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NÚMERO 52 - ISSN 0103-4383 - RIO DE JANEIRO, OUTUBRO 2014

NÚMERO 52
ISSN 0103-4383
RIO DE JANEIRO, OUTUBRO 2014

4 editorial | editorial ARTIGOS | ARTICLES

Rede Cegonha: desafios de mudanças


58
8 APRESENTAÇÃO | INTRODUCTION culturais nas práticas obstétricas e
neonatais
Rede Cegonha: challenges of cultural

ARTIGO DE DEBATE | DEBATE ARTICLE changes in obstetric and neonatal practices
Dário Frederico Pasche, Maria Esther de
Albuquerque Vilela, Miriam Di Giovanni, Paulo
15 Redes de Atenção à Saúde: rumo à Vicente Bonilha Almeida, Thereza de Lamare
integralidade Franco Netto
Health Care Networks: towards the
integrality
Helvécio Miranda Magalhães Júnior 72 Violência contra a mulher: análise das
notificações realizadas no setor saúde –
Brasil, 2011
ARTIGO DE DISCUSSÃO | Violence against women: analysis of the
DISCUSSION ARTICLE reports made in the health sector - Brazil,
2011
Eneida Anjos Paiva, Marta Maria Alves da Silva,
38 Comentários sobre as Redes de Atenção Alice Cristina Medeiros das Neves, Marcio
à Saúde no SUS Denis Medeiros Mascarenhas, Thereza de
Comments about Health Care Networks in Lamare Franco Netto, Deborah Carvalho Malta
SUS
Eugênio Vilaça Mendes
88 Política de saúde mental no novo
contexto do Sistema Único de Saúde:
50 Redes integradas de cuidados e a regiões e redes
pesquisa necessária Mental health policy on the new context
Integrated care networks and necessary of the Unified Health System: regions and
research networks
José Carvalho de Noronha Jaqueline Tavares de Assis, Cláudio Antônio
Barreiros, Andréa Borghi Moreira Jacinto,
Roberto Tykanori Kinoshita, Pedro de Lemos
54 Comentários: Redes de Atenção à Macdowell, Taia Duarte Mota, Fernanda
Saúde: rumo à integralidade Nicácio, Mariana da Costa Schorn, Isadora
Comments: Health Care Networks: towards Simões de Souza, Alexandre Teixeira Trino
the integrality
Wilson Alecrim, Beatriz Figueiredo Dobashi
sumário | contents

114 Pessoas com doenças crônicas, as redes Contribuição para a análise da


165
de atenção e a Atenção Primária à implantação de Redes de Atenção à
Saúde Saúde no SUS
Chronic diseases, care networks and Primary Contribution for the analysis of the
Health Care implementation of Health Care Networks in
Patrícia Sampaio Chueiri, Erno Harzheim, Heide SUS
Gauche, Lêda Lúcia Couto de Vasconcelos Silvio Fernandes da Silva

Entendendo os desafios para a


125 Financiamento e governança em saúde:
177
implementação da Rede de Atenção às um ensaio a partir do cotidiano
Urgências e Emergências no Brasil: uma Healthcare financing and governance: an
análise crítica essay considering daily routine
Understanding the challenges for Luna Bouzada Flores Viana, Rodrigo Lino de
implementation of the Urgency and Brito, Fausto Pereira dos Santos
Emergency Services Network in Brazil: a
critical analysis
Alzira de Oliveira Jorge, Ana Augusta Pires O Programa Mais Médicos e as Redes
190
Coutinho, Ana Paula Silva Cavalcante, de Atenção à Saúde no Brasil
Andersom Messias Silva Fagundes, Cláudia Mais Médicos Program and Health Care

Carvalho Pequeno, Maria do Carmo, Paulo de Networks in Brazil
Tarso Monteiro Abrahão Joaquín Molina, Julio Suárez, Lucimar R. Coser
Cannon, Glauco Oliveira, Maria Alice Fortunato

Saúde Sem Limite: implantação da Rede


146
de Cuidados à Saúde da Pessoa com 202 Programa SOS Emergências: uma
Deficiência alternativa de gestão e gerência para as
Healthcare Without Limits: deployment grandes emergências do Sistema Único
of Health Care Network for people with de Saúde
Disabilities  SOS Emergências Program: a management
Vera Lucia Ferreira Mendes alternative to Unified Health System’s great
emergencies
Luíz Carlos de Oliveira Cecílio, Ana Augusta
153 Redes Vivas: multiplicidades girando as Pires Coutinho, Fernanda Luiza Hamze,
existências, sinais da rua. Implicações Alexsandra Freire da Silva, Lorayne Andrade
para a produção do cuidado e a Batista, Anna Paula Hormes de Carvalho
produção do conhecimento em saúde
Live Networks: multiplicities turning beings,
signals from the streets. Implications for care
production and the production of knowledge
in health
Emerson Elias Merhy, Maria Paula Cerqueira
Gomes, Erminia Silva, Maria de Fátima Lima
Santos, Kathleen Tereza da Cruz, Tulio Batista
Franco
4 editorial | editorial

O processo da construção de Redes de


Atenção à Saúde

O conceito de Redes de Atenção à Saúde (RAS) não é novo e já estava contido na


Constituição Federal, no seu artigo 198, que dispõe que “as ações e os serviços públicos
de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema
único (...)”.
As RAS devem ser entendidas como a organização dinâmica e horizontal dos serviços,
tendo como princípio fundamental o acesso e como centro de comunicação a Atenção
Primária à Saúde, permitindo oferecer atenção contínua e integral a determinada
população de um território. Muitos autores usam a imagem muito oportuna de que a rede
deverá se comprometer com a prestação de cuidados de saúde no tempo certo, no lugar
certo, com o custo certo e com a qualidade certa.
A horizontalidade das relações entre os pontos de atenção, objetivando oferta de
atenção contínua e integral; o consequente fortalecimento da Atenção Básica como
centro de comunicação e o acompanhamento do usuário durante seu percurso nos
serviços de saúde; o cuidado multiprofissional e a busca de resultados na saúde, que
faça sentido na vida das pessoas. Sob essa perspectiva, as RAS são responsáveis pelos
resultados sanitários e econômicos relativos à saúde da população do território e devem
ser estruturadas segundo alguns princípios fundamentais de organização dos serviços de
saúde e numa relação dialética entre eles.
O processo de implantação das RAS, concebido e anunciado nos últimos anos do
Governo Lula e iniciado em 2011, já no Governo Dilma, é fruto de um acordo tripartite
entre as três esferas de gestão e representa um avanço na organização do Sistema Único
de Saúde (SUS). Por meio das RAS, o princípio constitucional da integralidade adquire
concretude, materializando-se por meio das conexões e da integração das ações e dos
serviços de saúde nos diversos territórios, articulados de forma supramunicipal.
A fragmentação do processo de atenção em saúde tem sido apontada como importante
responsável pela baixa qualidade e pela dificuldade de acesso. Entre os objetivos das
RAS, deve ser valorizado o potencial de ruptura da situação de fragmentação.
A chamada governança das RAS é um processo complexo por romper as estruturas
formais das responsabilidades administrativas e incorporar dimensões territoriais nem
sempre circunscritas a apenas um município. O modelo proposto, tal como descrito
na Portaria 4.279, de 30 de dezembro de 2010, é entendido como “(...) a capacidade de
intervenção que envolve diferentes atores, mecanismos e procedimentos para a gestão
regional compartilhada da rede.”. Trata-se de uma construção inovadora no âmbito do
SUS, entretanto, profundamente coerente com a condição de unicidade de nosso sistema
de saúde.

DIVULGAÇÃO EM Saúde PARA Debate | rio de Janeiro, n. 52, p. 4-7, out 2014
editorial | editorial 5

A iniciativa da SAS e do Cebes, ao lançar esse número da revista ‘Divulgação em Saúde para
Debate’, não apenas pretende apresentar o que vem sendo desenvolvido nas recentes políticas
do SUS com relação às RAS, mas, através das análises e dos relatos de experiências, propiciar
um debate consequente acerca da consolidação dessa estratégia que avança na implementação
do SUS. Dessa forma, o esperado é que este número seja uma referência importante para o
campo da saúde coletiva e para o setor saúde e que, particularmente, possa servir aos gestores,
profissionais de saúde e equipes que operam os serviços de saúde em todo o País.

Ana Maria Costa


Presidenta do Cebes

Fausto Pereira dos Santos


Secretário de Atenção à Saúde – SAS/MS

DIVULGAÇÃO EM Saúde PARA Debate | rio de Janeiro, n. 52, p. 4-7, OUT 2014
6 editorial | editorial

Health Care Networks construction


process

The concept of Health Care Networks (RAS) is not new and was already inserted
on the Federal Constitution, on its article 198, which states that “public health actions
and services integrate a regionalized and hierarchized network and compose an unified
system (…)”.
The Health Care Networks have to be understood as the dynamic and horizontal or-
ganization of services, having the access as a fundamental principle and Primary Health
Care as a communication centre, allowing the offering of continuous and integral care to
a certain population in a territory. Many authors use the image that the network should
be committed to providing health care at the right time, in the right place, with the right
cost and the right quality.
The relation horizontality between attention points, aimed on a continuous and inte-
gral care offer; the consequent strengthening of Primary Care as a communication centre
and the follow up of the user during their way in health services; multiprofessional care
and the search for results in health, that make sense on people’s lives. Under this pers-
pective, Health Care Networks are responsible for the sanitary and economic results
related to local population health and should be structured according to some funda-
mental health services organization principles and to a dialectic relation between them.
The deployment process of Health Care Networks, conceived and announced in the
last years of Lula government and started in 2011, in Dilma government, is a product of
a tripartite agreement among the three management spheres and represents an advance
on the organization of the Unified Health System (SUS). Through the Health Care
Networks, the constitutional principle of integrality gets concrete, being materialized
via connections and integration of health actions and services in many territories, arti-
culated in a supra municipal way.
The fragmentation of health care process has been pointed out as an important res-
ponsible for low quality and access difficulty. Among Health Care Networks objectives,
the fragmentation situation rupture potential must receive its value.
The so-called Health Care Networks governance is a complex process because it rup-
tures the formal administrative responsibilities and incorporates territorial dimensions
that are not always limited to one municipality. The proposed model, as described on
the ordinance 4.279, from December 30th, 2010, is understood as “(…) the intervention
capacity that involves different players, mechanisms and procedures to shared network
regional management.”. It is an innovative construction in SUS area, but profoundly co-
herent with the unity condition of our health system.
The initiative of SAS and Cebes, when publishing this edition of ‘Divulgação em Saúde

DIVULGAÇÃO EM Saúde PARA Debate | rio de Janeiro, n. 52, p. 4-7, OUT 2014
editorial | editorial 7

para Debate’ magazine, intends not only to present what is being developed on recent
SUS policies related to Health Care Networks, but through the analyses and the expe-
rience reports, foster a consequent debate about the consolidation of this strategy that
advances in SUS deployment. Thus, the expected is that this number becomes an im-
portant reference to collective health field and to health sector and that it may serve
specially to managers, health professionals and teams that operate health services in the
whole country.

Ana Maria Costa


Cebes president

Fausto Pereira dos Santos


Health Care Secretary – SAS/MS

DIVULGAÇÃO EM Saúde PARA Debate | rio de Janeiro, n. 52, p. 4-7, OUT 2014
8 APRESENTAÇÃO | PRESENTATION

Apresentação

O presente número da revista Divulgação em Saúde para Debate apresenta um con-


junto de artigos sobre Redes de Atenção à Saúde e é fruto de uma parceria entre o Cebes e a
Secretaria de Atenção à Saúde (SAS), do Ministério da Saúde. Seu objetivo é mostrar o estado
da arte da importante tarefa de implementação das Redes de Saúde no Brasil.
O primeiro artigo para debate é de autoria de Helvécio Miranda Magalhães Junior, cujo
título é ‘Redes de Atenção à Saúde: rumo à integralidade’. Propõe o debate a respeito de
um tema contemporâneo para o Sistema Único de Saúde (SUS), que é, também, um de seus
grandes desafios no campo da atenção: as Redes de Atenção à Saúde (RAS). A partir de uma
análise sobre a trajetória do SUS, nos seus 25 anos, aponta a questão da fragmentação como
uma marca e as dificuldades de realizar um planejamento inteligente e real. Para intervir sobre
esse problema, o autor retoma as referências à construção teórica das RAS no mundo e no
Brasil e apresenta o estado da arte da prática e da implementação das RAS no País, com ênfase
no esforço dos últimos três anos de gestão do SUS. Mediante essa experiência, analisa os desa-
fios para a sua real implantação nesse tempo histórico do SUS.
O primeiro comentário sobre o artigo de Helvécio é de autoria de Eugênio Vilaça Mendes,
que exalta a capacidade do autor como um profissional híbrido que junta, numa só pessoa,
uma sólida capacidade de formulação e de execução de políticas de saúde. Tem sido, ao longo
de sua vida, ao mesmo tempo, um intelectual refinado e um gestor competente e tenaz nas
várias instituições do SUS em que atuou.
Na sequência, o breve comentário de José Carvalho de Noronha, sob o título ‘Redes integra-
das de cuidados e a pesquisa necessária’, apresenta uma abrangente revisão da base conceitual
e das ações implementadas entre 2011 e 2014, no Brasil. Deixa claro o quanto se avançou na
compreensão das necessárias mudanças do modelo assistencial do sistema de saúde brasileiro
e na sua implementação, bem como nos desafios colocados pelo processo.
Finalizando os comentários do primeiro artigo, dois autores – Wilson Alecrim e Beatriz
Figueiredo Dobashi, respectivamente, atual e ex-presidente do Conselho Nacional de
Secretários de Saúde (Conass) – tecem considerações sobre a situação do processo de implan-
tação das RAS nas diversas regiões brasileiras, apontando sugestões para o enfrentamento dos
desafios existentes, as quais incluem: a adoção de uma política de Educação Permanente; o
resgate da solidariedade entre os gestores, conforme previsto nos preceitos da Constituição
Federal Brasileira; a melhoria do financiamento de forma tripartite; o resgate do processo de
planejamento em nível regional; bem como o fortalecimento da Atenção Primária à Saúde
(APS) como ordenadora do cuidado.
O segundo artigo analisa os avanços na implementação da assistência às mulheres gestantes
e aos recém-nascidos, cujo título é ‘Rede Cegonha: desafios de mudanças culturais nas práticas
obstétricas e neonatais’. Seus autores, Dário Frederico Pasche, Maria Esther de Albuquerque
Vilela, Miriam Di Giovanni, Paulo Vicente Bonilha Almeida e Thereza de Lamare Franco
Netto, assinalam que, apesar das mudanças constatadas no Brasil, nos últimos anos, a redução
das mortalidades materna e infantil tem sido uma preocupação importante da saúde pública

DIVULGAÇÃO EM Saúde PARA Debate | rio de Janeiro, n. 52, p. 8-14, OUT 2014
APRESENTAÇÃO | PRESENTATION 9

mundial nas últimas décadas, admitindo que os índices brasileiros ainda são altos consideran-
do o nível de desenvolvimento do País.
A política governamental da Rede Cegonha tem sido a estratégia para enfrentamento do
problema da redução das mortalidades materna e infantil e está baseada na qualificação das
ações e dos serviços de saúde. Analisam os desafios interpostos com relação a mudanças no
modelo tecnoassistencial da atenção obstétrica e neonatal vigente e no paradigma cultural
relacionado ao parto/nascimento construído no seio da sociedade brasileira.
Em seguida, o artigo ‘Violência contra a mulher: análise das notificações realizadas no setor
saúde – Brasil, 2011’, de Eneida Anjos Paiva, Marta Alves da Silva, Alice Cristina Medeiros das
Neves, Marcio Denis Medeiros Mascarenhas, Thereza de Lamare Franco Netto e Deborah
Carvalho Malta, partem da constatação de que a violência contra a mulher é considerada uma
questão complexa e multifacetada, que viola os direitos humanos, provocando perdas signi-
ficativas nas saúdes física e mental das vítimas. Realizam um estudo descritivo dos dados de
notificação de violência doméstica, sexual e/ou outras violências contra mulheres durante o
ano de 2011, em unidades de saúde. Apresentam análises sobre a Razão de Prevalência das va-
riáveis selecionadas por faixa etária (20 a 39 anos e 40 a 59 anos), bem como análise segundo
o tipo de violência praticada. Mediante os resultados encontrados, concluem que a notificação
da violência doméstica ainda é um processo recente, estando, ainda, em implantação nas uni-
dades da Federação. Indicam que o uso de álcool pelo agressor é frequente e que a violência é
um fenômeno que se repete. O artigo conclui que a violência contra as mulheres é, na maioria
das vezes, praticada pelos parceiros íntimos e que a notificação é um importante instrumento
que visa ao enfrentamento desses casos, objetivando eliminar a desigualdade de gênero.
Em seguida, o artigo ‘Política de saúde mental no novo contexto do Sistema Único de
Saúde: regiões e redes’, com autoria de Jaqueline Tavares de Assis, Cláudio Antônio Barreiros,
Andréa Borghi Moreira Jacinto, Roberto Tykanori Kinoshita, Pedro de Lemos Macdowell,
Taia Duarte Mota, Fernanda Nicácio, Mariana da Costa Schorn, Isadora Simões de Souza e
Alexandre Teixeira Trino, apresenta uma perspectiva do momento atual da política de saúde
mental, desde o ponto de vista da Coordenação de Saúde Mental, considerando o quadriênio
2011-2014, e apontando algumas direções futuras.
O artigo seguinte, das autoras Patrícia Sampaio Chueiri, Erno Harzheim, Heide Gauche e
Lêda Lúcia Couto de Vasconcelos, com o título ‘Pessoas com doenças crônicas, as Redes de
Atenção e a Atenção Primária à Saúde’, analisa os desafios impostos ao SUS pelas mudanças do
perfil socioeconômico, demográfico e epidemiológico da população. Os autores dão ênfase às
estratégias para o cuidado das pessoas com doenças crônicas e aos tensionamentos que essas
provocam no sistema de saúde, tanto com relação à sua macro-organização (gestão compar-
tilhada, regulação, regionalização) quanto à micro-organização, ou seja, àquelas relacionadas
ao processo de trabalho das equipes de atenção direta. Sob essa perspectiva, analisam as ações
e políticas que o Ministério da Saúde vem adotando, articuladas ao processo de formação de
redes regionalizadas de atenção à saúde, o papel dos estados, o fortalecimento e o papel da
APS no cuidado das pessoas com doenças crônicas.
Para a abordagem da rede de urgências e emergências, o artigo ‘Entendendo os de-
safios para a implementação da Rede de Atenção às Urgências e Emergências no Brasil: uma
análise crítica’, sob a autoria de Alzira de Oliveira Jorge, Ana Augusta Pires Coutinho, Ana
Paula Silva Cavalcante, Andersom Messias Silva Fagundes, Cláudia Carvalho Pequeno, Maria
do Carmo e Paulo de Tarso Monteiro Abrahão, descreve e analisa o processo de implemen-
tação da Rede de Atenção às Urgências e Emergências (RUE) nas regiões de saúde brasilei-
ras, buscando identificar os fatores facilitadores e dificultadores da sua efetivação, de modo a

DIVULGAÇÃO EM Saúde PARA Debate | rio de Janeiro, n. 52, p. 8-14, OUT 2014
10 APRESENTAÇÃO | PRESENTATION

contribuir para a avaliação dessa política.


O artigo seguinte, de Vera Lucia Ferreira Mendes, analisa o tema das pessoas com defi-
ciências e o programa governamental proposto para esse grupo populacional. ‘Saúde Sem
Limite: implantação da Rede de Cuidados à Saúde da Pessoa com Deficiência’ apresenta a
política pública estruturante do SUS, a Rede de Cuidados à Saúde da Pessoa com Deficiência
fundamentada no reconhecimento de um direito social fundamental das pessoas com defici-
ência. A autora apresenta e analisa os desafios e as responsabilidades quanto aos modos de
produzir cuidados e acesso qualificado à saúde para as pessoas com deficiência e mobilidade
reduzida, por meio da construção de linhas de cuidado que atravessam os vários componentes
da atenção à saúde.
O próximo artigo reúne um conjunto de autores. São eles: Emerson Elias Merhy, Maria
Paula Cerqueira Gomes, Erminia Silva, Maria de Fátima Lima Santos, Kathleen Tereza da
Cruz e Tulio Batista Franco. Sob o título ‘Redes Vivas: multiplicidades girando as existências,
sinais da rua. Implicações para a produção do cuidado e a produção do conhecimento em
saúde’, o artigo analisa experiências recolhidas por um grupo de pesquisadores vinculados à
Micropolítica do Trabalho e ao Cuidado em Saúde, da Pós-Graduação de Clínica Médica da
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), a partir de suas investigações sobre a produ-
ção do cuidado em saúde, em diferentes contextos de práticas.
O artigo ‘Contribuição para a análise da implantação de Redes de Atenção à Saúde no SUS’,
de autoria de Silvio Fernandes da Silva, analisa a implantação das RAS com ênfase nas regiões
de saúde, chamando atenção para a importância de atores locais com adequado perfil de com-
petência e implicados com a implementação. Para o autor, a proeminência do tema RAS na
agenda do SUS favorece o delineamento de uma imagem-objetivo no processo de planejamen-
to regional.
‘Financiamento e governança em saúde: um ensaio a partir do cotidiano’, de autoria de Luna
Bouzada Flores Viana, Rodrigo Lino de Brito e Fausto Pereira dos Santos, faz uma revisão
ampla da literatura existente sobre financiamento em saúde, agregando reflexões sobre o
tema à luz do conceito de governança. As reflexões são elaboradas a partir das experiências
vividas com o cotidiano da gestão da Secretaria de Atenção à Saúde, do Ministério da Saúde.
Na sequência, os autores Joaquín Molina, Julio Suárez, Lucimar R. Coser Cannon, Glauco
Oliveira e Maria Alice Fortunato discutem aspectos da cooperação entre a Organização Pan-
Americana da Saúde (Opas) e o Programa Mais Médicos (PMM), debruçando-se sobre os man-
datos dos Estados-Membros da Organização para a cooperação técnica no desenvolvimento
dos sistemas e serviços de saúde e a Cooperação Sul-Sul, ao mesmo tempo que o vincula aos
elementos conceituais e da política nacional brasileira de desenvolvimento do SUS no artigo
‘O Programa Mais Médicos e as Redes de Atenção à Saúde no Brasil’.
Discorrem os autores sobre a relevância do PMM – na medida em que incrementou o
número de médicos atuantes no SUS, especificamente, na Atenção Básica, nos municípios
mais vulneráveis – e seu impacto na garantia do direito à saúde da população, com a melhoria
da atenção primária e das redes integradas de serviços de saúde.
Este número finaliza com o artigo ‘Programa SOS Emergências: uma alternativa de gestão
e gerência para as grandes emergências do Sistema Único de Saúde’, dos autores Luíz Carlos
de Oliveira Cecílio, Ana Augusta Pires Coutinho, Fernanda Luiza Hamze, Alexsandra Freire
da Silva, Lorayne Andrade Batista e Anna Paula Hormes de Carvalho.
Trata-se de um relato da experiência de implantação do Programa SOS Emergências, do
Ministério da Saúde, que analisa e discute criticamente sua formulação e implantação, apre-
sentando os resultados alcançados até o presente momento. O Programa SOS Emergências

DIVULGAÇÃO EM Saúde PARA Debate | rio de Janeiro, n. 52, p. 8-14, OUT 2014
APRESENTAÇÃO | PRESENTATION 11

tem alcançado resultados positivos na organização e na produção do cuidado no hospital,


além de induzir à discussão do cuidado em rede. Os autores apontam a presença de muitos
desafios para a qualificação dos serviços de emergências hospitalares.
Essa rica coletânea de artigos, em sua maioria, referências nas práticas e nas políticas que
vem sendo implementadas no SUS, mais do que demonstrar o que vem sendo realizado, apre-
senta análises consistentes de estratégias que vêm sendo adotadas, resultando em um con-
junto de desafios para a correção de percursos e a consolidação do direito à saúde no País
por meio de um SUS de qualidade, universal e público. Convidado a mergulhar nessa leitura,
certamente o leitor irá avaliar por si mesmo a riqueza das contribuições dos diversos autores
que aqui compareceram.

Ana Maria Costa


Presidenta do Cebes

DIVULGAÇÃO EM Saúde PARA Debate | rio de Janeiro, n. 52, p. 8-14, OUT 2014
12 APRESENTAÇÃO | PRESENTATION

Presentation

This edition of Divulgação em Saúde para Debate magazine presents a group of


articles about Health Care Networks and it is produced as a partnership between Cebes and
Health Attention Secretariat, from Ministry of Health. Its objective is to show the state-of-
the-art of the important task of Health networks deployment in Brazil.
The first article debated, written by Helvécio Miranda Magalhães Junior, is entitled ‘Integrated
Health Care Networks: towards the integrality’. It proposes the debate about a contemporary
subject to the Unified Health System (SUS), which is also one of its biggest challenges on the
field of care: The Health Care Networks (RAS). From an analysis of the trajectory of SUS on
its 25 years, it points out the fragmentation as a characteristic and the difficulties of performing
intelligent and real planning. In order to intervene on this problem, the author considers the
references to the theoretical construction of RAS in Brazil and around the world, and presents
the state-of-the-art of both RAS practice and implementation in the country, emphasizing the
effort of the last three years of SUS management. Based on this experience, he analyses the
challenges to its real implementation on this historical time for SUS.
The first comment about Helvécio’s article is from Eugênio Vilaça Mendes, who exalts the
author’s capacity as a hybrid professional who puts together in one person a solid formulation
capacity and Health policy execution. Throughout his life, he has been a refined intellectual
and a competent manager, tenacious on the various SUS institutions he has acted in.
On sequence, the brief comment by José Carvalho de Noronha, entitled ‘Integrated care
networks and necessary research’, presents a comprehensive review of the conceptual basis
and of the actions implemented in Brazil between 2011 and 2014. It clarifies how much advance
happened on the comprehension of the changes needed on the assistance model of Brazilian
health system and its implementation, and on the challenges put by the process.
Closing the comments on the first article, two authors – Wilson Alecrim and Beatriz
Figueiredo Dobashi, respectively the current and former presidents of the National Council
of Health Secretaries (Conass) – express considerations about the situation of the RAS
deployment process on the different regions of Brazil, pointing out suggestions to tackle
the existing challenges, which include: the adoption of a Permanent Education policy;
the reestablishment of solidarity between managers, as described by Brazilian Federal
Constitution; the improvement of tri-part funding; restore the planning process in a regional
level; the strengthening of Primary Health Care (APS) as care ordinator.
The second article analyses the advances in implementation of care to pregnant women
and new-borns, and is entitled ‘Rede Cegonha: challenges of cultural changes in obstetric and
neonatal practices’. Its authors, Dário Frederico Pasche, Maria Esther de Albuquerque Vilela,
Miriam Di Giovanni, Paulo Vicente Bonilha Almeida and Thereza de Lamare Fanco Netto,
signal that, despite the changes seen in Brazil on the last years, the reduction of mother and
children deaths has been an important worldwide public health concern in the last decades,
acknowledging that Brazilian rates are still high, considering the country’s development level.
The governmental policy of Rede Cegonha has been the strategy to confront the problem
of child and mother deaths, and is based on the qualifying of Health actions and services.
The authors analyse the challenges brought in relation to the changes on the current

DIVULGAÇÃO EM Saúde PARA Debate | rio de Janeiro, n. 52, p. 8-14, OUT 2014
APRESENTAÇÃO | PRESENTATION 13

tecnoassistential obstetrical and neonatal care model and on the cultural paradigm related to
labor/birth built within Brazilian society.
Next, the article ‘Violence against women: analysis of the reports made in the health sector -
Brazil, 2011’, by Eneida Anjos Paiva, Marta Alves da Silva, Alice Cristina Medeiros, Marcio Denis
Medeiros Mascarenhas, Thereza de Lamare Franco Netto and Deborah Carvalho Malta, starts from
the finding that violence against women is considered a complex and multifaceted question that
violates human rights, causing considerable losses on both the victims’ physical and mental health.
The authors perform a discretional study of data from reports of domestic, sexual or other
violence types against women during 2011, in health care units. They present analyses about
the Prevalence Ratio of the selected variables by age group (20 to 39 and 40 to 59 years old), as
an analysis by type of violence. From the found results, they conclude that domestic violence
report is still a recent process, being implemented on federative units. They indicate that the
use of alcohol by the aggressor is frequent and that violence is a repeating phenomenon. The
article concludes that violence against women is, on the majority of cases, practiced by life
partners and that reporting is an important instrument that aims on confronting these cases,
with the objective of eliminating gender inequality.
The next article, ‘Mental health policy on the new context of the Unified Health System:
regions and networks’, written by Jaqueline Tavares de Assis, Cláudio Antônio Barreiros,
Andréa Borghi Moreira Jacinto, Roberto Tykanori Kinoshita, Pedro de Lemos Macdowell,
Taia Duarte Mota, Fernanda Nicácio, Mariana da Costa Schorn, Isadora Simões de Souza and
Alexandre Teixeira Trino, presents a perspective of the current moment for mental health,
from the point of view of Mental Health Coordination, considering the 2011-2014 quadrennium
and point some future directions.
Written by Patrícia Sampaio Chueiri, Erno Harzheim, Heide Gauche and Lêda Lúcia Couto
de Vasconcelos, the article ‘Chronic diseases, Health Care Networks and Primary Health
Care’ analyses the challenges imposed to SUS by changes on the population’s socioeconomic,
demographic and epidemiologic profile. The authors emphasize strategies for providing
care to people with chronic diseases and for the pressures they cause on the health system,
related to both its macro-organization (shared management, regulation, regionalization) and
its micro-organization, as in pressures related to the work process of direct attention teams.
Under this perspective, they analyse the actions and policies being adopted by the Ministry of
Health, linked to the formation process of regionalized Health Care Networks, the role of the
states and the strengthening and role of the APS on the care of people with chronic diseases.
The article ‘Understanding the challenges for implementation of the Urgency and
Emergency Services Network in Brazil: a critical analysis’, written by Alzira de Oliveira Jorge,
Ana Augusta Pires Coutinho, Ana Paula Silva Cavalcante, Andersom Messias Silva Fagundes,
Cláudia Carvalho Pequeno, Maria do Carmo and Paulo de Tarso Monteiro Abrahão describes
and analyses the deployment process of Urgencies and Emergencies Attention Network
(RUE) on Brazilian health regions, having as goal identifying the facilitator and complicator
factors of its effectuation, in order to contribute to the evaluation of this policy.
The next article, by Vera Lucia Ferreira Mendes, analyses the theme of people with
disabilities and the proposed governmental program for this group of the population.
‘Healthcare Without Limits: deployment of Health Care Network for People with Disabilities’
presents the structuring public policy of SUS, Health Care Network for people with disabilities,
based on the recognition of a fundamental social right for people with disabilities. The author
presents and analyses the challenges and responsibilities related to the mode of producing
care and qualified access to health for people with disabilities and reduced mobility, through

DIVULGAÇÃO EM Saúde PARA Debate | rio de Janeiro, n. 52, p. 8-14, OUT 2014
14 APRESENTAÇÃO | PRESENTATION

the construction of care line that move throughout the various health care components.
The article ‘Live Networks: multiplicities turning beings, signals from the streets.
Implications for care production and the production of knowledge in health’ has a group of
authors, those being: Emerson Elias Merhy, Maria Paula Cerqueira Gomes, Erminia Silva,
Maria de Fátima Lima Santos, Kathleen Tereza da Cruz and Tulio Batista Franco. The article
analyses experiences gathered by a group of researchers linked to Work Micropolicy and
Health Care, from post-graduation on Medical Clinics of UFRJ, from their investigations on
the production of health care, on different practice contexts.
The article ‘Contribution for the analysis of the implementation of Health Care Networks in
SUS’, from Silvio Fernandes da Silva, analyses the importance of RAS, with emphasis on health
regions, calling attention to the importance of local players with an adequate competence
profile, committed to the deployment. For the author, the proeminence of RAS on the agenda
of SUS favours the draft of an image-objective to the process of regional planning.
‘Healthcare financing and governance: an essay considering daily routine’, from Luna
Bouzada Flores Viana, Rodrigo Lino de Brito and Fausto Pereira dos Santos, broadly revises
the existent literature about health funding, adding reflexions about the subject under the
concept of governance. The reflexions are built from the experiences lived on the everyday
management of Health Attention Secretariat, from Ministy of Health.
Next, the authors Joaquín Molina, Julio Suaréz, Lucimar R. Coser Cannon, Glauco
Oliveira and Maria Alice Fortunato discuss the aspects of the cooperation between the Pan-
American Health Organization (Opas) and Mais Médicos Program (PMM), considering the
terms of office of the member-states of the organization for the technical cooperation on the
development health systems and services, and the South-South Cooperation, at the same time
it links it to the conceptual elements from Brazilian national policy for SUS development on
the article ‘Mais Médicos Program and Health Care Networks in Brazil’.
The authors talk about PMM’s relevance – as it increased the number of acting doctors
in SUS, specifically on primary care, in the most vulnerable municipalities – and its impact
on guaranteeing the population’s right to health, by improving primary care and integrated
health services networks.
This edition is closed with the article ‘SOS Emergency Program: a management alternative
to Unified Health System’s great emergencies’, from the authors Luíz Carlos de Oliveira
Cecílio, Ana Augusta Pires Coutinho, Fernanda Luiza Hamze, Alexsandra Freire da Silva,
Lorayne Andrade Batista and Anna Paula Hormes de Carvalho.
It is related to the report of the deployment experience of SOS Emergencies program,
from the Ministry of Health, which critically analyses and discusses its formulation and
deployment, presenting the results reached until the present moment. SOS Emergencies
Program has reached positive results on the organization and production of in-hospital care,
besides inducing the discussion of network care. The authors point out the presence of many
challenges for the qualifying of hospital emergency services.
This rich gathering of articles, composed mostly by references on practices and policies
currently being deployed on SUS, presents consistent analyses of strategies being adopted,
resulting on a group of challenges for the correction of paths and the consolidation of the right to
health in the country through a quality SUS, public and universal. Invited to dive into this reading,
the reader will certainly realize by themselves, the rich contributions made by the present authors.

Ana Maria Costa


Cebes president

DIVULGAÇÃO EM Saúde PARA Debate | rio de Janeiro, n. 52, p. 8-14, OUT 2014
artigo original | original article 15

Redes de Atenção à Saúde: rumo à


integralidade
Health Care Networks: towards the integrality

Helvécio Miranda Magalhães Junior1

RESUMO Neste artigo, temos o objetivo de contribuir para o debate a respeito de um tema
contemporâneo para o Sistema Único de Saúde, e que é, também, um de seus grandes desafios
no campo da atenção: as Redes de Atenção à Saúde (RAS). A abordagem será estruturada a
partir de: 1) trajetória do SUS nos seus 25 anos, constatação da sua fragmentação como marca
e dificuldades de planejamento inteligente e real; 2) referências à construção teórica das RAS
no mundo e no Brasil; 3) estado da arte da prática e da implementação das RAS no País, com
ênfase no esforço dos últimos três anos de gestão do SUS; e 4) desafios para a real implantação
das RAS nesse tempo histórico do SUS.

PALAVRAS-CHAVE Políticas públicas de saúde; Sistema Único de Saúde; Serviços de saúde;


Integralidade em saúde.

ABSTRACT In this article, we aim to contribute to the debate about a contemporary issue for
the Brazilian national healthcare system, Sistema Único de Saúde (SUS), which is also one of
its greatest challenges in the field of health care: Health Care Networks (RAS). This approach
is structured based on: 1) the trajectory of the SUS throughout its 25 years, the realization of its
fragmentation as a mark and the difficulties in intelligent and realistic planning; 2) references
to the theoretical construction of the RAS around the world and in Brazil; 3) the state of the art
of the RAS practice and implementation in the country, with emphasis on the effort of the last
three years of SUS management; and 4) the challenges for the implementation of the RAS in this
historic moment for the SUS.

KEYWORDS Health public policy; Unified Health System; Health services; Integrality in health.

1Doutor em Saúde
Coletiva pela Universidade
Estadual de Campinas
(Unicamp) – Campinas
(SP), Brasil. Secretário
de Atenção à Saúde do
Ministério da Saúde –
Brasília (DF), Brasil.
helveciomiranda@gmail.com

DIVULGAÇÃO EM Saúde PARA Debate | rio de Janeiro, n. 52, p. 15-37, OUT 2014
16 MAGALHÃES JUNIOR, H. M.

A trajetória do SUS filhos da mesma Constituição (BRASIL, 1988), vai


se moldando, também, em um ambiente de
O processo de criação, formalização e im- intenso debate ideológico e político, e tem
plementação do Sistema Único de Saúde que responder rapidamente às demandas de
(SUS) foi resultado de amplo processo de toda a população. Afinal, e felizmente, saúde
mobilização social de diversos segmentos no Brasil deixa de ser formalmente um bem
que precederam a Constituição Federal a ser disputado majoritariamente no espaço
de 1988, dando origem ao atual sistema de dos mercados, seja por prestação de serviços
saúde, a partir de um conjunto de serviços públicos aos trabalhadores formais, bene-
já existentes e de diversas origens e matizes ficiários do Inamps, seja pela oferta já em
assistenciais: universidades, serviços pú- expansão dos planos privados de assistência
blicos de municípios, estados e da União, à saúde, coexistindo com prestação de servi-
entidades filantrópicas, sindicatos rurais, ços assistenciais e de saúde pública a várias
serviços comunitários e serviços privados parcelas da população, antes denominada
contratados pelo então Instituto Nacional indigente (BUSS, 1995).
de Assistência Médica da Previdência Há um processo, nos primeiros anos
Social, o Inamps (LUZ, 1991; MENDES, 1993). A desde a criação do SUS, iniciado na década
existência e a expansão desse conjunto de de 1990, que ampliou, de forma significati-
serviços, nas últimas décadas, não seguiram va, os serviços públicos: primeiro, a implan-
nenhuma lógica ou sistema de planejamen- tação e a rápida expansão do Programa de
to e organização, portanto, não teve por Saúde da Família, como forma de ampliação
base qualquer indício do conceito de rede da Atenção Básica, já em curso nos muni-
articulada e integrada de atenção. cípios, preferencialmente; e, depois, o pro-
É sobre essa realidade que o SUS começa a cesso ousado da municipalização da gestão
se estruturar, com a agravante da necessidade dos serviços de saúde (SILVA, 2009). Dois mo-
de transferência da gestão da maior parte vimentos que deram vida real ao SUS, mas
dos serviços – centralizada no Ministério que, de alguma forma, reforçaram – com a
da Previdência e Assistência Social – para o timidez das secretarias estaduais em orga-
Ministério da Saúde, e já, também, de forma nizar regiões ou redes de saúde e a dificul-
heterogênea, para as secretarias estaduais dade de planejamento central do Ministério
e, algum tempo depois, para algumas secre- da Saúde nas suas políticas indutoras cen-
tarias municipais (COSTA 2001). Nasce, portan- trais – o caráter fragmentado do sistema
to, o SUS, com uma baixíssima capacidade de saúde. Essa herança foi fortalecida pelo
gestora, longe das necessidades idealizadas crescimento do setor privado, respondendo
pelos seus princípios constitucionais. A frag- a outra lógica, que não a baseada em algum
mentação, a concorrência, a não cooperação planejamento racional, e com processos às
e o desvinculamento do processo de plane- vezes rápidos de credenciamentos de servi-
jamento e gestão das necessidades de um ços ambulatoriais e hospitalares, em espe-
determinado território e de sua população cial, nos grandes centros, e já em simbiose
marcam os primeiros anos do Sistema Único com a saúde suplementar, tornando mais
de Saúde, sendo, ainda, um dos seus signos complexo o ambiente para a boa gestão
atuais. Os serviços de saúde continuavam a pública.
funcionar e a crescer por diversos impulsos, Outro aspecto relevante, com diversas
menos por necessidade planejada do que constatações, é da oferta, respondendo ma-
pelas pressões social e política e pelas carên- joritariamente às demandas espontâneas,
cias reais. O SUS, que é irmão gêmeo da de- baseadas em eventos agudos de saúde, sem
mocracia brasileira contemporânea, ambos clareza de fluxos entre os serviços, com

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Redes de Atenção à Saúde: rumo à integralidade 17

predomínio da oferta hospitalar em todos serviços públicos de saúde integram uma


os eixos da assistência, sem lógica regional rede regionalizada e hierarquizada e cons-
e com poucos indícios de regulação pública. tituem um único sistema (...)” (BRASIL, 1988).
Apenas a partir do início, em 1994, das Portanto, depreende-se que o conceito de
chamadas gestões municipais semiplenas rede já está contido, ou melhor, determina-
(MAGALHÃES JUnior, 2010) e de algumas iniciativas do pela própria Constituição. Na realidade, é
tímidas em alguns estados é que foi iniciado o conceito de integralidade da assistência à
um ciclo de maior reflexão, planejamento e saúde da pessoa que conforma o sistema de
operação, com lógica sistêmica do sistema de saúde como uma rede de serviços e relações
saúde, tendo como base fluxos organizados e (MATTOS, 2001; FRANCO; MAGALHÃES Junior, 2004).
algumas ferramentas regulatórias. Exemplo A literatura nacional e internacional possui
disso é a necessidade, para o uso da assis- farta produção sobre Redes de Atenção à
tência especializada, de encaminhamentos Saúde (RAS) e sua importância para a quali-
a partir dos serviços básicos, situação que ficação dos sistemas de saúde, que se justifi-
ainda persiste em boa parte do País. Compõe cam, entre outros argumentos, pelo aumento
esse ambiente a herança de programas verti- crescente da incidência e da prevalência das
cais, a tentativa dos grandes hospitais de se doenças crônicas, assim como pela maior
portarem sempre como um sistema comple- possibilidade de construção da integralidade
to de saúde, apartado dos demais serviços, e de intervir nos custos crescentes dos siste-
tendo como exemplo máximo os Hospitais mas de saúde (MENDES 2011; SILVA 2011). Os estudos
Universitários Federais e o padrão e formato apontam no sentido de que estruturar siste-
hegemônicos de financiamento público, que, mas em redes é o mais eficiente caminho para
além de histórica e atualizadamente insu- a concretização da integralidade como princí-
ficiente, vêm privilegiando e estimulando pio fundante do SUS constitucional brasileiro
o pagamento de procedimentos, baseado (SILVA; MAGALHÃES JunioR, 2013).
numa tabela federal, dificultando o estímulo E o que são Redes de Atenção à Saúde?
ao financiamento de processos de cuidado Com várias redações, há convergência na
integral e com resultados individuais e co- adotada por Silva (2013), em que a imagem que
letivos. Esse é um impasse contemporâneo e representa
desafiador do SUS nestes tempos, em que se
pesem os esforços recentes de mudança de uma malha que interconecta e integra os
padrão, como será discutido neste texto. estabelecimentos e serviços de saúde de
determinado território, organizando-os sis-
temicamente para que os diferentes níveis e
O arcabouço teórico das densidades tecnológicas da atenção estejam
RAS articulados e adequados para o atendimento
integral aos usuários e promoção da saúde.
A fragmentação do SUS como uma situa- (SILVA, 2013, p.81).
ção hegemônica impede, concretamente, o
sistema de, primeiramente, ser de verdade Vale, também, a referência a uma Portaria
um sistema e cumprir com seus princípios do Ministério da Saúde, que, no final de 2010,
constitucionais de universalidade, integra- estabeleceu as diretrizes para organização
lidade e igualdade, além do caráter descen- das RAS no âmbito do SUS, com a seguinte
tralizado e com participação popular. E a conceituação:
chance de ter todos esses atributos passa,
inicialmente, pelo cumprimento do artigo São arranjos organizativos de ações e ser-
198 da CF, que dispõe que “as ações e os viços de saúde, de diferentes densidades

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18 MAGALHÃES JUNIOR, H. M.

tecnológicas, que integradas por meio de sis- do agendamento de alguma consulta ou


temas de apoio técnico, logístico e de gestão, exame especializado. Esse é o papel relevan-
buscam garantir a integralidade do cuidado. te e decisivo sobre o bem estar das pessoas
(BRASIL, 2010). que usam continuamente o sistema, de uma
espécie de gestor do cuidado e sem nenhuma
De qualquer forma que se declare o con- arrogância de que será um ponto de cuidado
ceito das RAS, alguns de seus elementos superior aos demais, mas, pelas suas ca-
constitutivos devem estar sempre presentes. racterísticas territoriais, abrangentes e de
Começa pela constituição de relações mais continuidade, uma responsabilidade a mais
horizontalizadas entre os serviços diversos, e bastante adequada para a Atenção Básica
que passam a se comportar como pontos forte e que realmente faça sentido para as
de atenção inter-relacionados e com canais pessoas. Um exemplo singelo: alguém que
permanentes de comunicação. E como ponto faz quimioterapia, e já sofre com isso física
estratégico, a Atenção Básica fortalecida e e psicologicamente, não precisa ter sua con-
potente, passando a ter um papel ao compar- dição agravada com a dúvida sobre poder ou
tilhar o cuidado com outros pontos, como não tomar a vacina contra a gripe. Um dos
o que pode assumir certa articulação do membros da sua equipe de Saúde da Família
cuidado, especialmente para os usuários com pode resolver a situação, sanando a angústia
doenças crônicas e necessidade de cuidado adicional da pessoa. Desse modo, o próprio
contínuo. Ter uma equipe mais permanente integrante da equipe poderá fazer contato
é típico de serviços básicos de base territo- com alguém do centro de câncer, solucio-
rial, que tendem a construir relações de con- nando a questão em nome do usuário, em
fiança e apoio permanente com os usuários, lugar de orientar que ele mesmo busque a
mesmo que o seu projeto terapêutico seja, resposta que precisa. Esse é um exercício
majoritariamente, executado em outros ser- simples, mas altamente impactante de rede
viços. Devendo a Atenção Básica (e a nossa de atenção, cada vez mais uma rede de co-
aposta tecnológica do formato nuclear de municação e defesa do direito do usuário.
equipes de Saúde da Família facilita muito Para dar conta desse fluxo acertado, são
isso) ser territorializada, há uma grande necessários a clara definição e o conheci-
potência para cumprir esse papel. Pacientes mento público da missão assistencial de cada
crônicos e complexos, geralmente, precisam ponto de atenção, hoje mais chamada de
de múltiplos cuidadores, mas é muito rele- carta de serviços e compromissos, bem como
vante e tranquilizador ter um ponto de apoio dos fluxos bem claros e do papel ordenador
permanente. O caso mais típico é dos que e facilitador do aparato regulatório público.
têm câncer e estão sob tratamento contínuo. Esse não pode ser apenas o arauto de uma
Tudo o que passa na vida daquela pessoa e burocracia sem sentido algum. A partir do
de seu núcleo familiar é importante e desa- estabelecimento desse mapa do caminho
fiador. Não só a radioterapia ou a quimiote- para os usuários em todas as suas deman-
rapia, a cirurgia ou o tratamento combinado. das e necessidades – dos fluxos, dos prazos
Existem inúmeras situações de demanda planejados e do padrão de resposta, em mão
de outras intervenções cuidadoras tão rele- dupla na relação entre os serviços –, as estru-
vantes quanto o tratamento central, como a turas regulatórias passam a ter um papel da
primeira orientação sobre o posicionamento defesa dos direitos e necessidades reais dos
de um cateter, uma febre ou indisposição usuários e de monitoramento do funciona-
inesperada, uma dor que não existia ou até mento da rede, com insumos permanentes
ter alguém que advogue pela boa performan- ao gestor ou aos gestores de saúde para as
ce do transporte sanitário ou pela brevidade suas intervenções.

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Redes de Atenção à Saúde: rumo à integralidade 19

Para isso funcionar razoavelmente, além alguns artigos da Lei Federal 8080/1990,
do acerto prévio e pactuado, há de se ter no conhecida como Lei Orgânica da Saúde
conceito e na prática da operação um sistema (BRASIL, 1990). Essas regiões, que não invadem
de informação que suporte o funcionamento a competência e a prerrogativa municipal,
em ato contínuo da rede. Por isso, o tema do pelo contrário, as fortalecem na garantia
prontuário eletrônico de uso compartilhado dos direitos de seus cidadãos, precisam sair
pelas várias equipes do sistema, com número do seu histórico aspecto meramente admi-
identificador permanente, é tão vital como nistrativo e burocrático para se tornarem
insumo para a rede quanto ter equipes de realmente vivas, onde um território e sua
cuidado suficientes em todas as ofertas tec- população, fixa e variável, tenham equidade
nológicas. O mesmo se pode dizer de um de acesso aos serviços e que estes se cons-
sistema regulado de transporte sanitário tituam em redes articuladas. Que os vazios
que não pode ser esporádico e periférico, ou assistenciais possam ser identificados e
dos mecanismos de Educação Permanente objeto de planejamento conjunto das três
e monitoramento de resultados esperados e esferas federadas, e que haja um comparti-
previamente pactuados. O emaranhado de lhamento desafiador do planejamento inte-
caminhos e possibilidades para os usuários, grado do setor público com o setor privado,
no atendimento às suas necessidades, tão va- especialmente em regiões onde é marcante
riadas, precisa ser simplificado e verificado esta participação privada.
permanentemente. Sempre tendo a região como base territorial
Por fim, sem esgotar todos os elementos e a Atenção Básica como o seu centro de
constitutivos, a importância, num País com comunicação e articulação mais vigoroso, as
as características geográficas, de dispersão RAS podem ser organizadas a partir de vários
ou adensamento populacional, de relação temas da atenção, que têm singularidades no
interfederativa complexa e imperfeita, do seu modo de organizar o cuidado nos diferentes
estabelecimento de regiões vivas de saúde, patamares tecnológicos. Por razões diversas,
às vezes, dentro do mesmo grande municí- pode ser mais fácil e indutora a implantação
pio, mas, principalmente, a partir de rela- de determinados temas em diferentes regiões,
ções intermunicipais. Para a imensa maioria o que facilita, ao longo do tempo, a expansão
dos cidadãos brasileiros, ter o seu direito à para o conjunto integral da assistência. Esse
saúde garantido, no aspecto da integralida- formato organizativo pode ser chamado de
de, significa ter acesso a serviços em outros redes temáticas ou linhas de cuidado temáticas.
municípios que não o seu de origem. Tudo o A ideia força das redes temáticas é a capacidade
que significar transbordar a atuação de uma indutora de determinados temas para a
Atenção Básica, mesmo fortalecida e reso- organização do conjunto das RAS. Podem ser
lutiva, vai exigir esse aspecto supramunici- exemplos desses temas a questão da urgência
pal de rede de atenção. E o que não temos e emergência, as doenças crônicas no seu
são regiões vivas de saúde no Brasil, apesar conjunto ou em determinados grupamentos de
dos diversos exercícios em curso, de dife- patologias, a assistência obstétrica e neonatal e
rentes modalidades, e incentivadas mais a rede de atenção da saúde mental. Importante
recentemente pelo efeito indutor da polí- lembrar que um determinado serviço, ou
tica nacional tripartite e coordenada pelo ponto de atenção, vai se conformando como
Ministério da Saúde de implantação das ponto de atenção de vários temas, como os
RAS. Reforçada, ainda, pela coordenação hospitais e os grandes serviços ambulatoriais
interfederativa das regiões de saúde, sob de referência especializada, com a imagem
o arcabouço legal do Decreto Presidencial de transversalidade, quando olhado de fora
7805/2011 (BRASIL, 2011a), que regulamentou da rede, e como plataforma de busca de

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20 MAGALHÃES JUNIOR, H. M.

integralidade do cuidado, quando olhado ser chamada de rede temática das doenças
por dentro (FRANCO; MAGALHÃES JuNIOR, 2004; SILVA; crônicas, e as doenças cardiovasculares uma
MAGALHÃES JuNIOR, 2013). linha de cuidado específica, assim como as
Também, uma rede ou um componente doenças renais ou as respiratórias. A força está
temático das RAS pode ser dividido em sub- em organizar tecnologicamente o conjunto
redes ou mesmo em linhas de cuidado, sem de serviços com o que pode potencializar o
a preocupação da definição semântica. Um cuidado contínuo e qualificado, admitindo
exemplo para isso: as doenças crônicas, ainda particularidades e aspectos específicos que
que com componentes ou fatores de risco em podem exigir diferentes ofertas assistenciais.
comum, têm determinantes e necessidades Uma figura síntese está disposta abaixo, e
propedêuticas e de tratamento próprias. demonstra essa proposta de articulação de
Portanto, o que é plataforma comum pode processos e ações.

Figura 1. Redes temáticas de atenção à saúde

Rede de Atenção Psicossocial

Rede de Atenção às Pessoas


Qualificação/Educação

Rede de Atenção à Pessoa


Urgências e Emergências

com Doenças Crônicas


Informação

Rede de Atenção às

com Deficiência
Rede Cegonha

Regulação

Promoção e Vigilância à Saúde

ATENÇÃO BÁSICA

Fonte: Secretaria de Atenção à Saúde / SAS/ MS

Um breve relato da de dezembro de 2010, foi publicada uma


experiência desses últimos portaria que sintetizou o esforço de conso-
lidação conceitual e os pontos de propostas
três anos no Ministério operacionais para a implantação das RAS,
da Saúde, no esforço de efetivamente, no SUS (BRASIL, 2010), a partir de
implantar as RAS um conjunto de discussões mediadas e siste-
matizadas pela Organização Pan-Americana
Já foi citado, em momento anterior deste de Saúde (Opas), tendo experiências interna-
texto, que após a pactuação entre o Ministério cionais e algumas brasileiras como referen-
da Saúde, os estados e os municípios, em 30 cial (OPAS, 2008). Ao assumir a nova gestão do

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Redes de Atenção à Saúde: rumo à integralidade 21

MS, tomou-se a iniciativa política de trazer (BRASIL, 2011c);


para o centro da política de atenção à saúde
a implantação das RAS, sem a preocupação - Rede de Atenção Psicossocial para pessoas
de publicar ou ter a autoria normativa, mas com sofrimento ou transtorno mental e com
utilizando o contido na referida portaria. necessidades decorrentes do uso de crack,
Sob o lema de acesso e qualidade, a implan- álcool e outras drogas (RAPS), Portaria nº
tação das RAS se articulou e compartilhou a 3.088, de 23 de dezembro de 2011 (BRASIL, 2011d);
prioridade política da gestão com o fortale-
cimento da Atenção Básica, com vários mo- - Rede de Cuidados à Pessoa com
vimentos vigorosos e ampliação substancial Deficiências (Viver Sem Limite), Portaria
de orçamento. Desde então, a Atenção Básica nº 793, de 24 de abril de 2012 (BRASIL, 2012).
renovada e as RAS passaram a ser a principal
agenda assistencial no SUS. Por razões relacionadas à capacidade ope-
Sendo um momento inicial de implan- racional e orçamentária do MS, dos estados
tação das RAS como política estruturante e municípios, em cada uma das redes foi
do SUS, do ponto de vista assistencial, e de definida uma estratégia, que contemplaria,
pouca prática institucional interfederativa ao longo dos próximos anos, todo o País. As
nesse processo, foi discutida com estados e redes também teriam uma estrutura com
municípios a necessidade de serem prioriza- componentes variados e lógicas próprias de
dos alguns temas para as RAS. A escolha se implantação pela singularidade de sua cons-
deu por razões de prioridade epidemiológica tituição. E em todas as situações, tendo como
e assistencial, como no caso da assistência base a mesma região de saúde, definição essa
obstétrica e neonatal (com o nome simbólico em constante mutação e decidida livremente
de Rede Cegonha) em todas as suas fases, e pelos estados e municípios, pactuadas nas
por compromissos públicos assumidos pelo Comissões Intergestores Bipartites (CIB).
novo governo, como o tema da urgência e A seguir, um breve relato de cada uma das
emergência. Assim, num fluxo contínuo de redes temáticas que foram pactuadas e
formulação, discussão, negociação e pactua- passaram a ser implantadas de 2011 a 2014.
ção ampla com a representação dos estados e Neste relato, são apresentadas informações e
municípios, foram estabelecidas as seguintes dados contidos em publicação da Secretaria
redes temáticas desde o início da nova gestão de Atenção à Saúde (SAS/MS) sobre a im-
do MS, em 2011: plantação das Redes de Atenção à Saúde e
outras Estratégias (BRASIL, 2014a).
- Rede Cegonha, Portaria nº 1.459, de 24 de
junho de 2011 (BRASIL, 2011b);
Governança das RAS
- Rede de Prevenção e Controle do Câncer de
Colo do Útero e Mama, depois ampliada para A governança das RAS está descrita na
Política Nacional para a Prevenção e Controle Portaria 4.279 como:
do Câncer pela Portaria nº 874, de 16 de maio
de 2013 (BRASIL, 2013a), na Rede de Atenção à Sistema de governança único para toda a rede
Saúde das Pessoas com Doenças Crônicas no com o propósito de criar uma missão, visão
âmbito do Sistema Único de Saúde (Portaria nº e estratégia nas organizações que compõem
252, de 19 de fevereiro de 2013. BRASIL, 2013b); a região de saúde; definir objetivos e metas
que devam ser cumpridos no curto, médio e
- Rede de Urgência e Emergência (RUE), longo prazo; articular as políticas institucio-
Portaria nº 1.600, de 07 de julho de 2011 nais; e desenvolver a capacidade de gestão

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22 MAGALHÃES JUNIOR, H. M.

necessária para planejar, monitorar e avaliar o um instrumento de fechamento formal das


desempenho dos gerentes e das organizações pactuações regionais realizadas (SANTOS, 2013).
(BRASIL, 2010). O principal dispositivo no campo geren-
cial foi a instituição dos grupos condutores
O processo de formulação das redes temá- das redes temáticas regionais ou estaduais,
ticas buscou traduzir esse atributo como um onde são formulados os Planos de Ação
dos instrumentos para a sua gestão e opera- Regional (PAR). Esses grupos têm o papel
cionalização, com um conceito central de go- da formulação, do apoio à implantação e do
vernança pública, com nova relação entre os monitoramento das redes temáticas. Outro
entes federados e destes com os prestadores arranjo foi dado pela Portaria 1.473, de 24
públicos e privados, assim como atores da so- de julho de 2011 (BRASIL, 2011e), que instituiu os
ciedade civil. Essa opção conceitual está nas comitês gestores, grupos executivos, grupos
diretrizes da política nacional de regulação transversais e comitês de mobilização social
como um dos mecanismos de governança. e de especialistas. A intenção desse arranjo
A sua parte institucional se consolida com o foi conformar uma estrutura federal de co-
Decreto 7.508 (BRASIL, 2011), nas instâncias ges- ordenação do processo das redes temáticas
toras do SUS, por meio do reconhecimento – com mais transparência, participação mais
formal das comissões intergestores regionais ampla e diálogo dos compromissos prioritá-
(CIR), estaduais (CIB) e a nacional tripartite rios do governo federal – com os conceitos
(CIT), incluindo, também, o contrato orga- e operações das redes de forma matricial,
nizativo de ação pública (Coap) como mais compartilhada e democrática (figura 2)

Figura 2. Coordenação dos compromissos prioritários do governo nas RAS

GE Rede Cegonha
Mobilização
GE
Eixo Câncer da Rede
de Crônicas
Comitê Gestor

GE Rede Urgência
Grupo executivo

GE Rede Psicossocial
Comitê de
especialistas Rede de Atenção
GE à Pessoa com
Deficiência

GT GT GT
Regulação Educação Pactuação
DRAC SGTES SGEP

Fonte: Secretaria de Atenção à Saúde / SAS/ MS

DIVULGAÇÃO EM Saúde PARA Debate | rio de Janeiro, n. 52, p. 15-37, out 2014
Redes de Atenção à Saúde: rumo à integralidade 23

Rede Cegonha do financiamento para exames básicos de


patologia clínica e ultrassonografia; introdução
Apesar da tradição da saúde pública brasi- dos testes rápidos para gravidez e para sífilis
leira, mesmo na era pré-SUS, de tratar do e HIV; distribuição dos kits para parteiras
tema da saúde materna e infantil incluindo tradicionais e indígenas; equipamentos para
o enfoque da gestação e da mortalidade in- Unidades Básicas de Saúde (UBS) (balança
fantil, a persistência da mortalidade materna antropométrica e sonar); capacitação de
em níveis muito elevados e de evidências de parteiras e de profissionais de saúde, incluindo
baixa qualidade do processo do parto e do a ampliação de residências multiprofissionais
nascimento justificaram fortemente a de- e de enfermagem obstétrica; ampliação do
finição desse tema como prioridade. Com novo sistema de informação do pré-natal e
o reparo, sempre muito lembrado em todos formulação de novas diretrizes para o pré-
os debates pela própria equipe do MS, dos natal, o nascimento e o puerpério, disseminadas
Conselhos e do Movimento de Mulheres, de pelos Cadernos da Atenção Básica.
não se restringir o conjunto da saúde inte- O resultado desse grande esforço conjun-
gral da mulher a este seu aspecto específico to em todos os estados foi a adesão, até o final
da gravidez e parto. de 2013, de 5.488 municípios, onde estão es-
Foi processada a pactuação da Rede timadas cerca de 2,5 milhões das gestantes
Cegonha, em reunião da CIT, em maio de brasileiras, mais de 80% do seu total no SUS.
2011, e lançada oficialmente pela Presidenta Além disso, também o incentivo às ações nos
da República (BRASIL, 2011b). Definida como dois primeiros anos de vida das crianças,
prioridade, até 2014, para sua implantação com visita na primeira semana, correção e
em todos os seus componentes nas regiões prevenção das principais carências nutricio-
norte e nordeste, incluída a região do semi- nais na primeira infância (anemia ferropriva
árido e os Vales do Jequitinhonha e Mucuri, e deficiência de vitamina A), ampliação da
em Minas Gerais, além das regiões metropo- triagem neonatal e do incentivo ao aleita-
litanas em todo o País. Essas regiões signifi- mento materno e à alimentação comple-
cam 50% dos municípios e 80% das gestantes mentar saudável, além da expansão da rede
de todo o País. O componente do pré-natal, pública de bancos de leite.
com ampliação de exames e estímulo a cap- Os componentes a seguir encontram-se
tação precoce das gestantes em cada terri- no momento do parto e do nascimento: o
tório, foi universalizado para todo o País, grande esforço para que este ocorra da forma
a partir de um mecanismo de adesão mais natural, sempre que possível, o que ainda é
simplificado, além da adesão automática aos um grande desafio no País, com as cesaria-
municípios participantes do Programa de nas já passando dos 50% dos partos no SUS,
Melhoria do Acesso e Qualidade da Atenção sendo quase totalidade em alguns hospitais
Básica (PMAQ-AB) (PINTO; SOUSA; FLORÊNCIO, 2012) privados, contribuindo para uma epidemia
Esse componente, o do pré-natal, de prematuridade e baixo peso (BRASIL, 2012b);
tem potência para impactar fortemente o diagnóstico regional da oferta de serviços
os indicadores de mortalidade materna para parto de risco habitual e as referências
pela redução das gestações de alto risco, com distância máxima razoável de serviços
especialmente com redução das suas principais de parto de alto risco, e propostas de amplia-
causas: infecção, hipertensão e diabetes, e ção ou criação de maternidades, leitos de
começa pela ampliação dos processos de alto risco, leitos canguru, UTIs neonatais e
planejamento reprodutivo e pela redução de maternas, com financiamento federal prio-
abortamento inseguro. As principais ações ritário; introdução formal no SUS e finan-
definidas nesse componente foram: ampliação ciamento de sua construção e custeio dos

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24 MAGALHÃES JUNIOR, H. M.

Centros de Parto Normal (CPN) e das Casas matriz de monitoramento de resultados. O


da Gestante, Bebê e Puérperas (CGBP) foram aumento da velocidade da queda da morta-
dispositivos em franca implantação em todas lidade materna, monitorada pelo Sistema de
as unidades da Federação, com financiamen- Informação sobre Mortalidade (SIM), desen-
to federal, mais uma vez com prioridade para volvido pelo MS, já é, certamente, resultado
as regiões norte e nordeste. desse conjunto de ações da Rede Cegonha,
Entre 2011 e 2013, foram criados e qua- principalmente pela mobilização em todo
lificados, no marco da Rede Cegonha, 847 o País de gestores, trabalhadores e usuárias
leitos de UTI adultos para gestantes e puér- (BRASIL, 2014b). Também, o feito de atingir cinco
peras e 2.204 leitos de UTI neonatal, além anos antes as taxas de mortalidade infantil
da criação de 2.020 leitos de Unidades de compromissadas pelo Brasil nos Objetivos
Cuidado Intermediário (UCI), em todo o do Milênio tem a ver com a história de es-
País, com custeio adicional para essa quali- forços empreendidos nos últimos dez anos,
ficação, colocados, integralmente, sob regu- e que foram intensificados no período de
lação pública dos gestores locais. O esforço implantação da Rede Cegonha. Por se tratar
mais sistêmico de discussão e a aprovação das regiões e populações mais carentes, im-
dos Planos de Ação Regional (PAR), com portante também foi a redução expressiva da
ampla participação dos gestores, prestadores mortalidade infantil, quando da associação
e técnicos das secretarias municipais e esta- da transferência de renda com as ações de
duais, além de apoio matricial do MS, resul- saúde, impulsionadas pelo monitoramento
taram, até dezembro de 2013, em 203 regiões das condicionalidades do Programa Bolsa
com PAR aprovado, publicado e com recur- Família, que prioriza gestantes e crianças
sos federais transferidos, atingindo 85% das (RASELLA, 2013; MAGALHÃES JuNIOR; JAIME; LIMA, 2013).
regiões norte e nordeste e 50% das demais
regiões do País, significando recursos adi-
cionais de custeio de cerca de um bilhão de Rede de Urgência e
reais anualmente, alocados nos tetos finan- Emergência (RUE)
ceiros de estados e municípios.
A implantação de um serviço de ouvido- No SUS, o tema mais discutido e objeto de
ria ativa foi uma inovação importante, com maior contingente de críticas talvez seja o
ligações telefônicas a todas as gestantes que atendimento de urgência e emergência. Sem
fizeram parto pelo SUS, já com mais de 100 entrar em um diagnóstico muito profundo, o
mil ligações na primeira avaliação, permitin- gargalo das chamadas portas de entrada das
do a identificação de problemas de estrutura urgências no País tem algumas explicações
e de processo a partir da lógica do usuário, claras, teóricas, que embasaram a construção
incluindo: descumprimento de direitos, do arcabouço da RUE e foram comprovadas
como do acompanhante, da visita aberta e pelas discussões locais, visitas a serviços e
da analgesia, além da detecção de casos de interação com gestores. Primeiro, o fluxo
violência física e verbal, com repasse das anormal motivado pela insuficiência de res-
informações aos gestores locais e instala- posta da Atenção Básica, seja por seus pro-
ção de processos de auditoria conforme o cessos de trabalho, ainda hegemônicos, que
caso. As 32 maternidades de referência, e dificultam o atendimento a pacientes agudos,
que concentram cerca de 50% dos casos seja pelo pequeno arsenal tecnológico ou
de morte materna no SUS, foram objeto de pela tradição de horários de funcionamento
um projeto específico de reestruturação em dias úteis e período diurno. Segundo, os
e de mudanças de processo de trabalho, processos de trabalho nas portas, com frag-
com presença de apoiador local do MS e mentação do cuidado, sem classificação de

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Redes de Atenção à Saúde: rumo à integralidade 25

risco, sem equipes horizontais, inseguran- vazios de atenção 24 horas e a possibilida-


ça profissional especialmente das equipes de de utilização de estruturas já existentes,
médicas e de enfermagem, superpopulação com reformas de unidades e hospitais. Em
de usuários e ambientes completamente dezembro de 2013, havia 1.048 UPAs apro-
inadequados física e tecnologicamente. Por vadas pelo MS nessa metodologia, com 296
fim, as mazelas da estrutura hospitalar como já em pleno funcionamento. Houve, também,
um todo, com um apartamento na unidade a duplicação dos valores de custeio repas-
de urgência, dificuldade de utilização prio- sados aos gestores locais, a título de quali-
ritária dos leitos de internação no próprio ficação das unidades, além de viabilização
hospital ou em outras unidades e, princi- de financiamento federal e atas de registros
palmente, a atrofia de leitos de retaguarda de preços para compra de equipamentos e
com tecnologia de resposta compatível com disponibilização de projetos executivos por
a nova realidade das emergências. Ou seja, a parte do MS, para agilização dos procedi-
predominância de usuários idosos, com pa- mentos locais.
tologias crônicas múltiplas e traumas com- Atenção Domiciliar como política pública:
plexos. Ademais, a dificuldade regulatória de instituída com o nome de Melhor em Casa
colocar à disposição das portas de emergên- (BRASIL, 2013d), a implantação da Atenção
cia, os leitos de retaguarda em outros pontos Domiciliar merece um destaque pela sua
de atenção da rede, ou seja, exercitando o potência, com os dispositivos implantados,
conceito adequado de redes e com base em de substituir com eficiência e humaniza-
dispositivos regulatórios potentes. Complica ção leitos hospitalares, ampliando o acesso
esse quadro a distribuição heterogênea e de dos usuários, com meta de alcançar 1.000
forma frequentemente insuficiente de portas equipes básicas e de apoio, podendo chegar a
de emergência nos diversos territórios, alon- cuidar, ao mesmo tempo, de 60.000 usuários,
gando os tempos e os deslocamentos dos ou seja, cerca de um sexto dos leitos hoje dis-
usuários, contribuindo para um ambiente ponibilizados ao SUS. Em dezembro de 2013,
tenso e de insatisfação. estavam funcionando 294 equipes básicas e
Com base na observação, empírica ou não, 151 equipes de apoio, com uma grande avalia-
dessa realidade complexa e muito grave, a ção positiva por parte dos usuários (PROENÇA,
RUE foi debatida exaustivamente no grupo 2013) e com importante papel integrador da
técnico tripartite e pactuada nas suas linhas rede de urgência e da Atenção Básica.
gerais em junho de 2011 (BRASIL, 2011c), com os Componente pré-hospitalar móvel – Samu
seguintes componentes: 192 e centrais de regulação: completando 10
Componente pré-hospitalar fixo: Atenção anos em 2013, o Samu foi expandido nesse
Básica resolutiva, estimulada pelo PMAQ período com uma característica nova: a im-
(BRASIL, 2011f; PINTO; SOUSA, FLORÊNCIO, 2012), e plantação de estruturas regionais em áreas
Requalifica UBS, com previsão obrigató- remotas o País, já que as grandes cidades
ria de sala de medicação e de observação (praticamente todas) já tinham seus serviços
nas UBS (BRASIL, 2013c), Salas de Estabilização implantados (BRASIL, 2012c). No final de 2013,
(BRASIL, 2011g) e a articulação das Unidades de já eram 2.745 municípios cobertos, com 181
Pronto Atendimento – UPA (BRASIL, 2011h), que centrais, 2.856 bases de ambulâncias em
já vinham sendo implantadas pelo MS desde funcionamento e cobertura populacional de
2008 em pontos mais articulados da RUE. A cerca de 140 milhões de brasileiros. Foram
partir de 2001, fazendo parte do Programa estruturados, também, planos de contin-
Federal de Aceleração do Crescimento gência para grandes eventos ou acidentes de
(PAC), a definição de alocação das unidades massa, e um dispositivo denominado Força
passou a considerar o desenho da rede, os Nacional do SUS, em parceria com estados e

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municípios, que já teve atuação em diversas animadores do ponto de vista de amplia-


catástrofes, naturais ou não (BRASIL, 2011i). ção da oferta real regulada, capacitação de
Componente hospitalar da RUE (BRASIL, equipes, introdução de novas tecnologias de
2011j): este talvez seja o maior desafio para cuidado, monitoramento de tempos de aten-
intervir no quadro ainda dramático de mi- dimento de performance clínica e gerencial,
lhares de pacientes, mesmo que atendidos, investimentos focados e apoio matricial per-
mas inadequadamente alojados em macas manente do MS (BRASIL, 2014a).
nos corredores dos grandes hospitais ou das
UPAs. Como já colocado, há uma insuficiên-
cia clara de oferta de leitos qualificados de Rede de Atenção
retaguarda para as urgências no SUS, assim Psicossocial (RAPS) para
como no setor privado, em quase todas as
localidades. E ainda com um perfil tecnoló-
pessoas com sofrimento ou
gico e de composição de equipes incompa- transtorno mental e com
tível com as necessidades atuais, incluindo necessidades decorrentes
a falta de oferta qualificada de profissionais do uso de crack, álcool e
médicos, em especial, em algumas especiali-
dades mais críticas, como ortopedia, clínica,
outras drogas
pediatria, anestesiologia e neurocirurgia.
Por um processo denominado qualificação A intervenção civilizatória da saúde pública
de leitos, com custeio federal bem signifi- brasileira, nos últimos onze anos, com a
cativo e regulação diferenciada, foram alo- chamada reforma psiquiátrica, tem rele-
cados no sistema mais 6.165 leitos clínicos e vância histórica e desvendou uma série de
de trauma, e 3.527 leitos de UTI para adultos dispositivos, como a chamada rede substi-
e crianças, além de custeio adicional para tutiva, para cuidar adequadamente e com
qualificação das portas de entrada. Apesar resultados clínicos e humanos dos pacientes
da relevância numérica em relação a outros com sofrimento mental. A expansão vigoro-
períodos, é possível que, em determinadas sa dessa rede, associada à redução de vagas
regiões, ainda não haja sequer um quarto em manicômios, é a demonstração dos seus
da necessidade de oferta real de leitos, mos- efeitos positivos, já havendo milhões de pro-
trando que, apesar de adequado o dispositivo cedimentos realizados e processos terapêu-
dessa tipologia de leitos de retaguarda, qua- ticos singulares implementados em milhares
lificados e regulados, no próprio hospital de de usuários e usuárias, e com respeito à li-
urgência ou em outros pontos da rede (essa berdade, à cultura e aos direitos humanos. A
a grande inovação da RUE), há um longo rede tem como foco principal, pela própria
caminho ainda a ser feito, desde que conti- gravidade dos quadros, os transtornos es-
nuando com a política de expansão crite- quizofrênicos e relacionados, com o desen-
riosa da RUE para todo o País, com a adição volvimento de conceitos e componentes
de novos serviços qualificados e a formação importantes de redes de atenção. Entretanto,
ousada de recursos humanos. Um recorte es- nos últimos anos, uma nova realidade epi-
tratégico testado, e que ainda precisa de mo- demiológica passou a tensionar o funcio-
nitoramento e avaliação, foi o chamado SOS namento dessa rede e de todo o sistema de
Emergências, que intensificou o diagnóstico saúde. Trata-se do surgimento, em escala im-
situacional e um plano de ação específico portante, da dependência química ao crack e
para cada uma das maiores emergências bra- de outras drogas, associada ao uso abusivo
sileiras, chegando ao número de 31 hospitais com dependência do álcool. O poder público
no final de 2013, e com resultados parciais e a sociedade civil se viram diante de um

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Redes de Atenção à Saúde: rumo à integralidade 27

grande desafio, devido ao impacto clínico e do financiamento inovador de Residências


humano, no indivíduo e na família, da de- Terapêuticas e Centros de Convivência
pendência ao crack. e do financiamento inédito de constru-
O governo federal realinhou ações mul- ção de CAPS e UAs pelo MS, com recursos
tissetoriais que já vinham sendo tentadas e fundo a fundo. Essa rede também carece
propôs um programa amplo denominado de muito apoio político dos gestores locais,
‘Crack, é Possível Vencer’ (nome de fantasia), que, mesmo aderindo formalmente ao plano
para, no caso da saúde, expandir e diversifi- nacional, tem muitas dificuldades gestoras
car uma rede de cuidados plural e capilari- nessa área e uma grande luta para conseguir
zada, com potência para atender de forma montar equipes qualificadas, mais uma vez,
contínua os usuários ao longo de sua vida, com as dificuldades de oferta dos profissio-
em diferentes serviços, a partir de diferentes nais médicos. Há um longo, mas promissor
necessidades (BRASIL, 2014a). A grande pedra caminho a ser trilhado para dotar todas as
angular do programa e da rede de cuidados regiões do País do conjunto dos dispositi-
adotada pelo governo é a de que dependen- vos da rede de saúde mental, consolidando
tes de crack e outras drogas são objeto de a reforma psiquiátrica, reduzindo com mais
saúde pública e de outras políticas sociais, velocidade os leitos psiquiátricos de crôni-
e não um problema de segurança ou polícia. cos e dando segurança às famílias no cuidado
Essa rede foi pactuada em novembro de 2011 quando necessário.
(BRASIL, 2011d).
A demanda diversificada e em escala cres-
cente, nos grandes e mais vistosos centros Rede de Cuidados à Pessoa
urbanos e também nos pequenos municí- com Deficiência: Viver Sem
pios, exige uma Atenção Básica atenta ao
problema e capacitada para o seu diagnós-
Limite
tico e acompanhamento em primeiro nível,
interação com a escola fundamental e média, Com toda certeza, uma das maiores dívidas
um sistema de urgência também capacitado do SUS nessa sua curta história é a de oferta
para o atendimento e um conjunto de ser- de serviços para pessoas com deficiência – e
viços de retaguarda: leitos especializados há mais de 26 milhões de brasileiros e bra-
de retaguarda em hospitais gerais, amplia- sileiras com uma ou mais deficiência mo-
ção dos Centros de Atenção Psicossocial derada ou grave. E, mais uma vez, uma ação
(CAPS) 24 horas, com equipes capacitadas, governamental intersetorial, com inúmeros
o seu equivalente para crianças e adolescen- ministérios e órgãos envolvidos, encontrou
tes, Unidades de Acolhimento Transitório no setor saúde a proposta de rede integra-
e apoio em instituições de mais longa per- da de cuidados para ser a proposta de sua
manência – as chamadas Comunidades organização. Novamente, articular serviços
Terapêuticas. Esses são os componentes da já existentes, próprios do estado brasileiro
rede psicossocial, além de processos de qua- ou em parceria com entidades da sociedade
lificação amplos e desenho em cada territó- civil, ressignificar outros e criar terceiros foi
rio do conjunto da rede atual e sua projeção o caminho encontrado.
de necessidades para o futuro. Após grande discussão dentro do governo
No final de 2013, já eram 2.067 CAPS, com e com os parceiros federativos, foi criada a
mais outros 64 novos centros especializados rede de cuidados das pessoas com deficiên-
em álcool e drogas, os CAPSAD 24 horas, cia, a rede do Viver Sem Limite, pactuada em
além da ampliação do custeio federal para os fevereiro de 2012, enfrentando, ainda, uma
CAPS e as Unidades de Acolhimento (UA), falta de acúmulo do SUS com serviços nessa

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área (BRASIL, 2012a). Além da capacitação e da Rede de Atenção à Saúde


protocolização de ações na Atenção Básica, das Pessoas com Doenças
a grande ação de prevenção foi a radical ex-
pansão e a qualificação da triagem neonatal,
Crônicas
especialmente no seu componente teste do
pezinho, com ampliação da testagem para A última rede temática definida e pactuada
seis doenças e treinamento em todos os nesses três anos sob análise, já no final de
estados para a implantação de todas as suas 2012, foi a de cuidados com as pessoas com
fases. No final de 2013, 20 dos 27 estados já doenças crônicas, a partir do esforço das três
estavam na chamada fase IV da triagem ne- esferas de governo em ampliar a oferta de
onatal, com novo sistema de informação e serviços de tratamento do câncer, com prio-
gestão em curso e montagem de serviços de ridade para os mais prevalentes cânceres nas
referência em todos eles, com possibilidade mulheres, o câncer de mama e o câncer de
de, até junho de 2014, ter completado o ciclo colo do útero. Seguindo os mesmos passos
nos demais sete estados. e conceitos, ampliando o papel sustentado
A grande inovação foi a proposta de da Atenção Básica, ampliando serviços de
criação dos CER (Centros Especializados diagnóstico e credenciando inúmeros novos
em Reabilitação), com possibilidade de serviços de tratamento com quimioterapia,
atendimento integrado de deficientes radioterapia, cirurgia oncológica ou trata-
físicos, intelectuais, auditivos e visuais, mento combinado.
com pelo menos duas deficiências acopla- Foi redefinida, depois de mais de um
das e, mais uma vez, priorizando o norte ano de construção conjunta, uma nova po-
e o nordeste brasileiros, com estímulo e lítica de prevenção e controle do câncer, já
financiamento à construção de equipamen- no formato de linhas de cuidado, dentro do
tos com recursos federais, além de creden- arcabouço conceitual da rede de crônicas
ciamento, com adequações de 102 serviços (BRASIL, 2013b). Nesse caso, o papel da Atenção
existentes e adaptados com custeio federal Básica é ainda mais relevante, desde os
robusto e com clara área de responsabili- mecanismos de prevenção e controle dos
dade. Também houve proposta de criação fatores de risco, o diagnóstico precoce até
de transporte público adaptado regulado e o encaminhamento responsável para ser-
oficinas ortopédicas, além de implantação viços de referência e o compartilhamento
de atendimento odontológico nos Centros do cuidado contínuo, junto dos serviços de
Especializados Odontológicos (CEO), referência. Apoiado pela nova Lei Federal
com 425 unidades financiadas, atenden- sancionada – Lei 12.732 (BRASIL, 2012d), que es-
do regularmente pessoas com deficiência. tabeleceu o limite máximo de 60 dias entre
Completa o ciclo de qualificação dessa sin- o diagnóstico do câncer e o início efetivo do
gular rede temática a qualificação de pro- seu tratamento, foi necessário o esforço da
fissionais e o diagnóstico situacional para implantação de um novo sistema nacional de
expansão progressiva da rede integrada em informação em câncer (Siscan) para moni-
todos os estados. Mais uma vez, o exercício torar gerencialmente o desempenho da rede
de construir redes mostrou aos gestores de serviços e dar base real ao planejamento e
o enorme déficit de oferta de serviços em à intervenção dos gestores nos diversos ter-
determinada região e a necessidade de ins- ritórios. Com a nova Política Nacional para a
tituição de verdadeiras regiões de saúde, Prevenção e Controle do Câncer aprovada e
com redes de atenção multitemáticas arti- publicada (BRASIL, 2013a), o grande esforço para
culadas e operadas sob a lógica da regula- o ano de 2014 e os seguintes é a construção
ção pública. do diagnóstico das regiões de saúde e suas

