Josiély Koerich1
Janine Gomes da Silva2
Resumo: Entre as décadas de 1960, 1970 e 1980, todos os países do Cone Sul vivenciaram
ditaduras militares que passaram a exercer um rígido controle sobre a sociedade. Tal
controle, além de contar com ações de caráter clandestino, era realizado oficialmente por
organizações burocráticas que redatavam informes, faziam registros, organizavam
prontuários e instituíam arquivos. Com o término (ou mesmo durante) as ditaduras no Cone
Sul, muitos destes arquivos foram destruídos ou desapareceram, todavia, outros,
permaneceram, sejam escondidos, sob a égide de instituições governamentais, entre outras
formas. No contexto da redemocratização, alguns desses arquivos e seus acervos foram
descobertos ou se tornaram de domínio público e, assim como outros lugares, dentre eles os
museus, vêm se estabelecendo como um lócus de grande importância para (re)configurar e
(re)significar a história e a memória do período da ditadura. Deste modo, nesse trabalho,
considerando esses arquivos e museus como ‘espaços de memória’, nos centraremos em
uma análise comparativa entre Brasil e Paraguai. Neste país, nos dedicaremos a análise do
denominado ‘Archivo del Terror’ (oficialmente Centro de Documentación y Archivo para la
Defensa de los Derechos Humanos), assim como de dois museus: o Museo de la Justicia e o
Museo de las Memorias, ambos em Assunção. No Brasil, inferiremos sobre o acervo
documental do Arquivo Edgard Leuenroth, mais especificamente ao projeto ‘Brasil Nunca
Mais’, doado a Universidade de Campinas. Com auxilio de entrevistas realizadas e de
notícias veiculadas em diferentes jornais e sites destes países, analisaremos em uma
perspectiva comparativa, como estes arquivos e museus, constituem-se em espaços de
‘dever de memória’ para a história recente do Brasil e Paraguai. Utilizando como suporte
teórico a História Oral, procuraremos perceber ainda como tais ‘espaços de memória’ vem
(re) significando na atualidade as histórias e memórias das ditaduras de ambos os países.
Palavras-chave: ‘Dever de memória’, Ditadura, Espaços de memória.
1 Graduanda do Curso de História da Universidade Federal de Santa Catarina. Bolsista PIBIC/CNPq através do projeto
‘Espaços de memória: Arquivos e fontes documentais (re)significando as ditaduras militares (Brasil e Paraguai)’, coordenado
pela professora Janine Gomes da Silva. E-mail: josielykoerich@hotmail.com
2 Professora Doutora do Departamento de História da Universidade Federal de Santa Catarina, coordenadora do projeto
‘Espaços de memória: Arquivos e fontes documentais (re)significando as ditaduras militares (Brasil e Paraguai)’, financiado
pelo CNPq. E-mail: janine.gomesdasilva@gmail.com
Anais do XV Encontro Estadual de História “1964-2014: Memórias, Testemunhos e Estado”,
sociedades ocidentais (HUYSSEN, 2000, p.9). Nos países do Cone Sul3, tal preocupação com
a memória adquiriu maior proeminência nos processos de democratização quando a memória
dos opositores do regime militar, emudecidas no momento inicial da transição, passou a obter
e requerer sucessivamente maior abrangência na esfera política.
Tais grupos, na busca do reconhecimento de seu protagonismo na história e de sua
inclusão na memória do país, vem afirmando sua identidade e utilizando da memória e seus
usos políticos na revisão do passado recente e na procura de nele serem inseridos. Neste
sentido, como afirma Jelin, “el pasado dictatorial reciente es [...] una parte central del
presente” pois “el conflicto social y político sobre cómo procesar el pasado represivo reciente
permanece, y a menudo se agudiza” (2002b, p.4).
E é nessa conjuntura que os arquivos da repressão e seus acervos, do mesmo modo que
outros lugares, como os museus, vêm alcançando especial relevância por poderem embasar as
demandas destes grupos. Constituindo-se em ‘espaços de memórias’, em ‘lugares de
memória’, que segundo Pierre Nora “nascem e vivem do sentimento que não há memória
espontânea, que é preciso criar arquivos, que é preciso manter aniversários, organizar celebra-
ções, pronunciar elogios fúnebres, notariar atas, porque essas operações não são naturais”
(1993, p.13), o objetivo deste trabalho é perspectivar alguns destes arquivos e museus, assim
como seus acervos. Para isso, tomando esses ‘espaços de memória’ como nosso objeto de
pesquisa histórica, nos centraremos em uma análise comparativa entre Brasil e Paraguai.
