O conhecimento sobre gênero e política tem sido tão fecundo e de tão longo
alcance nos últimos dez anos que é impossível resumi-lo ou sintetiza-lo de todo. Ao
invés disso eu escolhi explorar um pouco dos assuntos em destaque em parte deste
trabalho, com um olhar que provoque uma nova contribuição crítica, senão uma revisão
ou reconceitualização, dos termos que têm sido usados na maioria de nossas análises.
Esta última frase é crucial, como um lembrete tanto da futilidade em insistir nos
usos lingüísticos precisos como da dificuldade que as feministas têm tido em discernir
as designações sociais de seus referentes físicos. Não importa quão insistentemente
os/as teóricos/as feministas têm refinado o termo “gênero” (expurgando-o de todas as
conotações “naturais” enquanto promovem seu status como uma “construção social”),
eles/elas têm sido incapazes de impedir sua deturpação. No senso comum, “sexo” e
“gênero” são muitas vezes utilizados como sinônimos e antônimos ao mesmo tempo; de
fato, algumas vezes parece que o “gênero” é simplesmente um eufemismo polido para
“sexo”. E considerando o número de livros e artigos acadêmicos que tomam “gênero” e
“mulheres” como sinônimos, os/as acadêmicos/as não estão muito melhores que o
público em geral ao manter a distinção entre o físico e o social (natureza e cultura,
corpo e mente) que a introdução do termo “gênero” pretendia alcançar.
Embora existam contínuos esforços voltados a esclarecer esta confusão de
definições – variando de apelos por uma vigilância mais cuidadosa do uso do termo a
sugestões que ele seja totalmente abandonado – eu não penso que esta seja a maneira de
abordar o problema (Bock 1989; Hawkesworth 1997; Nicholson 1986, 1994-95).
Preferivelmente, eu penso que precisamos interpretar a tendência em associar sexo e
gênero como sintomas de certos problemas persistentes (Sedgwick 1990). Um destes
problemas é a dificuldade de representar os corpos como aparelhos inteiramente sociais
dentro dos termos da oposição entre natureza e cultura. Enquanto estes dois domínios
forem considerados antitéticos, os corpos (e o sexo) parecerão inadequadamente
representados como construção social em si. O “gênero” não substituirá “sexo” em
discussões sobre a diferença sexual; ao invés disso “gênero” sempre será referido ao
sexo como o último patamar de seu significado. Quando o sexo reside no gênero desta
maneira, nada pode impedir que sua existência seja identificada com (ou como) o
gênero em si. O que então parece ser uma confusão conceitual ou terminológica é de
fato uma representação precisa da falta de uma distinção nítida entre os dois termos.
A aparente clareza da distinção entre sexo e gênero obscurece o fato de que
ambos são formas de conhecimento. Empregando a oposição natural x construído
perpetua-se a ideia de que exista uma “natureza” transparente que pode de alguma
forma ser conhecida apartada do conhecimento que produzimos sobre ela (Haraway
1991). Mas de fato, “natureza” e “sexo” são conceitos com histórias (Butler 1993). Eles
estão articulados pela linguagem, e seus significados têm mudado ao longo do tempo e
através das culturas. Quando a oposição sexo/gênero negligencia o papel da linguagem
na construção da natureza ela colabora para assegurar o status (prelingüístico, a-
histórico) natural do sexo – exatamente o que a introdução do “gênero” pretendia
subverter (Adams 1979). Talvez a confluência entre sexo e gênero no uso comum possa
ser considerada uma correção do “erro” que colocaria o sexo fora da linguagem. Pelo
contrário, aqueles que usam os termos de forma intercambiável parecem estar dizendo
que tanto o “sexo” como o “gênero” são atribuições de significado, formas variáveis de
diferenciar corpos nos domínios (embora diferentes) do físico e do social. Se este for o
caso, para que serve insistir na distinção entre sexo e gênero?