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Redes de Atenção à Saúde: rumo à integralidade 29

deficiências de oferta de serviços em todos Sírio Libanês, no marco dos projetos do


os componentes terapêuticos, com clara Proadi, de instituir processos de formação de
identificação, para cada UBS e sua popula- mais de 10.000 gestores e técnicos locais em
ção, dos fluxos a serem seguidos para apoio gestão de redes, gestão da clínica, regulação
diagnóstico, confirmação e tratamento dos e outros temas mais específicos, no formato
diversos tipos de câncer. misto, presencial e à distância, e no nível de
especialização. Mas ainda é muito pouco e
há uma constatação unânime da necessi-
Os desafios a serem dade de persistir e ampliar esse processo
enfrentados de Educação Permanente para as equipes
locais, que serão as grandes construtoras e
O percurso seguido neste texto, a partir do operadoras das redes. O como fazer e, em boa
histórico e da construção teórica das RAS e à parte das vezes, as questões muito simples
luz da síntese do conjunto das iniciativas, em da gestão, já vencidas há anos, em inúmeros
todo o País, de implantação das redes temá- lugares, podem fazer a diferença na implan-
ticas, pactuadas nacionalmente, permite-nos tação de parte ou de todo o processo das RAS
refletir e elencar alguns desafios importan- nos diversos territórios. Isso, na verdade, des-
tes após esse período analisado de três anos. cortina o imenso vazio de formação na gestão
Uma primeira referência constatada é a de serviços, de equipes e do próprio sistema
riqueza das inúmeras experiências relatadas de saúde na União, nos estados, municípios
e vivenciadas pelo autor em contato quase e nas regiões. A perenidade das equipes ges-
diário com um sem número de gestores es- toras é outro grande desafio a ser vencidos
taduais e municipais, técnicos e dirigentes nesse campo, estando aí relacionada aos me-
centrais e, principalmente, apoiadores do canismos de ingresso nas gestões, existência
MS, que estão participando ativamente da de carreira, estímulo profissional e remunera-
implantação das RAS em todos os territó- ção digna. O SUS já é um sistema complexo,
rios. Além de relatórios sistematizados de que não pode mais conviver com amadorismo
todas as áreas técnicas (BRASIL, 2012e, 2013e, 2014b), ou aventuras na sua gestão, independente-
a narrativa oral dos atores envolvidos nos mente do nível de governo.
permite, agora, sintetizar com muita plurali-
dade de opiniões as dificuldades e os desafios Regiões de Saúde
a serem vencidos para a efetiva estruturação
das RAS como base organizacional real do A seguir, a efetivação das regiões de saúde em
SUS brasileiro. todo o País. Elas são, hoje, via de regra, meras
divisões burocráticas dos estados ou uma in-
Capacitação das equipes e dos cipiente estrutura com uma pequena equipe
gestores que faz mediação entre os municípios das
questões relacionadas à pactuação financei-
Primeiramente, a necessidade de dissemina- ra da média e da alta complexidade. Mesmo
ção mais ousada dos conceitos e dispositivos a criação das Comissões Intergestores
já construídos e testados para o conjunto Regionais (CIR), espaço potencialmente es-
dos gestores e de suas equipes. Vale dizer, tratégico de debate e implantação das RAS e
instituir, de forma mais contínua, processos de todo o sistema de saúde, carece da presen-
de capacitação local para dar sustentação à ça técnica e gestora de equipes nas regiões,
atuação das diversas equipes. O MS fez um o que vem sendo precariamente suprido
grande esforço, em parceria com o Hospital por técnicos dos próprios municípios, num

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esquema solidário de ajuda mútua, e por Governança e financiamento das


apoiadores dos Cosems e do MS, com dis- redes
tribuição e papel desiguais e pouco estrutu-
rados em todo o País.
E, mais difícil ainda, além da definição Informação e Comunicação
e da harmonização do conceito de região
viva de saúde, é a operação cotidiana dos A iniciativa de implantar as RAS como base
espaços, que são de referência para mais de estruturação do SUS tem a capacidade de
de um município. Nosso arcabouço legal desvendar vários dos problemas estruturais
ainda é frágil na oferta de estruturas de do próprio SUS. Temos, ainda, uma enorme
gestão regional. A exceção fica para ser- deficiência de governança no sistema, além
viços de gerência e gestão estadual e para do problema já descrito da falta de capaci-
a figura dos Consórcios Públicos, ficando, tação dos gestores e das equipes, como, por
na maioria das vezes, esse papel para o exemplo, deficiências em um sistema de in-
município-polo, que, às vezes, é sobre- formação eficiente. Sem um número identifi-
carregado com a demanda excessiva e cador único dos usuários, sem fluxo definido
não regulada ou, em outras vezes, impede da informação entre as unidades, clínica e
sumariamente o acesso aos cidadãos de gerencial, e sem prontuário eletrônico único,
outros municípios, mesmo que pactuado fica muito difícil ter uma verdadeira Rede de
previamente nos mecanismos burocráti- Atenção à Saúde. Como visto, a rede compos-
cos ainda vigentes. A definição tomada na ta por pontos de atenção ou serviços tem que
implantação das RAS de observar rigoro- ser uma trilha para facilitar o caminhar dos
samente as regiões de saúde estabelecidas usuários de um para outro ponto, se possível,
em cada estado careceram de efetividade. sempre compartilhando o cuidado com a sua
Se reforçaram a região por um lado, por equipe básica contínua. E a senha para esse
outro, não houve o retorno na devida po- caminhar é o prontuário e o sistema de in-
tência para a dinâmica das redes. Estas, formação, onde esse aspecto de governança
ficaram geridas à distância pelas equipes mais avançou, mas os indícios de efetiva RAS
centrais dos estados, ou por um dos mu- são fortes. Os esforços recentes do MS para
nicípios envolvidos, geralmente a sede da efetivar, de fato, o cartão nacional de saúde
região. Isso é muito pouco para as neces- em todo o País, com base única limpa, e a
sidades do SUS e das RAS. Esse talvez seja implantação do Sistema de Informação da
um dos debates mais prementes do que Atenção Básica (Sisab) e de seus módulos
podemos chamar de reforma infracons- especializados, posteriormente, são a grande
titucional do SUS, para dar conta de sua esperança no avanço da governança sistêmi-
operação de forma mais eficiente e para ca das RAS. Também a efetivação de sistema
cumprir o objetivo maior de atender bem articulado de regulação e integrado ao
às pessoas nas suas necessidades mutáveis sistema de informação clínica, onde proto-
de saúde e facilitar seus percursos na rede colos assistenciais pactuados deem sentido
de serviços. A mesma constatação pode ao aparato regulatório, a bem da defesa do
ser observada dentro dos grandes muni- direito do usuário. Quanto mais a informa-
cípios, que contêm, na verdade, várias ção fluir em dupla mão, menos o usuário terá
regiões de saúde dentro deles. O mesmo de se deslocar entre serviços, reduzindo o
problema de gestão regional eficiente, desgaste e o custo que isso significa.
mas com menor grau de dificuldade do Um sentido estruturante nesse desafio da
que nos espaços supramunicipais. governança, também envolvendo o sistema

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Redes de Atenção à Saúde: rumo à integralidade 31

de informação, é a necessidade de o comple- operacional, testado nesses anos, de leito de


xo da Atenção Básica assumir progressiva- retaguarda, tem sido uma experiência muito
mente o seu duplo papel de cuidador direto e importante que tem ampliado a capacidade
gestor do cuidado de uma população usuária gestora local e desvendado inúmeras in-
bem definida. E gerir o cuidado é gerir a in- correções no comportamento dos serviços,
formação de cada usuário no seu transitar na como relatado por um sem número de téc-
rede segundo as necessidades, estabelecen- nicos. Mas há um longo caminho ainda a
do fluxo de comunicação, de conversa entre percorrer, que precisa de decisão política da
equipes e serviços. Também incorporar a gestão local, controle social e transparência
tecnologia do compartilhamento do cuidado, nas ações gestoras, apoio de tecnologia da
junto de médicos e equipe de serviços es- informação mais potente e mecanismos ava-
pecializados, é o que pode fazer a maior liadores da performance do sistema. Todas
diferença na vida dos usuários e dar mais as avaliações e o monitoramento feito nas
satisfação às equipes, por verem o sentido da redes, implantadas depois de um ano de pac-
integralidade sendo cumprido em cada uma tuação, evidenciaram esse déficit regulatório
das necessidades. Num enlace, permanente e têm sido um pedido frequente de apoio por
e progressivo, as equipes da Atenção Básica parte dos gestores locais.
têm toda a condição de assumir este papel
com mais potência ainda, e ter cada vez mais Financiamento
legitimidade. Esse, um grande produto da
implantação das RAS. Sem entrar no debate da clara insuficiência
de financiamento público sustentado para
Regulação o SUS nesse momento, trata-se de abordar
a fragilidade e o atraso dos mecanismos e
Um dos maiores desafios de todo o SUS e seu formatos de financiamento do sistema, que a
intricado arranjo institucional é a regulação implantação das RAS deixa muito claro. Não
assistencial. Regulação entendida como o é possível financiar de forma mais moderna,
aparato simples ou complexo, dependendo eficiente e equânime os serviços, baseado
da situação, de combinar as demandas do apenas em uma tabela virtual de procedi-
sistema e de seus usuários com as ofertas mentos e atrelando-se o seu pagamento a essa
mais adequadas em cada momento, prio- tabela unicamente, como tem sido feito nas
rizando quem mais precisa e baseada em últimas três décadas, precedendo ao próprio
evidências claras, dotando, ainda, o sistema SUS. Esse formato não contribui para a efe-
de maior transparência e eficiência. Esse tivação de redes como caminho para a busca
tem sido um grande desafio não cumprido. da integralidade do cuidado do conjunto das
Infelizmente, a regra é não ter regulação ou necessidades, mas incentiva procedimentos
ter mecanismos regulatórios mais burocrá- mais custosos e nem sempre os necessários,
ticos e dificultadores do que facilitadores, e sugando os mesmos recursos que poderiam
sob a lógica da boa governança. Inúmeras são ser mais bem alocados e que faltam em
as experiências e as iniciativas, mas a regra outros campos. É necessário caminhar para
é a não regulação na lógica pública. Alocar um financiamento baseado em resultados
mais leitos para a retaguarda das urgências é e performance, com base na população e
uma necessidade, mas esse leito tem que ter de utilização simplificado. Uma primeira
a lógica da regulação pública e estar, efetiva- grande cunha nesse processo foi a amplia-
mente, à disposição do serviço demandante ção dos processos de contratualização global
como pactuado. A introdução do conceito dos prestadores, incluindo a explicitação dos

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32 MAGALHÃES JUNIOR, H. M.

seus compromissos junto às RAS. E a criação institucionalizar esses grupos e dotá-los de


dos incentivos das redes, estimulando uma potência para pensar, planejar, propor alter-
nova relação entre os gestores e os prestado- nativas e, principalmente, monitorar e avaliar
res, incluindo os serviços próprios estatais, o que foi negociado e pactuado. A própria in-
com parte fixa e variável baseada em resul- formação da transferência dos recursos e da
tados objetivos e mensuráveis. Esse é o pri- real constituição dos componentes das redes
meiro passo para o sistema sair da armadilha carece de muito maior eficiência alocativa e
de pagamentos exclusivamente por procedi- de transparência, a começar pelo aparato en-
mentos. A discussão desse assunto nos pro- volvido do MS. Permitir, também, um melhor
cessos de avaliação da implantação das redes acompanhamento por parte do conjunto das
expôs claramente esses limites, e novas equipes, dos conselhos e dos órgãos de con-
adições, necessárias sempre, de recursos no trole interno e externo do SUS. Há, também,
sistema precisam encontrar novos formatos a necessidade de desburocratizar o processo
mais eficientes e equitativos de alocação dos de formalização das RAS, a partir do debate
novos recursos. O que já se conseguiu de local, da definição das comissões bipartites
formato de financiamento da Atenção Básica estaduais e do longo fluxo de avaliação e dis-
no Brasil, com combinação de per capitas cussão nas áreas técnicas do MS.
fixos e variáveis, e a recente introdução da
remuneração por performance pelo PMAQ Insuficiência da oferta de serviços e
(PINTO; SOUSA; FLORêNCIO, 2012), mostram que no planejamento da expansão
campo das redes e da atenção especializada
e hospitalar é necessário um grande esforço O processo descrito sumariamente de im-
institucional das três esferas de governo, plantação concreta de RAS em todo o País,
para inovar e financiá-las em novos forma- e envolvendo os diversos temas, mostrou,
tos que tenham mais ênfase na atividade fim, com muita clareza, a insuficiência da oferta
com menos peso da burocracia do meio, que histórica de serviços do SUS em diversos
se inicia no MS e perpassa todo o sistema. A componentes e nas várias regiões do País,
consolidação dessas iniciativas e a constru- apresentando, com riqueza de detalhes
ção de alternativas também poderão compor e observação local, essas insuficiências e
o que pode ser chamado de segunda onda as dificuldades na expansão dos serviços.
de reforma da institucionalidade do SUS no Muitas vezes, insuficiência de recursos,
espaço infraconstitucional. em outras, falta de capacidade de gestão,
e, inúmeras vezes, falta de oferta concreta
Transparência e controle da gestão de profissionais de saúde, em especial, de
médicos, de forma dramática em algumas
A proposta inovadora para a implantação das especialidades. Temos hoje no País serviços
RAS previu a constituição de grupos gesto- fechados, com financiamento garantido,
res estaduais e regionais, com participação e carência de oferta de profissionais. Esse
de técnicos dos estados e municípios e par- diagnóstico apurado deverá contribuir para
ticipação dos chamados apoiadores do MS, o diagnóstico do perfil e dos quantitativos
como forma de dar mais eficiência e trans- de profissionais do SUS no Brasil e para as
parência ao processo, especialmente por necessidades de ampliação da graduação e
envolver mais de um município nas regiões da pós-graduação. Mais uma vez, o rico pro-
de saúde. Ainda que a riqueza do debate cesso de implantação das RAS nesses três
tenha sido a grande experiência da implan- anos, pela sua ênfase na prioridade política,
tação das RAS, muito ainda é preciso para se desvendou parte desse mistério do SUS. E o

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Redes de Atenção à Saúde: rumo à integralidade 33

planejamento da expansão dos serviços tem de monitoramento já desenvolvidos, e muito


que ser baseado em nova parametrização e ainda precisa ser aprofundado nas análises,
novo formato, como já vem sendo proposto incluindo a provocação à academia para ex-
e está em curso pelo MS, onde as inovado- plorar e entender melhor o que vem ocor-
ras tipologias das RAS têm muito a contri- rendo na atenção à saúde do País a partir do
buir. O desenho da região de saúde com o marco conceitual das RAS. Várias pesquisas
atual padrão de oferta real de serviços é estão em curso, incluindo algumas contrata-
muito diferente da leitura rasa dos cadas- das pelo próprio MS, e outras de iniciativas
tros oficiais. As demandas de expansão para das Universidades, mas se baseando nas ex-
o futuro imediato ou não, constituirão o periências concretas das RAS nesse período.
padrão de expansão do SUS em todo o País e Este texto é uma tentativa ousada da síntese
com novos formatos, afeitos às necessidades desse percurso segundo o olhar sempre
reais de saúde da população, somando-se as assumidamente implicado de um ator em
regiões e o conjunto dos temas constituti- posição de ator federal no processo, durante
vos das RAS. Enfim, a experiência desses o referido período.
anos precisa ser objeto de leitura atenta e A consolidação desse conjunto de expe-
observada como uma grande possibilidade riências, certamente o seu maior número e
inovadora do SUS. com maior impacto em um período histó-
rico, avança na discussão do próprio arca-
bouço conceitual, que estava muito refém de
Finalizando teoria baseada em outras experiências exter-
nas e agora tem um grande material empíri-
A grande aventura assumida pela gestão do co para análise e discussão. Isso fará avançar
MS a partir de janeiro de 2011, de tornar a os próprios conceitos e as novas formulações
implantação das RAS o centro da sua polí- necessárias à realidade concreta de nosso
tica de atenção, associada ao fortalecimen- sistema, retornando à análise num ciclo vir-
to da Atenção Básica, teve muitos reflexos tuoso de produção teórica, implantação, ava-
positivos na melhoria concreta das condi- liação e novas formulações. Talvez o grande
ções da atenção à saúde em várias regiões legado que esse processo deixa como marca
do País, com resultados mensurados por nesses tempos de grande debate no SUS: que
diversas matrizes avaliativas, mas é apenas esse seja o caminho a ser trilhado por milha-
um começo de verificação de resultados. Há res de técnicos, gestores e acadêmicos em
uma riqueza enorme extraída dos processos todo o País. s

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34 MAGALHÃES JUNIOR, H. M.

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38 artigo original | original article

Comentários sobre as Redes de Atenção à


Saúde no SUS
Comments about Health Care Networks in SUS

Eugênio Vilaça Mendes1

Helvécio Miranda Magalhães Junior é um profissional híbrido que junta, numa só pessoa,
uma sólida capacidade de formulação e de execução de políticas de saúde. Tem sido, ao longo
de sua vida, ao mesmo tempo, um intelectual refinado e um gestor competente e tenaz nas
várias instituições do SUS em que atuou.
O caso das Redes de Atenção à Saúde (RAS), tema do artigo que comento, é um atestado
dessa característica de um autor-ator que contribuiu significativamente para a sua construção
teórico-conceitual e liderou, no Ministério da Saúde, sua implantação em escala nacional, nos
últimos anos.
O artigo é bem estruturado. Discute a trajetória do SUS e seus (des)caminhos para a frag-
mentação, visita as referências teóricas internacionais e nacionais sobre organização de RAS,
trata da implantação desses processos complexos nos últimos três anos e aborda os desafios
para a sua construção social no sistema público de saúde brasileiro.
O texto é bem escrito. Construído de forma direta e com conhecimento de causa induz o
leitor a uma aprendizagem significativa ao final de sua leitura. Estimula quem o lê a dialogar
com o autor, a trocar ideias e vivências sobre o tema. Foi o que ocorreu comigo.
Ao final da leitura, anotei alguns pontos que gostaria de debater com o autor e com os leito-
res, tendo como base minha produção teórica sobre as RAS e minha prática de campo, sobre o
tema, em vários lugares do País.
Antes, quero ressaltar algo que se coloca com detalhes no texto. O tema das RAS não é novo
no Brasil. Ele já está inscrito na Constituição Federal de 1988, no seu Art. 198 que menciona
que as ações e os serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada
e constituem um único sistema. Mas há de se reconhecer que a discussão doutrinária sobre o
que são RAS é mais recente, ainda que intensa. Faltava, contudo, levar a discussão teórica para
o âmbito da normatividade do SUS, o que ocorreu recentemente.
1Doutor em Cirurgia Bucal
pela Universidade Federal Uma releitura do texto constitucional se impõe porque a proposta de RAS assenta-se no
de Minas Gerais (UFMG) princípio da poliarquia, incompatível com a construção de estruturas hierárquicas.
– Belo Horizonte (MG),
Brasil. Especialista em O debate teórico sobre RAS confluiu para uma longa discussão feita no âmbito da CIT e
Planejamento de Saúde- que terminou com a publicação da Portaria n º 4.279, de 30 de dezembro de 2010 (BRASIL, 2010),
(Ensp), Fundação Oswaldo
Cruz, Rio de Janeiro, que é um documento robusto e de qualidade e que define conceitos e estabelece parâmetros
Brasil. Professor Honoris de operacionalização. Pouco tempo depois, o Decreto Presidencial nº 7.508, de 28 de junho
Causa da Universidade
Estadual de Montes Claros de 2011 (BRASIL, 2011), colocou as RAS como formas de organização do SUS nas regiões de saúde.
(Unimontes)- Montes Estavam construídas bases sólidas, no plano normativo, para iniciar a operacionalização das
Claros (MG), Brasil.
eugenio.bhz@terra.com.br RAS no sistema público brasileiro.

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Comentários sobre as Redes de Atenção à Saúde no SUS 39

O Ministério da Saúde optou pela constru- Por esta razão, a população de uma RAS não
ção social de redes temáticas e definiu como é a população IBGE, mas a população efeti-
prioritárias algumas RAS: Rede Cegonha, vamente cadastrada na APS. Essa população
Rede de Atenção Psicossocial, Rede de vive em territórios sanitários singulares, orga-
Atenção às Urgências e Emergências, Redes niza-se socialmente em famílias e é cadastra-
de Atenção às Pessoas com Doenças Crônicas da e registrada em subpopulações por riscos
e Rede de Atenção à Pessoa com Deficiência. sócio-sanitários. Assim, a população total de
O caminho percorrido, especialmente nos responsabilidade de uma RAS deve ser total-
últimos três anos, está bem detalhado no mente conhecida e registrada em sistemas de
texto do autor, como se fosse uma prestação informação potentes. Mas não basta o conhe-
de contas de seu mandato na Secretaria de cimento da população total: ela deve ser seg-
Assistência à Saúde do Ministério da Saúde. mentada, subdividida em subpopulações por
Nesse relato consideram-se as estratégias fatores de risco e estratificada por riscos em
de implantação, celebram-se resultados po- relação às condições de saúde estabelecidas.
sitivos em termos de estrutura, processos e O conhecimento da população de uma
impacto nos níveis de saúde e analisam-se os RAS envolve um processo complexo, estru-
desafios a serem enfrentados. turado em vários momentos: o processo de
Instigado pela leitura quero dialogar com territorialização; o cadastramento das famí-
o autor colocando ênfase, mais que discor- lias; a classificação das famílias por riscos
dando, em alguns pontos que me parecem sócio-sanitários; a vinculação das famílias
essenciais na discussão das RAS no SUS, à Unidade de APS/Equipe da Estratégia de
especialmente tratados nos desafios para a Saúde da Família; a identificação de subpo-
implantação: os elementos constitutivos, as pulações com fatores de risco; a identificação
redes temáticas, a coordenação assistencial, a das subpopulações com condições de saúde
regulação assistencial, as regiões de saúde, a estratificadas por graus de riscos; e a identi-
governança e o financiamento. ficação de subpopulações com condições de
saúde muito complexas.
Na concepção de RAS cabe à APS a res-
Os elementos constitutivos ponsabilidade de articular-se, intimamente,
das RAS com a população, o que implica não ser pos-
sível falar-se de uma função coordenadora
O primeiro ponto que abordo é sobre a cons- dessas redes se não se der, nesse nível micro
tituição das RAS. Tal como se estabelece na do sistema, todo o processo de conhecimento
Portaria nº 4.279/2010, as RAS se constituem e relacionamento íntimo da equipe de saúde
da população e regiões de saúde, da estrutu- com a população adscrita, estratificada em
ra operacional e dos modelos de atenção à subpopulações e organizada, socialmente,
saúde. em famílias.
O primeiro elemento das RAS, e sua razão O segundo elemento constitutivo das RAS é
de ser, é uma população, colocada sob sua a estrutura operacional. Não há no texto uma
responsabilidade sanitária e econômica. É menção específica à estrutura operacional
isso que marca a atenção à saúde baseada na das RAS, porém pode-se inferir que ela se
população, uma característica essencial das manifesta na figura 1. Observando-se essa
RAS e uma forma de gerenciamento alterna- figura - ainda que não sendo seguramente a
tivo à gestão da oferta, largamente praticada opinião do autor-, pode-se imaginar que a
no SUS. Atenção Básica está fora das redes temáticas,
O vínculo da população com uma RAS o que não é correto. Além disso, seria
dá-se na Atenção Primária à Saúde (APS). interessante retirar do componente vertical

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40 MENDES, E. V.

das RAS temáticas uma série de pontos de com a situação de saúde brasileira atual de
atenção que são transversais numa RAS. tripla carga de doenças, com forte predomí-
Assim, parece-me que a estrutura operacional nio relativo das condições crônicas.
proposta na Portaria nº 4.279/2010, é mais Os modelos de atenção à saúde são diferen-
adequada para estabelecer a estrutura tes para as condições crônicas e as condições
operacional das RAS quando define como agudas. Isso introduz um novo conceito fun-
componentes estruturais transversais, a damental para a operação das RAS que é o de
APS, os pontos de atenção secundários e condição de saúde, entendida como as circuns-
terciários, os sistemas logísticos (sistemas tâncias na saúde das pessoas que se apresen-
de identificação e acompanhamento dos tam de formas mais ou menos persistentes e
usuários, centrais de regulação, registro que exigem respostas sociais reativas ou pro-
eletrônico em saúde e sistema de transporte ativas, eventuais ou contínuas e fragmentadas
sanitário), os sistemas de apoio (sistema ou integradas. A proposta de condições de
de apoio diagnóstico e terapêutico, sistema saúde, recentemente feita pela Organização
de assistência farmacêutica e sistemas Mundial da Saúde (2003), diferentemente da
de informação em saúde) e o sistema tipologia clássica de doenças transmissíveis e
de governança. É fundamental que na doenças não transmissíveis, tem seu recorte na
implementação das RAS todos esses forma como se estruturam as respostas sociais
elementos estejam considerados. do sistema de atenção à saúde.
A incompreensão da totalidade da estrutura Os modelos de atenção às condições agudas
operacional das RAS tem sido responsável por implicam o uso de algum tipo de classificação
problemas de implantação que observo em de riscos com base em algoritmos construídos
alguns lugares brasileiros e se manifestam numa com base em sinais de alerta. Já os modelos
excessiva concentração de recursos e energia na de atenção às condições crônicas são mais
organização da APS e dos pontos de atenção complexos e têm sido utilizados crescente-
secundários e terciários ambulatoriais e hospi- mente. Dentre eles podem ser destacados o
talares, com pouca atenção à organização dos Modelo de Atenção Crônica, o Modelo da
sistemas de apoio, logísticos e de governança. Pirâmide de Riscos e o Modelo de Atenção
O terceiro elemento constitutivo das às Condições Crônicas (MENDES, 2011). É funda-
RAS são os modelos de atenção à saúde que mental, na construção social das RAS consi-
podem ser conceituados como os sistemas derar a utilização desses modelos de atenção
lógicos que organizam o funcionamento das à saúde, especialmente os modelos de atenção
RAS, articulando, de forma singular, as rela- às condições crônicas. É uma falta que senti
ções entre a população e suas subpopulações no texto do autor.
estratificadas por riscos, os focos das inter-
venções do sistema de atenção à saúde e os
diferentes tipos de intervenções sanitárias, As redes temáticas
definidos em função da visão prevalecente
da saúde, das situações demográficas e epi- O autor afirma que
demiológicas e dos determinantes sociais da
saúde, vigentes em determinado tempo e em Por razões diversas pode ser mais fácil e indu-
determinada sociedade. tor a implantação de determinados temas em
As RAS, para constituírem-se em elemen- diferentes regiões, o que facilita ao longo do
tos verdadeiros de mudança das práticas tempo a expansão para o conjunto integral da
sanitárias, terão que estruturar modelos de assistência. Este formato organizativo pode
atenção à saúde inovadores, superando os ser chamado de redes temáticas ou linhas de
modelos tradicionais que não são coerentes cuidado temáticas (p. 19).

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Comentários sobre as Redes de Atenção à Saúde no SUS 41

Uma das críticas mais comuns à proposta e informações ao longo de todos os pontos de
de RAS do Ministério da Saúde é sobre a opção atenção secundários e terciários, dos sistemas
estratégica de operar com redes temáticas. logísticos e dos sistemas de apoio. É, por essa
A crítica muitas vezes se faz por uma iden- razão, que se propõem RAS coordenadas pela
tificação equivocada entre redes temáticas e APS (ORGANIZACIÓN PANAMERICANA DE SALUD, 2010).
programas verticais. Entretanto, redes temá- O problema é que essa coordenação não
ticas nada têm a ver com programas verticais é fácil de ser feita por várias razões, como a
que são aqueles sistemas de atenção à saúde falta de legitimidade da APS frente aos outros
dirigidos, supervisionados e executados, pontos de atenção e aos sistemas de apoio e
exclusivamente, por meio de recursos es- logísticos, a insuficiente densidade tecno-
pecializados. Nas redes temáticas os únicos lógica incorporada nos cuidados no âmbito
componentes que se organizam vertical- primário e a carências de sistemas de infor-
mente são os pontos de atenção secundários mações verticais.
e terciários, o que obedece ao imperativo da Mas há uma razão adicional e fundamental.
divisão técnica do trabalho que exige, nesses Essa coordenação paira no enunciado dis-
pontos de atenção, a especialização. Os cursivo, quando não se criam métodos para
demais componentes da estrutura operacio- que ela ocorra eficazmente na prática social.
nal das RAS são transversais (APS, os sistemas Assim, há que se utilizarem métodos efetivos
de apoio, os sistemas logísticos e o sistema de de coordenação de redes nas organizações. Na
governança), portanto são comuns a todas as literatura há várias propostas de coordenação
redes temáticas. Por isso, alguns autores, para organizacional, mas uma se destaca, o modelo
fugir ao velho dilema de sistemas verticais e de coordenação proposto por Mintzberg (2003).
horizontais, consideram, utilizando a metá- O modelo de coordenação organizacional
fora geométrica, propõem os sistemas diago- de Mintzberg sugere que haja dois mecanis-
nais (OOMS, 2008). As RAS são a melhor forma mos básicos: os mecanismos de normalização,
de organizar sistemas diagonais. Pelas razões compostos pela normalização de habilidades
expostas considero que a opção estratégica do e de processos de trabalho; e os mecanismos
Ministério da Saúde pelas redes temáticas foi de adaptação mútua, compostos pela supervi-
a mais correta. são direta, pela comunicação informal, pelos
dispositivos de enlaçamento e pelos sistemas
de informação vertical.
A coordenação assistencial Esse modelo aplicado à coordenação de
RAS pode envolver a normalização de habi-
É inerente ao trabalho em redes uma coorde- lidades por meio de sistemas de Educação
nação entre os seus diferentes nós. Nas RAS, Permanente e a normalização de processos de
a coordenação assistencial tem sido definida trabalho por meio da utilização de diretrizes
como a harmonização das atividades que se clínicas baseadas em evidência. Além disso,
requerem para atender as pessoas usuárias deve englobar mecanismos de adaptação
ao longo de todos os pontos das redes. Para mútua como: supervisão direta; comunica-
que isso ocorra, a coordenação assistencial ção informal por meio de telefone, internet
estrutura-se em três dimensões: a coordena- e correio eletrônico; dispositivos de enlaça-
ção da gestão da atenção, a coordenação da mento como grupos de trabalho interdisci-
informação e a coordenação administrativa plinares, gestão de caso, comitês de gestão e
da atenção (VARGAS et al., 2011). grupos de matriciamento. Por fim, a coorde-
Nas RAS esta função de coordenação deve nação é muito facilitada se existem sistemas
ser realizada pela APS a quem cabe ordenar de informação eletrônicos que articulem a
os fluxos e contrafluxos de pessoas, produtos APS com os pontos de atenção secundários e

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42 MENDES, E. V.

terciários ambulatoriais e hospitalares e com de saúde; o ajuste entre demanda e oferta é


os sistemas de apoio e logísticos. feito geralmente pelo incremento da oferta;
Desenvolver e implantar sistemas de coor- não se utilizam regularmente mecanismos
denação assistencial das RAS, a partir da APS, de racionalização da oferta; não se utilizam
é um grande desafio que se coloca para o SUS regularmente mecanismos de racionalização
na construção social das redes temáticas. da demanda; faz-se geralmente sem o apoio
de diretrizes clínicas baseadas em evidência;
faz-se sem o uso de uma inteligência regula-
A regulação assistencial tória, o que pressupõe que todas as demandas
devam ser atendidas; faz-se de forma im-
O autor, com razão, assinala no texto: pessoal e burocrática por complexos regu-
ladores; faz-se com forte presença de efeito
Um dos maiores desafios de todo o SUS e seu velcro; e leva a ajustes perversos entre oferta
intricado arranjo institucional é a regulação e demanda por meio de filas que não são ge-
assistencial... Este tem sido um grande desa- renciáveis e que se autoalimentam ou por
fio não cumprido, infelizmente a regra é não cotas.
ter regulação, ou ter mecanismos regulatórios É preciso desenvolver e implantar uma
mais burocráticos e dificultadores, do que faci- nova forma de fazer regulação assistencial
litadores e na lógica da boa governança (p. 31). com base numa gestão de base populacional.
Isso significa uma regulação programada por
Uma regulação assistencial eficaz é funda- parâmetros das necessidades da população,
mental nas RAS e deve ter como objetivos ga- que tenha foco em demandas populacionais
rantir a atenção no lugar certo, no tempo certo, discriminadas segundo riscos sociais e sanitá-
com o custo certo e com a qualidade certa. rios de subpopulações e que utilize soluções
Creio que o problema da regulação assis- regulatórias que equilibrem a racionalização
tencial é estrutural e exige mudanças mais da demanda e a racionalização e/ou incre-
radicais. É que o modelo de regulação assis- mento da oferta.
tencial que se pratica no SUS esgotou-se e Esse novo modelo regulatório deve ter as
precisa ser totalmente reconcebido. seguintes características: é realizado com
O esgotamento do modelo de regulação base em parâmetros de programação de
assistencial tem uma questão de fundo. O necessidades; é feito com sistemas de coor-
modelo vigente foi construído com base na denação bem estabelecidos na APS; utiliza
gestão da oferta. Isso significa que a regulação sistemas de comunicação eficazes entre uni-
utiliza-se de parâmetros de oferta, tem foco dades demandantes e ofertantes de serviços;
na capacidade instalada, é orientada por uma é realizado nos eventos agudos por meio de
visão indiscriminada da demanda e apresenta complexos reguladores, com base na clas-
soluções geralmente voltadas para o incre- sificação de risco das pessoas em situação
mento da oferta. de urgência e emergência; é realizado, nas
Na prática a regulação assistencial com condições crônicas não agudizadas, direta-
base na gestão da oferta apresenta vários mente pela APS nos serviços demandados,
problemas: faz-se desde diferentes pontos utilizando-se o prontuário clínico eletrônico
de atenção, sem um ponto de coordenação ou a infovia do complexo regulador; o ajuste
estabelecido; não dispõe de mecanismos de entre demanda e oferta faz-se por uma ação
coordenação precisos; não utiliza sistemas que se inicia pela racionalização da demanda,
de comunicação eficazes entre unidades de- seguida pela racionalização da oferta e, se
mandantes e ofertantes de serviços; faz-se necessário, pelo incremento da oferta; é feito
sem estratificação de risco das condições com base em diretrizes clínicas baseadas em

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Comentários sobre as Redes de Atenção à Saúde no SUS 43

evidência; tem uma inteligência regulatória, organização racional das RAS com todos os
o que pressupõe que nem todas as demandas seus componentes.
devam ser atendidas; implica, nas condições As regiões político-administrativas foram
crônicas não agudizadas um relacionamento estabelecidas por critérios de descentraliza-
pessoal entre profissionais de saúde e envolve ção das Secretarias Estaduais de Saúde no
trabalho clínico mútuo entre os profissionais âmbito de seus estados. Foram instituídas
das unidades demandantes e ofertantes; au- antes das propostas de RAS e visavam a des-
sência de efeito velcro; e ausência de filas ou concentrar as ações político-administrativas
existência de filas gerenciáveis pela tecnolo- dessas Secretarias. Esse foi um processo feito
gia de listas de espera e ausência de cotas. há muito tempo. Assim, a lógica dessas regiões
não combina com as exigências de uma regio-
nalização de saúde para efetivar as RAS.
As regiões de saúde As regiões de saúde, diferentemente, das
regiões político-administrativas, devem ser
Como as RAS se organizam regionalmente, desenhadas segundo critérios e fundamentos
as regiões de saúde são fundamentais no pro- singulares (MENDES, 2011).
cesso de implantação das redes temáticas. Os critérios para o desenho de regiões
Aqui se está diante de um problema crítico de saúde são: contiguidade intermunicipal,
na implantação das RAS no SUS. subsidiaridade econômica e social, herança
O autor escreve sobre as regiões de saúde: e identidade culturais, endogenia regional,
disposição política de cooperação regional,
Elas são hoje via de regra, meras divisões fluxos assistenciais, fluxos viários e estabele-
burocráticas dos Estados ou uma incipiente cimento de redes com seus nós, suas ligações
estrutura com uma pequena equipe que faz e com seus fluxos.
mediação entre os municípios das questões Ademais, no desenho das regiões de saúde,
relacionadas à pactuação financeira da mé- economia de escala, disponibilidade de recur-
dia e alta complexidade... A definição tomada sos e acesso aos diferentes pontos de atenção
na implantação das RAS e observar rigorosa- à saúde determinam, dialeticamente, a lógica
mente as regiões de saúde estabelecidas em fundamental da organização das RAS. Isso
cada estado careceram de efetividade e se re- porque as RAS devem ser organizadas em ar-
forçaram a região por um lado, por outro não ranjos híbridos que combinam a concentração
houve o retorno na potência devida para a di- de certos serviços com a dispersão de outros.
nâmica das redes, ficando estas ou geridas à Os serviços que devem ser ofertados de forma
distância pelas equipes centrais dos estados dispersa são aqueles que não se beneficiam de
ou por um dos municípios envolvidos, geral- economias de escala, para os quais há recursos
mente a sede da região (p. 29). suficientes e em relação aos quais a distância
é fator fundamental para a acessibilidade; já
Minha crítica nesse aspecto é mais con- os serviços que devem ser concentrados são
tundente. As regiões de saúde que se têm aqueles que se beneficiam de economias de
em nosso País devem ser totalmente revis- escala e de escopo, para os quais os serviços
tas para que possam ancorar a formação das são mais escassos e em relação aos quais a dis-
RAS e dar suporte a uma efetiva governança tância tem menor impacto no acesso. Há que
regional do SUS. se ressaltar que a escala em serviços de saúde
Em geral, as regiões de saúde atual- guarda uma associação muito forte com a
mente definidas padecem de dois proble- qualidade desses serviços (INSTITUTE OF MEDICINE,
mas: são regiões político-administrativas 2000; NORONHA et al., 2003).
e não apresentam escala para suportar a A regionalização vigente, em geral, não

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obedeceu a esses critérios e a esses funda- governança regional eficaz dessas redes.
mentos. Como resultado, as regiões de saúde O conceito de governança, abrigado na
apresentam problemas sérios de concepção Portaria nº 4.279/2010, é recente, tendo sido
e de ausência de critérios de escala, seja na proposto na segunda metade dos anos 90.
dimensão populacional, seja na dimensão O termo governança passou por uma evo-
dos serviços. Em geral, foram desenhadas lução semântica, partindo, num primeiro
na lógica político-administrativa, não têm momento, de uma identidade com o termo
uma população suficiente para organizar a governação, o elemento procedimental de go-
oferta dos serviços de atenção terciária (‘alta vernar. Num segundo momento, deu-se uma
complexidade’) e operam com enorme inefi- ampliação semântica para indicar um novo
ciência de escala e com serviços de baixa qua- estilo de governo caracterizado por um maior
lidade. Além disso, por sua configuração, não grau de cooperação e pela interação entre o
são adequadas para a instituição da governan- Estado e os atores não estatais no contexto
ça regional das RAS. de redes decisionais mistas entre o público
Comumente, as regiões hoje existentes, e o privado. Num terceiro momento, deu-se
correspondem a microrregiões, com auto- nova ampliação semântica para abarcar todas
suficiência na atenção secundária (‘média as formas de coordenação das ações de indiví-
complexidade’). Uma região de saúde, para duos e organizações entendidas como formas
organizar RAS eficientes, efetivas e de quali- primárias da construção da ordem social
dade, deve corresponder a uma macrorregião, (MAINTZ, 2000).
com escala mínima de 500 mil pessoas, e que Do ponto de vista teórico, a governança
apresenta autosuficiência na atenção pri- envolve diferentes aspectos: significa o pro-
mária, secundária (‘media complexidade’) e cesso de governo da sociedade; é produto
terciária (‘alta complexidade’). A razão é que de uma atividade coletiva em que partici-
a uma RAS só se completa quando incorpora, pam múltiplos atores; requer uma instância
em si, esses três níveis de atenção à saúde. coordenadora; é um processo de direção
Reconfigurar as regiões de saúde, segundo estruturado institucional e tecnicamente; a
os critérios e os fundamentos de uma regio- dimensão técnico-gerencial lhe é inerente e
nalização sanitária e não político-adminis- essencial; inclui os planos de decisão sobre
trativa, é uma tarefa necessária e urgente no os valores societários e, em função deles,
processo social de construção das RAS no decide as regras de relação entre os atores;
SUS. O Ministério da Saúde, em coordenação é um processo social aberto, racional, simé-
com os estados e municípios deve assumir trico e includente, mas deve ser, por suas
esta tarefa. E cabe aos estados transformar falhas, um processo suscetível de autocrítica
suas regiões político-administrativas em e aprendizagem; é um processo diretivo cuja
regiões de saúde. estrutura intencional e técnica é produto da
participação da sociedade e do governo no
qual são mutáveis o peso e a influência que o
A governança das RAS governo e sociedade civil dispõem; é o modo
diretivo que corresponde a uma sociedade
O autor destaca: “Temos ainda uma de organizações e atores independentes e
enorme deficiência de governança no interdependentes, possuidores de capacida-
sistema” (p. 30). É fato, mas agrego des cognitivas, informativas, financeiras, tec-
algumas considerações na tentativa de nológicas, gerenciais, empresariais e éticas,
mostrar que governança de RAS é diferente capazes de auto-organização, autorregulação
de gestão de sistemas de saúde e para des- e de realização de suas preferências; signi-
tacar a importância da instituição de uma fica que os atores governamentais e sociais

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Comentários sobre as Redes de Atenção à Saúde no SUS 45

conhecem que são possuidores de recursos rotinas e protocolos desenhados por aqueles
e capacidades, que são competentes em seus que ocupam o topo da escala de hierarquias
campos e que produzem insumos e produtos da organização; na organização das hierar-
que são úteis; significa que os atores governa- quias o meio para garantir a coordenação é o
mentais e sociais reconhecem que os recursos uso do poder hierárquico efetivado pelos ges-
de que dispõem são limitados e insuficientes tores. Na governança de redes, a coordenação
para concretizar as suas preferências e que é realizada por meio de interação entre ges-
dependem de recursos que estão com outros tores interdependentes em processos de ne-
atores que são independentes, o que exige gociação e tomada de decisão coletiva sobre a
uma ação de intercâmbio entre eles; e é uma distribuição e conteúdo das tarefas; os meios
decisão em condições de racionalidade limi- para realização da coordenação nas redes são
tada pelo que é tendente aos erros e aos seus mais complexos do que em mercados e hie-
custos sociais e econômicos (AGUILLAR, 2009). rarquias, pois as redes dependem fortemente
O conceito de governança deve ser com- de adesão voluntária às normas sociais com
plementado pelo conceito de governança de base em confiança e reciprocidade.
redes que está, por sua vez, imbricado com o Nas sociedades modernas um enfoque
conceito de políticas de redes. consequente de gestão pública tem que levar
A política de redes pode ser definida como em consideração normas e valores que vão
os padrões de relações sociais, mais ou menos além dos critérios de efetividade e eficiên-
estáveis, entre atores interdependentes que cia que dominaram o debate sobre a ‘nova
tomam forma em torno de problemas ou pro- gestão pública’, na segunda metade do século
gramas políticos. Assim a política de redes passado, e que incorpore a complexidade do
forma o contexto em que o processo político ambiente governamental. Nesse sentido, a
opera. Na construção teórica de políticas de gestão pública em redes constitui a governan-
rede as teorias interorganizacionais e os siste- ça de redes complexas, constituídas por dife-
mas e de políticas comunitárias são relevantes rentes atores situados nos âmbitos nacional,
(KLINJ, 1999). Há dois aspectos centrais na teoria estadual ou local, grupos políticos e sociais,
interorganizacional que são dependência e grupos de interesses e pressão, movimentos
troca. Por isso, a análise interorganizacional sociais e organizações públicas e privadas. A
envolve a verificação das relações entre as governança pública é a influência dos proces-
organizações e as condições que influenciam sos societários numa rede de muitos outros
esses processos. coatores de governança. Esses atores têm
A governança de redes tem singularidades. interesses diversos e, muitas vezes, conflitan-
Examinando-se a tipologia clássica de dos tes. O governo não é um ator dominante que
mecanismos de governança de Williamson pode impor unilateralmente seus desejos.
(1985), verifica-se que a governança de redes é Estruturas hierárquicas de centralismo im-
diferente da governança de mercado e da go- positivo e de ações de cima para baixo não
vernança de organizações hierárquicas. funcionam numa rede. Os estilos de gestão e
Na governança de mercado, o mecanismo coordenação monocêntricos e monorracio-
central de coordenação são os preços, com nais não se adequam às redes (KICKERT; KOPPEJAN,
o pressuposto de que exista uma difusão es- 1999).
pontânea de informações sobre os custos, Com esses referenciais teóricos, pode-se
produtos e inovações; a motivação nos mer- definir governança de RAS como o arranjo
cados é alcançada principalmente por meio organizativo pluri-institucional que permite
de incentivos financeiros. Na governança de a gestão de todos os componentes dessas
organizações hierárquicas, a coordenação redes, de forma a gerar um excedente coo-
é feita principalmente pelo uso de planos, perativo entre os atores sociais em situação,

DIVULGAÇÃO EM Saúde PARA Debate | rio de Janeiro, n. 52, p. 38-49, OUT 2014
46 MENDES, E. V.

a aumentar a interdependência entre eles e a et al., 2012).


obter bons resultados sanitários e econômi- Essa incursão no campo da teoria da
cos para a população adscrita (MENDES, 2011). governança pública de RAS, somada às ca-
Os objetivos da governança das RAS são racterísticas intrínsecas do federalismo coo-
garantir o cumprimento dos pactos e acordos perativo que se pratica no Brasil (ABRÚCIO, 2002),
entre os atores, o manejo dos conflitos de in- apontam no sentido de que os mecanismos de
teresse, o direcionamento da ação segundo governança de RAS no SUS, exercitados por
os princípios da transparência e prestação Comissões Intergestores (CIT, CIBs e CIRs)
de contas, a progressiva estabilização da rede podem ser adequados.
baseada em resultados dos pactos entre os Esses mecanismos decisórios, não raro, são
atores, o respeito às regras do jogo e os re- criticados por serem burocráticos, lentos em
sultados da rede. Os princípios da boa gover- suas decisões, muito complexos e com auto-
nança de RAS são os seguintes: o princípio da ridades decisórias indefinidas. A partir dessas
prestação de contas que implica a supervisão críticas, propõem-se soluções que visam a
da atuação dos atores da rede; o princípio da instituir mecanismos institucionais à seme-
transparência que incrementa a legitimida- lhança dos que existem em países que são
de do processo de tomada de decisão e que unitários (p. ex. Suécia) ou com um federalis-
permite concretizar o princípio da presta- mo singular que imputa a um ente federativo
ção de contas; o princípio da participação o exercício da governança da saúde (p. ex.,
segundo o qual os atores devem incorporar-se Espanha e Itália). Algumas soluções propos-
ao processo de tomada de decisões estratégi- tas buscam estruturar mecanismos de coor-
cas de acordo com as regras do jogo estabele- denação monocêntrica nas regiões de saúde,
cidas; o princípio da eficácia necessário para próprios da governança hierárquica e que
alcançar os objetivos das RAS; e o princípio da conflitam com as características fundamen-
coerência segundo o qual os objetivos e ações tais da governança em redes que são coorde-
da RAS devem estar baseados na visão e estar nação pluricêntrica, negociação, decisão por
coordenados (FRANCESC et al., 2012). consenso, cooperação e interdependência.
Os componentes da governança das RAS Já que o federalismo cooperativo brasi-
são atores estratégicos e recursos de poder, as leiro, composto pela trina federativa e com
regras do jogo e os âmbitos de responsabili- participação importante dos municípios na
dade. Os atores estratégicos são os indivíduos governança da saúde, dificilmente vai ser
ou grupos com recursos de poder suficientes mudado, parece-me que o mecanismo das
para influir no funcionamento das regras ou Comissões Intergestores deva ser mantido e
procedimentos de tomada de decisões e de aperfeiçoado.
solução de conflitos coletivos. As regras do O principal problema das Comissões
jogo referem-se a regulamentos, leis e outros Intergestores é que elas se fixaram excessiva-
procedimentos que regulam a forma em que mente na sua institucionalidade e não foram
se fazem os debates, se alcançam acordos e se capazes de utilizar instrumentos de gover-
dirimem os conflitos nos espaços públicos de nança efetivos. Em geral, funcionam fazendo
decisão. Os âmbitos de responsabilidades são: pactos e registrando-os em atas, o que é in-
o planejamento territorial, o planejamento suficiente para a governança de RAS. Além
estratégico, o sistema de contratualização, a disso, falta a presença na arena decisória de
coordenação assistencial, o sistema de moni- atores estratégicos fundamentais como os
toramento e avaliação, a participação social, a prestadores de serviços.
prestação de contas, as estratégias de comu- É preciso apostar em instrumentos de go-
nicação interna e externa, o sistema de acre- vernança que se tornem rotineiros. No texto
ditação e o sistema de financiamento (FRANSCEC o autor aponta uma série deles que já estão

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Comentários sobre as Redes de Atenção à Saúde no SUS 47

incorporados na normativa do SUS e que Concordo com o autor e reitero suas preo-
devem ser implantados. cupações sobre o superado modelo de paga-
Quero ressaltar a importância fundamen- mento aos prestadores praticado pelo SUS.
tal de organizar efetivamente a governança Contudo não posso deixar de colocar uma
regional do SUS. Esse é um desafio urgente premissa. Não há como financiar as RAS com
e que passa, anteriormente, pela reconfigu- a quantidade de recursos públicos destina-
ração das regiões de saúde, conforme discuti dos, hoje, ao nosso sistema público de atenção
anteriormente. A partir de regiões de saúde à saúde. O financiamento do SUS constitui
que incluam, em seu interior, os recursos da um nó crítico que não tem sido desatado por
APS, da atenção secundária (‘média comple- nenhum governo, ao longo dos anos.
xidade’) e da atenção terciária (‘alta com- Os dados da Organização Mundial da Saúde
plexidade’), devem ser reforçadas, em sua de 2014 mostram que o Brasil não gasta pouco
institucionalidade e em seus mecanismos em saúde porque despende 8,9% do PIB, um
de governança, as Comissões Intergestores valor muito próximo à média dos países ricos.
Regionais, garantindo a presença de atores O que é muito baixo é o gasto público que
institucionais estratégicos como os prestado- representa 4,0% do PIB, o que significa 45,7%
res de serviços e os Conselhos de Saúde. do gasto total em saúde e um gasto per capita
Uma experiência feita na Região Norte anula de US$ 474,00. As evidências indicam
de Minas Gerais, na governança regional da que nenhum país que desenvolveu sistemas
Rede de Urgência e Emergência, com a pre- públicos universais tem menos de 70% de
sença de prestadores de serviços num Comitê gastos públicos como porcentual dos gastos
Gestor apresentou resultados muito positivos totais em saúde, o que aplicado ao Brasil
(SOUSA, 2012). corresponderia a 6,2% do PIB. A razão disso
está no baixíssimo porcentual de gastos em
saúde no gasto total dos governos brasileiros,
O financiamento apenas 8,7%, enquanto a Argentina apresenta
um valor de 21,7%, o Canadá 17,4%, a Costa
Sobre o desafio do financiamento o autor Rica 28,0%, o Panamá 12,8% e o Uruguai
explica: 21,8% (WHO, 2014).
Esses dados mostram, de forma eloquente,
Não é possível financiar de forma mais mo- que há um subfinanciamento do SUS e que
derna, eficiente e equânime os serviços, ba- com este nível de dispêndio público não se
seado apenas em uma tabela virtual de pro- pode chegar a um sistema público universal
cedimentos e atrelando-se o seu pagamento de qualidade, colocando limites muito estrei-
a esta tabela unicamente, do mesmo formato tos, do ponto de vista econômico, à implanta-
feito nas últimas três décadas, precedendo ao ção das RAS.
próprio SUS. Este formato não contribui para Entretanto, somente mais dinheiro não re-
a efetivação de redes como caminho para a solverá os problemas do SUS e não incentiva-
busca da integralidade do cuidado do conjun- rá a organização das RAS.
to das necessidades, mas incentiva procedi- Um bom sistema de financiamento da
mentos mais custosos e nem sempre os ne- atenção à saúde é aquele se faz de forma equi-
cessários, sugando os mesmos recursos que tativa, que incentiva os prestadores a prover
poderiam ser mais bem alocados e faltam em serviços de forma eficiente e com qualidade,
outros campos. É necessário caminhar para que induz a que os serviços produzidos me-
um financiamento baseado em resultados e lhorem os níveis de saúde gerando valor para
performance, com base população e de utili- as pessoas e que permite aumentar o valor do
zação, e também mais simples (p. 31). dinheiro empregado.

DIVULGAÇÃO EM Saúde PARA Debate | rio de Janeiro, n. 52, p. 38-49, OUT 2014
48 MENDES, E. V.

O sistema de financiamento é um dos ele- Unidos é emblemático porque, naquele país,


mentos mais potentes com que contam os entes 30% a 40% do gasto total são com serviços
de governança das RAS para alcançar seus ob- desnecessários e metade dos procedimentos
jetivos de eficiência, qualidade e coordenação consumidos são resultado da orientação de
da atenção porque contém, em si, os incentivos médicos e de fornecedores e não das neces-
econômicos que norteiam as ações de gestores sidades da população (CHRISTENSEN et al., 2009).
e de prestadores de serviços. Ou seja, é funda- Portanto, é fundamental mudar a forma
mental que o sistema de financiamento esteja de pagamento aos prestadores, incentivando
alinhado com os objetivos das RAS. modos de pagar que incentivem os cuidados
Os recursos do SUS, além de insuficientes, preventivos e a atenção que gere valor para
estão totalmente desalinhados dos objetivos as pessoas usuárias. Dentre essas formas
das RAS. Há um forte predomínio das formas estão o pagamento por orçamento global,
de pagamento por procedimentos, muitas a captação ajustada e o pagamento por um
vezes expressas em tabelas anacrônicas e com ciclo completo de atendimento a uma condi-
enormes distorções de preços relativos. Esse ção de saúde.
tipo de pagamento aos prestadores incentiva Além disso, o sistema de pagamento nas
a prestação de mais serviços de maior densi- RAS deve conter incentivos de desempe-
dade tecnológica, mas desincentiva os servi- nho que induzam ao aumento da produ-
ços mais custo-efetivos e mais necessários do tividade e à utilização de procedimentos
ponto de vista sanitário. O caso dos Estados custo-efetivos. s

Referências

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50 artigo original | original article

Redes integradas de cuidados e a pesquisa


necessária
Integrated care networks and necessary research

José Carvalho de Noronha1

Magalhães Jr. apresenta uma abrangente revisão da base conceitual e das ações implementadas
entre 2011 e 2014 no Brasil. Deixa claro o quanto se avançou na compreensão das necessárias
mudanças no modelo assistencial do sistema de saúde brasileiro e na sua implementação, bem
como nos desafios colocados pelo processo.
Evidentemente, a estruturação de redes assistenciais dependerá, essencialmente, da
disponibilidade e da acessibilidade aos serviços de saúde, a par do estabelecimento dos
mecanismos de integração e articulação. Não é pretensão deste texto examinar, sequer
superficialmente, a distribuição, o acesso e o uso dos serviços de saúde no País e sua
correspondência com o perfil de morbimortalidade de sua população. Trata mais de um breve
exame da seleção de três conjuntos de questões conceituais e metodológicas provocadas pelo
artigo em debate.
O primeiro, de significativas implicações práticas, diz respeito à conceituação dos problemas
de saúde decorrentes do envelhecimento populacional e aos consequentes arranjos tecnológicos,
incluindo força de trabalho, para lidar com eles. Cochrane (1973) já chamava atenção para a
mudança do paradigma dos cuidados em saúde da cura para o cuidado. A Organização Mundial
de Saúde (OMS, 2002) estabeleceu um conceito de ‘condições crônicas’ como aquelas que ‘requerem
cuidados continuados’ por um período de anos ou décadas, ultrapassando o conceito tradicional
de doenças crônicas (como diabetes, asma ou insuficiência cardíaca) para incluir doenças
transmissíveis, para as quais o avanço tecnológico transformou seu curso, como HIV-Aids,
distúrbios mentais (como esquizofrenia) e incapacidades não classificáveis como doenças, como
cegueira e problemas musculoesqueléticos. Embora existam várias nomenclaturas e persistam
controvérsias sobre o melhor processo classificatório dessas condições,

o denominador comum é que estas condições requerem uma resposta complexa ao longo de um
período de tempo prolongado que envolve intervenções coordenadas de uma ampla gama de
profissionais de saúde e acesso a medicamentos essenciais e sistemas de monitoramento que
1 Doutor em Saúde precisam estar otimamente incorporado dentro de um sistema que promova o empoderamento do
Coletiva pela Universidade
do Estado do Rio de Janeiro paciente (NOLTE; MCKEE, 2008. p. 1).
(Uerj) – Rio de Janeiro
(RJ), Brasil. Organizador
da iniciativa Brasil Saúde Diante do exposto anteriormente, pode resultar complexo, no esforço de superar a
Amanhã – Prospecção fragmentação do cuidado, o desenvolvimento de redes temáticas paralelas, das quais, a de
Estratégica do Sistema
de Saúde Brasileiro da doenças crônicas constitui-se em uma rede à parte. Não se negam as particularidades que
Fundação Oswaldo Cruz – existem no atendimento à maternidade ou às urgências e emergências, como existem na
Rio de Janeiro, Brasil.
jose.noronha@icict.fiocruz.br abordagem do paciente com câncer, cardiopatia, idoso ou em outras condições, mas o que

DIVULGAÇÃO EM Saúde PARA Debate | rio de Janeiro, n. 52, p. 50-53, OUT 2014
Redes integradas de cuidados e a pesquisa necessária 51

é preciso articular são justamente redes inte- cuidados em bases mais sólidas. No contexto
gradas de cuidados. Isso ganha ainda maior da iniciativa de prospecção estratégica Brasil
relevância quando observamos que a imensa Saúde Amanhã, desenvolvida pela Fundação
maioria dos pacientes apresenta múltiplas Oswaldo Cruz (www.saudeamanha.fiocruz.
morbidades. br), Ouverney e Noronha (2013) concluem o ca-
Outro aspecto a ser considerado é a pítulo de modelos de organização e gestão da
mudança significativa do papel da Atenção atenção à saúde propondo uma agenda de dez
Básica, que, além de não se constituir mais em linhas prioritárias:
exclusiva porta de entrada (como reconhece o 1. Perfil da demanda e da oferta de ações e
próprio Decreto 7508), perde, por inexistir, o serviços de saúde: estudos sobre o compor-
que seria seu caráter ‘resolutivo’ e assume um tamento da demanda por ações e serviços
significativo papel de coordenação e integra- de saúde, tendo em vista tanto as tendências
ção dos cuidados nos níveis horizontal e ver- nos padrões socioeconômico, demográfico e
tical (nos termos examinados por Silva, 2011). epidemiológico do País nas próximas décadas
O segundo grupo de questões deriva dos quanto as relações entre suas unidades
processos de gestão das redes, sobretudo em político-administrativas.
um sistema de saúde tripartite de base mu- 2. Arranjos territoriais de referenciamento
nicipal, em um país com elevado grau de ur- da política: estudos relativos às alternativas
banização e aglomeração urbana, que atingiu de composição de unidades geográficas de
84,3% da população em 2010. Desse percentu- base para o referenciamento das ações e ser-
al, pouco mais da metade vive em 34 Regiões viços de saúde, considerando a necessidade
Metropolitanas e 3 Regiões Integradas de de compor arranjos funcionais de serviços
Desenvolvimento (Rides) (IBGE, 2011). Ou seja, baseados em critérios de escopo, escala e
em apenas 38 áreas conurbadas onde as fron- necessidades de saúde da população em um
teiras municipais são borradas – e, nos casos território com a extensão e as diversidades
das Rides, também as fronteiras estaduais. socioeconômica, política e cultural como o
Nessas áreas contíguas, os polos são dominan- brasileiro.
temente definidos pelos meios de transporte e 3. Atenção primária como coordenadora do
pela proximidade temporal. Não existem bar- cuidado: estudos referentes às características
reiras geográficas significativas para o acesso, de organização e dinâmica de funcionamento
e a população espontaneamente desloca-se da Estratégia Saúde da Família (ESF), especi-
em direção às maiores facilidades de acesso ficamente no que concerne à atuação como
aos serviços, que julgam que melhor respon- porta de entrada do sistema, sua competência
derão às suas necessidades. Nessas regiões, há para responder de forma resolutiva aos pro-
uma imensa disparidade de tamanhos e capa- blemas de saúde mais comuns da população
cidades entre os municípios que as integram. e à capacidade de coordenação do cuidado
Isso requer, para a adequada regulação assis- médico especializado e de articulação com
tencial, o estabelecimento de acordos de co- outros cuidados sociais.
ordenação e comando supramunicipais, seja 4. Novos formatos de organização de servi-
pela presença mais forte do ente estadual, seja ços: estudos sobre tendências de formação pro-
pela constituição de autoridade específica. É fissional em saúde, formatos de organização de
discutível se a presença da União não seria equipes de trabalho, tipos de unidades de saúde,
também desejável. utilização de tecnologias remotas de trabalho,
Finalmente, é preciso avançar em uma humanização da relação profissional/cidadão/
agenda de pesquisas que permita a remode- família, modelos de atenção alternativos ao
lagem do sistema de saúde brasileiro através paradigma biomédico etc., cuidados domicilia-
da organização de redes integradas de res, com o objetivo de criar oportunidades de

DIVULGAÇÃO EM Saúde PARA Debate | rio de Janeiro, n. 52, p. 50-53, OUT 2014
52 NORONHA, J. C.

desenvolvimento de formatos mais resolutivos, equipes, unidades, arranjos de unidades por


flexíveis e integrados, especialmente os volta- metas coletivas, município, regiões de saúde
dos para condições crônicas. etc. A análise das principais barreiras encon-
5. Gestão da clínica em redes de atenção: tradas, das estratégias empregadas para su-
estudos sobre experiências de utilização de perá-las e das inovações construídas podem
mecanismos típicos de gestão da clínica, tais ser de interesse especial para processos de
como protocolos de cuidados, metodologias benchmarking.
de classificação de risco, gestão de casos, 9. Acesso e integração regional: estudos rela-
linhas de cuidado, gestão de patologias, audi- tivos a estratégias de integração entre sistemas
toria clínica, entre outros, buscando identifi- municipais de saúde de menor porte e com-
car que fatores institucionais favorecem sua plexidade e os centros regionais e estaduais
incorporação, quais os resultados em termos de referência, especialmente no que se refere
de integração do cuidado, quais os impactos ao planejamento de oferta complementar, alo-
em termos de qualidade, eficiência e satisfa- cação da oferta existente, equidade no acesso,
ção do usuário, entre outros. instrumentos de regulação gerencial etc.
6. Sistema de apoio e sistemas logísticos: 10. Eficiência econômica e racionalidade
estudo sobre a eficiência de diferentes for- sistêmica: estudos sobre eficiência técnica e
matos de sistemas de apoio diagnóstico, de alocativa de recursos, relacionada a tratamen-
transporte em saúde, de acesso regulado, de tos especializados, equipamentos, insumos,
assistência farmacêutica etc., em diferentes processos de trabalho em saúde etc., com o
contextos politico-administrativos (municí- objetivo de proporcionar subsídios consisten-
pios de diversos tamanhos, estados e União), tes para reduzir custos, buscar tecnologias al-
econômicos e culturais, com o objetivo de ternativas com maior potencial de equidade e
identificar quais formatos são mais adequa- ampliar o bem-estar e a qualidade de vida dos
dos a determinados contextos, como intera- usuários. Outros temas também poderiam
gem com o processo de integração clínica, ser abordados nesse conjunto, como a análise
como podem ser articulados entre si etc. da dinâmica de difusão de novas tecnologias
7. Integração entre cuidados médicos e cui- em saúde, os processos de incorporação de
dados sociais: estudos relativos às estratégias medicamentos e equipamentos, estratégia de
e aos instrumentos utilizados nos processos obtenção de economias de escopo e escala na
de articulação entre as ações de saúde e as de média e na alta complexidade, entre outros.
outras políticas sociais, tais como educação, A nova etapa de estruturação do Sistema
previdência, assistência social, habitação, sa- Único de Saúde brasileiro recém começou.
neamento, meio ambiente, emprego e renda, Permanece como fator desorganizador a
justiça, segurança pública, transportes, entre pesada e inequitativa presença de um setor
outras. Ênfase especial poderia ser conferida privado anárquico e fragmentado, fortemen-
aos condicionantes dessa articulação (institu- te subsidiado por elisões e renúncias fiscais,
cional, gerencial, econômico, político e cultu- que precisa ser contida e administrada. Da
ral), assim como aos resultados em termos de mesma forma, os déficits críticos para o fi-
seus impactos sobre a evolução de condições nanciamento do SUS necessitam ser supe-
de saúde da população, especialmente nos rados, mas a construção de bases sólidas de
casos de condições crônicas. conhecimento para sua edificação não pode
8. Sistemas de avaliação e melhoria da ser deixada de lado.
qualidade: estudos referentes às estratégias Além disso, o sistema de pagamento nas
de introdução de programas de avaliação da RAS deve conter incentivos de desempenho
qualidade da atenção prestada e de métodos que induzam ao aumento da produtividade e
de avaliação de desempenho de profissionais, à utilização de procedimentos custo-efetivos. s

DIVULGAÇÃO EM Saúde PARA Debate | rio de Janeiro, n. 52, p. 50-53, out 2014
Redes integradas de cuidados e a pesquisa necessária 53

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DIVULGAÇÃO EM Saúde PARA Debate | rio de Janeiro, n. 52, p. 50-53, OUT 2014
54 artigo original | original article

Comentários: Redes de Atenção à Saúde:


rumo à integralidade
Comments: Health Care Networks: towards the integrality

Wilson Alecrim1, Beatriz Figueiredo Dobashi2

Discutir questões relativas às Redes de Atenção à Saúde (RAS) é pauta permanente na agenda
do Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass), considerando o papel aglutinador,
coordenador, capacitador e cofinanciador da gestão estadual, a importância de atuar em rede
para qualificação do cuidado e, principalmente, a relevância da busca da integralidade da
atenção.
Evidentemente, não se trata aqui de debater o artigo em si, muito bem apresentado pelo Dr.
Helvécio Magalhães, no qual promove o debate acerca das considerações contidas no artigo
‘Redes de Atenção à Saúde: rumo à integralidade’, discutindo a atual situação do processo
de implantação das RAS nas diversas regiões brasileiras e apontando sugestões para o en-
frentamento dos desafios existentes, as quais incluem: a adoção de uma política de Educação
Permanente; o resgate da solidariedade entre os gestores, conforme previsto nos preceitos da
Constituição Federal Brasileira; a melhoria do financiamento de forma tripartite; o resgate do
processo de planejamento em nível regional, bem como o fortalecimento da Atenção Primária
à Saúde como ordenadora do cuidado. Trata-se de comentar a situação atual da implantação
das RAS nas diversas regiões brasileiras, com o intuito de buscar soluções para questões ne-
1Mestre em Medicina vrálgicas que estão a impedir o efetivo funcionamento dessa forma importante de organização
Tropical pela Universidade
de Brasília (UnB) – Brasília dos serviços de saúde.
(DF), Brasil. Secretário No processo percorrido pela organização das RAS, no Brasil, nos últimos cinco anos,
de Saúde do Estado do
Amazonas. Presidente pode-se dizer que a configuração da política de caráter estruturante, os marcos conceituais e
do Conselho Nacional a definição dos temas prioritários são irretocáveis e atendem aos ditames do Sistema Único de
de Secretários de Saúde
(Conass) – Brasília (DF), Saúde (SUS), em especial, aos dispositivos do Decreto 7.508/2011 (BRASIL, 2011).
Brasil. Entretanto, na prática, muitos desafios estiveram e ainda estão presentes, tais como:
gabinete@conass.org.br

2 Especialista em Medicina 1. As dificuldades para efetivar a função regulatória, que ainda não conseguiu cumprir seu
do Trabalho pela Fundação
de Segurança e Medicina papel de garantia de acesso, mantendo as iniquidades da fila de espera;
do Trabalho do Ministério
do Trabalho e Emprego
(Fundacentro), em parceria 2. A insuficiência do financiamento por parte das três esferas de governo, impedindo a am-
com a Universidade pliação de serviços, com uma demanda cada vez maior;
Estadual de Mato Grosso
(UEMS) – Campo Grande
(MS), Brasil. Assessora 3. Ainda com relação à ampliação da oferta, a demora no credenciamento/habilitação de
Técnica do Conselho
Nacional de Secretários de novos serviços, pois foi mantido o fluxo centralizado na esfera federal para esse procedi-
Saúde (Conass) – Brasília mento, em que pesem as normativas advindas do Pacto pela Saúde, em 2006, no sentido de
(DF), Brasil.
dobashi@terra.com.br fortalecer a governança regional;

DIVULGAÇÃO EM Saúde PARA Debate | rio de Janeiro, n. 52, p. 54-57, OUT 2014
Comentários: Redes de Atenção à Saúde: rumo à integralidade 55

4. A dificuldade, em muitos casos, da de trabalho e das práticas de saúde, conside-


Atenção Primária à Saúde em exercer o rando-se uma atuação em uma delimitação
papel de norteadora das RAS, sendo reso- espacial previamente determinada (MONKEN;
lutiva, organizadora e corresponsável pela BARCELLOS, 2005).
saúde dos cidadãos, em qualquer ponto de Na verdade, o estágio brasileiro de adoção
atenção em que eles estejam (CONASS, 2009); das RAS coincide com um movimento exis-
tente em diversos países europeus de redese-
5. A resistência dos hospitais que insistem nhar suas Redes, tornando-as orientadas por
em operar como um serviço finalístico e não resultados, por processos de atenção.
como ponto de atenção da RAS, negligen- Assim, estados e municípios brasileiros têm
ciando procedimentos importantes, como a oportunidade de acolher as ‘novas Redes’
a alta responsável, com elaboração de his- capazes de melhorar o cuidado, melhorando
tórico a ser entregue ao médico da atenção a eficiência no uso dos recursos, garantindo
primária, a fim de conferir continuidade ao a equidade no acesso, a sustentabilidade e a
cuidado; coesão social.
A integração com o setor social é a resposta
6. A inexistência de um sistema de infor- que vem sendo dada às mudanças ocorridas
mação potente, articulado ao Cartão SUS, também nos usuários, cujas necessidades vão
que pudesse interligar os diversos níveis de se diversificando dia a dia e obrigando os ser-
atenção; viços de saúde a buscar a adaptação mais ade-
quada possível: diversidade cultural; promoção
7. A falta de solidariedade entre os gestores ou resgate da autonomia pessoal; responsabi-
no momento das pactuações e dos remane- lidade com a promoção da saúde e utilização
jamentos orçamentários, bem como a polí- responsável dos serviços (LAMATA, 2011).
tica de adesão, que deixa lacunas em regiões Por outro lado, é importantíssimo o papel
onde implantar as RAS é primordial para a dos profissionais de saúde, no que diz respei-
continuidade do cuidado. É difícil a convi- to ao conhecimento técnico e ao compromis-
vência entre o princípio da descentralização so com o serviço, o que remete às questões da
e o conceito de Rede envolvendo esferas di- formação profissional e, principalmente, da
ferentes de gestão. fixação da força de trabalho em saúde, em es-
pecial, do médico, o que é um grande desafio
Esses são somente alguns exemplos, nas regiões norte, nordeste e centro-oeste.
havendo muitos outros a enfrentar, uma vez Também é preciso fazer referência aos
que não existe outra alternativa à atuação novos recursos de comunicação, em espe-
em rede, considerando que as mudanças de- cial, aos quesitos do Telessaúde – programa
mográficas, epidemiológicas e sociais levam que ainda é bastante subutilizado, quando
à definição de novos modelos mais flexíveis, poderia representar a superação das distân-
articulados com o serviço social e permitindo cias e o conforto da segunda opinião. Outra
ao usuário maior protagonismo. ferramenta importante para atuação em rede
As RAS são o resultado da forma como se é a participação transversal da vigilância em
organizam os serviços de saúde em deter- saúde, intervindo nas causas, nos riscos e
minados espaços (territórios), incluindo as danos das doenças e dos agravos (TEIXEIRA; PAIM;
diferentes unidades prestadoras de diversas VILASBOAS, 1998).
densidades tecnológicas e as relações que se Sempre apontando as exceções, pode-se
estabelecem dentro e entre elas (MENDES, 2009). afirmar que a vigilância em saúde não fez
A territorialização consiste em um dos parte das discussões para implantação das
pressupostos da organização dos processos RAS, permanecendo como setor organizativo,

DIVULGAÇÃO EM Saúde PARA Debate | rio de Janeiro, n. 52, p. 54-57, OUT 2014
56 ALECRIM, W.; DOBASHI, B. F.

isolado das implementações promovidas protocolos, buscando a padronização (sem


‘pelo pessoal da assistência’. engessamento) das Redes nas diversas
Ainda nesse contexto, o processo de plane- regiões de saúde;
jamento regional para organização das Redes,
talvez pela escassez de recursos financeiros, • Fortalecimento da política de Educação
não conseguiu olhar as necessidades deman- Permanente, incluindo a disseminação do
dadas e sentidas nos diferentes territórios; uso do Telessaúde;
limitou-se a discutir os serviços existentes,
suas limitações e insuficiências. • Reunião, no sentido da articulação, dos
Muitos municípios ainda não conseguiram grupos condutores com os Colegiados
cobertura integral da APS, com todos os requi- Intergestores Regionais, a fim de fortalecer
sitos já mencionados. Em várias regiões, não a governança regional, incluindo o manu-
existe suficiência em média complexidade seio de indicadores robustos que possam
ambulatorial, nem unidade hospitalar, sendo fornecer informação segura sobre o desen-
grande a presença dos hospitais de pequeno volvimento das ações; e, especialmente,
porte que demandam um volume grande de
recursos financeiros sem a correspondente • Otimização do financiamento das RAS,
resolutividade. Em que pese a edição de po- tornando-o suficiente, regular e, mais que
lítica específica, por parte do governo federal, tudo, tripartite.
há uma grande polêmica entre os prefeitos e
os conselhos de saúde ante a ideia de ‘fechar o Não se pode negar que o governo federal
único hospital da cidade’. deu um salto positivo quando implantou os
Portanto, há de se contar com uma forte repasses financeiros agregados às RAS, man-
decisão dos gestores do SUS enquanto atores tendo a via fundo a fundo. Entretanto, nos
sociais, responsáveis, protagonistas e insti- pequenos municípios, os problemas de escala
tuidores da organização do sistema de saúde, permaneceram e se uniram às distâncias, às
nas três instâncias federativas, no sentido de dificuldades de transporte.
construir articuladamente políticas solidá- Na realidade do dia a dia, é inviável que
rias e resolutivas que orientem a implantação uma mulher em trabalho de parto seja levada
das RAS. Além disso, como foi aqui exposto, ao município mais próximo, sem que se sinta
há uma gama de aspectos a serem conside- insegura e desconfortável por ficar longe da
rados quando da implantação das RAS, sem família e de quem realizou o seu pré-natal.
esquecer-se do processo de monitoramento e Também não é simples se deslocar três
avaliação contínuo. vezes por semana para ser submetido à he-
Há uma demanda urgente de articulação modiálise, já que o transporte sanitário é re-
das diversas estratégias voltadas para a supe- alidade em pouquíssimos lugares, seja pela
ração dos desafios de: falta de recursos para sua manutenção, seja
pela inexperiência com a logística.
• Fortalecimento da APS; E o que dizer das urgências, em lugare-
jos sem qualquer condição de atendê-las? E
• Redirecionamento da formação dos pro- aquelas estabilizadas nas salas recentemente
fissionais de saúde; construídas, mas ainda não habilitadas, locali-
zadas fora da área de deslocamento do Samu?
• Consolidação dos programas de fixação Ou seja, ainda que superados os desafios
desses profissionais, como o Mais Médicos; técnicos e operacionais da implantação e
do funcionamento das RAS, ainda será ne-
• Elaboração de normas, rotinas e cessário buscar alternativas para um país de

DIVULGAÇÃO EM Saúde PARA Debate | rio de Janeiro, n. 52, p. 54-57, out 2014
Comentários: Redes de Atenção à Saúde: rumo à integralidade 57

dimensões continentais como o Brasil. consorciamento no sentido da solidariedade


Porém, nenhuma dessas dificuldades deve entre os municípios.
acarretar um retrocesso para os serviços É preciso retomar a elaboração do Contrato
isolados, o pagamento por procedimentos Organizativo de Ação Pública, não como um
etc. Ao contrário, é preciso aprimorar o que contrato burocrático e inviável, mas, sim,
já foi conquistado; estimular efetivamente o como um pacto de gestão pautado pela coo-
planejamento regional, incluindo uma dis- peração e pela transparência, com ações con-
cussão aprofundada sobre as necessidades da cretas e realizáveis, centradas no indivíduo e
população; o perfil epidemiológico e socioe- em sua família, afastando de forma definitiva
conômico da região; as estratégias para uma o fantasma da iniquidade. s
Educação Permanente e, acima de tudo, um

Referências

BRASIL. Decreto nº 7.508, de 28 de junho de 2011. LAMATA, C.F. Atención sanitária y redes de servicios.
Regulamenta a Lei no 8.080, de 19 de setembro de 1990, Madrid: Escuela Nacional de Sanidad; 2011.
para dispor sobre a organização do Sistema Único de
Saúde – SUS, o planejamento da saúde, a assistência à MENDES E.V. As redes de atenção à saúde. Belo
saúde e a articulação interfederativa, e dá outras pro- Horizonte: Escola de Saúde Pública de Minas Gerais,
vidências. Diário Oficial [da] República Federativa do 2009.
Brasil. Brasília, DF, 28 jun. 2011. Disponível em: <http://
www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2011/ MONKEN M. BAECELLOS C. Vigilância em Saúde e
decreto/D7508.htm>. Acesso em: 04 jul. 2014. território utilizado: possibilidades teóricas e metodo-
lógicas. Cad. saúde pública, Rio de Janeiro, v. 21, n. 3, p.
CONSELHO NACIONAL DE SECRETÁRIOS DE 898-906, mai-jun, 2005.
SAÚDE (CONASS). Relatório do seminário para cons-
trução de consensos sobre modelo de atenção à saúde TEIXEIRA C.F. PAIM J.S. VILASBOAS A.L. SUS,
no SUS. Brasília: DF: CONASS, 2009. Nota Técnica nº modelos assistenciais e vigilância em saúde. Inform.
01/2009. Epidemiol. SUS, Brasília, DF, v. 7, p. 7-28, 1998.

