Donald Wilson ** Rosa Nilda Mazzilli ** Yaro Ribeiro Gandra *
RONCADA, M. J. et al. Hipovitaminose A em comunidades do Estado de São Paulo,
Brasil. Rev. Saúde públ., S. Paulo, 15:338-49, 1981. RESUMO: Foram realizados inquéritos nutricionais completos (de con- sumo de alimentos, bioquímico e clínico) referentes à deficiência de vitamina A em onze comunidades do Estado de São Paulo. O inquérito alimentar mostrou consumo muito baixo de alimentos fontes de vitamina A, tanto de origem animal como vegetal. O inquérito bioquímico mostrou alta preva- lência de níveis plasmáticos de vitamina A classificados como "deficiente" e "baixo". O inquérito clínico mostrou baixos coeficientes de prevalência para lesões oculares, principalmente as mais graves. Embora nem a cegueira, nem as lesões oculares graves constituissem um problema de Saúde Pública, a maioria dessas populações corria o risco de que tais lesões viessem a se tornar um problema. UNITERMOS: Vitamina A, deficiência. Inquéritos nutricionais. Estado de São Paulo, Brasil. Xeroftalmia.
INTRODUÇÃO
Nunca é demais enfatizar a importância ( I C N N D ) , em 1963 6 , envolvendo seis dos
de estudos epidemiológicos regionais sobre nove estados do Nordeste brasileiro. deficiências nutricionais, especialmente a Com o objetivo de contribuir para o deficiência de vitamina A — um dos três conhecimento do estado nutricional de outras tipos mais comuns de desnutrição. regiões do Brasil, o Departamento de Nu- No Brasil, muito poucos estudos desta trição da Faculdade de Saúde Pública da natureza foram publicados em relação à Universidade de São Paulo realizou, de hipovitaminose A, baseados em pesquisas 1969 a 1973, inquéritos nutricionais com- populacionais incluindo consumo alimentar, pletos em várias comunidades do Estado e em exames clínicos e bioquímicos. Um de São Paulo, Brasil. dos mais conhecidos talvez seja aquele Os inquéritos foram realizados nas se- realizado pelo Interdepartmental Committee guintes comunidades: Iguape, Icapara e on Nutrition for National Development Pontal do Ribeira (Fig. a, b. c), em
* Trabalho realizado através de convênio com o Serviço do Vale do Ribeira (Departamento de
Águas e Energia Elétrica do Governo do Estado de São Paulo) e Secretaria dos Negócios da Saúde de São Paulo. Apresentado no XI Congresso Internacional de Nutrição. Rio de Janeiro. Brasil, 1978. ** Do Departamento de Nutrição da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo - Av. Dr. Arnaldo, 715 — 01255 — São Paulo. SP — Brasil. 1968; Apiaí, Ribeira e Barra do Chapéu as três primeiras na região litorânea. Essa (Fig. d, e, f), em 1970; Embu-Guaçu região é uma das menos desenvolvidas do e Getulina (Fig. g, h), em 1972; e, Estado de São Paulo. finalmente, Cipó, Morro Agudo e Salles Neste trabalho, analisaremos os resulta- Oliveira (Fig. i, j, k ) , em 1973. dos encontrados referentes aos inquéritos As comunidades indicadas como a, b, c, alimentar, bioquímico e clínico, no que diz d, e e f estão localizadas no Vale do Ribeira, respeito à vitamina A.