Ainda outra razão pela qual tem sido difícil manter a distinção clara entre sexo e
gênero são os impulsos universalizantes tanto do feminismo (um movimento político
originado no Ocidente no momento de suas revoluções democráticas do século XVIII)
como da ciência social (cujas origens são mais ou menos contemporâneas às origens do
feminismo). Os impulsos universalizantes do feminismo e da ciência social têm operado
para produzir uma visão das mulheres (ao longo do tempo e das culturas) como
fundamentalmente homogênea por tomar como autoevidente a diferença fundamental
entre “mulheres” e “homens” (Riley 1988). Ainda quando as diferenças nacionais e/ou
culturais são reconhecidas, estas são tratadas como um fenômeno de segunda ordem,
muitas variações sobre um tema universal no qual o gênero sempre significa a mesma
coisa: um relacionamento assimétrico, senão antagônico, entre mulheres e homens que
organiza as diferentes funções para cada um em espaços e atividades separadas. Mas se
o gênero – um fato invariável da diferença sexual – é universal, o que, senão a biologia,
pode finalmente explicar sua universalidade? Se o gênero significa as formas sociais
impostas nas diferenças existentes entre mulheres e homens, então a natureza (corpos,
sexo) é deixada no lugar como o fator determinante da diferença. Se o estudo das
mulheres automaticamente leva à “análise de gênero,” então uma forma de
essencialismo está dirigindo a investigação: a presença de fêmeas físicas significa que
um sistema de diferença – já conhecido por nós – existe de fato (Yanagisako and Collier
1987). Quando o “gênero” assume a existência a priori da diferença sexual, sem
problematizá-la de fato, então as distinções conceituais nítidas entre sexo e gênero são
impossíveis de serem mantidas.
Mas talvez isto não seja necessário para manter tais distinções, talvez seja mais
útil aceitar a falta de precisão que os editores do American Heritage Dictionary
identificaram. Se o sexo e o gênero são ambos tomados como conceitos – formas de
conhecimento – então eles são intimamente relacionados, se não indistinguíveis. Se
ambos são conhecimentos, então o gênero não pode ser evocado para refletir o sexo ou
para ser imposto sobre ele; melhor dizendo, o sexo torna-se um efeito do gênero. O
gênero, as regras sociais que tentam organizar as relações entre homens e mulheres nas
sociedades, produz o conhecimento que temos sobre o sexo e a diferença sexual (em
nossa cultura por igualar o sexo com a natureza). Tanto o sexo como o gênero são
expressões de certas crenças sobre a diferença sexual; eles são organizações da
percepção mais do que descrições ou reflexos da natureza (Keates 1992). Se o sexo, o
gênero e a diferença sexual são efeitos – discursivamente e historicamente produzidos –
então não podemos considerá-los como pontos de partida para nossas análises. Ao invés
disso devemos levantar as seguintes questões: Como as leis, as normas e os acordos
institucionais fazem referência e implementam as diferenças entre os sexos? Em quais
termos? Como as diferentes sociedades organizaram as relações de gênero? Em quais
termos a diferença sexual foi articulada? Como os discursos médico e legal – os
discursos do paciente e do cidadão, por exemplo – produziram conhecimentos ditos
verdadeiros sobre a natureza de mulheres e homens? (Foucault 1980; Laqueur 1990).
Qual tem sido a conexão entre gênero e política? A diferença sexual foi invocada
diferentemente em diferentes tipos de movimentos políticos e sociais? Como, e em
quais termos? Qual é a natureza do apelo? Que tipos de investimentos psíquicos são
solicitados e/ou produzidos na organização social das diferenças entre os sexos? Qual a
ligação específica feitas em articulações da diferença sexual com outros tipos de
diferença (raça, classe, etnicidade, etc.)?