DIVULGAÇÃO EM Saúde PARA Debate | rio de Janeiro, n. 52, p. 54-57, OUT 2014
58 artigo original | original article

Rede Cegonha: desafios de mudanças


culturais nas práticas obstétricas e neonatais
Rede Cegonha: challenges of cultural changes in obstetric and
1 Doutor em Saúde Coletiva neonatal practices
pela Universidade Estadual
de Campinas (Unicamp)
– Campinas (SP), Brasil. Dário Frederico Pasche1, Maria Esther de Albuquerque Vilela2, Miriam Di Giovanni3, Paulo
Diretor Geral da Secretaria
Estadual de Saúde do Rio Vicente Bonilha Almeida4, Thereza de Lamare Franco Netto5
Grande do Sul. Professor
adjunto no Departamento
de Enfermagem pela
Universidade Federal de
Santa Catarina (UFSC) –
Florianópolis (SC), Brasil.
dario.pasche@ig.com.br

2 Médica Ginecologista
e Obstetra titulada pela RESUMO A redução das mortalidades materna e infantil tem sido uma preocupação
Federação Brasileira de
Ginecologia e Obstetrícia importante da saúde pública mundial nas últimas décadas. Apesar dos avanços alcançados,
(Febrasgo) e Especialista os índices brasileiros ainda são altos, considerando o nível de desenvolvimento do País. A
em Fitoterapia pela
Universidade Federal de Rede Cegonha se apresenta como estratégia para redução das mortalidades materna e infantil,
Goiás (UFG) – Goiânia através da qualificação das ações e dos serviços de saúde. Investe-se de desafios importantes
(GO), Brasil. Coordenadora
Geral de Saúde da em relação a mudanças no modelo tecnoassistencial da atenção obstétrica e neonatal vigente
Mulheres do Ministério da e no paradigma cultural relacionado ao parto e ao nascimento construído no seio da sociedade
Saúde – Brasília (DF), Brasil.
mariaesther.vilela@gmail.com brasileira. Neste artigo são abordados alguns dos aspectos mais relevantes destes desafios.
3 Especialista em Gestão

Pública pela Escola PALAVRAS-CHAVE Mortalidade materna; Mortalidade infantil; Humanização da assistência;
Nacional de Administração Reforma dos serviços de saúde.
Pública (Enap) – Brasília
(DF), Brasil. Assessora do
Gabinete do Departamento ABSTRACT The reduction of maternal and infant mortality rates has been a major global public
de Ações Programáticas
Estratégicas, Secretaria health concern in recent decades. Despite advances, Brazilian rates are still high considering the
de Atenção à Saúde do country’s development level. Rede Cegonha is presented as a strategy for reducing maternal and
Ministério da Saúde –
Brasília (DF), Brasil. child mortality through the improvement of the available health services. Changes in obstetric
mdg1505@gmail.com and neonatal technical care models are important for cultural model changes. This article
4 Mestre em Saúde da examines some of the most relevant aspects of these challenges.
Criança e do Adolescente
pela Universidade
Estadual de Campinas KEYWORDS Maternal mortality; Infant mortality; Humanization of assistance; Health care
(Unicamp) – Campinas reform.
(SP), Brasil. Coordenador
Geral de Saúde da Criança
e Aleitamento Materno
do Ministério da Saúde –
Brasília (DF), Brasil.
paulobonilha@hotmail.com

5 Mestre em Políticas
Públicas pela Universidade
de Brasília (UnB) -
Brasília (DF), Brasil.
Diretora substituta do
Departamento de Ações
Programáticas Estratégicas
(Dapes) do Ministério da
Saúde – Brasília (DF), Brasil.
therezadelamare@yahoo.com.br

DIVULGAÇÃO EM Saúde PARA Debate | rio de Janeiro, n. 52, p. 58-71, OUT 2014
Rede Cegonha: desafios de mudanças culturais nas práticas obstétricas e neonatais 59

Introdução A taxa de mortalidade na infância, no


Brasil, já alcançou os índices de redução de-
Segundo a Organização Mundial da Saúde finidos nos Objetivos de Desenvolvimento
(OMS), em 2008, 358 mil mulheres morreram, do Milênio (ODM), passando de 53,7 óbitos
em todo o mundo, por causas relacionas por mil nascidos vivos, em 1990, para 16,9, em
à gravidez e ao parto. Deste total, 99% 2012, cumprindo a meta com três anos de an-
ocorreram em países em desenvolvimento tecedência e apresentando uma das maiores
e a maior parte dos óbitos era evitável. De taxas de redução do mundo, de 68,5%.
acordo com a OMS (2012), em 2010, 98% Apesar destes avanços importantes, essas
da mortalidade materna anual, em todo o taxas precisam ser reduzidas ainda mais, con-
mundo, se concentrava em 75 países, sendo o siderando que, mesmo na América Latina,
Brasil um deles. alguns países, como Chile e Uruguai, já al-
A OMS também estima que cerca de oito cançaram mortalidade infantil de um dígito.
milhões de crianças morrem, anualmente, Entretanto, o maior desafio enfrentado pelo
no mundo, antes de completar cinco anos. Brasil hoje é a redução dos óbitos neona-
Destas, três milhões vêm a óbito até 28 dias de tais, cujas causas estão significativamente
vida – o chamado período neonatal. A maioria associadas à oferta e à qualidade de ações e
dessas mortes é por causas evitáveis. serviços de saúde, especialmente a atenção
A redução das mortalidades materna e ao parto, sendo que, para essa faixa etária, o
infantil tem sido uma preocupação impor- País apresentou uma redução menor, quando
tante da saúde pública mundial nas últimas comparada às demais faixas, de 55,8%, o que
décadas. Evidência deste fato é a presen- corresponde a de 23,1 óbitos por mil nascidos
ça explícita destes temas na Declaração vivos para 10,2 óbitos por 1000 nascidos vivos.
do Milênio, firmada no ano 2000 por 189 Várias políticas públicas nacionais têm
nações na Conferência do Milênio das Nações sido desenvolvidas nas últimas décadas com
Unidas, com o compromisso de combater o objetivo de reduzir mortes maternas e in-
a extrema pobreza, a doença e outros males fantis, como o Programa de Humanização do
da sociedade. Assim, dentre os oito Objetivos Pré-Natal e Nascimento (PHPN), a Portaria
de Desenvolvimento do Milênio (ODM) que nº 569/2000; o Pacto Nacional pela Redução
deverão ser alcançados até 2015, estão presen- da Mortalidade Materna e Neonatal de
tes a redução da mortalidade materna em três 2004 (BRASIL, 2004); o Pacto pela Redução da
quartos e da mortalidade de crianças menores Mortalidade Infantil no Nordeste e Amazônia
de cinco anos em dois terços (ONU, 2000). Legal; e o Plano de Qualificação das
No Brasil, os indicadores de mortalidade Maternidades e Redes Perinatais do Nordeste
materna e infantil ainda são muito altos em e da Amazônia Legal, ambos de 2009-2010
relação aos dos países mais desenvolvidos. (BRASIL, 2009-2010).
Entretanto, é importante notar que o Brasil Mais recentemente, em março de 2011, no
obteve avanços nos últimos anos. De 1990 a bojo da articulação de Redes de Atenção à
2013, o Brasil reduziu sua taxa de mortes mater- Saúde (RAS), o Ministério da Saúde lança a
nas em 55,3%, caindo de 143 mulheres por 100 Rede Cegonha (RC), tendo, entre seus obje-
mil nascidos vivos, em 1990, para 63,9 mulheres tivos, a redução das mortalidades materna e
por 100 mil nascidos vivos, em 2011. Ainda assim, infantil – em especial, a neonatal –, através da
os índices são altos, considerando que, em países qualificação da Atenção Básica – sobretudo, o
desenvolvidos, a Razão de Morte Materna oscila componente pré-natal –; da atenção ao parto
entre seis e 20 óbitos por 100.000 nascidos vivos, e ao nascimento; à mulher no puerpério; e à
e que a meta para o Brasil é não ultrapassar, em criança na primeira infância, com ênfase nos
2015, 35 por 100.000 nascidos vivos. seus dois primeiros anos (BRASIL, 2011).

DIVULGAÇÃO EM Saúde PARA Debate | rio de Janeiro, n. 52, p. 58-71, OUT 2014
60 PASCHE, D. F.; VILELA, M. E. A; GIOVANNI, M.; ALMEIDA, P. V. B.; FRANCO NETTO, T. L

Entre os desafios colocados para a RC espaço interfederativo onde os gestores das


estão a necessidade de mudanças no modelo três esferas de governo definem correspon-
tecnoassistencial da atenção ao parto e ao sabilidades na oferta e no financiamento das
nascimento vigente no Brasil, que produz ações de saúde. Em março desse mesmo ano,
excesso de medicalização; banalização da a RC é lançada pela Presidenta da República
cesárea; desrespeito aos direitos da mulher e e definida como uma política prioritária do
da criança (por exemplo, contar com acom- governo e do Ministério da Saúde, sendo ins-
panhante na internação para parto, bem tituída no âmbito do Sistema Único de Saúde,
como o recém-nascido internado em unidade através da Portaria MS/GM nº 1.459/2011.
neonatal contar com sua mãe, pai ou outro A RC foi formulada e desenhada como es-
acompanhante); e o cuidado diferenciado aos tratégia de redução das mortalidades materna
adolescentes e jovens, entre outros. e infantil, bem como para garantir o respeito e
a proteção dos Direitos Humanos em Saúde; o
respeito à diversidade cultural, étnica e racial;
A Rede Cegonha a promoção da equidade; o enfoque de gênero;
a garantia dos direitos sexuais e dos direitos
No final de 2010, respondendo à necessidade reprodutivos de mulheres, homens, jovens e
de mudanças no modelo de atenção à saúde adolescentes; a participação e a mobilização
praticado pelo Sistema Único de Saúde social; e a compatibilização com as atividades
(SUS), o Ministério da Saúde institui, através de atenção à saúde materna e infantil em de-
da Portaria nº 4.279, de 30 de dezembro de senvolvimento nos estados.
2010, as RAS e estabelece diretrizes para a or- A Rede Cegonha, nessa perspectiva, se
ganização do cuidado, visando à superação da apresenta como estratégia político-assisten-
cial em contraposição ao modelo de atenção
fragmentação da atenção e da gestão nas re- à saúde vigente, caracterizado pela fragmen-
giões de saúde e aperfeiçoar o funcionamen- tação do cuidado em diferentes serviços de
to político-institucional do Sistema Único de saúde, que pouco articulam suas ações assis-
Saúde (SUS), com vistas a assegurar ao usuá- tenciais e compõem, quando muito, serviços
rio o conjunto de ações e serviços que neces- isolados, com organização insuficiente para
sita com efetividade e eficiência (BRASIL, 2010). operar em lógica de rede de cuidados pro-
gressivos. Além disso, prestam serviços com
Em 2011, no sentido de implementar as predominância de práticas de atenção que
RAS e diante do desafio de construir estra- pouco se baseiam em evidências científicas,
tégicas específicas para a inclusão prioritária marcadas por intensa medicalização, por in-
de populações estratégicas e seus segmentos tervenções desnecessárias e potencialmente
mais vulneráveis, bem como de construir iatrogênicas, e pela não vinculação das ges-
respostas para agravos de grande magnitu- tantes ao local de ocorrência do parto, que,
de (como aqueles associados à condição de em geral, peregrinam pelos serviços. De outra
cronicidade) e situações críticas (como a or- parte, remete a serviços de saúde dotados de
ganização da oferta de serviços de urgência e modelos de gestão da saúde geralmente ten-
a emergência), o Ministério da Saúde propõe dentes à verticalização do mando, logo, pouco
a organização de Redes de Atenção à Saúde participativos, o que impõe aos usuários baixa
Temática. A oferta assistencial em rede e o interferência de seus interesses e necessida-
cuidado orientado para a observância de boas des na oferta do cuidado, em geral, desper-
práticas na atenção obstétrica e infantil foram sonalizado; e ao conjunto dos trabalhadores,
organizados através da Rede Cegonha, pac- o recolhimento ao papel de cumpridores de
tuada na Comissão Intergestora Tripartite, tarefas, definidas, em geral, por chefias. A

DIVULGAÇÃO EM Saúde PARA Debate | rio de Janeiro, n. 52, p. 58-71, out 2014
Rede Cegonha: desafios de mudanças culturais nas práticas obstétricas e neonatais 61

combinação entre um modo de gerir e cuidar o direito a acompanhante de livre escolha da


que pouco dialoga com usuários e trabalha- mulher durante o trabalho de parto, parto e
dores tem resultado na oferta de um modelo puerpério e garantia de seguimento da puér-
tecnocrático de atenção ao parto e ao nasci- pera e da criança até o segundo ano de vida
mento (PASCHE; VILELA; MARTINS, 2010). (BRASIL, 2012, p. 7).
De outra parte, a RC traz a necessidade de
uma atuação mais proativa dos serviços de Propõe, também, a garantia do acompa-
Atenção Básica, para um olhar mais cuidado- nhamento da criança na Atenção Básica,
so para a população em idade reprodutiva que com foco na avaliação e apoio ao desenvol-
está sob sua responsabilidade no território. vimento integral, em especial, na primeira
Além disso, busca identificar as necessidades infância: apoio ao aleitamento materno e à
em saúde das populações masculina e femini- alimentação complementar saudável; cres-
na em suas diversas faixas etárias, desenvol- cimento físico, desenvolvimento neuromo-
vendo estratégias para as ações de educação tor, intelectual-cognitivo, socioemocional; e
em saúde sexual e reprodutiva de acordo com diagnóstico precoce e suporte intersetorial à
as características dessas faixas etárias, em es- família em situações de violência ou dinâmi-
pecial, as que envolvem adolescentes e jovens. ca familiar alterada.
A RC sistematiza e busca implementar um Considerando a complexidade das mudan-
modelo de atenção ao parto e ao nascimento ças demandadas, o processo de implemen-
que vem sendo discutido e construído no País tação da RC estabelece pactuação e gestão
desde os anos 90, com base no pioneirismo e interfederativa, e aposta na governança par-
na experiência de médicos, enfermeiros, par- ticipativa e na mobilização de movimentos
teiras, doulas, acadêmicos, antropólogos, so- sociais, universidades, gestores, trabalhado-
ciólogos, gestores, formuladores de políticas res, usuários do SUS e outros atores, motores
públicas, gestantes, ativistas e instituições de da mudança nas práticas obstétricas e neona-
saúde, entre muitos outros (BRASIL, 2012). tais, e fundamentais para a produção de uma
Sendo assim, propõe um novo modelo que nova cultura de parto e nascimento. De outra
visa produzir mudança na lógica do cuidado, parte, toma a qualificação dos profissionais,
com oferta de boas práticas de atenção o apoio institucional e a disseminação de co-
ao pré-natal, ao parto e ao nascimento; nhecimentos como ferramentas-chaves para
promoção da saúde infantil e materna; a consolidação das mudanças.
prevenção da morbidade e mortalidade evi-
táveis; e normalidade do processo de parto
e nascimento, tendo o parto como evento O desafio da superação
fisiológico e social, com protagonismo e es- do modelo hegemônico
tímulo da autonomia da mulher, pautado na
responsabilidade ética e no cuidado centra-
de atenção ao parto e
do na mulher, no bebê e na família. nascimento no Brasil
Essa rede orienta a atenção continuada,
garantia de acesso e melhoria da qualidade Durante o último século, os processos do
do pré-natal (mínimo de seis consultas de cuidar do parto e do nascimento no Brasil
pré-natal, exames clínicos e laboratoriais), sofreram graduais e significativas mudanças.
vinculação da gestante à unidade de referência Com o pressuposto de reduzir riscos, o parto
para o parto (saber com antecedência onde foi gradativamente deslocado do domicílio
dará à luz), incorporação das boas práticas na para o hospital e passou de um evento fami-
atenção ao parto e ao nascimento (humanização liar, centrado na mulher e assistido por par-
e redução da violência obstétrica), teiras, a um procedimento médico-cirúrgico.

DIVULGAÇÃO EM Saúde PARA Debate | rio de Janeiro, n. 52, p. 58-71, OUT 2014
62 PASCHE, D. F.; VILELA, M. E. A; GIOVANNI, M.; ALMEIDA, P. V. B.; FRANCO NETTO, T. L

Neste novo cenário, o parto e o nascimento a experiência do parto. Pesquisas recentes de-
passam a compor o rol das práticas médicas monstram que a cesariana de hora marcada,
a partir da concepção biomédica, cujos sem trabalho de parto, tem produzido o fenô-
focos são os nexos causais e a busca de re- meno da prematuridade tardia iatrogênica,
gularidades a partir da construção científica levando expressiva porcentagem de recém-
de conhecimentos, além da incorporação -nascidos à internação em UTI neonatal.
de tecnologias, tanto na forma de insumos Para a mulher, a cesárea desnecessária con-
como na organização do ambiente e dos tribui para a morbimortalidade materna, com
processos de trabalho, que ganham todas as efeitos deletérios imediatos e de longo prazo,
feições do trabalho taylorizado, adjetivado muitas vezes invisíveis, com custos econômi-
de científico. cos e sociais significativos.
Marcado pela concepção higienista, este Este cenário torna urgente e necessária a
modelo é centrado no profissional médico instituição de políticas públicas que atuem
como condutor do processo e na tecnologia na mudança das práticas de atenção ao parto
como superior ao corpo feminino, submeten- e ao nascimento nos serviços de saúde, nos
do a mulher a normas e rotinas rígidas, que currículos e campos de prática dos cursos de
não respeitam o seu ritmo natural. graduação e especialização em obstetrícia e
O saber/poder técnico-científico se so- neonatologia, na comunicação e na mobiliza-
brepõe à competência própria das mulhe- ção social, transformando o olhar da socieda-
res para lidar com seu processo de parir de e os significados que temos desses eventos
que, paradoxalmente, é delegado a agentes nos dias de hoje.
técnicos. Nesse sentido, o parteiro deixa de
ser um facilitador, aquele que assiste, para
se apropriar, no ato do parto, de ação pro- As questões de gênero e as
tagonista da mulher. Retirada do seu papel boas práticas no parto e
de protagonista, a mulher se torna frágil, se
submetendo cada vez mais a uma tecnolo-
nascimento
gia que a infantiliza, descaracteriza e vio-
lenta. O momento do parto e do nascimento Segundo Diniz, as práticas de atenção
passa a ser encarado pelas mulheres como ao parto são determinadas pelo viés de
momento de medo e ameaça à integridade gênero, partindo da concepção de que o
da vida. corpo feminino é essencialmente defeitu-
A cesariana passa a ser uma possibilidade oso, imprevisível e perigoso, necessitan-
de fuga desse ‘sofrimento’, de proteção da do de correção e tutela. Esta relação de
dignidade, já que o modo de atenção ao parto gênero é marcada pela culpabilização da
‘normal’ é considerado como degradante. Por sexualidade da mulher, inscrita na forma
outro lado, a cesariana é vista pelos profissio- como são concebidos os espaços e as prá-
nais de saúde, que se distanciam cada vez mais ticas de cuidado.
da arte de partejar, como conveniente, pois Em sua maioria, os espaços onde as mulhe-
troca a imprevisibilidade do parto normal por res vivenciam o trabalho de parto são coletivos
um planejamento taylorista das cesáreas, se e impessoais. Neles, a identidade de mulher é
apoiando no mito da tecnologia como sempre sucumbida, bem como suas referencias cultu-
segura e eficaz. rais e sociais. Pré-parto anuncia, de imediato,
Algumas das consequências desse modelo que o parto taylorizado estipulou etapas para
são a maior taxa de cesarianas do mundo, altas este evento, as quais passam a ocorrer em am-
morbidade e mortalidade materna e neonatal, bientes distintos, sobretudo em espaços de
e uma grande insatisfação das mulheres com preparação, de espera e espaços para o ato de

DIVULGAÇÃO EM Saúde PARA Debate | rio de Janeiro, n. 52, p. 58-71, out 2014
Rede Cegonha: desafios de mudanças culturais nas práticas obstétricas e neonatais 63

parir (ou para a extração do feto). Esta lógica Obrigar a mulher a permanecer deitada
segmenta a assistência e não é incomum che- no trabalho de parto, expor suas partes
garem à mulher comandos para que ‘controle’ mais íntimas a qualquer um e dar ordens
o período expulsivo, pois há o desejo de que verbais que desqualificam o trabalho
ele aconteça nos únicos locais certos: a sala de íntimo que ela realiza demonstram o
parto ou o centro obstétrico. quanto as práticas de atenção ao parto são
Nos ambientes de pré-parto, em geral, as forjadas na concepção de que este é um
noções de confortabilidade, como iluminação, momento de exercício de poder sobre a
redução de ruídos e privacidade não são mulher, desconsiderando suas competên-
minimamente cuidadas. Ao contrário, o pré- cias próprias. Rotinas como jejum, venó-
parto traz inscrito em suas paredes a marca clise, uso de fármacos para aceleração do
do sofrimento e é comumente percebido parto, imposição de posições, episiotomia
como ‘sala de sacrifícios’, o que transforma de rotina e separação mãe/ bebê após o
o trabalho de parto em expiação do prazer. nascimento são alguns dos procedimentos
E isto porque a assistência se dirige quase que há quase 30 anos são considerados
que unicamente para o parto em si, local de prejudiciais na assistência ao parto e ao
ação dos agentes biomédicos, que, na fase nascimento, mas que ainda estão presen-
do trabalho de parto, têm pouco interesse e tes no cotidiano dos serviços de saúde.
condições de interferir, a não ser com seus Outro viés da violência de gênero pratica-
insumos biomédicos, como a prescrição de da na assistência ao parto e ao nascimento
medicamentos para ampliar contrações, é a negação do direito do homem (pai, par-
diminuir a dor etc. ceiro) de participar desse evento, contra-
A desqualificação da sexualidade das usuá- riando o desejo de muitas mulheres.
rias do SUS, outro elemento da assistência nos Apesar de um conjunto de boas práti-
padrões biomédicos e tecnocráticos, se traduz cas de atenção ao parto e ao nascimento
como uma forma de discriminação e precon- baseadas em evidências científicas serem
ceito, acrescentando às questões de gênero as difundidas no meio acadêmico desde 1985,
de classe social. Uma forte expressão deste produto da Conferência Internacional
viés é a negação ao direito ao acompanhan- de Tecnologia Apropriada para o Parto e
te no parto, que, apesar de ser garantido por Nascimento referendado pela OMS, poucas
lei, é interditado às usuárias do SUS. O apoio instituições, inclusive hospitais de ensino,
contínuo durante o parto, oportunizado pela têm respeitado a sua implementação nos
presença do acompanhante, traz inegáveis serviços. As escolas continuam a ensinar
benefícios tanto para a mulher quanto para práticas obsoletas e prejudiciais à boa
o bebê, sendo uma incongruência e uma ne- evolução do parto e do nascimento, carac-
gligência a privação deste recurso nos dias terizando uma resistência ao que hoje é
de hoje. Porém, ao consultar profissionais e atestado como seguro, benéfico e protetor
gestores sobre este direito, justificativas de para as mulheres e bebês.
ordem organizativa do serviço ou estrutural Enfrentar esta realidade e qualificar a
são pontuadas, como falta de espaço, álibis atenção ao parto e ao nascimento exige pensar
para manter o estado de coisas. A atitude de sob outro paradigma, que coloque a mulher no
desatenção e distanciamento dos profissio- centro do cuidado e inclua os aspectos sociais,
nais de saúde para com as necessidades de afetivos e sexuais vivenciados na experiência
apoio das mulheres durante o trabalho de do parir; que substitua a intervenção pela in-
parto sela a relação autoritária entre eles, teração, a separação pela inclusão; e que altere
ilustrada por tratamentos discriminatórios e as relações de poder. Exige um ‘não fazer mais
culpabilizadores. do mesmo, mas fazer diferente’.

DIVULGAÇÃO EM Saúde PARA Debate | rio de Janeiro, n. 52, p. 58-71, OUT 2014
64 PASCHE, D. F.; VILELA, M. E. A; GIOVANNI, M.; ALMEIDA, P. V. B.; FRANCO NETTO, T. L

O desafio de fazer diferente plena da mulher é o que se pretende com a


na atenção ao parto e implantação dos Centros de Parto Normal da
Rede Cegonha. Esta estrutura, situada dentro
nascimento ou nas imediações da maternidade, atende
exclusivamente a mulheres gestantes de
Alterar as práticas de cuidado, reduzindo baixo risco. Introduz, no processo do cuidar, a
cesárias e intervenções desnecessárias, pre- enfermeira obstétrica e a obstetriz, responsá-
venindo morbidade severa e aumentando a veis pela assistência aos partos de baixo risco,
satisfação das mulheres, exige deslocamen- rompendo com a lógica hospitalocêntrica e
tos identitários que permitam a inclusão de focada unicamente no profissional médico.
atores fundamentais na assistência obstétri- Isso exige investimento em novos ambientes
ca e neonatal: as enfermeiras obstétricas e de cuidado, adequados às situações nas quais
as obstetrizes. Países com bons indicadores as mulheres saudáveis possam simplesmen-
de saúde materna e neonatal desenvolveram te ter seus filhos com liberdade e respeito,
modelos de atenção contando com centros vigilância, apoio e oferta das melhores tec-
de parto normal e com a atuação das obs- nologias, tornando permeáveis os limites
tetrizes, midwives, sage-femmes no cuidado do hospital, construindo pontes entre este e
às mulheres na gravidez, no parto e no a comunidade. Atualmente, estão vigentes,
puerpério. nos sistemas de convênios do Ministério da
Um estudo recente de coorte prospectivo Saúde, 121 projetos de construção e reforma
nacional realizado na Inglaterra compara os de Centros de Parto Normal, além de 220 pro-
resultados perinatais, os resultados maternos jetos de adequação da ambiência dos centros
e intervenções no trabalho de parto de acordo obstétricos das maternidades, de modo a
com o local planejado para o parto em mulhe- cumprir os requisitos de qualificação dos am-
res com gestações de baixo risco (BIRTHPLACE bientes de parto da Resolução da Diretoria
IN ENGLAND COLLABORATIVE GROUP, 2011). Entre os Colegiada nº 36, de 2008, da Agência Nacional
locais planejados estão considerados: a casa de Vigilância Sanitária.
da mulher, todas as casas de parto autônomas, Para suprir o déficit de enfermeiras obs-
todos os centros de parto normal peri-hospi- tétricas no País, foram investidos recursos
talares (onde parteiras profissionais coorde- para formação e aprimoramento das mesmas,
nam o serviço em local dentro do perímetro totalizando 740 vagas disponíveis entre resi-
do hospital com serviço de obstetrícia) e uma dência, especialização e aprimoramento de
amostra aleatória estratificada de centros enfermeiras obstétricas já formadas.
obstétricos (onde médicos e parteiras profis- No bojo dessas propostas para mudança de
sionais trabalham em equipe hospitalar). Os modelo está também a Casa de Gestante, Bebê
resultados deste estudo apoiam a política de e Puérpera. Esta casa se constitui como um
oferecer às mulheres saudáveis, com gravidez espaço de cuidado intermediário entre a ma-
de baixo risco, a escolha do local de parto e ternidade de referência para alto risco e o do-
nascimento. Mulheres que planejam o parto micílio, oferecendo um local adequado para
em casas de parto e centros de parto normal situações onde o risco e a vulnerabilidade da
experimentam menos intervenções do que mulher ou do bebê exigem cuidado, vigilân-
aquelas com partos planejados para uma cia constante e proximidade do hospital, sem
unidade hospitalar de obstetrícia, sem haver necessitar de internação hospitalar. Os convê-
impacto nos resultados perinatais. nios atuais entre o MS, estados e municípios
Criar espaços existenciais significativos, para implantação dessas casas totalizam 78,
respeitosos, dignos, acolhedores, que favo- entre reformas e construções. A proposta é
reçam o desenvolvimento de uma fisiologia que toda maternidade de referência para alto

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Rede Cegonha: desafios de mudanças culturais nas práticas obstétricas e neonatais 65

risco conte com uma Casa de Gestante, Bebê saúde e da sociedade em geral a essas inicia-
e Puérpera. tivas é determinante para que a mudança da
Diante dos números alarmantes de cesa- atenção ao parto no Brasil se consolide, recu-
rianas no País, não será possível reduzirmos perando os sentidos do cuidar e os significa-
as mortes maternas e neonatais se não im- dos do parto e do nascimento, respeitando as
plementarmos as boas práticas de atenção ao mulheres e como elas têm seus filhos.
parto e nascimento baseadas em evidências
científicas de forma radical nas maternida-
des, incluirmos as enfermeiras obstétricas na Desafio do cuidado
condução dos partos de baixo risco, resigni- diferenciado às
ficarmos o protagonismo da mulher na cena
do parto e alterarmos o modelo de gestão,
adolescentes e jovens
valorizando o trabalho em equipe e a gestão
colegiada, participativa e democrática. Segundo a OMS, do total da população ado-
Esse modelo de atenção ao parto e nasci- lescente no mundo, 16 milhões dão à luz
mento proposto pela Rede Cegonha necessita todos os anos. Destas, muitas não tem acesso
de sustentação técnica e política organizada ou desconhecem os meios contraceptivos
regionalmente e em rede, de forma a fomen- e grande parte possui baixa escolaridade,
tar uma discussão, pactuação e implemen- sendo muitas vítimas de violência sexual
tação solidária e cooperativa. Os aspectos (AADS, 2014).
relacionados ao acesso e à qualidade do No Brasil, na última década, o número de
cuidado em rede são permeados pela análise partos entre adolescentes na faixa etária de 15
da suficiência de leitos e sua gestão regulada, a 19 anos teve redução de 30%. No entanto, na
e do modelo técnico-assistencial. No caso da faixa etária de 10 a 14 anos permanece inalte-
atenção obstétrica e neonatal, ampliar acesso rado, apresentando 27 mil partos a cada ano, o
e aumentar a qualidade é passar necessaria- que representa 1% do total de partos.
mente pela implantação dos dispositivos e ar- Embora a gravidez possa ser tomada como
ranjos de gestão propostos na Rede Cegonha, uma espécie de ‘evento-problema’, parece
entre eles: implantação de Centros de Parto mais adequado entendê-la como um ponto
Normal e Casa de Gestante, Bebê e Puérpera; de inflexão, que pode resultar de uma mul-
gestão interna de leitos; e implantação de tiplicidade de experiências de vida. Sendo
equipes horizontais gestoras do cuidado e co- assim, pode assumir diferentes significados
legiados materno-infantil. e ser também tratada de diferentes formas e,
Todo o conjunto de ofertas da Rede por isso mesmo, pode apresentar diferentes
Cegonha traz, na sua concepção, os princípios desfechos.
que sustentam as mudanças necessárias para As causas são múltiplas e estão relacio-
a atenção ao parto e nascimento: os direitos nadas aos aspectos sociais, econômicos,
das mulheres e crianças, a bioética, o cuidado pessoais; às condições materiais de vida; ao
centrado na mulher e na família, o investi- exercício da sexualidade; ao desejo da mater-
mento na fisiologia do parto e nas competên- nidade; e às múltiplas relações de desigualda-
cias próprias da mulher e do bebê, o potencial de que constituem a vida social em nosso país.
de prevenção e promoção da saúde inerentes Além disso, a falta ou inadequação das infor-
a esses eventos, o cuidado compartilhado mações quanto à sexualidade e aos métodos
entre hospital e comunidade, a valorização contraceptivos, o baixo acesso aos serviços de
dos trabalhadores da saúde e a mobilização e saúde, a falta de comunicação com os pais e
participação social. a violência sexual e doméstica são outros as-
A adesão dos gestores e trabalhadores da pectos no contexto da gravidez.

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O início cada vez mais precoce da puber- valorizando o envolvimento e a participação


dade e o decréscimo da idade da primeira masculina nestas ações, nos cuidados com o
menstruação são fatores que estão possibili- pré-natal, no parto e no nascimento, respei-
tando que a idade reprodutiva de adolescen- tando e valorizando a mulher e sua família,
tes se inicie mais cedo. Aliadas a estes fatores são desafios imperativos para a garantia dos
estão também a facilidade das informações direitos sexuais e os direitos reprodutivos;
sobre assuntos relacionados à sexualidade para uma abordagem positiva da sexualidade
na internet e na mídia, como também a ero- sem juízo de valor, preconceito e julgamento;
tização precoce favorecida pelos meios de para contribuir na redução das desigualda-
comunicação. des de gênero; para a redução das gestações
Adolescentes e jovens são um grupo po- não planejadas; e para a redução da violência
pulacional que necessita de novos modos de sexual contra mulheres e meninas.
produzir saúde, em especial, a saúde sexual e
a saúde reprodutiva. Neste sentido, os servi-
ços de saúde devem encorajar e promover um O desafio da garantia do
comportamento sexual e reprodutivo respon- acompanhante para o
sável e saudável para adolescentes, visando
o seu bem-estar particularmente no que se
recém-nascido internado
refere ao desenvolvimento de ações educati- em unidade neonatal
vas que promovam o vínculo dessa população
às unidades de saúde, pois Sob o ponto de vista da atenção neonatal, a
Rede Cegonha enfrenta um duplo desafio:
seu ciclo de vida particularmente saudável o primeiro, de ampliar a rede de atenção
evidencia que os agravos em saúde decorrem, quanto à sua estrutura, buscando enfrentar
em grande medida, de modos de fazer ‘andar situações de insuficiência de leitos neona-
a vida’, de hábitos e comportamentos, que, tais, por exemplo, através do financiamen-
em determinadas conjunturas, os vulnerabili- to de obras e equipamentos, e de apoio ao
zam (BRASIL, 2014, no prelo). custeio, que permitiram a abertura de 1.839
novos leitos neonatais (Utin e Ucin) e a
Neste contexto, a Rede Cegonha tem se qualificação com incentivos de custeio para
apresentado como uma oportunidade extra- mais 4.589 leitos. Por outro lado, o desafio,
ordinária para avançar e melhorar a capaci- da mudança de práticas de atenção neonatal,
dade de resposta dos profissionais de saúde que, assim como a obstétrica, padecem de
na atenção integral à saúde dessa população, um excesso de intervenções, grande parte
reconhecendo delas realizadas de forma acrítica e rotinei-
ra – não baseadas em evidências – e, muitas
a importância do seu papel no cuidado dife- vezes, iatrogênica; mas, também, da negação
renciado a essas pessoas como sujeitos de de cuidados e direitos que qualificam e hu-
direitos, o que requer sensibilidade e dispo- manizam a atenção, como, por exemplo, a
nibilidade para exercerem sua prática (BRASIL, garantia do direito do recém-nascido (RN)
2014, no prelo). internado em unidade neonatal – Unidade
de Terapia Intensiva (Utin) ou Unidade de
Proporcionar um conjunto de ações que Cuidado Intermediário Neonatal (Ucin), de
visem integrar e ampliar uma rede de cui- contar com sua mãe, pai ou outro familiar
dados em saúde, que assegure às mulheres como seu acompanhante.
adolescentes, jovens e adultas uma assistên- Até a década de 80, o modelo de atenção
cia adequada desde o planejamento familiar, obstétrica e neonatal vigente no Brasil previa

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Rede Cegonha: desafios de mudanças culturais nas práticas obstétricas e neonatais 67

a separação dos RN de suas mães ao nascer, como uma curiosidade histórica, de um


permanecendo até a alta hospitalar em tempo longínquo, onde se perpetrava o
berçários. absurdo da separação da dupla mãe-bebê, o
Em 1982, ocorre um marco histórico no mesmo estranhamento parece não acontecer
campo da humanização da atenção à mulher quando se fala de recém-nascidos de risco,
e seu recém-nascido, a publicação pelo então internados em unidades neonatais (Utin ou
Instituto Nacional de Assistência Médica da Ucin). Curiosamente, apesar de, sob todos
Previdência Social (Inamps) da Resolução nº os pontos de vista, as justificativas já citadas
18, tornando obrigatória, em hospitais públi- para a não separação do bebê saudável de
cos e conveniados, a permanência do filho ao sua mãe se aplicarem também ao bebê crítico
lado da mãe, 24h por dia, através do sistema ou de risco, a separação continua a quase
de ‘alojamento conjunto’. regra, sem maiores constrangimentos por
Em 1993, nasce a Portaria MS/GM nº parte da maioria dos profissionais e gestores
1.016, uma atualização daquela Resolução do hospitalares.
Inamps, com normas básicas de sistema de Assim, sob o ponto de vista da humanização
alojamento conjunto, ali definido como e da qualificação da atenção ao recém-nascido
na Rede Cegonha, este foi um dos desafios
um sistema hospitalar em que o recém-nasci- adotados como centrais. Para enfrentá-lo,
do sadio, logo após o nascimento, permanece um amplo leque de estratégias foi utilizado,
ao lado da mãe, 24 horas por dia, num mesmo dentre as quais se podem salientar:
ambiente, até a alta hospitalar. Tal sistema
possibilita a prestação de todos os cuidados 1) Novas normativas para garantia do
assistenciais, bem como a orientação à mãe direito do RN a acompanhante em tempo
sobre a sua própria saúde e do seu filho (BRA- integral:
SIL, 1993).
• Portaria GM nº 930, de 2012 – Define as
Tal normativa nasce fortemente influen- diretrizes para a organização da atenção
ciada pelo arcabouço jurídico de proteção integral e humanizada ao recém-nascido
dos direitos da criança, aprovado poucos grave ou potencialmente grave. Dentre suas
anos antes. Assim, em 1988, a Constituição do diretrizes, se destaca a garantia de livre
Brasil incorpora como prioridade a proteção acesso à mãe e ao pai, e permanência de
dos direitos da criança e do adolescente e o mãe ou pai; garantia de visitas programadas
atendimento de suas necessidades básicas. Na dos familiares; e garantia de informações
mesma linha, em 1990, foi promulgada a Lei da evolução dos pacientes aos familiares,
Federal nº 8.069, do Estatuto da Criança e do pela equipe médica, no mínimo, uma vez ao
Adolescente (ECA), que orienta a obrigatorie- dia (BRASIL, 2012).
dade do alojamento conjunto nos hospitais e
demais estabelecimentos de atenção à saúde Vale destacar a obrigatoriedade, de que,
de gestantes, possibilitando ao neonato a per- novas maternidades que disponham de
manência junto à mãe; e também de oferta Utin ou Ucin, garantam, no seu projeto ar-
de condições para a permanência, em tempo quitetônico, alojamento para as mães cujos
integral, de um dos pais ou responsável, nos recém-nascidos estiverem internados em
casos de internação de criança ou adolescente. Utin ou Ucin. E ainda a inovação apresen-
Se hoje, na implantação da Rede Cegonha, tada ao criar, na unidade neonatal, os leitos
passadas cerca de duas décadas desse pro- de Unidade de Cuidado Intermediário
cesso, de mudanças de práticas de atenção Neonatal Canguru (Ucinca), apontando a
à mãe e a seu RN sadio, isso aparece quase necessidade de que, pelo menos 1/3 (um

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terço) de leitos de cuidados intermediários de práticas obstétricas e neonatais pre-


sejam desta nova tipologia, na qual não só vistas na Rede Cegonha. É interessante
mãe e bebê estão juntos a maior parte do lembrar que, com frequência, essas coor-
tempo, mas em contato pele a pele o maior denações compunham, juntamente com
tempo possível. as Coordenações de Saúde da Mulher,
o Grupo Condutor Estadual da Rede
Deve-se lembrar, aqui, que as normativas Cegonha. E o fortalecimento técnico-po-
de incentivo à implantação do Método lítico desses atores, que foi efetivamente
Canguru no País, desde a década de 1990, observado a partir da estratégia de en-
trouxeram outro olhar para a questão, e já contros nacionais, aumentou a capacida-
vinham – muito antes do advento da Rede de de gestão daqueles grupos condutores.
Cegonha, portanto – provocando questio-
namentos e reflexões sobre essa prática 3) Utilização da estratégia do apoio
da separação de mães e bebês, e conquis- institucional aos estados e muníci-
tando mudanças em número crescente pios, através da criação da figura de
de maternidades brasileiras. Isso se inicia ‘Consultor de Saúde da Criança do
em 1999, com a publicação da ‘Norma de Ministério da Saúde’, em cada estado e
Atenção Humanizada ao Recém-Nascido no Distrito Federal. Embora o foco deste
de Baixo Peso – Método Canguru’, que, no ator tenha sido a implementação das
ano 2000, se transformaria em uma política Ações da Política Nacional de Atenção
de governo, através da Portaria SAS/MS nº à Saúde da Criança como um todo, isto
693, depois sucedida pela Portaria SAS/MS é, o componente de saúde da criança de
nº 1.683, de 2007. cada uma das redes de atenção, seu foco
principal de atuação sempre foi a im-
• Portaria GM nº 1.153, de 2014 – Redefine plementação da Rede Cegonha, na qual
os critérios de habilitação da Iniciativa atuava de forma associada aos outros im-
Hospital Amigo da Criança (IHAC), como portantes atores de apoio do Ministério
estratégia de promoção, proteção e apoio da Saúde para implantação desta rede: os
ao aleitamento materno e à saúde integral Apoiadores Temáticos da Rede Cegonha
da criança e da mulher (BRASIL, 2014). para os estados, os apoiadores de ma-
ternidades definidas como estratégi-
Esta portaria passa a adotar novos e im- cas e também os apoiadores da Política
portantes critérios de avaliação de hospi- Nacional de Humanização.
tais para se tornarem ‘amigos da criança’,
entre eles, a “garantia da permanência da Outros desafios se apresentam. Entre eles,
mãe ou do pai junto ao recém-nascido 24 a falta, até o momento, de um sistema de in-
horas por dia e livre acesso a ambos ou, na formação onde constem dados sobre a perma-
falta destes, ao responsável legal” (BRASIL, nência da mãe, do pai ou de outro familiar ao
2014), e o cumprimento do critério global de lado do RN na unidade neonatal, o que impede
‘Cuidado Amigo da Mulher’. uma avaliação mais concreta do impacto
do conjunto dessas estratégias em relação à
2) Intensificação da articulação inter- mudança da prática. Também o pouco tempo
federativa com as Coordenações de de existência das normativas citadas torna
Saúde da Criança dos estados e das ca- pouco provável já termos, no País, mudanças
pitais, com a realização de encontros significativas nesse sentido, da mesma forma
nacionais periódicos, para integração que a legislação da década de 1990, que criou
de esforços no sentido das mudanças a figura do alojamento conjunto para RN

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Rede Cegonha: desafios de mudanças culturais nas práticas obstétricas e neonatais 69

saudáveis, encontrou resistências de profis- é uma estratégia de política pública que se


sionais e gestores até efetivamente ser aceita funda, para cumprir essa missão, em um tripé.
e incorporada. Entretanto, é perceptível um Um primeiro ponto de sustentação é a intro-
número crescente de hospitais onde a cultura dução e observância, nas práticas de cuidado,
da mãe ou do pai como ‘visitas’ para seu RN das denominadas boas práticas, que se apre-
está sendo superada, e profissionais e gesto- sentam como atitudes e modos de fazer o
res passam a perceber os muitos benefícios cuidado alicerçado em evidências científi-
desta boa prática e a estimulá-la. cas; logo, devem presidir todo o percurso
Espera-se que, da mesma forma que de cuidado de mulheres e crianças. Mudar
olhamos hoje com espanto para os tempos modos de cuidar a partir da introdução de
em que o alojamento conjunto não era uma novas tecnologias de cuidado se impõe como
realidade, em curto-médio prazo, possamos ação mandatória; logo, não há como preterir o
também fazê-lo em relação à desumanizada e enfrentamento da cultura organizacional dos
iatrogênica prática de separação de RN críti- serviços de saúde, que, em geral, pouco favo-
cos de suas mães em unidades intensivas ou recem mudanças de comportamento.
de cuidados intermediários. É por isso que a Rede Cegonha, como um
segundo ponto, aposta e fomenta espaços
coletivos para gestão e governança de sua
Considerações finais própria implementação e sustentabilida-
de. Espaços coletivos são sempre espaços
Uma melhor organização e oferta do cuidado de abertura para a emergência do interesse
às mulheres, gestantes e crianças é um público. O enquistamento institucional, a
desafio para o sistema de saúde brasileiro. inobservância de boas práticas e mesmo a
Prova disso é que o Brasil convive com indi- violação dos direitos humanos em saúde são
cadores de saúde materna e infantil que são fenômenos que se produzem na proporção
paradoxais face ao grau de desenvolvimento do grau de porosidade de uma instituição,
do país, sobretudo aos avanços obtidos na logo onde a pluralidade dos interesses não
última década. Se, de um lado, o País cresceu, alcança logro. Quebrar essa lógica do ensi-
está vencendo o analfabetismo, vive o pleno mesmamento, do fechamento sobre si, da
emprego e retirou milhões de famílias da tomada de decisão oligárquica é condição
miséria, o percentual de mulheres adultas para a emergência de novos modos de cuidar.
e adolescentes que ficam grávidas sem pla- É por essa razão que a RC é uma maquínica de
nejar a gravidez, a alta razão de mortalidade produção de porosidade institucional. Mas
materna por causas evitáveis e, por corres- não uma porosidade que corrói, que deixa
pondência, a elevada proporção de mulheres como marca a fraqueza. Ao contrário, uma
que padecem de morbidade materna severa porosidade que faz repercutir a multiplici-
por manejo e cuidado inadequado, bem dade, a heterogeneidade, sem a qual as orga-
como a manutenção de altas taxas de morta- nizações padecem. A criação de colegiados,
lidade neonatal, entre outros, expressam que espaços coletivos de gestão e de mobilização
é necessário produzir mudanças na oferta para a emergência de consensos técnicos e
assistencial e no modo de cuidar. políticos, desde a experiência da confronta-
Enfrentar a morte evitável, mas também ção das diferentes percepções e posições dos
recuperar o sentido transformador da gravi- sujeitos, tem sido uma das principais ofertas
dez e o nascimento para a mulher e a família, da Rede Cegonha. E isso porque, para ela, é
medicalizados pela racionalidade da bio- imprescindível a conformação de novos con-
medicina contemporânea, são as principais sensos, não daqueles que se originam desde
missões ético-políticas da Rede Cegonha, que um conformismo do corporativismo ou da

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tradição científica – que, ao contrário de sua alcançar maior efetividade, se deveria lançar
própria condição, muitas vezes opera como mão do diálogo com aqueles que delas se be-
dogma –, mas de consensos que possam ser neficiam, logo, com aqueles que a experimen-
tomados por aqueles que estão em situação tam como fato social concreto.
de trabalho e/ou na cena do cuidado como A sustentabilidade de políticas públicas de
consensos que operam como verdade; logo, saúde, assim como se pode apreender da di-
que se produzem por valores éticos e técni- nâmica de governança da RC, resulta, então,
cos tomados como válidos. da combinação de ofertas baseadas naquilo
Por fim, um terceiro ponto de sustentação, que a humanidade tem produzido como
que conforma o tripé de organização da RC, é melhor tecnologia de cuidado, as boas práti-
a ousadia de se fazer política pública no inte- cas, que, para serem introduzidas nas organi-
rior da máquina do Estado, acionando redes zações precisam resultar de consensos entre
e movimentos sociais. Essa condição, que a os diversos sujeitos, que passam a tomá-las
priori pode suscitar uma percepção de que como enunciados verdadeiros. Essa produção
a política fica refém de um sem número de coletiva não se resume apenas à construção
interesses difusos, pode ser tomada como o de uma nova dinâmica nas organizações de
exercício de um modo de ação política desde saúde, mas também na feitura de movimentos
o Estado, que considera que a formulação e inclusivos da diversidade de percepções para
a implementação de políticas que lidam com a produção de novas mentalidades, que se ex-
objetos complexos, no embate de sua imple- pressam como nova cultura do cuidar de mu-
mentação, sofrem a interferência dos contex- lheres, gestantes e crianças, e novos modos de
tos os quais deveriam ser considerados em gerir a própria política pública, que se susten-
seu processo de amadurecimento. Em outras ta como efetivamente pública quando produ-
palavras: as políticas são perfectíveis e, para zida na esfera pública. s

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html>. Acesso em 09 set. 2014. Brasil: pressuposto para uma nova ética na gestão e no
cuidado. Rev Tempus Actas Saúde Col, Brasília, DF, v. 4,
_______. Ministério da Saúde. Portaria nº 930, de 10 n. 4, p. 105-117, 2010.
de maio de 2012. Define as diretrizes e objetivos para
a organização da atenção integral e humanizada ao
recém-nascido grave ou potencialmente grave e os

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72 artigo original | original article

Violência contra a mulher: análise das


notificações realizadas no setor saúde –
Brasil, 2011
Violence against women: analysis of the reports made in the health
sector - Brazil, 2011

Eneida Anjos Paiva1; Marta Maria Alves da Silva2; Alice Cristina Medeiros das Neves3; Marcio
Denis Medeiros Mascarenhas4; Thereza de Lamare Franco Netto5; Deborah Carvalho Malta6.

RESUMO A violência contra a mulher é considerada uma questão complexa e multifacetada,


que viola os direitos humanos, provocando perdas significativas na saúde física e mental
das vítimas. O presente artigo é um estudo descritivo dos dados de notificação de violência
doméstica, sexual e/ou outras violências contra mulheres durante o ano de 2011, em unidades
1Especialista em Medicina
Social sob a forma de de saúde. Foram calculadas a Razão de Prevalência das variáveis selecionadas por faixa etária
Residência pelo Instituto (20 a 39 anos e 40 a 59 anos) e a análise segundo o tipo de violência praticada. A notificação
de Saúde Coletiva da
Universidade Federal da da violência doméstica ainda é um processo recente, estando em implantação nas unidades
Bahia (UFBA) – Salvador da Federação. Os dados aqui analisados revelam o perfil da vítima de violência como sendo
(BA), Brasil. Analista
técnica de Políticas Sociais mulher adulta jovem (20 a 39 anos), e o agressor predominantemente do sexo masculino, na
do Ministério da Saúde – maioria das vezes, cônjuge, ex-cônjuge, namorado ou ex-namorado. O relato de uso de álcool
Brasília (DF), Brasil.
eneida.paiva@saude.gov.br pelo agressor ocorreu em 51,1% dos casos, e a violência foi de repetição em 54,6% dos casos. A
2 Mestre em Saúde
violência mais praticada é a física, por meio de força corporal, seguida da violência psicológica/
Coletiva pela Universidade moral, sexual e tortura. A raça/cor predominante é a parda/preta para a maioria das violências
Estadual de Campinas sofridas, exceto para violência psicológica, em que não houve diferença segundo raça/cor. A
(Unicamp) – Campinas
(SP), Brasil. Coordenadora maioria dos casos evoluiu para alta, enquanto 16,0% demandaram internação. Concluiu-se
da Área Técnica de que a violência contra as mulheres é, na maioria das vezes, praticada pelos parceiros íntimos, e
Vigilância e Prevenção de
Violências e Acidentes a notificação é um importante instrumento visando ao enfrentamento desses casos, bem como
do Ministério da Saúde à desigualdade de gênero.
– Brasília (DF), Brasil.
Servidora da Universidade
Federal de Goiás e da PALAVRAS-CHAVE Vigilância epidemiológica; Violência; Causas externas.
Prefeitura Municipal de
Goiânia (GO).
marta.silva@saude.gov.br ABSTRACT Violence against women is considered a complex and multifaceted issue that violates
3 Doutoranda do Programa human rights, causing significant losses in both physical and mental health of victims. This
de Pós-Graduação em article is a descriptive study of data from reports of domestic, sexual and/or other violence
Saúde Coletiva pela
Universidade de Brasília against women during the year 2011, in health care units. Prevalence Ratio were calculated for
(UnB) – Brasília (DF), the selected age group (20-39 years and 40-59 years), and analyzed according to the type of
Brasil. Consultora técnica
do Departamento de violence. The reporting of domestic violence is still a new process, still under construction in the
Doenças e Agravos Não Federal States. The data analyzed here reveal the profile of victims of violence against women as a
Transmissíveis e Promoção
do Ministério da Saúde, young adult (20-39 years), predominantly male aggressor, most times the spouse, former spouse,
Ministério da Saúde – boyfriend and ex-boyfriend. The reported use of alcohol by the perpetrator occurred in 51.1% of
Brasília (DF), Brasil.
alice.medeiros@saude.gov.br the cases and violence was repeated in 54.6% of the cases. The most practiced violence is physical,

DIVULGAÇÃO EM Saúde PARA Debate | rio de Janeiro, n. 52, p. 72-87, OUT 2014
artigo original | original article 73

by bodily force, then psychological, moral/sexual violence, and sexual torture. The predominant
color is black/brown race for most of the violence suffered, except the psychological violence,
where there was no difference regarding race/color. In most cases resulted in discharge, whereas
16.0% required hospitalization. Violence against women is most often practiced by intimate
partners and reporting is an important tool aimed at addressing these cases, to eliminate gender
inequality.

KEYWORDS Epidemiologic surveillance; Violence; External causes.

Introdução capacidade de tomar decisões, dificultam o


acesso a recursos disponíveis, além de inibi-
A violência contra a mulher tem caráter rem a busca de proteção contra a violência
complexo e multicausal, viola os direitos sofrida (OMS, 2010).
humanos, pode provocar danos à saúde As consequências para a saúde vão desde
física e mental das vítimas e afetar as famí- as barreiras de acesso aos serviços, influen-
4 Doutor em Ciências lias e a sociedade. Além disso, guarda estreita ciadas pelas iniquidades de gênero, até ma-
Médicas pela Universidade
Estadual de Campinas relação com as categorias de gênero, classe e nifestações diversas para além das lesões
(Unicamp) – Campinas etnia, fundamentando-se nas históricas assi- físicas: gestações indesejadas, infecções
(SP), Brasil. Chefe do
setor de Vigilância do metrias entre as relações de poder estabele- sexualmente transmissíveis (inclusive pelo
Hospital Universitário cidas. Em se tratando de violência de gênero, HIV), queixas ginecológicas, gastrointesti-
da Universidade Federal
do Piauí – (HU-UFPI) – essas relações desiguais entre homens e mu- nais ou difusas, ansiedade, depressão, entre
Teresina (PI), Brasil. lheres determinaram a dominação e a discri- outras, e, em casos extremos, podem ter
mdm.mascarenhas@gmail.com
minação das mulheres, impondo obstáculos desfechos como o homicídio ou o suicídio
5 Mestre em Políticas ao seu desenvolvimento pleno (ONU, 1993). Essa (SCHRAIBER; D’OLIVEIRA,1999; MINAYO, 1994).
Públicas pela Universidade
de Brasília (UnB) - forma de manifestação de violência é defini- Ao longo das últimas décadas, iniciativas
Brasília (DF), Brasil. da como toda e qualquer conduta, por ação globais têm sido desenvolvidas com a finali-
Diretora substituta do
Departamento de Ações ou omissão, de caráter intencional, baseada dade de assegurar os direitos humanos das
Programáticas Estratégicas no gênero, ou seja, passível de causar morte, mulheres, bem como a eliminação de todas as
(Dapes) do Ministério
da Saúde – Brasília (DF), dano ou sofrimento nos âmbitos físico, formas de discriminação e de violência contra
Brasil. sexual, psicológico, social, político ou eco- a mulher. Em destaque, pode ser mencionada
therezadelamare@yahoo.com.br
nômico à mulher, tanto na esfera pública a adoção da Convenção para a Eliminação de
6 Doutora em Saúde
quanto na privada (BRASIL,1996). A desigualda- Todas as Formas de Discriminação contra a
Coletiva pela Universidade
Estadual de Campinas de e a iniquidade de gênero – fundadas em Mulher (Cedaw) pela Assembleia Geral das
(Unicamp) – Campinas normas sociais que atuam nos níveis de in- Nações Unidas (1979). Essa Convenção visou
(SP), Brasil. Professora
adjunta e pesquisadora fluência individual, relacional e comunitária à promoção dos direitos da mulher na busca
da Escola de Enfermagem do modelo ecológico adotado para a explica- da igualdade de gênero e da repressão de
da Universidade Federal
de Minas Gerais (UFMG) ção dos fatores associados à violência (KRUG et quaisquer discriminações, sendo ratificada
– Belo Horizonte (MG), al., 2002) – contribuem para a sua manifesta- pelo Congresso Nacional Brasileiro em 1º de
Brasil.
deborah.malta@saude.gov.br ção contra as mulheres, influenciam em sua fevereiro de 1984.

DIVULGAÇÃO EM Saúde PARA Debate | rio de Janeiro, n. 52, p. 72-87, OUT 2014
74 PAIVA, E. A.; SILVA, M. M. A.; NEVES, A. C. M.; MASCARENHAS, M. D. M.; FRANCO NETTO, T. L.; MALTA, D. C.

A Organização Mundial da Saúde (OMS), de 1990 (Estatuto da Criança e Adolescente)


no ano de 1996, com base em evidências que (BRASIL, 2005), Lei nº 10.741, de 1° de outubro de
demonstraram que a violência afeta a saúde 2003 (Estatuto do Idoso) (BRASIL, 2005), e Lei nº
individual e coletiva, sendo responsável por 10.778, de 24 de novembro de 2003 (Notificação
grande número de mortes e lesões, contribuin- de Violência contra Mulher) (BRASIL, 2003). Esta
do para importante volume de anos potenciais última foi regulamentada pelo Ministério da
de vida perdidos e demandando respostas do Saúde por meio da Portaria nº 2.406, de 05 de
setor Saúde, publicou a resolução WHA49.25, novembro de 2004, que instituiu a notificação
com o tema ‘Prevenção da Violência: uma compulsória de violência contra a mulher em
prioridade em saúde pública’, na qual endossa serviços de saúde públicos ou privados (BRASIL,
recomendações de conferências internacio- 2004). E, por meio da publicação da Portaria
nais (Cairo – 1994; Beijing – 1995) e das Nações nº 104, de 25 de janeiro de 2011, a notificação
Unidas (OMS, 2002, 1996) para a eliminação da vio- compulsória de violências interpessoais e au-
lência contra a mulher. Em seu texto, declara toprovocadas foi universalizada para todos os
a violência como relevante problema de serviços de saúde (BRASIL, 2011).
saúde pública no mundo, conclama os países A expansão da cobertura da vigilância de
membros a enfrentar o problema em seus ter- violências nos municípios e serviços de saúde
ritórios, a comunicar à OMS as informações e brasileiros, com consequente aumento do
a abordagem sobre o tema e dá diretrizes para número de notificações, realizadas por equipes
o seu enfrentamento (WHO, 1996). A partir das instrumentalizadas e sensíveis ao dever de
décadas de 1970 e 1980, o governo brasileiro notificar e cuidar, subsidia ações de enfren-
propôs as primeiras políticas na área de en- tamento dos determinantes e condicionantes
frentamento à violência contra a mulher, com das violências em uma perspectiva interseto-
destaque, nas décadas recentes, para a Lei de rial e com base no direito à saúde e à vida. O
Obrigatoriedade da Notificação de Violência Ministério da Saúde, por meio da Secretaria de
contra a Mulher (BRASIL, 2003) e a Lei Maria da Vigilância em Saúde, investiu na estruturação
Penha (BRASIL, 2006). da Viva, tanto no componente inquérito quanto
A partir da publicação da Política de na notificação dos casos de violência interpes-
Redução da Morbimortalidade por Acidentes soal atendidos nas unidades de saúde (BRASIL,
e Violências (BRASIL, 2001), visando ao monitora- 2012; MALTA et al., 2008). Tais circunstâncias possi-
mento dos acidentes e violências, o Ministério bilitam a formação de redes de atendimento
da Saúde implantou a Vigilância de Violências às vítimas de violência, buscando garantir a
e Acidentes (Viva) (BRASIL, 2013), com dois com- atenção e a proteção integral, estando compre-
ponentes: a) Vigilância por Inquérito, realiza- endidas a promoção da saúde e da cultura de
da por meio de pesquisa nas portas de entrada paz e a preservação de direitos. (GAWRYSZEWSKI et
de emergências de municípios selecionados; e al., 2007; MALTA et al., 2007) .
b) Vigilância Contínua, feita por meio da no- O presente estudo tem como objetivo ana-
tificação compulsória das violências domés- lisar as diferenças no perfil das notificações
tica, sexual e outras violências interpessoais entre as mulheres adultas, de 20 a 59 anos de
ou autoprovocadas em serviços de referência idade, no ano de 2011.
e outros serviços de saúde, que são notifica-
das no Sistema de Informação de Agravos de
Notificação (Sinan). Métodos
A notificação da violência é compulsória em
situações de violências envolvendo crianças, Estudo descritivo, retrospectivo, realizado
adolescentes, mulheres e idosos, conforme de- com dados obtidos no Sistema de Informação
terminado pelas Leis de nº 8.069, de 13 de julho de Agravos de Notificação – versão Net

DIVULGAÇÃO EM Saúde PARA Debate | rio de Janeiro, n. 52, p. 72-87, out 2014
Violência contra a mulher: análise das notificações realizadas no setor saúde – Brasil, 2011 75

(Sinan Net) –, abrangendo as notificações calculadas proporções das notificações de


de violência doméstica, sexual e/ou outras violência doméstica, sexual e outras vio-
violências contra mulheres adultas (20 a 59 lências. Por meio da regressão de Poisson,
anos de idade), realizadas no período de 01 estimaram-se Razões de Proporções (RP). A
de janeiro a 31 de dezembro de 2011. associação entre as variáveis selecionadas e
Para os fins de notificação no Sinan Net, vio- o grupo etário das mulheres (20-39 e 40-59
lência é considerada como anos de idade) foi verificada por meio do teste
do qui-quadrado (x2).
o uso intencional de força física ou do poder, Por se tratar de uma ação permanente de
real ou em ameaça, contra si próprio, contra vigilância epidemiológica instituída pelo
outra pessoa, ou contra um grupo ou uma co- Ministério da Saúde em todo o território na-
munidade, que resulte ou tenha possibilidade cional, não foi necessário emitir termo de con-
de resultar em lesão, morte, dano psicológico, sentimento livre e esclarecido. Porém, foram
deficiência de desenvolvimento ou privação garantidos o anonimato e a confidencialidade
(KRUG, et al., 2002; BRASIL, 2010; BRASIL, 2011; RODRI- das informações nos registros para preservar
GUES, 2009). a identidade dos indivíduos que compunham
a base de dados analisada.
Os dados foram captados por meio da
Ficha de notificação/investigação indivi-
dual de violência doméstica, sexual e/ou Resultados
outras violências, que contém variáveis
sobre: vítima/pessoa atendida, ocorrência, Foram notificados 43.650 casos de vio-
tipologia da violência, consequências da lência entre mulheres adultas, sendo 74%
violência, lesão, provável autor da agressão, entre mulheres com idade entre 20 e 39
evolução e encaminhamentos. A ficha é pre- anos e 25,6% entre mulheres de 40 a 59
enchida nos serviços de saúde ou centros de anos. Quanto ao perfil das vítimas, 54,6%
referência para violências, ambulatórios es- se autodeclararam da raça/cor branca. A
pecializados, maternidades, centros de re- proporção de mulheres pretas e pardas foi
ferência da mulher, entre outros. Os dados significativamente maior entre as vítimas
são digitados no Sinan Net no nível munici- de 20 a 39 anos (45,7%), enquanto a propor-
pal e transferidos para as esferas estadual e ção de mulheres brancas foi mais elevada
federal para compor a base de dados nacio- entre as vítimas de 40 a 59 anos (59,5%).
nal (BRASIL, 2011). Cerca de 90% das mulheres não possuíam
As notificações de violência contra mulhe- qualquer tipo de deficiência/transtorno;
res foram analisadas segundo: características entre as que apresentavam, a maior pro-
demográficas das vítimas (sexo, idade, raça/ porção se concentrou entre mulheres de
cor da pele, escolaridade, situação conjugal, 40 a 59 anos (13,8%) e entre 20 a 39 anos
presença de deficiência ou transtorno); ca- (8,1%). Com relação à região de residência
racterísticas da ocorrência (local, violência de das vítimas, mais do que a metade dos casos
repetição, natureza da lesão, parte do corpo era do Sudeste (53,1%); as regiões Sudeste
atingida, evolução); tipo de violência e meio e Sul apresentam maior prevalência de
de agressão; características do agressor (sexo, mulheres na faixa etária de 40 a 59 (sendo
relação com a vítima, suspeita de consumo de 54,1% e 21,4%, respectivamente); e maiores
bebida alcoólica). proporções na faixa etária de 20 a 39 anos
Os registros foram importados do Sinan para as regiões Nordeste, Norte e Centro-
Net e as análises estatísticas foram proces- oeste (sendo 17,7%; 16,5% e 8,1%, respecti-
sadas no programa Stata, versão 11. Foram vamente) (tabela 1).

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76 PAIVA, E. A.; SILVA, M. M. A.; NEVES, A. C. M.; MASCARENHAS, M. D. M.; FRANCO NETTO, T. L.; MALTA, D. C.

Tabela 1. Notificações de violência contra mulheres adultas segundo características demográficas por faixa etária. Brasil, 2011

Características Faixa etária (anos) Totala Valor de pb

20 a 39 40 a 59

(N=32.489; 74.4%) (N=11.161; 25,6%) (N=43.650; 100,0%)

N % N % N %
Raça / cor da pele 0,000
Branco 13.806 52,8 5.499 59,5 19.305 54,6
Preto/pardo 11.961 45,7 3.622 39,2 15.583 44,0
Amarelo/indígena 384 1,5 117 1,3 501 1,4
Subtotal 26.151 100,0 9.238 100,0 35.3895 100,0
Deficiência / transtornoc 0,000
Não 22.680 91,9 7.373 86,2 30.053 90,5
Sim 1.992 8,1 1.182 13,8 3.174 9,6
Subtotal 24.672 100,0 8.555 100,0 33.227 100,0
Região de residência 0,000
Norte 1.592 4,9 313 2,8 1.905 4,4
Nordeste 5.754 17,7 1.573 14,1 7.327 16,8
Sudeste 17.142 52,8 6.041 54,1 23.183 53,1
Sul 5.369 16,5 2.393 21,4 7.762 17,8
Centro-Oeste 2.627 8,1 841 7,5 3.468 8,0
Subtotal 32.484 100,0 11.161 100,0 43.645 100,0

Fonte: Ministério da Saúde, Secretaria de Vigilância em Saúde, Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan)
a Totais divergem devido a registros sem informação ou em branco;

b Teste do qui-quadrado de Pearson;

c Inclui deficiência física, mental, visual, auditiva, transtorno mental, transtorno de comportamento, outras deficiências/síndromes.

No tocante às características do evento, A contusão/entorse/luxação são caracterís-


foram observadas diferenças significativas ticas mais presentes na natureza da lesão,
entre todas, quando analisadas por faixa com 34,7%, sendo igualmente distribuídas
etária. 73% dos eventos ocorreram na residên- entre as duas faixas de idade das mulheres.
cia, com maior incidência entre as mulheres Proporcionalmente, entre as mulheres, o seg-
mais velhas – 78%; entre as mulheres de 20 a mento do corpo mais atingido foi a cabeça/
39 anos, a ocorrência foi de 71,2%. A violência pescoço, em 44,5% dos casos.
de repetição foi significativamente presente A maioria das vítimas recebeu alta após o
em mais da metade dos casos (54,6%), com atendimento – o encaminhamento, na maior
maiores proporções entre as mulheres de 40 parte das vezes, foi feito para o ambulatório
a 59 anos (58,4%). A lesão autoprovocada, na (60,4%). 16% foram internadas. A proporção
maioria das vezes, não ocorreu (82%), entre- de óbito pela violência notificada foi signifi-
tanto, as mulheres de 40 a 59 anos são respon- cativamente maior no grupo de 40 a 59 anos
sáveis por 19,6% das lesões autoprovocadas. (1,8%) (tabela 2).

DIVULGAÇÃO EM Saúde PARA Debate | rio de Janeiro, n. 52, p. 72-87, out 2014
Violência contra a mulher: análise das notificações realizadas no setor saúde – Brasil, 2011 77

Tabela 2. Notificações de violência contra mulheres adultas segundo características de ocorrência e região por faixa etária. Brasil, 2011

Características Faixa etária (anos) Totala Valor de pb

20 a 39 40 a 59

(N=32.489; 74.4%) (N=11.161; 25,6%) (N=43.650; 100,0%)

N % N % N %
Ocorrência no domicílio 0,000
Não 8.039 28,8 2.141 21,8 10.180 27,0
Sim 19.892 71,2 7.672 78,2 27.564 73,0
Subtotal 27.931 100,0 9.813 100,0 37.744 100,0
Violência de repetição 0,000
Não 11.296 46,8 3.508 41,7 14.804 45,5
Sim 12.856 53,2 4.915 58,4 17.771 54,6
Subtotal 24.152 100,0 8.423 100,0 32.575 100,0
Lesão autoprovocada 0,000
Não 23.526 82,7 7.878 80,4 31.404 82,1
Sim 4.938 17,4 1.923 19,6 6.861 17,9
Subtotal 28.464 100,0 9.801 100,0 38.265 100,0
Natureza da lesão 0,000
Contusão/entorse/luxação 9.738 34,8 3.332 34,4 13.070 34,7
Corte/amputação 5.805 20,7 1.784 18,4 7.589 20,1
Fratura/traumas 1.830 6,5 631 6,5 2.461 6,5
Outros 7.164 25,6 2.469 25,5 9.633 25,6
Sem lesão 3.466 12,4 1.468 15,2 4.934 13,1
Subtotal 28.003 100,0 9.684 100,0 37.687 100,0
Segmento corporal atingido 0,000
Cabeça/pescoço 10.696 45,2 3.269 42,5 13.965 44,5
Tórax/abdome/pelve 2.985 12,6 999 13,0 3.984 12,7
Membros superiores 3.960 16,7 1.459 19,0 5.419 17,3
Membros inferiores 1.190 5,0 419 5,4 1.609 5,1
Múltiplos órgãos/regiões 4.845 20,5 1.551 20,2 6.369 20,4
Subtotal 23.676 100,0 7.697 100,0 31.373 100,0
Evolução 0,000
Alta 27.281 97,3 9.190 96,5 36.471 97,1
Evasão/fuga 426 1,5 144 1,5 570 1,5
Óbito por violência 300 1,1 175 1,8 475 1,3
Óbito por outras causas 27 0,1 16 0,2 43 0,1
Subtotal 28.034 100,0 9.525 100,0 37.559 100,0

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78 PAIVA, E. A.; SILVA, M. M. A.; NEVES, A. C. M.; MASCARENHAS, M. D. M.; FRANCO NETTO, T. L.; MALTA, D. C.

Encaminhamento no setor saúde 0,000


Ambulatório 15.046 61,1 5.013 58,6 20.059 60,4
Internação 3.921 15,9 1.383 16,2 5.304 16,0
Não 5.660 23,0 2.165 25,3 7.825 23,6
Subtotal 24.627 100,0 8.561 100,0 33.188 100,0

Fonte: Ministério da Saúde, Secretaria de Vigilância em Saúde, Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan)
a Totais divergem devido a registros sem informação ou em branco;

b Teste do qui-quadrado de Pearson.

Foram observadas diferenças significati- apresentaram proporção superior no grupo de


vas entre os tipos de violência e o grupo etário 40 a 59 anos.
das vítimas: violência física; tortura; violência Os homens apareceram como principais
sexual; financeira e econômica; negligência; autores da agressão (74,4%) nos dois grupos
intervenção legal e outros tipos. O tipo mais etários. O principal autor de agressão foi o
presente foi o de violência física (n=35.245), cônjuge (38,2%), que, somado aos demais par-
sendo mais prevalente entre as mulheres de ceiros íntimos, ultrapassa a metade das ocor-
20 a 39 anos (84,4%) e entre as mulheres de rências. Os desconhecidos foram 12,2%, com
40 a 59 anos (80,9%). Vale ressaltar o elevado proporção mais elevada entre as mulheres
número que sofreu violência psicológica/moral mais jovens (13,4%) do que nas mulheres de 40
(n=15.381). A violência sexual foi relatada em a 59 anos (12,8%).
terceiro lugar (n=2.811) e a tortura em quarto A suspeita de consumo de álcool pelo autor
(n=1.291). Foram registrados 1.012 casos de vio- de agressão foi relatada em 51,1% dos casos
lência do tipo financeira, 548 de negligência e notificados, com proporção mais elevada no
83 casos de intervenção por agente legal – que grupo de mulheres com idade entre 40 e 59

Tabela 3. Notificações de violência contra mulheres adultas segundo tipo de violência e características do agressor por faixa etária. Brasil, 2011

Características Faixa etária (anos) Totala Valor de pb

20 a 39 40 a 59

(N=32.489; 74.4%) (N=11.161; 25,6%) (N=43.650; 100,0%)

N % N % N %
Tipo de violênciac
Física 26.572 84,4 8.673 80,9 35.245 83,5 0,000
Psicológica/moral 11.321 39,8 4.060 40,8 15.381 40,1 0,077
Tortura 1.291 4,7 370 3,9 1.661 4,5 0,001
Sexual 2.811 10,2 740 7,8 3.551 9,6 0,000
Tráfico de seres humanos 29 0,1 10 0,1 39 0,1 0,982
Financeira/econômica 665 2,4 347 3,6 1.012 2,7 0,000
Negligência 371 1,4 177 1,9 548 1,5 0,000
Intervenção legal 50 0,2 33 0,4 83 0,2 0,004
Outros 2.565 9,6 1.110 11,9 3.675 10,2 0,000

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Violência contra a mulher: análise das notificações realizadas no setor saúde – Brasil, 2011 79

Provável autor da agressão


Pai 312 1,3 32 0,4 344 1,0 0,000
Mãe 261 1,1 64 0,7 325 1,0 0,010
Padrasto 130 0,5 17 0,2 147 0,4 0,000
Madrasta 30 0,1 3 0,0 33 0,1 NA
Cônjuge 10.082 38,3 3.475 37,8 13.557 38,2 0,359
Ex-cônjuge 3.398 13,4 835 9,5 4.233 12,4 0,000
Namorado 1.085 4,4 2236 2,6 1.308 3,9 0,000
Ex-namorado 867 3,5 145 1,7 1.012 3,0 0,000
Filho 222 0,9 760 8,7 982 2,9 0,000
Desconhecido 3.193 12,8 914 10,5 4.107 12,2 0,000
Irmão 844 3,4 275 3,2 1.119 3,4 0,296
Amigo/conhecido 2.675 10,7 903 10,4 3.578 10,6 0,349
Cuidador 25 0,1 25 0,3 50 0,2 0,000
Patrão/chefe 76 0,3 36 0,4 112 0,3 0,131
Pessoa com relação institu- 116 0,5 54 0,6 170 0,5 0,079
cional

Policial/agente da lei 116 0,5 30 0,4 146 0,4 0,140


Própria pessoa 4.024 15,5 1.618 18,0 5.642 16,2 0,000
Outros 1.906 7,8 855 9,9 2.761 8,4 0,000
Ingestão de bebida alcoólica pelo agressor 0,004
Não 10.384 49,4 3.473 47,5 13.857 48,9
Sim 10.623 50,6 3.846 52,6 14.469 51,1
Subtotal 21.007 100,0 7.319 100,0 28.326 100,0

Fonte: Ministério da Saúde, Secretaria de Vigilância em Saúde, Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan)
a Totais divergem devido a registros sem informação ou em branco;

b Teste do qui-quadrado de Pearson;

c Não totaliza 100%, pois um caso pode ter mais de um tipo de violência.

anos (52,6%) (tabela 3). anos, comparada com mulheres de 40 a 59


A prevalência (%) e a razão de prevalência anos (RP=0,96). As ocorrências da violência
(RP) dos principais tipos de violência contra foram mais frequentes no domicílio da vítima
mulheres adultas, segundo características se- (RP=0,95). Observa-se o cônjuge (RP=1,23)
lecionadas, estão apresentadas na tabela 4. como principal autor da violência física entre
Nas tipologias da violência, observa-se que as mulheres, e tendo ingerido bebida alcoólica
a física foi mais significativa entre as mulhe- (RP=1,13), com destaque para as regiões Norte
res da raça/cor da pele amarela ou indíge- (RP=1,17) e Sul (RP=1,49).
na (RP=1,11) e preta/parda (RP=1,17), tendo Para violência psicológica, observa-se uma
como referência as mulheres brancas. A faixa significância positiva para ocorrência no
etária de maior ocorrência foi entre 20 e 39 domicílio (RP=1,12), violência de repetição

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(RP=1,87), o cônjuge como principal autor não é o próprio cônjuge, podendo ser desco-
da agressão (RP=1,61) e ingestão de bebida nhecido. Na região Norte, ocorreu a maior
alcoólica pelo agressor com RP=1,32. Para razão de prevalência (RP=2,20), seguida das
regiões do Brasil, a violência psicológica apre- regiões Centro-Oeste, Nordeste e Sudeste. A
sentou menores frequências nas regiões Sul menor frequência ocorreu na região Sul.
(RP=0,85), Nordeste (RP=0,86) e Centro-Oeste Para a violência sob forma de tortura, houve
(RP=0,71). prevalência em mulheres da raça/cor preta/
Os casos de violência sexual, quando ob- parda (RP=1,23), em relação às mulheres
servados contra mulheres de raça/cor da pele brancas. Observa-se que a tortura ocorre mais
preta/parda foram RP=1,26. A faixa etária em mulheres mais jovens e, na maioria das
de mulheres entre 40 e 59 anos foi protetora vezes, fora dos domicílios. A ocorrência de repe-
(RP=0,76), na comparação com as mulheres tições de tortura na mesma mulher é frequen-
entre 20 e 39 anos (referência). Para esse tipo de te (RP=1,56) e o agressor principal é o cônjuge
violência (sexual), a ocorrência é mais comum (RP=1,67). O agressor desse tipo de violência
fora do domicílio, a violência geralmente não é faz ingestão de bebida alcoólica frequente
de repetição e o agressor na maioria das vezes (RP=1,61). A região Norte desponta com maior

Tabela 4. Prevalência (%) e razão de prevalência (RP) dos principais tipos de violência contra mulheres adultas segundo características selecionadas. Brasil, 2011

Características Tipo de violência

Física Psicológica Sexual Tortura

% RP(IC95%) % RP(IC95%) % RP(IC95%) % RP(IC95%)


Raça/Cor da pele
Branco 79,6 1,00 41,7 1,00 9,2 1,00 4,6 1,00
Preto/pardo 85,5 1,07 (1,05-1,10) 42,6 1,02(0,99-1,05) 11,6 1,26 (1,18-1,35) 5,6 1,23 (1,11-1,36)
Amarelo/indígena 88,4 1,11 (1,01-1,22) 40,4 0,97 (0,83-1,12) 10,3 1,13 (0,84-1,52) 6,3 1,37 (0,94-2,01)
Faixa etária (anos)
20 a 39 84,4 1,00 39,8 1,00 10,2 1,00 4,7 1,00
40 a 59 80,9 0,96 (0,94-0,98) 40,8 1,03 (0,99-1,06) 7,8 0,76 (0,70-0,82) 3,9 0,82 (0,73-0,92)
Ocorrência no domicílio
Não 84,7 1,00 39,6 1,00 19,6 1,00 5,9 1,00
Sim 80,8 0,95 (0,93-0,98) 44,5 1,12 (1,08-1,17) 6,3 0,32 (0,30-0,34) 4,6 0,78 (0,70-0,86)
Violência de repetição
Não 82,1 1,00 30,3 1,00 16,2 1,00 4,2 1,00
Sim 82,9 1,01 (0,99-1,03) 56,5 1,87 (1,80-1,94) 6,3 0,39 (0,36-0,42) 6,5 1,56 (1,41-1,73)
Principal agressor: cônjuge
Não 74,8 1,00 33,2 1,00 11,8 1,00 3,8 1,00
Sim 91,8 1,23 (1,20-1,26) 53,4 1,61 (1,56-1,66) 4,2 0,35 (0,32-0,39) 6,3 1,67 (1,51-1,85)
Ingestão de bebida alcoólica pelo agressor
Não 79,2 1,00 37,2 1,00 8,8 1,00 4,3 1,00
Sim 89,2 1,13 (1,10-1,16) 49,0 1,32 (1,27-1,37) 10,7 1,21 (1,12-1,31) 6,8 1,61 (1,44-1,79)

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Violência contra a mulher: análise das notificações realizadas no setor saúde – Brasil, 2011 81

Região de residência
Sul 78,3 1,00 44,7 1,00 7,6 1,00 6,2 1,00
Norte 91,7 1,17 (1,11-1,24) 38,2 0,85 (0,79-0,93) 16,8 2,20 (1,91-2,54) 8,3 1,33 (1,10-1,60)
Nordeste 83,4 1,07 (1,03-1,11) 44,6 1,00 (0,95-1,05) 11,8 1,55 (1,39-1,73) 4,1 0,65 (0,56-0,77)
Sudeste 84,7 1,49 (1,08-1,11) 38,5 0,86 (0,83-0,90) 8,6 1,13 (1,03-1,24) 3,4 0,55 (0,49-0,62)
Centro-Oeste 83 1,14 (1,06-1,11) 31,7 0,71 (0,66-0,76) 12 1,57 (1,38-1,79) 5,8 0,94 (0,79-1,11)
Fonte: Ministério da Saúde, Secretaria de Vigilância em Saúde, Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan)
IC95%: intervalo de confiança de 95%. Diferenças estatisticamente significantes encontram-se destacadas em negrito (p<0,05)

razão de prevalência (RP=1,33) e as regiões contra as mulheres é evitável e prevenível


Nordeste (RP=0,65) e Sudeste (RP= 0,55) com (WHO, 2013).
a menor. Quanto ao tipo de violência sofrida, estudos
da OMS em diversos países apontaram que 15 a
71% das mulheres entrevistadas sofreram vio-
Discussão lência física e/ou sexual e que as prevalências
variaram conforme os vários países estudados
Os dados do presente estudo mostram que, no (WHO, 2013).
Brasil, entre mulheres adultas mais jovens, a Entretanto, dados da prevalência da
violência do tipo intrafamiliar ocorre, predo- violência por parceiro íntimo, no Brasil,
minantemente, na residência; é comumente produzidos a partir do estudo multicêntrico
perpetrada por parceiro íntimo (cônjuge, da OMS (SCHRAIBER et al., 2007), mostraram
ex-cônjuge, namorado e ex-namorado); e é que, entre mulheres de 15 a 49 anos de
de repetição em cerca de metade dos casos. idade, 46,6% das residentes em zona urbana
Os tipos mais frequentes são de violência referiram ao menos uma forma de violência
física (mais da metade), seguidos de violên- por parceiro íntimo, enquanto na zona rural
cia psicológica, sexual e tortura. A raça/cor a prevalência foi de 54,2%. O estudo indicou
predominante é a parda/preta para a maioria que a violência psicológica foi o evento mais
das violências sofridas, exceto a violência frequente, tanto na zona urbana quanto na
psicológica, que não apresentou diferenças zona rural, no último ano anterior à entrevista
segundo raça/cor. O uso de álcool pelo pro- (54,9% e 44,8%, respectivamente) e na vida
vável autor de agressão ocorreu em mais da (37,6% e 32%, respectivamente). Os dados de
metade dos casos. A região Sudeste é a que notificação do Viva aqui analisados mostraram
mais notifica, por ter a vigilância mais ativa. a predominância das ocorrências de violência
A violência contra a mulher é um fenôme- física; em cerca de um quarto, violências
no global. Estima-se que 35% das mulheres psicológicas; e em cerca de 5%, sexual. Os
acima de 15 anos já sofreram violência física ou índices são concordantes com os estudos
sexual por parceiro íntimo ou violência sexual globais e diferentes dos estudos de Schraiber
por não parceiro. No mundo, a prevalência de et al. (2007).
violência por parceiro íntimo é estimada em O fato de a notificação se dar em serviços
30%, embora varie entre regiões, países e entre de saúde pode ampliar a notificação das agres-
as comunidades. Na região das Américas, essa sões, já que as vítimas que sofreram lesões em
prevalência é estimada em 29,8%. Segundo a função da violência tendem a procurar primei-
OMS, essa variação demonstra que a violência ro esses tipos de serviços. Outro viés pode ser

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a invisibilidade da violência psicológica contra et al. (2010) encontraram que as mulheres per-
a mulher nos serviços de saúde (KIND et al., 2013) ceberam o uso de álcool por seus parceiros
e o fato de uma parcela dos profissionais de- em 44,6% dos episódios de violência e que os
monstrar inabilidade em identificar e condu- relatos de homens alcoolizados durante os
zir casos de violência doméstica, deixando de eventos de violência por parceiro íntimo, quer
registrar a ocorrência de violência psicológica seja na condição de perpetrador, quer seja de
por não reconhecê-la como uma demanda aos vítima ou na violência mútua, foi quatro vezes
serviços de saúde e dos demais equipamentos superior ao relatado entre mulheres (ZALESKI et
de atenção e proteção. al., 2010).
Diversos estudos apontam que a violên- Os percentuais de lesões autoprovocadas
cia sexual afeta mais as mulheres que os e da própria pessoa como autora da agressão,
homens, como demonstraram os dados do cerca de um quinto, demonstram a necessida-
Viva. (FELIZARDO; ZÜRCHER; MELO, 2006; MINAYO, 2005). de de atenção aos sinais, sintomas e fatores de
Autores sinalizam que cerca de 25% das mu- risco do sofrimento psíquico nessa população.
lheres podem ter sido vítimas de violência Reichenheim et al. (2011) destacam a
sexual do seu parceiro e que um terço das associação com a etnia e a condição econômica:
meninas adolescentes foram forçadas a ter sua mulheres e crianças negras e pobres são as
primeira experiência sexual (GOMES; MINAYO; SILVA, principais vítimas da violência doméstica. O
2005). estudo atual mostrou maior frequência de
A violência contra as mulheres, em geral, mulheres pardas e negras vítimas de violência
é cometida por pessoas do convívio familiar, física, sexual e tortura, enquanto, na violência
conforme estabelecido no atual estudo (WHO, psicológica, não houve diferença segundo
2013). A OMS ressalta, ainda, que o agressor, na raça/cor.
maioria das vezes, é o parceiro íntimo (WHO, A maioria dos casos evolui para alta, entre-
2013). Segundo os dados deste estudo, os côn- tanto, cerca de 16% precisaram ser internadas,
juges, ex-cônjuges, namorado e ex-namorado além do registro de mais de 300 óbitos, reve-
somam mais da metade das ocorrências. lando a gravidade das ocorrências.
A relação entre gênero e violência é com- A notificação da violência contra a mulher
plexa. Os diferentes papéis e comportamentos é realizada nas unidades de saúde, no entanto,
de mulheres e homens, crianças e adultos, são cabe à mulher, em respeito à sua autonomia,
moldados e reforçados pelas normas de gênero decidir pela denúncia nos órgãos de respon-
dentro da sociedade. Essas são as expectativas sabilização e por sua submissão aos exames
sociais que definem comportamento apropria- médico-periciais. Inclusive, para fins de reali-
do para mulheres e homens (por exemplo, em zação de aborto de conceptos decorrentes de
algumas sociedades, o sexo masculino está as- violência sexual.
sociado ao estereótipo de ser duro e agressivo A maior frequência de notificações na
e de ter múltiplos parceiros sexuais). As dife- região Sudeste se deve à implantação da vi-
renças de gênero, papéis e comportamentos gilância e de maior adesão dos gestores e das
muitas vezes criam desigualdades nas relações, equipes técnicas ao tema. Portanto, não se
definindo papéis de subordinação das mulhe- deve fazer comparações regionais, ou mesmo
res aos homens. Assim, em muitas sociedades, entre Unidades Federadas e municípios, pois
mulheres de fato são vistas como subordinadas existem momentos distintos na implementa-
aos homens (WHO, 2010). ção da Vigilância de Violências. Desse modo,
A suspeita do uso de álcool pelo provável uma maior frequência de episódios de vio-
autor de agressão foi superior a 50% dos casos lência não deve ser tomada como um maior
registrados. Em estudo sobre a violência por coeficiente populacional de violências. Essa
parceiros íntimos e consumo e álcool, Zaleski interpretação é temerária nos anos iniciais de

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Violência contra a mulher: análise das notificações realizadas no setor saúde – Brasil, 2011 83

implantação de um sistema de notificação. e políticas que apoiem e protejam as pessoas


Durante décadas, promover a igualdade afetadas (por exemplo, implementar ordens
de gênero tem sido uma parte fundamental de proteção, unidades de proteção à criança e à
da prevenção da violência. Isso incluiu inter- família, equipes de intervenção especializadas,
venções que confrontam crenças arraigadas e abrigos para mulheres e familiares vinculados
normas culturais a partir das quais desigualda- aos tribunais); melhorar a resposta da polícia e
des de gênero foram construídas, e desenvol- de outros funcionários da justiça criminal para
ver esforços para envolver todos os setores da casos de violência contra as mulheres; e me-
sociedade em corrigir essas desigualdades são lhorar os direitos das mulheres no casamento,
iniciativas pensadas ​para reduzir a violência divórcio, propriedade e herança, assim como
de gênero. Estudos apontam que promover oferecer Apoio à Criança (MORRISON; ELLSBERG;
igualdade de gênero é um elemento essencial BOTT, 2009).
na prevenção da violência e que intervenções No Brasil, a Lei Maria da Penha avançou no
em escolas são muito importantes, buscando sentido de dar transparência ao tema da vio-
trabalhar com crianças atitudes e comporta- lência contra a mulher. A implantação do Viva,
mentos que visam a prevenir abusos sexuais com os respetivos avanços nas pactuações
e a reverter atitudes e comportamentos, esta- com estados e municípios para a implantação
belecendo relações igualitárias e mudanças da notificação da violência, tem avançado nos
de atitudes frente às desigualdades de gênero. registros de notificação e na estruturação de
Intervenções comunitárias que buscam ca- serviços locais de proteção às vítimas de vio-
pacitar mulheres, com o objetivo de torná-las lências. A notificação da violência é um im-
autossuficientes economicamente, também portante passo em busca de uma sociedade
são efetivas. Além de intervenções na mídia, mais igualitária, eliminando a desigualdade de
como campanhas de sensibilização desafiando gênero (BRASIL, 2004, 2011).
normas de gênero e atitudes e sensibilizando Desigualdades de gênero podem ter um
toda a sociedade quanto ao comportamento grande e abrangente impacto na sociedade.
violento contra mulheres e a como impedi-lo. Por exemplo, podem afetar as oportunidades
Torna-se, ainda, importante avançar em leis e de emprego e promoção, os níveis de renda,
políticas de promoção da igualdade de gênero a participação, a representação política e a
(ILIKA, 200; GARCIA-MORENO et al., 2002). educação. Muitas vezes, as desigualdades de
Diversos acordos internacionais têm gênero aumentam o risco de atos de violência
obrigado os Estados a tomar medidas para dos homens contra as mulheres. Por exemplo,
eliminar a violência de gênero contra as as crenças tradicionais de que homens têm o
mulheres (COMMONWEALTH SECRETARIAT, 2003; direito de controlar as mulheres tornam as
MORRISON; ELLSBERG; BOTT, 2009). Esses incluem a mulheres e meninas vulneráveis emocional-
Convenção sobre a Eliminação de Todas as mente e aumentam atos de violência sexual
Formas de Discriminação Contra a Mulher, praticados por homens (SCHRAIBER et al., 2007; KIND
o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e et al., 2013).
Políticos e o Pacto Internacional sobre Direitos
Econômicos, Sociais e Culturais (MORRISON;
ELLSBERG; BOTT, 2009). Mudanças significativas Conclusão
também estão em andamento em todo o
mundo para fortalecer as leis e políticas na- Entre as políticas e ações de prevenção de
cionais. Entre elas estão as leis que criminali- violência e promoção da saúde, destacamos
zam a violência contra as mulheres (violência a Política Nacional de Promoção à Saúde de
por parceiro íntimo, por exemplo, estupro em 2006 como um importante apoio no desen-
casamento, o tráfico para a prostituição); leis volvimento e na articulação intrasetorial

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para ações e programas de prevenção de No que se refere às ações intersetoriais


violências (BRASIL, 2006). Em meio às ações de prevenção de violência, destacam-se
da Política de Promoção à Saúde, destaca- marcos legais como: Plano de Ação para
mos a inclusão de indicadores de monito- o Enfretamento da Violência Contra a
ramento, como a implantação dos Núcleos Pessoa Idosa (2005); Política Nacional de
de Prevenção de Violências e Promoção Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas (Decreto
da Saúde, no Pacto pela Saúde, entre 2008 nº 5.948, de 26/10/2006); Lei Maria da Penha
a 2011, e a partir de 2011, no Contrato (Lei nº 11.340, de 7/8/2006), Política Nacional
Organizativo de Ação Pública (Coap), onde de Saúde Integral da População Negra
foram inseridos indicadores de notificação (Portaria MS/GM n° 992, de 13/5/2009);
de violência doméstica, sexual e/ou outras Política Nacional de Saúde Integral de
violências. A Rede Nacional de Prevenção Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e
das Violências e Promoção da Saúde foi Transexuais – LGBT (2008); Política de
criada em mais de 1300 municípios, em Atenção Integral à Saúde da Mulher; Linha de
conformidade com a Política Nacional de Cuidado para a Atenção à Saúde de Crianças,
Redução da Morbimortalidade por Acidentes Adolescentes e suas Famílias em Situação de
e Violências, e visa à atenção integral e pro- Violências; entre outros (MALTA et al., 2014). Essas
teção às pessoas e suas famílias em situação ações e políticas têm ampliado o compromisso
de violência (MALTA; CASTRO, 2009). Entre 2006 e dos gestores com o tema da promoção da
2012, foram financiados cerca de 1300 muni- saúde e da prevenção de violência.
cípios contendo ações de prevenção de vio- Os dados de notificação de violência contra
lência e acidentes e de cultura da paz. Nos a mulher atendida nos serviços de saúde
últimos anos, foram realizadas cinco edições aproximam-se dos encontrados em pesquisas
do Curso de Educação a Distância (EAD) nacionais e internacionais e reiteram a neces-
em Promoção da Saúde, uma Parceria com sidade de qualificar a atenção em saúde para
a Universidade de Brasília, e cinco edições a identificação e o cuidado das mulheres em
do curso de capacitação de prevenção de situação de violência, de forma a intervir na
violências e acidentes, em parceria com o prevenção da violência por meio da articu-
Centro Latino-Americano de Estudos sobre lação de políticas públicas intersetoriais que
Violência e Saúde Jorge Careli (Claves), da visem à promoção da autonomia das mulheres
Fundação Oswaldo Cruz, para o desenvol- enquanto sujeitos de direitos e para promover
vimento do curso à distância Impactos da a equidade de gênero. s
Violência na Saúde.

