariam a estabelecer com o contexto anterior, no qual a escuta tangia
uma esfera mais mental que física.
Os textos abaixo analisados foram depreendidos do considerável corpus do que se
publicou sobre o cinema no Rio de Janeiro, de princípios da cinematografia até os primeiros
anos do século XX. Foram escolhidos porque demonstram cabalmente a contribuição do
gênero cronístico – no misto de realidade e fantasia que o constitui – na construção da
historiografia do primeiro cinema.
teatro ao ar livre, que serve de chamariz nos anúncios do espaço, na imprensa da cidade. Cf. Teatro Maison
Moderne, 1903.
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Janeiro de 1900. O vapor Chili desembarca na capital a jornalista espanhola Eva Canel,
em visita ao país no intuito de divulgar a sua obra e conferenciar. Um dia mais tarde, vem a
lume no jornal O País uma crônica sua tingida com a tinta da nostalgia, repleta de panoramas
fugazes e músicas de outrora – o Rio que interessava à escritora era muito menos a cidade
impregnada pelos ruidosos festejos que os confrades da imprensa lhe haviam preparado, que
aquela atravessada pelo filtro da fantasia. A crônica de Canel é um registro precioso de como
as sonoridades atravessavam mentalmente as imagens em movimento, implícitas ou
explicitamente solicitadas pela película, à maneira dos panoramas impressos e reproduzidos
pelo “cinematógrafo cerebral” colocado em moção pelos sonhadores individuais:
Em 1874 por aqui passei como um relâmpago, num dia de lufa-lufa, tudo querendo
ver, sem me fixar em coisa alguma: mocidade, falta de pesares, plenitude de ilusões,
o cinematógrafo cerebral imprimindo panoramas, que rapidamente desapareciam,
deixando após si, ao cabo de vinte e quatro horas, um véu pardacento, capaz de
turbar olhos que o fixassem insistentemente.
Todavia, eu conservava a ideia nítida da baía e do jardim botânico. Nada mais.
O panorama geral revelou-se-me de novo, completamente desconhecido e
assombroso: tão assombroso, que me declaro incompetente para descrevê-lo. Isto
não se descreve: vê-se, admira-se, sente-se... e poi morire!
(...)
À noite cantam os grilos em volta e os vagalumes brincam de esconde-esconde num
campo embaixo de minhas janelas. Ainda outra colina bordada de casinhas e que à
noite parece um presepe, de onde se evolam músicas e cantos, rezas e cajus de
negro congo, acompanhados por alguma coisa parecida com o danzon ou o
candomblé.
Todos esses ruídos, que perturbaram a placidez de minha primeira noite de Cuba
(pois ninguém me tira da cabeça que estou em uma Cuba mais formosa que a
outra), vieram entristecer-me, despertando-me, umas sobre outras, um punhado de
saudades. Houve um momento em que acreditei ouvir a — Sentinela! alerta! das
fortificações, e muito surpreendida fiquei de não haver sido despertada pelo toque
de alvorada.
Ainda mais: assim como a sombra acompanha o corpo, há uma música que me
persegue, que é o meu pesadelo, mas um doce pesadelo, uma tortura com mimos
acariciantes, uma dor com intervalos de alívio e anestésico, um não sei quê de
inexprimível, que não sei quando nasceu e há de morrer quando eu morrer.
Essa música recebeu-me aqui, como por toda a parte.
Na solidão da noite, alastrando-se pelas trevas, estreladas de pontos luminosos,
espargidos pelos promontórios vizinhos, penetrou a onda sonora em meu retiro,
esgueirando-se pela janela, de companhia com umas tantas falenas, que vinham
morrer abrasadas na luz que me alumiava a mesa. E eu, encantada, escutando,
saturando a alma com essas notas, que tanto mais mal me fazem quanto mais as
ouço e quanto mais rápido corre o tempo, admirava as mariposas e recordei-me,
sem esforço de memória, por uma simples associação de ideias, de uma trova que
aprendi, há muito, com um bispo sul-americano que me traduzia canções quichuas:
Como la mariposa
Tengo mi suerte,
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A cronista faz referência ao ditado napolitano “Vedere Napoli e poi morire...”. Cf. 24 horas: exterior, 1904, p.
1.
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Três anos mais tarde, é o Zé Gira da Bala de Estalo – longeva série cronística da
Gazeta de Notícias – quem aciona o “cinematógrafo caprichoso do sonho” (Zé Gira, 1903, p.
3), para que reproduza, “exagerados”, o que o cronista acabara de ver na Festa da Penha.