Estes tipos de questões requerem leituras específicas de casos particulares. Elas
não defendem que o gênero é sempre a força motriz da política; de fato, elas levam em
consideração a possibilidade de que possa existir pouca ou nenhuma relação entre
gênero e política. Nem defendem um significado invariante para o gênero em si. Ou
melhor, tomam-no como sendo um fenômeno físico e social complexo e em
transformação. E ainda, tais leituras necessitam ser atualizadas pela teoria ou teorias,
isto é por tentativas em detectar alguma lógica (ou lógicas) subjacente nas variadas
manifestações do comportamento humano. A teoria nunca esteve ausente dos estudos
feministas; os debates entre marxistas, estruturalistas, pós-estruturalistas e aqueles que
se baseiam na psicanálise têm dado vitalidade ao campo nas últimas décadas, criando
tensões produtivas até mesmo em meio a intercâmbios animosos. Um resultado desta
atividade tem sido a pressão para complexificar as análises nos termos sugeridos por
Gayle Rubin em seu artigo de 1975 “O Tráfico de Mulheres”: “Eventualmente, alguém
terá que escrever uma nova versão de “A Origem da Família, da Propriedade Privada e
o do Estado” (de Friedrich Engels), reconhecendo a interdependência mútua entre
sexualidade, economia e política sem subestimar o significado pleno de cada um na
sociedade humana (Rubin 1975:145).
O tipo de síntese convocada por Rubin requer um pensamento sobre sexualidade
nos mesmos termos da economia e da política, ou seja, como uma atividade humana
complexa mais do que o reflexo ou o cumprimento de um fato físico. Teorizar a
sexualidade humana tem sido a província da psicanálise neste século. “É essencial,”
escreveu Sigmund Freud, “compreender claramente que os conceitos de „masculino‟ e
„feminino‟, cujo significado parece tão evidente para as pessoas comuns, está entre o
que de mais confuso ocorre na ciência.” “Nos seres humanos,” ele continuava, “a
masculinidade ou a feminilidade pura ainda não foi encontrada nem no sentido
psicológico nem no biológico. Cada indivíduo, ao contrário, apresenta uma mistura de
traços de caráter pertencentes ao seu próprio e ao sexo oposto; e ele mostra uma
combinação de atividade e passividade e se estes traços de caráter correspondem ou não
com seus traços biológicos” (Freud 1905:125-172). Para Freud, a auto-identidade de
uma pessoa enquanto homem ou mulher é um processo complexo – cultural, físico e
psicológico – girando em torno do mito da castração. O psicanalista francês Jacques
Lacan foi mais longe, insistindo que “homem” e “mulher” não são descrições
biológicas, mas significantes de posições simbólicas assumidas por sujeitos humanos
(Lacan 1977). E para ambos Freud e Lacan, a identidade sexual nunca foi estável, nunca
finalmente estabelecida; assegurada apenas através de sua repetida performance
(necessariamente em relação aos outros).
Para Freud, foi a função repressiva da civilização que, em nome da reprodução
da espécie, direcionou as energias sexuais difusas para a monogamia, o caminho
heterossexual. (O requisito... de que deveria existir um tipo único de vida sexual para
todos, ignora as disparidades, quer sejam inatas ou adquiridas, na constituição sexual
dos seres humanos; isto aparta um número razoável destes seres do prazer sexual, e
torna-se então fonte de grave injustiça” (Freud 1930:104). A diferença entre os sexos,
então, é um feito social (o preço da “civilização”) embora não no sentido que a oposição
entre gênero e sexo (cultura e natureza) implica. O cultural não é uma operação
planejada, racionalmente imposta sobre os corpos físicos e então “internalizada” pelos
sujeitos. De uma perspectiva psicanalítica, o psicológico, o social e o físico não existem
independentemente de um ou de outro; eles estão, ao invés disso, inextricavelmente
combinados, constituídos nos e pelos processos psíquicos que são crucialmente
atualizados pelo inconsciente.
A grande contribuição de Freud para o estudo da psique humana (e através desta
o estudo da produção da diferença sexual) foi a teoria do inconsciente. De acordo com
Freud, o inconsciente é o lugar dos instintos reprimidos e dos desejos que se seguem
deles. Embora não seja diretamente acessível à consciência, o inconsciente, todavia, tem
uma influência discernível nas ações humanas. Os desejos inconscientes são expressos
em lapsos de linguagem, piadas, sonhos e fantasias; estas expressões tomam forma
simbólica – elas são condensações e deslocamentos de significado, não representações
diretas, e elas devem ser interpretadas como tais. As fantasias expressam os desejos
inconscientes e decretam sua realização (e as complicadas conseqüências de tal
realização); elas atualizam a memória, reconstruindo e redefinindo imaginativamente o
passado.