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Violência contra a mulher: análise das notificações realizadas no setor saúde – Brasil, 2011 85

Referências

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DIVULGAÇÃO EM Saúde PARA Debate | rio de Janeiro, n. 52, p. 72-87, OUT 2014
88 artigo original | original article

Política de saúde mental no novo contexto do


Sistema Único de Saúde: regiões e redes
Mental health policy on the new context of the Unified Health System:
regions and networks

Jaqueline Tavares de Assis1, Cláudio Antônio Barreiros2, Andréa Borghi Moreira Jacinto3, Roberto
1 Mestre em Processos
de Desenvolvimento e
Tykanori Kinoshita4, Pedro de Lemos Macdowell5, Taia Duarte Mota6, Fernanda Nicácio7,
Saúde pela Universidade Mariana da Costa Schorn8, Isadora Simões de Souza9, Alexandre Teixeira Trino10
de Brasília (UnB) – Brasília
(DF), Brasil. Assessora
técnica do Ministério da
Saúde – Brasília (DF), Brasil.
jaqueline.assis@saude.gov.br

2 Mestre em Trabalho
e Desenvolvimento
Sustentável pela
Universidade Federal de RESUMO O Ministério da Saúde, por meio da sua Coordenação Nacional de Saúde Mental, desde
Alagoas (Ufal) – Maceió
(AL), Brasil.  Assessor o início da década de 1990 até os dias atuais, vem em uma trajetória contínua, trabalhando na
Técnico do Ministério da construção dos instrumentos para a implantação do novo modelo e na promoção dos valores e
Saúde – Brasília (DF), Brasil.
claudio.barreiros@saude.gov.br conceitos que emergiram da relação com o movimento social historicamente conhecido como
3 Mestre em Antropologia
Movimento da Luta Antimanicomial. Relação complexa por definição, entre Movimento
Social pela Universidade Social e Instituição, caracterizada por antagonismos, complementariedade, concorrência,
Estadual de Campinas circularidade, mas que caminha em uma direção comum, em um moto contínuo de crítica das
(Unicamp). Analista
de Políticas Sociais do instituições e sua superação prática por novos modos de organizar e trabalhar, gerando novas
Ministério da Saúde – instituições e novas sociabilidades. Neste artigo, apresentamos uma perspectiva do momento
Brasília (DF), Brasil.
andrea.jacinto@saude.gov.br atual da Política de Saúde Mental, desde o ponto de vista da Coordenação de Saúde Mental,
considerando o quadriênio 2011-2014, e apontando algumas direções futuras.
4 Doutor em Saúde
Coletiva pela Universidade
Estadual de Campinas PALAVRAS-CHAVE Saúde Mental; Sistema Único de Saúde; Políticas de saúde; Serviços de
(Unicamp) – Campinas
(SP), Brasil. Coordenador saúde mental; Reabilitação.
Geral de Saúde Mental
Álcool e outras Drogas
no Ministério da Saúde – ABSTRACT Since the 90´s the Ministry of Health of Brazil, through National Mental Health
Brasília (DF), Brasil. Coordination, has been working in a continuous path on the construction of instruments to
roberto.tykanori@saude.gov.br
develop a new model and promotion of values and concepts that emerge from the contact of
5Mestre em Antropologia the historically known social movement called Movimento da Luta Antimanicomial. With
Social pela Universidade
de Brasília (UnB) – Brasília a complex relation, Social Movement and Coordination are characterized by antagonisms,
(DF), Brasil.  Analista complementarity, competition and circularity, within a common direction of continuous criticism
de Políticas Sociais do
Ministério da Saúde – towards institutions and the overcoming of new forms of organization and work, creating
Brasília (DF), Brasil.. new institutions and sociability. This article presents a current perspective on Mental Health
pedro.macdowell@saude.gov.br
Brazilian Policy from National Mental Health Coordination, regarding the quadrennium 2011-
6 Mestre em Enfermagem
2014 and indicating some new directions.
Psiquiátrica pela Escola
de Enfermagem da
Universidade de São Paulo KEYWORDS Mental Health; Unified Health System; Health policy; Mental Health Services;
(EEUSP) – São Paulo (SP),
Brasil.  Analista de Políticas Rehabilitation.
Sociais do Ministério da
Saúde – Brasília (DF), Brasil.
taia.mota@saude.gov.br

DIVULGAÇÃO EM Saúde PARA Debate | rio de Janeiro, n. 52, p. 88-113, OUT 2014
Política de saúde mental no novo contexto do Sistema Único de Saúde: regiões e redes 89

Introdução quatro Conferências Nacionais de Saúde


Mental (BRASIL, 1988, 1992; SUS, 2002a, 2010).
A promulgação da Lei nº 10.216, em abril de A Política Nacional de Saúde Mental, se-
2001 (BRASIL, 2001), após 12 anos de debates e guindo as diretrizes da reforma psiquiátrica,
tramitação no Congresso Nacional, instituiu de superação do modelo asilar e de garantia
a reforma psiquiátrica como política do e promoção dos direitos de cidadania das
Estado brasileiro (BRASIL, 2005a). Ao assegurar pessoas com transtornos mentais, transfor-
os direitos de cidadania das pessoas com mou o cenário da atenção pública em saúde
transtornos mentais e redirecionar o mental no País na última década. Dentre as
modelo de atenção, priorizando os serviços principais inovações, vale destacar: a adoção
comunitários, determinou uma exigência do território como conceito organizador da
ético-técnica de buscar garantir o ‘cuidar atenção; a contínua expansão dos Centros
em liberdade’, e abriu um conjunto de de Atenção Psicossocial (CAPS), em suas
desafios, inclusive no campo jurídico, para diferentes modalidades – CAPS I; CAPS II;
a efetivação da cidadania das pessoas com a CAPS III; Centro de Atenção Psicossocial
experiência do sofrimento, decorrentes de Álcool e Drogas (CAPSAD); e Centro
transtornos mentais e/ou com problemas de Atenção Psicossocial Infantojuvenil
relacionados ao uso de drogas. Como (CAPSIJ) –, ampliando o acesso e a interio-
‘processo social complexo’ (ROTELLI et al., rização de serviços; a redução significativa
7 Doutora em Saúde
Coletiva pela Universidade
1990), a reforma psiquiátrica insere-se no do número de leitos e de hospitais psiquiá- Estadual de Campinas
contexto dos desafios da consolidação do tricos; a criação do Programa de Volta para (Unicamp) – Campinas
(SP), Brasil. Coordenadora
Sistema Único de Saúde (SUS) e, de forma Casa, com o auxílio-reabilitação psicossocial Adjunta de Saúde do
mais ampla, participa das políticas públicas instituído pela Lei nº 10.708/03; e a reversão, Ministério da Saúde –
Brasília (DF), Brasil.
de promoção de direitos, de superação das desde 2005, dos recursos financeiros, ante- fernanda.nicacio@saude.gov.br
desigualdades sociais e de desenvolvimento riormente destinados quase exclusivamente 8 Mestre em Psicologia

social. O processo encontra-se em curso e à assistência hospitalar (BRASIL, 2003; 2005a; 2007; Social e Institucional pela
apresenta ampla participação social, com 2011). O impacto objetivo destas medidas pode Universidade Federal
do Ria Grande do Sul
os movimentos de luta antimanicomial, ser estimado pela quantidade de atendimen- (UFRGS) – Porto Alegre
com destacado protagonismo de usuários tos realizados: em 2002, foram registrados (RS), Brasil.  Analista
Técnica de Políticas Sociais
e familiares, com a singular insígnia em torno de 400 mil atendimentos de saúde do Ministério da Sáude –
‘Por uma sociedade sem manicômios’. A mental pelo SUS; em 2010, esses registros ul- Brasília (DF), Brasil.
mariana.schorn@saude.gov.br
ativa participação desses atores tem se trapassaram a marca de 20 milhões de aten-
9 Especialista em
evidenciado nas instâncias de controle social dimentos, isto é, uma expansão de 50 vezes
análise institucional/
do SUS e pela participação na realização de em menos de 10 anos. Esquizoanálise pela Escola
Superior de Administração,
Direito e Economia (Esade)
– Porto Alegre (RS), Brasil.
Assessora técnica do
Ministério da Saúde –
Brasília (DF), Brasil.
isadora.souza@saude.gov.br

10 Mestre em Saúde
Coletiva pela Universidade
Federal Fluminense
(UFF) - Niterói (RJ),
Brasil. Coordenador
Adjunto de Saúde Mental
Álcool e outras Drogas
do Ministério da Saúde –
Brasília (DF), Brasil
alexandre.trino@saude.gov.br

DIVULGAÇÃO EM Saúde PARA Debate | rio de Janeiro, n. 52, p. 88-113, OUT 2014
90 ASSIS, J. T.; BARREIROS, C. A.; JACINTO, A. B. M.; KINOSHITA, R. T.; MACDOWELL, P. L.; MOTA, T. D.; NICÁCIO, F.; SCHORN, M. C.; SOUZA, I. S.; TRINO, A. T.

Gráfico 1. Relação entre a porcentagem do total de gastos da saúde mental/SUS com os hospitais psiquiátricos e com a
atenção comunitária/territorial, de 2002 a 2013

90
79,39
77,32
80 75,24
70,57 71,09
66,71 65,54 67,71
70 61,83 63,35
55,92
60
% do total de gastos
52,77
50

40 47,23 44,08
30 38,17 36,65 34,46
33,29 32,29 29,44
20 28,91
24,76 22,16 20,61
10

0
2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013

Gastos em Atenção Comunitária/Territorial

Gastos Hospitalares

Fontes: Subsecretaria de Planejamento e Orçamento (SPO)/MS, Departamento de Informática do Sistema Único de Saúde (DATASUS),
Coordenação de Saúde Mental, Álcool e Outras Drogas/Departamento de Ações Programáticas Estratégicas (DAPES)/SAS/MS, 2014

“Cidadania e loucura, histórica e social- Constitui-se uma arena em que se enfren-


mente, se produziram como espaços niti- tam visões de mundo concorrentes, que, em
damente separados”, mas a afirmação do síntese, são paradigmas reducionistas versus
‘louco’ como ‘sujeito de direitos’ proposta paradigmas da complexidade.
pela reforma psiquiátrica exige uma profun- O Ministério da Saúde (MS), por meio da
da transformação das instituições: esta arti- sua Coordenação Nacional de Saúde Mental,
culação do campo da loucura com o campo desde o início da década de 1990 até os dias
dos direitos insere a reforma psiquiátrica no atuais, vem trabalhando em uma trajetória
contexto da reconstrução das instituições contínua na construção dos instrumentos
democráticas e das “políticas públicas que para a implantação do novo modelo e na pro-
pretendem a extensão dos direitos univer- moção dos valores e conceitos que emergiram
sais, mas produz algo novo ao enunciar o da relação com o movimento social historica-
louco como sujeito de direitos” (NICACIO, 1994, mente conhecido como Movimento da Luta
p.22). Os tradicionais conhecimentos, insti- Antimanicomial. Relação complexa por defi-
tuições e valores construídos em torno do nição, entre Movimento Social e Instituição,
objeto abstrato ‘doença’ e suas correspon- caracterizada por antagonismos, comple-
dentes relações de tutela e de invalidação, mentariedade, concorrência, circularidade,
assim como os marcos jurídicos sobre os mas que caminha em uma direção comum,
quais se assentam o contraditório mandato em um moto contínuo de crítica das institui-
social, tensionado entre a delegação de cura ções e sua superação prática por novos modos
e de custódia, são postos à crítica para serem de organizar e trabalhar, gerando novas insti-
substituídos por novas práticas (BASAGLIA, 1985). tuições e novas sociabilidades.

DIVULGAÇÃO EM Saúde PARA Debate | rio de Janeiro, n. 52, p. 88-113, out 2014
Política de saúde mental no novo contexto do Sistema Único de Saúde: regiões e redes 91

Neste artigo, apresentamos uma pers- As ações de saúde mental passam a fazer
pectiva do momento atual da Política de parte do conjunto de exigências fundamentais
Saúde Mental, desde o ponto de vista da para a instituição das regiões de saúde.
Coordenação de Saúde Mental, conside- Ao mesmo tempo, o Ministério da Saúde
rando o quadriênio 2011-2014, e apontando adotou a estratégia da organização do SUS
algumas direções futuras. a partir da criação das RAS, com sub-redes
temáticas. Assim, a Portaria GM, 3.088, de
dezembro de 2011, republicada em maio de
Reforma Psiquiátrica 2013 (BRASIL, 2013a), institui a Rede de Atenção
e as Redes de Atenção Psicossocial (RAPS). O conceito de trabalho
em rede, integrante histórico das proposições
Psicossocial da reforma psiquiátrica, inseriu-se no novo
cenário político-institucional da saúde.
Em junho de 2011, a promulgação do Decreto A RAPS é pautada pelos princípios do
nº 7.508/11 regulamentou a Lei nº 8.080/90 e respeito aos direitos humanos; pela garantia
dispôs sobre “a organização do SUS, o planeja- de autonomia e liberdade; pela promoção
mento da saúde, a assistência à saúde e a articu- da equidade, do exercício da cidadania e
lação interfederativa” (BRASIL, 2011a, p. 4) definindo, da inclusão social; e pelo enfrentamento de
entre outros aspectos: região de saúde como estigmas e preconceitos. Dentre as diretrizes e
os objetivos propostos destacam-se, também: a
[...] espaço geográfico contínuo constituído garantia do acesso e da qualidade dos serviços
por agrupamentos de municípios limítrofes, e, no que se refere à problemática relacionada
delimitado a partir de identidades culturais, à dependência de álcool e drogas, a perspectiva
econômicas e sociais [...] com a finalidade de redução de danos, com cuidado territorial,
de integrar a organização, o planejamento e a humanizado, integral e multiprofissional, sob
execução de ações e serviços de saúde (BRASIL, a lógica interdisciplinar e intersetorial, com
2011a, p. 4); participação e controle social de usuários e de
familiares. É importante destacar o caráter
e Redes de Atenção à Saúde (RAS) como o “con- territorial da rede, centrada nas necessidades
junto de ações e serviços de saúde articulados concretas das pessoas, sendo responsável
em níveis de complexidade crescente, com a pelo cuidado continuado e pela promoção de
finalidade de garantir a integralidade da as- reinserção social pelo trabalho, pela renda e
sistência à saúde” (BRASIL, 2011a, p. 5). Definem-se, pela moradia solidária (BRASIL, 2013a).
aqui, duas novas referências para o desenvolvi- Com esta perspectiva, compõem a RAPS
mento, a implantação e o financiamento do SUS: sete componentes, com diversos pontos de
a região e as RAS. atenção regulamentados por normativas es-
O Decreto nº 7.508/11 estabeleceu, também, pecíficas, a saber: Atenção Básica; atenção
um novo contexto institucional para a efe- psicossocial; atenção de urgência e emergên-
tivação da atenção psicossocial ao exigir, no cia; atenção residencial de caráter transitório;
Artigo 5o, que as ‘regiões de saúde’, para serem atenção hospitalar em hospitais gerais; estra-
instituídas, tégias de desinstitucionalização; e reabilitação
psicossocial (BRASIL, 2013a).
devem conter, no mínimo, ações e serviços A efetivação das diretrizes e dos objetivos
de: atenção primária, urgência e emergência, da rede de atenção psicossocial e de um
atenção psicossocial, atenção ambulatorial trabalho em rede não se dá pela somatória
especializada e hospitalar, e vigilância em de pontos de atenção implantados nem pelo
saúde (BRASIL, 2011a, p. 6). elenco organizativo dos componentes ou,

DIVULGAÇÃO EM Saúde PARA Debate | rio de Janeiro, n. 52, p. 88-113, OUT 2014
92 ASSIS, J. T.; BARREIROS, C. A.; JACINTO, A. B. M.; KINOSHITA, R. T.; MACDOWELL, P. L.; MOTA, T. D.; NICÁCIO, F.; SCHORN, M. C.; SOUZA, I. S.; TRINO, A. T.

ainda, pela simples modernização do circuito adolescentes e jovens e de saúde da pessoa


assistencial. A RAPS se efetiva – isto é, só com deficiência.
existe – na dependência de pessoas (de Dessa forma, a proposição de redes
pontos de atenção diversos) que se conectam aponta para o conjunto de possibilidades de
e se coordenam com uma finalidade comum. recursos e de respostas a serem conjugadas,
A RAPS existe em função de projetos, seja associadas e coordenadas de modo a produ-
um Projeto Terapêutico Singular (PTS), seja zirem ‘transformações nas realidades dos
uma festa ou intervenção cultural em um territórios e transformar a experiência do
determinado território. Quando se chega ao sofrimento’ na vida das pessoas. Ao mesmo
objetivo, desfaz-se esta rede até o próximo tempo, implica a necessidade de superação
projeto e a formação de uma nova rede. Assim, do isolamento das práticas dos serviços, mo-
a RAPS tem duas dimensões: uma normativo- bilizando saberes e recursos de usuários,
institucional, que afirma uma unidade familiares e instituições do território para se
institucional da rede; outra operacional, conjugarem em novas configurações pessoas-
prática, concreta, que depende das relações -equipes-serviços-contextos em torno de
efetivas entre as pessoas. ‘projetos comuns’. A proposição de formar as
É importante destacar que nessa nova redes visa promover um agir coordenado para
configuração das RAPS, os hospitais psiqui- produzir um ‘devir’ comum.
átricos não constituem pontos de atenção e
estão colocados como objeto do componente
de desinstitucionalização. Em consonância Articulação interfederativa
com os princípios e as diretrizes da reforma
psiquiátrica e da Lei nº 10.216/01 (BRASIL, 2001), a A implantação das regiões e das RAPS
RAPS tem de constituir práticas efetivamente dentro do novo quadro institucional exige
substitutivas ao modelo asilar, assegurando que os três níveis de gestão do SUS – federal,
o ‘cuidado em liberdade’ em serviços comu- estadual e municipal – estabeleçam mecanis-
nitários. Trata-se de assumir a responsabili- mos de pactuação adequados. Um dos me-
dade pela saúde mental de um determinado canismos propostos foi a criação de Grupos
território e desenvolver a RAPS de modo a Condutores das Redes Temáticas, instância
desconstruir na prática a necessidade dos onde os gestores se articulam de modo a
manicômios. produzir consensos em torno de Planos de
O compromisso ético e sanitário de buscar Ação da RAPS. Para que o Ministério da
dialogar, interagir e responder à multidimen- Saúde, através da Coordenação Geral de
sionalidade das necessidades das pessoas com Saúde Mental, pudesse estar presente com
a experiência da complexidade do sofrimento regularidade nesses fóruns, a equipe foi am-
decorrente de transtornos mentais – inclusive pliada de modo que cada um dos 27 estados
aqueles relacionados ao abuso e/ou depen- tivesse um profissional dedicado às ques-
dência de drogas – em seus contextos da vida, tões locais. Esta aproximação entre federa-
implica a contínua tessitura, nos territórios, de ção, estados e municípios tem permitido a
respostas concretas, coordenadas, integradas, formação de uma visão geral da reforma psi-
abrangentes e plurais, o que exige necessaria- quiátrica no Brasil e os debates que ocorrem
mente, a articulação intra e intersetorial. No dessas instâncias alimentam a compreensão
contexto do SUS, a Coordenação Nacional de da enorme diversidade institucional, cultu-
Saúde Mental tem interfaces com os campos ral e social do país. O desafio está em combi-
da Atenção Básica, hospitalar, de urgência e nar as diretrizes gerais da política nacional
emergência; com as políticas públicas de saúde com as particularidades e especificidades
no sistema prisional de saúde de crianças, das regiões.

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Política de saúde mental no novo contexto do Sistema Único de Saúde: regiões e redes 93

Agregando novos marcos ‘Guerra às drogas’ acumulou muitos


referenciais para a Política fracassos traduzidos em muitos recursos
dispendidos com baixa efetividade e uma
Nacional de Saúde Mental imensa contabilidade de vidas perdidas,
violência, corrupção, ascensão de
A expansão da RAPS se dá no âmbito organizações criminosas. Está havendo
do aumento da extensão geográfica, uma mudança de perspectiva: até então,
mas também no âmbito da amplitude se considerava que os males da sociedade
de questões postas pela busca da ga- (pobreza, violência e desordem) tinham a
rantia de direitos e emancipação de sua origem no uso de drogas e, portanto,
modo universal, que coloca desafios estas deveriam ser combatidas para a
para a preservação de particularidades solução daqueles. Atualmente, o foco
de diversos segmentos da sociedade na deslocou-se para as características da
composição do que é comum. Daí que a dinâmica social, em termos de coesão ou
Política de Saúde Mental vem criando fragmentação do corpo social e considera-
dispositivos para acolher as questões se que os efeitos do uso de drogas e das
das populações tradicionais (popula- atividades criminosas variam de acordo
ções indígenas, quilombolas, ribeiri- com esta dinâmica. As sociedades mais
nhos) negra, lésbicas, gays, bissexuais, coesas se mostram mais resilientes aos
travestis, transexuais, da população em efeitos das drogas e do crime, ao passo
situação de rua. que aquelas sociedades cujo corpo social
é fragmentado, são mais vulneráveis.
Esta mudança de perspectiva implica em
Da coerção à coesão: uma reformulação dos referenciais das
desafios do campo da políticas públicas: busca-se o aumento
da coesão social e não mais a eliminação
atenção às pessoas com das drogas. Supõe-se que o consumo de
necessidades relacionadas substâncias que alteram vivências como
à dependência de álcool e fato cultural, problemático ou não, assim
drogas como a ocorrência de transgressões e
crimes, são fenômenos que não podem
Na história da reforma psiquiátrica, as ser eliminados, mas que é possível
questões relacionadas aos problemas de- minimizar os seus efeitos deletérios
correntes do uso e dependência de drogas na sociedade (UNODC, 2009). O Programa
ficaram à margem da agenda principal, Crack, é Possível Vencer, lançado ao final
voltada para a questão da desinstituciona- de 2011, foi gerado em meio a esse debate
lização dos manicômios. Na última década, mundial, que levou a essa mudança de
aquelas ganharam destaque nas preocupa- referencial.
ções da sociedade e se colocaram na agenda Essa situação colocou a RAPS como uma
obrigatória da política de saúde mental. das prioridades de governo, o que assegurou
As políticas mais tradicionais uma quantidade de recursos financeiros para
dedicadas à questão das drogas vêm a política de saúde mental sem preceden-
sendo criticadas e reorientadas, tes e facilitou um conjunto de novas ações
deslocando o paradigma ‘da coerção para protagonizadas pela Coordenação Geral de
o da coesão’. A experiência histórica Saúde Mental, Álcool e Outras Drogas do
das últimas décadas sob a insígnia da Ministério da Saúde.

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94 ASSIS, J. T.; BARREIROS, C. A.; JACINTO, A. B. M.; KINOSHITA, R. T.; MACDOWELL, P. L.; MOTA, T. D.; NICÁCIO, F.; SCHORN, M. C.; SOUZA, I. S.; TRINO, A. T.

O ‘local’ e o ‘lugar’ do mesmas, do que querem, do que precisam. O


usuário de drogas que se evidenciou é que se trata de uma popu-
lação cronicamente marginalizada, excluída e
O debate a respeito do modo de cuidar dos que, mais do que de um local, carecem de um
usuários de crack e outras drogas frequen- ‘lugar na sociedade’, isto é, que precisam ser
temente gira sobre como se devem organi- inseridos como ‘sujeitos legítimos nas relações
zar os serviços, que serviços ofertar e como sociais’. Por outro lado, também se evidenciou
ofertar tais serviços. Mas, principalmente, as a grande dificuldade de acesso aos serviços de
perguntas de fundo que têm sido feitas são: saúde e de saúde mental. Este acesso é restrito
Onde? Para onde encaminhar? Para onde ir? tanto pela pequena quantidade de CAPS, ou
Onde ficar? Para onde voltar? outros que atendem questões de drogas, como
Há uma percepção corrente de que falta pelas barreiras da falta de preparo técnico e do
um ‘local físico’ adequado para se colocar os preconceito dos profissionais da rede de saúde.
usuários de drogas. Nessa lacuna é que ganhou Frente a isso, adotaram-se diversas medidas
muita força o movimento das comunidades para a expansão de CAPS – particularmente os
terapêuticas. Sem entrar na polêmica sobre CAPSAD III – que envolvem: aumento dos re-
a efetividade dessas abordagens ou sobre as passes federais relativos ao financiamento; di-
inúmeras denúncias de violação de direitos em minuição dos parâmetros populacionais para
algumas dessas entidades, ressaltamos aqui implantação; estímulo à implantação de leitos
que, sob a ótica da busca de um ‘local’, elas se em hospitais gerais pelo aumento do financia-
colocam como uma possibilidade concreta. mento; e atualizações sobre drogas em larga
Mudando a questão, por muito tempo pre- escala (curso à distância para profissionais de
tendeu-se gerar políticas para os usuários de CAPS oferecido pela parceria Universidade
drogas sem tomá-los como interlocutores legí- Aberta do SUS/Universidade Federal de Santa
timos para a elaboração das respostas. Sabe-se Catarina; e o Caminhos do Cuidado (2013),
como esses usuários incomodam a sociedade, dirigido aos profissionais da Atenção Básica).
mas não se sabe quem são essas pessoas. Ainda assim, a questão prática de locais físicos
A Secretaria Nacional de Políticas de onde acolher essas pessoas se colocava e foram
Drogas, em 2010, encomendou uma pesquisa, adotadas duas medidas: de um lado, foram es-
realizada pela Fiocruz, (BASTOS, BERTONI, 2014) para tabelecidos parâmetros e regramentos para a
se conhecer melhor a realidade do fenômeno inclusão das chamadas comunidades terapêu-
do crack. Os resultados dessa ampla investi- ticas e por outro foram criadas as Unidades de
gação, realizada em todo o território nacional, Acolhimento.
produziram um perfil do usuário de crack nas
ruas das cidades: são homens jovens, negros
e pardos, sem estudo, baixa empregabilidade Unidade de Acolhimento
e com histórico de passagem por prisões. O (UA)
tempo médio de uso de crack gira em torno de
oito anos. Questionados sobre o que espera- A UA, conforme descrita no ‘Manual com
riam ou gostariam que um serviço de saúde lhes Orientações para projetos de construção de
ofertasse, responderam, em síntese: moradia, CAPS e de UA’ (BRASIL, 2013b), é um ‘serviço
trabalho, educação e, principalmente, respeito. residencial’, uma casa. Nessa perspectiva, é
As questões de saúde ficaram em quarto lugar um espaço projetado para o acolhimento, a
e restritas a ‘curativos’. A pesquisa derruba hospitalidade, a convivência, e é fundamental
vários mitos, mas, principalmente, a ideia de considerar que a possibilidade de ‘habitar’ e
que aquelas pessoas não têm consciência delas de ‘trocar identidades’, de enriquecimento

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Política de saúde mental no novo contexto do Sistema Único de Saúde: regiões e redes 95

das redes sociais, constituem eixos centrais em risco de morte ou de danos a outrem.
na proposição de ‘reabilitação como cidada- Mas o que se deflagrou nos últimos anos, foi
nia’ (BRASIL, 2013b; SARACENO, 1999). Ainda de acordo o poder judiciário tomando medidas que são
com o referido Manual, a afirmação da pro- de responsabilidade do executivo e estabe-
posição de casa busca enfatizar a complexi- lecendo condutas sobre esferas que trans-
dade de experiências concretas de aquisição cendem o papel institucional. Assim, juízes
e/ou aprendizagem de habitar os espaços, de determinam a aplicação de terapêuticas,
vivenciar as oportunidades da vida cotidiana, ou a internação para tratamento, à revelia
de compartilhar um local. É importante ter das indicações médicas e sobredeterminan-
presente que, nos processos de reabilitação, a do as normativas do SUS. Este tipo de ação
noção de casa remete à “possibilidade de re- melhor se enquadra no que se denomina
visitar a própria casa passada, as raízes e os como judicialização da saúde. Esta situação,
lugares, as memórias e as impossibilidades” equivocadamente chamada de internação
(BRASIL, 2013b; SARACENO; STERNAI 1987 apud SARACENO, ‘compulsória’, nada tem a ver com o que
1999, p. 116). A UA constitui um ‘recurso dos PTS’, prevê a Lei nº 10.216/01 (BRASIL, 2001). Ali se
de acordo com as necessidades dos usuários trata de internação referente a processos cri-
em seus contextos sociorrelacionais, conside- minais em que a pessoa foi considerada inim-
rando, em particular, o ‘habitar’ como um dos putável, seguida de interdição e aplicação da
eixos centrais nos processos de reabilitação medida de segurança, que é um tratamento
psicossocial que visam à promoção de auto- compulsório. Ainda assim, o tratamento
nomia, de participação nas trocas sociais, de compulsório deveria preferencialmente ser
ampliação do poder de contratualidade social realizado em regime aberto, embora ainda se
e de acesso e exercício de direitos das pessoas realize em hospital de custódia.
com a experiência do sofrimento psíquico,
incluindo aquelas com necessidades decor-
rentes do uso de álcool e outras drogas (BRASIL, Desafios da prevenção de
2013b; ROTELLI, 1999; SARACENO, 1999; KINOSHITA, 1996). drogas
Neste percurso, agregamos como uma ação
Debate: internação estratégica a introdução de metodologias de
compulsória e involuntária prevenção de drogas com base em evidên-
cias experimentais. Embora a temática de
Ainda no âmbito do debate centrado no ‘para prevenção de drogas seja muito corrente e
onde levar’ as pessoas, ocorre um segundo quase unânime, existem poucas evidências
debate, agora voltado para a possibilidade quanto à efetividade destas ações. Em cola-
ou responsabilidade de se recolher a pessoa boração com o Escritório das Nações Unidas
contra a sua vontade. Essa polêmica pôs para Drogas e Crime (UNODC), identifica-
em campo duas modalidades de internação mos métodos que foram testados em diver-
citadas na Lei nº 10.216/01 (BRASIL, 2001): a in- sos países e em diferentes contextos e que
ternação involuntária e a internação com- demonstraram impactos significativos na
pulsória. Ambas coincidem no aspecto de se prevenção de drogas. Assim como também
impor uma ação contra a vontade da pessoa. se identificou que muitas práticas correntes
Mas diferem nos atores que as determinam. e ubíquas podem ter efeitos iatrogênicos.
Na prática corrente, os médicos têm uma de- Por exemplo, em vários países há a prática
legação social para a aplicação de medidas de apresentar ex-usuários de drogas em
contra a vontade da pessoa, caso ela esteja escolas, para que contem suas experiências

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96 ASSIS, J. T.; BARREIROS, C. A.; JACINTO, A. B. M.; KINOSHITA, R. T.; MACDOWELL, P. L.; MOTA, T. D.; NICÁCIO, F.; SCHORN, M. C.; SOUZA, I. S.; TRINO, A. T.

como ‘conselhos de quem já passou por isso’. para a ação de todos os Centros de Referência
As pesquisas indicam que quase invariavel- da Assistência Social e o Ministério do
mente este tipo de prática ‘induz’ o consumo. Desenvolvimento Social e Combate à Fome
Traduzimos e adaptamos para o contexto (MDS) vem acompanhando a experiência,
nacional duas metodologias de prevenção visando a uma possível incorporação nacional.
baseadas em escolas: Unplugged – para ado-
lescentes de 10 a 14 anos – e Good Behavior
Game (GBG) – para crianças de 6 a 10 anos; e A expansão da cobertura da
a Strenghtening Families Program (SFP), uma RAPS e o foco no cuidado
metodologia voltada para a atuação junto
aos pais, parentes e adolescentes. As ações
de base comunitária/
nas escolas são realizadas pela instrumenta- territorial
ção dos professores com estas ferramentas,
que se centram no desenvolvimento de ha- A ampliação do acesso ao cuidado psi-
bilidades para a vida, no fortalecimento da cossocial de base comunitária/territorial
capacidade crítica e da assertividade e no sob a perspectiva de garantia de direitos
desenvolvimento de sociabilidades. segue como um dos principais desafios da
Estes métodos estão sendo implantados atualidade, não obstante a crescente ex-
em oito capitais e em outros três municípios pansão das RAPS e de serviços territoriais
do País e estamos empenhados no desenvol- no contexto da reforma psiquiátrica em
vimento de estratégias para sua difusão em curso no SUS.
escala nacional. As ações voltadas para famí- Na atualidade, o quadro 1 mostra um pa-
lias estão sendo incorporados no Governo do norama da expansão de diferentes pontos de
Distrito Federal (GDF) com uma ferramenta atenção das RAPS:

Quadro 1. Número de pontos de atenção da RAPS no Brasil em 2011 e 2014

Pontos de atenção da RAPS jan/2011 set/2014

CAPS I 761 1035


CAPS II 418 475
CAPS III 55 82
CAPSAD 258 308
CAPSAD III - 59
CAPSIJ 128 196
Leitos de saúde mental em hospital geral - 800
Comunidade terapêutica - -
CAT*/Unidade de Acolhimento Adulto e Infantojuvenil - 60
Projetos de trabalho, geração de trabalho e renda, 640 660**
empreendimentos econômicos solidários e sociais
Centros de Convivência 51 51
Fonte: Ministério da Saúde, 2014
* Casa de Acolhimento Transitório (CAT): Edital 03/2010/GSIPR/SENAD/MS. Unidade de Acolhimento: Portaria n° 121 de 25/01/2012
** Em atualização

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Política de saúde mental no novo contexto do Sistema Único de Saúde: regiões e redes 97

O lugar estratégico dos produzida ainda no final dos anos 1980, os


CAPS nos territórios CAPS se expandiram de forma contínua no
território nacional, especialmente após o
Os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) ano de 2002 com a publicação da Portaria
ocupam um lugar estratégico na RAPS, sob 336/2002 (BRASIL, 2002b), conforme demonstra
a perspectiva da superação do modelo asilar: a figura 1.
primeira ‘invenção’ do processo da reforma,

Figura 1. Mapa de distribuição dos CAPS, em suas diferentes modalidades, no País, em 2002 e em 2014

0% 0 a 25% 25 a 50% 50 a 75% 75 a 100%

Fonte: Ministério da Saúde, 2014

O mapa revela que apesar da importante territoriais. A proposição de um serviço no/


expansão, ainda há enormes vazios assisten- do território implica delimitação de área
ciais a serem superados. Nesse sentido, re- geográfica e de abrangência populacional
duziram-se os parâmetros populacionais de que viabilize o agir territorial das equipes
referência para a implantação de CAPS com dos CAPS em diálogo com os recursos co-
vistas a aumentar a densidade de serviços munitários, em rede intra e intersetorial,
nos territórios, em particular CAPS I, CAPS promovendo uma efetiva permeabilidade
III, CAPSAD III e CAPSIJ. Atualmente, são entre o ‘espaço do serviço’ e o território, o
considerados elegíveis: 15 mil habitantes que requer mudança de objetivos e da in-
para CAPS I; 70 mil para CAPS II, CAPSAD e tencionalidade do trabalho terapêutico.
CAPSIJ; e 150 mil para CAPS III e CAPSAD Precisamos caminhar para além do controle
III (BRASIL, 2013a). de sintomas e seguir na busca de formas ins-
Os CAPS têm o desafio de se consti- trumentalização para atuar na produção da
tuir como serviços substitutivos, abertos e vida cotidiana e formas de efetivo exercício

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98 ASSIS, J. T.; BARREIROS, C. A.; JACINTO, A. B. M.; KINOSHITA, R. T.; MACDOWELL, P. L.; MOTA, T. D.; NICÁCIO, F.; SCHORN, M. C.; SOUZA, I. S.; TRINO, A. T.

de poder de usuários e familiares no jogo das na perspectiva da integralidade, é estratégica


trocas sociais. na consolidação da RAPS. Ainda nos depara-
A Portaria nº 854, de agosto de 2012 (BRASIL, mos com situações em que o preconceito ou
2012) enfatizou e ampliou as estratégias a estereótipo levam à negligência no cuidado
serem desenvolvidas pelos CAPS e, cabe des- das pessoas, particularmente nos aspectos
tacar, a inclusão de diversas ações de acom- clínico-somáticos. A sensação de despreparo
panhamento de usuários e de familiares nos dos profissionais produz um círculo vicioso
cenários de vida cotidiana e de práticas nos que reforça a negligência. Como alternati-
territórios de ativação e articulação em rede, va a essa situação, valoriza-se a cooperação
como, por exemplo: promoção de contratu- entre profissionais e pontos de atenção, com
alidade no território; ações de reabilitação vistas ao compartilhamento das responsabi-
psicossocial e de fortalecimento de prota- lidades e possibilidades de apoio para efeti-
gonismo; matriciamento; e ações de redução vação da atenção em situações de crise e de
de danos e de articulação de redes intra e urgências decorrentes do uso de substâncias
intersetoriais. psicoativas.
No que se refere à atenção em crise em Além disso, é essencial que o manejo da
saúde mental, é importante enfatizar o CAPS situação mais aguda possa facilitar a conti-
como local estratégico para o atendimento a nuidade do cuidado no longo prazo. Neste
pessoas em crise, e não à crise em abstrato. sentido, o recurso aos leitos em hospitais
Isto significa apontar para a desconstrução gerais (HG) deve ser acionado para um
da perspectiva de crise como fenômeno au- momento de crise, de ruptura, mas necessita
tônomo ou pura expressão da doença, abs- estar em um fluxo contínuo com as ações dos
traída de contextos relacionais. É necessário CAPS, de modo que a permanência em HG
favorecer o acolhimento dos sujeitos envol- seja a mais breve possível. Outro aspecto a
vidos para distensionar conflitos e contextu- ser desenvolvido está na atuação dos CAPS
alizar o sofrimento, considerando a história, em situações agudas de crise. Ainda a lógica
o vínculo, etc. O pensamento manicomial, ao do controle é pregnante nos processos de
tentar lidar com ‘a crise’ abstrata, se limita trabalho, o que leva, muitas vezes, os CAPS
a métodos de controle e anulação dos sujei- a contarem com a existência de outros locais
tos. Os CAPS são dispositivos que buscam para onde encaminhar os pacientes que são
o fortalecimento dos sujeitos frente as suas difíceis de ‘controlar’. Entendemos que é ne-
adversidades, (re)construindo os diversos cessária uma mudança de atitude, de objeto e
contextos. de objetivo do trabalho cotidiano dos CAPS.
Junto com Franco Rotelli (1990, p. 94),

Urgência e emergência na estamos sempre mais convencidos de que o


RAPS trabalho terapêutico seja este trabalho de de-
sinstitucionalização voltado para reconstruir
As situações de urgência permanecem como as pessoas como atores sociais [...]. Que tra-
desafio para a transformação das práticas. tar significa ocupar-se aqui e agora para que
Estamos desenvolvendo, junto com a Rede se transformem os modos de viver e sentir o
de Urgência e Emergência, orientações para sofrimento do paciente e que, ao mesmo tem-
a atuação dos profissionais de Serviço de po, transforme sua vida concreta cotidiana.
Atendimento Móvel de Urgência (Samu) e
Unidade de Pronto Atendimento (UPA) nas Deslocar o foco da nossa atenção do objeto
urgências de saúde mental. A garantia do ‘doença’, para construir uma perspectiva
acesso ao cuidado nas situações emergentes, em que esta seja apenas uma das dimensões

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Política de saúde mental no novo contexto do Sistema Único de Saúde: regiões e redes 99

relativas do sujeito que sofre e que procura em saúde, ampliam-se as possibilidades de


os serviços. atuação em saúde, intrinsecamente ligadas
à subjetividade das relações no território.
Nessa perspectiva, reforça-se que: a atuação
Atenção Básica e saúde profissional em saúde não se dá pela mera
mental: alternativas à reprodução de respostas pré-constituídas e
normatizadas, não se encerra no indivíduo,
patologização da vida e ao em sua doença e na resposta objetiva
sofrimento das pessoas de um único profissional de curá-lo. É
condição, para a atenção em saúde mental, a
O território é um lugar privilegiado para a disponibilidade do profissional para atuar em
superação da lógica manicomial, pois é nele um processo dialético, envolvendo e atuando
que acontece a vida cotidiana das pessoas e nas tensões entre sujeitos e desses com seus
é ali que se torna viável a construção de pro- grupos, instituições e comunidade e, a partir
jetos terapêuticos singulares que sejam, de disso, construir, juntamente com o usuário
fato, projetos de vida, que contribuam para e familiares, o cuidado. Por essa lógica,
que as pessoas e os coletivos possam tocar entende-se que o campo da saúde mental
suas vidas da melhor forma possível. envolve ações que não são exclusivamente
Os vínculos estabelecidos no território aplicadas aos casos em que é diagnosticado
com os profissionais de saúde, e mais espe- algum transtorno mental. Podem ser
cificamente com o profissional da Atenção consideradas como práticas cuja amplitude
Básica, se constituem como recursos a serem está mais relacionada à produção de saúde
intensamente explorados no cuidado em mental em qualquer circunstância e, desse
saúde mental. Os profissionais da Atenção modo, não reduzidas somente a medidas
Básica assumem papel privilegiado nesse curativas para certos tipos de transtorno
contexto. Reconhecer as potencialidades e diagnosticados. Nesse contexto, a Atenção
possibilidades desses profissionais em suas Básica e os Núcleos de Apoio à Saúde da
ações cotidianas é reconhecer que a atuação Família (Nasf ) assumem papel determinante
em saúde mental não está restrita aos con- para articulação e desenvolvimento de
sultórios e às práticas profissionais em práticas dessa ordem.
espaços especializados. Mas ocorrem, sobre- É necessária a desconstrução das ações
tudo, nas ruas, praças e outras áreas públicas focadas apenas no diagnóstico do transtor-
e coletivas onde os vínculos acontecem. É o no mental, que estigmatizam e patologizam
território, também, a antítese da lógica bio- os indivíduos, adotando a leitura do sujeito
médica que inviabiliza a possibilidade de um e da sua singularidade, levando em conside-
cuidado integral, por fragmentar os sujeitos ração todo o seu território existencial, sede
a partir das especialidades médicas. de sofrimentos, afetos e sentidos repletos de
A construção de práticas integrais potências significativas.
exige a reorganização dos sistemas de Desde a publicação da Portaria nº 3.088,
saúde, colocando a atenção primária de 23 de dezembro de 2011, que reafirma o
como ordenadora do cuidado em saúde papel primordial da Atenção Básica para a
e transformando a finalidade do cuidado saúde da população, também no âmbito da
em saúde, não em somente remissão de saúde mental diversas ações de parcerias
sintomas, mas em construção de respostas entre a Coordenação Nacional de Saúde
às necessidades em saúde das pessoas e Mental e o Departamento de Atenção Básica
dos coletivos. Ao incorporar a atenção (DAB) vêm sendo implementadas com o pro-
psicossocial como premissa do cuidado pósito de fortalecer uma lógica de cuidado

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100 ASSIS, J. T.; BARREIROS, C. A.; JACINTO, A. B. M.; KINOSHITA, R. T.; MACDOWELL, P. L.; MOTA, T. D.; NICÁCIO, F.; SCHORN, M. C.; SOUZA, I. S.; TRINO, A. T.

pautada nas relações e nos vínculos que cada da comunidade, possibilitando a adoção de
pessoa estabelece com seus pares, familia- múltiplas práticas em diversos domínios
res, comunidade e instituições com as quais, na comunidade, para lidar de maneira mais
de um modo ou de outro, todos convivem. efetiva nos fatores geradores de sofrimento
Entre as mais expressivas, podemos citar e naqueles que ampliam as possibilidades de
o ‘Caderno da Atenção Básica 34 – Saúde vida aos sujeitos e à comunidade.
Mental’, (BRASIL, 2013c), publicação referencial O curso de capacitação Caminhos do
para difusão das diretrizes e estratégias de Cuidado (2013), que foi desenvolvido pelo
cuidado em saúde mental na Atenção Básica. Ministério da Saúde, em uma iniciativa con-
Este material, construído a muitas mãos, faz junta entre a Coordenação Geral de Saúde
uma discussão acerca da possibilidade de Mental, Álcool e Outras Drogas (CGMAD)/
alcance, pelos profissionais não especialistas Departamento de Atenção Especializada e
em saúde mental, ao usuário de saúde mental, Temática (Daet)/Secretaria de Atenção à
via compreensão do processo de sofrimento Saúde (SAS), o DAB/SAS e o Departamento
das pessoas, que está atrelado aos diversos de Gestão da Educação na Saúde/Secretaria
relacionamentos interpessoais e papéis/re- de Gestão do Trabalho e da Educação na
lações que exercem ao longo de suas vidas. Saúde (SGTES), com a parceria do Icict/
Parte-se da ideia de que uma pessoa é com- Fiocruz e Grupo Hospitalar Conceição –
posta por múltiplas dimensões ou domínios GHC, visa melhorar a atenção à população
fenomênicos, que se conjugam e se organi- por meio da qualificação dos profissionais da
zam continuamente de modo a fazer surgir Atenção Básica no cuidado em saúde mental
um sujeito que se sente como unidade coe- com enfoque na questão das drogas. A finali-
rente. E daí segue que o sofrer surge nas situ- zação está prevista para 2015, quando terão
ações em que o sujeito sente que estes vários sido ofertadas 290.760 vagas, para a totalida-
domínios fenomênicos podem vir a se desin- de dos agentes comunitários de saúde, além
tegrar como unidade coerente (CASSEL, 1991). de auxiliares e técnicos de enfermagem do
O cuidado singular baseado em um projeto Programa Saúde da Família. O ‘Caminhos’
terapêutico visa a implementação de ações representa um importante meio de difusão e
estratégicas que viabilizem a recomposição implementação da proposta de cuidado sob a
daqueles domínios de modo que minimizem lógica da redução de danos, preconizada pelo
o desconforto e que possibilitem arranjos de Ministério da Saúde na atenção territorial às
melhor qualidade de vida. pessoas que têm problemas relacionados ao
Atualmente, a orientação da Coordenação uso de drogas.
Nacional de Saúde Mental quanto à atuação A mudança de gestão do serviço
no território envolve a discussão dos nove Consultório de Rua da Saúde Mental para o
domínios da vida das pessoas, propostos Departamento de Atenção Básica, momento
pela lógica da Felicidade Interna Bruta em que passa a se chamar Consultório na
(FIB). A FIB configura-se como um índice Rua, significa mais do que uma simples
que mediria a qualidade de vida das pessoas passagem de responsabilidade. O vínculo
a partir dos seguintes domínios: bem estar possibilitado entre profissionais e usuários,
psicológico; padrão de vida; boa governan- a partir da abordagem da equipe do consul-
ça; saúde; educação; vitalidade comunitária; tório, cria condições de oferta de cuidado
vitalidade comunitária e resiliência; uso do integral ao usuário, favorecendo, sobretudo,
tempo; diversidade ecológica e resiliência. o acesso deste aos demais serviços do SUS, a
O cuidado, nesse sentido, compreende cada depender de sua demanda em saúde. A com-
um dos domínios, na visada da promoção e preensão de que a população em situação de
do cuidado em saúde mental das pessoas e rua possui necessidades de saúde que vão

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Política de saúde mental no novo contexto do Sistema Único de Saúde: regiões e redes 101

além do cuidado relacionado diretamente ao no Brasil exigem uma paradoxal radicali-


uso de álcool e outras drogas contribuiu para zação dos próprios princípios da reforma
que se tomasse a decisão sobre a referida psiquiátrica: se o sentido da reforma passa,
alteração. como dizia Rotelli et al. (1990), por uma trans-
formação de relações de poder, de novas arti-
culações entre atores e da desconstrução dos
Bem viver dos povos saberes, práticas e culturas do modelo asilar,
tradicionais agora são os saberes, práticas e culturas pró-
prios da reforma que são desafiados diante
A política nacional de saúde mental, álcool e de diferenças outras. Se os fundamentos te-
outras drogas tem tido interface específica, óricos que orientam a reforma psiquiátrica
sobretudo, com os povos indígenas, baseada estão profundamente ligados a uma virada
nas diretrizes da Política de Atenção Integral epistemológica que evidencia, a partir do
à Saúde Mental das Populações Indígenas trabalho de autores como Michel Foucault
(BRASIL, 2007). O uso abusivo de álcool e outras (1997), o caráter eminentemente histórico da
drogas, os índices epidêmicos de suicídios psiquiatria e dos saberes modernos sobre a
e contextos de violência cotidiana têm sido loucura, os povos tradicionais nos convidam
os principais problemas associados à saúde a uma viagem ainda mais radical por outras
mental entre esses povos no Brasil, sobretu- epistemes, outras cosmologias e outras
do em cenários de grande vulnerabilidade, noções de sujeito. Nossa fixação com a du-
envolvendo disputas territoriais, ameaças, alidade mente/corpo não encontra eco entre
situações de miséria e tensões constantes. esses povos, pondo à prova a noção mesma de
Um dos principais desafios que se impõe saúde mental e as perspectivas biomédicas e
ao desenvolvimento de políticas sociais para individualizantes da clínica psiquiátrica.
os povos tradicionais é a própria diversidade Diante desse cenário complexo, as ações
de culturas, línguas e formas de organização para os povos tradicionais têm sido pensadas
social presente no Brasil, com profundas como estratégias de promoção e potenciali-
diferenças entre elas. Só os povos indígenas zação dos projetos de ‘bem viver’ das diferen-
são mais de 240, segundo dados do Instituto tes comunidades. A ideia de bem viver, que
Socioambiental (2014). Isso, sem falar nas recentemente tem sido assimilada, inclusive,
mais de 1.500 comunidades quilombolas já pelas constituições republicanas de países
certificadas pela Fundação Palmares (2014) e sul-americanos como Bolívia e Equador,
em tantos outros grupos culturalmente dife- remete às utopias ameríndias e suas formas
renciados. É preciso, portanto, que as políti- de vida comunitária baseadas em um conví-
cas para esses povos considerem suas formas vio equilibrado com a natureza e entre todos
próprias de organização, e não imponham os seres, com equilíbrio material e espiritual,
estratégias e soluções gerais e desconectadas sendo uma tentativa de traduzir conceitos
dos contextos locais. distintos, porém semelhantes, de diversos
Cada vez mais, o campo da reforma psi- povos indígenas da América do Sul. A di-
quiátrica e a política nacional de saúde mensão do bem viver é, portanto, essencial-
mental têm sido desafiados por demandas mente coletiva e indissociável das demandas
de cuidado e atenção provenientes de con- por terra e por acesso aos recursos naturais
textos culturais muito distintos daqueles em essenciais.
que as práticas e tecnologias de atenção psi- As estratégias para o enfrentamento dos
cossocial que mais comumente empregamos agravos e a promoção do bem viver entre
foram desenvolvidas. As necessidades de os povos indígenas têm passado pela com-
atenção psicossocial aos povos tradicionais plexa articulação entre as comunidades,

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102 ASSIS, J. T.; BARREIROS, C. A.; JACINTO, A. B. M.; KINOSHITA, R. T.; MACDOWELL, P. L.; MOTA, T. D.; NICÁCIO, F.; SCHORN, M. C.; SOUZA, I. S.; TRINO, A. T.

os Distritos Sanitários Especiais Indígenas dessas informações, tornou-se colaborado-


(DSEI), a RAPS e outras parcerias interse- ra do Ministério da Saúde nos processos de
toriais. É fundamental que essas redes se desinstitucionalização em vários hospitais
tornem ainda mais integradas e, sobretudo, psiquiátricos. Exemplar foi a atuação con-
que sejam capazes de promover a saúde junta no caso da cidade de Sorocaba (SP), em
mental, garantindo o apoio e o respeito à que, desde as primeiras denúncias feitas pelo
capacidade das comunidades indígenas de Fórum da Luta Antimanicomial de Sorocaba
construção das próprias soluções. Foram (Flamas) até o processo de requisição e ge-
contratadas referências técnicas em saúde renciamento das instalações do Hospital
mental em todos os DSEI, qualificando Vera Cruz, a SDH protagonizou um ten-
a promoção da saúde mental na Atenção sionamento que transcendeu os limites da
Básica e atuando com profissionais das disputa tradicional, dentro do campo técnico
equipes dos CAPS no apoio matricial junto da saúde mental. Ao apontar a questão das
às Equipes Multidisciplinares de Saúde violações de direitos humanos, a questão
Indígena (EMSI). Essa articulação entre os adquiriu contornos mais amplos, que alcan-
equipamentos específicos da saúde indígena çaram até a esfera criminal. Nesse mesmo
e os pontos de atenção da RAPS tem como período, no cenário internacional, o Relator
uma de suas dimensões mais importantes Especial contra Tortura, Sr. Juan Mendez,
a mútua qualificação das equipes, tanto no relatou que
sentido de agregar conhecimentos da saúde
mental às práticas das EMSI como no sentido cuidados médicos que causam grande sofri-
de aproximar a equipe do CAPS das popula- mento sem nenhuma razão justificável podem
ções indígenas e de suas especificidades. ser considerados um tratamento cruel, desu-
mano ou degradante, e se há envolvimento do
estado e intenção específica, é tortura (ONU BR,
Desinstitucionalização: 2013).

garantir direitos e
Outro ator de suma importância hoje, no
coproduzir projetos para cenário da desinstitucionalização, é a pre-
prescindir dos manicômios sença dos Ministérios Públicos Estaduais
e do Ministério Público Federal, partindo
A desinstitucionalização, um dos desa- da Procuradoria Federal dos Direitos do
fios centrais da política nacional de saúde Cidadão (PFDC) e do Conselho Nacional
mental, assumiu uma nova institucionali- do Ministério Público (CNMP), que con-
dade ao ser inserida como componente da grega tanto representantes da esfera federal
RAPS, e neste último quadriênio, a questão quanto das estaduais. Atualmente, existe um
da superação do modelo manicomial entrou amplo coletivo de promotores e procurado-
na agenda de outras instituições. Um parcei- res do Ministério Público que agem direta-
ro importantíssimo é a Secretaria de Direitos mente no processo de mudança do modelo
Humanos da Presidência da República e da efetivação da Lei nº 10.216/01. Esta
(SDH). Através de seus mecanismos de mo- atuação tem sido um dos motores dos pro-
nitoramento, a SDH tem sido a receptora de cessos de desinstitucionalização e também
inúmeras denúncias de maus tratos e viola- da implantação das RAPS. Tal articulação
ções de direitos de pacientes com transtorno entre Ministério da Saúde, SDH e MP tem
mental ou usuários de drogas internados em atuado de modo coordenado e pró-ativo na
hospitais psiquiátricos ou em clínicas pri- intensificação da desospitalização dos mora-
vadas e comunidades terapêuticas. A partir dores dos hospitais psiquiátricos.

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Política de saúde mental no novo contexto do Sistema Único de Saúde: regiões e redes 103

Os Serviços Residenciais Terapêuticos protagonismo e da contratualidade social de


(SRT) passam a adquirir um valor estraté- usuários e familiares.
gico na desconstrução da necessidade dos As ações de reabilitação psicossocial são
manicômios. Para buscar maior celeridade, estratégias que não se restringem a um ponto
o MS passou a financiar diretamente esse de atenção, mas dizem respeito à apropria-
ponto de atenção, dando maior sustentabili- ção, pelos usuários, dos seus processos de
dade aos processos de restituição do direito trabalho, que envolvem a criação de novos
de viver nas cidades, independentemente da campos de negociação e formas de socia-
necessidade das negociações de transferên- bilidade baseadas na solidariedade. Neste
cia de AIH entre estados e municípios. sentido, no que diz respeito à questão da in-
Os processos de desinstitucionalização serção no trabalho é necessário entender o
colocam em cena a necessidade de trans- campo complexo de relações do mundo do
formar o lugar da pessoa internada, de ser trabalho, os significados subjetivo, econômi-
um homem sem direitos e ‘sem poder con- co e social do lugar de trabalhador e do valor
tratual’ (BASAGLIA, 1985), sendo uma das fontes atribuído ao trabalho (SARACENO, 1999).
de poder contratual, sem dúvida, o recurso A partir de 2004, foi estabelecida a arti-
econômico. Nesta linha, o Programa de Volta culação entre as políticas nacionais de saúde
para Casa (PVC) atualmente inclui 4.339 mental do Ministério da Saúde e a políti-
pessoas, que recebem R$ 412,00 ao mês. Sem ca de economia solidária do Ministério do
dúvida, é uma das grandes ferramentas da Trabalho e Emprego. Essa articulação visa
desinstitucionalização e da reforma psiqui- ao desenvolvimento de estratégias que fo-
átrica, que deve incorporar boa parte dos mentem o acesso aos meios para o trabalho
atuais moradores de hospitais psiquiátricos. cooperado e solidário e a conquista de um
novo lugar social para os usuários da saúde
mental (BRASIL, 2005b).
Estratégias de reabilitação Na atualidade, o Cadastro de Iniciativas de
psicossocial e protagonismo Inclusão Social pelo Trabalho (Cist), realizado
pela Coordenação Nacional de Saúde Mental,
de usuários e familiares: indica a existência de 660 experiências no ter-
reconhecer saberes e ritório nacional. As iniciativas diferenciam-se
fortalecer o poder de quanto às perspectivas adotadas, o tempo de
contratualidade social percurso, a forma de organização dos usuários,
os processos de trabalho e de gestão, a articu-
A inclusão da reabilitação psicossocial como lação com a economia solidária e as parcerias
componente da RAPS e entre os novos pro- comunitárias/territoriais. As experiências, em
cedimentos dos CAPS, em especial, os de grande parte, estão situadas nos contextos das
‘promoção de contratualidade no território’, RAPS e de formas associativas: CAPS, Centros
‘ações de reabilitação psicossocial’, ‘fortale- de Convivência e Cultura, Núcleos de Geração
cimento de protagonismo’ e ‘ações de arti- de Trabalho/Economia Solidária, Associações
culação de redes intra e intersetoriais’ (BRASIL, de Usuários e Familiares da Saúde Mental. Os
2012; 2013a) explicita a exigência de criação e participantes, em sua maioria, são pessoas com
desenvolvimento de um conjunto de ini- a experiência do sofrimento psíquico, sendo,
ciativas para garantir e sustentar o acesso ainda, restrita a participação de pessoas que
e o exercício dos direitos ao trabalho, à ha- apresentam necessidades decorrentes do uso
bitação, à educação e à cultura, produzindo de álcool e outras drogas. As diversas experiên-
novas possibilidades de projetos para a vida cias demonstram a potencialidade de promo-
e de cidadania, a partir do fortalecimento do ção de novos modos de trabalhar, de relacionar

DIVULGAÇÃO EM Saúde PARA Debate | rio de Janeiro, n. 52, p. 88-113, OUT 2014
104 ASSIS, J. T.; BARREIROS, C. A.; JACINTO, A. B. M.; KINOSHITA, R. T.; MACDOWELL, P. L.; MOTA, T. D.; NICÁCIO, F.; SCHORN, M. C.; SOUZA, I. S.; TRINO, A. T.

e de conviver; de induzir coletivos coopera- Rica, El Salvador, Equador, Estados Unidos,


tivos com novas redes de pertencimento, de Honduras, Jamaica, México, Panamá,
estimular a democracia nas relações e formas Paraguai, Peru, República Dominicana e
de gestão. Estas experiências possibilitam a Suriname. Durante a reunião foi produzido o
superação dos processos de trabalho protegido “Consenso de Brasília” com diversas propos-
– que supõe a invalidação e a incapacitação das tas em relação aos direitos humanos, às polí-
pessoas com a experiência do sofrimento psí- ticas e serviços, à participação, à formação e
quico –, correndo o risco de aprender, desco- capacitação, e ao trabalho, constituindo uma
brir e enfrentar distintas dimensões do mundo referência essencial para o fortalecimento
do trabalho. No entanto, enfrentam grandes di- do protagonismo de usuários e familiares (I
ficuldades para a estruturação e a formalização REUNIÃO REGIONAL DE USUÁRIOS DE SERVIÇOS DE SAÚDE
do trabalho cooperado. Encontram barreiras MENTAL E FAMILIARES, 2013).
no marco legal para a constituição de grupos
mistos de cooperativas sociais, no âmbito da
economia solidária, no acesso ao crédito para A exigência ética de
efetiva sustentabilidade econômica. A busca de valorização da infância e
novos caminhos para responder a esse conjun-
to de exigências e desafios vem sendo ampla e
juventude
intensamente discutida, tendo em vista que a
Lei nº 9.867, de 1999 (BRASIL, 1999), embora funda- No Brasil, a história do controle do Estado
mental em seus princípios, apresenta limites. sobre crianças e jovens foi marcada pela cons-
Recentemente, em dezembro de 2013, foi trução de um modelo centrado na institucio-
instituído o Programa Nacional de Apoio nalização, que levou à expansão de diversas
ao Associativismo e Cooperativismo Social instituições fechadas de caráter filantrópico e
(PRONACOOP SOCIAL), pelo Decreto à privação da liberdade dessa população. Neste
nº 8.163/13 (BRASIL, 2013d). O PRONACOOP campo, temos como marco legal as seguintes
SOCIAL reconsidera as legislações: Código Mello Mattos, de 1927; e
Código de Menores, de 1979. O Código Mello
cooperativas sociais, aquelas cujo objetivo é Mattos tinha por finalidade o ‘saneamento
promover a inserção social, laboral e econô- social’. Ao ‘juiz de menores’ cabia intervir
mica de pessoas em desvantagem, nos ter- na vida da população infanto-juvenil. Nesse
mos do Artigo 3º da Lei nº. 9.867/99 período (1927-1979), surgiu o termo ‘menino
de rua’, através dos meios de comunicação de
e tem a finalidade de massa, que associavam a infância e a juventude
à periculosidade. Em 1979, entrou em vigor o
planejar, coordenar, executar e monitorar as Código de Menores, que era caracterizado pelo
ações voltadas ao desenvolvimento das co- entendimento de que havia situações de risco
operativas sociais e dos empreendimentos na realidade infanto-juvenil, e que isso precisa-
econômicos solidários sociais (BRASIL, 2013d). va ser controlado com internações em massa.
Na década de 1980, a Constituição Federal
Em 2013, foi realizada a I Reunião (1988) representou uma mudança signifi-
Regional de Usuários de Serviços de Saúde cativa, consagrando valores baseados no
Mental e Familiares promovida pela Opas/ respeito à dignidade e aos direitos funda-
OMS e MS. Participaram representantes mentais da pessoa humana, entendendo
de associações e organizações de usuários crianças e adolescentes como sujeitos de
e familiares de saúde mental de: Argentina, direitos. Em seguida, o Estatuto da Criança
Barbados, Belize, Bolívia, Brasil, Chile, Costa e do Adolescente (ECA), de 1990, calcado

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Política de saúde mental no novo contexto do Sistema Único de Saúde: regiões e redes 105

na doutrina da proteção integral, abando- Em 2005, com a publicação ‘Caminhos


nou a visão dos antigos códigos fundados para uma política de saúde mental
no assistencialismo, deslocando as ações infanto-juvenil’, do Ministério da Saúde, é
para a proteção integral de crianças e ado- apresentado um conjunto de contribuições
lescentes, desencadeando no País, em di- de distintas áreas para uma abordagem
versas instâncias, debates cada vez mais pública desse tema. Destacamos alguns de
aprofundados sobre a necessidade de se seus princípios e diretrizes a seguir:
criar políticas públicas diferenciadas para
crianças e adolescentes. Pautou também a 1. Criança e adolescente como sujeito de
garantia de “preferência na formulação e direitos: implica a noção de singularida-
na execução das políticas sociais públicas”, de, impedindo que o cuidado se exerça de
além de “destinação privilegiada de recur- forma homogênea, massiva e indiferencia-
sos públicos nas áreas relacionadas com a da. É incluir, no centro das discussões e
proteção à infância e à juventude”. construções de uma política, a criança ou o
A nova doutrina da proteção integral adolescente como sujeito, com suas pecu-
vem superar a ideia do assistencialismo do liaridades e responsabilidades.
estado, voltado para o controle e o asila-
mento de crianças e adolescentes e, entre 2. Acolhimento universal: as portas de todos
outros parâmetros importantes, prevê que os serviços públicos de saúde mental, espe-
a privação de liberdade seja tomada sob cialmente serviços voltados para a infância
critérios de excepcionalidade, com mínimo e adolescência, devem estar abertas a toda
período de duração. Esses princípios fun- e qualquer demanda dirigida ao serviço de
damentais, no Brasil, estão presentes na saúde do território.
Constituição Federal de 1988, que afirma a
condição cidadã de crianças e adolescentes, 3. Construção permanente da rede: o serviço
com ampla garantia de direitos, e também inclui, no corpo de suas competências, o
na Lei nº 12.594/12 – Sistema Nacional de trabalho com os demais equipamentos e
Atendimento Socioeducativo (Sinase), que dispositivos do território, permanente-
estabelece parâmetros e diretrizes para a mente construindo a rede. Tal concepção
execução das medidas socioeducativas. O de rede articula a ação do cuidado para
Sinase busca parâmetros mais justos, que fora e para além dos limites da instituição e
evitem ou limitem a discricionariedade, e implica a noção de território.
reafirma o caráter pedagógico da medida
socioeducativa (BRASIL, 2012b). Além disso, rati- 4. Território: espaço onde acontecem as
fica o ECA ao priorizar as medidas em meio relações, vivências e circulação do sujeito.
aberto – Prestação de Serviço à Comunidade É construído por instâncias pessoais e
(PSC) e Liberdade Assistida (LA) –, em de- institucionais, incluindo a casa, a escola,
trimento daquelas restritivas de liberdade a igreja, o clube, a lanchonete, o cinema,
(Semiliberdade e Internação), pois considera a praça, a casa dos colegas, a unidade de
que estas devem ser aplicadas em caráter de saúde e todas as outras, incluindo-se cen-
excepcionalidade e brevidade. É importante tralmente o próprio sujeito na construção
destacar que essas premissas buscam rever- do território. O território é o lugar psicos-
ter uma tendência crescente de internação social do sujeito.
de adolescentes, que tem sido avaliada como
ações de ‘eficácia invertida’, pois o maior rigor 5. Intersetorialidade na ação do cuidado: o
das medidas não tem levado à maior inclusão conjunto das ações no campo da saúde mental
social dos egressos do sistema socioeducativo. infantojuvenil deve incluir intervenções

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106 ASSIS, J. T.; BARREIROS, C. A.; JACINTO, A. B. M.; KINOSHITA, R. T.; MACDOWELL, P. L.; MOTA, T. D.; NICÁCIO, F.; SCHORN, M. C.; SOUZA, I. S.; TRINO, A. T.

junto a todos os equipamentos que, de entre 10 e 19 anos estavam fora da escola.


alguma forma, estejam envolvidos na vida das Considerando que o espaço escolar pode
crianças e adolescentes que acompanham. ser o local estratégico de proteção e pro-
moção dos direitos dos futuros cidadãos,
Além disso, com a constituição do Fórum esta situação perpetua ciclos de marginali-
Nacional sobre Saúde Mental Infantojuvenil, zação, exclusão e pobreza para uma grande
através da Portaria nº 1.608/04 (BRASIL, 2004a), parcela dos jovens.
estabeleceu-se um espaço intersetorial de
caráter representativo e deliberativo, que ob-
jetiva o fortalecimento da Política de Saúde Educação Permanente
Mental Infantojuvenil. Dentre as ações que
reafirmam e consolidam as diretrizes dessa No âmbito da Educação Permanente, temos
política, podemos apontar: um grande desafio de promover a difusão e a
apropriação dos novos saberes pelos profis-
- Diminuição do parâmetro populacional do sionais do SUS que se encontram espalhados
CAPSIJ através da republicação da Portaria por todo o território nacional, de dimensões
nº 3.088, de 23 de dezembro de 2011, repu- continentais, dentro de tempos urgentes.
blicada em 21 de maio de 2013 (BRASIL, 2013a); Somam-se a isto obstáculos logísticos, a
questão da distribuição e fixação dos profis-
- Fórum Nacional de Saúde Mental sionais. Assim como a diversidade de expe-
Infantojuvenil, realizado em Brasília, em riências profissionais que se colocam para o
2012, e Fóruns Regionais, em 2013, que campo, aliada a formações que trazem uma
ocorreram nas regiões Sul, em Curitiba perspectiva curricular distante da prática
(PR); Centro-Oeste, em Campo Grande profissional estabelecida pelas diretrizes da
(MS); e Norte, em Belém (PA); Política Nacional de Saúde Mental, colocam
um grande desafio para as propostas de
- Encontro Atenção Psicossocial para Formação e Educação Permanente desen-
Crianças e Adolescentes no SUS: tecendo volvidas para qualificar esses profissionais.
redes para garantir direitos, realizado pelo De acordo com Política de Educação
Ministério da Saúde e pelo Conselho Nacional Permanente em Saúde estabelecida pela
do Ministério Público, em maio de 2013. Portaria nº 198/GM, de 13 de fevereiro de
2004 (BRASIL, 2004b), as ações de formação e
- Produção da “Linha de Cuidado para a Educação Permanente no âmbito do SUS
atenção às pessoas com transtorno do es- são fundamentais para o desenvolvimento
pectro do autismo e suas famílias na RAPS de estratégias e práticas consonantes com
do SUS”, construída por grupo de traba- os desafios cotidianos da atenção em saúde,
lho composto pelo Ministério da Saúde, que se transformam a partir da reestrutura-
representantes de universidades, da so- ção dos serviços em rede, da modificação da
ciedade civil, gestores e profissionais de cultura e do fortalecimento de propostas de
RAPS, entre outros colaboradores (BRASIL, cuidado no território.
2013e). A Política Nacional de Saúde Mental Uma direção possível para dar início a
Infantojuvenil apresenta desafios para a esses desafios foi aliar estratégias de apoio à
amplificação dos processos de valorização graduação, através do PET-Saúde, e pós-gra-
da infância e da juventude no contexto na- duação. Neste sentido, a partir dos grupos de
cional marcado pela imensa desigualdade. trabalho do PET-Saúde na RAPS, alunos de
Os dados do censo de 2010 indicavam que, graduação têm a oportunidade de discutir as
em média, 17% das crianças e adolescentes estratégias de trabalho na rede de atenção

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Política de saúde mental no novo contexto do Sistema Único de Saúde: regiões e redes 107

psicossocial em suas formações profissio- de projetos de Educação Permanente que


nais. No campo da pós-graduação, por meio invistam na descentralização das ações de
do Pró-Residência, tem-se incentivado o de- capacitação.
senvolvimento de programas de residência Com o objetivo de sustentar ações dessa
em psiquiatria e residência multiprofissional natureza, foi proposto o projeto Percursos
em saúde mental. A ampliação da oferta de Formativos na RAPS: intercâmbio de experiên-
residências é fundamental, considerando cias e supervisão clínico-institucional. A pro-
que a expansão da RAPS encontra limites na posta contempla apoio financeiro para estados
indisponibilidade de profissionais com qua- e municípios que desenvolvam projetos de
lificação em saúde mental. Educação Permanente no âmbito específico
No campo da formação em serviço da troca de experiência entre profissionais (in-
foram produzidos três cursos de atuali- tercâmbio) e supervisão clínico-institucional.
zação à distância, a partir de parcerias Participam dessa chamada redes de 21 estados,
estabelecidas com a Secretaria de Gestão das cinco regiões do Brasil.
do Trabalho e Educação em Saúde, por Esta é uma iniciativa nova no campo da
meio da Universidade Aberta do SUS, na Educação Permanente, que aposta na ideia
Universidade Federal de Santa Catarina. Os de que os profissionais da RAPS podem
cursos discutem conceitos importantes para aprender e desenvolver novas práticas
o campo nos temas de Urgência e Crise em apenas praticando. Nesse sentido, foi criado
Saúde Mental; Saúde Mental Infantojuvenil; um programa de intercâmbio de trabalhado-
e Saúde Mental, Álcool e Outras Drogas e en- res entre as redes, de modo que profissionais
volvem milhares de profissionais que podem de diferentes cidades cujas redes demandam
se atualizar em informações técnico-políti- por formação vão trabalhar em um municí-
cas e, ao mesmo tempo, estabelecer relações pio preceptor, pelo prazo de um mês. Nesse
de cooperação e colaboração entre serviços período, estes profissionais devem trabalhar
muito distantes. na rede preceptora junto com os profissio-
Além disso, o curso Caminhos do Cuidado nais locais, debatendo e refletindo sobre as
(2013f) também visa ofertar, em larga escala, práticas e as orientações teóricas em questão.
capacitação em saúde mental para todos os Ao final do mês ocorre um rodízio, de
agentes comunitários de saúde no Brasil, ob- modo que outras pessoas iniciam o pro-
jetivando fortalecer as ações de saúde mental grama e os primeiros retornam aos seus
na Atenção Básica. Entende-se que essas municípios de origem. Ao final de 10 meses
estratégias que viabilizam a ações de capa- cada rede em formação terá 20 pessoas que
citação em larga escala cumprem o papel de estagiaram e trabalharam em um ambiente
sensibilizar e também aproximar os territó- diverso e em imersão. Nessa primeira versão,
rios de temas fundamentais à implantação e estarão em movimento 1.700 profissionais
à qualificação da RAPS nos territórios. até julho de 2015. As primeiras turmas já dão
Contudo, pautada pela Política de indícios da potência desta estratégia. Além
Educação Permanente, a Coordenação disso, o projeto contempla ações de super-
Nacional de Saúde Mental também entende visão clínico-institucional em todas as redes
a necessidade de investimento em propos- envolvidas.
ta de Educação Permanente que viabilize Em síntese, é importante frisar que as
a apropriação de práticas pedagógicas que ações de formação e Educação Permanente
facilitem o aprendizado no universo do tra- no âmbito do SUS são fundamentais para a
balho e, ao mesmo tempo, dê singularidade qualificação da Rede de Atenção Psicossocial,
às necessidades de qualificação nos municí- através da conscientização e do engajamento
pios. Neste sentido, verifica-se a necessidade dos profissionais. As ações aqui destacadas

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108 ASSIS, J. T.; BARREIROS, C. A.; JACINTO, A. B. M.; KINOSHITA, R. T.; MACDOWELL, P. L.; MOTA, T. D.; NICÁCIO, F.; SCHORN, M. C.; SOUZA, I. S.; TRINO, A. T.

vão ao encontro dessas questões e consti- cooperação de países estrangeiros em torno


tuem-se enquanto possibilidades de fortale- do processo de reforma psiquiátrica brasilei-
cimento dos trabalhadores, incentivando o ra denota indiretamente os avanços conquis-
diálogo com os outros atores do território e tados na última década.
procurando potencializar o cuidado.