Assim diz ele voltando à casa, com os braços repletos dos despojos da popular celebração:
A um canto da mesa abandono a cornucópia enfeitada dos laços multicores, a vasta
circunferência de uma rosca doce e alourada que soberbo passeei a tiracolo (...).
Destroços, troféus, saudades dali, de onde as atirei, cansado, mas contente, espiam
para a brancura imaculada destas tiras que pedem, exigem a prosa de uma “bala”,
que tenho de estalar com os leitores desta coluna, o “Ai Jesus” da Gazeta, e a
alminha só me pede que durma para sonhar com a Penha, para ver outra vez,
exagerados, no cinematógrafo caprichoso do sonho, os quadros e os grupos, as caras
felizes e as cenas pitorescas que vi, aplaudi e vivi acordado.
Que me importam as tiras? Fiquem brancas como estão, que muito melhor hão de
ficar assim, sem mácula, sem o pecado original de garatujas, reproduzindo ideia que
não vem, inspiração que perdi, no escuro profundo de uns cabelos que pareciam a
própria noite penteada em bandós, no insondável de uns olhos claros que ainda
sinto cintilando e queimando, aqui, no coração!
Ideia? Inspiração? como, se ainda não morreu de todo no espaço azul, asfixiada por
todos os outros ruídos do universo, a quadrinha do fado que a dona dos cabelos e
dos olhos cantava, enquanto gemia, ao carinho de seus dedos brancos, a guitarra
meiga?
As casas de minha aldeia,
Nas terras de Portugal,
São flores de laranjeira
No verde do laranjal. (Zé Gira, 1903, p. 3)
Na crônica de Zé Gira, apela-se ao sonho como sucedâneo do “sonhar de olhos abertos”
fomentado pelo cinema. Por isso, o cronista pede licença à pena: a alegria passada apenas
poderia ser revisitada plenamente – porque potencializada –, por meio da paleta sinestésica
oferecida pela imagem fugaz, feita de cor, de luz, de calor e de música: “os quadros e os
grupos”, “as caras felizes”, os “cabelos que pareciam a própria noite penteada em bandós”, “a
quadrinha do fado” que certa jovem cantava, acompanhada pela “guitarra meiga”, ou “as
súplicas humildes dos que pedem misericórdia para o infortúnio e para a dor.”... (Zé Gira,
1903, p. 3). Os panoramas grafados pela pena-cinematógrafo de Eva Canel transformam-se
aqui em quadros e cenas. Méliès já era conhecido dos cariocas em 1903, A Viagem à Lua,
Joana D’Arc, Os sete Castelos do diabo, Ali Babá; o cinema livremente franqueado à
magia10. Daí o colorido intenso do quadro “exagerado” em sonho, deflagrado pelas
recordações materiais da noite – dentre outras coisas, a “cornucópia enfeitada dos laços
10
Para localização, na imprensa, dos dois primeiros filmes citados, cf. “Parque Fluminense”, 1903, p. 6. Para os
seguintes, cf. Parque Fluminense, 1903, p. 4.
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multicores”, apetrecho tão digno dos prodígios do mago francês... – que jaziam a um canto da
mesa, embaladas pelas quadras do fado português entoado por certa morena.
A exemplo do que passa no caso de Eva Canel, o cinematógrafo operado por Zé Gira
recebe como acompanhamento um trecho musical popular, em que quadras são
acompanhadas de música. O espetáculo cinematográfico sonhado naquela aurora de século
prenunciava o que se forjava em âmbito técnico – multiplicavam-se então os ensaios visando-
se à sincronização da película e do som, contemporâneos ao nascimento do cinematógrafo11,
que transformaria o cancioneiro popular num de seus principais objetos12. Destaque-se
igualmente a nacionalidade de tal repertório – o português europeu e o espanhol eram línguas
correntes no panorama cultural do Rio de então, dada à importante parcela de imigrantes
chegados nas últimas décadas do século XIX (chegados, no caso de Portugal, durante todo o
século). Se a dicção portuguesa era incontornável tanto na prosódia usada nos palcos quanto
no repertório teatral, dramático e musical (que não raro prestigiava claramente a enorme
comunidade daquele país que vivia em solo nacional, cf. por exemplo Recreio Dramático,
1903, p. 6; Parque Fluminense, 1903, p. 6; Teatro Lucinda, 1902, p. 6.), a espanhola se
observa especialmente no que toca ao cancioneiro apresentado nos cafés-concertos e
espetáculos de variedades13.