Ao se reconhecer que a fantasia modela representações, ações e memórias, ela
torna-se um componente crucial do comportamento humano. Ao se reconhecer que ela
oferece explicações gerais para a origem dos sujeitos humanos e suas características
definidoras da sexualidade e da diferença sexual, a fantasia não é apenas um
componente da vida psíquica dos indivíduos. Ela compartilha da estrutura mítica da
cultura ocidental. J. Laplanche e J-B. Pontalis definem como fantasias primárias ou
originais aquelas que “relacionam-se a problemas de origem que se apresentam para
todos os seres humanos: a origem do indivíduo (cena primária), a origem da sexualidade
(sedução), a origem da diferença entre os sexos (castração)” Laplanche e Pontalis
1968:19).
Estas histórias de origem não são restritas à sexualidade como se fosse um
departamento separado da existência humana. A fantasia espalha-se em todos os
aspectos da vida: em culturas patriarcais a masculinidade é significada não apenas pela
posse de um pênis e pela paternidade, mas (dependendo do tempo e do espaço) pelas
posições de soldado, dono de propriedade, cientista e cidadão, posições das quais as
mulheres estão necessariamente excluídas, porque para inclui-las deveria se reconhecer
que o sexo biológico, de um lado, e a identificação subjetiva com posições simbólicas
masculinas ou femininas, de outro, não são a mesma coisa. A imaginação humana
(impulsionada ao menos em parte pelo desejo inconsciente) atua rápido e perde com as
fronteiras que cientistas sociais poderiam estabelecer: a esfera da economia nunca é
simplesmente a satisfação de necessidades básicas, que a política nunca é apenas
combates entre atores racionalmente motivados, auto-interessados. Estes domínios são
também infligidos pelas projeções fantasmáticas que mobilizam os desejos individuais
em identificações coletivas. É neste sentido que Freud sugere que a fantasia está
crucialmente implicada na política. Em seu ensaio “Fetichismo,” por exemplo, ele faz
uma conexão explícita entre a ansiedade de castração e o medo político. Depois de
sugerir que a visão dos genitais de sua mãe terrifica o jovem garoto, que então reage
pela negação de que falta um pênis nela, continua: “Pois se uma mulher foi castrada,
então sua própria posse de um pênis estava em perigo; e contra isso ergueu-se em
revolta a parte de seu narcisismo que a Natureza, como precaução, vinculou a esse
órgão específico. Na vida posterior, um homem adulto talvez possa experimentar um
pânico semelhante, quando se eleva o clamor de que o Trono e o Altar correm perigo e
conseqüências ilógicas semelhantes decorrerão disso” (Freud 1927:153). Embora o
exemplo tomado pareça relacionar-se ao desenvolvimento de um sentido de diferença
sexual do menino individual, Freud estende-o para a experiência coletiva da política. A
implicação é que, como Neil Hertz sugeriu, as ameaças políticas podem ser
experimentadas como ameaças sexuais (e vice-versa) (1983). Hertz aponta que
inúmeras gerações de comentadores representam as revoluções francesas dos séculos
XVIII e XIX como harpias e Medusas, “as fúrias do inferno, na forma violenta da
vilania das mulheres,” no inglês conservador das palavras de Edmund Burke (Hertz
1983:27). Na leitura de Hertz, a agitação social era entendida como a perda daquilo que
os homens mantinham de forma mais cara: propriedade, poder, posição social, prestígio
familiar, integridade corporal. E a masculinidade estava associada neste discurso
político conservador com a manutenção do status quo; a proteção da ordem significava
proteger o trono, o altar e os limites da diferença sexual. Os significados estão
inextricavelmente ligados: o fantasmático (neste caso o medo da perda do falo) atualiza
os significados da propriedade e da família; as realidades do poder social e econômico
tornam-se suportes para o falo simbólico. A fantasia tem manifestações tangíveis,
conseqüências materiais.