Sustentabilidade da RAPS:
Cooperação internacional Coordenação Geral de
Na atualidade, o Brasil vem sendo reconheci-
Saúde Mental, Álcool e
do pela década de estabilidade e crescimento Outras Drogas
econômico, com distribuição de renda, em
todos os fóruns internacionais. Além disso, Com o objetivo de gerar maior sustenta-
muitas solicitações de cooperação técnica bilidade das RAPS, o Ministério da Saúde
na área de saúde mental têm sido recebidas. promoveu uma modificação no organogra-
No âmbito latino-americano, diversos países ma e incluiu a RAPS como parte da estru-
têm buscado projetos de cooperação técnica tura permanente, sob a denominação de
com a política nacional de saúde mental, Coordenação Geral de Saúde Mental, Álcool
álcool e outras drogas em curso no Brasil, e Outras Drogas (CGMAD), deixando de
objetivando o aprimoramento de suas polí- ser apenas um programa/projeto. No que se
ticas públicas de saúde mental. Mais especi- refere ao financiamento, houve uma dispo-
ficamente, encontram-se em curso Termos nibilidade para o aumento do financiamento
de Cooperação com Equador, Paraguai, para CAPS e, em especial, para CAPSAD III
Honduras e Costa Rica. Além disso, há nego- e CAPS III (BRASIL 2012c, 2013g), e um direciona-
ciações em curso para colaboração no Haiti mento para que se priorize a implantação de
e em Angola. Este cenário de interesses de serviços 24 horas. CAPS III e CAPSAD III.

Gráfico 2. Evolução do investimento financeiro federal nos CAPS, no País, de 2002 a 2013

R$ 900.000.000,00 2200
R$ 800.000.000,00 2000
1800
R$ 700.000.000,00
1600
R$ 600.000.000,00
Investimentos

1400
R$ 500.000.000,00 1200
CAPS

R$ 400.000.000,00 1000
800
R$ 300.000.000,00
600
R$ 200.000.000,00
400
R$100.000.000,00 200
R$ 0,00 0
2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013

Gastos com CAPS

Número de CAPS

Fontes: Subsecretaria de Planejamento e Orçamento (SPO)/MS, Departamento de Informática do Sistema Único de Saúde (DATASUS),
Coordenação de Saúde Mental, Álcool e Outras Drogas/Departamento de Ações Programáticas Estratégicas (DAPES)/SAS/MS, 2014

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Política de saúde mental no novo contexto do Sistema Único de Saúde: regiões e redes 109

Financiamento para a tantos milhões de pessoas que não consegui-


construção de Centros ram entrar no ‘bonde’ do crescimento eco-
nômico. Quais as incidências na produção
de Atenção Psicossocial e de subjetividade que esta movimentação de
Unidades de Acolhimento placas tectônicas sociais produz? Quais os
reflexos sobre a questão da desigualdade?
Um dos fatores limitantes para a expansão da Outro marco importante para a Política
RAPS nos municípios tem sido a enorme di- Nacional de Saúde Mental foi gerada na
ficuldade para se encontrar imóveis adequa- IV Conferência Nacional de Saúde Mental
dos. Reconhecendo este obstáculo, dentro do (BRASIL, 2010), intersetorial, que apontou para
Plano Crack, pela primeira vez desde o início a necessidade de se transcender o campo da
da reforma psiquiátrica, o Ministério da saúde e produzir a aproximação com as insti-
Saúde alocou recursos de investimento para tuições orientadas para a garantia de Direitos
a construção de CAPS e UA (BRASIL, 2013g). Em Humanos (DH) e a promoção de ações sinér-
uma primeira chamada, surgiram mais de gicas. A perspectiva dos DH reforça e amplia
dois mil pedidos de financiamento oriundos a agenda da reforma psiquiátrica. Com a
de todas as partes do País, principalmente de incorporação da Convenção Internacional
CAPS I. Embora, naquele momento, a prio- sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência1
ridade tenha sido restrita aos serviços volta- na Constituição Brasileira, temos à disposi-
dos para a questão das drogas, ficou evidente ção um instrumento de luta para a garantia
que há grande interesse pela implantação da de direitos que tocam não apenas na dispo-
RAPS nos pequenos municípios. nibilidade material de determinados bens,
mas que incidem nos modos em que se es-
tabelecem as relações entre indivíduos e
Considerações finais instituições. Nessa direção, a Coordenação
Nacional de Saúde Mental estabeleceu uma
O Encontro Nacional da RAPS, em 2013, cooperação com o Departamento de Saúde
foi promovido com o lema ‘Reciprocidade Mental e Abuso de Substancias da OMS, que
na Diferença’ como um marco para os pró- visa divulgar e implementar um programa
ximos anos. A sustentação deste processo denominado Qualityrights. Este programa é
de mudança de modelo requer uma corres- baseado na Convenção Internacional sobre
pondente mudança de referenciais, que os Direitos da Pessoa com Deficiência e o
coloca desafios para a política de Educação neologismo denota a ideia de que a qualida-
Permanente do SUS. Há a necessidade de de dos serviços de saúde mental está ligada
produzir novos conteúdos adequados às imediatamente às condições de respeitar,
novas condições institucionais, a novas mo- promover e proteger os direitos humanos e
dalidades de inserção e participação dos civis. Assim, para além das exigências técni-
usuários e familiares nestes contextos. O cas, a questão da qualidade está fundada na
País viveu, na última década, uma profunda qualidade das relações. Pretendemos fazer
transformação em sua pirâmide social, com de modo que as associações de usuários e
o deslocamento ascendente de uma imensa familiares se apropriem dessa ferramenta e 1 No Brasil adotou-se
parte da sua base – um número entre 30 e possam participar diretamente dos proces- a tradução do termo
disability por ‘deficiência’,
40 milhões de pessoas passou a novos con- sos de aferição de qualidade. o que gera uma série de
textos não apenas econômicos, mas também A Política de Saúde Mental, no processo de desentendimentos e tem
como consequência a
culturais e sociais, entrando em contato com transição pautada pela reforma psiquiátrica restrição dos direitos das
novos ‘habitus’, novos habitats. Por outro ainda tem um longo caminho a percorrer. pessoas com transtorno
mental ou uso de álcool ou
lado, precisamos estar atentos aos outros De partida, ainda restam em torno de 26 mil drogas.

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110 ASSIS, J. T.; BARREIROS, C. A.; JACINTO, A. B. M.; KINOSHITA, R. T.; MACDOWELL, P. L.; MOTA, T. D.; NICÁCIO, F.; SCHORN, M. C.; SOUZA, I. S.; TRINO, A. T.

leitos em hospitais psiquiátricos no País que histórico-cultural marcado por anos de es-
precisam passar pela desinstitucionalização. cravidão incide tanto nas questões direta-
Por outro lado, ao adentrarmos o território mente ligadas à discriminação racial quanto
das comunidades, defrontamo-nos com pro- nas relações de gênero e nos preconceitos de
blemas crônicos da nossa sociedade. Não classe social. A exclusão e a marginalização
obstante as imensas conquistas da última de grandes parcelas da população fomentam
década, a questão da desigualdade social violência e opressão. Coloca-se o desafio de
ainda permanece grave, particularmente se produzir novas instituições, novas formas
sob a perspectiva da produção de subjetivi- de agir, que pavimentem o caminho para
dade sob intensa mutação social. O legado uma sociedade sem manicômios. s

Colaboradores

Patrícia Santana Santos do Amaral, Enrique Araujo Reis, Leisenir de Oliveira, Pollyanna Fausta Pimentel
Bessoni, Adélia Benetti de Paula Capistrano, Milena de Medeiros, Keyla Antunes Kikushi Câmara, Marcel
Leal Pacheco, Nádia Maria Silva Pacheco, Thiago Henrique de Carvalho, Daniel Adolpho Daltin Assis,
Monteiro Pithon, Denis Wilson Recco, Hinara Helena Karine Dutra, Gabriela Hayashida, Rúbia Cerqueira
Silva Souza Ruas, June Corrêa Borges Scafuto, Thaís Persequini Lenza.
Soboslai, Barbara Coelho Vaz, César Henrique dos

Referências

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Política de saúde mental no novo contexto do Sistema Único de Saúde: regiões e redes 111

(Sinase), regulamenta a execução das medidas do Sistema Único de Saúde para a formação e o
socioeducativas destinadas a adolescente que pratique desenvolvimento de trabalhadores para o setor e dá
ato infracional. Diário Oficial [da] República Federativa outras providências. Diário Oficial [da] República
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112 ASSIS, J. T.; BARREIROS, C. A.; JACINTO, A. B. M.; KINOSHITA, R. T.; MACDOWELL, P. L.; MOTA, T. D.; NICÁCIO, F.; SCHORN, M. C.; SOUZA, I. S.; TRINO, A. T.

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DIVULGAÇÃO EM Saúde PARA Debate | rio de Janeiro, n. 52, p. 88-113, OUT 2014
114 artigo original | original article

Pessoas com doenças crônicas, as redes de


atenção e a Atenção Primária à Saúde
Chronic diseases, care networks and Primary Health Care

Patrícia Sampaio Chueiri1, Erno Harzheim2, Heide Gauche3, Lêda Lúcia Couto de Vasconcelos4

1Mestre em Epidemologia
pela Universidade Federal
do Rio Grande do Sul
(UFRGS) – Porto Alegre
(RS), Brasil. Coordenadora
Geral de Atenção às
Pessoas com Doenças RESUMO O Sistema Único de Saúde (SUS) já alcançou muitos resultados, entretanto, o
Crônicas do Departamento rápido envelhecimento da população, a transição do perfil epidemiológico e o conjunto de
de Atenção Especializada
e Temática, Secretaria mudanças socioeconômicas ocorridas nos últimos anos propõem novos desafios para o SUS.
de Atenção à Saúde, Entre eles, destacam-se o cuidado das pessoas com doenças crônicas e os tensionamentos
Ministério da Saúde –
Brasília (DF), Brasil. que estas provocam no sistema de saúde, tanto com relação à sua macro-organização (gestão
patricia.sampaio@saude.gov.br compartilhada, regulação, regionalização) quanto à micro-organização, ou seja, aqueles
2 Doutor em Medicina relacionados ao processo de trabalho das equipes de atenção direta. Neste sentido, este artigo
Preventiva e Saúde tem como objetivo refletir sobre: o processo de formação de redes regionalizadas de atenção
Pública pela Universidade
de Alicante – Alicante à saúde; o papel dos estados; o fortalecimento da Atenção Primária à Saúde (APS); e o papel
(Valência), Espanha. da APS no cuidado das pessoas com doenças crônicas. Para isso, descreve e problematiza as
Professor adjunto do
Departamento de ações do Ministério da Saúde, nos últimos anos, que vão ao encontro do tema: o cuidado das
Medicina Social e Professor pessoas com doenças crônicas.
permanente do Programa
de Pós-Graduação
em Epidemiologia da PALAVRAS-CHAVE Redes de Atenção à Saúde; Atenção Primária à Saúde; Doenças crônicas;
Universidade Federal do
Rio Grande do Sul (UFRGS) Regionalização.
– Porto Alegre (RS), Brasil.
ernoharz@terra.com.br
ABSTRACT The Unified Health System (SUS), Brazil’s National Health Care System, has achieved
3 Mestre em Saúde many results, however, the rapidly aging population, the transition of the epidemiological profile
Pública pela Universidade
Federal de Santa Catarina and the set of socioeconomic changes in recent years proposed new challenges for the SUS. Among
– Florianópolis (SC), them, it’s possible to highlight the care of people with chronic diseases and the tensioning that
Brasil. Especialista em
Políticas Públicas e this kind of patient creates in the health system. These tensions are related to macro-organization
Gestão Governamental aspects (shared management, regulation, regionalization) and also to the micro-organization
da Coordenação Geral
de Atenção às Pessoas aspects, those related to the work of the teams responsible for the care. Thus, this article aims to
com Doenças Crônicas, reflect on: the process of formation of regionalized Health Care Networks; the role of the states;
Departamento de Atenção
Especializada e Temática, the strengthening of Primary Health Care (APS); and the role of APS in the care of people with
Secretaria de Atenção à chronic diseases. To do so, it describes and discusses the actions of the Ministry of Health, in
Saúde, Ministério da Saúde
– Brasília (DF), Brasil. recent years, to meet the theme: the care of people with chronic diseases.
heide.gauche@saude.gov.br

4 Doutora em Saúde KEYWORDS Health Care Networks; Primary Health Care; Chronic diseases; Regional health
Coletiva pela Universidade planning.
Estadual de Campinas
– Campinas (SP), Brasil.
Diretora de Atenção
Especializada e Temática
da Secretaria de Atenção à
Saúde, Ministério da Saúde
– Brasília (DF), Brasil.
leda.vasconcelos@saude.gov.br

DIVULGAÇÃO EM Saúde PARA Debate | rio de Janeiro, n. 52, p. 114-124, OUT 2014
Pessoas com doenças crônicas, as redes de atenção e a Atenção Primária à Saúde 115

Introdução País, e atingem fortemente a população mais


pobre e vulnerável. (BRASIL, 2011a). Além de
As transformações sociais ocorridas nas importante causa de morte, elas impactam
últimas três décadas – como o aumento de 14% fortemente o orçamento da saúde, visto que
dos domicílios cobertos pela rede de abasteci- ampliam muito os gastos, pois necessitam,
mento de água, o aumento de 11% do PIB per muitas vezes, de tecnologias de alto custo e
capita, a queda de 20% da taxa de analfabetis- inovadoras (BODENHEIMER, 2008; DAVIES et al., 2006;
mo (na população de 15 e mais anos) –, somadas HOFMARCHER; OXLEY; RUSTICELLI 2007; SCHOEN et al., 2011).
às mudanças estruturais do país (urbanização, Elas podem também impactar o orçamento
ampliação do acesso à saúde, desenvolvimento individual/familiar, pois, em geral, acarretam
industrial/tecnológico, entre outras), tiveram queda da capacidade de trabalho e ampliam
impacto importante no perfil demográfico e os gastos da família/indivíduo com questões
epidemiológico brasileiro (BRASIL, 2012). relacionadas à saúde.
Atualmente, o nosso perfil demográfico As doenças crônicas podem ser caracte-
é caracterizado pelo aumento constante do rizadas como problemas de saúde que estão
número de idosos, que, em 2030, já terá ul- relacionados a causas múltiplas, com início
trapassado o número de jovens. A expectativa gradual, com prognóstico usualmente incerto
de vida, que hoje é de 73 anos, passará para e com longa ou indefinida duração; que apre-
81,9 anos (BRASIL, 2012a). Esse envelhecimento sentam um curso clínico que muda ao longo
provoca um acréscimo importante na carga do tempo, com momentos de agudização,
de doenças crônicas da população brasileira. podendo gerar incapacidades. Requerem,
Além do envelhecimento da população, o ainda, intervenções com uso de diferentes
desenvolvimento científico e tecnológico que densidades tecnológicas, associadas a estraté-
ocorreu e ocorre na área da saúde também gias que apoiem a mudança do estilo de vida
ampliou o número de pessoas convivendo (BRASIL, 2012).
com doenças crônicas, fator esse que, somado Assim, além do impacto orçamentário, elas
à queda do número de doenças transmissíveis também provocam desafios para a organiza-
agudas, também contribui para o aumento da ção do SUS e para o processo de trabalho em
carga de doenças crônicas no perfil epidemio- saúde, pois trazem consigo a necessidade de
lógico brasileiro. Para exemplificar as princi- mudar o modelo de cuidado (micro-organi-
pais doenças/condições crônicas, podemos zação) e de organização do sistema como um
citar: as doenças cardiovasculares, o câncer, todo (macro-organização). Exigem uma nova
o diabetes, os problemas de saúde mental, in- forma de funcionamento do sistema de saúde
capacidades estruturais (amputações, ceguei- e do processo de trabalho das equipes ao de-
ra), assim como algumas doenças infecciosas mandarem uma atenção contínua, integrada e
crônicas (ex.: Síndrome da Imunodeficiência coordenada.
Adquirida, hepatites) (OMS, 2003; FUNDAÇÃO Concomitante às mudanças sociais, de-
OSWALDO CRUZ et al., 2012). mográficas e epidemiológicas, ocorreram
avanços importantes na organização do SUS,
entre eles, destacam-se a ampliação do acesso,
Desafios impostos pelo principalmente por meio da atenção primária
novo perfil epidemiológico (saúde da família), a melhora em indicadores
de saúde (queda da mortalidade infantil, da
e demográfico do Brasil prevalência da população tabagista e da mor-
talidade por doenças crônicas), os progressos
Hoje, as doenças crônicas não transmissíveis da descentralização da gestão e o fortaleci-
correspondem a 72% das causas de morte no mento da capacidade produtiva nacional de

DIVULGAÇÃO EM Saúde PARA Debate | rio de Janeiro, n. 52, p. 114-124, OUT 2014
116 CHUEIRI, P. S.; HARZHEIM, E.; GAUCHE, H.; VASCONCELOS, L. L. C.

insumos e medicamentos (LECOVITZ, 2001). redes para subpopulações (gestantes, crian-


Esse novo quadro ainda exige avanços no ças, idosos) e/ou temas específicos (doenças
sentido de: qualificação da gestão dos servi- crônicas, urgência/emergência, saúde mental),
ços, atualmente retratada pela oferta indiscri- e, portanto, não têm seu foco em todo o sistema,
minada de ações e serviços de saúde; melhora como as RAS. Porém, ambas têm importantes
do equilíbrio entre a atenção especializa- pontos em comum, como: a definição das res-
da (ambulatorial e hospitalar) e a Atenção ponsabilidades dos pontos de atenção, o desta-
Primária à Saúde; garantia de financiamento que para a necessidade do compartilhamento
adequado ao SUS; diminuição das iniqui- de informações, o vínculo entre os serviços e,
dades geográficas; integração da rede assis- principalmente, a ênfase no fortalecimento da
tencial, atualmente fragmentada; e, por fim, Atenção Primária à Saúde (APS).
adequação da formação profissional segundo Tanto nas redes temáticas como nas redes
as necessidades do sistema (BRASIL, 2003). de atenção, a APS deve ser o ponto estrutu-
Nesse contexto epidemiológico e de desen- rante e coordenador do cuidado individual ao
volvimento do SUS, a organização das Redes exercer o papel de ordenadora e de porta de
de Atenção à Saúde (RAS) tem se colocado entrada prioritária das RAS. (OPAS, 2010). Essas
como uma ferramenta importante para o en- funções trazem a APS como nível de atenção,
frentamento de obstáculos, tanto com relação mas também a coloca em uma posição de orga-
ao cuidado das pessoas com doenças crônicas nização das redes regionalizadas (BRASIL, 2012b).
como no tocante aos sistemas de saúde nacio- A opção do MS de iniciar a gestão pela nor-
nais (MENDES, 2008; OPAS, 2010). matização e pelo financiamento de redes te-
O Brasil, desde a concepção do SUS, vem máticas foi positiva no sentido de que quando
caminhando para a conformação de Redes de ‘partes’ do sistema passam a funcionar com a
Atenção à Saúde. Em um primeiro momento, lógica de Redes de Atenção à Saúde, elas podem
pautado pelas diretrizes constitucionais de influenciar a organização do todo a partir da
descentralização e regionalização; depois, mesma lógica. Sendo assim, essa seria a estraté-
no início da década de 90, pelas Normas gia operacional mais viável para a concretização
Operacionais Básicas (NOB) e Normas das Redes de Atenção à Saúde no futuro.
Operacionais da Assistência à Saúde (Noas), Neste contexto, em 2013, a Rede de Atenção
passando pelo Pacto pela Saúde (BRASIL, 2006); e, às Pessoas com Doenças Crônicas (RASPDC)
mais atualmente, pela Portaria do Ministério foi instituída pela portaria GM nº 252, de 19
da Saúde nº 4.279 (BRASIL, 2010), que estabelece de fevereiro de 2013, e foi redefinida pela
as diretrizes para a organização das Redes Portaria nº 483, de 1º de abril de 2014, com o
de Atenção à Saúde (RAS), e pelo Decreto objetivo de fomentar a mudança do modelo
Presidencial nº 7.508 (BRASIL, 2011), que concei- de atenção das pessoas com doenças crônicas
tua região de saúde, define componentes das por meio da qualificação do cuidado em todos
RAS e ainda cria a Comissão Intergestores os pontos de atenção.
Regional (CIR) (BRASIL, 2002, 1996, 2006, 2010, 2011a). A constituição da RASPCD é também uma
A fim de operacionalizar os normativos das ações do eixo de cuidado integral do Plano
citados acima, principalmente os dois últimos, de Ações Estratégicas para o Enfrentamento
o Ministério da Saúde (MS) vem, desde o das Doenças Crônicas Não Transmissíveis no
início de 2011, incentivando a conformação Brasil 2011-2022. Esse plano aborda as quatro
das redes por meio de portarias que definem principais doenças crônicas do país (doenças
e financiam redes temáticas. cardiovasculares, doenças respiratórias crô-
Redes temáticas não são sinônimo de Redes nicas, diabetes e os cânceres), temas também
de Atenção à Saúde (RAS), pois se caracteri- prioritários para a RASPCD, e os seus prin-
zam pela organização da atenção através de cipais fatores de risco (tabagismo, consumo

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Pessoas com doenças crônicas, as redes de atenção e a Atenção Primária à Saúde 117

nocivo de álcool, inatividade física, alimenta- ter longa duração e forte inter-relação com os
ção inadequada e obesidade), e trabalha com hábitos de vida das pessoas, exige do sistema
três eixos: (a) vigilância, informação, avalia- de saúde uma nova organização. Exige a
ção e monitoramento, (b) promoção da saúde adoção de um modelo de atenção que dê conta
e (c) cuidado integral (BRASIL, 2011a). de um cuidado coordenado, continuado, orga-
Além da RASPCD, o MS também desen- nizado, proativo, integrado e que ainda tenha
volveu outras estratégias para o cuidado in- capacidade de apoiar a pessoa nas mudanças
tegral e a promoção da saúde, relacionadas de vida que a doença ‘pede’ e que o indivíduo
às doenças crônicas. São elas: o Programa deseja (MENDES, 2012). Este cuidado deve ser
Academia da Saúde, que trabalha com o principalmente realizado pela e na atenção
enfoque da promoção, da prevenção e da re- primária (AP).
abilitação; o Programa Saúde na Escola, que Além das necessárias mudanças na lógica
nos últimos anos teve como temas centrais do cuidado cotidiano das pessoas com doenças
a obesidade e a prática de atividade física; e crônicas descritas acima, estas doenças de-
efetuou uma revisão da portaria que regula- mandam também organização regional da
menta a atenção no Programa Nacional de atenção à saúde. Pois para que a APS tenha
Controle do Tabagismo (Portaria nº 571, de a resolutividade imprescindível ao seu papel
05 de abril de 2013), possibilitando ampliação nesta rede de atenção à saúde - RASPDC, ela
importante do acesso do usuário ao tratamen- obrigatoriamente necessitará de apoio diag-
to do tabagismo na Atenção Primária à Saúde nóstico e terapêutico dos pontos de atenção
– passando de 2000 equipes de Atenção Básica especializados (ambulatoriais e hospitalares).
cadastradas para mais de 20 mil equipes, que Assim, o cuidado integral de pessoas com
se comprometeram através do PMAQ a rea- doenças crônicas coloca no centro do debate
lizar ações para a abordagem do tabagista. a questão da regionalização do SUS.
Essas equipes, além de ofertar o tratamento, A necessidade de organizar a atenção à
passam a ter acesso às medicações que contri- saúde na região, a fim de garantir a integra-
buem para a cessação do hábito. lidade e a equidade do cuidado da pessoa
Frente aos desafios impostos por esse novo com doença crônica, impulsiona o avanço da
perfil epidemiológico do Brasil, ao atual con- regionalização, ao mesmo tempo que a rede
texto organizacional do SUS e às estratégias organizada seria o produto concreto desse
lançadas pelo MS nos últimos anos, este artigo processo político de regionalização amadu-
tem como objetivo refletir sobre dois grandes recido. Desse modo, o desenvolvimento da
temas que são transversais a essas questões. rede regionalizada de atenção à saúde para as
São eles: a implementação da RASPCD e o pessoas com doenças crônicas e a regionaliza-
papel da atenção primária no cuidado das ção do SUS são processos interdependentes.
pessoas com condições/doenças crônicas. Cabe ressaltar que, além da evolução das
normas e diretrizes que o Brasil vem apresen-
tando para a organização das RAS e para a re-
Desafios para a gionalização, é preciso uma mudança cultural
implantação da RASPDC da gestão no País. Por ser, neste momento, a
gestão locorrregional caracterizada pela com-
– regionalização, petitividade entre os municípios, é preciso
fortalecimento da Atenção caminhar para a gestão cooperativa entre mu-
Primária à Saúde e nicípios e entre estados e municípios, a fim
financiamento de possibilitar a concretização das Redes de
Atenção à Saúde (SANTOS, 2013).
Esta característica da doença crônica, de Neste sentido, para de fato o SUS avançar

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na concretização da regionalização, há neces- diretrizes e princípios que podem auxiliar


sidade de se rediscutir o papel dos estados. gestores e profissionais a repensar o atual
Nessas quase três décadas de desenvolvimen- modelo de atenção, suscitando mudanças
to do SUS, fica claro o necessário protagonis- tanto no cotidiano das equipes responsáveis
mo dos municípios no sentido de possibilitar pelo cuidado direto quanto das equipes res-
a ampliação do acesso. Entretanto, fica evi- ponsáveis pela gestão do sistema de saúde.
dente também que, atualmente, é indispensá- Dentre as diretrizes instituídas pela Portaria
vel que os estados assumam, em parceria com nº 483, destacam-se: a necessidade de regio-
os municípios e com o apoio da gestão federal, nalização das ações, principalmente aquelas
o protagonismo para o desenvolvimento das relacionadas à atenção especializada, respei-
regiões e para a conformação das Redes de tando a linha de cuidado e as necessidades de
Atenção à Saúde, desenvolvendo diretrizes saúde da população; a garantia de acesso re-
locais e mediando as relações municipais. gulado à atenção especializada, ambulatorial
No papel de protagonistas, no tocante à e hospitalar; e a implementação de sistemas
regionalização, destacam-se duas ações dos de informação que permitam o acompanha-
estados, que seriam essenciais: (1) definição mento e o compartilhamento do cuidado à
formal do que é região de saúde para aquele pessoa com doença crônica.
estado (descrevendo a integralidade mínima Neste sentido, o MS já publicou duas linhas
esperada em cada região do estado a partir de cuidado: a que trata da atenção à pessoa
do Decreto nº. 7508. Por exemplo, Tocantins, com sobrepeso e obesidade [Portaria nº. 424,
que definiu claramente o que se espera de 19 de março de 2013 (BRASIL, 2013a)] e a que trata
ações e serviços em cada região de saúde do da atenção à pessoa com doença renal crônica
estado – Resolução CIB 161, de 29 de Agosto [Portaria nº. 389, 13 de março de 2014 (BRASIL,
de 2012: descreveu o percentual mínimo de 2014a)]. O Ministério também vem trabalhan-
cobertura de APS, qual o mínimo de servi- do para a organização das linhas de cuidado
ços especializados ambulatoriais e hospita- do câncer de colo de útero e de mama. Para a
lares, o mínimo de serviços de saúde mental organização destas duas últimas, o MS lançou,
etc.); (2) desenvolvimento e fortalecimento em 2014, uma portaria [Portaria nº 189, de 31
da regulação estadual, quando a atenção se de janeiro de 2014 (BRASIL, 2014b)] que define fi-
dá fora dos municípios, a partir da definição nanciamento diferenciado para serviços am-
de protocolos de regulação e da organização bulatoriais especializados para diagnóstico e
das filas de espera. Um bom exemplo é a re- tratamento de lesões precursoras do câncer
gulação da atenção oncológica, considerando de colo de útero (SRC) e para o diagnóstico
que a maioria dos municípios do País não terá de lesões da mama (SDM), e reviu a portaria
capacidade de oferecer um cuidado integral a que define as diretrizes para organização dos
esse usuário em seu próprio território, e ne- serviços hospitalares de cuidado da pessoa
cessitará de serviços em outras localidades; com câncer.
nesse caso, o estado pode intervir na atenção A portaria que define serviços ambula-
tanto criando protocolos de regulação para toriais especializados na área da oncologia
priorização da oferta de apoio diagnóstico (SDM e SRC) propõe um novo modelo para
nos casos de suspeita de câncer quanto para a organização desses pontos de atenção, pois
a regionalização do tratamento de casos já exige que tais serviços sejam regionalizados,
confirmados. tenham equipes de atenção primária adscri-
A RAS das Pessoas com Doenças Crônicas tas, para as quais são referência, e realizem
será implantada por meio da organização um rol mínimo de ações. A proposta de um
e operacionalização de linhas de cuidado modelo de financiamento da atenção especia-
específicas, que, por sua vez, apresentam lizada ainda não progrediu, já que seu custeio

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Pessoas com doenças crônicas, as redes de atenção e a Atenção Primária à Saúde 119

permanece baseado na produção de ações e Para ter resolutividade, ela tem que atender
serviços, contudo, avança como proposta con- com efetividade aos problemas mais comuns
creta de mudança do modelo de atenção para da sua população. Para ser a ordenadora da
a atenção ambulatorial especializada. RAS, precisa conhecer sua população, saber
O avanço na forma de financiamento não de suas necessidades e organizar o acesso
foi possível, entre outros motivos, em decor- aos outros pontos de atenção. Por fim, para
rência das dificuldades para o monitoramen- exercer a coordenação do cuidado individual,
to, o controle e a avaliação através dos atuais precisa trabalhar como centro de comunica-
sistemas de informação do País. Apesar disso, ção da RAS, compartilhando o cuidado com
o futuro indica que será possível a proposi- os outros serviços da rede (STARFIELD, 2002; BRASIL,
ção de outra forma de financiamento com 2012; HARZHEIM, 2011; MENDES, 2011).
o avanço dos sistemas de informação, a im- Para que o fortalecimento da APS aconte-
plantação do cartão SUS e a organização dos ça, é preciso que, antes, alguns desafios sejam
contratos organizativos de ações públicas da superados, tais como: ampliar a formação de
saúde. profissionais especialistas em APS; melhorar
Além destes dois pontos: mudança na a distribuição e a fixação de profissionais;
lógica do cuidado cotidiano e revisão do papel ‘estender a efetividade clínica das equipes’,
do estado na regionalização e na regulação, com Educação Permanente e adensamento
as doenças crônicas tensionam o sistema tecnológico das Unidades Básicas de Saúde;
para um fortalecimento da atenção primária possuir sistemas de informação que facilitem
como principal locus de cuidado da popula- a coordenação do cuidado e aumentar subs-
ção. Exigindo um verdadeiro adensamento tancialmente o financiamento para a APS
tecnológico da APS, a fim de que esta tenha (BRASIL, 2003).
a resolutividade esperada e necessária, e Além dessas questões estruturantes, o País
colocando-a em outro patamar, ampliando precisa definir qual é a carteira de serviços
sua responsabilidade para além do cuidado mínima esperada da APS brasileira (saúde
materno infantil, do cuidado de doenças in- da família). A construção da Renases foi um
fectocontagiosas e da prevenção e promoção primeiro passo, porém, ainda muito tímido.
da saúde. A Atenção Primária à Saúde passa Há necessidade de ampliar a discussão e de-
a ocupar uma posição central na organização marcar o que se espera dessa equipe multi-
das redes, tornando seu fortalecimento um profissional em termos de responsabilidades
elemento essencial para a concretização do e resolutividade. Em um primeiro momento,
cuidado resolutivo de pessoas com doenças talvez haja necessidade de criar três ou mais
crônicas. tipos de carteiras de serviços, que poderiam
A APS, dentro de um sistema organizado ser escolhidas pelos gestores municipais de
na lógica das redes, é responsável pela saúde acordo com a realidade de cada município,
integral de sua população, devendo cumprir para, no futuro, termos um padrão mínimo
os seus atributos essenciais (acesso de pri- exigido da APS brasileira.
meiro contato, integralidade, longitudinalida- Essa definição de carteira de serviços deve
de e coordenação) e exercer plenamente suas ter correspondência com uma infraestrutu-
funções na RAS (ser a base do sistema, ser ra física e de densidade tecnológica à qual
resolutiva, ser coordenadora do cuidado in- cada equipe deve ter acesso na sua própria
dividual e ordenadora da RAS) (STARFIELD, 2002; Unidade Básica de Saúde. O financiamento
BRASIL, 2012; HARZHEIM, 2011; MENDES, 2011). da APS seria baseado, entre outros pilares,
Para ser a base do sistema, é necessário que nessa carteira de serviços ou na capacidade
a APS seja um ponto de atenção forte, estru- resolutiva.
turado e capilarizado por todo o território. Sem a resolução de todas essas questões,

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dificilmente a APS vai alcançar grande legi- são as muitas desigualdades regionais exis-
timidade perante a sociedade brasileira, e o tentes, relativas não só às questões da saúde
passo anterior para isso é conquistar credibi- (ao acesso e à integralidade das ações), mas
lidade suficiente com os gestores do SUS, para também ao desenvolvimento global das
que estes propiciem as condições necessárias regiões. (SILVA, 2013; GIOVANELLA et al., 2012). Isso
para a consolidação. agrega mais um fator complicador para as
A questão do financiamento, colocada políticas públicas federais, que devem ser fle-
neste texto como o terceiro grande desafio xíveis o suficiente para que possam tratar di-
para a implantação da RASPDC, diz respei- versificadamente de cada realidade/região do
to à garantia de financiamento adequado à País, mas não tão flexíveis a ponto de impedir
opção da sociedade brasileira por um sistema a definição de diretrizes comuns para termos
de saúde público e universal, atualmente um sistema de saúde verdadeiramente único
baseado na Atenção Primária à Saúde. Esse em todo o Brasil.
ponto inclui as discussões relacionadas ao
orçamento público destinado ao SUS, à regu-
lação dos serviços privados, ao gasto privado Cuidado coordenado,
com saúde (e sua relação com a carga tribu- continuado, organizado,
tária brasileira) e à contradição da oferta de
planos privados de saúde para servidores pú-
integrado e proativo – papel
blicos (GIOVANELLA et al., 2012; LEVCOVITZ, 2001). da APS na rede de cuidado
A respeito do financiamento, se ainda se das pessoas com doenças
considerar que, além do recurso finito, houve crônicas
aumento dos custos, com a incorporação de
novas tecnologias, relacionado, principal- Coordenação do cuidado é um conceito
mente, ao predomínio das doenças crônicas complexo, que tem inter-relação com outros
no perfil epidemiológico, e que ainda há ex- conceitos em saúde, mas podemos tradu-
cessiva oferta de ações e serviços de saúde de zir como uma organização deliberada de
forma indiscriminada (baseada na oferta e cuidado individual, centrada na pessoa, que
não nas necessidades de saúde), fica evidente possibilita, principalmente, integração e
a obrigação das gestões de ampliar a relação continuidade das várias ações de saúde pres-
custo-efetividade dos serviços de saúde utili- tadas nos diferentes serviços do sistema de
zando, de forma mais corriqueira, os conceitos saúde (MCDONALDS, 2010).
de escala, escopo e acesso na organização das A coordenação tem dois componentes
linhas de cuidado. Mais uma vez, a regionali- básicos: a transferência ou o acesso à infor-
zação pode se colocar como parte da solução mação (sistemas informatizados, prontuários
do problema, aliada à mudança da cultura or- compartilhados, eletrônicos ou não, sistemas
ganizacional, como citado anteriormente. de comunicação entre os pontos de atenção:
Contudo, as portarias que versam sobre as discussão de casos, gestão da clínica, cuidado
redes temáticas, pactuadas de forma tripar- compartilhado) e o reconhecimento das in-
tite, ainda não trazem grandes avanços nas formações necessárias para o presente aten-
questões referentes ao planejamento (neces- dimento (continuidade dos profissionais, lista
sidade de saúde local, regulação etc.) e ao de problemas, classificação de riscos, lista de
financiamento regionais, avanços esses que medicamentos em uso, exames solicitados
possam de fato incentivar tanto a mudança de etc.) (STARFIELD, 2002).
papel dos estados como a cooperação entre os Além de reconhecer quais informações
entes federados. são importantes para o cuidado, é preciso
Outro ponto que dificulta a regionalização também conhecer e guiar o caminho que o

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Pessoas com doenças crônicas, as redes de atenção e a Atenção Primária à Saúde 121

usuário deve percorrer na rede de atenção, sentido para a pessoa portadora de doença
para garantir um cuidado integral de quali- crônica, já que ela, naquele momento, geral-
dade. Portanto, coordenar o cuidado implica, mente, está assintomática.
também, garantir que o paciente receba em O cuidado de pessoas com doenças crôni-
outros pontos de atenção o cuidado de que cas, sim, precisa ser planejado, porém, há de
necessita, englobando na sua concretização a se chegar a um equilíbrio difícil entre organi-
continuidade do cuidado e exercendo outros zar o cuidado de acordo com as ‘necessidades’
atributos, como o acesso, a integralidade e a das doenças crônicas (verificação do contro-
responsabilidade pelo cuidado de uma comu- le metabólico, realização de exames físicos,
nidade (MENDES, 2011; STARFIELD, 2002). laboratoriais e propedêuticos periódicos,
Neste sentido, a organização, pela gestão acompanhamento da adesão ao tratamento
estadual, em parceria com os municípios, de e da manutenção das mudanças de hábitos) e
linhas de cuidado temáticas e de regras de as necessidades da pessoa, ofertando acesso
acesso aos outros pontos de atenção (regula- amplo e irrestrito sempre que solicitado.
ção) são de grande importância para apoiar as Além de buscar o equilíbrio entre o acesso
equipes de APS nessa tarefa. e a organização da atenção, as equipes de APS
A coordenação do cuidado individual precisam estar familiarizadas com as tecnolo-
como estratégia de cuidado é vista na gias e os conhecimentos (advindos, em geral,
literatura como uma habilidade essencial dos campos da psicologia e da antropologia)
para que os profissionais de saúde da APS necessários para sua atuação junto aos usu-
cuidem de pacientes com doenças crônicas ários na orientação da mudança de hábitos
(HOFMARCHER et al., 2007). Ela auxilia a equipe e na adesão ao tratamento, itens fundamen-
na prevenção quaternária, já que pode evitar tais para o cuidado de pessoas portadoras de
novas solicitações de exames e interações doenças crônicas. Precisam, ainda, estar aptas
medicamentosas, assim como diminuir erros a apoiar mudanças, não apenas individuais,
e complicações. A coordenação é também mas, também, familiares. Por exemplo, diante
importante economicamente, pois pode evitar do surgimento de um novo contexto, quando
gastos desnecessários, tanto para o sistema de um membro da família deixa de exercer
saúde como para a própria pessoa. alguma função devido a uma doença crônica.
Com relação à organização e à proatividade Nesse sentido, as equipes multiprofissionais
da equipe de APS no cuidado de pessoas com (no Brasil, representadas na APS pelos Núcleos
doenças crônicas, pode-se dizer que o modelo de Apoio à Saúde da Família) precisam exercer
vigente, que utiliza propostas de cuidado forma- suas habilidades entrando de fato no círculo
tadas a priori, não tem obtido sucesso em suas do cuidado das pessoas com doenças crônicas
condutas por não conseguir chegar até a neces- com atenção direta ao usuário, já que aquelas
sidade de cada indivíduo (MALTA; MERHY, 2010) detêm as habilidades e os conhecimentos ne-
Isso fica evidente com o elevado absente- cessários para atuar em questões como, por
ísmo nas chamadas consultas de rotina/con- exemplo: adesão ao tratamento, reabilitação,
trole, evidenciando que quando uma equipe adaptação individual e familiar a um novo con-
prioriza a sua ‘própria’ lógica (lógica da texto, entre outras situações.
doença), em vez da necessidade do paciente Essas são algumas das mudanças de pa-
(a prevenção/continuidade do cuidado frente radigma que a doença crônica demanda do
ao sofrimento atual), e quando amplia o processo de trabalho das equipes de APS, pois
número de consultas de rotina em detrimen- exigem alta resolutividade, com amplo es-
to da oferta de atenção, quando solicitada de pectro de atuação, e isso exige trabalho mul-
maneira espontânea pelo usuário, a tendência tiprofissional e uso de diferentes densidades
é de que aquela consulta de rotina não faça tecnológicas.

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Consideração final A concretização dessas estratégias –


através da revisão de conceitos, então conso-
Retomando o que foi exposto, pode-se lidados, da ampliação do debate em torno do
dizer que o tema ‘pessoas com doenças papel dos estados, do tema da regionalização,
crônicas’, pela sua grande importância do financiamento, do fortalecimento da APS
epidemiológica, pelo seu impacto social e e da proposição de soluções inovadoras para
por exigir micro e macromudanças no SUS, a sociedade – pode gerar um círculo virtuoso
pode ser uma grande força motriz para para a consolidação do sistema de saúde bra-
impulsionar a concretização destas duas sileiro, propiciando que este se mantenha em
estratégias de enfrentamento dos atuais um caminho ascendente, ampliando tanto o
desafios do SUS: ‘a organização das Redes acesso da população aos cuidados em saúde
de Atenção à Saúde e o fortalecimento da como os impactos do SUS nos indicadores de
Atenção Primária à Saúde’. saúde do País. s

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DIVULGAÇÃO EM Saúde PARA Debate | rio de Janeiro, n. 52, p. 114-124, OUT 2014
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artigo original | original article 125

Entendendo os desafios para a


implementação da Rede de Atenção às
Urgências e Emergências no Brasil: uma
análise crítica
Understanding the challenges for implementation of the Urgency and
Emergency Services Network in Brazil: a critical analysis

Alzira de Oliveira Jorge1, Ana Augusta Pires Coutinho2, Ana Paula Silva Cavalcante3, Andersom
Messias Silva Fagundes4, Cláudia Carvalho Pequeno5, Maria do Carmo6, Paulo de Tarso Monteiro
Abrahão7

1Doutora em Saúde
Coletiva pela Universidade
Estadual de Campinas
(Unicamp) – Campinas
(SP), Brasil. Professora da
Faculdade de Medicina da RESUMO Este artigo descreve e analisa o processo de implementação da Rede de Atenção
Universidade Federal de
Minas Gerais (UFMG)- às Urgências e Emergências (RUE) nas regiões de saúde brasileiras, buscando identificar os
Belo Horizonte (MG), fatores facilitadores e dificultadores da sua efetivação, de modo a contribuir com a avaliação
Brasil.
alzira.o.jorge@gmail.com desta política. A implantação das redes de atenção é uma iniciativa federal apoiada pelos
gestores estaduais e municipais com vistas à maior integração entre os serviços de saúde no
2 Doutora em Ciências da
Saúde pela Universidade nível regional, objetivando a integralidade da atenção. Conclui-se que, em relação à RUE,
Federal de Minas avanços têm sido alcançados em vários dos seus componentes, mas há ainda importantes
Gerais (UFMG) – Belo
Horizonte (MG), Brasil. desafios a serem enfrentados para a garantia de uma atenção às urgências integral, ágil e
Coordenadora do Programa oportuna.
SOS Emergências do
Departamento de Atenção
Hospitalar e Urgências PALAVRAS-CHAVE Emergências; Sistemas de saúde; Gestão em saúde; Gestão hospitalar;
da Secretaria de Atenção
à Saúde do Ministério Gerenciamento clínico; Redes de saúde comunitária.
da Saúde – Brasília (DF),
Brasil.
ana.coutinho@saude.gov.br ABSTRACT This article describes and analyzes the implementation of Urgencies and Emergencies
3 Mestre em Saúde
Attention Network (RUE) in Brazilian health regions, focusing on identifying the facilitating
Coletiva pela Universidade and complicating factors to its effectuation, in a contributing way to this policy evaluation. The
do Estado do Rio de Janeiro implementation of attention networks is a federal initiative supported by state and municipal
(Uerj) – Rio de Janeiro
(RJ), Brasil. Mestre em managers, aiming on a better integration between health services in a regional level, having
Gestão de Tecnologias em attention integrality as goal. About the RUE, it is concluded that advances are being achieved
Saúde pela Universidade
do Estado do Rio de Janeiro in several of its components, but there are still important challenges to be tackled in order to
(Uerj) – Rio de Janeiro guaranteeing integral agile and convenient attention to urgencies.
(RJ), Brasil. Coordenadora
da Coordenação Geral de
Atenção Hospitalar do KEYWORDS Emergencies; Health systems; Health management; Hospital administration;
Departamento de Atenção
Hospitalar e Urgências Disease management; Community networks.
da Secretaria de Atenção
à Saúde do Ministério
da Saúde – Brasília (DF),
Brasil.
anapaula.cavalcante@saude.
gov.br

DIVULGAÇÃO EM Saúde PARA Debate | rio de Janeiro, n. 52, p. 125-145, OUT 2014
126 JORGE, A. O.; COUTINHO, A. A. P.; CAVALCANTE, A. P. S.; FAGUNDES, A. M. S.; PEQUENO, C. C.; CARMO, M.; ABRAHÃO, P. T. M.

Introdução situação e necessidades de saúde existen-


tes no País e os sistemas de atenção à saúde
Apesar dos importantes avanços na fragmentados, e preconiza a implantação das
implantação do Sistema Único de Saúde Redes de Atenção à Saúde (RAS).
(SUS) no Brasil, desde que foi criado pela Nesta direção, desde dezembro de 2010,
Constituição de 1988, com a organização e por meio da Portaria nº 4.279 (BRASIL, 2010), o
o fortalecimento dos sistemas municipais e Ministério da Saúde (MS) já acenava para a
estaduais de saúde, a ampliação da oferta de necessidade da organização das RAS como
serviços e o aumento da cobertura popula- estratégia para a consolidação do SUS, de
cional, é importante considerar que ainda há modo a promover e assegurar a universalida-
muito a ser feito, especialmente com vistas de e a integralidade da atenção, bem como a
à garantia da qualidade dos serviços e de equidade do acesso, além da melhor articula-
sistemas locais de saúde atuando de forma ção dos serviços e sistemas e a transparência
4Especialista em Saúde
integrada e articulada. na alocação de recursos. Assim, a Secretaria
Pública pela Universidade Conforme avalia Feuerwerker (2005, p.490), de Atenção à Saúde (SAS), a partir de 2011,
Federal de Minas Gerais
(UFMG) – Belo Horizonte
“(...) o SUS real, apesar de todas as acumula- definiu a implantação das Redes Temáticas
(MG), Brasil. Coordenador ções e avanços, está ‘(ainda)’ muito distante prioritárias como estratégia nuclear para o
da Rede de Atenção às
Urgências e Emergências
da proposta almejada pelo movimento da alcance desses objetivos (BRASIL, 2013a).
(RUE) do Departamento Reforma Sanitária”, isto porque algumas A Rede de Atenção às Urgências e
de Atenção Hospitalar e
Urgências da Secretaria
fragilidades do sistema põem em risco sua Emergências (RUE) foi instituída pela
de Atenção à Saúde do legitimidade política e social. Portaria n° 1.600, de 07 de julho de 2011
Ministério da Saúde –
Brasília (DF), Brasil.
Esta situação reveste-se de importân- (BRASIL, 2011a), que reformulou a Política
andersom.fagundes@saude. cia maior tendo em vista o momento atual, Nacional de Atenção às Urgências, definin-
gov.br
quando se identifica um quadro sanitário do os diversos componentes desta rede de
5 Coordenadora das no País caracterizado por uma transição atenção e os incentivos a serem disponibili-
Unidades de Pronto
Atendimento da
demográfica acelerada, transição epide- zados aos estados e municípios para sua im-
Coordenação Geral de miológica e nutricional; bem como pela ur- plementação em seus territórios.
Urgência e Emergência do
Departamento de Atenção
banização e pelo crescimento econômico e A organização da RUE tem a finalidade
Hospitalar e Urgências social que contribuem para um maior risco de articular e integrar, no âmbito do SUS,
da Secretaria de Atenção
à Saúde do Ministério da
de desenvolvimento das doenças crônicas todos os equipamentos de saúde, objetivan-
Saúde – Brasília (DF), Brasil. (MALTA; MORAIS NETO; SILVA JÚNIOR, 2011). Dados do ampliar e qualificar o acesso humanizado
claudia.pequeno@saude.gov.br
epidemiológicos em nosso País indicam e integral aos usuários em situação de ur-
6 Mestre em Saúde Pública uma acelerada progressão de mortes por gência nos serviços de saúde de forma ágil
pela Faculdade de Medicina
da UFMG, especialista em
causas externas, com ênfase em violências e oportuna, e deve ser implementada gra-
Administração Hospitalar e traumas, tornando-se a segunda causa de dativamente, em todo o território nacional,
pelo Instituo Brasileiro de
Administração Municipal
óbitos no gênero masculino e a terceira no respeitando-se os critérios epidemiológicos
(Ibam) e Universidade total. Além disso, as doenças crônicas não e de densidade populacional.
Estadual do Rio de Janeiro
(Uerj). Diretora do
transmissíveis, com destaque para o número A atenção às urgências vem se apresen-
Departamento de Atenção de óbitos por Infarto Agudo de Miocárdio tando como pauta fundamental e prioritá-
Hospitalar e Urgências
da Secretaria de Atenção
(IAM) e Acidente Vascular Cerebral (AVC) ria, tanto para o governo federal como para
à Saúde do Ministério da se constituem como relevantes problemas a maioria dos estados e municípios do País,
Saúde – Brasília (DF), Brasil.
maria.carmo@saude.gov.br
de saúde, demandando uma nova conforma- justificada pela magnitude dos problemas
ção do sistema com ações que garantam um nesta área e pela necessidade de intervenção
7 Coordenador do Serviço
de Atendimento Móvel de
acompanhamento longitudinal dos usuários para a melhoria do atendimento. Para seu
Urgência (Samu) e Força e suas respectivas necessidades de saúde. enfrentamento, é fundamental a articulação
Nacional do SUS – Brasília
(DF), Brasil.
Mendes (2011) refere que o problema prin- das três esferas de governo, sob o ponto de
paulo.abrahao.@saude.gov.br cipal do SUS reside na incoerência entre vista assistencial, bem como para a garantia

DIVULGAÇÃO EM Saúde PARA Debate | rio de Janeiro, n. 52, p. 125-145, out 2014
Entendendo os desafios para a implementação da Rede de Atenção às Urgências e Emergências no Brasil: uma análise crítica 127

do adequado financiamento a uma melhor e seus primeiros resultados, de modo a con-


atenção, minimizando, assim, o grave quadro tribuir para a avaliação dessa política. Sob o
atual. A política preconiza que a atenção às ur- ponto de vista metodológico, foi realizado
gências deve fluir em todos os níveis do SUS, um estudo descritivo, buscando identificar,
organizando a assistência desde as unidades na população das regiões de saúde brasilei-
básicas, passando pelas atenções pré-hos- ras que receberam recursos e se definiram
pitalar (Serviço de Atendimento Móvel de pela implantação da Rede de Atenção às
Urgência, Unidade de Pronto Atendimento), Urgências, se efetivamente nestas regiões
hospitalar e domiciliar. Orquestrar uma rede de saúde, houve melhoria dos indicadores
dessa natureza, de modo a articular todos os e processos propostos nos Planos de Ação
seus componentes para atuação integrada e Regionais (PAR) para aprimoramento da
sinérgica, se constitui na única alternativa qualidade da atenção.
para a melhoria da efetividade e da atenção Foram utilizados como fontes de dados: os
ágil e oportuna às diversificadas situações de documentos oficiais compostos pelas porta-
urgências e emergências. rias ministeriais dos diversos componentes
Para implementação desta rede, a partir da RUE, os PAR pactuados entre os gestores
da pactuação regional, são previstos recur- para esta rede, e o trabalho observacional e
sos para pagamento dos incentivos relativos de monitoramento da RUE realizado pelos
aos diversos componentes da RUE. Ademais, apoiadores estaduais e das Redes de Atenção
outras tantas estratégias que são transver- à Saúde do Ministério da Saúde.
sais a qualquer Rede de Atenção à Saúde –
como a política de regulação, a organização
e a integração dos sistemas de informação, Estado da arte da
a qualificação dos processos de trabalho e a implantação da RUE
Educação Permanente do conjunto dos pro-
fissionais – são condições sine qua non para a A priorização de investimentos na RUE se
efetiva implantação dessa rede. assenta na avaliação da situação de mor-
Dentre as propostas de intervenção bimortalidade do Brasil, que aponta para
que foram priorizadas na implementação a necessidade de uma intervenção efetiva,
da RUE, destacam-se: o investimento e o a despeito dos avanços da última década,
custeio das portas de entrada hospitalares; o como a criação do Samu, das UPA 24h e de
aumento do custeio e uma melhor articula- sua expansão. Além disso, a avalanche de
ção dos Samu e UPA à rede como um todo; mortes e sequelas por trauma decorrentes
a qualificação da atenção e a organização de acidentes de trânsito e violências, as altas
das três linhas de cuidado prioritárias, quais taxas de morbimortalidade por doenças do
sejam: Trauma, IAM e AVC; a implemen- aparelho circulatório, além da superlotação
tação de estratégias para a qualificação da dos prontos socorros hospitalares, já são si-
atenção por meio de incentivos e o aumento tuações que justificam uma política especí-
do custeio dos leitos hospitalares, em es- fica para a atenção às urgências. Associado
pecial, ao paciente crítico e leitos de reta- a isso, é importante considerar o acentuado
guarda clínicos; a criação das unidades de e rápido envelhecimento da população, com
Internação em Cuidados Prolongados, entre aumento significativo da expectativa de vida
outras propostas; e a organização da Atenção nas últimas décadas.
Domiciliar. Desse modo, o grande desafio da RUE é
Este artigo pretende discutir as estraté- orquestrar todos os componentes de uma
gias de implantação da Rede de Atenção às rede com essa amplitude, de modo a contem-
Urgências e Emergências, seus pressupostos plar uma atuação integrada e sinérgica, o que

DIVULGAÇÃO EM Saúde PARA Debate | rio de Janeiro, n. 52, p. 125-145, OUT 2014
128 JORGE, A. O.; COUTINHO, A. A. P.; CAVALCANTE, A. P. S.; FAGUNDES, A. M. S.; PEQUENO, C. C.; CARMO, M.; ABRAHÃO, P. T. M.

se constitui como única alternativa para uma com as diretrizes da Organização Mundial
atenção ágil e oportuna às diversificadas de Saúde e aborda os quatro principais
situações de urgência e emergências, com fatores de risco modificáveis – tabagismo,
melhora da efetividade. alimentação inadequada, inatividade física e
A integração entre as três esferas de consumo abusivo de bebidas alcoólicas, que
gestão do SUS é imprescindível para que são responsáveis por grande parte da carga
a RUE possa ser, de fato, implementada. E de DCNT, em especial, quatro delas: cardio-
deve ser construída de forma cooperativa e vasculares, cânceres, diabetes e respiratórias
solidária. Desse modo, a Portaria nº 1.600, crônicas (WHO, 2011). O Plano de DCNT funda-
de 2011 (BRASIL, 2011a), prevê um Plano de Ação menta-se no delineamento de três principais
Regional coordenado por um grupo condutor diretrizes ou eixos: 1) vigilância, informação,
estadual e composto pelos diversos atores avaliação e monitoramento; 2) promoção da
da região de saúde, pautado por critérios saúde; e 3) cuidado integral. Para isso, diver-
técnicos, epidemiológicos e demográficos, e sas ações foram implantadas nos três eixos
voltado para as necessidades populacionais (MALTA; SILVA JÚNIOR, 2013).
de cada território. O PAR deve ser aprovado Em relação aos eixos de Vigilância e de
na Comissão Intergestores Bipartite, desse Promoção, diversas pesquisas foram condu-
modo, legitimando a proposta e o plane- zidas, destacando-se a realização da Pesquisa
jamento para a organização da rede. É Nacional de Saúde (PNS), que é uma pesquisa
importante, ainda, a participação de atores de de base domiciliar, de âmbito nacional, reali-
outros segmentos sociais para a proposição zada em parceria com o Instituto Brasileiro
de políticas públicas efetivas e eficientes, de Geografia e Estatística, no ano de 2013.
como conselhos de saúde, gestores, traba- Essa pesquisa inseriu diversos temas sobre
lhadores, prestadores, usuários, conselhos fatores de risco cardiovasculares, que serão
profissionais, instituições de ensino e fundamentais na vigilância e na prevenção
assistência social, entre outros. de DCNT e doenças cardiovasculares.
A seguir, serão detalhados os avanços e as Reconhecendo os acidentes e a violência
perspectivas dos diversos componentes da (causas externas) como importantes proble-
RUE, quais sejam: I. Promoção, Prevenção mas de saúde pública, e que exercem grande
e Vigilância à Saúde; II. Atenção Básica em impacto social e econômico, sobretudo no setor
Saúde; III. Serviço de Atendimento Móvel saúde e na atenção às urgências e emergências,
de Urgência (Samu 192) e suas Centrais de o Ministério da Saúde apresentou proposta de
Regulação; IV. Sala de Estabilização; VI. intervenções desde a implantação da Política
Unidades de Pronto Atendimento (UPA Nacional de Redução da Morbimortalidade
24h) e o Conjunto de Serviços de Urgência por Acidentes e Violências, em 2001, rea-
24 horas; VII. Atenção Hospitalar; VIII. firmada depois com a Política Nacional de
Atenção Domiciliar; e V. Força Nacional de Promoção da Saúde, em 2006, tais como: a
Saúde do SUS. criação da Rede Nacional de Prevenção das
Considerando o panorama epidemiológi- Violências e Promoção da Saúde, a implanta-
co e econômico das Doenças Crônicas Não ção da Vigilância de Violências e Acidentes, e o
Transmissíveis (DCNT) no País, e a partir da Projeto Vida no Trânsito.
necessidade de intervir sob a perspectiva da Cada um desses componentes da RUE se
promoção, prevenção e vigilância sobre esta constitui em um universo particular, com
situação de saúde, o Ministério da Saúde co- seus variados desafios e peculiaridades.
ordenou o processo de elaboração do Plano Entretanto, a despeito da diversidade, todos
de Estratégias de Enfrentamento das DCNT esses componentes devem estar assentados
no Brasil, 2011-2022. Este plano está alinhado em uma Atenção Básica de Saúde (ABS)

DIVULGAÇÃO EM Saúde PARA Debate | rio de Janeiro, n. 52, p. 125-145, out 2014
Entendendo os desafios para a implementação da Rede de Atenção às Urgências e Emergências no Brasil: uma análise crítica 129

resolutiva, que tem papel fundamental para contribuir para a promoção da saúde e de
a organização e o funcionamento das Redes modos de vida saudáveis da população, a
de Atenção à Saúde em geral e da RUE, em partir da implantação de polos com infra-
particular. Para o funcionamento harmônico estrutura e profissionais qualificados, nas
e integrado das redes, a ABS deve ser resolu- quais podem ser desenvolvidas as seguintes
tiva, identificando os riscos, necessidades e atividades: práticas corporais e atividades
demandas de saúde, por meio de uma clínica físicas, promoção da alimentação saudável,
ampliada com o objetivo de aumentar o educação em saúde e produção de modos
grau de autonomia dos indivíduos e grupos de vida saudável, entre outras (JAIME et al., 2013;
sociais. Deve, ainda, coordenar o cuidado, LEE et al., 2012). As Academias da Saúde podem
elaborando, acompanhando e gerindo proje- contribuir para a prevenção, o tratamento
tos terapêuticos, bem como acompanhando e a reabilitação de doenças cárdio e cere-
e organizando o fluxo dos usuários entre os brovasculares. Todos os estados brasileiros
pontos de atenção das RAS. possuem o Programa Academia da Saúde.
Além disso, a Atenção Básica (AB) deve Atualmente, são 3.725 polos em mais de
atender às urgências por demanda espontâ- 2.700 municípios do Brasil. Destes, mais de
nea em ambiente adequado, até a transferên- 500 já estão concluídos e mais de mil já ini-
cia ou o encaminhamento a outros pontos de ciaram suas obras (BRASIL, 2011b).
atenção, quando necessário. Os pilares am- A questão do planejamento loco-regional
biente adequado, Educação Permanente das por meio de um plano de ação tem induzi-
equipes e implantação de acolhimento com do, mesmo que ainda de forma tímida, a
avaliação de riscos e vulnerabilidades são uma avaliação mais criteriosa das condições
pressupostos para que a AB possa cumprir seu de saúde de uma dada população específi-
papel na atenção a essas situações de urgên- ca, bem como da capacidade instalada dos
cia. A Sala de Observação enquanto ambiente serviços de urgência, sua resolutividade e
da Unidade Básica de Saúde (UBS) destinado integração. Os PAR detalham, além do diag-
ao atendimento de pacientes em regime am- nóstico de saúde da região, o planejamento
bulatorial, com necessidade de observação para qualificação e ampliação de cada um
em casos de urgência/emergência, deve se es- dos componentes da RUE, com um crono-
truturar como um ponto de atenção da RUE e grama a ser cumprido. De outubro de 2011
se constituir como uma forma efetiva de cui- a abril de 2014, foram publicados 45 Planos
dados qualificados das situações de urgência de Ação Regional da Rede de Atenção às
e emergências nestas unidades. Urgências e Emergências, com uma cober-
Vários movimentos têm sido empreendi- tura populacional de 107.293.349 habitantes
dos, buscando qualificar a Atenção Básica, (56,25% da população brasileira), contem-
como o Programa Academia da Saúde, plando aproximadamente 1.860 municípios
novo espaço da AB que tem como objetivo nas 26 Unidades Federativas (UF) (tabela 1).

DIVULGAÇÃO EM Saúde PARA Debate | rio de Janeiro, n. 52, p. 125-145, OUT 2014
130 JORGE, A. O.; COUTINHO, A. A. P.; CAVALCANTE, A. P. S.; FAGUNDES, A. M. S.; PEQUENO, C. C.; CARMO, M.; ABRAHÃO, P. T. M.

Tabela 1. Número de PAR RUE publicados nos estados de 2011 a 2014

Planos publicados 2011 2012 2013 2014 Total

AC 1 1
AL 1 1
AP 1 1
AM 2 2
BA 1 1 2
CE 1 1 2
ES 1 1
GO 1 1
MA 1 2 1 4
MG 1 1 2
MS 1 2 3
MT 1 1
PA 1 1
PB 1 1
PE 1 1 2
PI 1 1
PR 1 1 2
RJ 1 1
RN 1 1
RO 1 1
RR 1 1
RS 1 1
SC 3 1 4
SP 3 2 1 6
SE 1 1
TO 1 1
Total 2 27 13 3 45

Fonte: CGHOSP/DAHU/MS, março 2014

O financiamento desses planos de ação foi aumentando assim a capacidade instalada


dividido em duas categorias: recursos ime- e o acesso aos serviços. Em abril de 2014,
diatos, para garantir o início da implantação para a garantia desses planos, já foram in-
e a qualificação dos serviços já existentes, corporados recursos imediatos aos tetos dos
e os recursos de custeio atrelados à abertu- estados e municípios no valor anual de R$
ra e ao funcionamento de novos serviços, 1.513.984.070,96, conforme tabela 2.

DIVULGAÇÃO EM Saúde PARA Debate | rio de Janeiro, n. 52, p. 125-145, out 2014
Entendendo os desafios para a implementação da Rede de Atenção às Urgências e Emergências no Brasil: uma análise crítica 131

Tabela 2. Recursos imediatos incorporados aos tetos dos estados e municípios referentes aos PAR RUE de 2011 a 2014 (em R$)

Estado PAR 2011 - Imediato PAR 2012 - Imediato PAR 2013 - Imediato PAR 2014 - Imediato

Acre 4.616.350,08
Região de Macéio e Arapiraca - AL 21.761.809,60
Amapá 17.136.875,00
Região Alto Solimões - AM 1.727.702,40
RM Manaus - AM 23.900.314,56
RM Salvador Ampliada - BA 74.915.385,24
Região Sul da Bahia 8.321.890,56
RM Fortaleza Ampliada - CE 68.143.902,88
Sobral - CE 13.927.159,68
RM Vitória - ES 46.712.538,40
RM Goiânia - GO 30.697.018,36
RM São Luis - MA 9.404.726,40
Região de Codó - MA 15.926.900,00
Região de Imperatriz - MA 18.062.637,08
Região de Açailandia - MA 1.200.000,00
RM Belo Horizonte Ampliada - MG 33.047.925,56
Macro Norte MG 26.180.376,40
Região de Campo Grande e Corumbá - MS 25.096.159,68
Macro Dourados - MS 17.235.482,28
Macro Três lagoas - MS 5.219.948,84
Baixada Cuiabana - MT 79.256.911,23
Pará 79.883.570,84
RM João Pessoa- PB 14.638.512,00
RM Recife - PE 112.673.598,57
Região de Petrolina - PE 8.071.754,88
Região Entre Rios - PI 9.496.414,40
RM Curitiba - PR 73.208.155,00
Região Norte - PR 35.221.591,50
RM I e II - RJ 75.674.375,00
RM Natal - RN 86.271.234,40
Região de Porto Velho e Vilhena - RO 23.922.203,72
Roraíma 9.959.011,92
RM Porto Alegre Ampliada - RS 93.273.538,32
RM Florianopólis - SC 19.771.766,88
Região Norte e Nordeste - SC 25.284.241,88
Serra Catarinense; Grande oeste; Meio Oeste; 73.704.301,17
Vale do Itajaí; Sul; Foz do Rio Itajai - SC

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132 JORGE, A. O.; COUTINHO, A. A. P.; CAVALCANTE, A. P. S.; FAGUNDES, A. M. S.; PEQUENO, C. C.; CARMO, M.; ABRAHÃO, P. T. M.

RRAS 01 - ABC - SP 24.421.341,03


RRAS 02 - Região de Guarulhos - SP 14.337.697,92
RRAS 06 - São Paulo - SP 94.301.876,55
RRAS 07 - Campinas - SP 3.526.875,00
RRAS 13 - Região de Ribeirão Preto - SP 41.080.276,67
RRAS 15 -Baixada Santista e Vale do Ribeira - SP 32.844.657,17
TA CAP Sergipe 11.456.353,47
Região Capim Dourado - TO 8.468.708,44
Total 44.504.279,03 1.095.144.704,28 323.732.920,42 50.602.167,23

Fonte: CGHOSP/DAHU/MS, março 2014

Além dos recursos já citados, outros foram aumentou em 38%, passando de 1.992 (2010)
incorporados aos tetos na medida em que para 2.741 (2013). No mesmo período, houve
foram sendo realizadas as habilitações de um aumento nas unidades móveis, passando
novos leitos e/ou qualificações nas diversas de 1.912 unidades, em 2010 (1.518 de suporte
tipologias, habilitações e/ou qualificações de básico e 394 de suporte avançado), para
UPA e Samu previstas nos PAR. 2.867 unidades, em 2013 (2.302 de suporte
As situações clínicas que demandam básico e 565 de suporte avançado).
atenção de urgência e emergência são tão va- A constatação da necessidade de regio-
riadas, que necessitam, por sua vez, de abor- nalizar e qualificar o Samu 192 redundou
dagens diferentes, nos diversos níveis do na decisão de incrementar o seu custeio em
sistema e em diferentes pontos de atenção 19%, totalizando R$ 140,2 milhões para toda
com adensamentos tecnológicos variados. a rede, passando dos R$ 744 milhões pla-
Desse modo, o atendimento rápido e a trans- nejados para 2013, para R$ 884,2 milhões.
ferência segura são fundamentais para o Além disso, também as Unidades de Suporte
‘caminhar’ seguro do usuário pela Rede de Avançado e Aéreo habilitadas tiveram acrés-
Atenção à Saúde (RAS), notadamente nas cimos em seu custeio, passando de R$ 27,5
situações que impliquem em sofrimento, se- mil para R$ 38,5 mil por mês, acrescidos de
quelas ou mesmo morte, caso o atendimento 30% na Amazônia Legal. Os valores de in-
não ocorra em tempo oportuno. Para isso, o vestimento para construção, equipamentos,
Samu 192 é o componente assistencial móvel mobiliário, destinados à ampliação de cen-
da Rede de Atenção às Urgências, que tem trais de regulação ou à construção de novas
como objetivo chegar precocemente à vítima unidades também foram incrementados.
após ter ocorrido um agravo à sua saúde. O Embora o transporte rápido, eficiente e
serviço é acionado pelo número 192 e conta seguro dos usuários seja um dos pilares de
com Central de Regulação das Urgências e qualquer sistema de atendimento às urgên-
veículos tripulados por equipes capacitadas. cias, no Brasil, ainda convive-se com regiões
Após a criação da RUE em 2011, avanços com grandes vazios assistenciais e com
na cobertura do Samu são visíveis. Entre populações dispersas e rarefeitas. Nessas
2010 e 2013, a população coberta pelo situações, a transferência oportuna é funda-
Serviço de Atendimento Móvel de Urgência mental, mas não resolve a situação, visto que
(Samu 192) passou de 122,9 milhões (2010) o primeiro atendimento para estabilização
para 140,4 milhões (2013). Já a quantida- do quadro clínico pode ser o determinante
de de municípios com acesso ao serviço para salvar vidas. Dentre as estratégias da

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Entendendo os desafios para a implementação da Rede de Atenção às Urgências e Emergências no Brasil: uma análise crítica 133

RUE, para tais regiões, foram criadas as Salas quais, 192 estão em ação preparatória; 139,
de Estabilização (SE), pela Portaria nº 2.338 em licitação da obra; 144, em obra; e 20, con-
GM/MS, de 2011 (BRASIL, 2011c). As SE devem cluídas e se preparando para a inauguração.
sempre estar articuladas a uma unidade de De forma geral, do planejado entre 2007
saúde já existente e realizar a estabilização e 2014, no momento, 332 UPA 24h se en-
de pacientes críticos, com posterior remoção contram em funcionamento no Brasil,
e encaminhamento para um hospital de refe- sendo todas elas custeadas, majoritamente,
rência regional, para a continuidade do tra- pelo Ministério da Saúde, e outras 73 UPA
tamento. Trata-se de um ponto de atenção foram concluídas e se encontram em fase
muito específico, instalado em um serviço final de preparação para o início do seu
de saúde já existente, em municípios com funcionamento.
menos de 50 mil habitantes, funcionando nas Um dos maiores desafios dessa rede tem
24 horas do dia e com garantia de transporte sido a reorganização da atenção hospitalar
adequado. Tomando por base o mês de abril para as urgências e emergências. O hospi-
de 2014, foram repassados, pelo Ministério tal, historicamente trabalhando de forma
da Saúde, recursos de investimento para isolada e desarticulada dos demais pontos
implantação de 103 Salas de Estabilização. de atenção, conta com uma complexidade e
Destas, apenas cinco entraram em funciona- muitas facetas de difícil mudança, baseado,
mento até o momento. ainda hoje, no trabalho médico e do enfer-
Também o componente UPA 24h foi meiro, e na atenção curativa e dissociada de
revisto a partir das novas diretrizes da RUE. qualquer articulação com as RAS acrescida
Desse modo, em março de 2013, houve rede- de uma busca incessante dos pacientes por
finições para sua implantação por meio da seus cuidados, sendo, muitas vezes, visto
Portaria nº 342/2013 (BRASIL, 2013b). A possibi- como tábua de salvação para todos os pro-
lidade de inclusão no componente UPA, não blemas de saúde.
apenas de unidades novas e recém-construí- Nessa perspectiva, o grande gargalo que se
das, como também a possibilidade de custeio tornou a atenção hospitalar no SUS, em parti-
federal para as chamadas UPA 24h amplia- cular, em relação às urgências e emergências,
das, que são serviços já existentes adaptados com prontos socorros superlotados e com o
às diretrizes para as UPA, se constitui em sofrimento das pessoas em filas e corredores,
uma forma de ampliar o acesso aos serviços tem sido uma das prioridades na RUE, com
e de custear unidades já existentes de forma a configuração de estratégias importantes
mais adequada. para ampliar o acesso e aprimorar a quali-
A meta inicial, entre 2007 e 2010, era de dade, para dar conta do grande número de
construção de 500 UPA 24h. Considerando pacientes que acorrem aos hospitais na es-
o mês de abril de 2014, têm-se 462 propos- perança de verem seus problemas de saúde
tas vigentes de UPA 24h, das quais, 214 estão resolvidos. Trata-se, então, do componente
em funcionamento; 166, em processo de com a maior procura por parte da popula-
construção; e 82, em processo de aquisição ção, que, muitas vezes, superestima o papel
de equipamento e contratação de recursos do hospital na resolução de seus problemas
humanos para o início breve de suas ativida- de saúde. O pronto socorro hospitalar, visto
des. A meta para o período entre 2011 e 2014 como meio mais rápido de atendimento, nem
é de construção de mais 500 UPA. Nesse sempre tem sido resolutivo, tendo em vista
sentido, já foram aprovadas mais UPA pela as deficiências de estrutura física, de equipa-
segunda fase do Programa de Aceleração mentos e na qualificação de pessoas. Pela sua
de Crescimento, 2011/2012 e 2013, e destas, relevância e pela grande deficiência de leitos
495 UPA estão com propostas vigentes, das resolutivos e qualificados no SUS, que deem

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suporte às urgências, é o componente para o custeio diferenciado para os leitos já exis-


qual tem sido direcionado o maior volume de tentes que se qualificassem para retaguarda
recursos da RUE. das portas hospitalares e UPA. O custeio foi
Muitas estratégias para qualificar e incrementado com incentivo, além do valor
ampliar a atenção hospitalar vêm sendo em- faturado em Autorização de Internação
preendidas, como o aumento de recursos Hospitalar (AIH), condicionado ao cumpri-
financeiros nas portas de entrada hospitala- mento de critérios de qualificação e aumento
res, tanto de custeio quanto de investimento da resolutividade.
em infraestrutura, com o objetivo de ampliar Ademais, diante das características epi-
e qualificar a atenção. demiológicas e demográficas da população
Além de recursos, os gestores hospitala- brasileira, três linhas de cuidado prioritá-
res e profissionais de saúde têm sofrido forte rias foram enfatizadas: IAM, AVC e Trauma.
indução para a qualificação e a humanização Embora sejam estratégias que perpassam
da atenção com a implantação de várias fer- todos os componentes da RUE, destaque
ramentas de gestão da clínica, como o aco- fundamental a essas linhas de cuidado foi
lhimento com o Protocolo de Classificação dado na atenção hospitalar, com a criação
de Risco e o cuidado horizontalizado nas de novas categorias de referências e leitos,
portas de entrada e unidades de internação, como as Unidades de Acidente Vascular
com equipes multiprofissionais de referên- Cerebral (AVC), Unidades Coronarianas
cia, gestão de leitos e implantação do Núcleo (UCO) e os Hospitais de Referência para o
de Acesso e Qualidade Hospitalar como dis- trauma e respectivos incentivos de custeio,
positivo privilegiado para empreender tais também atrelados ao cumprimento dos cri-
ações, entre outras. térios estabelecidos.
Para isto, o incentivo das portas de Como estratégia central para desafogar
entrada prioritárias estabelecidas nos Planos os prontos socorros hospitalares, garantin-
de Ação da RUE, aprovadas até março de do a continuidade da assistência, tem sido
2014, tem sido com recursos da RUE catego- realizada uma importante pactuação para
rizados como custeio imediato, que variam a ampliação da oferta de leitos de retaguar-
entre 100 mil e 300 mil reais mensais e foram da para a urgência e emergência em todos
repassados aos fundos de saúde de estados e os PAR. A tabela 3 mostra o total pactuado
municípios para qualificação das 230 portas e aprovado para funcionamento de leitos
hospitalares de maior importância regional, clínicos novos e qualificados, leitos de UTI
distribuídas em 26 UF. novos e qualificados, leitos de Cuidados
No componente hospitalar dos PAR, Prolongados, leitos de Unidade de Terapia
também foi prevista a expansão do número Intensiva Coronariana (UCO) e leitos de
de leitos hospitalares de retaguarda às ur- Atenção ao Acidente Vascular Cerebral
gências: leitos clínicos, de cuidados inten- (AVC) nos Planos de Ação da RUE, finaliza-
sivos e de cuidados prolongados, além de dos até março de 2014.

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Entendendo os desafios para a implementação da Rede de Atenção às Urgências e Emergências no Brasil: uma análise crítica 135

Tabela 3. Quantitativo de leitos de retaguarda pactuados e aprovados nos PAR publicados

Componente PAR 2011 PAR 2012 PAR 2013 PAR 2014 Total Descrição

Leitos clínicos novos 343 3.369 1.002 321 5.035 Leitos Pactuados
Leitos clínicos qualificados 83 2.285 725 270 3.363 Leitos Pactuados
Leitos de UTI adulto novos 16 10 30 46 102 Leitos Pactuados e Habilitados,
recebendo incentivo
Leitos de UTI adulto qualificados 253 1.715 1.046 201 3.215 Leitos que já recebem incentivo
Leitos de UTI pediátricos novos 0 0 0 0 0 Leitos Pactuados e Habilitados,
recebendo incentivo
Leitos de UTI pediátricos qualificados 49 297 293 30 669 Leitos que já recebem incentivo
Leitos de cuidado continuado 0 0 88 0 88 Leitos que já recebem incentivo
Leitos de UCO 0 0 120 8 128 Leitos que já recebem incentivo
Leitos de AVC 0 165 0 0 165 Leitos que já recebem incentivo

Fonte: CGHOSP/DAHU/MS, março 2014

Entretanto, a partir de criterioso monito- Embora exista uma baixa execução financei-
ramento, iniciado, particularmente, em 2013, ra para as propostas inseridas no sistema, os
onde os hospitais integrantes dos Planos de recursos foram orçamentados e estão dispo-
Ação Regional da RUE com portarias pu- níveis para utilização por parte dos municí-
blicadas foram avaliados, verifica-se que, pios e estados.
apesar de ter sido planejada uma expansão Como forma de qualificação da atenção
significativa, na prática, este aumento real hospitalar na Urgência e Emergência, identifi-
dos leitos tem sido modesto, o que tem difi- cou-se a necessidade de induzir de forma mais
cultado que a assistência progrida para além efetiva a melhoria do atendimento nas portas
de corredores lotados de UPA e prontos so- hospitalares. Desse modo, em novembro de
corros. Tal análise possibilitou estabelecer 2011, foi lançado o Programa SOS Emergências
algumas metas e perspectivas para 2014, e, em seguida, regulamentado pela Portaria
dentre elas, a de qualificar as ações em saúde nº 1.663/12 (BRASIL, 2012a), com o objetivo prin-
nas regiões e, sobretudo, nos estabelecimen- cipal de reduzir tempos de espera e a super-
tos que estão inseridos nos planos de ação, na lotação dos grandes pronto socorros do País.
perspectiva de garantir os critérios de qua- O SOS Emergências é uma ação estratégica
lificação constantes na Portaria do compo- do Ministério da Saúde em conjunto com os
nente hospitalar da RUE – GM/MS 2.395/11 estados, municípios e o Distrito Federal, com a
(BRASIL, 2011d) –, colocando em funcionamento finalidade de atuar de forma mais organizada,
os leitos de retaguarda pactuados. ágil e efetiva sobre a oferta de assistência nas
No ano de 2013, dentre as principais maiores e mais complexas portas de entrada
ações do MS, é importante ressaltar a sen- hospitalares de urgência do País, e assessorar
sibilização dos gestores de estados e mu- tecnicamente a equipe destes hospitais para a
nicípios para que elaborassem projetos de melhoria da gestão e da qualidade do atendi-
qualificação das unidades hospitalares, a mento aos usuários do SUS. O programa está
fim de garantir adequações físicas e melho- implantado em 27 unidades e, em 2014, to-
ria do parque tecnológico dentro da Rede talizará 31 unidades, contemplando todos os
de Atenção às Urgências e Emergências. estados e o Distrito Federal.