Observamos, no que toca a Eva Canel e Zé Gira, que as sonoridades presentes no
âmbito teatral são fundamentais para o forjamento do espetáculo organizado pelos seus
cinematógrafos cerebrais. Daí se explica a crônica que Baptista Coelho faz publicar, em
1904, no Jornal do Brasil, sob o título de “O Derradeiro Olhar”, na qual busca aliar o
arcabouço do teatro ao do cinema no intuito de apreender os últimos instantes de vida de uma
jovem senhora, morta (o autor discorria sobre um fato real) enquanto assistia à mágica A
Gata Borralheira, encenada pela companhia portuguesa que ocupava então o Teatro Apolo:
Diz-se que no momento de morrer, na hora trágica da agonia, seja ela terrível,
dolorosa, ansiada ou calma, lenta, suave, em um relancear d’olhos, rápido, fugaz,
11
Mesmo anteriores ao seu nascimento. Veja-se, por exemplo, Dickson Experimental Sound Film (William K.L.
Dickson, 1894), uma das primeiras vistas do kinetoscópio de Edison a ensaiarem a sincronia entre imagens e
sons. A esta respeito, cf. LOUGHNEY, 2001.
12
A Gaumont iniciara em 1902 os estudos visando à construção de seu chronophone, máquina por meio da qual
se veicularia, a partir de 1906, um rol de canções notórias de cunho erudito e popular. cf. GIANATI;
MANNONI, 2012.
13
Sobejam exemplos a respeito. Concentremo-nos em três: nos “Bailados originais espanhóis pelas gentis ninas
sevilhanas”, uma das atrações do Parque Fluminense em 1902; na “cançonetista espanhola Modesta”, a qual
compunha o programa da Maison Moderne em 1905; e na celebérrima zarzuela madrilenha “La Gran Via”,
apresentada no Teatro São José em 1906. Cf. Parque Fluminense, 1902, p. 6; Maison Moderne, 1905, p. 2;
Teatro São José, 1906, p. 12.
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levado a assistir, do alto de uma montanha, ao espremer e acotovelar das Eras. A ubiquidade
atingida décadas depois pelo cinema – ao discorrer sobre Intolerância (1916), Griffith diria
ser o cinema “um cenário no qual seis ou sete eventos se desenrolam no mesmo tempo e
lugar.” (BANDA; MOURE, 2008, p. 393) – já era então vislumbrada pelo panorama, cuja
mise-en-scène se assemelhava à construída por Machado.
A crônica de Baptista Coelho bebe desta tradição, multiplicando a aceleração da cena a
partir não apenas das estruturas da literatura e do teatro, mas do cinema – que materializava
as visões literárias dando-lhes, graças às suas especificidades técnicas, a fluidez dos sonhos
(ou dos desvarios). Sentada à janela de um trem a “correr doidamente” pelas estações da vida,
fundindo visões – como se tal meio de transporte houvesse se transformado num simulador
de viagens semelhante ao Hale’s Tours, contemporaneamente inventado na América do
Norte (GUNNING, 1994) –, a moribunda do Teatro Apolo encena a simbiose entre o humano
e o maquínico incontornável àquela aurora de século, sobre a qual Ian Christie (2001) fala
com erudição magistral no artigo supracitado.
O repertório sonoro escutado pela jovem mulher é igualmente resultado de tal mescla,
em que se fundem as gargalhadas e os ruídos da sala, as “músicas festivas” que F. Duarte
compusera à versão portuguesa da mágica francesa e, em contraponto, a nostalgia de certa
voz de outrora (“a voz meiga, lenta da Vovozinha”) – cuja sobrevida poderia então ser
garantida não apenas no âmbito da memória, mas materialmente, por meio de dispositivos
como o fonógrafo (CHRISTIE, 2001, p. 8-9) –, a narrar imemoriais contos de fadas. Na
modulação orquestrada por Baptista Coelho, a melopeia da avó se sobrepõe, no fim da
jornada da neta, aos coros e à turba do teatro. Tal sofisticação do âmbito sonoro era inusual
aos cinematógrafos então, e, se prenuncia bandas sonoras compostas vinte anos mais tarde (a
exemplo daquela de Aurora (Sunrise, Murnau, Fox, 1927), que explora com complexidade a
polifonia ambiente, trabalhando de forma tanto objetiva quanto subjetiva), apenas o faz
porque olha, por cima dos ombros, a produção cultural de um passado mais recuado ou
menos: as vozes e os ruídos que os leitores de Dickens objetivamente ouviam ao
mergulharem em seus romances – como bem lembra Eiseinstein – eram emprestadas dos
meandros da vida e da arte. O mesmo se dava no tocante à relação estabelecida entre o
primeiro cinema e seus espectadores, como essas crônicas apresentadas fazem-nos
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vislumbrar. Daí ao largo repertório de vistas tematizando bailados, rodadas a partir de 189414.