Não há resolução para a ambigüidade do relacionamento entre imaginação e
realidade, nenhuma garantia, Freud argumenta em outra parte (1909:206-8), que a
memória (um “complicado processo de remodelagem”) literalmente reconta a realidade
objetiva externamente vivida, não escapa do fato que a fantasia é em si uma forma da
realidade (realidade psíquica) e que está poderosamente enredada na percepção. A
percepção da diferença sexual está ao mesmo tempo limitada pelas regras da
“civilização” e animada pelas fantasias inconscientes que excedem todos os limites. Isto
desafia a clara separação entre as categorias de “sexo” e “gênero,” que – por estabelecer
dois conjuntos de oposições fixas: natureza versus cultura e homens versus mulheres –
oblitera os modos pelos quais o inconsciente recusa oposições de qualquer tipo. “O que
chamamos nosso „inconsciente‟ – a camada mais profunda de nossas mentes, feita de
impulsos instintivos – sabe que nada disto é negativo, e sem negação; nele as
contradições coincidem” (Freud 1915:296).
Eu argumentaria, então, que a distinção sexo/gênero, que as feministas usaram
para ampliar o campo de observação do sexo e da sexualidade do físico para o social e
cultural, de fato teve um efeito mais limitador. Não apenas dividiu o físico do social
(concedendo o status “natural” no processo), mas também removeu toda a ambigüidade
que a fantasia empresta às identidades subjetivas “homem” e “mulher”, e para as
maneiras nas quais o corpo materializa a psique (Shepherdson 1999). Estudar a “política
do gênero” tornou-se uma questão de rastrear a legislação e a inculcação de “papéis” (a
organização definitiva do masculino e do feminino no homem e na mulher) mais do que
documentar um projeto cuja verdadeira impossibilidade (criando uma oposição fixa e
duradoura, homem-mulher) definiu os termos de suas operações. Estes tipos de análises
dos papéis de gênero e a política de sua produção deram suporte para o empreendimento
das ciências humanas como Michel Foucault criticamente as descreveu: dedicadas a
negar as operações do inconsciente produzindo o homem como um sujeito racional e
instalando a “sobrevivência da consciência (dele),” cujas verdadeiras qualidades que
tinham “incessantemente escapado dele por mais de cem anos” (Foucault 1972:14).
Estas análises, em outras palavras, eram um aspecto da produção ideológica do
“homem” como um ser inteiramente racional e da política como a atividade de agentes
totalmente racionais.
Insistir que a “construção” da diferença sexual envolve processos inconscientes
não é, entretanto, dizer que a psicanálise seja a única teoria que podemos utilizar. De
fato, o tipo de historicização de gênero que estou sugerindo é muitas vezes rejeitado
pelos teóricos/as psicanalistas que consideram a diferença sexual como sendo fixas, uma
relação imutável – o ponto de onde a história emana ou onde sujeitos entram na história.
Mas me parece que o pleno apelo de Rubin por uma teorização da interdependência
entre a economia, a política e o sexual não pode ignorar as operações da fantasia nestes
domínios outrora restritos inteiramente a questões de necessidade, auto-interesse, razão
e poder. O que concretamente significaria para o estudo do gênero, compreendido como
a articulação e a implementação do conhecimento sobre as diferenças entre os sexos?
Primeiro, significaria descartar a ideia (inerente na noção de gênero como uma
“categoria”) que não existe nada fixo ou conhecido no avanço sobre o tema “homens” e
“mulheres” e o relacionamento entre eles. (“Mulheres não podem ser tomadas como um
nome transparente para um objeto eterno” [Adams e Minson 1978:82]). As novas
questões a serem feitas são: Como estes termos estão sendo utilizados em contextos
particulares nos quais eles são invocados? O que está em jogo nas tentativas para
reforçar os limites entre os sexos? Que tipos de diferenças estão sendo implementadas?