MATERIAL E MÉTODOS lidade da população. Nas comunidades res-
tantes, como as populações eram homo- Amostragem gêneas, extraiu-se uma amostra casual simples, não-estratificada. Em Morro Agudo Foi realizado um cadastramento em cada e Salles Oliveira os inquéritos clínico e uma das comunidades estudadas para esta- bioquímico foram realizados na mesma belecer o número de famílias residentes. amostra dos inquéritos de consumo de Em Icapara e Pontal do Ribeira o inquérito alimentos, e nas outras comunidades em de consumo alimentar foi realizado na tota- sub-amostras do inquérito alimentar. Inquérito de Consumo Alimentar Inquérito Clínico
O consumo de alimentos foi obtido em Os sinais clínicos atribuíveis à deficiência
duas visitas a cada família, no mesmo dia. de vitamina A que foram pesquisados são: A primeira visita era feita à hora do almoço xerose cutânea, hiperceratose folicular, e todos os alimentos preparados eram mancha de Bitot, xerose conjuntival, xerose pesados; a segunda, era à hora do jantar, corneal, ceratomalácia, ulceração corneal, tendo sido usado, então, o método recorda- perfuração e cicatriz corneal. Os resul- tório, uma vez que ambas as refeições tinham tados dos exames oculares foram codificados praticamente a mesma composição (um traço cultural). de acordo com o critério recomendado pela OMS/AID 3. Para o cálculo de calorias e quantidade de nutrientes foi usada a tabela de compo- sição química de alimentos, compilada pelo RESULTADOS Departamento de Nutrição 8 . Os parâmetros para a adequação da dieta foram as reco- Inquérito de Consumo Alimentar mendações do National Research Council (NRC) 7. A adequação média "per capita" A Tabela 1 mostra o valor calórico da da dieta foi calculada para cada família, dieta e as quantidades de proteína total, considerando-se a composição familiar e a proteína animal, gordura, vitamina A total presença de cada membro em cada refeição. e vitamina A pré-formada nos alimentos Inquérito Bioquímico consumidos nas várias comunidades. Houve pequena variação nos valores caló- Colheu-se sangue de todos os indivíduos ricos médios, exceto em Ribeira, o qual com idade de 2 anos e mais por venipunção, apresentou um valor médio de cerca de 750 que foi acondicionado em tubos de cor calorias menor do que o mais alto encon- âmbar contendo EDTA, sendo então trans- portado para o laboratório de campo sob trado (Salles Oliveira). refrigeração. Lá, o sangue era centrifugado Com relação à proteína, verificou-se que imediatamente, o plasma era separado e sua contribuição para o valor calórico total conservado em congelador a - 18°C. foi u n i f o r m e (entre 11 e 13%). No inquérito de 1969 as determinações Houve grande variação no consumo de de vitamina A e caroteno foram realizadas gorduras (23g a 80g), o mesmo aconte- no laboratório de campo. Nos outros inqué- cendo com a vitamina A (133mg a 803mg). ritos, elas foram realizadas nos laboratórios do Departamento de Nutrição da FSP/USP, Distribuindo os resultados em níveis de no máximo 15 dias após a coleta. As amos- adequação de calorias e proteínas (Tabela tras eram transportadas congeladas. As 2), nota-se que uma grande proporção de etapas de centrifugação, separação e deter- famílias apresentou um nível de adequação minação bioquímica foram sempre reali- abaixo de 80%. Quanto à vitamina A, mais zadas em penumbra, para m i n i m i z a r o efeito de 80% das famílias apresentaram níveis de da luz. adequação abaixo de 60%. O método bioquímico utilizado foi o de Carr-Price, realizando controle de qualidade Na maioria das comunidades o consumo das análises através de amostras-controle, médio diário "per capita" de vegetais e constituídas de plasma homogêneo. Os resul- frutas foi insatisfatório, enquanto que em tados foram classificados de acordo com os Icapara, Pontal do Ribeira e Ribeira foi critérios do I C N N D 5 . insignificante (Tabela 3). Inquérito Bioquímico mesmo foi observado quanto ao caroteno (Tabela 7). As determinações de vitamina A foram realizadas em cerca de 75% das pessoas Inquérito Clínico examinadas clinicamente. De acordo com a classificação do ICNND 5, não se encontrou, De 1.660 indivíduos examinados, trezentos em duas das comunidades estudadas, um e quarenta (20,5%) tinham menos de 7 único indivíduo com valores plasmáticos de anos de idade. vitamina A abaixo de 20mg/100ml (Tabela Considerando as lesões oculares (Tabela 4). Com relação ao caroteno (Tabela 5), 9), independentemente das cutâneas, as pro- em duas comunidades não houve resultados porções variaram entre 15% e 16% para classificados como "deficiente" (ICNND); xerose conjuntival (X1A), entre 0,0% e por outro lado, em quatro delas, não foram 1,5% para xerose conjuntival mais mancha encontrados resultados considerados "alto". de Bitot (X1B) e entre 0,0% e 1,3% para As mais altas proporções de indivíduos xerose conjuntival mais xerose corneal (X2). com resultados de vitamina A plasmática Os grupos etários com as mais altas pro- abaixo do normal foram encontradas entre porções de lesões oculares foram aqueles os pré-escolares (Tabela 6, sub-total). O de 7 a 10 anos e de 11 a 14 anos de idade. COMENTÁRIOS E CONCLUSÕES sível que um consumo satisfatório de gor- dura (22% a 29%) em nove comunidades Embora muitas famílias nas comunidades seja responsável por uma melhor absorção estudadas pertencessem a um baixo nível de vitamina A. sócio-econômico, a ingestão calórica foi Considerando os dados bioquímicos das adequada na maioria delas (Tabela 2). onze comunidades como um todo (Tabela Os resultados referentes ao consumo de 4), podemos admitir que a deficiência de proteínas pode ser considerado satisfatório, vitamina A é um problema de Saúde Pú- pois uma grande proporção de famílias blica, pois 5,4% dos indivíduos apresentaram estudadas situou-se nos níveis mais altos níveis sangüíneos de 10mg/100ml ou menos, (Tabela 2). e 18,3%, de 20mg/100ml ou menos (de acordo com o critério do ICNND). A proporção de proteína de origem animal em relação à proteína total foi também Entretanto, considerando as comunidades satisfatória (Tabela 1), especialmente nas isoladamente, pode-se observar que 4 delas áreas litorâneas, onde o peixe e a farinha não apresentaram níveis críticos com re- de mandioca eram os alimentos básicos. lação à carência de vitamina A. Quanto à vitamina A, o oposto foi Distribuindo os resultados de acordo com observado. As médias diárias "per capita" a idade (Tabela 6), torna-se evidente que foram baixas em todas as comunidades, os pré-escolares apresentaram os coeficientes exceto uma (Cipó). Isso porque, aí mais altos de resultados tanto abaixo de uma família consumiu 1,5kg (cerca de 10mg/100ml como abaixo de 20mg/100ml. 300g "per capita") de fígado no dia Esses coeficientes foram tanto menores em que foi visitada. O fato, natural- quanto maior a idade. mente, aumentou o consumo médio diário Os níveis plasmáticos de caroteno são "per capita" nessa comunidade. Entretanto, índices úteis para estimar o estado nutri- o consumo de tão grandes quantidades de fígado não é usual, não somente conside- cional de uma população com relação à rando comunidades, como também esta vitamina A, pois a maioria dos indivíduos família em particular. Este acontecimento é depende, em grande parte, deste precursor; uma das falhas onde o consumo médio "per e os níveis plasmáticos de caroteno referem- capita" é usado em estudos de comunidade. se à ingestão recente de vegetais ricos neste pigmento 2 . Tanto o inquérito bioquímico, Embora o consumo de vitamina A tenha como o de consumo de alimentos (Tabelas sido baixo, cerca de 30% foi de vitamina A pré-formada em 73% das comunidades 5 e 3) indicam uma baixa ingestão de estudadas. Em comunidades onde o peixe verduras e frutas consideradas ricas em é o alimento básico, o consumo de vitamina caroteno. Nas três comunidades litorâneas A pré-formada foi até mais alto (60% da nenhum resultado "alto" foi obtido, ao passo atividade total de vitamina A). Provavel- que a prevalência de resultados abaixo mente tal fato se deve ao hábito de con- de 40mg/100ml foi alta. Estes resultados sumir pequenos peixes sem remover as vís- não são surpreendentes, uma vez que essas ceras 4. comunidades são habitadas principalmente Em relação à proteína e gordura, os re- por pescadores, cuja alimentação básica é sultados indicam um equilíbrio relativamente peixe e farinha de mandioca 4 ; o consumo adequado entre os elementos energéticos de alimentos ricos em caroteno foi muito que compõem a dieta, excetuando-se Icapara baixo: vegetais mais frutas correspondiam e Pontal do Ribeira, onde o consumo de a 47g diárias "per capita" em Icapara, 26g gordura foi acentuadamente baixo. É