Ou às fitas posteriores nas quais os sons eram figurados de modo contundente, as quais serão
referidas a partir de agora.
14
Citadas nas“Referências Bibliográficas” deste trabalho.
15
As referências são de um cronista anônimo d’ A Notícia e de Arthur Azevedo. As citações seguem: “A dança
do ventre, entre as várias exibições feitas, foi por certo a mais perfeita. (...) É a dança do ventre, a verdadeira
dança do ventre da bela Fatma (sic.) (...).”; “Todas [as fotografias, ou seja, as vistas] me agradaram, todas, mas
nenhuma como as coloridas, que reproduzem, com uma precisão extraordinária, as danças serpentinas da Loie
Fuller, ou do diabo por ela.”. As referidas vistas são Dança do Ventre (Edison, 1896) e Dança Serpentina
(Lumière, 1896 ou Gaumont, 1897). Cf. O Omniógrafo, 1896, p. 2; A. A., 1897, p. 1.
16
Entre parênteses apresentam-se os nomes dos cinemas onde os títulos foram exibidos, considerando-se a data
de publicação dos anúncios, informações oriundas das páginas da Gazeta de Notícias.
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todos os movimentos e ruídos” (Cinema Brasil, 1909, p. 6.) – portanto, tomando todos os
sons nelas figurados como cues17 para a produção, ao vivo, de sons correspondentes –, e o
acompanhamento musical que o cinema Rio Branco utiliza no D. João (Don Juan, Pathé
Frères, 1908): o Don Giovanni de Mozart (ou seja, a contraparte operística da personagem
cinematográfica), especialmente orquestrado para a ocasião pelo maestro Costa Júnior
(Cinematógrafo Rio Branco, 1908, p. 6). Conviviam, portanto, a imitação estrita da realidade
e a criação de uma tessitura sonora que desse conta de estabelecer musicalmente (e
abstratamente) os caracteres, as relações entre as personagens e o encaminhamento da ação,
esforço análogo ao que no mesmo ano encetava Saint-Saëns, em Paris, na concepção do
acompanhamento musical de L’assassinat du Duc de Guise, Pathé Frères, 1908 (MARKS,
1997, p. 50-61).
A reprodução de “todos os movimentos e ruídos”, por parte do Brasil Semi-Falante,
remete-nos ao último veio que será aqui analisado. Contemporaneamente, Marc Ferrez e os
filhos comercializavam, nos quatro cantos do Brasil, uma “máquina de fazer barulho”18. A
rica documentação da família, depositada no Arquivo Nacional (em especial a extensa
quantidade da cartas que Marc e os filhos trocaram entre si e com indivíduos com os quais
faziam negócios, no Brasil e no estrangeiro) ilumina aspectos da pesquisa como, por
exemplo, o que diz respeito aos equipamentos utilizados nos cinematógrafos aparelhados pela
empresa. O resultado do levantamento nas referidas fontes arquivísticas será analisado a
contrapelo do repertório cinematográfico apresentado no Rio de Janeiro no período. A porção
dessas fitas produzida nacionalmente se perdeu. Uma pequena porção do repertório
internacional, que resistiu ao tempo, encontra-se disponível em repositórios virtuais
estrangeiros e pode, portanto, ser materialmente analisada. Porém, um caminho profícuo pelo
qual podemos principiar a análise dessas obras é por meio de seus entrechos, publicados de
forma detalhada no Catalogue Pathé (BOUSQUET, 1994-2004), agora disponíveis nos sites
Gaumont Pathé archives e Foundation Jérôme Seydoux Pathé. Analisaremos a seguir dois
exemplos modelares dentre os supracitados: Os efeitos do violino e Música e poesia.
17
Os sons figurados diegeticamente davam “deixas” ao exibidor sobre que sonoridades produzir na sala de
exibição, a efetividade disso dependendo do equipamento (ou da orquestra) de que ele dispunha
18
Veja-se o excerto da carta enviada por Marc Ferrez & Filhos a José Tous Rocca, responsável pela sucursal da
empresa carioca nos Estados do Norte, datada de 23 jun. 1909: “Remessa de hoje – Fizemos remessa de fitas em
segunda mão e de 1 máquina de fazer barulho, tendo igualmente embarcado 1 máquina d’estas a Honorato. (...)
Temos ainda aqui outra máquina de barulho sobre a qual esperamos as vossas ordens, pois tudo depende da
instalação de Manaus e Maranhão.” Cf. FF-FMF – 2.0.1.14.20/2.