Segundo, “homens” e “mulheres” são ideais estabelecidos para regular e
canalizar comportamentos, não descrições empíricas de pessoas reais, que sempre irão
satisfazer ou não os ideais. Como as instituições sociais e políticas oferecem a
possibilidade (a ilusão, a fantasia) de satisfação dos ideais? Como são asseguradas as
identidades sexuais e/ou decretadas através da identificação com várias posições ou
ocupações sociais? (Reynolds 1996; Roberts 1994)? Por outro lado, como as relações de
poder são consolidadas pelos apelos da diferença sexual? Como o apelo ao desejo
inconsciente figura nas articulações de poder? Existe uma erótica do poder?
Terceiro, existe discrepância, até mesmo contradição, nas normas culturais e
papéis sociais oferecidos para articular a diferença entre os sexos (mesmo se a diferença
sexual em si seja um tema recorrente). Isso significa uma leitura de significados
específicos mais do que presumir a uniformidade em todas as esferas e aspectos da vida
social. E significa abdicar de avaliações simplistas da posição “das mulheres” em
termos de avanço e retrocesso, em vez de limitar estas caracterizações a arenas
específicas tais como o mercado de trabalho ou a lei. Em quais esferas a performance
dos papéis sexuais normativos importam? Em quais esferas a diferença sexual é uma
consideração irrelevante? Quais são as manifestações da contradição? Como elas são
expressas? reguladas? compensadas? reprimidas? Como as mudanças em uma esfera
têm influenciado mudanças em outra? O voto, por exemplo, significou o aumento das
oportunidades de emprego ou uma mudança nas práticas de relacionamento?
Estas questões avançam em direção a diferentes tipos de análise daquelas que
tentaram avaliar o impacto de regimes específicos ou políticas para mulheres (A
condição das mulheres melhorou ou deteriorou com a Revolução Francesa?) ou o efeito
emancipatório do voto para as mulheres ou do aumento da participação na força de
trabalho. Elas não assumem a existência duradoura de uma coletividade homogênea
chamada “mulheres” sobre a qual experiências mensuráveis são visitadas. Ou melhor,
elas interrogam a produção da categoria “mulheres” em si mesma como um evento
histórico ou político, cujas circunstâncias e efeitos são o objeto da análise. A menos que
o feminismo seja definido como uma empreitada para marcação de pontos, esta
abordagem me parece estar bem dentro da alçada dos assuntos feministas. Ao invés de
reinscrever os termos naturalizados da diferença (sexo) sobre os quais sistemas de
diferenciação e discriminação (gênero) foram construídos, a análise começa em um
ponto anterior no processo, perguntando como a diferença sexual é em si articulada
como um princípio e prática de organização social.
Havelkova sugere que, por exemplo, gênero é uma consideração menor para a
análise econômica e política. A prostituição é um dos muitos indicadores de um
relativo empobrecimento econômico que também afeta os homens (no nível de
seus corpos também, na forma de fome, estresse e elevada mortalidade).
Protesto, se isto emerge, e iniciativas políticas quando elas são tomadas, serão
(corretamente, insinua Havelkova) direcionadas não somente às hierarquias
sexuais, mas também econômicas nos termos geopolíticos do interesse nacional.
São enquanto tchecos (em relação à hegemonia alemã) e não separadamente
enquanto homens ou mulheres que as pessoas estão, nesta perspectiva,
experienciando os caprichos do capitalismo de mercado. Se, em minha opinião,
Havelkova desnecessariamente separa as questões de gênero e classe, eu penso
que ela, entretanto, levanta um ponto importante. Por ela insistir que, embora
existam muitas formas pelas quais as mulheres são tratadas diferentemente dos
homens, isto não produziu o tipo de consciência que as feministas ocidentais têm
sido levadas a supor. As mulheres têm participado há muito tempo na força de
trabalho tcheca e elas são usadas para confrontar estrategicamente os problemas.
Além disso, “um efeito da experiência totalitária é que ambos, mulheres e
homens, pensam politicamente mais do que psicologicamente. De um lado, isto
leva a um menor grau de sensibilidade às questões de gênero, mas de outro lado,
isto faz as mulheres se sentirem politicamente iguais.” O resultado disto, ela
conclui, não deve ser subestimado no futuro. “Quando as mulheres... começam a
perceber a relevância política da diferença de gênero, elas vão mais
provavelmente ver isto em seu contexto e em proporção a outras realidades
políticas” (Havelkova 1997:59).