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Vale ressaltar os avanços mais relevantes lar do paciente, que recebe o cuidado mais
alcançados pelo programa, que vem se tor- próximo, proporcionando um serviço hu-
nando modelo para o conjunto dos hospitais manizado e acolhedor às pessoas com ne-
integrantes da RUE: a redução da superlo- cessidade de reabilitação motora, cuidados
tação, com diminuição da taxa de ocupação paliativos, pacientes crônicos sem agrava-
das emergências a partir de mecanismos de mento ou em situação pós-cirúrgica, entre
monitoramento do tempo de permanência; a outros. Essa modalidade de atenção, além de
disponibilização de 2.039 leitos de retaguar- melhorar o desempenho dos leitos hospitala-
da para 22 hospitais; a implantação do Núcleo res e possibilitar a desospitalização precoce
Interno de Regulação em todos os hospitais, de pacientes, proporciona mais conforto ao
com melhoria da ocupação dos leitos hospi- usuário e às suas famílias, e um cuidado mais
talares; a especialização de 440 profissionais humanizado e acolhedor.
em Gestão de Emergências no SUS e 7 mil Por fim, o único componente da RUE
em processos assistenciais; a melhoria dos sob gestão do Ministério da Saúde é a Força
fluxos de atendimento, a partir da discussão Nacional do SUS (FN-SUS), componente es-
e da implementação das linhas de cuidado; truturante e humanitário do Sistema Único
e 12 hospitais com contrato de repasse assi- de Saúde, que visa prestar assistência rápida
nados para reforma, sendo quatro com obras e efetiva às populações em território nacio-
iniciadas e 11 hospitais com equipamentos nal e internacional atingidas por catástrofes,
entregues e em funcionamento, além 24 pro- epidemias ou crises assistenciais que justi-
postas de convênio com o Fundo Nacional de fiquem seu acionamento, em apoio à gestão
Saúde em 2013 empenhadas para recomposi- local, com ações de orientação, monitora-
ção tecnológica no valor de 52 milhões. mento e assistência, atuando em estruturas
Outro componente importante da RUE, do sistema de saúde em articulação com os
que é transversal a todas as redes temáti- entes federados.
cas, mas de fundamental importância para A FN-SUS foi criada através de Decreto
o aumento da rotatividade dos leitos hospi- Presidencial nº 7.616, de 2011 (BRASIL, 2011e), e
talares, é a Atenção Domiciliar, o Programa atualmente conta com 12.869 profissionais
Melhor em Casa, lançado em outubro de voluntários cadastrados. Já atuou em 23
2011. Com diversas alterações e expansão ao missões, com atendimento a vítimas de en-
longo do tempo, teve sua última atualização chentes e desastres naturais, enviando pro-
feita pela Portaria GM/MS 963, de maio de fissionais, equipamentos e disponibilizando
2013 (BRASIL, 2013c), na qual o programa foi uni- tecnologia de processos de trabalho nesse
versalizado, possibilitando a adesão de todos tipo de catástrofe. Também apoiou a gestão
os municípios brasileiros. de grandes eventos corridos no País, além de
O Melhor em Casa constitui uma nova ter antecipado a liberação de R$ 13 milhões
modalidade de atenção à saúde prestada em para as áreas atingidas por enchentes no Rio
domicílio, substitutiva ou complementar às de Janeiro. Uma das missões mais expressi-
já existentes, fundamental em um contexto vas da Força se deu em apoio às vítimas do
de progressivo envelhecimento populacio- incêndio ocorrido em Santa Maria (RS), no
nal e do aumento de DCNT (BRASIL, 2012b). Até dia 27 de janeiro de 2013, com o envio de
abril de 2014, o Melhor em Casa possuía equipamentos e materiais para cuidado in-
1.309 equipes já aprovadas em 26 estados tensivo, ambulâncias, antídotos específicos
brasileiros e, dessas, 554 em funcionamento, para intoxicação, além de 120 profissionais,
em 24 UF, com uma cobertura populacio- dentre eles, psiquiatras e psicólogos para
nal de cerca de 36,5 milhões de pessoas. A atendimento às vítimas e seus familiares.
assistência multiprofissional é realizada no Os profissionais voluntários da FN-SUS

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Entendendo os desafios para a implementação da Rede de Atenção às Urgências e Emergências no Brasil: uma análise crítica 137

têm sido capacitados periodicamente e, dos nos sistemas locais e estaduais de saúde,
12.869 profissionais, 1.470 já foram capacita- especialmente, para a RUE.
dos para cuidados de vítimas em desastres.
Em parceria com o Hospital Sírio-Libanês, 3. Apesar de o Samu 192 já contar com uma
foi iniciada uma segunda fase de capacita- significativa cobertura populacional no
ção de 980 profissionais voluntários, entre País, após a RUE, observou-se, não apenas
agosto de 2013 e junho de 2014, com 80 vagas sua ampliação de acesso, com o cresci-
para cada uma das 12 cidades-sede da Copa mento do número de unidades móveis e
do Mundo. de centrais de regulação, como também
a qualificação do serviço, com Educação
Permanente dos profissionais e indução
Reflexão crítica sobre os à regionalização. Resta, ainda, o desafio
avanços e desafios para a da ampliação da cobertura para as regiões
mais remotas e de difícil acesso do País.
implantação da RUE no país
4. A Sala de Estabilização é um compo-
Ao olhar para os resultados relativos à im- nente ainda em discussão e não plenamen-
plementação da RUE encontrados até o te incorporado como estratégico para a
momento, vale destacar: RUE, visto que o desafio da cobertura dos
vazios assistenciais, embora com pequenos
1. No componente promoção, prevenção e avanços, ainda precisa ser superado em
vigilância à saúde, apesar de várias inicia- grande parte do território brasileiro. A falta
tivas terem sido começadas antes de 2011, do profissional médico nos municípios de
a implantação da RUE e a necessidade de pequeno porte e de difícil acesso, o custo
intervir sobre as DCNT, os acidentes e as da contrapartida dos demais entes para
violências têm demonstrado ser importan- implantação e custeio das SE, a dificuldade
tes reforços, o que induziu à ampliação e à de articulação e acesso aos serviços de re-
extensão dessas ações. taguarda hospitalar, bem como a pactuação
ainda em curso dos componentes da RUE
2. Tem sido empreendido grande esforço nas diferentes regiões são problemas que
governamental para que a Atenção Básica, ainda necessitam ser superados, a fim de
alicerce de toda a RAS, alcance o papel de garantir o acesso aos serviços de urgência a
relevância no sistema e, em particular, na toda a população brasileira.
atenção às urgências. Recursos financeiros
para investimentos em infraestrutura têm 5. As UPA 24h se constituem em expressivo
sido alocados para a qualificação da ABS, aí avanço para a atenção às urgências pré-
incluídas as condições para o atendimento hospitalares. Sua ampliação de cobertura,
das primeiras urgências e seu encaminha- com a construção e qualificação de novas
mento responsável, quando necessário. unidades, é um passo fundamental, mas
Além disso, outras iniciativas, como o Nasf, ainda há que transpor alguns desafios,
o apoio às equipes da Atenção Básica e as tais como: o alto valor do custeio para
Academias da Saúde têm proporciona- manutenção destas unidades em relação ao
do maior resolutividade a esse nível de valor repassado pelo Ministério da Saúde;
atenção. Ainda assim, considerando todo o a deficiência de recursos humanos para
avanço apontado, há muito a ser feito para cobrir todos os municípios com serviços
que a AB se torne, efetivamente, a coorde- habilitados, em especial, o profissional
nadora e grande articuladora do cuidado médico; e o número insuficiente de leitos

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138 JORGE, A. O.; COUTINHO, A. A. P.; CAVALCANTE, A. P. S.; FAGUNDES, A. M. S.; PEQUENO, C. C.; CARMO, M.; ABRAHÃO, P. T. M.

de retaguarda e a pouca articulação com O Programa Melhor em Casa, ainda no


os serviços da Atenção Básica e hospitalar. seu início, já demonstra ser um programa
Essas situações precisam ser enfrentadas exitoso, mas que deverá buscar seu apri-
para que se possa garantir não apenas moramento com a experiência que será
um número satisfatório de unidades adquirida ao longo das próximas décadas.
implantadas, mas igualmente um serviço A AD, embora tenha sido criada como com-
de qualidade e resolutivo, articulado com os ponente RUE, é uma estratégia fundamen-
demais pontos da rede de urgência. Ademais, tal para todas as redes, com importantes
a pouca capacidade de execução de obras resultados no seu processo de implanta-
por parte dos municípios – não apenas ção: 554 equipes atuando em 24 estados; a
para as unidades de pronto atendimento desospitalização mais precoce; o cuidado
– tem prejudicado significativamente a em casa de pacientes acamados ou com
ampliação desse importante equipamento dificuldades de locomoção; a capacitação
de saúde para a atenção às urgências, ainda dos profissionais envolvidos, bem como
que o nível federal venha apoiando de a flagrante satisfação dos usuários. Esses
forma mais proativa as regiões de saúde, são avanços significativos e visíveis, resta o
seja disponibilizando projeto padrão desafio de aumentar a cobertura e atingir as
com diferentes portes para a execução de mil equipes inicialmente planejadas.
obras, seja padronizando e financiando
a lista de equipamentos para UPA para 8. A FN-SUS é um dispositivo de atenção
municípios que receberam menos recursos, às urgências e emergências, que deve ser
por propostas anteriores a 2013, ou mesmo acionada apenas em momentos especiais e
abrindo a possibilidade de adesão de conturbados, por isso mesmo, se constitui
estados e municípios às atas de registro como um dos mais importantes avanços,
de preços/pregão eletrônico nacionais, inclusive já tendo demonstrado isso em
tanto para obra quanto para aquisição de inúmeras missões exitosas. Com a institui-
equipamentos, entre outras iniciativas. ção da Força, o Brasil passou a contar com
um corpo de profissionais qualificados, dis-
6. Quanto ao componente hospitalar da poníveis para serem acionados no apoio às
RUE, verifica-se que boa parte dos estados regiões de saúde, municípios e estados em
e regiões de saúde tem hoje seu plano de situações de crises sanitárias, desastres na-
ação elaborado e em processo de implanta- turais ou calamidades públicas, o que tem
ção, com transferência de recursos para sua sido de grande relevância para o SUS, opor-
execução garantida pelo MS. Entretanto, na tunizado pela RUE.
prática, observa-se que tem havido atrasos
e dificuldades na sua efetivação, seja pelos Muitos avanços nos diversos componentes
problemas relativos à pactuação e à gover- da RUE têm sido percebidos, mas vale aqui
nança local, seja pelo não cumprimento dos destacar, como estratégia bem-sucedida do
pactos e compromissos estabelecidos em componente hospitalar da RUE, o Programa
nível regional, demonstrando ainda práti- SOS Emergências, que tem feito diferença no
cas de planejamento e governança locais desempenho de cada hospital participante. A
frágeis. redução da superlotação por meio da revisão
de processos de trabalho com o apoiador
7. Por fim, a Atenção Domiciliar (AD), inserido no cotidiano da atenção tem pro-
como proposta inovadora e alternativa de porcionado a melhora dos indicadores de
atenção, tem buscado ampliar não apenas gestão hospitalar. Além disso, a capacita-
sua cobertura, como também seu escopo. ção das equipes na gestão de emergências e

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Entendendo os desafios para a implementação da Rede de Atenção às Urgências e Emergências no Brasil: uma análise crítica 139

processos assistenciais, a melhoria da área nos territórios, potencializando e integrando


física e a aquisição de novos equipamentos o apoio da RUE ao das demais redes temá-
dos hospitais envolvidos constituem-se em ticas, grupos condutores e dirigentes locais,
importantes avanços alcançados. desse modo, buscando impactar, efetivamen-
O SOS pode ser considerado como uma te, na resolutividade, no acesso, na segurança
inovação pela ênfase na qualificação da gestão e na humanização da atenção.
e do atendimento oferecido à população nas Desse modo, deve-se considerar que um
emergências de grandes hospitais e pelo seu projeto como a RUE, com essa magnitude e
caráter indutor para os demais pontos de importância, deve ter seus efeitos monito-
atenção da rede. Isto pode ser atribuído, em rados e avaliados ao longo do tempo. Esses
grande medida, a um acompanhamento mais esforços, bem como a indução da discussão
próximo junto à direção e aos profissionais da organização das redes nos territórios das
dos hospitais pelos apoiadores do SOS e, em regiões de saúde, terão seus frutos em médio
consequência, um monitoramento diário e e longo prazo. Os resultados mensuráveis até
mais efetivo dos processos de trabalho, isto agora ainda não demonstram a alavancada
proporcionando que os arranjos e pactuações e o movimento positivo que a implantação
para a regulação de leitos seja mais efetivo da RUE tem representado junto aos gesto-
e negociado com os gestores envolvidos. res, prestadores e profissionais de saúde. O
Entretanto, há ainda importantes desafios resultado dessa grande iniciativa só poderá
a serem superados, tendo em vista ser este ser, de fato, avaliado com maior precisão ao
um projeto ainda em construção. Além do longo dos próximos anos.
mais, trata-se de estratégia que envolve a
atuação do Ministério da Saúde em unidades
assistenciais, sob gestão de outro ente Apontamentos e caminhos a
federativo, significando, portanto, que a serem seguidos
atuação cotidiana deve ter o envolvimento
tripartite como fator de sucesso em sua Hartz e Contandriopoulos (2004) tratam
implementação e, mais do que isso, que essa da natureza do objeto das redes em dupla
experiência, deve ser pontual, induzindo leitura, como estrutura organizacional
a busca da autonomia do ente gestor para voltada para a produção de serviços, e como
a continuidade dos resultados obtidos ao dinâmica de negociação entre diversos
longo do tempo. atores em seus papéis, favorecendo novas so-
Após o processo de monitoramento da luções para velhos problemas, em contexto
RUE, houve pequena inflexão nas estratégias de mudanças e compromissos mútuos.
de ação do MS para 2014, passando a priori- Neste sentido, a teia da integração das
zar menos a ampliação da cobertura popula- redes no âmbito da gestão, no âmbito da
cional dos PAR e tornando mais evidente a atenção e entre as duas, é elemento fun-
necessidade de qualificar, de fato, cada ponto damental na formulação e implementa-
de atenção, com ênfase para as seguintes es- ção da Rede de Atenção às Urgências e
tratégias: implementação de ferramentas de Emergências. A confiança na capacidade de
gestão da clínica e revisão dos processos de intervenção do outro se faz necessária para
trabalho, objetivando mudanças das práti- a entrega do cuidado qualificado ao usuário.
cas assistenciais e do modelo de atenção; A atuação de uma unidade de saúde ou de
ampliação do Programa SOS Emergências, uma área do conhecimento/disciplina deve
transformando-o, cada vez mais, em modelo levar em consideração o papel das demais;
para as demais unidades hospitalares; am- e os recursos devem ter alocação equitativa,
pliação das estratégias de apoio integrado reduzindo as diferenças sócio-sanitárias.

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140 JORGE, A. O.; COUTINHO, A. A. P.; CAVALCANTE, A. P. S.; FAGUNDES, A. M. S.; PEQUENO, C. C.; CARMO, M.; ABRAHÃO, P. T. M.

Sob o ponto de vista de resultado, na ava- que façam a discussão sistêmica dos PAR
liação da RUE, a principal indagação deve ser da RUE, para além da discussão de parâme-
feita junto ao usuário, se foi reduzido ou não tros numéricos de metas físicas e financei-
seu périplo e tempos de espera para ter suas ras, que ensejarão o repasse de recursos por
necessidades atendidas no momento de ma- parte do MS. O papel do grupo condutor é
nifestação do sofrimento, que é o momento reunir informações para um diagnóstico de
agudo da dor, seja ela a dor física do trauma necessidades, ofertas já existentes, insufi-
ou de um IAM; seja a psicológica, em uma ciências ou vazios existenciais, chegando
emergência em atenção psicossocial; seja a à conformação de uma rede regional em
dor da insegurança, de ter ou não acesso a todos os seus componentes e linhas de
um parto seguro e em momento oportuno. cuidado.
Enfatiza-se que a coordenação da gestão
da RUE, no âmbito do MS, reveste-se do 2. Regulação: desenhado o PAR, sob o ponto
desafio de vencer a fragmentação entre a de vista de sua estrutura e financiamento,
promoção da saúde e prevenção de doenças torna-se imperativa a discussão da regula-
e agravos, e a assistência; entre os diversos ção da atenção à saúde, compreendida como
níveis de atenção à saúde; e entre os diversos promotora da equidade e da otimização da
componentes da RUE. Além disso, a própria utilização da oferta existente. Observa-se,
fragmentação do MS, entre suas diversas em boa parte dos gestores, a falta de decisão
secretarias e departamentos, deve ser su- política de regular, bem como a insuficiên-
perada na busca de ações mais sinérgicas e cia de ferramentas e tecnologias de manejo
resolutivas. do ato regulatório, desde a infraestrutura e
Assim, a indução e a implementação da sistemas informatizados para os complexos
RUE nos territórios, seja nos estados, muni- reguladores até a construção de fluxos, pro-
cípios, regiões de saúde e até em pontos de tocolos e habilidades específicas de equipes
atenção, como, por exemplo, na estratégia do para operar a regulação. Têm sido regra,
SOS Emergências, não pode prescindir dessa redes ‘sem regulação’ e um conjunto de es-
integração e da articulação nas estratégias de truturas regulatórias com profissionais sem
gestão, quando se trata de planejar e progra- o devido conhecimento acerca do conceito
mar, regular e financiar as ações e serviços sobre redes, ocasionando ineficiências com
de saúde que compõem a RUE nem das ações consequentes dificuldades de disponibili-
assistenciais de qualquer nível de atenção. zação da atenção em tempo oportuno.
Além disso, gestores estaduais ou municipais
e Comissões Intergestores Regionais (CIR) 3. Financiamento: o afastamento crescen-
também não podem prescindir de integra- te da lógica de pagamento com base nas
ção e articulação coerentes entre si e com o tabelas de procedimentos para o financia-
nível de gestão federal, desse modo, possibi- mento por meio de incentivos, a partir do
litando a efetivação das redes nos territórios valor global de componentes da RUE cons-
concretos. titui-se em avanço significativo na medida
No aspecto da gestão e governança da em que valoriza o desempenho e a atenção
implementação da RUE, pode-se identificar integral e resolutiva. No entanto, em muitos
diversos nós críticos, a serem enfrentados: casos, o repasse dos recursos não tem sido
acompanhado da efetiva ativação e qualifi-
1. Ação coordenadora das Secretarias de cação de serviços, e, muitas vezes, não tem
Estado da Saúde (SES): esta função coorde- ocorrido a chegada dos recursos financei-
nadora tem se mostrado insuficiente para ros ao seu destino final – o estabelecimento
induzir à formação de grupos condutores de saúde. Há determinantes diversos para

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Entendendo os desafios para a implementação da Rede de Atenção às Urgências e Emergências no Brasil: uma análise crítica 141

estes fatos, como dificuldades de gestores importante salientar que um planejamento


em manejar recursos de incentivos na con- para a Educação Permanente dos profis-
tratualização de serviços, de estabelecer sionais, desde a gestão da clínica, passando
compromissos e metas específicos para a pela gestão de estabelecimento de saúde e
RUE; e das direções de estabelecimentos de sistemas deve compor os PAR, incluindo
hospitalares em gerir recursos de incenti- a formação específica para os profissionais
vos entre as equipes profissionais e outras que atuam nas urgências e na regulação,
despesas. Mas, há também a visão de parte tendo em vista os problemas identificados
dos gestores, de forma permanente ou anteriormente.
transitória, de que os incentivos das redes
podem significar substituição de recursos 6. Monitoramento e Avaliação: a avaliação
de fonte municipal ou estadual, não neces- da implantação dos planos de ação da RUE
sariamente seguidos do real incremento em curso tem demonstrado algumas defici-
financeiro para ampliação do acesso e qua- ências, quais sejam:
lificação da atenção.
6.1. As avaliações da RUE e, em particular,
4. Informação: os sistemas oficiais do componente hospitalar ainda se restrin-
de cadastro – Cadastro Nacional de gem, em boa medida, à estrutura;
Estabelecimentos de Saúde (CNES) –
e produção – Sistema de Informação 6.2. Insuficiência de alinhamento concei-
Ambulatorial (SIA/SUS) – mostraram-se tual entre a equipe de apoiadores do MS e
insuficientes para registro e avaliação da demais componentes do grupo condutor e
RUE, começando pelos indicadores sobre dirigentes locais para avaliação dos disposi-
as portas de entrada hospitalares e pré- tivos de qualificação previstos nas portarias
hospitalares, que, com os atuais sistemas, (ex.: horizontalização do cuidado, gestão da
não conseguem monitorar os tempos de clínica, projeto terapêutico multidiscipli-
espera para o atendimento dos usuários. A nar e compartilhado, entre outros);
classificação de risco não está implantada
em todas as unidades e a informatização 6.3. Como regra, ausência de processos ava-
é insuficiente. Ademais, as iniciativas de liativos locais conduzidos pelas Secretarias
identificar, no CNES, os componentes da Estaduais de Saúde e/ou Secretarias
RUE para extrair informações estratégicas, Municipais de Saúde, que possam cotidia-
ainda não foram concluídas. Exemplo disso namente identificar os determinantes e
é o caso do Samu, que possui sistema de atuar de forma conjunta em sua resolução;
informação que abrange cerca de metade
das centrais e unidades móveis e tem se 6.4. Deficiente implantação de novos leitos
mostrado insuficiente para a gestão do de retaguarda pactuados, previstos nos
componente e de sua integração com outros PAR, resultando em suspensão de recursos
pontos de atenção. em várias regiões de saúde;

5. Educação Permanente: a alta rotativida- 6.5. Ainda que seja necessária a adequa-
de, a multiplicidade de vínculos dos traba- ção e a melhoria dos sistemas de informa-
lhadores e a falta de uma política efetiva de ção para avaliar o desempenho da RUE,
Educação Permanente nas instituições de os recursos hoje existentes do Sistema de
saúde no Brasil, na área de urgências, tem Informações Ambulatoriais/Sistema de
sido um dos maiores desafios para uma Informações Hospitalares e do Sistema de
adequada capacitação com vistas à RUE. É Cadastro Nacional dos Estabelecimentos

DIVULGAÇÃO EM Saúde PARA Debate | rio de Janeiro, n. 52, p. 125-145, OUT 2014
142 JORGE, A. O.; COUTINHO, A. A. P.; CAVALCANTE, A. P. S.; FAGUNDES, A. M. S.; PEQUENO, C. C.; CARMO, M.; ABRAHÃO, P. T. M.

de Saúde (SCNES) já permitiriam a ex- 8. Criação de estratégias para garantir a ali-


tração de informações, apresentando um mentação das informações relevantes, com
panorama, mesmo que incompleto, do vistas a avaliar o desempenho da RUE.
desempenho da implementação RUE nos
territórios, caso tais sistemas estivessem Ultrapassada essa primeira etapa, concen-
devidamente atualizados pelos gestores de trada no processo de planejamento e estru-
saúde. turação dos planos de ação da RUE, que têm
consumido os esforços gestores em todos os
Com base nestas reflexões, apontam-se, a níveis, inicia-se o momento de reavaliação
seguir, algumas estratégias que foram identi- do processo assistencial de cada compo-
ficadas como propostas de intervenção para nente, no sentido de atingir a qualificação
superação das deficiências da RUE, por meio necessária para a resolutividade e a atenção
de discussão e de ações de forma tripartite: integral e em rede dos usuários.
Nessa direção, sob o ponto de vista das
1. Indução para maior protagonismo das deficiências constatadas e da fraca indução
SES e SMS na coordenação e avaliação dos de mudança do modelo assistencial, os três
PAR da RUE; anos de formulação e implementação da
RUE têm exigido, por parte dos três níveis
2. Fortalecimento da capacidade de gestão de gestão, uma profunda reflexão sobre a
dos recursos financeiros pelas Secretarias forma de implementação do SUS nas várias
Estaduais de Saúde, Secretarias Municipais regiões de saúde. Observa-se que a implan-
de Saúde e estabelecimentos de saúde por tação do conjunto dos componentes da RUE
meio da contratualização, com metas espe- não se fez acompanhada, na mesma medida,
cíficas para a RUE, condicionando o repasse do processo de modificação do modelo assis-
de incentivos ao desempenho verificado; tencial em direção a uma atenção integral,
resolutiva, qualificada e centrada no usuário.
3. Implantação dos dispositivos de qua- Deve-se destacar, ainda, a relevância da
lificação clínica e de gestão dos diversos Atenção Básica em Saúde, assumindo o papel
componentes; de ordenadora e coordenadora dos sistemas
de saúde. É necessário avançar neste sentido,
4. Aceleração da realização das obras pla- dando, de fato, um salto em qualidade.
nejadas e das aquisições de equipamentos Ademais, os processos e sistemas de regu-
previstas nos planos; lação necessitam de forte inflexão, tornan-
do-se prioridade para os gestores de saúde.
5. Suspensão e, eventualmente, devolução A noção de que, sem uma regulação organi-
de recursos utilizados para finalidades di- zada, com base em critérios técnicos, regio-
versas que não sejam os da RUE; nalizada e integrada, não há garantia de um
percurso sem percalços do usuário pela RAS
6. Formulação e implementação do compo- deve ser basilar na construção das redes. Os
nente Regulação nos PAR, a ser contempla- Complexos Reguladores, como previstos na
do tanto nos novos como nas revisões dos Política de Regulação do MS, precisam ser
planos em curso; implementados, garantindo a integração
entre os diversos componentes da RUE.
7. Inserção, nos PAR, de forma objetiva e Conforme verificado ao longo deste
sistematizada, de plano de qualificação e artigo, esse processo de implementação da
Educação Permanente das equipes para rede de atenção às urgências foi permeado
gestão e atenção na RUE; de dificuldades, com vários compromissos

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Entendendo os desafios para a implementação da Rede de Atenção às Urgências e Emergências no Brasil: uma análise crítica 143

assumidos no planejamento expressos nos implementação efetiva da RUE, bem como


PAR e pactuados pelo conjunto de gestores para o aprimoramento dos processos assis-
envolvidos, e não efetivados total ou par- tenciais e gerenciais.
cialmente, levando os Grupos Condutores Na saúde, não há processo gestor exitoso
Estaduais e o próprio Ministério da Saúde se não se considerar uma postura e uma
à reavaliação das estratégias de implemen- atuação participativas, principalmente em
tação, no limite, chegando à suspensão de nível regional. As palavras de ordem têm que
parte dos recursos já repassados. ser a constância e a persistência nos proces-
Verificou-se que essa situação tem sido sos de discussão, pactuação e negociação
enfrentada no processo de implantação de solidárias e cooperativas. Apenas com o
todas as redes temáticas priorizadas, e na fortalecimento dos sistemas loco-regionais,
maior parte dos estados e regiões brasileiras. com firme vontade política, aliada ao co-
Desse modo, o tema da avaliação da implan- nhecimento técnico, e com a apropriação de
tação das redes foi debatido amplamente ferramentas gerenciais adequadas, pode-se
em duas reuniões da Comissão Intergestora promover mudanças efetivas nos processos e
Tripartite (CIT), gerando novas orientações monitorar o desenvolvimento das redes, com
e perspectivas, concluindo-se que esse pro- aprimoramento constante.
cesso deve ser mais bem articulado entre Por fim, conclui-se que, apesar dos
os gestores e com maior integração e enga- avanços, com alguns resultados relevantes
jamento dos diferentes estabelecimentos de no processo inicial de implantação da RUE,
saúde no seu planejamento. há ainda muito a ser aprimorado, e uma série
A despeito dos percalços e dos desafios a de dificuldades a serem superadas com cria-
serem superados, a RUE, assim como o con- tividade e espírito inovador, para se engen-
junto das outras redes temáticas, se consti- drar novos arranjos de gestão e governança
tui em avanço para o SUS, no sentido de dar para as redes, e novas práticas assistenciais,
respostas mais adequadas às necessidades de de forma a se transformarem em uma nova
saúde da população brasileira. Entretanto, cultura institucional na saúde.
conclui-se, a partir das avaliações empreen- E, contanto que haja um aprimoramento
didas, que o repasse de recursos financeiros, de todos os processos gestores e uma maior
por si só, não garante a efetivação das redes responsabilização dos atores envolvidos, a
de atenção. É imprescindível a atuação si- perspectiva é a de que, em breve, de forma
nérgica, integrada e pactuada entre gestores, majoritária no País, haja serviços de saúde
bem como planejamento, monitoramento e mais efetivos por conta de uma atuação em
acompanhamento contínuos por parte dos rede, proporcionando aos usuários uma
grupos condutores, que congregam as di- atenção de qualidade e resolutiva, objetivo
versas instâncias do SUS, para a garantia da final de todo este processo em curso. s

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144 JORGE, A. O.; COUTINHO, A. A. P.; CAVALCANTE, A. P. S.; FAGUNDES, A. M. S.; PEQUENO, C. C.; CARMO, M.; ABRAHÃO, P. T. M.

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DIVULGAÇÃO EM Saúde PARA Debate | rio de Janeiro, n. 52, p. 125-145, out 2014
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DIVULGAÇÃO EM Saúde PARA Debate | rio de Janeiro, n. 52, p. 125-145, OUT 2014
146 artigo original | original article

Saúde Sem Limite: implantação da Rede de


Cuidados à Saúde da Pessoa com Deficiência
Healthcare Without Limits: deployment of Health Care Network for
people with Disabilities

Vera Lucia Ferreira Mendes1

RESUMO Iniciada em 2012, na condição de política pública estruturante do SUS, a Rede de


Cuidados à Saúde da Pessoa com Deficiência representa o reconhecimento de um direito
social fundamental das pessoas com deficiência. Traz desafios e responsabilidades em relação
aos modos de produzir cuidados e acesso qualificado à saúde para as pessoas com deficiência
e mobilidade reduzida, por meio da construção de linhas de cuidado que atravessam os vários
componentes da atenção à saúde. O modo ascendente pelo qual a Rede de Cuidados à Saúde
da Pessoa com Deficiência foi construída, em sua configuração normativa, técnico-científica
e de financiamento, é expresso pela participação efetiva dos movimentos sociais das pessoas
com deficiências; da comunidade científica; e dos profissionais e gestores locais e regionais de
saúde, favorecendo a apropriação e a implicação por parte daqueles atores.

PALAVRAS-CHAVE Pessoas com deficiência; Reabilitação; Atenção à saúde; Políticas públicas


de saúde.

ABSTRACT In 2012, Health Care Network for People with Disabilities was deployed as a
structuring public policy of SUS, and today it represents the recognition of a fundamental social
right of people with disabilities. The Network brings challenges and responsibilities in relation
to the ways of producing health care and access for people with disabilities and reduced mobility,
through the careful construction of guiding lines that cross the various components of health care.
1Doutora em Psicologia The bottom-up mode used to build Health Care Network for People with Disabilities, with its
Clínica pela Pontifícia
Universidade Católica normative, scientific-technical and funding setting is expressed by the effective participation of
de São Paulo (PUC-SP) social movements of people with disabilities; the scientific community; and health professionals
– São Paulo (SP), Brasil.
Professora assistente da and managers, local and regional, favoring appropriation and involvement by those stakeholders.
Faculdade de Ciências
Humanas e da Saúde da
Pontifícia Universidade KEYWORDS Person with disability; Rehabilitation; Health care; Public health policies.
Católica de São Paulo
(PUC-SP) – São Paulo
(SP), Brasil. Coordenadora
Geral de Saúde da Pessoa
com Deficiência do
Departamento de Ações
Estratégicas em Saúde,
da Secretaria de Atenção
à Saúde, do Ministério
da Saúde – Brasília (DF),
Brasil.
vera.mendes@saude.gov.br

DIVULGAÇÃO EM Saúde PARA Debate | rio de Janeiro, n. 52, p. 146-152, OUT 2014
Saúde Sem Limite: implantação da Rede de Cuidados à Saúde da Pessoa com Deficiência 147

Estigmas e discriminação marcaram as 2009), o que impõe o desafio da formular po-


pessoas com deficiência ao longo da história líticas públicas capazes de garantir, entre
e ainda persistem como problemática a ser outros itens, a autonomia e a ampliação do
enfrentada na luta por direitos e pertença acesso à saúde, à educação e ao trabalho, a
social. Reconhecer e compreender tais cir- fim de melhorar as condições de vida das
cunstâncias na vida e nas reivindicações dos pessoas com deficiência física, mental, in-
movimentos das pessoas com deficiência telectual, sensorial ou múltipla, eliminan-
é imprescindível à produção de políticas do barreiras que obstruem a participação
públicas capazes de avançar em termos de efetiva na sociedade, em igualdade de condi-
direitos sociais e de ofertas adequadas de ções com as demais pessoas.
serviços a essa população. Em linha com a Convenção, o governo
A Convenção sobre os Direitos da Pessoa brasileiro, pela primeira vez, assume o
com Deficiência (BRASIL, 2007) é, talvez, a pri- desafio de construir políticas abrangentes,
meira proposição abrangente e com alcance lançando o Viver sem Limite: Plano Nacional
internacional que assume, mais efetivamen- de Direitos da Pessoa com Deficiência (BRASIL,
te, as referidas circunstâncias como dimen- 2011). Contando com a participação de 15
sões relevantes à conquista e à defesa de pastas ministeriais, inicia-se a estruturação
direitos das pessoas com deficiência. Não de políticas públicas consistentes, direciona-
por acaso, a Convenção estimula ou inspira das às pessoas com deficiência, por meio de
mudanças paradigmáticas nas agendas das ações e metas, em quatro eixos: saúde, edu-
políticas públicas que querem garantir direi- cação, acessibilidade e inclusão social.
tos às pessoas com deficiência, por exemplo, Nesse contexto, o Ministério da Saúde ins-
por meio da afirmação de que a deficiência é titui a Rede de Cuidados à Saúde da Pessoa
parte da condição humana e de que faz parte com Deficiência, na condição de rede prio-
da variedade e da diversidade de possibilida- ritária do SUS (BRASIL, 2012a). Tal Portaria es-
des de efetuação da espécie humana. Aliás, tabelece as bases normativas ao cuidado das
quase todas as pessoas, em algum momento pessoas com deficiência temporária ou per-
da vida, vão experimentar, de modo perma- manente, progressiva, regressiva ou estável,
nente ou temporário, dificuldades funcio- intermitente ou contínua.
nais que impeçam ou limitem sua realização Vale pontuar, de saída, que o processo de
e sua participação em determinadas ativida- formulação das políticas de saúde no Brasil,
des sociais. a partir do SUS (1988), orienta-se pelos prin-
Nessa direção, aprofunda-se a compreen- cípios da ‘universalidade’, na condição de
são de que os fatores orgânicos (de função e promoção de acesso qualificado à saúde para
estrutura do corpo) e ambientais (condições todos; da ‘equidade’, como estratégia para
de acessibilidade arquitetônica, comunica- acolher diferenças e enfrentar desigualda-
cional e atitudinal), bem como as condições des; e da ‘integralidade’, como articulação
socioeconômicas e de acesso à saúde, educa- transversal entre os pontos de atenção da
ção, trabalho e renda têm enorme impacto Rede SUS e outros equipamentos sociais
na constituição dos significados das defici- (educação, proteção social, esporte, cultura,
ências e na vida das pessoas com deficiência. trabalho); articulação baseada na escuta
No Brasil e com participação ativa de das necessidades concretas dos usuários do
vários setores da sociedade (gestores, es- sistema e nas condições sociais e sanitárias
pecialistas, pesquisadores e movimentos dos territórios.
sociais), o Estado subscreve a Convenção Na Rede de Cuidados à Saúde da Pessoa
sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência, com Deficiência, além dos desafios implica-
atribuindo-lhe estatuto constitucional (BRASIL, dos com a efetivação prática dos princípios e

DIVULGAÇÃO EM Saúde PARA Debate | rio de Janeiro, n. 52, p. 146-152, OUT 2014
148 MENDES, V. L. F.

diretrizes do SUS, foi imperativo considerar, • A promoção da autonomia e a inclusão


também, dimensões específicas, que permi- das pessoas com deficiência;
tissem de fato realizar as mudanças neces-
sárias às práticas e ao modelo de atenção • O enfrentamento de estigmas e precon-
à saúde dessas pessoas, rompendo com a ceitos, promovendo o respeito pela diferen-
lógica da institucionalização e do isolamen- ça e a participação efetiva das pessoas com
to social, bem como da fragmentação dos deficiência nos diversos campos sociais;
cuidados, indo na direção da promoção da
autonomia, da inclusão social, da superação • A garantia do acesso e da qualidade dos
da atomização dos cuidados e dos especialis- serviços, ofertando cuidado integral e as-
mos tecnicistas e/ou pseudocientíficos que, sistência multiprofissional, sob a lógica
com frequência, permeiam a lógica da reabi- interdisciplinar;
litação em nosso País.
Sendo assim, é preciso pensar a saúde das • Atenção humanizada e centrada nas ne-
pessoas com deficiência cessidades das pessoas;

(...) como produção social na alteridade e, • Diversificação das estratégias de cuidado;


sobretudo, como escuta ao outro (...), reco-
nhecendo que a construção do cuidado se faz • Desenvolvimento de atividades no ter-
nas relações, nas conversações entre sujeitos ritório, favorecendo a inclusão social com
– usuários, profissionais, gestores (SOUZA, 2014, vistas à promoção da autonomia e ao exer-
p.153). cício da cidadania;

Faz-se, também, na conjunção e na conver- • Ênfase em serviços de base territorial e


gência de conhecimentos e saberes desses comunitária, com participação e controle
diferentes atores, o que torna fundamental a social dos usuários e de seus familiares;
participação das pessoas com deficiência em
todos os níveis de seus processos de cuidado, • Organização dos serviços em Rede de
como elas próprias enunciam em suas rei- Atenção à Saúde regionalizada, com esta-
vindicações: ‘nada de nós sem nós!’. É isso belecimento de ações intersetoriais para
mesmo. Elas são as protagonistas desse garantir a integralidade do cuidado;
processo e, mais amplamente, de suas vidas.
Sem essa percepção, não será possível evitar • Desenvolvimento da lógica do cuidado
que nossas práticas de saúde gerem uma para pessoas com deficiência física, audi-
tiva, intelectual, visual, ostomia e múlti-
espécie de inclusão excludente; aquela que, plas deficiências, tendo como eixo central
formalmente, respeita direitos, mas mantém a construção de projetos terapêuticos
discriminação e exterioridade, sobretudo por- singulares;
que impede ou limita a relação entre as dife-
renças no campo social (SOUZA, 2014, p.143). • Desenvolvimento de pesquisa clínica e
inovação tecnológica em reabilitação;
A proposta de uma política de reabilita-
ção no âmbito do SUS, levada a cabo pela • Garantia de acesso à reabilitação, em
Rede de Cuidados à Saúde da Pessoa com busca da reinserção das pessoas com defi-
Deficiência, definiu como premissas ou ho- ciência no campo do trabalho, da educação
rizontes e contribuições da ação em saúde: e da vida social;

DIVULGAÇÃO EM Saúde PARA Debate | rio de Janeiro, n. 52, p. 146-152, out 2014
Saúde Sem Limite: implantação da Rede de Cuidados à Saúde da Pessoa com Deficiência 149

• Promoção de mecanismos de Educação - Diretrizes de Atenção à Saúde da Pessoa


Permanente aos profissionais de saúde; com Deficiência, que orientam os profissio-
nais da Rede SUS sobre as especificidades do
• Desenvolvimento de ações intersetoriais cuidado à saúde das pessoas com deficiência,
de promoção e prevenção à saúde, em par- garantindo adequado acolhimento, diagnós-
ceria com organizações governamentais e tico e tratamento.
da sociedade civil; Segundo tais normas, a Rede de Cuidados
à Saúde da Pessoa com Deficiência quer
• Produção de oferta de informações assegurar acompanhamento e cuidados às
sobre direitos das pessoas com deficiência, pessoas com deficiência auditiva, física, in-
medidas de prevenção e cuidado, e sobre os telectual, visual, múltiplas, ostomias e trans-
serviços disponíveis na rede, por meio de tornos do espectro do autismo. A ideia é criar
cadernos, cartilhas e diretrizes de cuidado um conjunto de serviços, bem como adequar
à pessoa com deficiência; os existentes, para ampliar o acesso com qua-
lidade em todos os componentes da Rede:
• Organização das demandas e dos fluxos Atenção Básica, especializada e hospitalar,
assistenciais da Rede de Cuidados à Saúde Urgência e Emergência, de modo articulado
da Pessoa com Deficiência; e regulado. Como já mencionei em outra pu-
blicação (MENDES, 2014), os serviços serão orga-
• Construção de mecanismos de moni- nizados em base territorial, operando para:
toramento e avaliação da qualidade dos
serviços. • Estabelecerem-se como lugar de referên-
cia de cuidado e proteção para usuários,
Conforme a Portaria 793, de 24 de abril de familiares e acompanhantes nos processos
2012 (BRASIL, 2012a), os cuidados à pessoa com de reabilitação auditiva, física, intelectual,
deficiência devem ser estabelecidos a partir visual, ostomias e múltiplas deficiências e
da lógica de Atenção em Redes de Cuidado, do espectro do autismo;
que são organizadas a partir dos componen-
tes: Atenção Básica; Atenção Especializada • produzir, em conjunto com o usuário, seus
em Reabilitação; Atenção Hospitalar e de familiares e acompanhantes, e de forma
Urgência e Emergência. Os componentes matricial, na rede de atenção, um Projeto
da atenção precisam ser articulados entre si Terapêutico Singular, baseado em avalia-
para garantir a integralidade do cuidado e o ções multidisciplinares das necessidades e
acesso regulado a cada ponto de atenção e/ capacidades das pessoas com deficiência,
ou aos serviços de apoio, observadas as es- incluindo dispositivos e tecnologias assisti-
pecificidades inerentes e indispensáveis à vas, e com foco na produção da autonomia
garantia da equidade na atenção à saúde. e no máximo de independência em diferen-
Em complemento à Portaria 793, foi pu- tes aspectos da vida;
blicada a Portaria 835, de 25 de abril de
2012 (BRASIL, 2012b), que institui incentivos • garantir que a indicação de dispositivos
financeiros aos Centros Especializados de assistivos deva ser criteriosamente escolhi-
Reabilitação (CER) e às Oficinas Ortopédicas. da, bem adaptada e adequada ao ambiente
Também integram as ferramentas técni- físico e social, garantindo o uso seguro e
cas e normativas da Rede: - Instrutivo de eficiente dessas ferramentas;
normas técnicas para habilitação de servi-
ços; - Manual de ambiência, com normas • melhorar a funcionalidade e promover a
de acessibilidade às unidades de saúde; inclusão social das pessoas com deficiência

DIVULGAÇÃO EM Saúde PARA Debate | rio de Janeiro, n. 52, p. 146-152, OUT 2014
150 MENDES, V. L. F.

em seu ambiente social, através de medidas intermitente e contínua; severa e em regime


de prevenção da perda funcional, de de tratamento intensivo. É o lugar de refe-
redução do ritmo da perda funcional, da rência de cuidado e proteção para usuários,
melhora ou recuperação da função; da familiares e acompanhantes nos processos
compensação da função perdida; e da ma- de reabilitação, produzindo, em conjunto
nutenção da função atual; com os usuários, seus familiares e acom-
panhantes, e de forma matricial na rede de
• estabelecer fluxos e práticas de cuidado atenção, um Projeto Terapêutico Singular,
à saúde contínua, coordenada e articulada baseado em avaliações multidisciplinares
entre os diferentes pontos de atenção da das necessidades e capacidades das pessoas
rede de cuidados às pessoas com deficiên- com deficiência, incluindo:
cia em cada território;
a. Prescrição, adaptação e manutenção de
• realizar ações de apoio matricial na dispositivos e tecnologias assistivas com
Atenção Básica, no âmbito da Região de foco na produção da autonomia e o máximo
Saúde de seus usuários, compartilhando a de independência em diferentes aspectos
responsabilidade com os demais pontos da da vida;
Rede de Atenção à Saúde;
b. Ações de habilitação/reabilitação com
• articular-se com a Rede do Sistema Único vistas a melhorar a funcionalidade e pro-
de Assistência Social (Suas) da Região de mover a inclusão social das pessoas com
Saúde a que pertença, para acompanha- deficiência em seu ambiente social, através
mento compartilhado de casos, quando de medidas de prevenção da perda funcio-
necessário; nal, de redução do ritmo da perda funcio-
nal, da melhora ou recuperação da função;
• articular-se com as Redes de Ensino das da compensação da função perdida; e da
Regiões de Saúde para identificar crianças manutenção da função atual;
e adolescentes com deficiência e avaliar
suas necessidades; dar apoio e orientação c. Realização de ações de apoio matricial,
aos educadores, às famílias e à comunidade compartilhando a responsabilidade com os
escolar, visando à adequação do ambiente demais pontos da Rede de Atenção à Saúde;
escolar às especificidades das pessoas com
deficiência. d. Articulação com a Rede do Sistema Único
de Assistência Social (Suas) da Região de
Saúde a que pertença para acompanha-
Essa busca da garantia do acesso univer- mento compartilhado de casos, quando
sal à saúde depende de serviços e padrões necessário;
técnicos bem definidos. Por isso, os princi-
pais pontos de Atenção Especializada em e. Articulação com a Rede de Ensino da
Reabilitação foram delineados na Rede da Região de Saúde a que pertença, para iden-
seguinte forma: tificar crianças e adolescentes com defici-
ência e avaliar suas necessidades; dar apoio
• Centro Especializado de Reabilitação e orientação aos educadores, às famílias e
(CER): serviço de referência regulado, que à comunidade escolar, visando à adequação
presta atenção especializada às pessoas do ambiente escolar às especificidades das
com deficiência temporária ou perma- pessoas com deficiência.
nente; progressiva, regressiva ou estável;

DIVULGAÇÃO EM Saúde PARA Debate | rio de Janeiro, n. 52, p. 146-152, out 2014
Saúde Sem Limite: implantação da Rede de Cuidados à Saúde da Pessoa com Deficiência 151

f. Critérios de Habilitação do CER e acesso e uso de equipamentos urbanos.


Tipologia: para que um CER possa ser ha- Esse tipo de serviço será prestado através
bilitado pelo Ministério da Saúde (MS), dos micro-ônibus e furgões adaptados, dis-
é necessário que o gestor Estadual ou ponibilizados pela Rede. É o que chama-
Municipal, por meio da implementação mos de serviço ponto a ponto; serviço que
de grupo condutor da Rede de Cuidados à se caracteriza por ofertar às pessoas com
Saúde da Pessoa com Deficiência, elabore deficiência, com alto grau de dependência,
Plano de Ação (regionais e Estadual), defi- embarque em suas residências ou em locais
nindo necessidades e prioridades de cada próximos e desembarque nos Centros
região, e cumpra os requisitos técnicos de Especializados em Reabilitação, promoven-
qualidade assistencial definidos pelo MS do o acesso ao tratamento ofertado pelos
(ver Instrutivos de reabilitação Auditiva, Centros Especializados de Reabilitação.
Física, Intelectual e Visual). Os CER se Os fluxos, bem como os horários e as rotas
diferenciam a partir das modalidades de desses veículos, naturalmente, serão defini-
reabilitação que serão implementadas: au- dos pelos gestores locais.
ditiva, física, intelectual e visual. O CER II
contempla duas modalidades de deficiên- Essas muitas ações, os dispositivos e es-
cia; o CER III, três modalidades, e o CER truturas mostram que a nova Rede, embora
IV, as quatro modalidades. muito recente, está em processo intenso e
acelerado de implantação pelo País, por meio
• Oficinas Ortopédicas: realizam a confec- de pactuações e conversações por dentro do
ção e a manutenção de órteses sob medida SUS e com a sociedade civil. Isso representa a
e ajustes das próteses para cada usuário. materialização de uma conquista histórica em
Para que a pessoa com deficiência tenha termos de direitos sociais e, neles, de acesso
um ganho de autonomia concreto no uso qualificado das pessoas com deficiência à
de tecnologias assistivas, é necessário que saúde. Nessa medida, (re)afirmamos que
as órteses, prótese e meios auxiliares de
locomoção (OPM) sejam adequadamente a implicação de tais atores e a disposição em
indicados e adaptados. As equipes do CER e fazer uma política pública pluralista e produ-
das Oficinas Ortopédicas vão trabalhar para zida de forma ascendente, isto é, com a parti-
garantir que a indicação de dispositivos as- cipação direta da sociedade, foram e são de-
sistivos seja criteriosamente definida, bem cisivas para que, de fato, a Rede de Cuidados
adaptada e adequada ao ambiente físico e à Saúde da Pessoa com Deficiência se conso-
social, garantindo um uso seguro e eficiente. lide como conquista da cidadania brasileira,
indo ao encontro da maior conquista brasilei-
• Uso do Veículo Adaptado: o transporte ra no campo da saúde: o SUS, e se inserindo
sanitário poderá ser utilizado por pessoas na busca da produção qualificada de saúde,
com deficiência que não apresentem condi- com oferta de cuidados pautada pela integra-
ções de mobilidade e acessibilidade autôno- lidade da assistência; pela universalidade do
ma aos meios de transporte convencionais acesso; pela equidade do cuidado; e pelo con-
ou que manifestem grandes restrições ao trole social (CAMPOS; SOUZA; MENDES, no prelo). s

DIVULGAÇÃO EM Saúde PARA Debate | rio de Janeiro, n. 52, p. 146-152, OUT 2014
152 MENDES, V. L. F.

Referências

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DF, 25 abr. 2012a. Disponível em: <http://bvsms.saude.
gov.br/bvs/saudelegis/gm/2012/prt0793_24_04_2012. CAMPOS, M. F.; SOUZA, L. A. P.; MENDES, V. L. F. A
html>. Acesso em: 07 de setembro de 2014. Rede de Cuidados à Saúde da Pessoa com Deficiência
do SUS. Interface – comunicação, saúde, educação,
_______. Ministério da Saúde. Gabinete do Ministro. Botucatu. No prelo.
Portaria 835, de 25 de abril de 2012, Institui incentivos
financeiros de investimento e de custeio para o MENDES, L. F. M. Da “narrativa da dificuldade” ao
Componente de Atenção Especializada da Rede de diálogo com a diferença: a construção da Rede de
Cuidados à Pessoa com Deficiência no âmbito do Cuidados à Saúde da Pessoa com Deficiência. In:
Sistema Único de Saúde. Diário Oficial da União, Brasília, BRASIL. Ministério da Saúde. Diálogo (bio)político
DF, 26 abr. 2012b. Disponível em: <http://bvsms.saude. sobre alguns desafios da construção da Rede de Cuidados
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_______. Presidência da República. Casa Civil. Subchefia SOUZA. L. A. P. O outro do outro: biopotência da
para Assuntos Jurídicos. Decreto 6.949, de 25 de agosto diferença na saúde das pessoas com deficiência. In:
de 2009. Promulga a Convenção Internacional sobre os BRASIL. Ministério da Saúde. Diálogo (bio)político
Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo sobre alguns desafios da construção da Rede de Cuidados
Facultativo, assinados em Nova York, em 30 de março à Saúde da Pessoa com Deficiência. Brasília: Ministério
de 2007. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 26 ago. da Saúde, 2014, p. 133-150.
2009. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/
ccivil_03/_ato2007-2010/2009/decreto/d6949.htm>.
Acesso em: 07 de setembro de 2014.

_______. Presidência da República. Casa Civil. Subchefia


para Assuntos Jurídicos. Decreto 7.612, de 17 de
novembro de 2011, Institui o Plano Nacional dos
Direitos da Pessoa com Deficiência – Plano Viver sem

DIVULGAÇÃO EM Saúde PARA Debate | rio de Janeiro, n. 52, p. 146-152, out 2014
artigo original | original article 153

Redes Vivas: multiplicidades girando as


1Professora pela
existências, sinais da rua. Implicações para
Universidade Estadual
de Campinas (Unicamp)
– Campinas (SP), Brasil.
a produção do cuidado e a produção do
Professor Titular de Saúde
Coletiva na Universidade
conhecimento em saúde
Federal do Rio de Janeiro
(UFRJ), Macaé (RJ), Brasil. Live Networks: multiplicities turning beings, signals from the streets.
emerson.merhy@gmail.com
Implications for care production and the production of knowledge in
Doutora em Psiquiatria
health
2

e Saúde Mental pela


Universidade Federal do
Rio de Janeiro (UFRJ) – Rio
de Janeiro (RJ), Brasil. Emerson Elias Merhy1, Maria Paula Cerqueira Gomes2, Erminia Silva3, Maria de Fátima Lima
Professora. Adjunta do
Instituto de Psiquiatria na Santos4, Kathleen Tereza da Cruz5, Tulio Batista Franco6
Universidade Federal do
Rio de Janeiro (UFRJ), Rio
de Janeiro (RJ), Brasil.
paulacerqueiraufrj@gmail.com

3 Doutora em História

Social pela Universidade


Estadual de Campinas
(Unicamp) – Campinas RESUMO Sintetizamos as experiências recolhidas por um grupo de pesquisadores vinculados
(SP), Brasil. Professora
da Linha Micropolítica do a Micropolítica do Trabalho e o Cuidado em Saúde, da Pós-Graduação de Clínica Médica
Trabalho e o Cuidado em - Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), a partir de suas investigações sobre a
Saúde, na Universidade
Federal do Rio de Janeiro produção do cuidado em saúde, em diferentes contextos de práticas. Destacamos as ações do
(UFRJ), Rio de Janeiro (RJ), que chamamos de ‘Sinais que vêm da rua’ e as construídas no estudo sobre as Redes Temáticas
Brasil.
mina.silva@gmail.com de Cuidado, que têm como princípio a ideia de avaliar quem pede tais ações, quem as faz e quem
as utiliza. O elemento de destaque e analisador central de nossas aprendizagens no campo
4 Doutora em Saúde
Coletiva pela Universidade da produção do cuidado e do conhecimento em saúde é a noção de Rede Viva como modo
Estadual do Rio de Janeiro de produção das conexões existenciais de indivíduos e coletivos, em diferentes contextos de
(Uerj) – Rio de Janeiro
(RJ), Brasil. Professora. grupalidade e modos de viver, socialmente.
Adjunta de Saúde Coletiva
na Universidade Federal
do Rio de Janeiro (UFRJ), PALAVRAS-CHAVE Pesquisa qualitativa; Assistência centrada no paciente; Trabalho; Saúde
Macaé (RJ), Brasil. pública.
fatimalima4@gmail.com

5Doutoranda em Clínica ABSTRACT We synthesized the experiences gathered by a group of researchers affiliated with
Médica pela Universidade
Federal do Rio de Janeiro Labor Micropolitics and Health Care, from Medical Clinic postgraduate school - Universidade
(UFRJ) – Rio de Janeiro Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), from their investigations on the production of health care in
(RJ), Brasil. Professora.
Assistente de Saúde different contexts of practice. We highlighted the actions of what we call ‘Signals coming from the
Coletiva na Universidade street’ and the ones built in the study of the Thematic Care Networks, which have as a principle
Federal do Rio de Janeiro
(UFRJ), Macaé (RJ), Brasil. the idea of evaluating who asks, who makes and who uses them. The major element and central
keke.kathleen@gmail.com analyzer of our learning in the field of care provision and health knowledge is the idea of Live
6 Doutor em Saúde Networks as a way of producing existential connections of individuals and groups in different
Coletiva pela Universidade contexts of groupality and ways of living, socially.
Estadual de Campinas
(Unicamp) – Campinas
(SP), Brasil. Professor KEYWORDS Qualitative research; Patient-centered care; Work; Public health.
Associado de Saúde
Coletiva na Universidade
Federal Fluminense (UFF),
Rio de Janeiro (RJ), Brasil.
tuliofranco@gmail.com.

DIVULGAÇÃO EM Saúde PARA Debate | rio de Janeiro, n. 52, p. 153-164, OUT 2014
154 MEHRY, E. E.; GOMES, M. P. C.; SILVA, E.; SANTOS, M. F. L.; CRUZ, K. T.; FRANCO, T. B.

Introdução por uma soma das partes, faz-se interessante


pensar que a variável ‘n’ comporta uma mul-
tiplicidade onde, a todo e qualquer instante,
Andando ao longo de uma linha de trem, observo pode ser subtraída desta uma determinada
meio perplexo o vagar das pessoas de um lado singularidade, que continua em conexão
para outro. Parece um formigueiro, muita gente. com o conjunto.
Encontros, desencontros. Muita gente conviven- No campo da saúde podemos tomar,
do com sujeira, esgoto a céu aberto, ratos, bara- na apreensão dessa oferta, o caso do
tas passando em cima das pessoas. Parte de mim diabetes mellitus. Quando algum usuário
se surpreende não pelo visto, mas pela intensida- é diagnosticado como diabético, essa
de do vivido. Vejo um longo, velho e sujo muro, informação sobressai e apaga tudo aquilo
cheio de lixo, com um buraco no meio. Percebo que as pessoas podem ser além de portadoras
um entra e sai, um movimento diferente, mas dessa ‘doença’, como poderia ser o caso
calmo. Vou até lá... Dentro do buraco, uma cor desse n-1 que, por exemplo, poderia ser
forte na parede, um lugar limpo e arrumado onde também mãe ou pai, filho ou filha, dançarino,
as pessoas namoravam. Como assim? É possível apreciador de comidas, amante de música,
ter vida naquele lugar? (Trecho adaptado de enfim. De um modo geral, nesse campo, essa
um depoimento de um aluno do Programa de mesma lógica se repete em vários outros
Educação para o Trabalho PET – Saúde/Saúde fronts do mundo do cuidado, como, por
Mental/Crack, Álcool e outras Drogas – Uni- exemplo, no caso dos usuários de álcool e
versidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ). outras drogas, bem como com pessoas que
vivem ou que têm nas ruas seus espaços
privilegiados de existência. Trabalhar as
A situação está cada vez mais difícil! A gente multiplicidades é trazer para o campo do
atende, acompanha por um tempo e, de repen- cuidado as singularidades dos sujeitos (-1)
te, a pessoa some. De um dia para a noite, ela e suas possibilidades (n) existenciais, como
simplesmente some, desaparece, sem deixar Redes Vivas em produção.
vestígios! Seus companheiros da rua estão muito No auge do século XIX, as ruas se meta-
assustados. De vez em quando, um desaparece! morfosearam, traduzindo-se em complexi-
(Fala de um profissional de Saúde de um Con- dades contemporâneas. A atualidade
sultório de Rua).
[...] mostra um quadro de contrastes exa-
As ruas compõem, por excelência, desde cerbado pela heterogeneidade e desigual-
a modernidade, um crescente e vertigino- dade social e cultural, pela fragmentação e
so espaço de multiplicidades. A ideia de compartimentação de espaços de moradia
multiplicidade é trabalhada por Deleuze e e vivência, pela violência, pela degradação e
Guattari (1995, p. 14) no sentido de que perversa distribuição dos equipamentos co-
letivos. Centro e periferia, favelas e condo-
é preciso fazer o múltiplo, não acrescentan- mínios fechados, mercado de ambulantes e
do sempre uma dimensão superior, mas, ao shopping centers, cortiços e mansões, o carro
contrário, da maneira simples, com força de individualizado e transporte público deficien-
sobriedade, no nível das dimensões de que se te, o desperdício e a miséria... a lista de con-
dispõe, sempre n-1. Somente assim que o uno trastes parece não ter fim. […] o romantismo
faz parte do múltiplo, estando sempre subtra- anacrônico pensa em ‘rua, suporte de sociabi-
ído dele. lidade’, nesse contexto. No entanto, tudo de-
pende de que rua se está falando. Certamente
Nessa situação, ao contrário de operar não é a rua unívoca, definida a partir do eixo

DIVULGAÇÃO EM Saúde PARA Debate | rio de Janeiro, n. 52, p. 153-164, out 2014
Redes Vivas: multiplicidades girando as existências, sinais da rua. Implicações para a produção do cuidado e a produção do conhecimento em saúde 155

classificatório unidimensional (vias expres- sabe sobre qual é o modo ‘mais saudável, a
sas, coletoras, locais, binárias etc.), dado pela melhor forma de viver’. Esse encontro, assi-
função de circular. A rua que interessa e é métrico, e sua assimetria não provêm do fato
identificada pelo olhar antropológico é recor- de não incluir a diferença, mas de transfor-
tada desde outros e variados pontos de vista, mar as diferenças em desigualdades de saber
oferecidos pela multiplicidade de seus usuá- e de formas de vidas, onde há uma proprie-
rios, suas tarefas, suas referências culturais, dade exclusiva de certo saber de alguns em
seus horários de uso e formas de ocupação relação aos outros (MERHY, 2009).
[...] (MAGNANI, 2003, [s. p.]). Nisso, as lógicas reproduzidas na maioria
dos serviços de saúde operam ainda em cima
É essa a rua que nos interessa. A rua que do campo das profissões, procedimentos e
comporta alegrias, dores, dissabores, desa- protocolos; uma lógica burocrática organiza-
fios. Preenchida por signos e diferentes sen- cional a partir do apagamento da multiplici-
tidos, a rua é lugar de múltiplos sinais, que dade das dimensões e das éticas existenciais
acabam sendo naturalizados nos encontros que perfazem os sujeitos sociais.
com as alteridades. De muitas maneiras, os O olhar para o outro é sempre previsível, é
sinais que vêm da rua nos invadem porque possível prever o que vai ser encontrado. Essa
também somos a rua. Cravados de tensões previsibilidade produz certa invisibilidade
constitutivas entre produção de vida e da produção da multiplicidade de vidas que
morte, presentificam-se, no cotidiano do vazam dos sinais que vêm da rua, sobretudo
andar a vida de todos nós. Sentimentos como no campo da saúde. Ao passar pela porta de
medo, compaixão, horror, desprezo, piedade, um serviço de saúde, parece que esse outro é
generosidade, interesse, curiosidade, todas convidado a deixar toda vida que traz da rua
essas afecções circulam entre nós sem pedir do lado de fora.
licença. Muitas vezes, é precisamente a Entretanto, faz-se necessário ressaltar que
partir desses sentimentos que somos levados os usuários, enquanto redes de existências,
a pensar formas de aproximação e/ou afas- produzem-se ‘em-mundos’, ‘in-mundizam-
tamento desses sinais e, consequentemente, se’ (GOMES; MERHY, 2014), constituindo certas
da forma como entramos em conexão ou não formas éticas existenciais e certos modos
com essas vidas. de conduzir, por si, também a produção de
E o que nós, trabalhadores da saúde, cuidado, disputando o tempo inteiro com as
temos a ver com isso? Os trabalhadores da outras diferentes lógicas de existir, em si, e
saúde não estão livres dessas afecções. Ao que lhes são impostas pelas instituições. Os
contrário, muitas vezes, é com base nelas que usuários produzem modos de existências que
a produção do cuidado é construída. são, muitas vezes, julgados e cerceados pelas
De forma muito frequente, o mundo da equipes de saúde, e estas ficam aprisionadas
rede de cuidados é pautado pela ideia de uma a um modo de saber tão preponderante, que
forte centralidade nas suas próprias lógicas não possibilita perceber que certas atitudes,
de saberes, tomando o outro que chega a comportamentos, expressões são modos de
este mundo – o usuário – como seu objeto de existência, ainda que se apresentem cheios
ação, como alguém desprovido de conheci- de tensões e problemas.
mentos, experiências. Nesse encontro só há Nesse sentido, temos uma dobra que opera
espaço para reafirmar o já sabido, o saber a todo instante a partir de tensões constitu-
que eu porto em relação ao outro, a maneira tivas, que põe usuários e serviços em nego-
que o profissional da saúde considera ser a ciação. As ruas são, entre tantos territórios
‘correta’, discursando para aquele que nada existenciais, um lugar onde as existências

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atuam e se produzem como Redes Vivas. situação é uma característica muito marcan-
Quando usuários adentram os serviços de te. O (seu) usuário é um nômade pelas redes
saúde, junto de si carregam um mundo de de cuidado e um forte protagonista de sua
possibilidades, muitas vezes esvanecidas, produção (LANCETTI, 2006). O território tomado
que, como apontamos, pedimos para ficar do como produção de agenciamentos, majori-
lado de fora. tariamente desconhecido pelas equipes de
O interessante é perceber que os trabalha- saúde, instaura uma rede rizomática não
dores de saúde que operam nas ruas – fora linear, que não se apresenta capturada em
do campo da saúde stricto sensu, no interior um território único, em um espaço geográ-
dos estabelecimentos consagrados – e os que fico definido. Como um nômade, o usuário
atuam no campo da cultura, das artes e da produz e protagoniza, de forma singular, os
educação nos seus encontros, ofertam uma acontecimentos, no seu processo de cuidado.
experiência de ‘transver’ o real, como nos Nômade na produção de sua vida e, por isso
diz o poeta Manoel de Barros. Quem está mesmo, capaz de circular em territórios
fora do ‘muro institucional’ da saúde, como muitas vezes imperceptíveis para as equipes
nestes casos, percebe o quanto essa popula- de saúde, construindo múltiplas conexões na
ção atendida tem uma rede existencial rica, vida. Esta forma de circulação dos usuários,
e até mesmo que várias delas têm passagens tecendo suas próprias redes de sociabilida-
por outros campos como o da arte-educação, des e cuidado, comporta movimentos de des-
o da música, o do circo social, o do teatro. territorialização, que afetam e convidam as
Passam por outras conexões, além das pró- equipes a esta mesma experimentação des-
prias redes de existências que cada um territorializante. Mas, aceitar este convite
fabrica no encontro com um outro qualquer. e sair de territórios pré-concebidos que es-
Isto é invisível para a área da saúde, que tabelecem ‘repertórios de cuidado’ marca-
se encastela nos muros do próprio campo e, damente definidos, cujos rastros remetem
muitas vezes, restringe o olhar sobre quem ao já-conhecido (por exemplo: rastros do
vem para o serviço, fixando-se no mesmo e especialismo de cada profissão e de suas res-
não ousando sair do muro/mundo. A princi- pectivas competências) não é tarefa simples
pal estratégia é trazer o mundo para dentro (GOMES; MERHY 2014, p. 28).
dos serviços, criar outros mundos lá dentro,
e não sair do campo da saúde, subsumindo o
mundo das experiências às lógicas epistemo- Redes Vivas e conexões
lógicas e metodológicas do campo. Algumas existenciais. Analisador
de nossas pesquisas, com base na cartografia
dos movimentos nômades de certos usuários As ruas, como tomadas em nossas refle-
guias, têm revelado quanto o desconheci- xões, traduzem-se como diferentes. Isso nos
mento sobre o outro é produzido nas redes permite pensar que a discussão de redes de
formais de saúde (GOMES; MERHY, 2014). De modo cuidado em saúde, olhada a partir da macro-
muito frequente, os profissionais de saúde política, tem baixa potência, por não abarcar
não conhecem as várias existências que cada a dimensão micropolítica das experiências
uma dessas pessoas tem quando atravessa cotidianas, onde
o muro, passa pela calçada dos serviços e
ganha os mundos. De forma bem frequente, é [...] toda sociedade, mas também todo indi-
possível observar que os usuários constroem víduo, são pois atravessados pelas duas seg-
suas próprias redes com diferentes conexões. mentaridades ao mesmo tempo: uma molar
No campo do cuidado em saúde mental, esta e outra molecular. Se elas se distinguem, é

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porque não tem os mesmos termos, nem as Ministério da Saúde expressa uma formu-
mesmas correlações, nem a mesma natureza, lação sobre essa discussão, indica uma rede
nem o mesmo tipo de multiplicidade. Mas, se inteira, sólida, como se fosse um controle de
são inseparáveis, é porque coexistem, pas- governabilidade extenso. Sugere uma mo-
sam uma para a outra [...]. Em suma, tudo é delagem de algo analógico, que pudesse ter
político, mas toda política é ao mesmo tempo toda sua previsibilidade definida e, portanto,
macropolítica e micropolítica (DELEUZE; GUATTA- manejável dentro dessa racionalidade.
RI, 1996, p. 90). Entretanto, as Redes Vivas são fragmen-
tárias e em acontecimento, hipertextuais, ou
Trazer o micropolítico é trazer os lugares seja, às vezes são circunstanciais, montam e
onde as existências furam os muros institu- desmontam, e às vezes elas se tornam mais
cionais, conectando relações com o fora, que estáveis, mas comportam-se mais como
é constitutivo dos processos; processos estes lógicas de redes digitais, que podem emergir
intensamente produtores de novos sentidos em qualquer ponto sem ter que obedecer
no viver e no conhecimento. É trazer o lugar um ordenamento lógico das redes analógi-
dos processos de encontros e suas atualiza- cas, como um hipertexto. Assim, uma rede
ções das relações de poder. É trazer a micro- institucionalizada como analógica – como
política do encontro e a produção viva das a noção de rede primária e secundária de
redes de conexões existenciais, multiplicida- cuidado –, pode ser disparadora, mas ela vai
des em agenciamento. se encontrar e ser atravessada por inúmeras
Vale apontar que a ideia de redes não outras redes, de outros tipos não analógicos
é algo novo no Sistema Único de Saúde, (MERHY, 2013a).
apesar de, na atualidade, o conceito de rede Além disso, essa rede pode ser a dispa-
pautar os discursos e práticas dos campos radora, mas o usuário pode estar sendo
institucionais nas três esferas federativas. acompanhado por outros serviços ou ofertas
Na Constituição Federal, de 1988, o artigo de ações não do campo da saúde, devido às
198 já dispunha que as ações e serviços de características do problema, que vai pedindo
saúde integravam uma rede regionalizada e outras conexões. Neste sentido, é um proces-
hierarquizada. Nos últimos anos, o debate so vivo, inclusive porque a própria conexão
tem crescido tanto no panorama brasileiro entre as redes – hipertextuais (digitais),
quanto na América Latina, onde existenciais e institucionais, que ocorrem
sem que tenhamos controle absoluto sobre
a proliferação de redes de gestão é explicada elas – não deixa de ser uma questão para as
por uma multiplicidade de fatores que atuam apostas em um território de cuidado especí-
simultaneamente, conformando uma nova rea- fico. Esse é um ponto que precisa ser levado
lidade administrativa (FLEURY; OUVERNEY, 2007, p. 9). em consideração.
Outra discussão que se soma a esta é a ideia
Além do campo da gestão no sentido mais de que os usuários são Redes Vivas de si pró-
amplo, a discussão de redes tem pautado os prios; estão o tempo inteiro produzindo mo-
campos da comunicação, da psicologia e da vimentos, elaborando saberes, construindo e
sociologia, entre outros que se interessam, partilhando cuidados. Quem pede as redes,
das mais diferentes formas, por conceituar o na maioria das vezes, são os/as usuários/as e
que vem a ser as redes e/ou as sociedades em a rede não está já dada feito um arcabouço a
redes (DELEUZE, 2002). ser preenchido de forma protocolar, pois vão
No campo das políticas de saúde pública em acontecimentos sendo tecidas.
não tem sido muito diferente. Quando o Os de fora das redes instituídas – como as

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ruas – são, nesse sentido, lugares agenciado- equilibra, chora, ri, namora, reza, trabalha –
res, produtores de redes e conexões. Nestes enfim, produz existências desconhecidas e/
cenários, marcados por códigos específicos ou não incluídas nos projetos terapêuticos
e plurais, a solidariedade, as trocas, os com- institucionais.
partilhamentos, assim como as disputas e No entanto, cabe destacar algo muito im-
desavenças, vão indicando a produção de portante: a proposta de ampliar a visibilida-
vida. São o furo no muro das designadas ‘cra- de sobre as inúmeras produções de vida do
colândias’ onde, ao contrário do pensamento usuário/cidadão com os vários encontros
preponderante, o que se descortinou foi um sociais, culturais que ele produz para fora
‘cantinho limpo e arrumado onde as pessoas do muro, que não devem e nem podem ser
namoram’, ali no buraco, conforme o relato vistos como ‘projetos terapêuticos do campo
que abre este texto. da saúde’, com a ideia que sejam uma ‘ação
Este é, para nós, um dos pontos nevrálgi- de promoção à saúde’, com objeto definido
cos dos processos de produção do cuidado e um conjunto de ações para ‘promover a
em saúde: a anulação das possibilidades de saúde’.
vidas que habitam os sujeitos e sua substitui- Como um exemplo (e apenas um, da
ção por estigmas ou produções identitárias enorme relação de produções de outras
universais, que passam a representar as exis- vidas), temos o encontro de vários usuá-
tências e as apostas terapêuticas. O melhor rios em um Centro de Atenção Psicossocial
exemplo disso é que as pessoas que vivem Álcool e Drogas (CAPSAD) infantil, com
nas ruas ou que têm nas ruas espaços de so- a produção da linguagem circense, na sua
brevivência, de trabalho, de vida, ao mesmo expressão de circo social. Apesar de alguns
tempo em que carregam essas experiências serviços de saúde terem conhecimento sobre
de vida são paradoxalmente estigmatizadas: essas ações, eles desconhecem, muitas vezes,
prostitutas, travestis, crianças em situação os trabalhos em espaços culturais artísti-
de rua, usuários de álcool e outras drogas nas cos – nesse caso, as práticas circenses – na
designadas ‘cracolândias’, enfim. E, como tal, relação de produção de vida nesses usuá-
merecem ser governadas por outros. rios. Muitas dessas experiências valorizam o
fazer da criança adolescente, independente
do ‘diagnóstico’, mesmo quando este usuário
O que têm a ver as Redes é comumente conhecido como ‘dependente
Vivas com o que estamos químico’. Vários projetos circenses acabam
por trabalhar a proposta de redução de
falando? danos, sem que por isso se transformem em
‘agentes de saúde’. Neste caso, não é a defini-
No cuidado ção de um campo e sua operacionalidade que
define as ações, mas o encontro e a forma
O convite que se faz é o de trabalhar com a como as diferenças são tomadas: prenhe de
diversidade de ofertas para dentro do ‘muro significados.
do serviço’, ofertas essas vivenciadas pelos Dentre as perguntas que fazemos nesses
usuários nas diferentes vivências de cidada- casos é: como se pode não considerar pro-
nia. Nesse sentido, a proposta é que os tra- cessos para fora do muro ao desenhar
balhadores da saúde conheçam esse usuário um ‘projeto terapêutico’ para alguém que
cidadão nas inúmeras existências que ele produz vida brincando, saltando, cantando,
produz, cruza, dialoga, tenciona, olha, se dançando? Como pode um único modo de
afeta, cheira, brinca, canta, dança, salta, pensar ‘projeto terapêutico’ ser tão definidor

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e simplificador da multiplicidade de vidas poder operar nesse encontro a construção de


que o/a usuário/a cidadão/ã produz nos seus qualquer coisa que pudéssemos chamar de
cotidianos? prática de um cuidado (MERHY, 2009, p. 26).
O que se pretende é produzir trocas, cone-
xões, dar-se a conhecer esse usuário que está A possibilidade de promover a ampliação
sendo atendido por um determinado pro- das redes existenciais tem como principal
fissional. No encontro, produzir reconheci- objetivo ampliar os recursos que cada um
mento de outros projetos que fazem parte de tem disponível para ir produzindo, isto é,
sua existência, que muitas vezes os profissio- produzir a possibilidade de lançarem mão
nais da saúde e educação desconhecem. de leques de opções, de cartas na manga, de
Esse é um problema que nos interessa. vários recursos para ampliar a capacidade
Re-conhecer, nos sinais que vêm da rua, um de cada um, em suas redes existenciais, irem
conjunto vivo de estratégias, de novas mo- reinventando as suas existências para en-
dalidades, formas de criar sentido, de pro- frentar os vários momentos da vida. A falta
dução de outras redes, de outros territórios de rede de encontros empobrece as possibi-
existenciais e, com elas produzir outras e di- lidades de mudanças. Quando você se inclui
versas redes de conexões. É preciso inventar na rede do outro, pode contribuir para novos
espaços de encontros entre os trabalhadores agenciamentos por ser um a mais destas
das instituições fechadas com os profissio- redes, e não ser a única rede que possibilita a
nais que atuam em outros espaços na rua. potência do outro,
Eles não se conhecem, o que está dentro do Os sinais que vêm da rua nos convocam
muro não sai para calçada, e os que estão fora a todo instante a um processo de desapren-
não conseguem entrar no muro. Eles traba- dizagem, do já sabido, do já instituído de
lham com as mesmas pessoas, mas não se nossas velhas práticas para poder apreender
dão a conhecer as outras redes as quais estas novas lógicas produzidas pela perspicácia do
mesmas pessoas circulam. Os profissionais viver. É preciso colocar em análise o conjun-
das ‘instituições formais’ (educação, saúde to de práticas ofertadas por nossas institui-
e assistência social) estão desconectados ções de saúde, educação, assistência social
com a multiplicidade de existências que eles entre outras. Mapear a existência e a inven-
atendem. Não conhecem como essas pessoas ção de espaços para fora do muro, nos quais
circulam nos diferentes territórios, não têm os usuários/as também percorrem em suas
a noção das existências que estas pessoas trajetórias, bem como re-conhecer os ditos
têm em outros lugares. Ao tomar e tornar informais e os sentidos que são produzidos
seus lugares institucionais como centro e neles, é uma boa forma de enxergar o quanto
alvo de suas intervenções, restringem-se a esse mundo tem elementos em aberto, não
pensar em políticas e ações tão focais, que se capturados, trabalho vivo em ato dependen-
distraem ou não conseguem ver a produção te e que se expressam como tensões e dispu-
da vida, ali onde é potente. tas pelo seu sentido.