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Na correspondência dos Ferrez onde se menciona a tal “máquina de fazer barulho” faz-se referência
igualmente ao envio de “cem catálogos”, provavelmente para serem distribuídos por Rocca para os cinemas que
principiam a fazer negócios com os Ferrez. Cf. FF-FMF – 2.0.1.14.20/2.
20
Para detalhes sobre o contrato travado entre Marc Ferrez & Filhos e William Auler, proprietário do Rio
Branco, cf. CONDÉ, 2012, p. 72-76.
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A carta, datada de 20 nov. 1914, é de Marc Ferrez, que então passava temporada em Paris.
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Conforme Márcia Sousa (2013), em 1915 dois empresários americanos – W. M. Alexander e J. P. Ryan –
chegavam ao Rio de Janeiro com o objetivo de estruturar a presença da Fox Film em nosso mercado exibidor. O
primeiro passo foi, naquele ano, a abertura de um escritório da empresa, com endereço na Avenida Central, “no
mesmo prédio do Jornal do Brasil” (2013, p. 90). Após a Fox, no final da década de 1910, chegam a Paramount,
First National, Metro-Goldwyn-Mayer e United Artists (2013, p. 90).
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5. Considerações finais
Este trabalho adentra caminhos díspares no intuito de analisar o ambiente sonoro das
salas de exibição cariocas nos vinte primeiros anos da cinematografia. O âmbito teatral, o
cronístico e a documentação da Família Ferrez comparecem nele com fins num só tempo
pragmáticos – dadas as inúmeras ausências inerentes ao objeto (de material fílmico, das
partituras que acompanhavam as fitas, de informações detalhas e organizadas a ele
concernentes) – como para apontar para uma questão incontornável: o cadinho cultural dentro
do qual a cinematografia do período estava imersa; o hibridismo constitutivo daquele que a
historiografia da área denominaria de “primeiro cinema”, época na qual o “espaço sonoro da
exibição” ainda se organizava em direção a modelos estandardizados (ABEL, ALTMAN,
2001, XIV; cf. também COSTA, 2005)23. Esta questão para a qual apontam os pesquisadores
oferece-nos uma profícua chave de leitura aos dados recolhidos na imprensa carioca. A
inequívoca presença da espectatorialidade teatral no âmbito do cinematógrafo convida-nos a
nos determos neste período que antecede a institucionalização do lugar da música no
espetáculo segundo modelos impostos do estrangeiro; quando mais intensamente se observa
em funcionamento o elemento catalizador deste trabalho: a presença da polifonia
sonora/social carioca nas salas de cinema da cidade.
Referências
Bibliografia
24 horas: exterior. Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 7 abr. 1904, p. 1.
23
O termo é aqui utilizado porque ele engloba porção razoável de nosso recorte temporal. Châteauvert e
Gaudreault fragmentam o “primeiro cinema” em duas porções, “first period cinema” e “second period cinema”,
estabelecendo-se 1908 como ponto de virada. A partir de então, e até 1913, passa-se a se instaurar um âmbito
privado na sala de exibição, daí à valorização do silêncio e a paulatina estruturação de um espaço sonoro
institucionalizado (CHÂTEAUVERT, GAUDREAULT, 2001, p. 183-184).
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Zé Gira. Bala de Estalo. Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 5 out. 1903, p. 3.
Bases de dados
Arquivo Nacional – Família Marc Ferrez: FF-FMF – 2.0.1.14.20/2; Júlio Ferrez: FF-JF 2.1.1.2 (1913-1914);
Firma Marc Ferrez: FF-FMF – 2.2.2.1.10 e FF-FMF 6.1.0.9.1.
Fondation Jérôme Seydoux-Pathé. < http://www.fondation-jeromeseydoux-pathe.com/ >.
Gaumont Pathé archives < http://www.gaumontpathearchives.com >.
Hemeroteca Digital Brasileira < http://memoria.bn.br/hdb/periodo.aspx >.
Internet Movie Database < http://www.imdb.com/ >.
Filmografia
Alucinação Musical (Hallucination musicale, Pathé Frères, Segundo de Chomón, 1906).
Annabelle Butterfly Dance (William K.L. Dickson, Edison Manufacturing Company, 1894).
Ali Babá (exibido no Rio de Janeiro em set. 1903).
Aurora (Sunrise, 1927, Fox Film Corporation, Murnau, 1927).
As aventuras de Elaine (The Perils of Pauline, Louis J. Gasnier, Donald MacKenzie, Pathé Frères, 1914).
O assassinato do Duque de Guise (L’assassinat du Duc de Guise, Charles Le Bargy et André Calmettes, Pathé
Frères, 1908).
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