A chamada de atenção de Havelkova para as especificidades da situação
tcheca recusa separar os fatores estruturais da percepção subjetiva. Se ela se
refere às “mulheres” como uma categoria social durante todo seu ensaio, ela o
faz tão somente a fim de disputar com as interpretações das feministas
ocidentais. Mas ela nega existir qualquer “interesse das mulheres” que esteja
inevitavelmente ligado às “mulheres”. Em vez disso, em seu pensamento, a
articulação do “interesse das mulheres” marca a emergência de uma identidade
política separada das mulheres, os termos dos quais se relacionam ao modo no
qual a diferença sexual tem sido articulada num contexto histórico específico.
Havelkova parece ter pouca dúvida que algum tipo de movimento feminista vai
emergir – dadas as pesadas desigualdades de gênero aparecendo em arenas da
política e da força de trabalho (um sinal que as linhas da diferença sexual estão
sendo desenhadas de fato) e dado o cenário internacional (promovido pelas
Nações Unidas) que, desde a Conferência de Beijing em 1995, tem clamado
pelos direitos humanos universais das mulheres. Mas sua insistência que as
percepções de desigualdade são moldadas discursivamente em contextos
históricos significa que nós não devemos considerar a emergência deste
feminismo como um sinal do despertar das mulheres para alguma consciência
pré-determinada – um estado já experienciado, já conhecido pelos habitantes dos
países “avançados” do Ocidente. Mais do que isso, “existe uma história do
feminismo na República Tcheca; isto necessita ser compreendido em seus
próprios termos e em sua variação em relação ao feminismo ocidental”
(Havelkova 1997:61).
E isto, conclui Brown, é como deveria ser. “Isto é... em sua abstração das
particularidades de nossas vidas – e em sua figuração de uma comunidade
política igualitária – que eles podem ser mais valiosos na transformação
democrática destas particularidades” (1995:134). Em outras palavras, é porque
eles nos permitem imaginar (e assim lutar para criar) uma ordem diferente da
vida social e política, e não porque eles estão ligados a um conjunto específicos
de objetos ou porque eles são uma possessão humana universal, que os direitos
são efetivos.
Aqui a noção de fantasia pode novamente ser útil. “O discurso dos
direitos universais... apresenta um cenário fantasioso no qual a sociedade e o
indivíduo são percebidos como um todo, como não-separados. Na fantasia, a
sociedade é entendida como alguma coisa que pode ser racionalmente
organizada, como uma comunidade que possa ser não-conflituosa se apenas se
respeite os direitos humanos” (Salecl 1994:127). Os direitos então articulam um
desejo que pode nunca ser inteiramente satisfeito, mas cuja articulação envolve a
asserção que a humanidade sobre a qual a igualdade deve repousar. Isto não é
possessão, mas aspiração que provê um solo comum. “Não é o caso que os seres
humanos enquanto tais têm direitos, mas que ninguém permanece sem direitos”
(Salecl 1994:133), isto é, sem a habilidade de desejar ou imaginar autonomia,
agência, transformação. Esta formulação pode ser interpretada para não admitir
exclusões; as operações do desejo não são à primeira vista limitadas pelas
diferenças sociais, embora elas possam ser direcionadas a diferentes objetos.
Neste sentido, esta noção de direitos poderia ser lida como universalista. É
admitidamente abstrata, mas diferente do indivíduo abstrato, esta compreensão
dos direitos não carrega com ela nenhuma personificação necessária, nenhuma
personalidade (historicamente, o homem ocidental branco) que incorpore um
padrão que funcione para excluir aqueles que são diferentes disto. As
reivindicações das mulheres por direitos, nesse sentido, seriam analisadas como
uma insistência em sua posição (simbólica e real) como sujeitos desejantes,
indivíduos cujos desejos repousam não em sua posse de alguma característica
física ou no desempenho de uma função biológica especificada, mas na ausência
associada com a verdadeira constituição de seu ser: um ser conceitualizado
através do reconhecimento de um outro, necessariamente expresso em palavras
que são sempre inadequadas para a completa representação de si e que, portanto,
deixa a cada um o anseio por completude. Tal completude, paradoxalmente,
marcaria o fim da individuação, a morte do sujeito individual, visto que, de
acordo com Lacan, os sujeitos individuais surgem divididos ou alienados de si
porque são dependentes do reconhecimento dos outros para a confirmação de
suas individualidades. Individualidade – autônoma, independente, auto-criativa –
depende para sua existência da distinção e do reconhecimento de um outro.