[...] nós apostamos nessas experiências, na Criar situações individuais e coletivas de auto
conformação de trabalhadores que deveriam, interrogar o próprio sentido do fazer no mun-
primeiro, se submeter à presença do outro, do do trabalho – colocando como sua base a
ou seja, trabalhadores que deveriam se po- pergunta sobre o que faz com o trabalho vivo
sicionar no mundo do cuidado para serem em ato, para onde ele é apontado em termos
afetados. Afetados pela presença do outro ético-políticos (produz mais vida ou não)
e, através desse efeito da presença do outro, – traz também novas perguntas, como, por

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exemplo, o que se faz com o que já se sabe nos convocado a pensar sobre as referências
fazer e com o que se acha que se deve fazer que temos inventado para sustentar a defesa
sobre ou junto com os outros, com quem se de vida de qualquer um. E vocês, que sinais
encontra no mundo do trabalho.[...] Isso im- vocês trazem e recebem da rua?
plica colocar entre parênteses, parafraseando
Basaglia, o sabido a priori que há nesses cam- Nas pesquisas sobre a produção do
pos de práticas, para deixar vazar em cada cuidado
um e nos outros a nova constitutividade que
se tem ao se construir com o outro novas pos- Esse re-conhecimento tem alterado de modo
sibilidades para os modos de andar a vida, to- significativo nosso modo de construir conhe-
mando como base os processos de viver que, cimento sobre os processos de produção do
de modos perspicazes, são construídos de cuidado, refletido na construção dos estudos
maneira efetiva por cada um e por qualquer que temos realizado de modo compartilha-
um. Isso permite ser afetado por essas pers- do, com os protagonistas dos processos de
picácias e se auto interrogar, inclusive como cuidado no campo da saúde, diferentes indi-
coletivo que se é. A chance de que se venha víduos e grupos que o constitui.
a conectar novos processos de produção au- Em alguns materiais já publicados (GOMES e
topoiéticos de vida é alta, mas nunca uma ga- MERHY, org., 2014) expusemos como esse proces-
rantia e uma obrigação. O operar em alterida- so de visibilidade das Redes Vivas, no campo
de com o outro na produção do viver implica de estudo, implicou em alterações no próprio
sempre um disputar, sempre uma tensão. [...] processo de investigação e na compreensão
Agir com o outro na interseção dos encontros dos vários regimes de verdade que operam,
que ali operam, produzindo modos de viver, transversalizando-se nesse campo. Ter que
talvez seja o sentido mais interessante desses dar conta dessa situação nos levou a ter que
trabalhos. Colocar os saberes tecnológicos a ver no outro que está imerso no cotidiano do
serviço disso no interior dos atos produtivos trabalho em saúde, seja o trabalhador, seja
talvez seja a grande apreensão possível para o usuário, um elemento central na constru-
quem procurar desaprender os modos predo- ção dos vários conhecimentos constituídos,
minantes desses campos de práticas, se reali- de modo a dar conta das multiplicidades
zarem, hoje, quando a vida virou um objeto de que operam na constituição dessas Redes
manejo e não uma conexão autopoiética no Vivas, território das conexões existenciais.
mundo, como produção coletiva (MERHY, 2009, Vimos falando disso todo esse material, mas
p.36). agora vale tirarmos certas necessidades que
isso impõe para o desenho dos processos
Essa é a nossa aposta e o nosso convite: investigativos.
re-conhecer a rua em todos e as suas tensões Nessa direção, tivemos que fazer uma
constitutivas, os espaços do entre. Entre as inversão no campo de estudo. Deixamos
capturas e as linhas de fuga, entre a produção nos guiar pelas trajetórias, pelos caminha-
de morte e vida, experiências de resistência, res dos indivíduos nas produções de si, na
experiências que abrem passagem para a micropolítica dos encontros que compõe a
produção de outras formas de andar a vida, sua existência, e ir identificando os lugares
capazes de trazer para a cena um conjunto de territorialização e expressividade nos
de forças vitais antes impensadas e, jamais distintos campos de práticas que vão se ins-
localizadas em um único domínio do tituindo nesse caminhar. Importância que
conhecimento. Estes são alguns dos sinais coloca a produção da narratividade desses
que a rua tem nos sinalizado e, a partir deles, processos de encontros, por parte dos que

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Redes Vivas: multiplicidades girando as existências, sinais da rua. Implicações para a produção do cuidado e a produção do conhecimento em saúde 161

aí estão, como eixo nuclear de organização das Redes Vivas. Existem Redes Vivas que
do campo de estudo, partindo da capacida- em outros lugares são operadas a partir dos
de que o usuário como guia pode nos levar desesperos das pessoas, ou seja, não há um
pelo seu nomadismo, fazendo-nos perceber entrelaçamento de fazer viver a Rede Viva
junto com ele os vários planos de conexões entre o que é ofertado e o que é pedido. No
que opera e se produz, na sua experiência da Município, essa tensão mais positiva produz
produção de si (FOUCAULT, 2010). encontros entre o que é pedido desespera-
Nisso, também nos ‘in-mundizamos’, damente e aquilo que é ofertado a partir de
nos tornamos pesquisadores ‘in-mundo’ grandes conexões. [...]
(ABRAHÃO, 2014), abrimo-nos as nossas próprias
narratividades disparadas pelas afecções que
o campo de estudo agencia em nós. Os vários [foi] observado pelo grupo que essa Rede
regimes de verdade agem, nesses vários Viva que emerge dos territórios não é algo
planos de produção do existir, ali no mundo agressivo, violento. É um movimento aberto
do cuidado, guiado pelo indivíduo-usuário, à conversação e escuta, ainda que com certa
com sua Rede Viva instituinte, que vai em tensão e dificuldade. [...]
certos movimentos se organizando como um
certo território específico, identitário, para
logo ser vazado, como um furo no muro, a [no que se refere à pesquisa] foi pensar como
cada encontro que o afeta. organizar os pesquisadores e trabalhadores do
Esse percurso investigativo tem se município nas frentes de trabalho (as várias re-
traduzido em várias estratégias de estudo que des de cuidado que vão sendo disparadas por
temos participado e a melhor forma de trazê- esse encontro com as Redes Vivas). [...]
lo para esse artigo é ver o que construímos,
em 2013, na pesquisa ‘A produção do cuidado
em diferentes modalidades de Redes de A questão que apareceu foi como fazer a
Saúde, do Sistema Único de Saúde. Avalia combinação entre territórios e redes. Essas
quem pede, quem faz e quem usa’, realizada redes apareceram nos territórios e de manei-
junto ao Ministério da Saúde. ra entrelaçada, ou seja, um caso começa em
No relatório final, tivemos que construir uma rede, mas caminha pelas demais. [...]
alguns elementos metodológicos que pudes-
sem fabricar a investigação em foco. Após
uma oficina do coletivo de pesquisa que tinha Nas descrições dos territórios, ficou claro
ido aos vários territórios de saúde, em um mu- que já foi possível localizar Redes Vivas nas
nicípio, conversar sobre o mundo do trabalho (várias) redes contempladas pela pesquisa,
dos trabalhadores daquelas áreas, dizíamos: inclusive forte conexão entre elas. A partir
dessa prospecção inicial, a proposta é que a
Esta reunião entre os pesquisadores foi pau- pesquisa parta dessas Redes Vivas, e não dos
tada pela apresentação das percepções de territórios. Por exemplo, a partir da análise
cada equipe a partir da participação nas dos casos, conclui-se que as Redes Vivas da
reuniões de território [...] e pela discussão saúde mental que aparecem nos territórios 1
conjunta desta experiência com o objetivo e 5 são bons casos para disparar a pesquisa
de problematizar e sistematizar os próximos nesta rede (penetrando pelas outras).
passos [...]

[...]
[um] ponto fortemente debatido foi o tema

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A conexão entre redes a partir de um mesmo Inicialmente ela foi colocado em um lugar
caso, como mencionado anteriormente, apa- concreto, mas na verdade vai aparecer em to-
receu em diversos territórios. Uma rede é a das as redes (considerando que todos gover-
disparadora, mas o usuário é acompanhado nam no mundo do trabalho)
por outros serviços devido às características
do problema. Neste sentido, é um processo
vivo, inclusive porque a conexão entre as re- Outro tema que chamou a atenção nas reuni-
des é um ponto que o município (em foco) ões de território foi a tensão entre a produção
aposta que aconteça. Isso deve ser conside- da Rede Viva e a resistência da regra geral. Isso
rado na pesquisa, que esta divisão por redes aparece no ruído da Rede Viva e, sendo assim,
não é algo natural no município, ou seja, sis- não deve ser o problema analisador, e sim apa-
tematicamente uma rede se cruzará com a recer na própria construção da Rede Viva.
outra. Apesar disso, existe um caso índice, ou
seja, o eixo da pesquisa não é a conexão entre
as redes. O eixo é o caso que produz as cone- Essas Redes Vivas são construídas nos ter-
xões. A Rede Viva em produção. ritórios pela singularidade dos casos. Isso
significa que algumas redes vão servir para
determinada singularidade de cuidado, e não
Outra questão levantada foi qual seria a ex- para outras. Entre o circunstancial do singular
pectativa de produto nesse momento, [...]. e a acumulação do instituído tem movimento.
Seria a própria definição dos casos-guia? Esse movimento é o interessante de acompa-
nhar (RELATÓRIO, 2013).

[...] foi definido que nos próximos encontros Toda essa produção de conhecimento que
no município a equipe deve começar a cons- nos atinge e que fomos ‘obrigados’ a cons-
truir o mapa das fontes e a trabalhar algumas truir pelas afecções que o campo agenciava
questões. É importante que todos tenham em nós, trouxe implicações para o desenho
clareza deste itinerário para o momento de se do estudo ali no território, junto com os tra-
encontrar com as [...] frentes. balhadores desse município, que são em si,
também, Redes Vivas.

Para tanto, também é relevante entender (a Os casos, neste caminho, vão definir os
noção) de Rede Viva. As Redes Vivas têm territórios e as pessoas que vão participar,
certas características interessantes de pontu- levando em consideração que alguns estão
ar. Quando o MS fala de rede, ele tem a ideia mais envolvidos que outros. Os usuários-
de uma rede inteira, sólida, como se fosse um guia vão transitar por distintas redes, ainda
controle de governabilidade extenso. Quando que partam de uma rede disparadora, e isso
na verdade, as Redes Vivas são fragmentárias vai gerar também entre os trabalhadores os
e em acontecimento, [...] pesquisadores-guia.

Isso são questões chaves para resolver, para É importante mostrar a fluidez e os papéis to-
ao menos criar parâmetros da objetivida- talmente diferentes que existe no município e
de necessária neste momento da pesquisa. que, em outro município, o arranjo dos atores
Tratando de transversalidade, por exem- e o protagonismo serão totalmente diferen-
plo, é interessante observar e situar o tema tes. Em cada lugar, o ordenador será um ator
da regulação atuando nas diferentes redes. distinto.

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Redes Vivas: multiplicidades girando as existências, sinais da rua. Implicações para a produção do cuidado e a produção do conhecimento em saúde 163

Nesse sentido, foi colocado como importante real e em um município real.


o grupo conhecer outros espaços diferencia- 3. Estes engates vão gerar singularidades,
dos do município e que são produzidos na me- e vale ressaltar que esta já é a pesquisa, ou
dida em que foram aparecendo. É uma agenda seja, as singularidades e as conexões de cada
paralela que vale a pena explorar, porque são equipe já são a pesquisa em si.
espaços que têm um papel na montagem e na Para trabalhar os referenciais, a partir dos
ativação de todo esse arranjo que a pesquisa textos anteriores, compreendendo a produ-
está conhecendo. Inclusive, esse contato aju- ção do cuidado em saúde como um aconte-
dará a ampliar a interrogação sobre os dispo- cimento micropolítico, na construção efetiva
sitivos de gestão para produzir coisas. das Redes Vivas de existências, devemos
nos debruçar de modo mais atento no tema
das redes analógicas e hipertextuais-rizo-
Explorando a ideia que já foi trabalhada, exis- máticos, e o modo de ‘palpá-las’ no contex-
tem casos que aparecem em um território e to da centralidade da disputa pelo cuidado
que são mobilizados a partir de diferentes entre os vários que o produzem, ocupando
olhares (UPA, AB, Saúde Mental, etc.). O as cenas do cuidado no cotidiano e tirando
apoiador-guia, por sua vez, faz aparecer ou- consequências para se pensar o trabalho das
tras questões, bem como a partir dos traba- equipes nas redes de cuidado, em geral, ex-
lhadores aparecem outro tipo de desconfor- plorando modos de acessar e visibilizar essa
tos. Os apoiadores são catadores de casos produção, através da construção conjunta
complicados e ajudam a processá-los. Mas é de pesquisadores e trabalhadores, tomando
imperdível ouvir o que os trabalhadores en- o usuário como guia desse processo, no seu
tendem como casos que incomodam, porque modo de fabricar sua Rede Viva de existên-
não é o mesmo olhar. Isso nos leva a ter apoia- cia, para muito além dos itinerários tera-
dor-guia e trabalhador-guia para encontrar os pêuticos e projetos terapêuticos, das nossas
casos (RELATÓRIO, 2013). ofertas instituídas.
Há de modo evidente um campo de
Nesse caminhar, procuramos como ele- disputa que posiciona as muitas éticas que
mentos de síntese para o tipo de estudo atravessam essa produção no ato do seu
que estávamos realizando, o seguinte: acontecer como, por exemplo: uma ética cen-
Experimentação – Pesquisa Interferência: o trada na lógica das profissões, uma na lógica
método é o encontro: burocrática organizacional, outra na ética
1. Algumas questões para se considerar no marcada pelo campo do mercado da saúde
experimento, foram: se as ferramentas são e, pelo menos outra, muito nuclear, que é a
adequadas, se essas ferramentas têm sensi- ética da produção da vida em si, com a qual
bilidade suficiente para conseguir o que se ‘usuários’ marcam a fabricação do cuidado
quer, se a caixa de ferramentas é suficiente em saúde com o seu território de existência
ou é necessário agregar outras. rizomático.
2. A possibilidade de iniciar essa constru- O reconhecimento dessa disputa é estru-
ção conjunta envolvendo os pesquisadores e turante no processo de desenhar a investi-
os trabalhadores na prática, parte do enten- gação e a produção de conhecimento sobre
dimento do grupo de que é mais interessante o cuidado enquanto um campo de práticas,
fazer esse desenho metodológico em ato, ou ali nos processos produtivos do mundo do
seja, a partir de um processo de negociação trabalho. s

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Referências

ABRAHÃO, A. L. et al. O pesquisador IN-MUNDO e o LANCETTI, A. Clínica Peripatética. São Paulo: Hucitec,
processo de produção de outras formas de investigação 2006.
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artigo original | original article 165

Contribuição para a análise da implantação


de Redes de Atenção à Saúde no SUS
Contribution for the analysis of the implementation of Health Care
Networks in SUS

Silvio Fernandes da Silva1

RESUMO Este artigo analisou a implantação das Redes de Atenção à Saúde (RAS) com ênfase
nas regiões de saúde, ressaltando a importância de atores locais com adequado perfil de
competência e implicados com a implementação. Como subsídio empírico, observamos o
desenvolvimento de projetos de intervenção de gestores e técnicos participantes de cursos de
especialização, desenvolvidos em parceria com o SUS, pelo IEP/HSL. Os achados mostraram
que a proeminência do tema RAS na agenda do SUS favorece o delineamento de uma
imagem objetivo (aonde se quer chegar) no processo de planejamento regional; e a qualidade
da intervenção depende de compreensão mais aprofundada do contexto: a identificação
detalhada das causas dos problemas, da dinâmica e da estrutura de poder das organizações e
dos determinantes do comportamento dos usuários são aspectos relevantes.

PALAVRAS-CHAVE Redes de Atenção à Saúde; Avaliação em saúde; Sistema Único de Saúde;


Planejamento em saúde.

ABSTRACT This article analyzed the implementation of RAS (Health Care Networks), with
emphasis on health regions, stressing the importance of having local players with an adequate
competence profile and involved in the implementation. As an empirical subsidy, we observed the
development of intervention projects by managers and technicians participants of Specialization
Courses developed in partnership with SUS (Unified Health System) through the IEP/HSL.
Results showed that the importance of the RAS theme for the SUS agenda favors the design of
an objective image (a goal) for the regional planning process; and the quality of the intervention
depends on the deeper understanding of the context: identification of the causes of the problems,
the dynamics and structure of the organizations’ power and the determining of users’ behavior.

KEYWORDS Health Care Networks; Health evaluation; Unified Health System; Health planning.

1 Doutor em saúde pública


pela Universidade de São
Paulo (USP)– São Paulo
(SP), Brasil. Professor e
pesquisador do Instituto
Sirio Libanês de Ensino
e Pesquisa (IEP/HSL)
e assessor técnico do
Conselho Nacional de
Secretarias Municipais de
Saúde (Conasems), Brasil.
fernandessilvio90@gmail.com

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166 SILVA, S. F.

Introdução o clássico relatório Dawson, de 1920 (DAWSON,


1964), que propõe a integração de serviços em
O debate sobre a importância da organização espaços territoriais definidos, na Inglaterra,
de Redes de Atenção à Saúde (RAS) no SUS e, mais recentemente, a partir da década de
se intensificou após a publicação do Pacto 1990, as propostas de integração em saúde,
pela Saúde (BRASIL, 2006), em 2006, e da porta- nos Estados Unidos, em diversos países
ria 4.279, em dezembro de 2010. Essa porta- europeus e no Canadá (MENDES, 2009).
ria define RAS como No SUS, esse debate também não é recente.
A diretriz de integração entre serviços está
arranjos organizativos de ações e serviços de presente desde a sua criação, mas esse pro-
saúde, de diferentes densidades tecnológicas, pósito ficou parcialmente obscurecido pelas
que, integradas por meio de sistemas de apoio características do processo de descentraliza-
técnico, logístico e de gestão, buscam garantir ção da saúde, que foi um importante indutor
a integralidade do cuidado (BRASIL, 2010), da ampliação dos sistemas municipais de
saúde e da qualificação do cuidado à saúde, e
atribuindo-lhe o seguinte objetivo: pouco contribuiu, no entanto, para a integra-
ção dos processos assistenciais em regiões
O objetivo da RAS é promover a integração que agregam vários municípios (SILVA, 2011).
sistêmica, de ações e serviços de saúde com Com a publicação da Norma Operacional
provisão de atenção contínua, integral, de da Assistência (BRASIL, 2001), em 2001, a
qualidade, responsável e humanizada, bem regionalização, associada à integração
como incrementar o desempenho do Sistema, de serviços, assume maior destaque na
em termos de acesso, equidade, eficácia clíni- agenda do SUS; a integração desejada
ca e sanitária; e eficiência econômica (BRASIL, não se efetiva em virtude da rigidez das
2010). pactuações propostas para as articulações
intermunicipais e das dificuldades para
A Secretaria de Atenção à Saúde (SAS), do consolidar uma governança regional (SILVA;
Ministério da Saúde, propôs, em 2011, a im- DOBASHI, 2007; FLEURY; OUVERNEY, 2007).
plantação de cinco redes temáticas: (1) Rede O Pacto pela Saúde (BRASIL, 2006), em 2006,
Cegonha; (2) Rede de Atenção às Urgências propõe formas menos rígidas de arranjos
e Emergências (RUE); (3) Rede de Atenção regionais, visando à organização de redes, e
Psicossocial (RAPS); (4) Rede de Cuidado amplia o debate entre os gestores públicos –
à Pessoa com Deficiência; e (5) Rede de Ministério da Saúde, Conselho Nacional de
Atenção à Saúde das Pessoas com Doenças Secretários de Saúde (Conass) e Conselho
Crônicas (BRASIL, 2014). Paralelamente, desen- Nacional de Secretarias Municipais de Saúde
volvem-se iniciativas complementares de or- (Conasems). Isso contribui para a elabora-
ganização de redes nos estados, geralmente ção da portaria 4.279, supracitada. Segue-
debatidas e pactuadas nos respectivos fóruns se à mesma a publicação do Decreto 7.508
bipartites. (BRASIL, 2011b), em junho de 2011, que regula-
A implantação de redes decorre de menta a Lei 8.080, de 1990, e cria o Contrato
constatação de que a segmentação dos Organizativo de Ação Pública (Coap).
componentes de um sistema de saúde e A organização dos serviços de regiões de
a fragmentação do processo de cuidado saúde em redes regionalizadas e integradas
constituem fatores de ineficiência e pressupõe que se estabeleçam relações
baixa qualidade na atenção aos usuários. horizontalizadas entre os mesmos, em
Iniciativas de integração de serviços em contraposição às clássicas formas piramidais
redes não são recentes. São bem conhecidos que situam os serviços de Atenção Básica na

DIVULGAÇÃO EM Saúde PARA Debate | rio de Janeiro, n. 52, p. 165-176, out 2014
Contribuição para a análise da implantação de Redes de Atenção à Saúde no SUS 167

base da pirâmide e os de maior densidade As estratégias devem estar articuladas e se


tecnológica, tais como hospitais mais complementar para a operacionalização dos
complexos, na ponta. Os componentes objetivos propostos. Nosso foco de análise,
principais das RAS são: (1) o binômio neste estudo, está direcionado para o con-
território/população, constituído do espaço texto regional.
territorial regional, geralmente dividido
em territórios menores, correspondentes à
abrangência de unidades básicas e equipes Trajetória metodológica
de saúde, e a população residente, com suas
necessidades e demandas assistenciais; (2) A participação do autor em cursos de espe-
os serviços de saúde existentes, devidamente cialização do SUS para gestores e técnicos de
caracterizados quanto a capacidades regiões, de 2009 a 2014, foi utilizada como
instaladas, funções e objetivos; (3) a logística subsídio empírico para o estudo. Os cursos,
que orienta e controla o acesso e o fluxo, realizados pelo Instituto de Ensino e Pesquisa
preferencialmente, com instrumentos que do Hospital Sírio-Libanês (IEP/HL), de São
identifiquem o usuário e o histórico de Paulo, em parceria com o SUS, através do
sua inserção nos serviços de saúde; e (4) o Ministério da Saúde, Conass e Conasems,
sistema de governança da rede regional (OPS, foram os seguintes: (1) Especialização em
2010; MENDES, 2009; SILVA, 2011, 2013). Gestão da Clínica nas Redes de Atenção à
O papel da Atenção Básica (AB) – deno- Saúde (2009-2010); (2) Especialização em
minada de APS na maioria dos países – é Gestão da Clínica nos Hospitais do SUS
considerado essencial e estratégico na orga- (2009-2010); (3) Especialização em Gestão
nização das RAS. À AB é atribuído o papel da Saúde da Secretaria Estadual de Saúde
de coordenadora do cuidado integral e de (SES)/São Paulo (em parceria com a SES/
ordenadora do acesso aos demais pontos SP; 2010); (4) Especialização em Gestão da
de atenção da rede. Para que o exerça, deve Clínica nas Redes Metropolitanas de Atenção
dispor de profissionais de saúde adequada- à Saúde (2011); (5) Gestão da Clínica no
mente capacitados, ter como escopo a rea- Sistema Único de Saúde: especialização em
lização de ações abrangentes, que incluam regulação em saúde no SUS, 1a edição (2012)
os campos de prevenção, cura e reabilitação, e 2a edição (2013); (6) Gestão de Hospitais
de forma matricialmente articulada com os Universitários Federais no SUS (2013-2014)
especialistas, e mecanismos que possibilitem (IEP/HSL, 2009a, 2009b; 2010, 2011, 2012; SILVA et al., 2013;
o gerenciamento dos demais níveis e pontos PADILHA et al., 2013).
da rede (CONILL; FAUSTO; GIOVANELLA, 2010; STARFIELD, Mais de 1.000 alunos, de 115 regiões –
2002; GIOVANELLA, 2006). cujas delimitações eram as mesmas dos
Este artigo se propõe a contribuir para planos diretores de regionalização –, partici-
a análise da implantação das Redes de param dos projetos educacionais. A proposta
Atenção à Saúde no SUS. Entendemos que de articulação de redes assistenciais consta-
a implementação depende de estratégias va dos objetivos dos cursos, e o desenvolvi-
em um nível macro – que trata a proposição mento do perfil de competência enfatizava,
de grandes metas nacionais e de estratégias entre outros aspectos, a organização de RAS.
de financiamento, tal como acontece, por Utilizaram-se metodologias ativas de
exemplo, na proposta das redes temáticas ensino-aprendizagem, e cada grupo (de dez
prioritárias criadas pela SAS – e também participantes), que se formava por afinidade
em níveis periféricos dos sistemas de saúde, no processo de trabalho, assumia o compro-
que abrangem as regiões e os serviços locais. misso de elaborar projetos de intervenção na

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168 SILVA, S. F.

região (denominados projetos aplicativos), de diretrizes e práticas de planejamento)


no escopo dos seus respectivos cursos. para atingir os objetivos da mesma; as ‘orga-
Em sua participação, o autor foi com- nizações de saúde’ das regiões precisam se
ponente da equipe de autoria dos projetos, adequar, ou seja, sofrer ajustes e mudanças,
facilitador – nessa função, interagia dire- impactadas pelo método, para que a política
tamente com os alunos – ou coordenador/ se concretize. O triângulo constituído por
gestor, cabendo-lhe, nesse caso, contribuir política, método e organização, como propõe
para a formação dos facilitadores. Mário Testa, visa a identificar a reação das
As reflexões deste artigo não são produto organizações (suas estruturas e processos de
de pesquisas estruturadas sobre esses proje- trabalho) às intenções governamentais.
tos educacionais – pesquisas essas que, por
sinal, estão sendo desenvolvidas por grupos
de pesquisadores em linhas de pesquisa do Análise
IEP/HSL. Do ponto de vista metodológico,
foram oriundas de uma observação partici- Os cursos têm como objetivo construir um
pante, não estruturada, não sistematizada, perfil de competência que capacite os alunos
de situações vivenciadas com os alunos, fa- a ampliar sua compreensão da realidade,
cilitadores e especialistas convidados para intervir na mesma e a se desenvolverem em
temas específicos. Essas situações foram de dois eixos: no primeiro, são utilizados dispa-
orientação de projetos aplicativos, facilita- radores educacionais relacionados a cená-
ção de atividades educacionais, com uso de rios fictícios ou narrativas da vivência dos
metodologias de aprendizagem baseadas em participantes. A articulação entre a aborda-
problemas (APB), coordenação de plenárias gem construtivista, a metodologia científica
com especialistas, oficinas de trabalho e ela- e a aprendizagem baseada em problemas se
boração de termos de referência de oficinas orienta por uma espiral construtivista, com
de planejamento estratégico. os participantes identificando problemas,
Partimos do pressuposto que os alunos, formulando explicações, elaborando ques-
ao assumirem o compromisso educacional tões, buscando novas informações, cons-
de elaborar projetos de mudança nas regiões truindo novos significados e avaliando o
em que atuam profissionalmente, passam a processo.
ter algum grau de implicação com esse pro- No segundo eixo, agrupados por afini-
pósito; serão denominados, neste artigo, de dade de atuação profissional, a agenda é a
‘atores implicados’ com mudanças, ressal- construção de projetos aplicativos. Esses
tando que uma das diretrizes da implicação têm o seguinte processo em sua construção:
é contribuir para a implementação das RAS (1) análise do contexto; (2) identificação de
na região. necessidades e problemas; e (3) elaboração
Na análise dos registros e das percepções de uma proposta de intervenção. A análise
do autor sobre os desafios enfrentados pelos de viabilidade é transversal a essas etapas;
atores implicados, procurou-se identificar disponibilizam-se ferramentas e dispositi-
correlações entre a intenção da política es- vos de planejamento estratégico, em oficinas
truturante e sua implementação nas regiões de trabalho, como subsídio instrumental.
de saúde, sob orientação do postulado de co- Os desempenhos esperados, sinteticamen-
erência de Testa (1992), a partir da seguinte te, visam a propiciar: (1) leitura adequada do
inferência: a ‘política’ de RAS corresponde à contexto; (2) delineamento de uma imagem
intenção dos governantes; essa política está objetivo (situação desejada); e (3) condições
associada a um ‘método’ (ou seja, proposição para elaborar projetos de intervenção viáveis

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Contribuição para a análise da implantação de Redes de Atenção à Saúde no SUS 169

e factíveis, com incorporação de ferramen- de acessibilidade, entre outras. Com o evoluir


tas, dispositivos e estratégias pertinentes. As do processo de aprendizagem, podem surgir
oficinas de planejamento estratégico podem outros aspectos, mas, diferentemente do que
ser de análise situacional, matriz swot, ocorre com a imagem objetivo, os caminhos
árvore explicativa de problemas, análise de para o delineamento do contexto não são tão
cenários e atores, construção de planos de confluentes.
ação, análise de viabilidade, entre outras. Suponho que os grupos tenham diferentes
graus de compreensão, desde bastante su-
perficiais e simplificados até, no polo oposto,
A confluência de uma e em decorrência de incorporarem conheci-
imagem objetivo das RAS mentos mais aprofundados, uma visão mais
abrangente da complexa realidade da saúde
Em minhas observações, constatei que os regional. Os que conseguem aprofundar a
grupos têm uma tendência de avançar rapida- compreensão adquirem, consequentemente,
mente no delineamento das RAS desejadas. melhores condições para elaborar projetos
Já existe, ou é mais facilmente desenvolvido, mais condizentes e potentes para intervir no
o domínio cognitivo de modelagem de redes, sistema de saúde regional.
de justificativa para sua implantação pela A análise de contexto tem o mesmo sig-
importância e pelo benefício das mesmas nificado do que Matus denomina ‘análise
para os usuários e para a organização do situacional’, componente do momento
sistema de saúde; reconhece-se a eficiência explicativo do Planejamento Estratégico
econômica das RAS e sua pertinência, consi- Situacional (1996). Essa caracterização tem
derando o perfil epidemiológico/nosológico influência ideológica do ator que a formula, e
contemporâneo e a carga de doenças. ressalte-se que, neste artigo, estamos partin-
Chamou atenção esse fato. Imagino que do do pressuposto de que existe uma iden-
o mesmo deva ocorrer nos colegiados da tidade ideológica do grupo, daí decorrendo
região, tanto no Colegiado Intergestores sua denominação de ‘atores implicados com
Regional (CIR) e nos seus grupos de apoio a implantação no SUS’. Há, também, a meu
técnico quanto em outros fóruns, que ver, influência importante de fatores cogni-
também reúnem atores potencialmente im- tivos, os quais também influenciam, conse-
plicados com a organização da gestão e a quentemente, a capacidade de intervenção
atenção regional. A visualização ‘do que se desses atores.
quer’ ou de ‘aonde se quer chegar’ com as Em minhas observações, a compre-
intervenções é mais suscetível de consen- ensão do contexto tem alguns aspectos
sos, possivelmente porque esse referencial especialmente relevantes que, ao serem con-
tem se disseminado nas arenas do SUS nos siderados, aumentam, cumulativamente, o
últimos anos. potencial de sucesso da implementação das
RAS, e serão destacados a seguir. Conceitual,
estratégica e operacionalmente, a posição do
A não confluência na Brasil coincide com o processo de renovação
análise do contexto regional da APS, lançado pela Opas/OMS, e com a
proposta das RISS e seus atributos, aprova-
Com relação à análise de contexto, as pri- dos pelos corpos diretores da Organização.
meiras caracterizações costumam focar em A cooperação histórica da Opas/OMS com o
informações estruturadas sobre capacidade Brasil para o fortalecimento do SUS e, mais
instalada, oferta e produção de serviços, de- recentemente, para o desenvolvimento do
mandas assistenciais reprimidas e condições Programa Mais Médicos (PMM) responde

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170 SILVA, S. F.

aos valores, princípios e conteúdos compar- não se concretizaram, pois foi desconsidera-
tilhados pela Organização e pelo Brasil. da a complexidade da micropolítica dessas
organizações.
Tal exemplo nos lembra da importância
As unidades assistenciais e da coerência entre as macropolíticas
suas estruturas de poder estruturantes e as organizações às quais se
destinam, conforme o postulado de Testa.
Santos e Andrade (2013) consideram que o Quando os nós críticos organizacionais
que caracteriza uma rede é a relação que se não são impactados pela política/método,
estabelece entre os seus componentes, que conclui-se que, por si só, por mais bem
passam a partilhar interesses e objetivos elaborados que estejam, as grandes diretrizes
comuns, mesmo tendo, isoladamente, um são insuficientes para a transformação
razoável grau de autonomia. Reconhecem desejada; esta é uma das constatações deste
suas interdependências e, preterindo estra- estudo: estratégias voltadas para as regiões
tégias que levam a comportamentos organi- que deem complementaridade às políticas
zacionais e institucionais individualizados, estruturantes, com impacto nas organizações
optam por adequar o seu papel aos objetivos de saúde e nas redes de relações em que
da rede. Entendendo que, dessa forma, todos estão envolvidas, devem ser reconhecidas
ganham. Caso contrário, não são uma rede, e, como indispensáveis para a política de
sim, um ajuntamento de serviços. implantação das RAS.
Quem seriam os componentes das RAS?
Mesmo que, a princípio, possam parecer,
esses componentes não são exatamente as or- Os problemas assistenciais
ganizações de saúde – unidades básicas, am-
bulatórios, hospitais, serviços de diagnose, Nos projetos educacionais, evidenciou-se a
transporte em saúde. Organizações de saúde importância de ampliar a compreensão dos
dificilmente formam redes. Nesses serviços, problemas assistenciais. Quando os atores
muitas vezes denominados de pontos de implicados os analisam superficialmente ou
atenção ou nós das redes, coexistem interes- equivocadamente, as intervenções, habitual-
ses distintos e, às vezes, contraditórios, que mente, são frágeis e pouco efetivas.
dificultam a construção de uma governança Para exemplificar, comento sobre um pro-
única. É entre atores e nos espaços nos quais blema prevalente no contexto das regiões:
concentram poder que podem se estabelecer a superlotação de serviços hospitalares de
relações em redes mais consistentes. emergência. A face mais visível desse pro-
Outro aspecto a ser considerado é a blema é o excesso de pacientes nos leitos
reação das organizações às políticas gover- do pronto-socorro, a ocupação de macas e,
namentais que visam a integrá-las para um muitas vezes, inclusive, a acomodação im-
trabalho em rede. Quando desconsideram provisada no piso dos corredores. Identificar
suas estruturas de poder e os interesses dis- as causas dessa situação, o que as determina e
tintos que albergam, dificilmente os objeti- os aspectos críticos passíveis de intervenção
vos são atingidos. Exemplo ilustrativo é o da é fundamental para a solução do problema.
política de contratualização com os hospitais Em minha observação dos trabalhos dos
de ensino, que propõe mudanças na gestão grupos, percebi que a tendência predomi-
hospitalar, na produção do cuidado e na in- nante, inicialmente, é a de considerar os
tegração com a rede SUS (BRASIL, 2004). Chioro aspectos mais estruturados, tais como a ca-
dos Reis (2011), analisando o impacto da polí- pacidade instalada existente, a falta de leitos
tica, conclui que as expectativas de mudança de apoio à emergência, a não disponibilidade

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Contribuição para a análise da implantação de Redes de Atenção à Saúde no SUS 171

de leitos nas enfermarias e na terapia inten- exemplo, relacionados a indicadores de mor-


siva ou o potencial de realização de cirurgias bimortalidade desfavoráveis, igualmente,
no centro cirúrgico. Apesar desses aspectos desvendar as reais causas e seus significados
serem importantes, indo mais a fundo, des- nas árvores explicativas é um processo que
vendam-se outros, mais ligados à dinâmica fortalece a compreensão do contexto e quali-
de funcionamento e ao processo de trabalho fica ações de intervenção. Os que envolvem o
da organização hospitalar. usuário, por suas características singulares,
Como diria Riobaldo, do clássico Grande serão tratados no tópico seguinte.
Sertão Veredas, de Guimarães Rosa, “o diabo
mora nos detalhes”. Uma análise mais minu-
ciosa pode mostrar causas como: (1) pacientes Os usuários
com traumas aguardando vários dias por ci-
rurgia em leitos de observação, por problemas Uma primeira percepção, superficial ou
organizacionais internos; (2) leitos vagos de en- equivocada, sobre o comportamento dos
fermaria que poderiam reduzir a superlotação usuários às vezes acontece. É-lhes atribuída
e que não são liberados por serem exclusivos responsabilidade por alguns problemas do
de algumas clínicas; (3) pacientes aguardando sistema de saúde na região, culpabilizando-
procedimentos terapêuticos ou diagnósticos os indiretamente com argumentos de não
que são realizados apenas em determinados saberem utilizar adequadamente os serviços
dias da semana, elevando os tempos de perma- ou não aderirem a ações preventivas ou
nência; (4) pacientes em condições de serem de promoção da saúde. Expressões como
transferidos para enfermarias e unidades de ‘muitos usuários vão aos serviços de
suporte que não o são por letargia do processo emergência desnecessariamente e precisam
decisório, entre outros. ser orientados a ir para as Unidades Básicas
Os grupos que identificam essas últimas de Saúde’ ou ‘é necessário educar os
causas passam a pensar em outras estra- usuários para que controlem sua pressão
tégias de intervenção, anteriormente não e mudem seu estilo de vida’ revelam uma
consideradas. Mesmo que esses nós críticos racionalidade técnica que não dialoga
sejam difíceis de ser resolvidos, o fato de com as razões do comportamento dos
serem reconhecidos como causas impor- usuários. A compreensão limitada pode
tantes, expandem e qualificam os objetos de levar a intervenções que visam a submeter
intervenção. Os grupos passam a orientar os e enquadrar seus comportamentos à rede
projetos a partir de novos fundamentos teó- idealizada, mesmo quando isso não se
rico-práticos de pesquisa e ação. Amplia-se sustenta na realidade.
a taxonomia cognitiva tanto para compreen- Os usuários geralmente procuram as
der o contexto quanto para a aplicabilidade unidades de saúde ou desenvolvem seu au-
dos conhecimentos adquiridos. Passam a tocuidado a partir de sistemas explicativos
fazer mais sentido leituras sobre Educação próprios e da representação que fazem dos
Permanente em saúde, linhas de cuidado, es- serviços assistenciais. É de se esperar, por
tratégias de negociação cooperativa e confli- exemplo, que resistam a ir a uma UBS que
tiva, análise institucional, micropolíticas em não se legitimou como uma unidade resolu-
saúde, entre outras. tiva, preferindo o pronto-socorro em muitas
Os hospitais são organizações complexas, situações simples, mesmo que tenham que
mas, mesmo em serviços menos complexos – esperar mais.
unidades básicas, ambulatórios, serviços de É necessário desvendar melhor o que
apoio –, situações similares podem ocorrer. influencia o comportamento dos usuários.
Com relação a demais problemas, por Cecílio et al. (2012), analisando o papel da

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172 SILVA, S. F.

Atenção Básica nas redes temáticas de saúde, procedimentos e distanciado das necessida-
a partir de narrativas de usuários, identifi- des dos usuários. A baixa disponibilidade de
caram três categorias: uma parte considera profissionais capacitados para atuar na AB,
que as Unidades Básicas de Saúde (UBS) em especial, de médicos especializados em
têm produzido valores de uso e se legitimam saúde da família e comunidade, é uma das
como posto avançado do SUS; outra acha que principais causas da baixa resolutividade.
a rede básica é um lugar de coisas simples; Esse aspecto, em particular, é revelador da
e a terceira categoria, mesmo reconhecendo contradição histórica entre a intenção go-
que a AB deveria coordenar o cuidado da vernamental de consolidar a AB como coor-
rede, compartilha um sentimento de impo- denadora do cuidado integral e ordenadora
tência com as equipes de saúde pelo fato de da rede e o processo de formação médica no
que as UBS não reúnem condições materiais País.
e simbólicas para exercer esse papel. Uma adequada leitura do contexto
A ampliação da fronteira de conheci- também é necessária para analisar as ‘opor-
mento sobre o comportamento dos usu- tunidades’ que o mesmo oferece e as me-
ários representa, para os grupos, saltos lhores formas de aproveitá-lo. Por exemplo,
paradigmáticos. Certamente, cria condição a lei que institui o Programa Mais Médicos
mais favorável para intervenções qualifica- (BRASIL, 2013) visa a reduzir os efeitos da contra-
das nesses cenários. dição referida; e outras políticas, tal como o
Programa Nacional de Melhoria do Acesso e
da Qualidade (PMAQ) (BRASIL, 2011a), têm como
A Atenção Básica como um de seus principais objetivos induzir a
coordenadora do cuidado e ampliação do acesso e melhoria da qualidade
da AB no SUS.
ordenadora da rede Quando aprofundam seus conhecimen-
tos, os grupos fortalecem-se como atores
Além do aspecto abordado no tópico ante- políticos e qualificam-se como planejadores
rior, devem-se considerar outros, que expli- estratégicos; identificam mais facilmente as
cam a dificuldade da AB em exercer o seu dificuldades do contexto e as oportunidades
papel. Pré-conceitos sobre a AB no SUS são a serem exploradas.
comuns, principalmente da parte de técni-
cos e gestores que atuam em outros níveis
de atenção da rede. Comentários como ‘a AB Conclusões e considerações
não funciona, não é resolutiva e encaminha finais
desnecessariamente para os especialistas
ou para as unidades de urgência’ ou ‘eu não Como já foi abordado na introdução e na
envio meus alunos para a AB, pois eles vão metodologia, este artigo teve o objetivo de
desaprender’ são comuns. Mesmo que, em contribuir para a análise de implantação
parte, tenham fundamento, ao resultarem de das Redes de Atenção à Saúde no SUS, com
preconceitos arraigados, reduzem a dimen- ênfase nas regiões de saúde. Um dos prin-
são analítica do problema e não contribuem cipais desafios nessa dimensão é consolidar
para sua superação. um sistema de governança, e essa importân-
Na Atenção Básica, os problemas são nu- cia é destacada pela portaria 4.279 da seguin-
merosos, com destaque para os habituais: te forma:
financiamento insuficiente, infraestrutura
física e de recursos inadequada e prevalên- sistema de governança único para toda a rede
cia de um modelo assistencial centrado em com o propósito de criar uma missão, visão

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Contribuição para a análise da implantação de Redes de Atenção à Saúde no SUS 173

e estratégias nas organizações que compõem observação do desenvolvimento de cursos de


a região de saúde; definir objetivos e metas especialização que tiveram a implantação de
que devam ser cumpridos no curto, médio e RAS como escopo de projetos aplicativos nas
longo prazo; articular as políticas institucio- regiões de saúde. Uma das constatações foi
nais; e desenvolver a capacidade de gestão que as políticas de implantação de RAS estão
necessária para planejar, monitorar e avaliar o contribuindo para construir uma concepção
desempenho dos gerentes e das organizações hegemônica de imagem objetivo (de ‘aonde
(BRASIL, 2010). se quer chegar’) entre atores implicados do
SUS. A prevalência desse assunto nos pro-
Esse desafio, focado na região de saúde, cessos de capacitação de gestores e técnicos
foi o objeto deste estudo. Dois aspectos so- e as diretrizes das políticas do Ministério da
bressaíram na análise. O primeiro reafirma Saúde e das secretarias estaduais possivel-
a importância de atores implicados com mente tenham ampliado consensos sobre a
a implantação da política nas regiões. Os importância das RAS como alternativa para
mesmos podem ser constituídos de gestores superar dificuldades do SUS.
públicos, por exemplo, os que compõem a Evidenciou-se, também, a importância de
Comissão Intergestores Regional (CIR), ou esses atores compreenderem, de forma apro-
outros agrupamentos, tais como técnicos, fundada, o contexto das regiões de saúde,
profissionais de saúde ou usuários, desde sendo esse um pré-requisito para a qualida-
que atendam ao requisito de implicação com de, viabilidade e factibilidade das propostas
a proposta e que possam contribuir para a de intervenção. Análises superficiais desen-
elaboração de diretrizes político-estratégi- cadeiam, obviamente, intervenções pouco
cas e operacionais de planos e projetos de potentes; estratégias educacionais que de-
intervenção. O segundo refere-se ao perfil senvolvem as habilidades e competências
de competência necessário para que esses requeridas, além de capacitar os atores impli-
atores desempenhem tal papel, ou seja, dos cados na compreensão do contexto, os funda-
conhecimentos e habilidades de que devem mentam na elaboração de planos e projetos
dispor para exercê-lo. articulados com as políticas de implantação
O subsídio empírico para o estudo foi a das Redes de Atenção à Saúde no SUS. s

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174 SILVA, S. F.

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DIVULGAÇÃO EM Saúde PARA Debate | rio de Janeiro, n. 52, p. 165-176, out 2014
artigo original | original article 177

Financiamento e governança em saúde: um


ensaio a partir do cotidiano
Healthcare financing and governance: an essay considering daily
routine

Luna Bouzada Flores Viana1, Rodrigo Lino de Brito2, Fausto Pereira dos Santos3

RESUMO Neste artigo, objetivamos revisar, sem esgotar, a literatura existente sobre
financiamento em saúde, agregando reflexões sobre o tema à luz do conceito de governança.
As reflexões são elaboradas a partir da experiência dos autores com o cotidiano da gestão da
Secretaria de Atenção à Saúde, do Ministério da Saúde. O objetivo é, de forma conceitualmente
embasada, contribuir para a discussão sobre o financiamento à saúde. A linha argumentativa,
as constatações e conclusões são de inteira responsabilidade dos autores, não exprimindo,
necessariamente, o ponto de vista do Ministério da Saúde e do governo federal.

PALAVRAS-CHAVE Assistência à saúde; Financiamento da saúde; Organização e administração.

ABSTRACT With this article we aim reviewing, without pretensions of exhausting, the literature
concerning health financing, reflecting on the subject under the light of the governance concept.
The reflections hereby are made considering the authors experience with management daily
routine at Health Attention Secretariat, under Ministry of Health. The goal is, conceptually
1 Mestre em Ciência
Política pela Universidade grounded, contribute to the debate over health financing. The stream of arguments, findings
de Brasília (UnB) – Brasília and conclusions are authors’ entire responsibility, not necessarily expressing the institutional
(DF), Brasil. Assessora de
gabinete da Secretaria de definitions of the Ministry of Health and the Federal Government.
Atenção à Saúde desde,
Ministério da Saúde –
Brasília (DF), Brasil. KEYWORDS Delivery of health care; Healthcare financing; Organization and administration.
lunaviana@gmail.com

2 Mestre em Saúde Pública


pelo Centro de Pesquisas
Aggeu Magalhães
(CpqAM/Fiocruz) – Rio
de Janeiro (RJ), Brasil.
Coordenador Geral de
Planejamento e Orçamento
da Secretaria de Atenção à
Saúde, Ministério da Saúde
– Brasília (DF), Brasil.
(2007).
rodrigolbrito@yahoo.com.br

3 Doutor em Saúde

Coletiva pela Universidade


Estadual de Campinas
(Unicamp) – Campinas
(SP), Brasil. Secretário
de Atenção à Saúde do
Ministério da Saúde –
Brasília (DF), Brasil.
fausto.santos@saude.gov.br

DIVULGAÇÃO EM Saúde PARA Debate | rio de Janeiro, n. 52, p. 177-189, OUT 2014
178 VIANA, L. B. F.; BRITO, R. L.; SANTOS, F. P.

Introdução O quadro atual do


financiamento da saúde
Neste artigo, buscamos subsidiar e proble-
matizar alguns aspectos do debate sobre o A Constituição de 1988 representou uma
financiamento da saúde. Mas, antes de pros- ruptura institucional importante para a
seguirmos, é importante definir o que enten- saúde. Estabeleceu o conceito de seguridade
demos como o escopo desse debate. social, composto por previdência social, as-
A lei complementar no 141, de 13 de sistência social e saúde.
janeiro de 2012 (BRASIL, 2012), estabeleceu o De forma genérica, a política em saúde
que são ações e serviços públicos de saúde, estava, até então, vinculada à previdência
circunscrevendo o que deve ser considerado social ou à prestação de assistência condi-
na apuração de suas despesas. Considerando cionada à inserção no mercado de trabalho.
essa definição, o financiamento da saúde Para os que não participavam do mercado
constitui-se, portanto, nas fontes de receita de trabalho, restava a opção de pagamento
e em sua vinculação ou não para compor a direto ou em entidades filantrópicas e outras
estrutura de planejamento alocativo, que se conveniadas com o Ministério da Saúde
concretiza nos orçamentos federal, estadu- (MS), que então possuía papel residual.
al e municipal. Também como integrantes Entretanto, a expectativa de ampliação
do financiamento público estão os meios de e aprofundamento da assistência à saúde e
transferência e aplicação dos recursos que a sua formalização na Constituição foram
impactam a oferta de ações e serviços em restringidas por contexto político-econô-
saúde. mico, em que a ação de governo era pautada
Pressupomos que não subsiste pela restrição dos gastos fiscais. Durante
demandar mais fontes se a oferta não a transição, na década de 90, o orçamen-
é correspondente. Assim como não há to do Ministério da Saúde foi comprome-
sentido em pautar apenas a necessidade tido por fatos como a não destinação dos
de mais oferta de ações de promoção, recursos previstos nos Atos e Disposições
proteção e recuperação se as fontes, Transitórias, prevalecendo a preocupação e
concretizadas no planejamento e a priorização da previdência social.
execução mediante orçamentos públicos, A transição também representou mudan-
são insuficientes ou instáveis. ças na configuração do orçamento nacional.
Um conceito-chave permeia a busca de O orçamento da assistência social, antes, não
um equilíbrio, provavelmente, inalcançável. passava pelo legislativo e tinha como princi-
Esse conceito é o da governança, ou de de- pal fonte receitas próprias. Com a mudança,
finição sobre papéis e integração entre os foram criados os três tipos de orçamento:
diferentes atores que compõem o universo estatal, fiscal e seguridade social.
da saúde. A governança também é compre- A principal fonte de recursos para
endida como estrutura definida de responsa- a saúde, desde então, tem sido as con-
bilização e de incentivos que sancionam ou tribuições sociais. Em especial, a
premiam o desempenho (BM, 2007). Contribuição sobre Lucro Líquido (CSLL)
Ou seja, aprimorar a definição sobre a go- e a Contribuição para o Financiamento da
vernança em saúde – tanto em seu aspecto Seguridade Social (Cofins). Entre 1997 e
sobre a participação do público e do privado 2007, vigorou a Contribuição Provisória
quanto sobre responsabilidades na alocação sobre Movimentação ou Transmissão de
e execução dos recursos – é o grande desafio Valores e de Créditos e Direitos de Natureza
para o alcance de um novo nível na política Financeira (CPMF), mas apenas com efeito
pública em saúde. substitutivo, visto que não houve aumento

DIVULGAÇÃO EM Saúde PARA Debate | rio de Janeiro, n. 52, p. 177-189, out 2014
Financiamento e governança em saúde: um ensaio a partir do cotidiano 179

real nos recursos para a saúde (CONASS, 2011). as comparações internacionais perigosas,
A Conferência Nacional sobre Saúde, de apesar de sempre serem didáticas. Mesmo
1986, já defendia a ideia de uma fonte estável no escopo das atividades previstas na lei
de recursos para a saúde. Em 2000, foi apro- complementar 141, de 13 de janeiro de 2012,
vada a Proposta de Emenda Constitucional os gastos sociais em saúde tendem a estar
29 (PEC 29). Nos anos posteriores à aprova- mal dimensionados.
ção da PEC, foi observado aumento do gasto O acesso à saúde no Brasil é, então, um
público em saúde, porém, com redução da misto de prestação via SUS, via planos de
participação relativa do governo federal e saúde, via pagamento direto. Essa é a encru-
aumento mais considerável da participação zilhada em que distintas crenças políticas e
de municípios. A participação do governo de interesses sinalizam diferentes caminhos.
federal foi reduzida, em termos relativos, Um elemento dado é que o volume de
de 75-60% para 45%, em 2010; entretanto, recursos públicos alocados para saúde é in-
houve incremento real de 114% dos recursos suficiente para um sistema com cobertura
públicos para saúde (SERVO et al., 2011). universal (PIOLA, 2010). O mesmo autor informa
Oriunda da PEC 29, a vinculação do gasto que sistemas que têm cobertura universal
em saúde com indicador de crescimento têm participação pública em 6,5 % do PIB e
econômico tem sido uma grande armadilha em 70% do total dos gastos.
para o planejamento do Ministério da Saúde. Não obstante os números, nesse debate,
A vinculação à variação do PIB nominal não identificamos alguns legados que moldam
é uma fonte estável, que permite a expansão percepções, interesses e limites na reconfi-
de compromissos do Ministério da Saúde. Ela guração das organizações atuantes na saúde.
também é prejudicial para projeções e avanços
mais significativos em maiores volumes de re- • Permanência de extensa rede de servi-
cursos para o gasto federal em saúde. ços particulares credenciados – legado de
Comparativos internacionais sempre são como se configurou a oferta da assistência
utilizados para comprovar duas posições sobre pré-Constituição de 1988;
o gasto público em saúde no Brasil: ele é muito
inferior, quando comparado a outros países • Manutenção da essência na forma de re-
cujos sistemas também teriam caráter univer- muneração de serviços – pagamento por
sal, e a participação privada é muito alta. procedimentos;
Estimativas da Organização Mundial da
Saúde indicam que o Brasil gasta 9% do PIB • Atomização e competição por recursos
em saúde, sendo 46% deles gastos públicos decorrentes da expansão de cidades de
e 54% gastos privados. O gasto via paga- pequeno porte com capacidade arrecadató-
mento direto tem sido avaliado em 31% do ria quase nula;
gasto total, correspondendo a 58% do gasto
privado (WHO, 2012). • Conflito entre agenda estruturante e as
O governo federal também atua por outros prioridades conjunturais de sucessivos
meios, que não apenas o Ministério da Saúde, governos;
para prover o acesso à saúde. Esses seriam a
renúncia fiscal, subsídio aos planos de saúde • Tensão na descentralização advinda
de servidores e políticas desenvolvidas por do financiamento concentrado na esfera
outros ministérios que também impactam as federal, mas operação regional do sistema;
condições e o acesso à saúde.
Avaliamos, então, que a dificuldade em • Esgotamento do modelo administrativo e
delimitar e mapear os gastos em saúde torna de gestão;

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180 VIANA, L. B. F.; BRITO, R. L.; SANTOS, F. P.

• Esgotamento do modelo de relação estado meio das Normas Operacionais Básicas (NOB
e sociedade. 01/91, 01/93, 1996), Normas Operacionais de
Assistência à Saúde (Noas 01/2001, 01/2002),
Em uma construção de mundo institu- Pacto pela Saúde (Portaria 399/2006),
cionalista, esses legados moldam a maneira Decreto 7.508/2011. Alguns criticam o
como é conduzido o debate sobre o finan- processo de descentralização, visto que é
ciamento, tanto em seus meios (subsistemas, baseado apenas no financiamento, tônica
arenas, atores) quanto nos argumentos e apenas econômico-financeira (PIOLA, et al.,
conflitos de posicionamentos. 2012). Um processo de descentralização dese-
jado seria o de desconcentração de recursos
e de decisão sobre a alocação dos mesmos
Execução dos recursos na para os gestores estaduais e municipais.
assistência à saúde À época da implantação das normas
operacionais, autores criticavam a maneira
Parte dos que se contrapõem ao aumento dos cartorial como os recursos estavam sendo
recursos para a saúde argumentam que antes descentralizados. A descentralização de
de se discutir insuficiência é necessário me- recursos não estava sendo acompanhada
lhorar a qualidade do gasto. Para os que en- pelo efetivo desenho dos sistemas de saúde,
frentam o cotidiano do Ministério da Saúde, e as duas modalidades de gestão, plena e
contraditoriamente, ambas as realidades se semiplena, não refletiam os diversos níveis
apresentam ao mesmo tempo. em que os municípios poderiam inserir-se
Volumes consideráveis de recursos na rede (ELIAS; MARQUES; MENDES, 2001).
são disponibilizados e transferidos, mas, De qualquer forma, o Ministério da Saúde
ao mesmo tempo, a escassez de recursos passou de 87% de execução direta, em 1995,
apresenta-se para novas políticas e aper- para 31%, em 2010 (PIOLA, et al., 2012). Em 2012, o
feiçoamento do financiamento de políticas percentual de aplicação direta estava em 10,2%,
existentes. chegando a 9,9 % em 2013 (consulta Siafi, 2014,
O aperfeiçoamento da execução dos re- gastos relacionados à modalidade 90).
cursos em saúde também está fortemente Em uma primeira análise, ao longo desses
associado ao conceito de custos de transa- anos, realizamos a seguinte avaliação sobre
ção. Antes da Constituição de 1988, a ope- os custos transacionais na implementação da
racionalização da transferência de recursos política de saúde: em termos gerais, custos de
era realizada mediante diversos convênios. transação são o esforço necessário associado
A execução direta na prestação de serviços à discussão, definição e ao monitoramento
concentrou-se até 2000/2001 (Conass, 2011, de ações e atividades. Ele está intimamente
p. 92)1. O Ministério da Saúde processava e relacionado à estrutura de governança, visto
pagava diretamente aos prestadores. que a configuração de atores (suas responsa-
Houve, na década de 1990, um intenso bilidades e participação) estabelece pontos
movimento de descentralização. Entretanto, de atritos e convergências que aumentam ou
até antes da portaria GM MS 204, de 29 de reduzem esses custos.
janeiro de 2007, o MS transferia para estados A taxonomia que utilizaremos abaixo foi
e municípios recursos vinculados a mais de desenvolvida por Williamson e Vatn, citados
70 diferentes contas. A portaria 204/2007 por Calmon e Pedroso (2011).
criou cinco blocos de financiamento, e foi O desafio de se ter uma estratégia de
1 Analisando o gráfico, o
alterada em 2009 para incorporação do novo governança mais clara para a saúde limita
percentual de execução
direta é maior do que 50% bloco de investimentos. avanços no debate sobre o financiamento em
até os anos 2000/2001. A descentralização foi normatizada por dois aspectos principais: 1 – nível desejado

DIVULGAÇÃO EM Saúde PARA Debate | rio de Janeiro, n. 52, p. 177-189, out 2014
Financiamento e governança em saúde: um ensaio a partir do cotidiano 181

Quadro 1. Avaliação preliminar custos de transação


Tipo de Custo Descrição Avaliação preliminar
de Transação

Ex-ante Os custos de reunir informações neces- Todas as políticas do MS têm de ser previamente
sárias para propor programa ou política pactuadas na instância da Comissão Intergestores Tri-
a ser implementada, as dificuldades de partite (CIT). A avaliação por gestores federais e repre-
concepção do programa, de definição dos sentantes de estados e municípios reduz esse custo.
seus indicadores, de caracterização das Mas, alguns autores criticam a atuação “tecnocrática
suas formas de operação, de definição dos iluminista” do MS (ELIAS, et al., 2001).
recursos e do fluxo de recursos envolvido Além disso, a execução da política em saúde depende,
para o pleno desempenho das funções em grande parte, dos que estão em contato direto com
preconizadas no programa. o cidadão. A política é basicamente definida no coti-
diano das unidades de saúde e no contato dos profis-
sionais com as pessoas.
Durante Os custos relacionados à gestão do pro- Nesse aspecto é que houve maior avanço na redução
grama, incluindo a liberação dos recursos; do custo de transação. A adoção da transferência
a negociação e a coordenação com os fundo a fundo foi um avanço na definição de critérios
parceiros; as mudanças conjunturais que padronizados e a priori para transferência de recursos.
podem ter afetado a gestão e o processo
de tomada de decisão; a contratação e os
demais aspectos relacionados à implemen-
tação dessa política.
Ex-post Os custos relacionados ao monitoramento Não se pode dizer que redução do custo de transação
e à avaliação da política, de forma tal a se no ‘durante’ gerou o aumento do custo ex-post. Na
assegurar que é possível identificar e aferir década de 1990, quando o MS executava de forma
as atividades, os produtos e os resultados direta quase 90% de seus recursos, seguramente, os
do programa, a definição e a participação desafios eram muitos, e o nível de controle da execu-
nas arenas para discussão e a revisão dos ção era baixo.
problemas de concepção que possam ter Mas, a redução do custo de transação ‘durante’ gera
ocorrido, além dos custos de supervisão um enorme desafio na verificação da execução. A
que garantam a implementação dos acor- indefinição na estrutura de governança na saúde tam-
dos firmados e da programação previa- bém reflete no caminho a ser adotado para redução
mente definida. desse custo. Por exemplo, órgãos de controle cobram
do MS ações que, inicialmente, estariam sob respon-
sabilidade dos estados e municípios.

Fonte: adaptação de WILLIAMSON; VATN, apud CALMON; PEDROSO (2011)

de participação do orçamento público e re- Não vislumbramos uma ruptura insti-


cursos necessários (quanto mais é necessá- tucional como a Constituição de 1988, ou
rio); 2 – responsabilização na execução da uma grande inflexão em decisão alocativa
política (como fazer mais com o mesmo). (em termos genéricos mercado x social). A
Acreditamos ter resumido o quadro atual, definição de caminho, provavelmente, será
construído a partir de autores que já estudam incremental.
e discutem a questão do financiamento, e Apresentamos, a seguir, o cotidiano da
problematizado o debate na perspectiva da Secretaria de Atenção à Saúde (SAS), moldado
governança. Legados históricos e, concor- pela trajetória da saúde, do Ministério e pelas
dando com Vianna (2011), espectros ideológi- pressões e desafios aos quais está submetido.
cos, notadamente, cada vez mais confusos, Organizamos as informações considerando
geram a não decisão. a estrutura dos blocos de financiamento e

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182 VIANA, L. B. F.; BRITO, R. L.; SANTOS, F. P.

do orçamento da Secretaria, haja vista que é O orçamento da SAS representa uma


“através da análise da execução do orçamen- média de 62% do total disponível para o
to que as verdadeiras prioridades de aloca- Ministério da Saúde, entre os anos 2012-
ção se tornam evidentes” (BM, 2007, p. iii). 2014. A sua distribuição é:

Quadro 2. Orçamento SAS e Modalidade de Transferência – 2012 a 2014

Ano R$ Total % Aplicação direta % Transferência

2012 53.728.755.227 7,65 92,35


2013 58.809.211.318 8,11 91,89
2014 60.986.317.000 4,10 95,90
Total 173.524.283.545 7,32 92,68

Fonte: Consulta Siafi – abril/2014. Transferência: Modalidades de Aplicação (MA) vinculadas a: Consórcios Públicos (Contrato de Rateio);
Instituições Multigovernamentais; Modalidade a definir; Transferências a Estados e DF; Transferências a Estados e DF (FAF); Transf. a Inst.
Privadas sem Fins Lucrativos; Transferências a Municípios (FAF);Transferências ao Exterior

Quadro 3. Orçamento SAS – Blocos de Financiamento – Atenção Básica x Atenção Especializada – 2012 x 2014

Ano Atenção Básica Atenção Especializada

2012 16.962.824.666 43.613.472.582


2014 20.632.521.755 45.441.264.843
Variação % 22% 4%

Fonte: Consulta Siafi – abril/2014

Financiamento da média e estados e municípios foram estimados com


alta complexidade base na informação da produção via Sistema
de Informações Hospitalares (SIH). A
O bloco da média e alta complexidade Norma Operacional Básica, de 01 de agosto
foi criado mediante a Portaria 204/2007. de 1996, estabeleceu vários tetos financeiros.
Contudo, as NOB já haviam iniciado o mo- Mas, com a portaria 204, de 2007, o ‘teto do
vimento de descentralização da assistência MAC’ passou a ser único.
na média e alta complexidade para estados O famoso ‘teto MAC’ é o recurso alocado
e municípios. Mesmo assim, até 2013, 50% dentro da ação orçamentária 8585 – Atenção
dos municípios ainda não estavam habilita- à Saúde da População para Procedimentos em
dos para recebimento direto desses recursos. Média e Alta Complexidade. Ele é transferi-
Eles, então, são transferidos para os Estados do via Fundo Nacional de Saúde para Fundos
(BRASIL, 2014). Municipal, Estadual ou do Distrito Federal.
O teto da Média e Alta Complexidade (teto Os recursos alocados nessa ação passaram
MAC) incorpora um histórico que remonta de R$ 28,3 bilhões, em 2010, para R$ 39,2
ao Inamps, visto que os tetos iniciais de bilhões, em 2013 (BRASIL, 2014) – informação

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Financiamento e governança em saúde: um ensaio a partir do cotidiano 183

de portarias já publicadas e ‘incorporadas ao Os estados e municípios habilitados em


teto MAC’. Uma variação de 40%. gestão plena lançam, mensalmente, a quan-
O teto dos estados e municípios é au- tidade de procedimentos realizados (produ-
mentado conforme a aprovação de habili- ção informada) nos sistemas SIA e SIH. O
tações de novos serviços. Também pode ser Ministério da Saúde verifica inconsistências
revisto quando, comprovadamente, a pro- e paga o valor final (produção aprovada).
dução apurada no Sistema de Informações Alguns procedimentos são pagos trimestral-
Ambulatoriais (SIA) e no Sistema de mente, haja vista o tempo necessário para
Informações Hospitalares é superior ao teto registro dos mesmos nos sistemas do SUS.
do ente federativo. O valor pago por procedimento pelo
Em termos operacionais, o estado ou Ministério da Saúde tem sido avaliado como
município envia para o Ministério toda a insuficiente. Nesse ponto, há também uma
documentação definida em portaria regula- extensa discussão sobre como avançar nesse
mentadora da política ou do programa; ou aspecto do financiamento público. Além dos
documento fundamentando a necessidade valores de referência, discutem-se a metodo-
de habilitação de serviço ou revisão do teto. logia de apuração e o pagamento.
A solicitação é analisada, e, caso aprovada, é De forma mais sistêmica, e no contexto da
publicada portaria ministerial incorporando discussão sobre a efetiva descentralização da
o valor no teto. O sistema Sismac informa política de saúde, há indefinições no que se
todas as portarias publicadas de incorpora- refere à aplicação de critérios a priori para
ção no MAC. distribuição e transferência dos recursos. A
A discussão e a aprovação dos planos de lei 8080/1990 e a lei complementar 141/2012
ação das Redes de Atenção à Saúde, arranjo definem critérios de rateio. Confessamos a
organizativo das políticas em saúde que dificuldade em aplicar tantos critérios que,
começou a ser implantado com maior vigor por muitas vezes, conflitam no direciona-
a partir de 2011, orientaram grande parte dos mento da alocação dos recursos.
incrementos do teto MAC. Além da disparidade entre os critérios,
Entre 2011 e 2013, foram incorporados R$ observamos que não estamos tratando de um
5 bilhões adicionais aos tetos dos estados e recurso homogêneo. Os recursos da Média e
municípios, oriundos da aprovação de planos Alta Complexidade financiam desde políti-
de ação e incentivos, em parcela única, para cas de redução da mortalidade neonatal até
realização de exames ou organização de ser- a manutenção de centros de referência de
viços (BRASIL, 2014). diagnóstico e tratamento em oncologia.
Uma vez publicada a portaria de habili- Seria necessário compor uma incrível
tação, os recursos são transferidos mensal- fórmula matemática para dar conta dos
mente para os fundos de saúde de estados e critérios, atribuição de pesos, distribuição
municípios. A prestação de contas é remeti- espacial, especificidade de cada política/
da ao Relatório de Gestão. programa, estabelecimento de incentivos
Os recursos transferidos servem para que criassem externalidades positivas, entre
manter unidades próprias e de entidades outros, com vistas à definição sobre a distri-
privadas sem fins lucrativos conveniadas/ buição do MAC.
contratadas. A apropriação mensal do valor Dessa forma, os recursos hoje alocados
a ser transferido é realizada a partir da veri- no MAC carregam uma forte definição de
ficação da quantidade e dos tipos de procedi- série histórica, que remonta ao Inamps. Mas
mentos realizados por estabelecimento, ou, se em 1995, como um todo, 90% da execu-
então, por valores fixos pré-estabelecidos ção do MS eram realizados de forma direta
em portaria. (MELAMED, 2011), apenas para SAS, em 2014, 92%

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passaram a ser executados via transferência. de rotas, apoio estratégico para estados e
Ou seja, os recursos foram efetivamente des- municípios, estabelecimento de incentivos
centralizados. Observou-se aumento absolu- e mecanismos para melhoria da assistência;
to dos recursos do MAC, os quais passaram
de R$ 28,3 bilhões, em 2010, para R$ 36,3 Apoio de órgão de controle e fiscalização da
bilhões em 2014 (SIAFI; BRASIL, 2014). consubstanciação na definição dos papéis.
Todavia, a descentralização de recursos
e o aumento ao longo dos anos devem ser A definição sobre governança do sistema
analisados relativamente a algumas dimen- permitirá o avanço na simplificação de di-
sões que a literatura sobre o assunto já tem versas camadas organizacionais que tiram
apontado, as quais se tornam mais concretas o foco da verdadeira razão da existência do
e complexas no dia a dia no MS. SUS: as pessoas.
A primeira dimensão seria a definição Essas considerações remetem ao 2º
da distribuição dos recursos, já comentada aspecto que elencamos sobre o desafio de se
acima, em sua inviabilidade de aplicação ter uma estratégia mais clara de governança,
dos diversos indicadores informados na le- o qual seria a responsabilização na execução
gislação do SUS. Também relacionada a essa da política (como fazer mais com o mesmo).
questão dos indicadores, a busca da equida- Com relação ao 1º aspecto, nível desejado de
de da distribuição desses recursos adviria participação do orçamento público e recur-
de um equilíbrio dos componentes: acesso x sos necessários (quanto mais é necessário),
necessidade x oferta x demanda (KAJIURA, 2011). já temos um grande impasse no MAC.
A discussão sobre governança, definida a Em termos de compromissos firmados,
partir de uma análise de custos de transação, tetos incorporados, o MAC finalizou o ano
pode ser uma luz para o estabelecimento de de 2013 com o valor de R$ 39,2 bilhões (BRASIL,
responsabilidades no que se refere a parâme- 2014). Entretanto, orçamentariamente, esse
tros de macrodefinição e meso/microdefini- bloco de financiamento, refletido na ação or-
ção na alocação dos recursos. Obviamente, çamentária 8585, possui dotação autorizada
avaliamos que há pressupostos para tanto: de R$ 36,3 milhões. Ou seja, em 2014, o MS
não tem margem de expansão na assistência
Fortalecimento das bases de informação relacionada a esse bloco. De forma cabal, está
que norteiam as decisões – informações demonstrada a insuficiência dos recursos
reais e individualizadas sobre procedimen- que estão sendo alocados na saúde na esfera
tos, internações, infraestrutura instalada; federal. Esse fato decorre, em especial, da
criação do teto na EC 29, o que já constata-
Capacidade de diagnósticos assistenciais, mos tratar-se de uma grande armadilha para
estabelecimento, execução e monitoramen- o orçamento federal para a saúde.
to de planos de ação por parte dos gestores Está em discussão no Congresso a vin-
municipais e estaduais; individualmente e culação do orçamento à receita corrente,
coordenadamente – depende do fortaleci- líquida ou bruta. O grande desafio seria
mento administrativo/organizacional das definir uma fonte estável em sua exis-
Secretarias de Estado e Municipais; tência, com crescimento vinculado a mu-
danças no perfil social brasileiro e sem
Reforço na estrutura de monitoramento e a definição de teto, com a possibilidade
avaliação no Ministério da Saúde; gastar de negociação de recursos adicionais em
menos tempo com atividades meio adminis- caráter temporário, reduzindo a possibili-
trativas e assistenciais; e mais tempo na de- dade de veto por parte de Ministérios do
finição e reavaliação de diretrizes, correção Planejamento e Fazenda.

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Financiamento e governança em saúde: um ensaio a partir do cotidiano 185

Financiamento da Atenção transformado para adequar-se às disparida-


Básica des regionais e vincular-se, de forma direta, à
oferta de serviços, via expansão de equipes e
A alocação de recursos federais na Atenção implementação de um consistente programa
Básica pode ser verificada nas ações 20AD de monitoramento e avaliação.
(Piso da Atenção Básica Variável) e 8577 Desde a sua instituição, o PAB fixo esteve
(Piso da Atenção Básica Fixo). A transferên- vinculado ao pagamento de um valor per
cia também é efetivada via fundo a fundo, capita (Portaria GM 84/1998), que variava
do Fundo Nacional de Saúde para os Fundos de R$ 10,00 a R$ 18,00. Atualmente, o PAB
Municipais, como regra. fixo possui quatro valores per capita, sendo o
A introdução do PAB ocorreu em 1996 maior R$ 28,00 e o menor R$ 23,00. A varia-
(com operacionalização regulamentada em ção é decorrente da categorização dos mu-
1997 e 1998), já com seus componentes fixo nicípios conforme indicadores de cobertura
e variável vinculados ao Programa Saúde da por plano de saúde, Bolsa Família, extrema
Família e Agentes Comunitários de Saúde pobreza e densidade demográfica (BRASIL, 2014).
[informações e histórico sobre NOB e Noas Já o PAB variável, em sua criação, esteve
detalhados em (MELAMED, 2011)]. vinculado ao pagamento de equipes do PSF
Avaliamos grandes avanços na Política e agente comunitário. Atualmente, o paga-
de Atenção Básica nos últimos anos. mento ocorre mediante processo de habilita-
Diferentemente do MAC, o financiamento ção de equipe, posterior verificação no CNES
da Atenção Básica não incorporou um legado sobre registro de equipe e, caso a equipe não
de financiamento do INAMPS (foi, inicial- esteja registrada, descredenciamento. Além
mente, calculado como a soma dos procedi- disso, a ação 20AD incorporou o financia-
mentos, em 1996, dividido pela população de mento do Programa Nacional de Melhoria
1997). Dessa maneira, foi maleável para, sem do Acesso e da Qualidade da Atenção Básica.
desconsiderar outros determinantes, ser

Quadro 4. Resultados PMAQ – 2012

Desempenho Valor adicional – equipe Valor adicional – equipe % do total de equipes


com saúde bucal sem saúde bucal
Muito acima da média nacional 11.000.000 8.500.000 15
Acima da média nacional 6.600.000 5.100.000 36
Abaixo da média nacional 2.200.000 1.700.000 45
Fonte: Elaboração dos autores a partir de SAS, 2014, p. 27. Total de equipes não soma 100% – equipes não avaliadas/não informado

O PAB variável financia, atualmente, o • Equipes de Saúde Bucal (eSB);


custeio de:
• Núcleo de Apoio à Saúde da Família
• Equipes da Saúde da Família (eSF); (Nasf );

• Programa Mais Médicos; • Programa de Melhoria do Acesso e da


Qualidade na Atenção Básica (PMAQ)
• Agentes Comunitários da Saúde (ACS);
• Equipes de Atenção Domiciliar;

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• Programa Saúde na Escola (PSE); tendências nos papéis.


Reconhecemos que o escopo da Atenção
• Custeio de Academia da Saúde; Básica é bem mais definido e reduzido do
que os desafios que enfrenta a assistência
• Consultórios na Rua; vinculada ao financiamento via MAC. Os
legados que temos apontado neste artigo
• Custeio das Unidades Odontológicas também impactam as arenas e o subsistema
Móveis; da política da Atenção Básica, mas parecem
estar mais entranhados como freios na dis-
• Unidades Básicas Fluviais (ESF Fluvial); cussão do MAC.
Não obstante, a política de Atenção Básica
• Custeio de Microscopista; tem apoio discursivo de organismos inter-
nacionais. Há uma convergência. Não temos
• Custeio dos Agentes de Combate as dúvidas da importância e da essencialidade
Endemias (ACE). da Atenção Básica. Todavia, nas discussões a
respeito da definição sobre o SUS esperado,
A experiência e os avanços obtidos na po- acreditamos na necessidade da observação de
lítica de Atenção Básica reforçam nossa linha que a Atenção Básica seja fortalecida sempre
argumentativa neste artigo. A política tem de- com relação direta à assistência na média e
finição clara sobre o papel de governo federal, alta complexidade. Em respeito ao princípio
Estados e Municípios. Ao longo dos anos, da integralidade do SUS e, em especial, como
foram fortalecidos os meios de responsabi- defesa de que o SUS não seja instrumento
lização e criados incentivos para definição e para reforço de desigualdade social.
acompanhamento da execução de metas dire-
tamente vinculadas ao financiamento.
O Programa Mais Médicos, entretanto, Outras formas de
rompeu com alguns paradigmas sobre a financiamento e
prestação de assistência na Atenção Básica.
A contratação direta de profissionais pelo
transferência
governo federal enfrentou um quadro agudo
de desigualdade no acesso à promoção, Cerca de 14,54% do orçamento da
prevenção e aos cuidados básicos dentro Secretaria de Atenção à Saúde destinam-se
dos grandes centros e em âmbito regional. às transferências para apoiar capacitações,
O Programa e seus impactos ainda são re- estudos e pesquisas, ações de desenvolvi-
centes, não sendo viáveis conclusões fun- mento institucional, cooperações técnicas,
damentadas sobre possíveis alterações de obras e aquisição de equipamentos.

Quadro 5. Investimentos via Convênios, Fundo a Fundo e Termos de Cooperação

Ano Nº de Propostas Valor Aprovado Valor Empenhado Valor Pago


Aprovadas
2011 534 1.331.985.055,04 862.108.624,77 398.283.366,55
2012 727 1.026.461.305,75 822.812.367,41 261.812.501,52
2013 749 1.206.959.150,29 576.739.876,54
Total 2010 3.565.405.511,08 2.261.660.868,72 660.095.868,07
Fonte: SAS, 2014

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Financiamento e governança em saúde: um ensaio a partir do cotidiano 187

Um importante indicador da efetiva exe- continuam atuando de forma irresponsável,


cução desses recursos é o montante pago. executando projetos inadequados e com
Observa-se que, considerando o montante materiais de qualidade questionável. A má
aprovado ou empenhado, o valor total pago execução resvala como se fosse responsabi-
ainda é muito baixo. lidade única do MS. No entanto, toda execu-
Um baixo valor pago reflete tanto uma ção de obra é formalmente atribuída a uma
efetiva baixa execução quanto uma ne- empresa, que tem um responsável técnico
cessidade de melhoria dos processos de formado para executar projetos em acordo
desembolso do MS. Nesse aspecto, identi- com as normas vigentes.
ficamos vários gargalos, desde os limites de Gestores públicos também devem ser
desembolso financeiro estabelecidos pela responsabilizados na medida em que deixa-
Secretaria de Tesouro Nacional (STN) até ram de adotar procedimentos ou, de alguma
as restrições nos processos administrativos forma, se beneficiaram com a execução ina-
internos do MS, que precisam de melhoria dequada do projeto/obra.
tanto em atividades de reformulação de con- Nesse aspecto do financiamento da saúde,
vênios quanto na tramitação dos processos mais uma vez, encontramos a difícil contra-
para seu efetivo pagamento. dição entre uma aparente disponibilidade de
Soma-se a isso um importante desafio recursos vultosos, indo de encontro a diver-
de toda a gestão pública, que é efetivo pla- sas demandas não atendidas pela falta dos
nejamento, licitação e instalação/execução mesmos.
de obras por parte dos governos municipais A partir da Lei de Diretrizes Orçamentárias
e estaduais. Apesar do montante de recur- de 2014, esse descompasso foi acentuado
sos aprovados, os resultados concretos são com o estabelecimento das denominadas
muito ruins, acarretando infraestrutura ina- ‘emendas impositivas’ (BRASIL, 2013). Houve
dequada para a assistência. injeção de R$ 4,5 bilhões em emendas indi-
Além disso, é necessária uma melhor de- viduais ao orçamento da saúde de 2014.
finição da responsabilização, a fim de que O Ministério da Saúde estabeleceu a
não tenhamos fluxos e refluxos e de que possibilidade de que esses recursos sejam
seja encontrado um equilíbrio na excessiva canalizados para reforço de custeio MAC e
centralização do MS – o que, em última ins- PAB, evitando a esterilização de recursos em
tância, obstaculiza a aprovação dos recur- convênios não executados ou em execução
sos –, com uma excessiva descentralização de obras que, no futuro próximo, pressiona-
em que se acredita que, uma vez transfe- rão a contratação de recursos humanos e o
ridos, os recursos são ‘estadualizados’ ou custeio, sem correspondente disponibilidade
‘municipalizados’. para os gestores municipais e estaduais.
Na execução das obras, o MS tem adotado, Constatamos que a Emenda Consti-
no que atende aos requisitos de padroniza- tucional (EC)/29, conjugada com a criação
ção, a transferência fundo a fundo. Nesse das emendas impositivas, piorou o quadro de
contexto, o MS assume uma postura mais ge- financiamento na assistência à saúde.
rencial na execução das obras, estabelecendo No que se refere aos investimentos em
prazos de execução e de comprovações. No saúde, há um enorme desafio em sua quali-
entanto, o MS, considerando que já definiu ficação. Ao longo dos últimos anos, foi pos-
os padrões de projeto, os quais também são sível canalizar cada vez mais esses recursos
avaliados pelas Vigilâncias Sanitárias locais, para compor a estratégia de implantação das
não solicita dados ou avalia a qualidade da Redes de Atenção à Saúde. Foram reforçados
execução. mecanismos de acompanhamento da execu-
Muitos gestores estaduais e municipais ção desses investimentos.