pos- em Pontal do Ribeira e 137g em Iguape; a maioria das frutas era constituida por Considerando os sinais clínicos oculares bananas, já que essa região é a maior atribuíveis à deficiência de vitamina A, vê-se produtora dessa fruta no Estado de São claramente que a xerose conjuntival (X1A) Paulo. Ribeira, que também não apresentou resultados de caroteno plasmático classifi- é, incontestavelmente, o sinal clínico mais cados como "alto" era, na ocasião, a maior prevalente e igualmente distribuído por produtora de mamão no Estado, embora todos os grupos etários. Mancha de Bitot quase a totalidade da produção fosse ex- mais xerose conjuntival (X1B) foram pouco portada para outras cidades, especialmente prevalentes, assim como xerose conjuntival a Capital, o que originou um consumo insig- nificante 1 . Inversamente, Salles Oliveira mais xerose corneal, X2 (Tabela 9). mostrou o maior consumo "per capita" de Embora os dados bioquímicos mostrem vegetais e frutas (222g) e nenhum resul- que a hipovitaminose A é um problema de tado "deficiente". Saúde Pública, os dados clínicos mostram Apesar disso, os resultados apresentados que a xeroftalmia não o é (critério da OMS). devem ser considerados com cautela, pois os resultados bioquímicos são individuais e Entretanto, outros aspectos devem ser os referentes ao consumo de alimentos considerados. Com relação à história na- representam médias familiares. tural da deficiência de vitamina A, temos que reconhecer que a xeroftalmia representa As maiores proporções de resultados "de- ficiente" (Tabela 7), referentes ao caroteno, uma conseqüência final da deficiência. ocorreram entre crianças de 2 a 6 anos Quando a xeroftalmia se apresenta como de idade, imediatamente seguidas por um problema, a deficiência de vitamina aquelas de 7 a 10 anos de idade. Isso sugere A subjacente se apresenta como um que o consumo de vegetais e frutas é baixo problema muitas vezes maior. Inversa- entre as crianças, talvez devido a crenças mente, quando a deficiência de vitamina A populares relacionadas a estes alimentos, se apresenta como um problema de Saúde que limitariam seu uso. Pública, embora a xeroftalmia não se apre- Esses fatos levam-nos a acreditar que sente, seu aparecimento será apenas uma o baixo consumo de vegetais e frutas por questão de tempo e, se medidas não forem tomadas, a população ficará exposta a um nossas populações se devem à sua igno- risco cada vez maior no que diz respeito à rância no que concerne ao valor nutricional cegueira. desses alimentos, uma vez que eles são Considerando-se os nossos dados, con- muito mais baratos e mais disponíveis do cluímos que, nessas comunidades: que as fontes da vitamina A pré-formada. A importância da educação nutricional é — foi baixo o consumo tanto de fontes de óbvia. vitamina A pré-formada, como da pró- Os dados apresentados na Tabela 8 mos- vitamina; tram que a maioria dos sinais clínicos apre- — foi alta a prevalência de níveis plasmá- sentados pelos indivíduos são cutâneos, sem ticos de vitamina A classificados como lesão ocular. Entretanto, os coeficientes "deficiente" e "baixo"; para as lesões oculares não são baixos. — os sinais clínicos cutâneos da deficiência Considerando os grupos etários, não houve de vitamina A apresentaram alta preva- diferenças significantes entre os coeficientes lência, o inverso acontecendo com os de prevalência. oculares. RONCADA, M.J. et al. [Vitamin A deficiency in communities of the State of S. Paulo, Brazil]. Rev. Saúde públ., S. Paulo, 15:338-49, 1981.
ABSTRACT: Eleven communities of the State of S. Paulo, Brazil, were
surveyed for vitamin A deficiency, through food consumption survey, clinical survey and biochemical survey. The food consumption survey showed very low consumption of vitamin A rich foods, both animal and vegetable. The biochemical survey showed high prevalence of low and deficient plasma levels of vitamin A (ICNND classification). The clinical survey showed low preva- lence rates for ocular lesions, specially the more severe ones. Although neither blindness nor severe ocular lesions are a Public Health problem the majority of populations are at risk of such lesions becoming a problem in the future. UNITERMS: Vitamin A deficiency. Nutrition surveys. State of S. Paulo, Brazil. Xerophthalmia.
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