Além disso, a individualidade (o senso que cada um tem de si mesmo) existe
apenas em sua representação, e por definição, representação não é uma coisa real
ou original. Mas o eu não pode existir sem representação e sem os outros, apesar
de ser concebido como inteiramente auto-suficiente. A realização do ideal de
auto-suficiência dissolveria exatamente aqueles limites entre o eu e o outro sobre
os quais a realização de si depende (Lacan 1959-60). Disto segue que a
comunidade deveria ser concebida não em termos de uniformização, mas como
uma associação de indivíduos paradoxalmente unidos pela dependência na
diferença (Nancy 1991; Teoria Coletiva Miami 1991; Agamben 1993).
Transformar um termo – “direitos” como aspiração mais do que posse -
requer outra mudança – o “ indivíduo” torna-se mais do que menos abstrato. Isto
também nos permite estabelecer uma distância crítica nos debates
contemporâneos sobre direitos e levantar algumas questões históricas sobre eles.
Como os “direitos” vieram a ser entendidos como alguma coisa que os
indivíduos possuem? Como o gênero figurou na articulação deste individualismo
possessivo? O que têm sido, historicamente e transculturalmente, os
relacionamentos entre as noções de posse e representações da diferença sexual?
Como a fantasia do igualitarismo político (a visão democrática) interagiu com
(suplemento? mudança? contradição?) as fantasias da origem humana que, ao
menos no Ocidente, fizeram a diferença sexual fundamental para as identidades
individuais? Como isto aconteceu diferentemente em diferentes lugares em
diferentes épocas? E quais são as implicações das respostas para estas perguntas
para a nossa compreensão da nova “globalização” do feminismo como uma
questão de assegurar os “direitos humanos” das mulheres? (Signs 1996).
Estas questões nos remetem para algumas daquelas que iniciaram este
capítulo. Elas são questões que fazem a articulação da diferença sexual em si o
problema a ser investigado, que tomam as realidades psíquicas seriamente nos
exames não apenas da ideologia e subjetividade, mas também das instituições
políticas, econômicas e sociais e as relações de poder que elas tentam
implementar (Connell 1987). São questões que admitem os caprichos e as
complexidades das identidades sexuais individuais (e outras), assumindo que a
regulação social se baseia na redução da multiplicidade em categorias
normativas gerenciáveis. Estas questões abrem a possibilidade de pensar sobre a
identidade individual como aquela que é restrita por, mas sempre excede alguma
categorização imposta sobre ela. Se as identidades políticas e sociais sempre
operam redutoramente, a questão se torna como? O que é remanescente ou
deixado de lado no processo de produção (e reprodução) das categorias da
identidade coletiva? Quais são as apostas em tais reduções? Elas têm sido
contestadas? Como? E por quem?
Todas estas questões podem apenas serem respondidas em termos de
exemplos históricos/culturais específicos. Elas necessariamente problematizam e
historicizam as categorias (entre elas o “gênero”) que são os nossos objetos de
estudo, assim como aquelas categorias que dispomos em nossas próprias
análises. Por fazermos uma distinção entre nossas construções discursivas e
aquelas de outros tempos e lugares, nós estabelecemos uma certa reflexividade
sobre nossas próprias participações e intenções (concedendo até mesmo o lugar
do desejo num esforço acadêmico sério). Neste caminho, nós nos abrimos para a
história, para a ideia e a possibilidade de que as coisas têm sido, e serão,
diferentes do que elas são agora.