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Mesmo assim, os mecanismos e as efetivas Conclusão


melhoria e expansão de infraestrutura na as-
sistência à saúde ainda são muito insuficien- Pautar os conceitos de governança e custos
tes. Alguns determinantes estão dentro do de transação no debate sobre financiamento da
próprio subsistema da saúde. Aqui, empres- saúde é uma tentativa de metodologia para anali-
tando o conceito de subsistema informado sar e propiciar elementos decisórios para avanços
por Calmon e Pedroso: nessa questão. Uma ruptura institucional, como
a Constituição de 1988, é pouco provável nos
Subsistemas de políticas públicas que ope- próximos anos. As definições e reconfigurações
ram com base em estrutura de governança devem seguir uma lógica incremental.
específica. Esses subsistemas constituem, O subsistema da saúde possui diversos
portanto, o que se poderia cognominar de atores com crenças, interesses e poderes
matriz de relações institucionais, ou seja, um diversificados e antagônicos. Mas nunca
complexo de organizações e instituições que podemos perder o foco de que o acesso à saúde
regem o processo de formação, implementa- é um direito de todos. Não podemos perder
ção e avaliação das políticas públicas (NORTH, o foco nas pessoas e em suas necessidades
1990). Participa também desses subsistemas cotidianas. Na injustiça e na crueldade
amplo conjunto de atores oriundos dos seto- que é não ser atendido, ser maltratado ou
res público e privado (2011, p. 336). humilhado quando estamos mais sensíveis
e necessitados. Tratar as pessoas com
Outros aspectos estão em subsistemas que dignidade e como cidadãs deve estar acima
afetam direta e indiretamente a capacidade de todos os interesses econômicos, políticos
de investimento do governo federal via exe- e tecnocráticos. Deveria ser simples, mas por
cução descentralizada. que tornamos tão complicado? s

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Financiamento e governança em saúde: um ensaio a partir do cotidiano 189

Referências

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DIVULGAÇÃO EM Saúde PARA Debate | rio de Janeiro, n. 52, p. 177-189, OUT 2014
190 artigo original | original article

O Programa Mais Médicos e as Redes de


Atenção à Saúde no Brasil
Mais Médicos Program and Health Care Networks in Brazil
1Mestre em Teoria e
Administração em Saúde Joaquín Molina1, Julio Suárez2, Lucimar R. Coser Cannon3, Glauco Oliveira4, Maria Alice
Pública pela Escola de Saúde Fortunato5
Pública do Instituto Superior
de Ciências Médicas de
La Habana – Havana,
Cuba. Representante
da Organização Pan-
Americana da Saúde (Opas)
/Organização Mundial de
Saúde (OMS) no Brasil. RESUMO Este artigo procura discutir a colaboração entre a Organização Pan-Americana da
molinajo@paho.org Saúde e o Programa Mais Médicos (PMM), debruçando-se sobre os mandatos dos Estados-
2 Mestre em Saúde Membros da Organização para a cooperação técnica no desenvolvimento dos sistemas
Pública pela Faculdade e serviços de saúde e a Cooperação Sul-Sul, ao mesmo tempo que o vincula aos elementos
de Saúde Pública do
Instituto Superior de conceituais e da política nacional de desenvolvimento do Sistema Único de Saúde (SUS) do
Ciências Médicas de La Brasil. Apresenta, ainda, a relevância do PMM na medida em que incrementou o número de
Habana – Havana, Cuba.
Consultor aposentado médicos atuantes no SUS, especificamente na Atenção Básica, nos municípios mais vulneráveis
da Organização Pan- e seu impacto na garantia do direito à saúde da população com a melhora da atenção primária
Americana da Saúde
(Opas) /Organização e das redes integradas de serviços de saúde.
Mundial de Saúde (OMS).
juliosu@gmail.com
PALAVRAS-CHAVE Atenção Primária à Saúde; Sistemas de saúde; Saúde pública.
3 Doutora em Saúde

Pública e Comunitária pela


Universidade de Dundee – ABSTRACT This paper aims on discussing the collaboration between the Pan-American Health
Dundee, Escócia. Assessora Organization and Mais Médicos Program (PMM), analyzing the State-Members’ terms of office
da Representação da
Organização Pan- in the Organization for technical cooperation on the development of Health care systems and
Americana da Saúde (Opas) services and the South-South Cooperation, at the same time it links it to the conceptual elements
/Organização Mundial de
Saúde (OMS) no Brasil. and to Brazilian national Unified Health System (SUS) development policy. It also presents
coserluc@paho.org PMM’s relevance, as it increased the number of active doctors on SUS, particularly on primary
4 Mestre em Saúde Pública care, in the most vulnerable cities and its impact on guaranteeing population’s right to health
pelo Instituto Superior with improvement of primary care and integrated health services networks.
de Ciências Médicas de
La Habana – Havana,
Cuba. Consultor Nacional KEYWORDS Primary Health Care; Health systems; Public health.
da Representação da
Organização Pan-
Americana da Saúde
(Opas) /Organização
Mundial de Saúde (OMS)
no Brasil para o Projeto
Mais Médicos.
oliveirag@paho.org

5 Mestre em Ciências da

Saúde pela Universidade


de Brasília (UnB) – Brasília
(DF), Brasil. Consultora
Nacional da Representação
da Organização Pan-
Americana da Saúde (Opas)
/Organização Mundial de
Saúde (OMS) no Brasil para
o Projeto Mais Médicos.
fortumar@paho.org

DIVULGAÇÃO EM Saúde PARA Debate | rio de Janeiro, n. 52, p. 190-201, OUT 2014
O Programa Mais Médicos e as Redes de Atenção à Saúde no Brasil 191

Introdução de Atenção Primária à Saúde (APS) e discute


sua relevância para a estruturação e o de-
Em julho de 2013, o governo brasileiro, por senvolvimento de Redes de Atenção à Saúde
meio de uma medida provisória, lançou (RAS) no Brasil.
o Programa Mais Médicos (PMM), cuja
regulamentação está sob responsabilidade
dos Ministérios da Saúde e da Educação. Cooperação Técnica da
Em 22 de outubro de 2013, foi aprovada Opas/OMS. A Cooperação
pelo Congresso Nacional e, posteriormente,
sancionada pela Presidente da República a
Sul-Sul
Lei nº 12.871, que institui o PMM (BRASIL, 2013).
Essa iniciativa visa a garantir a assistência A Opas foi fundada em 1902 pelos países do
médica imediata em regiões carentes até Continente Americano – é um Organismo
que esforços para ampliar a formação Internacional Público, com 38 Estados-
médica nacional consigam cobrir todas as Membros (OPAS, [S.d.]b). É o escritório regional
necessidades de atenção à saúde. Os 1.557 da OMS no hemisfério ocidental e a agência
municípios com 20% ou mais da população especializada em saúde da ONU. Ao mesmo
vivendo em situação de vulnerabilidade tempo, a Opas é o organismo coordenador
social foram considerados prioritários para das atividades internacionais das repúblicas
receber o benefício do componente de americanas na área da saúde, no âmbito do
provimento emergencial do PMM (BRASIL, Sistema Interamericano da Organização dos
[S.d.]). Estados Americanos (OEA). Em essência, é
Como parte desse programa, o Ministério um órgão intergovernamental para a coope-
da Saúde do Brasil (MS) solicitou a cola- ração técnica em saúde.
boração da Organização Pan–Americana As ações da Opas/OMS são determina-
de Saúde/ Organização Mundial de Saúde das por mandatos de seus corpos diretores,
(Opas/OMS) para, inicialmente, apoiar os que são integrados por representantes dos
processos de gestão do conhecimento, capa- Ministérios da Saúde de seus Estados-
citação, monitoramento e avaliação relacio- Membros e Associados. O Secretariado
nados ao fortalecimento da Atenção Básica, da Organização coordena e desenvolve as
assim como para facilitar a participação de ações de cooperação técnica emanadas dos
médicos estrangeiros. A Organização res- mandatos, e sua sede está localizada em
pondeu positivamente ao reconhecer que o Washington, D. C., nos Estados Unidos da
PMM é pautado nos mesmos valores, princí- América.
pios e objetivos da Opas/OMS sobre o desen- A inserção da Opas/OMS no Brasil está
volvimento dos sistemas e serviços de saúde regida por um acordo-marco que define
e os recursos humanos que trabalham neles, as prerrogativas, privilégios e imunidades
assim como outros mandatos que instam para desenvolver o trabalho da Organização
impulsionar a cooperação entre países e a no País. O trabalho operativo é organiza-
Cooperação Sul-Sul (OPAS, [S.d.]a). do de acordo com um Plano Estratégico de
Este artigo descreve, sob a perspectiva da Cooperação, conhecido por sua sigla em
Opas/OMS, a experiência inicial de colabo- inglês Country Cooperation Strategy, que
ração com o PMM, revisa o relacionamento precisa os objetivos e enfoques prioritários
do Programa com os principais mandatos da da cooperação técnica (OPAS, 2013). Mais es-
Organização das Nações Unidas (ONU) e da pecificidades sobre resultados esperados e
própria Opas/OMS para o desenvolvimento atividades se plasmam no Plano de Trabalho
dos sistemas de saúde com base na estratégia Bianual e em acordos específicos, chamados

DIVULGAÇÃO EM Saúde PARA Debate | rio de Janeiro, n. 52, p. 190-201, OUT 2014
192 MOLINA, J.; SUÁREZ, J.; CANNON, L. R. C.; OLIVEIRA, G.; FORTUNATO, M. A.

Termos de Cooperação (TC), um dos quais, instituições, recursos humanos e sistemas


o TC nº 80, é referente ao PMM (OPAS, 2013). nacionais e incentivando a melhoria dos
O intercâmbio de informações, saberes mecanismos de coordenação em países em
e experiências entre os Estados-Membros desenvolvimento (ONU, 2009).
é uma ferramenta importante de coopera- A CSS em saúde tem se revestido de grande
ção para o desenvolvimento, que pode ser relevância, e, com base nos mandatos globais
veiculado pela Cooperação Sul-Sul (CSS). e regionais e na própria visão e compromis-
Esse é um tipo de cooperação que abre so do Brasil para com o desenvolvimento
oportunidades ao intercâmbio de expe- de sua área de cooperação internacional, a
riências reais, por meio do compartilha- ONU incluiu um eixo estratégico específico
mento de conhecimento, intercâmbio de para a cooperação Sul-Sul no contexto do
tecnologia, reforço mútuo das capacidades, desenvolvimento sustentável e da erradica-
transferência institucional de capacidades ção da pobreza no Marco de Assistência das
operacionais e regulatórias, promoção da Nações Unidas para o Desenvolvimento no
autossuficiência nacional e de construção Brasil 2012-2015 (UNDAF, 2011), celebrado com
de coligações, entre outras. Encontra-se em o governo brasileiro.
constante evolução e é aberta a oportunida- Por sua vez, a Opas/OMS tem envidado
des capazes de ampliar as fontes de conhe- esforços contínuos para fortalecer a coo-
cimento. O Plano de Ação para Promover e peração em saúde entre os países como um
Implementar a Cooperação Técnica entre poderoso instrumento para promover a
Países em Desenvolvimento de Buenos solidariedade, reforçando a capacidade ins-
Aires (Bapa/1978) foi o primeiro mandato à titucional dos países para atender às suas
ONU para o fortalecimento da cooperação necessidades de saúde. Sabendo que a CSS
entre os países (UNDP, 1978). Atualmente, pode ser um ótimo mecanismo para o desen-
a ONU possui uma Unidade Especial de volvimento de redes e parcerias para tratar
Cooperação Sul-Sul sob a coordenação dos determinantes sociais da saúde e fortale-
do Programa das Nações Unidas para o cer as políticas públicas, a Organização não
Desenvolvimento (PNUD), que é regulada hesita em apoiar iniciativas dessa natureza.
por princípios acordados entre os Estados- Assim, a Opas/OMS destaca-se por haver
Membros. Dessa forma, vários mandatos criado mecanismos específicos de apoio à
emergiram da ONU e de suas agências espe- CSS como uma forma concreta de imple-
cializadas devido ao crescente dinamismo mentar as estratégias definidas desde 1978 e
econômico de alguns países em desenvolvi- atender à sua missão de liderar os esforços de
mento, que vêm transmitindo maior energia colaboração estratégicos entre os Estados-
à CSS por meio da integração regional em Membros e outros parceiros para promover
todo o mundo em desenvolvimento. a equidade em saúde, combater doenças e
Em 2009, a Conferência de Alto Nível das melhorar a qualidade de vida dos povos das
Nações Unidas sobre Cooperação Sul-Sul, Américas (OPAS, 2008).
realizada em Nairóbi, recomendou que a CSS Entre os mandatos à Opas/OMS, vários
e sua respectiva agenda fossem definidas são destinados à cooperação para o forta-
conjuntamente pelos países do sul e guiadas lecimento dos serviços e sistemas de saúde
pelos princípios do respeito à soberania e à e, especificamente, para a implementação
apropriação nacional, independência, igual- da estratégia de APS e o desenvolvimento
dade, não condicionalidade, não ingerência de redes integradas de cuidados à saúde.
nos assuntos internos, produzindo bene- Os argumentos e posições contidos neste
fícios mútuos, verificando a necessidade artigo são baseados no marco institucional
de reforçar capacidades locais, apoiando dos mandatos e na natureza da Organização,

DIVULGAÇÃO EM Saúde PARA Debate | rio de Janeiro, n. 52, p. 190-201, out 2014
O Programa Mais Médicos e as Redes de Atenção à Saúde no Brasil 193

como um organismo internacional dedicado à saúde da população, o fortalecimento da


à cooperação em saúde (OPAS, [S.d.]a). APS e o acesso universal a serviços básicos
de qualidade pelas pessoas com riscos ou
portadoras de doenças crônicas são neces-
A estratégia de Atenção sidades impostergáveis, além de um direito
Primária à Saúde e as Redes humano reconhecido.
A Declaração sobre Atenção Primária à
Integradas de Serviços de Saúde (APS) foi assinada na Conferência
Saúde Internacional realizada em Alma Ata, em
1978, a qual coloca a saúde como um direito
Os sistemas de saúde das Américas atuam humano fundamental e denuncia as desi-
em um contexto marcado por mudanças de- gualdades em saúde como política, social e
mográficas e epidemiológicas, acelerada e economicamente inaceitáveis. Reconhece
descontrolada urbanização, sob os efeitos das a estreita relação entre saúde, desenvolvi-
alterações climáticas e da deterioração dos mento e o direito e o dever da população de
sistemas de proteção social, associados a uma participar da gestão da sua saúde, e propõe
crescente presença de esquemas privados de alterações técnicas e políticas, além de mu-
seguros de saúde e à rápida introdução de danças na alocação de recursos (OMS, 1978).
tecnologias diagnósticas e terapêuticas mal Em 2007, os Estados-Membros da Opas
reguladas. aprovaram uma resolução sobre a renovação
Em 2020, o Continente Americano terá da estratégia de atenção primária para refor-
200 milhões de idosos, quase o dobro de çar os sistemas de saúde, com o propósito
2006, sendo que a maioria dessa população de alcançar a universalidade com equidade.
estará vivendo na América Latina. Sabe-se Relatórios lançados em 2008 e 2010 sobre a
que, em 2025, 50% dos nascidos na América saúde no mundo recomendaram processos
Latina vão viver mais de 80 anos. Por outro de reforma destinados à implementação da
lado, as doenças crônicas não transmissíveis Estratégia Renovada de Atenção Primária
crescem, e são, atualmente, a principal causa em Saúde. (OPAS, 2007).
de morte em praticamente todos os países. No mesmo sentido, a Opas/OMS lançou,
De todas as mortes ocasionadas por essas em 2010, uma iniciativa para promover a im-
doenças, 80% ocorrem em países de baixa plantação de Redes Integradas de Serviços de
e média renda, sendo que a epidemia causa Saúde (RISS) organizadas em torno da APS.
danos maiores à saúde das populações de Essa iniciativa identifica a fragmentação dos
baixa renda (CIESS, 2012). sistemas de saúde como o principal obstácu-
O envelhecimento da população explica lo para organizar as RISS, e expressa clara-
uma parte do aumento da incidência de mente que a APS não é um programa fraco
doenças crônicas não transmissíveis nos para pessoas pobres, com um primeiro nível
últimos anos. Outro fator importante é o de Atenção Básica pouco resolutiva. A APS
crescimento dos entornos condicionan- é uma estratégia de mudança em direção à
tes desse tipo de padecimento, gerado por reorganização dos sistemas de saúde, onde o
estilos de vida sedentários, exposição a riscos primeiro nível de atendimento é o articulador
e hábitos alimentícios favorecedores, que, da rede de cuidados, oferecendo serviços de
entre outros elementos, encontram espaço saúde integrais, prestados por equipes mul-
em uma regulação sanitária permissiva e no tidisciplinares, organizados em um modelo
desconhecimento e na conscientização dos que atende aos requerimentos individuais do
fatores condicionantes dessas doenças. curso da vida. Esse nível serve como porta de
Frente a essa já grande e crescente ameaça entrada para o sistema de saúde e garante a

DIVULGAÇÃO EM Saúde PARA Debate | rio de Janeiro, n. 52, p. 190-201, OUT 2014
194 MOLINA, J.; SUÁREZ, J.; CANNON, L. R. C.; OLIVEIRA, G.; FORTUNATO, M. A.

continuidade dos cuidados e a participação da valores, princípios e conteúdos compartilha-


população. (OPAS, [S.d.]c) dos pela Organização e pelo Brasil.
Mesmo tendo provas suficientes da supe-
rioridade dos sistemas de saúde baseados na
APS, sérios desafios persistem para que se A cooperação da Opas/
tornem o eixo dos sistemas de saúde e sejam, OMS com o Programa Mais
de fato, o ordenador da entrada das pessoas
no mesmo. O desenvolvimento da APS fica
Médicos (PMM)
limitado quando a atenção às pessoas nas
redes de serviços é desintegrada e persiste O apoio da Opas/OMS ao PMM se soma
um modelo de atenção centrado no hospital, a um conjunto de ações de cooperação
com dificuldades para fixar o profissional técnica com o Brasil para fortalecer, de
– especialmente os médicos – no primeiro forma especial, a APS e a Estratégia Saúde da
nível de atenção, faltando incentivos para os Família (ESF) no âmbito do desenvolvimento
trabalhadores da Atenção Básica. do SUS. Prevê atividades de qualificação
O Brasil compartilha muitos desses pro- e valorização dos profissionais da APS, de
blemas e desafios e tem respondido com o gestão e intercâmbio de conhecimento e a
lançamento e a implementação da Política apropriação e documentação de experiências
Nacional de Atenção Básica (PNAB) para e boas práticas.
fazer da APS o eixo do SUS (BRASIL, 2012). O PMM do Brasil inclui três componen-
Assim, consideramos as diretrizes de organi- tes: a expansão e a melhoria da infraestru-
zação das Redes de Atenção à Saúde (RAS), tura das unidades de saúde; a ampliação da
no âmbito do SUS, como uma importante oferta na graduação e na residência médica
estratégia para superar a fragmentação dos e a reorientação da formação e integração da
cuidados dos pacientes e melhorar o funcio- carreira; e o provimento emergencial com
namento do Sistema (BRASIL, 2010). Segundo médicos nas Unidades Básicas de Saúde dos
essas diretrizes, uma RAS é definida como os municípios socialmente mais vulneráveis e
arranjos organizativos de ações e serviços de em Distritos Sanitários Especiais Indígenas.
saúde, de diferentes densidades tecnológi- (BRASIL, [S.d.]).
cas, que, integradas por meio de sistemas de No terceiro componente – o que tem sido
apoio técnico, logístico e de gestão, buscam mais citado pelos meios de comunicação, o
garantir a integralidade do cuidado (BRASIL, governo brasileiro priorizou a inscrição no
2010). Definem-se 14 atributos que as RAS PMM de médicos formados no Brasil. Após
devem cumprir e três elementos constitu- essa fase, abriu inscrição individual para
tivos: população/região de saúde definidas, médicos brasileiros formados no exterior
estrutura operacional e um sistema lógico de e para médicos de outros países que têm
funcionamento determinado pelo modelo de proporção maior de 1.8 médico por mil ha-
atenção à saúde. bitantes (BRASIL, [S.d.]). Por último, convocou
Conceitual, estratégica e operacional- médicos estrangeiros por meio da coopera-
mente, a posição do Brasil coincide com o ção internacional, que, igualmente, devem
processo de renovação da APS, lançado pela vir de países com mais de 1.8 médico por mil
Opas/OMS, e com a proposta das RISS e seus habitantes. Esse último chamado foi instru-
atributos, aprovados pelos corpos diretores mentado por meio da cooperação da Opas/
da Organização. A cooperação histórica da OMS, mobilizando médicos cubanos.
Opas/OMS com o Brasil para o fortaleci- Todos os médicos, brasileiros e estran-
mento do SUS e, mais recentemente, para geiros, são supervisionados por professo-
o desenvolvimento do PMM responde aos res brasileiros durante todo o período de

DIVULGAÇÃO EM Saúde PARA Debate | rio de Janeiro, n. 52, p. 190-201, out 2014
O Programa Mais Médicos e as Redes de Atenção à Saúde no Brasil 195

permanência no PMM e têm que cursar e de conhecimentos e práticas em Atenção


obter aprovação em um módulo de acolhi- Básica de saúde no âmbito do PMM, dada
mento que procura fortalecer o domínio da a experiência desses médicos.
língua portuguesa e os conhecimentos sobre Desde o início do processo de coopera-
as normas e o funcionamento do SUS, assim ção, foi estabelecida uma estreita colabo-
como sobre outros elementos sociais e cul- ração entre a Opas/OMS, os Ministérios
turais da medicina no País e aqueles rela- da Saúde e da Educação do Brasil e o
cionados à situação de saúde. O módulo de Ministério de Saúde Pública de Cuba, além
acolhimento é o primeiro ciclo do curso de de outras instâncias envolvidas, para ga-
especialidade em saúde familiar que todos rantir a migração temporária de pessoas e
os participantes do PMM devem fazer (BRASIL, inseri-las em milhares de municípios bra-
[S.d.]). sileiros. Os esforços de coordenação e lo-
Para tornar efetiva a cooperação gística para direcionar os médicos cubanos
técnica da Opas/OMS, foi assinado um aos municípios de todos os estados do País
convênio de cooperação (TC 80) entre o foram e continuam sendo consideráveis.
Ministério da Saúde do Brasil e a Opas/ Segundo dados do MS, do dia 24 de abril
OMS, bem como sucessivos Termos de de 2014, o PMM conta com 14.090 médicos
Ajuste (TA) (OPAS, 2013). Os TAs detalham que, com suas equipes de Saúde da Família,
os compromissos técnicos e financeiros cobrem uma população de 48,6 milhões de
do Ministério de Saúde e da Opas/OMS pessoas, em 3.866 municípios e 33 distritos
nos diferentes componentes do PMM. A indígenas (ver mapas). 75% desse total estão
Opas/OMS também firmou um convênio localizados no semiárido do Nordeste, na
de cooperação com o Ministério da Saúde periferia de grandes centros urbanos com
de Cuba para a mobilização de médicos Índice de Desenvolvimento Humano baixo
cubanos ao Brasil, com o intuito de pre- ou muito baixo e em municípios e regiões
encher as vagas que não puderam ser ocu- com população quilombola, definidos como
padas por outros médicos estrangeiros e lugares prioritários para o atendimento
brasileiros e de impulsar o intercâmbio emergencial (BRASIL, [S.d.]).

Figura 1. Médicos em atuação pelo Programa

14.090 médicos
1.597 brasileiros, 1.163 intercambistas individuais e 11.330 cooperados
• 48,6 milhões de pessoas cobertas
• Mais de 100% da demanda apontada pelos municípios

3.866 municípios e 33 distritos indígenas cobertos


6.562 médicos para os 1.805 municípios carentes:
• Semiárido
• Municípios com IDHM baixo ou muito baixo
• Região Norte
• Vales do Jequitinhonha, Mucuri e Ribeira
• Médio Alto Uruguai
• Municípios com população quilombola
• Saúde indígena

Fonte: Brasil, 2014

DIVULGAÇÃO EM Saúde PARA Debate | rio de Janeiro, n. 52, p. 190-201, OUT 2014
196 MOLINA, J.; SUÁREZ, J.; CANNON, L. R. C.; OLIVEIRA, G.; FORTUNATO, M. A.

Dos 14.090 médicos do PMM, 11.330 unidades da Federação. Os cubanos re-


são cubanos, que prestam serviço em mais presentam 86% do total de médicos do
de 3.589 municípios, distribuídos nas 27 Programa. (BRASIL, [S.d.]).

Figura 2. Profissionais cooperados no Mais Médicos

Mais de 11.330 médicos cubanos em mais de 3.589 municípios

Fonte: BRASIL, 2014

O Programa Mais Médicos. socioculturais e econômicas.


Oportunidades e desafios Em segundo lugar, a presença de pro-
fissionais médicos torna possível a imple-
para desenvolver as Redes mentação de equipes de Saúde da Família,
de Atenção à Saúde no qualificando as capacidades de resposta e
Brasil a integralidade dos serviços de saúde, cole-
tivos e pessoais, de acordo com os valores,
A Opas/OMS estima que o PMM pode fazer princípios e forma de ação da Estratégia
uma contribuição essencial para o alcance de Saúde da Família (ESF), incluindo interven-
um SUS universal, equitativo, abrangente e ções sobre os determinantes sociais da saúde
participativo, por três razões principais: na sua comunidade.
Primeiramente, para levar a concepção Finalmente, o PMM amplia as oportu-
do SUS a lugares onde sua presença era ine- nidades de transformar a APS em entrada
xistente ou muito precária, onde vivem e principal do SUS, inatingível sem a presen-
trabalham populações predominantemente ça estável de médicos de Atenção Básica ou
pobres e sem outra opção de atendimen- primária. Permite implantar o modelo de
to à saúde devido às barreiras geográficas, cuidados concebido pela ESF ao longo do

DIVULGAÇÃO EM Saúde PARA Debate | rio de Janeiro, n. 52, p. 190-201, out 2014
O Programa Mais Médicos e as Redes de Atenção à Saúde no Brasil 197

tempo, contribuindo para a organização e o da infraestrutura dos serviços de saúde, o


desenvolvimento das RAS. aumento da formação de profissionais para
O Brasil definiu as RAS como o eixo da o SUS e as alterações no currículo acadêmi-
organização dos serviços do SUS. Organizou co de formação em medicina, que passará
redes regionalizadas, com a participação de a ter maior orientação para a APS – todas
gestores municipais, estaduais e federais, elas estratégias que darão sustentabilidade
e elaborou planos e regulamentos para sua à iniciativa. Os eixos de infraestrutura e en-
organização e funcionamento. Entretanto, sino-serviços são vitais para que os médicos
além dos exemplos de RAS que funcionam emergencialmente mobilizados possam de-
bem, o SUS ainda não alcançou totalmente senvolver suas possibilidades de trabalho e
os objetivos traçados para o desempenho e o contribuições, a fim de melhorar a APS.
funcionamento das redes. O próprio regime A saúde como um direito e um valor es-
federativo e a gestão participativa do SUS sencial para o desenvolvimento da sociedade
impõem desafios políticos, financeiros e téc- norteia o trabalho do PMM ao promover a
nicos particulares à conformação das RAS. interação com as famílias e a comunidade
A cultura predominantemente centrada no no ambiente onde vivem, não apenas no
hospital ainda persiste, e as debilidades acu- consultório ou na unidade de saúde. Com
muladas na gestão de redes, nas unidades de esse propósito, o programa e os médicos
saúde e no primeiro nível de atendimento participantes devem conhecer as fortalezas
para atuar como porta de entrada são causas e os recursos da cultura local e a organiza-
que conspiram contra um melhor desenvol- ção da comunidade, além de interagir com os
vimento das RAS e, consequentemente, para líderes para promover benefícios coletivos e
o alcance dos objetivos que norteiam o SUS. condições sociais favoráveis à saúde.
O PMM disponibiliza profissionais qua- A estratégia de promover a saúde por meio
lificados para trabalhar na comunidade e na da sensibilização, comunicação, educação
família, motivados e com capacidade para e dos arranjos intersetoriais, para intervir
resolver a maioria dos problemas de saúde sobre os determinantes sociais e os fatores
pública e para liderar, juntamente com as de risco que afetam a saúde local, não é com-
equipes de SF, a reorientação do modelo de patível com o comportamento de um médico
atenção com valores e princípios da APS. que aguarda doentes em seu consultório.
Outra grande oportunidade é que esses Assim, existe a possibilidade de agir co-
médicos chegam aos seus locais de traba- letiva e individualmente na prevenção de
lho para levar um processo de formação riscos e danos à saúde, impulsionando estra-
em saúde familiar de três anos de duração. tégias de vida saudável e ações preventivas
Trabalhar em um ambiente de aprendizagem específicas para os problemas e doenças
é a melhor maneira para qualificar a atenção prevalentes, com atendimento individual,
e estimular uma alta motivação da equipe. familiar e comunitário. Consequentemente,
Depreende-se, então, que o PMM, mais o atendimento domiciliar, em escolas e em
que um plano de extensão de cobertura locais de trabalho está previsto no âmbito do
de tempo limitado, está procurando uma PMM.
maneira de consolidar o SUS sobre o eixo da De acordo com o acima exposto, uma
APS. O PMM não se limita ao componente contribuição chave do PMM – se não a mais
de mobilização de médicos para lugares significativa – é a transformação do modelo
que necessitam de provimento – provavel- de atenção passivo e puramente clínico, pre-
mente, o componente que tem recebido dominantemente de eventos agudos, para
maior divulgação. O PMM tem um alcance um modelo voltado aos cuidados contínuos
mais abrangente: o incremento e a melhoria às pessoas, às famílias e à comunidade. Essa

DIVULGAÇÃO EM Saúde PARA Debate | rio de Janeiro, n. 52, p. 190-201, OUT 2014
198 MOLINA, J.; SUÁREZ, J.; CANNON, L. R. C.; OLIVEIRA, G.; FORTUNATO, M. A.

mudança de paradigma auxiliará, efetiva- médicos do PMM não são ilhas no SUS, e sim
mente, na implantação de uma melhor ESF e membros orgânicos do sistema. Fazem parte
na potencialização da APS no SUS, devendo, das equipes de Saúde da Família, trabalham e
também, impactar positivamente a eficácia se integram à comunidade: aí reside um dos
das RAS. valores para a defesa do programa.
Os médicos cubanos, mobilizados pela Para o sucesso do PMM, é necessário
Opas/OMS, têm formação especializada contar com o acompanhamento contínuo
em saúde familiar e comunitária, com ex- de gestores municipais, estaduais e federais
periência de trabalho vis-à-vis ao modelo para propiciar o funcionamento em rede.
de atenção em saúde que a ESF deseja im- A aceitação de um maior protagonismo da
plantar. O Brasil pode se beneficiar do perfil APS nas redes de atenção requer uma nova
desses médicos; eles, por sua vez, adquirem liderança da APS e que os profissionais de
novos conhecimentos e experiências traba- primeiro nível interajam e conheçam seus
lhando no SUS. Algumas únicas, como, por colegas do segundo nível. Da mesma forma,
exemplo, o atendimento em zonas indígenas os gestores de segundo e terceiro níveis
e quilombolas e na região Amazônica, cuja devem estabelecer com o primeiro nível uma
cultura está repleta de conceitos e tradições relação horizontal e virtuosa. Esse é o grande
próprias sobre saúde. desafio para que o PMM contribua efetiva-
O desempenho adequado do médico e mente para o desenvolvimento das RAS.
de sua equipe de saúde é condição necessá- Segundo dados do Ministério da Saúde,
ria, mas não suficiente, para que a APS seja obtidos de 688 municípios onde 1.592
efetivamente a porta de entrada do sistema médicos do PMM trabalhavam, em novem-
de saúde e se torne seu eixo estruturante. bro de 2013, foi observado um crescimento
Também é necessário que a atitude e o com- de 27,3% nos atendimentos de hipertensos e
portamento de todos os membros da RAS de 14,4% de pessoas com diabetes, em com-
evoluam de acordo com as novas possibili- paração com junho do mesmo ano (BRASIL,
dades. As mudanças exigem tempo, vontade [S.d.]). Durante o mesmo período, houve
política e construção coletiva entre equipes um crescimento de 10,3% de consultas nas
de APS, gestores e equipe dos serviços de cidades com médicos do programa. Trata-
outros níveis de atenção. São mudanças di- se de uma parcela do universo que o PMM
fíceis porque a governança de algumas redes abrange, já que, atualmente, mais de 14.000
é fraca – existem estruturas de poder tradi- desses médicos trabalham em equipes de
cionais encrustadas nos serviços de saúde Saúde da Família, cobrindo 48,6 milhões de
que apresentaram resistência ao trabalho pessoas (BRASIL, [S.d.]).
em rede e à valorização do primeiro nível de Esses dados preliminares mostram que a
atenção. Infelizmente, o modelo centrado presença de médicos nas equipes do primei-
no médico e no hospital ainda prevalece na ro nível de atenção deve, consequentemente,
mente e na prática de muitos profissionais aumentar o número de consultas, prescri-
e gestores, e, com certeza, também em boa ções de medicamentos, pedidos de exames
parte da população. de diagnóstico e consultas especializadas
Colocar a APS no comando do sistema nos serviços de média e alta complexidade.
requer mudanças estrutural e cultural pro- Igualmente, deve melhorar a capacidade de
fundas, que não são alcançadas apenas por diagnosticar as doenças e, possivelmente,
um decreto. aumentará a demanda por serviços médicos
Estamos convencidos de que o PMM pode de média complexidade. O aumento deve ser
contribuir para a reorientação do modelo de entendido como um fato positivo, mesmo
atenção, pelas razões já mencionadas. Os que gere em algumas RAS listas de espera,

DIVULGAÇÃO EM Saúde PARA Debate | rio de Janeiro, n. 52, p. 190-201, out 2014
O Programa Mais Médicos e as Redes de Atenção à Saúde no Brasil 199

esgotamento dos recursos de diagnóstico ou Considerações finais


escassez de certos medicamentos. É muito
possível que em certos momentos os ges- Mudanças notáveis ocorreram desde a
tores das RAS recebam reações negativas Conferência de Alma Ata, de 1978. A riqueza
dos especialistas pelo aumento da demanda e a população cresceram, o mundo se globa-
originada na Atenção Básica, ou queixas dos lizou no que se refere à movimentação de
serviços de diagnóstico por imagem e labo- pessoas e mercadorias, as distâncias foram
ratório em função do aumento do número de encurtadas por uma interconectividade
exames. Mal-entendidos e conflitos podem virtual que cresceu exponencialmente, iné-
acontecer, mas a existência de um primeiro ditas redes sociais surgiram, novas tecno-
nível que trabalha à plena capacidade supera logias abriram perspectivas para postergar
qualquer atrito que possa advir. a morte e melhorar a qualidade de vida, e
Essa é uma oportunidade de ouro para extraordinários avanços em saúde pública
fortalecer as RAS, pois as deficiências do foram observados, entre outras mudanças
desenho da rede ficarão evidentes, bem importantes.
como aspectos da organização, do regula- A validade formal dos direitos econômi-
mento, recursos e insumos que devem ser cos, sociais e culturais, incluindo o direito à
corrigidos. Tudo isso fornecerá informações saúde, ficou mais enraizada, e a população se
valiosas para investimentos de infraestrutura tornou mais consciente de seus direitos. Sem
planejados no PMM. Segundo o Ministério dúvida, os valores e princípios consagrados
da Saúde, esses investimentos podem chegar, em Alma Ata e a estratégia de saúde baseada
em 2014, a 15 bilhões de dólares em todo o na APS permanecem em vigor – esse é o con-
País, dos quais, 7.400 milhões já estão em texto no qual o PMM está inserido.
execução (BRASIL, [S.d.]). A cooperação da Opas/OMS, pautada nos
O PMM deverá fortalecer as RAS na acordos de cooperação entre Brasil e Cuba
medida em que pressionar a utilização dos para o desenvolvimento do PMM, continu-
instrumentos de gestão e do atendimento em ará até que os Estados-Membros encontrem
rede regulado pelo SUS, mas que não estão utilidade nela. A Opas/OMS tem o compro-
sendo utilizados devido à baixa capacidade misso de monitorar e avaliar o desempenho
resolutiva na Atenção Básica por falta de do PMM, ajudando a identificar obstáculos
médicos. Alguns exemplos nesse sentido são e barreiras em seu desenvolvimento e divul-
os diagnósticos de saúde das comunidades gando as práticas e experiências de sucesso,
atualizados, referência e contrarreferência o que implica, inevitavelmente, fazer consi-
de doentes, cumprimento das guias e dos derações sobre o programa como um todo,
protocolos de atenção, história clínica unifi- e não apenas sobre o componente do pro-
cada, informações sobre diagnósticos e aten- vimento emergencial por meio dos médicos
dimentos com maior precisão, entre outros. cubanos. Para atender a essa responsabilida-
Em suma, as RAS são sistemas e, como de, a Opas/OMS está elaborando um plano
acontece em qualquer sistema, seus ele- de monitoramento e avaliação que será total-
mentos reagem quando ocorrem alterações mente implantado até o fim de 2014.
em algum componente. A chegada de mais Os médicos ainda estão chegando aos
de 14.000 médicos do PMM para o primei- municípios, e brevemente será ultrapassado
ro nível de atenção significa, na prática, um o número de 14.000 profissionais trabalhan-
melhor funcionamento das equipes de Saúde do no primeiro nível de atenção. É cedo para
da Família, aumentando imediatamente o julgamentos. Podemos apenas fazer projeções
acesso e a resolutividade do primeiro nível e hipóteses, como as relatadas neste artigo.
(BRASIL, [S.d.]). O impacto sobre os serviços de média e alta

DIVULGAÇÃO EM Saúde PARA Debate | rio de Janeiro, n. 52, p. 190-201, OUT 2014
200 MOLINA, J.; SUÁREZ, J.; CANNON, L. R. C.; OLIVEIRA, G.; FORTUNATO, M. A.

complexidade será inevitável. Esse impacto desenvolvimento do PMM juntamente com


fortalecerá as RAS se as partes envolvidas se o Ministério da Saúde e em parceria com
empenharem com maturidade para superar instituições nacionais e internacionais. Seus
os obstáculos e deixarem de lado pequenos resultados e lições aprendidas serão com-
interesses, para colocar em primeiro lugar o partilhados com interessados no Brasil e em
cumprimento da missão do SUS. outros países da região e do mundo. À medida
Reforçamos que a Opas/OMS realiza- que informações valiosas sejam obtidas e aná-
rá um processo de acompanhamento do lises concluídas, tornaremos disponíveis. s

Referências

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DIVULGAÇÃO EM Saúde PARA Debate | rio de Janeiro, n. 52, p. 190-201, out 2014
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DIVULGAÇÃO EM Saúde PARA Debate | rio de Janeiro, n. 52, p. 190-201, OUT 2014
202 artigo original | original article

Programa SOS Emergências: uma alternativa


de gestão e gerência para as grandes
emergências do Sistema Único de Saúde
SOS Emergências Program: a management alternative to Unified
Health System’s great emergencies

Luíz Carlos de Oliveira Cecílio1, Ana Augusta Pires Coutinho2, Fernanda Luiza Hamze3,
Alexsandra Freire da Silva4, Lorayne Andrade Batista5, Anna Paula Hormes de Carvalho6

RESUMO O artigo apresenta e discute os pressupostos, os arranjos, as estratégias adotadas, bem


como os resultados preliminares do Programa SOS Emergências do Ministério da Saúde, com
particular ênfase nas taxas de ocupação dos hospitais que dele participam. Reconhecendo
dificuldades tanto de ordem mais interna (a complexa integração do hospital-emergência com
1 Livre Docente pela
Universidade Federal de o hospital-eletivo, as tensões e disputas nos seus órgãos colegiados de condução, e o risco de
São Paulo (Unifesp) – São que se burocratizem, a nem sempre garantida adesão de atores internos à proposta), quanto de
Paulo (SP), Brasil. Professor
Adjunto do Departamento ordem externa (a baixa capacidade regulatória dos gestores, os recursos financeiros sempre
de Medicina Preventiva da aquém das necessidades dos hospitais, as dificuldades para se ter uma Rede de Urgência e
Escola Paulista de Medicina
da Universidade Federal de Emergência funcionando de fato, os diferentes graus de investimentos e compromisso dos
São Paulo (Unifesp) – São gestores, entre outros) o artigo problematiza os horizontes do Programa.
Paulo (SP), Brasil.
luizcecilio60@gmail.com
PALAVRAS-CHAVE Emergências; Administração de serviços de saúde; Política de saúde;
2 Doutora em Ciências da
Saúde pela Universidade Serviço hospitalar de emergência.
Federal de Minas
Gerais (UFMG) – Belo
Horizonte (MG), Brasil. ABSTRACT The paper presents and discusses the assumptions, the arrangements, the strategies
Coordenadora do Programa adopted by, as well as the preliminary results of the Brazilian Ministry of Health’s SOS
SOS Emergências,
Departamento de Atenção Emergências Program, with particular emphasis on occupancy rates of the hospitals that
Hospitalar e Urgência, participate in it. Recognizing the Program’s difficulties both from the inside (complex emergency-
Secretaria de Atenção à
Saúde, Ministério da Saúde hospital integration with elective-hospital, tensions and disputes in their conductive collective
– Brasília (DF), Brasil. bodies, the bureaucratization risk, the resistance of indigenous actors to the program) and
ana.coutinho@saude.gov.br
from the outside levels (low regulatory capacity of managers, financial resources always falling
3 Mestra em Enfermagem
short the hospitals’ needs, the difficulties to have Emergency Care Networks actually working,
pela Universidade
Federal de Minas different degrees of managers’ investment and commitment, amongst others) the paper discusses
Gerais (UFMG) – Belo the horizons of the Program.
Horizonte (MG), Brasil.
Técnica Especializada
da Coordenação KEYWORDS Emergencies; Health services administration; Health policy; Emergency service,
Nacional do Programa
SOS Emergências, Hospital.
Departamento de Atenção
Hospitalar e Urgência,
Secretaria de Atenção à
Saúde, Ministério da Saúde
– Brasília (DF), Brasil.
hamzefernanda@gmail.com

DIVULGAÇÃO EM Saúde PARA Debate | rio de Janeiro, n. 52, p. 202-216, OUT 2014
Programa SOS Emergências: uma alternativa de gestão e gerência para as grandes emergências do Sistema Único de Saúde 203

Introdução • Baixo investimento na qualificação e na


Educação Permanente dos profissionais de
O contexto atual de organização do Sistema saúde;
Único de Saúde (SUS), mesmo com os
avanços e a progressiva expansão da Atenção • Dificuldades na formação de siste-
Básica nas últimas décadas, tem demons- mas regionais e fragilidade política nas
trado que ainda é crucial a contribuição pactuações;
dos hospitais para a realização da integra-
lidade do cuidado. O serviço de urgência e • Incipiência nos mecanismos de referên-
emergência, dentre as áreas de produção do cia e contrarreferência;
cuidado no hospital, destaca-se como espaço
particularmente importante e complexo, • Escassas ações de controle e avaliação das
4 Mestranda em Direção
motivo pelo qual o Ministério da Saúde (MS) contratualizações externas e internas; Médica e Gestão da
tem definido, de modo crescente, políticas Clínica na Universidade
Nacional de Educação a
específicas para a área. • Falta de regulação para garantir acesso ao Distância-Uned/Escola
O panorama dos sistemas de saúde onde meio mais adequado. Nacional de Saúde Pública
da Espanha- Instituto
se insere a atenção às urgências no País, a Carlos III de Madri.
despeito das desigualdades entre suas várias Este panorama nacional, aliado à modifi- Técnica Especializada
da Coordenação
regiões, pode ser assim sintetizado, (BRASIL, cação do perfil epidemiológico e de morbi- Nacional do Programa
2006): mortalidade nas áreas metropolitanas, em SOS Emergências/
Departamento de Atenção
particular, o crescimento da importância Hospitalar e Urgência,
• Baixo investimento em estratégias de pro- das causas externas e das doenças crôni- Secretaria de Atenção
à Saúde , Ministério da
moção da qualidade de vida e saúde; cas, somado à fragmentação da atenção Saúde – Brasília (DF),
e da gestão nas regiões de saúde, levou o Brasil.
alexsandra_freire@hotmail.com
• Modelo assistencial ainda fortemente Ministério da Saúde a definir novas políti-
centrado na oferta de serviços e não nas ne- cas com ênfase na conformação de Redes de 5 Especialista em
Assistência Integral em
cessidades dos cidadãos; Atenção à Saúde (RAS). Publicada em 30 de Cardiologia pela Faculdade
dezembro de 2010, a Portaria nº 4.279 (BRASIL, de Ciências Médicas
de Minas Gerais – Belo
• Falta de acolhimento dos casos agudos de 2010) caracteriza a RAS pela formação de re- Horizonte (MG), Brasil.
menor complexidade na Atenção Básica; lações horizontais entre os diversos pontos Técnica Especializada
da Coordenação
de atenção, tendo como o centro de comu- Nacional do Programa
• Insuficiência de portas de entrada para os nicação a Atenção Básica, a centralidade nas SOS Emergências/
Departamento de Atenção
casos agudos de média complexidade; necessidades em saúde de uma população, a Hospitalar e Urgência,
responsabilização na atenção contínua e in- Secretaria de Atenção à
Saúde, Ministério da Saúde
• Má utilização das portas de entrada da tegral, o cuidado multiprofissional e o com- - Brasília (DF), Brasil.
alta complexidade; partilhamento de objetivos e compromissos lorayne.andrade@gmail.com

com resultados sanitários e econômicos. 6 MBA Executivo em

• Insuficiência de leitos hospitalares qua- Dentre as redes de atenção, destacamos a Gestão Avançada em
Sistemas de Saúde pelo
lificados, especialmente de Unidades de Rede de Atenção às Urgências e Emergências Centro Universitário
Terapia Intensiva (UTI) e retaguarda para (RUE), instituída pela Portaria MS/GM n° São Camilo - Vitória
(ES), Brasil. Técnica
as urgências; 1.600, de 07 de julho de 2011 (BRASIL, 2011a), que Especializada
reformulou a Política Nacional de Atenção da Coordenação
Nacional do Programa
• Deficiências estruturais da rede assisten- às Urgências, definindo os diversos compo- SOS Emergências,
cial – áreas físicas, equipamentos e pessoal; nentes desta rede e os incentivos a serem Departamento de Atenção
Hospitalar e Urgência,
disponibilizados aos estados e municípios Secretaria de Atenção à
• Inadequação na estrutura curricular dos que a implantarem em seus territórios. Tem Saúde, Ministério da Saúde
– Brasília (DF), Brasil.
aparelhos formadores; a finalidade de articular e integrar, no âmbito paulinhahormes@gmail.com

DIVULGAÇÃO EM Saúde PARA Debate | rio de Janeiro, n. 52, p. 202-216, OUT 2014
204 CECÍLIO, L. C. O.; COUTINHO, A. A. P.; HAMZE; F. L.; SILVA, A. F.; BATISTA, L. A.; CARVALHO, A. P. H.

do SUS, todos os equipamentos de saúde, No decorrer do processo de implemen-


objetivando ampliar e qualificar o acesso tação da Rede de Atenção às Urgências e
humanizado e integral aos usuários em si- Emergências, o Ministério da Saúde identifi-
tuação de urgência nos serviços de saúde, de cou a necessidade de induzir e acelerar a quali-
forma ágil e oportuna, e deve ser implemen- ficação da gestão e a melhoria do atendimento
tada, gradativamente, em todo o território nas maiores e mais complexas emergências
nacional, respeitando-se os critérios epide- do País, tendo em vista que o tempo esperado
miológicos e de densidade populacional. Faz para efetivação da RUE seria longo e, portanto,
parte da RUE o componente Hospitalar, que não atenderia a necessidade de impacto mais
foi regulamentado pela Portaria nº 2.395, rápido e resolutivo sobre os problemas das
de 11 de outubro de 2011 (BRASIL, 2011b), e tem grandes emergências. Sendo assim, o MS ins-
por objetivos organizar a atenção às urgên- tituiu, em 08 de novembro de 2011, o Programa
cias nos hospitais, garantindo retaguarda de SOS Emergências (BRASIL, 2012).
atendimentos de média e alta complexidade, Oficializado por meio da Portaria GM nº
e atenção hospitalar nas linhas de cuidado 1.663, de 06 de agosto de 2012, o Programa
prioritárias em articulação com os demais SOS Emergências é uma ação estratégica
pontos de atenção. do Ministério da Saúde em conjunto com
O cenário das emergências evidencia, os estados, municípios e o Distrito Federal
em diversos países do mundo (BITTENCOURT; para a melhoria do atendimento de urgência
HORTALE, 2009), a superlotação como uma re- e emergência no SUS. Como parte da orga-
alidade comum dos serviços de emergência nização do componente hospitalar da RUE,
que funcionam com ‘porta aberta’, atenden- tem como finalidade atuar de forma mais
do à demanda espontânea e referenciada. organizada, ágil e efetiva sobre a oferta da
No Brasil, este fenômeno aponta para uma assistência nas maiores e mais complexas
desproporção entre a demanda dos usuários portas de entrada hospitalares de urgência
que chegam aos serviços e a capacidade de do País e assessorar tecnicamente a equipe
oferta de atendimentos, mas também a in- destes hospitais, para a melhoria da gestão e
suficiente gestão dos serviços (COUTINHO, 2010). da qualidade do atendimento de usuários do
Segundo Bittencourt (2010), como consequên- Sistema Único de Saúde (BRASIL, 2012).
cia imediata da superlotação, vários estudos Embora essas políticas definidas pelo
apontam para o atraso no diagnóstico e no Ministério da Saúde para a superação dos
tratamento dos usuários, desvios das am- problemas evidenciados possam funcionar
bulâncias e significativos atrasos na alta dos como grande pano de fundo ou como certo
pacientes, além da elevação da mortalida- demarcador do campo, o modo de operar e
de hospitalar. A indisponibilidade de leitos gerir os serviços de urgência e emergência
para internação nos hospitais faz com que é muito variado em função da missão, do
os pacientes ocupem um espaço valioso no perfil assistencial, do modelo jurídico, da
pronto socorro ou fiquem temporariamente incorporação tecnológica, da sua inserção na
colocados em corredores do hospital até que rede de atenção e também da organização e
sejam disponibilizados leitos na internação. capacidade do sistema de saúde local, entre
Há também evidências de que o volume de outros itens. Ou seja, há desafios na opera-
serviços oferecidos à população brasileira cionalização de tais políticas, que precisam
ainda é insuficiente. De qualquer modo, re- ser debatidas, contextualizadas e ‘traduzi-
conhece-se que esses recursos poderiam ter das’ nos espaços micropolíticos de produção
uso mais adequado e racional, caso ocorres- do cuidado, como é o que se pretende neste
sem reordenações no modelo de gestão e de artigo ao analisar a experiência de implanta-
atenção (VASCONCELOS, 2005). ção do Programa SOS Emergências.

DIVULGAÇÃO EM Saúde PARA Debate | rio de Janeiro, n. 52, p. 202-216, out 2014
Programa SOS Emergências: uma alternativa de gestão e gerência para as grandes emergências do Sistema Único de Saúde 205

Apresentação Trauma Senador Humberto Lucena – João


Pessoa (PB); Hospital e Pronto Socorro Dr.
O Programa SOS Emergências teve início em João Lúcio Pereira Machado – Manaus
novembro de 2011, com sua implantação em (AM); Hospital de Urgência de Teresina
11 unidades selecionadas e com a meta de ser Prof. Zenon Rocha – Teresina (PI); Hospital
implantado em 31 unidades. do Trabalhador – Curitiba (PR); Hospital
Para o ingresso no Programa SOS e Pronto Socorro Municipal de Cuiabá –
Emergências foram consideradas as unida- Cuiabá (MT); Hospital Geral do Estado Dr.
des hospitalares que atendiam aos requi- Osvaldo Brandão Vilela – Maceió (AL); e
sitos da Portaria nº 2.395, de 11 de outubro Hospital Governador João Alves Filho –
de 2011, para definição de porta de entrada Aracaju (SE).
estratégica na RUE. Assim, a partir da defini- Em 2014, mais nove unidades foram inse-
ção conjunta entre as três esferas de governo ridas no programa, sendo que três estão em
e tendo cumprido os requisitos, os hospitais processo de adesão, contemplando todos os
integrantes receberam a orientação para par- estados da Federação: Hospital Governador
ticiparem do programa através da realização Celso Ramos – Florianópolis (SC); Hospital
de reuniões preparatórias com os gestores Geral de Rio Branco – Rio Branco (AC);
e equipe técnica das secretarias municipais Hospital Geral de Roraima – Boa Vista (RR);
e estaduais de saúde, além de com o grupo Santa Casa de Campo Grande – Campo
condutor da RUE, dirigentes e equipes do Grande (MS); Hospital Geral de Palmas Dr.
hospital. Um termo de compromisso entre Francisco Ayres – Palmas (TO); Hospital
os governos federal, estadual, municipal e a de Urgência Municipal Clementino Moura
direção do hospital foi assinado e publicado Socorro – São Luís (MA); Hospital São Lucas
em diário oficial. – Vitória (ES); Hospital de Emergências do
Em 2011 e 2012, iniciaram-se 12 unida- Amapá – Macapá (AP); e Hospital Geral de
des hospitalares: Instituto Dr. José Frota Fortaleza – Fortaleza (CE).
– Fortaleza (CE); Hospital da Restauração – Dentre as dificuldades enfrentadas
Recife (PE); Hospital Geral Roberto Santos pelos hospitais antes do Programa SOS
– Salvador (BA); Hospital de Urgências de Emergências, destacam-se: a superlotação,
Goiânia – Goiânia (GO); Hospital de Base – com muitas macas no corredor; a forma de
Brasília (DF); Hospital João XXIII – Belo acesso sem avaliação do risco; o tempo de
Horizonte (MG); Santa Casa de Misericórdia espera elevado para atendimento e para
de São Paulo – São Paulo (SP); Casa de Saúde cirurgias; a falta de equipes qualificadas
Santa Marcelina – São Paulo (SP); Hospital para o atendimento emergencial; a falta de
Miguel Couto – Rio de Janeiro (RJ); Hospital médicos diaristas na emergência; o insufi-
Albert Schweitzer – Rio de Janeiro (RJ); ciente sistema de gestão e monitoramento
Hospital Nossa Senhora da Conceição – Porto hospitalar e, em particular, na emergência, a
Alegre (RS); e Hospital Metropolitano de falta de equipamentos e materiais para a as-
Urgência e Emergência – Ananindeua (PA). sistência; a área física da emergência inade-
Em 2013, mais dez unidades hospitalares quada; e a falta de leitos de retaguarda para
foram inseridas no programa, escolhidas internação. Para o enfrentamento dessas
prioritariamente para contemplar todas dificuldades, definiu-se que a estratégia do
as cidades da Copa do Mundo: Hospital e programa deveria estar em ofertar apoio à
Pronto Socorro João Paulo II – Porto Velho implementação de ferramentas de gestão,
(RO); Hospital Monsenhor Walfredo Gurgel monitoramento permanente do processo de
– Natal (RN); Hospital Getúlio Vargas – implantação e seus indicadores, capacitação
Recife (PE); Hospital de Emergência e das equipes em tecnologias assistenciais e de

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gestão, e investimentos para a melhoria da videomonitoramento.


estrutura física e tecnológica da unidade. A primeira ação efetiva do NAQH é a reali-
O processo se inicia com a formação do zação da oficina de elaboração do diagnósti-
Núcleo de Acesso e Qualidade Hospitalar co e plano de ação. O diagnóstico situacional
(NAQH), conforme previsto na Portaria nº do hospital é realizado com foco em quatro
2.395, de 2011, que tem por objetivo cons- eixos prioritários: o acesso do paciente à
truir processo seguro e qualificado de gestão unidade e a relação com a Rede de Atenção
da emergência e do hospital, compartilhado à Saúde; o processo de trabalho na emergên-
com a equipe do hospital e das secretarias cia; a relação da emergência com as demais
de saúde. A constituição do núcleo inclui unidades do hospital; e o processo de saída
atores estratégicos internos e externos à or- e articulação do hospital com a rede de cui-
ganização, como, por exemplo, coordenador dados municipal e estadual. A partir desse
da Urgência/Emergência, coordenador das diagnóstico, é traçado um plano de ação para
unidades de internação e representante do o enfrentamento das dificuldades apontadas.
gestor local, entre outros. Observa-se que o plano resulta de processo
As atribuições dos NAQH contemplam: de diagnóstico que busca conectar a emer-
a garantia do uso dinâmico dos leitos hos- gência ao sistema de saúde e ao hospital.
pitalares, promovendo a interface com as Entretanto, este tem sido um dos desafios de
Centrais de Regulação de urgência e inter- maior dificuldade – a desconexão e disputa
nação; a permanente articulação entre a da emergência com o restante do hospital e
unidade de urgência e as unidades de inter- com o sistema, como será apresentado com
nação; e o monitoramento dos indicadores mais detalhes na discussão.
de taxa de ocupação e do tempo de espera O acolhimento com classificação de risco
para atendimento na emergência e para in- é uma diretriz transversal a todos os pontos
ternação, entre outros, constituindo-se como de atenção de urgência, sendo imprescindí-
espaço de discussão e gestão participativa. vel que o paciente seja acolhido por equipe
Cada hospital conta com apoiadores do capacitada para definir o nível de gravidade
MS para atuação local e matricial. São pro- e garantir encaminhamento ao atendimen-
fissionais com elevada experiência em gestão to específico. Tem como objetivo principal
hospitalar, com a função de acompanhar e priorizar o atendimento do paciente con-
oferecer suporte técnico para a equipe diri- forme seu risco clínico, e não por ordem de
gente. O Apoiador Local permanece no hos- chegada. O uso de protocolo de classifica-
pital de forma intensiva para acompanhar e ção de risco seguro e validado, bem como a
apoiar a gestão da emergência e do hospital, efetiva capacitação da equipe, são condições
e exerce papel de interlocução com as secre- essenciais para que as unidades de aten-
tarias de saúde e a coordenação nacional do dimento de urgência possam implantar o
programa. O Apoiador Matricial faz agenda acolhimento com classificação de risco. O
estratégica com o hospital periodicamente, Ministério da Saúde oferta, desde 2012, aos
para discussões e ações mais aprofundadas, hospitais integrantes do programa, capacita-
identificando os nós críticos da gestão, pro- ção no Sistema Manchester de Classificação
pondo estratégias em conjunto com a equipe de Risco, por ser um protocolo seguro e
do NAQH e interagindo, quando necessário, validado internacionalmente, por meio de
com gestores municipais e estaduais. São 29 parceria com os Hospitais de Excelência
apoiadores locais e nove matriciais. Além participantes do Programa de Apoio ao
desses, a equipe de coordenação do MS conta Desenvolvimento do Sistema Único de
com sete profissionais para apoio e acom- Saúde (Proadi-SUS) e o Grupo Brasileiro de
panhamento da implantação, incluindo o Classificação de Risco. Do total de unidades

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participante, todas do primeiro ciclo tiveram Japão, com o objetivo de controlar a produ-
seu protocolo e fluxos revistos. Do segundo ção e os estoques, com fins de gerenciamen-
ciclo, seis. As demais estão em processo de to e de diminuição de custos. No Brasil, no
capacitação e reformulação da classificação final dos anos 1990, o Kanban foi difundido
de risco. para a área hospitalar como ferramenta de
Uma das importantes estratégias para monitoramento da ocupação e da perma-
diminuir a superlotação da emergência é a nência dos pacientes nos leitos hospitalares.
disponibilização de leitos de retaguarda, que É utilizada uma sinalização através das cores
podem estar localizados no próprio hospital, e são registrados o tempo e os motivos de
ou em outro hospital público contratado, ou permanência. A partir da gestão das infor-
privado parceiro. No entanto, em algumas mações coletadas, a equipe multidisciplinar
regiões, é grande a dificuldade de se obter pode agilizar exames, solicitar avaliação de
leitos de retaguarda, seja porque essas unida- outras especialidades, providenciar equi-
des estão com a ocupação total da área física, pamentos para a alta, orientar os familiares
seja por falta de oferta no sistema de saúde ou etc. O Kanban está implantado em todas as
por falta de profissional médico para sua dis- unidades do primeiro, oito do segundo ciclo
ponibilização. Foram disponibilizados 2.036 e em oito unidades do terceiro ciclo.
leitos novos ou qualificados para 22 hospi- Embora seja de fácil manuseio, esta tec-
tais, para transferência de pacientes acima nologia nem sempre é bem aceita, pois sua
de 24 horas, que têm indicação de interna- gestão se torna um desafio para a equipe,
ção. Para tanto, houve incremento de recurso pelo seu alto grau de impacto sobre a micro-
financeiro no valor de R$ 189.351.852,96/ política do hospital. Para Cecílio (2009), a mi-
ano. Entretanto, disponibilizar o leito sem a cropolítica nas organizações de saúde é:
adequada gestão não possibilita o resultado
esperado em relação à redução da taxa de O conjunto de relações que estabelecem en-
ocupação. Foi necessário incentivar a implan- tre si os vários atores organizacionais, for-
tação do Núcleo Interno de Regulação (NIR) mando uma rede complexa, móvel, mutante,
para promover o uso racional e qualificado mas com estabilidade suficiente para consti-
desses leitos de retaguarda. tuir uma determinada ‘realidade organizacio-
O NIR tem o objetivo de gerenciar e oti- nal’ – dessa forma, relativamente estável no
mizar os leitos hospitalares, monitorando o tempo, podendo, assim, ser objeto de estudo
fluxo do paciente desde sua chegada, e o pro- e intervenção (p. 547).
cesso de internação, movimentação e alta.
Dessa forma, o NIR agiliza as altas; assume É na micropolítica que se produz o
a regulação dos leitos da unidade de acordo cuidado com toda a complexidade tecno-
com as necessidades do paciente, respeitan- lógica que ele exige, seja ela material e/ou
do o perfil assistencial e a capacidade insta- não material. É o espaço também da disputa
lada da unidade; e faz a interface do hospital entre atores com seus projetos distintos, nem
com as centrais de regulação e os núcleos sempre coincidentes com o da direção, e é,
internos de outras unidades, solicitando as centralmente, ocupado pelo usuário e suas
transferências para os leitos de retaguarda, demandas. É onde a vida organizacional se
além de monitorar os indicadores de média constitui e se concretiza através da produção
de permanência e taxa de ocupação. e reprodução permanente dos processos de
Para monitorar o tempo médio de perma- cuidado. O Kanban afeta essa micropolítica
nência dos pacientes na emergência, o pro- ao desvelar aspectos ou falhas na produção
grama induz à implantação da ferramenta do cuidado não facilmente visíveis para os
Kanban. Tal tecnologia foi criada em 1953, no gestores do hospital, levando, quase sempre,

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à necessidade de se introduzir mudanças a superação da concepção do trabalho em


nem sempre coincidentes com os interesses equipe como a simples somatória de ações
corporativos e com o forte autogoverno dos específicas de cada profissional, atuando
trabalhadores do hospital. em seus núcleos profissionais próprios, em
Em relação à estrutura física e tecnológica, cada uma das unidades de trabalho. A linha
todos os hospitais participantes do programa de cuidado implica na adoção de arranjos
apresentam deficiências, revelando as con- institucionais, modos de operar a gestão do
dições inadequadas para o atendimento e a cotidiano, que resultam em intenso e regular
realização do trabalho. Para cada um dos hos- processo de comunicação entre as equipes,
pitais participantes foram disponibilizados mobilizadas por ações de apoio mútuo, ar-
recursos no valor R$ 3 milhões para realiza- ticulando um grande número de trabalha-
ção de reforma e/ou compra de equipamentos dores no processo de cuidar (CECÍLIO; MERHY,
como previsto na RUE. Entretanto, recursos 2003). Evidentemente, tal tipo de transforma-
complementares foram disponibilizados con- ção não é muito fácil de se conseguir, tendo
forme avaliação de necessidades locais. em vista os modos instituídos de trabalho e
Os recursos investidos totalizaram, até gestão muito arraigados na vida hospitalar
abril de 2014, R$ 182.224.747,05, sendo R$ (CECÍLIO; MENDES, 2004).
133.288.390,14 para aquisição de equipamen- O funcionamento de linhas de cuidado,
tos e R$ 48.936.356,91 para reforma/amplia- com efetivo impacto positivo na integralida-
ção das 31 unidades. de, na continuidade e na qualidade do cuidado
Toda execução financeira e física é moni- prestado, implica no reconhecimento do tra-
torada pela coordenação nacional semanal- balho como algo vivo, em permanente insti-
mente, o que possibilita o acompanhamento tucionalização, agregando constantemente
do processo de licitação para aquisição dos novos saberes e experiências. A discussão
equipamentos e/ou reforma da unidade. das linhas de cuidado no hospital é também
Este monitoramento é lançado no sistema e um dispositivo com impacto micropolítico,
disponibilizado no portal da Sala de Apoio à e requer a participação dos profissionais
Gestão Estratégica (Sage/MS). envolvidos na produção do cuidado, nem
Como critério para o ingresso no sempre possível em alguns contextos de
Programa SOS Emergências, o hospital deve forte conservação de modos de produção
estar habilitado em, pelo menos, uma das do cuidado. Foram realizadas oficinas para
seguintes linhas de cuidado: cardiovascular, estruturação das linhas de cuidado, sendo
neurologia/neurocirurgia, traumato-ortope- que o Hospital Roberto Santos e o Hospital
dia, ou ser referência em pediatria. Segundo Municipal Miguel Couto foram os que mais
Cecílio e Merhy (2003), a linha de cuidado é avançaram nesse processo, embora ainda de
uma complexa trama de atos, procedimen- modo incipiente, e exigindo acompanha-
tos, fluxos, rotinas e saberes, em um processo mento e avaliação constantes.
dialético de complementação, mas também A Atenção Domiciliar faz interface com
de disputa, que vão compondo o que enten- o Programa SOS Emergências e se constitui
demos como cuidado em saúde. A maior ou em oportunidade para redução da taxa de
menor integralidade da atenção recebida ocupação, por evitar a internação quando o
resulta, em boa medida, da forma como se tratamento já está sendo realizado em casa,
articulam as práticas dos trabalhadores. ou realizar a desospitalização precoce, an-
A adoção de linhas de cuidado como eixo tecipando a alta hospitalar com o cuidado
estruturante da gestão representa uma no- continuado em casa, realizado por equipe
vidade na vida hospitalar, podendo ser vista multidisciplinar. O objetivo é diminuir o
como uma tecnologia instituinte que propõe tempo de internação do paciente no hospital

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Programa SOS Emergências: uma alternativa de gestão e gerência para as grandes emergências do Sistema Único de Saúde 209

e proporcionar conforto para família e pa- de coordenação e disponibilizados na Sala de


ciente. Para tanto, foi publicada a Portaria Apoio à Gestão Estratégica (Sage/MS) para
nº 1.208, de 18 de junho de 2013, que dispõe avaliação do desempenho e gestão dos re-
sobre a integração do Programa Melhor em sultados. Outras informações que compõem
Casa (Atenção Domiciliar no âmbito do SUS) o monitoramento também são lançadas no
com o Programa SOS Emergências (BRASIL, FORM-SUS pela equipe de coordenação.
2013). Oficinas de implantação e estrutura- Essa dificuldade levou o MS a investir na in-
ção da Equipe Multiprofissional de Atenção formatização e na organização da produção
Domiciliar (Emad)/SOS nos hospitais inte- de informação hospitalar. Disponibilizou o
grantes do programa são ofertadas conforme sistema de gestão hospitalar próprio, o e-SUS
demanda do gestor, articuladas com a coor- Hospitalar, para três hospitais do primeiro
denação de Atenção Domiciliar do MS. ciclo: Instituto Dr. José Frota (Fortaleza/
A qualificação dos profissionais de saúde CE), Hospital Municipal Miguel Couto (RJ) e
é condição para a melhoria da qualidade Hospital Geral Roberto Santos (Salvador/BA).
assistencial. Até abril de 2014, foram capa- Oito hospitais já possuem outros sistemas de
citados mais de nove mil profissionais dis- informação em implantação e optaram por
tribuídos nos 31 hospitais participantes do mantê-los. Um Web Service foi desenvolvi-
programa por meio do Programa de Apoio do para que os dados desses hospitais sejam
ao Desenvolvimento Institucional do SUS enviados para o Ministério da Saúde diaria-
(Proadi-SUS). Destaca-se o curso de espe- mente, para a composição dos indicadores
cialização em Gestão de Emergências no de desempenho e disponibilização na Sala de
SUS, que envolveu 22 hospitais participan- Apoio à Gestão Estratégica (Sage), ampliando
tes do Programa SOS Emergências e dois o acesso a outros indicadores hoje indisponí-
hospitais de administração do Ministério da veis. Encontra-se em fase de testes.
Saúde. Concluíram o curso em abril de 2014, A Sage-MS dispõe de diversas telas onde
440 profissionais. Foram instalados equipa- se pode verificar a evolução da implantação
mentos de videoconferência, utilizando-se do programa. Em cada uma das informações,
de metodologia ativa EAD – ensino a distân- existe um link para busca e detalhamento
cia, sendo uma estratégia importante para das informações.
fortalecer a gestão e construir autonomia em Dentre os indicadores monitorados, a
relação ao apoio local. taxa de ocupação é o principal, pois reflete
a superlotação da emergência. A meta é não
ultrapassar 100% da capacidade operacio-
O monitoramento nal para pacientes com mais de 24 horas de
permanência na observação da emergência.
Quando o programa teve início, em 2011, Este indicador é acompanhado a partir dos
observou-se que todos os hospitais possuíam dados inseridos pelo hospital diariamente no
indicadores gerais de pacientes internados, sistema online (FORM-SOS). Os gráficos 1 e 2
mas nenhum na unidade de urgência. Não apresentam a comparação das taxas de ocu-
há qualquer informação de quantitativo de pação de março de 2012 nos hospitais e a taxa
pacientes, média de permanência, taxa de de ocupação em julho de 2014. É importante
ocupação e outros. Em função deste cenário, esclarecer que dois hospitais do primeiro
o MS desenvolveu um formulário de base ciclo e um do segundo ciclo tinham taxa de
Web para o registro diário dos dados dos ocupação bem abaixo de 100% por terem o
hospitais (FORM-SOS), a partir de março atendimento referenciado, o que mantinha o
de 2012. A coleta e o lançamento realizados número de atendimentos aquém de sua capa-
pelo hospital são acompanhados pela equipe cidade, e o principal objetivo foi ampliar sua

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210 CECÍLIO, L. C. O.; COUTINHO, A. A. P.; HAMZE; F. L.; SILVA, A. F.; BATISTA, L. A.; CARVALHO, A. P. H.

Gráfico 1. Indicador taxa de ocupação – Hospitais que integraram o Programa SOS Emergências em 2011 – primeiro ciclo

350

300

250

200
mar/12
150
jul/14

100

50

.
...

...

...
X..

..
SC
HU

HM

HM

IJF
AS

HR

RS

M
DF

HJ

GH

HS
HG
HE

HB

*Início dos dados a partir de julho/2012

Fonte: Sala de Apoio à Gestão Estratégica (Sage/MS)

Gráfico 2. Indicador taxa de ocupação – Hospitais que integraram o Programa SOS Emergências em 2013 – segundo
ciclo

400

350

300

250

200 jun/13
jul/14
150

100

50

0
..

...

S...
LP.

HM
V

E
SE

HL

HT
PII

HP

HG
HG

HU

HJ

HU
HJ

HS

Fonte: Sala de Apoio à Gestão Estratégica (Sage/MS)

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Programa SOS Emergências: uma alternativa de gestão e gerência para as grandes emergências do Sistema Único de Saúde 211

participação no atendimento de urgência. Emergências. foi realizada, pelo Ministério


As melhorias resultaram em redução da da Saúde, a Primeira Pesquisa de Satisfação
taxa de ocupação em quase todos os hospi- do Usuário, nos 11 primeiros hospitais inte-
tais participantes do programa. Embora a grantes. A metodologia utilizada na pesquisa
meta de 100% de ocupação não tenha sido consistiu na aplicação de um questionário
alcançada por todos os hospitais do primei- único, por telefone. Foram entrevistados 300
ro ciclo, observa-se redução significativa ao usuários de cada unidade, sobre a satisfação
ser comparada com a taxa apresentada em no atendimento prestado. Foram 39 ques-
março de 2012, período em que foi implan- tões, que abordaram desde o atendimento
tado o sistema. É um indicador de difícil propriamente dito dos profissionais até as
alcance da estabilidade em função dos vários condições de infraestrutura. Os resultados
fatores que interferem, tais como: disponi- apontam para uma média de 8,08 de satis-
bilidade de leitos de retaguarda; adequada fação dos usuários, em uma escala de 1 a 10,
intervenção sobre os motivos da média de sendo que 86% dos usuários buscariam no-
permanência – gestão do Kanban; horizon- vamente o serviço do hospital ou o recomen-
talizacão do cuidado; e alta rotatividade das daria para parentes ou amigos.
equipes da emergência, agravada por uma A segunda pesquisa foi finalizada em 03
realidade presente em todos os hospitais – a de fevereiro de 2014, com 300 entrevistas
falta de profissionais médicos. por hospital. A metodologia utilizada foi a
O acompanhamento do fluxo de pacientes mesma da primeira pesquisa, e foi acrescido
é realizado por sistema de videomonitora- um hospital do segundo ciclo, tendo em vista
mento na entrada e nas áreas de circulação que os hospitais do segundo ciclo não tinham
da emergência do hospital. O sistema foi um ano de implantação do programa. Uma
instituído com o objetivo de acompanhar re- diferença nos resultados, se comparados
gularmente a situação das emergências, por com o ano anterior, foi a piora com relação
meio do painel de imagens, e comunicar aos à orientação recebida em caso de demora no
responsáveis, nas unidades, as não confor- atendimento, com três em cinco entrevis-
midades observadas. Conta hoje com mais tados alegando ‘não terem sido orientados’
de 150 imagens visualizadas, com meta de quanto ao porquê da demora. Praticamente
chegar a 300 imagens visualizadas e moni- nove em dez entrevistados recomendariam o
toradas. Os equipamentos garantem vídeos serviço dos hospitais para parentes e amigos,
analíticos e alertas de imagens fora da con- resultado melhor do que o de 2012.
formidade, para as providências do hospital. Nessa apresentação buscou-se demons-
Os avanços e entraves apresentados no pro- trar que o Programa SOS Emergências tem
cesso de implantação em cada hospital são objetivado implantar ferramentas que visam
acompanhados e discutidos no Gabinete do à melhoria da gestão de leitos; à garantia do
Ministro e na Secretaria de Atenção à Saúde. acesso qualificado por risco; à humanização
Por ser um programa prioritário da Presidência e à melhoria da qualidade da assistência com
da República, é monitorado pela Casa Civil. Até redefinição dos fluxos e processos; à qualifi-
2013, o monitoramento era realizado quinze- cação profissional; e à melhoria da articulação
nalmente e, em 2014, passa a ser mensal, com com a rede de serviços, com acompanhamen-
acompanhamento online através do acesso ao to da implementação de forma intensiva para
portal Sage e pelo Sistema de Informação da redução da superlotação. Mas temos grandes
Presidência da República (SIM-PR). Também desafios, que serão discutidos a seguir.
são realizadas oficinas de alinhamento e ava- Diante do apresentado e buscando uma
liação com os apoiadores, bimensalmente. melhor compreensão dos resultados, apre-
Após um ano de implantação do SOS sentamos a seguir o diagrama que representa

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Figura 1. Eixos que configuram a sustentabilidade do Programa

ASSISTENCIAL

ESTRUTURAL

FINANCEIRO

POLÍTICO
Comunicação

EIXOS DE SUSTENTAÇÃO
PROGRAMA SOS EMERGÊNCIAS

Fonte: Coordenação Nacional do Programa SOS Emergências/ MS

a sustentabilidade do programa: necessarias à sua sustentação.


Eixo assistencial: relativo à produção Os eixos são interdependentes e inter-
do cuidado, à micropolítica do hospital e à ferem diretamente nos avanços ou dificul-
relação com o sistema de saúde. É a efetiva- dades, como poderemos ver na discussão
ção da linha do cuidado e a correlação das abaixo.
ferramentas e tecnologias de gestão dos pro-
cessos assistenciais.
Eixo estrutural: relativo à organização Discussão
institucional. Diz respeito às infraestruturas
física e tecnológica, aos recursos humanos e Como todas as políticas elaboradas pelo
à logística; ao modelo de gestão. Ministério da Saúde, o Programa SOS
Eixo financeiro: diz respeito aos recur- Emergências parte do pressuposto de ser
sos financeiros disponibilizados, a fontes de possível induzir, de Brasília (DF), transfor-
receitas; à relação entre receita e despesa mações micropolíticas nas políticas de saúde
do hospital; ao repasse de investimentos e locais, em particular, nos serviços hospitala-
custeio. res de urgência, e de acordo com as diretrizes
Eixo político: diz respeito à relação com e princípios do SUS. É sabido que todas essas
os gestores, à gestão tripartite; à autonomia políticas indutoras fazem do financiamento
federativa e à relação com o Ministério da sua ‘moeda’ forte de conversação (e ‘con-
Saúde. Define a real adesão dos gestores ao vencimento’) com os gestores. Porém, nem
programa, sua implementação, monitora- sempre isto é muito simples e devidamente
mento, avaliação e garantia de continuidade considerado ou problematizado quando da
A comunicação transversaliza todos os formulação das políticas, em particular a
eixos como meio para permear as relacões, complexidade que está jogo no encontro da

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Programa SOS Emergências: uma alternativa de gestão e gerência para as grandes emergências do Sistema Único de Saúde 213

‘grande política’ com os processos micropo- do que político, uma aposta no campo do
líticos das organizações. É essa discussão jogo social, e, portanto, de final aberto
que se deseja fazer aqui para a finalização (MATUS, 1987);
do artigo, qual seja, tentar apontar ou an-
tecipar algumas dificuldades que deverão • A complexidade do processo regulatório
ser enfrentadas, ou já o estão sendo, para o no Brasil, hoje, com suas múltiplas lógicas
sucesso do Programa SOS Emergências, que de regulação em jogo (CECíLIO et al., 2013),
tem sua ênfase no processo de apoio à gestão aliada à baixa capacidade regulatória dos
do hospital: gestores, pode ser vista como um dos en-
traves para a efetivação da RUE e, portanto,
• É muito difícil conseguir transforma- do próprio programa. Não basta abrir leitos
ções mais duradouras na emergência sem de retaguarda, a sua gestão é dependente de
algumas transformações mais gerais no uma efetiva regulação interna e externa;
hospital, já que o programa tem como sua
grande aposta a implantação de linhas de • A nem sempre fácil articulação entre um
cuidado, em particular, a conexão bem su- ‘hospital-emergência’ (aquele cuja lógica é
cedida, funcional e facilitada da emergência comandada pelos atendimentos de urgên-
com outras ‘estações de cuidado’ internas cia-emergência, pela pressão da demanda)
do hospital. Muito difícil avançar para uma com o ‘hospital-eletivo’ (comandado por
efetiva qualificação das urgências sem a uma lógica mais programada, mais ‘racio-
garantia mínima de tais conexões. Nesse nal’, mais ‘controlada’) segue sendo um pro-
sentido, cabe a responsabilidade imensa, blema em todos os hospitais trabalhados. É
para o NIR, de ser capaz de produzir novas como se fossem dois hospitais trabalhando
conexões internas no hospital, viabilizando com lógicas nem sempre complementares,
intensos processos de conversão e pactua- e muitas vezes francamente conflitivas e
ção entre os múltiplos atores institucionais, em disputa;
o que, por si só, é uma tarefa altamente
desafiadora; • O SOS Emergências é parte da RUE,
insere-se nela, e advém dela. Entretanto,
• Os NAQH, com sua estrutura interdisci- as falhas no processo do cuidado em rede
plinar, interdepartamental, interprofissio- ficam mais evidenciadas a partir do pro-
nal e mesmo interinstitucional, do mesmo grama porque não se consegue uma efetiva
modo que o NIR, são dispositivos políticos integração solidária entre os diversos ser-
por natureza, com tudo o que isso implica. viços da rede, reforçando a centralidade
Que eles funcionem como espaços políti- da RUE para o sucesso do Programa SOS
cos, e não burocráticos ou burocratizados, Emergências, o que não está garantido a
é um dos pressupostos para o seu sucesso princípio;
como condutores das mudanças pretendi-
das, constituindo-se em espaços efetivos de • O fato do SOS trabalhar com forte lógica
negociação e pactuação entre atores com de monitoramento externo é um fato que
interesses e controle de recursos múltiplos tem que ser conduzido com atenção para
(CECÍLIO, 1999); não gerar resistências e deve ser devida-
mente transformado em processos mais
• Pelos dois motivos acima, é possível negociados internamente a partir do forta-
afirmar, de saída, que o SOS é um processo lecimento de espaços coletivos de gestão.
menos técnico-burocrático-administrativo E mais, é necessário ter clareza sobre os

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limites de tais controles externos, do tipo de saúde. Está em jogo um outro conceito
pan-óptico (FOUCAULT, 2000), tendo em vista a de possibilidade de a sociedade (e suas
complexidade da vida do hospital; instituições) implementar estratégias
concretas de defesa e valorização da vida em
• Os diferentes graus de adesão dos vários todas as suas dimensões, incluindo a atenção
hospitais (de suas direções e gestores) ao com as pessoas que se sentem em situações
programa dá ritmos diferenciados entre de fragilidade e necessitadas de cuidados em
eles no alcance de resultados, na medida saúde.
em que têm relação com o modo como in- A garantia de sucesso do Programa SOS
vestirão – mais ou menos – na proposta do Emergências não está dada, em função das
programa; fortes externalidade e heteronomia que ele
traz como marca, por ser uma ‘política do
• A insuficiência dos recursos financeiros Ministério’, passando pela dura institucio-
frente os gastos dos hospitais, a morosida- nalidade dos hospitais até o que poderia ser
de dos processos de reforma e aquisição de chamado de ‘certa cultura’ que prevalece
materiais e a dificuldade de chegada dos nos hospitais hoje. Quando os trabalhadores
recursos destinados ao hospital para obter produzem o imaginário de que ‘é normal ter
as melhorias na estrutura física e tecnoló- macas’ no corredor, quando as equipes e ges-
gica dificultam a percepção dos trabalha- tores não mobilizam tudo de que dispõem
dores e usuários quanto aos impactos da para atender melhor as pessoas, quando
implantação do programa. A difícil gestão se naturalizam as péssimas condições de
de recursos humanos, com grandes dificul- atendimento, há um longo caminho a ser
dades de fixação de pessoal, em particular percorrido.
os médicos; O Programa SOS Emergências traz a marca
de não ser um programa extensivo, que tem
• A relação interfederativa do estado brasi- a pretensão de alcançar grande número de
leiro, que coloca os limites para a execução unidades hospitalares. Ao contrário, ele é
da política, uma vez que nem sempre os uma proposta intensiva, que pretende provo-
recursos disponibilizados são devidamente car uma indução na organização da Rede de
transferidos aos hospitais. Atenção às Urgências e Emergências (RUE).
Almeja produzir exemplos, experimentos/
intervenções que possam ser utilizados em
Considerações finais qualquer unidade da RUE, como um efeito de
demonstração, instaurando ciclos virtuosos
O SOS tem como ponto de partida ético- onde prevalecem ciclos viciosos de descaso
político a busca de alternativas para a e descuidado. Tem pretensões políticas e pe-
degradação do atendimento de urgência e dagógicas muito ambiciosas, e é de alto risco
emergência nos grandes hospitais do País. É devido aos contextos em que está sendo
um projeto de governo ainda em construção, operacionalizado. Portanto, sua implantação
que tem como principal desafio a sua real está sendo processual, produzida no e pelo
capacidade de promover mudanças positivas coletivo de profissionais que o implementa,
no atendimento prestado aos cidadãos. Seus em ato, nas intervenções que vai produzindo
desafios são inúmeros, mas, talvez o maior e nos processos de reflexões permanentes
de todos esteja no enfrentamento do modo que vem provocando, para alcançar os obje-
como a sociedade se pensa e se produz, tivos propostos que, como apresentados, são
incluindo o funcionamento das organizações tão caros à sociedade brasileira.

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Programa SOS Emergências: uma alternativa de gestão e gerência para as grandes emergências do Sistema Único de Saúde 215

Por tudo isso, é possível dizer que o ainda deve ser visto como uma aposta, como
Programa SOS Emergências proposto pelo um jogo de final aberto, por ter que enfren-
Ministério da Saúde para qualificar as tar a dura institucionalidade dos hospitais
grandes emergências do País, com todas e os complexos condicionantes sistêmicos
as características de uma política de para seu sucesso e sustentabilidade, cuja
Estado generosa, consentânea com um superação ainda não está garantida. s
grande anseio da população brasileira,

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