Neste país, nos dedicaremos a análise do denominado ‘Archivo del Terror’ (oficialmente
Centro de Documentación y Archivo para la Defensa de los Derechos Humanos), assim como
de dois museus: o Museo de la Justicia e o Museo de las Memorias. No Brasil, inferiremos
sobre o Arquivo Edgard Leuenroth, mais especificamente ao projeto ‘Brasil: Nunca Mais’,
doado a Universidade de Campinas em São Paulo.
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Os países que compõe o Cone Sul são: Argentina, Chile, Uruguai, Bolívia, Brasil, Paraguai e Peru.
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Anais do XV Encontro Estadual de História “1964-2014: Memórias, Testemunhos e Estado”,
Uma das metodologias que vem contribuindo para as reflexões da História do Tempo
Presente é a História Oral. Alargando as possibilidades de análise, segundo Verena Alberti,
esta “permite o registro de testemunhos e o acesso a ‘histórias dentro da história’ ampliando
as possibilidades de interpretação do passado” (2005, p.155). Contudo, assim como outras
fontes, a fonte oral possui uma série de complexidades. Destarte, é preciso ter cuidado ao
utilizá-las, não tomando os relatos como verdade absoluta, pois como salienta Ecléa Bosi,
recordar “não é reviver, mas refazer, reconstruir, com as imagens e idéias de hoje, as
experiências do passado. A memória não é sonho, é trabalho. Se assim é, deve-se duvidar da
sobrevivência do passado, ‘tal como foi’, e que se daria no inconsciente de cada sujeito”
(1995, p.55).
Considerando tais proposições, procuraremos perceber ainda neste artigo, como tais
‘espaços de memória’ vêm (re) significando na atualidade as histórias e memórias das
ditaduras no Brasil e Paraguai.
Entre as décadas de 1960 a 1980, todos os países do Cone Sul vivenciaram ditaduras
militares. Apoiadas pelos Estados Unidos da América e por setores das elites nacionais e das
classes médias (WOLFF, 2010, p. 138), estas ditaduras, tendo por suportes a Doutrina de
Segurança Nacional e o anticomunismo, passaram a exercer um rígido controle sobre a
sociedade, notadamente sobre aqueles que se opunham ao regime vigente. Perseguições,
desaparecimentos, mortes e torturas compunham uma constante no período.
Tal controle, além de contar com ações de caráter clandestino e ilegal, era realizado,
arbitrariamente e oficialmente, por organizações burocrático-militares e por instituições
policiais ou de inteligência, que redatavam informes, faziam registros, organizavam
prontuários e instituíam arquivos. Alimentar, manter, ordenar e acumular registros, eram parte
das tarefas habituais dos aparatos repressivos dos regimes militares (JELIN, 2002a, p. 3).
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1979, contém importantes informações sobre partidos e organizações visadas pela repressão,
bem como estudos sobre a tortura no Brasil e no mundo (BRASIL...).
O ‘Archivo del Terror’, em Assunção, no Paraguai, possui uma trajetória diversa do
arquivo brasileiro. Oficialmente Centro de Documentación y Archivo para la Defensa de los
Derechos Humanos, o Archivo del Terror, como ficou popularizado por meio da imprensa
paraguaia, foi descoberto em 22 de dezembro de 1992, no Departamento de Producciones de
la Policía em Lambaré, cidade próxima a capital paraguaia, pelo ex-preso político Martín
Almada, acompanhado de representantes do Poder Judiciário. Livros de entrada e saída de
presos, fichas de detidos, fotos, declarações, informes de atividades políticas, livros, folhetos,
gravações de programas de rádio, formavam a profusa informação elaborada pela policia e
encontrada no local (VERA, 2002, p. 89).
Levados ao Palacio de la Justicia, em Assunção, onde permanecem até os dias atuais,
o ‘Archivo del Terror’ constitui o acervo documental mais volumoso do anos da repressão na
América do Sul que saiu à luz pública (PAZ; AGUILAR; SALERNO: 2007, p. 13).
Possuindo documentos importantes não só da ditadura strosnista, considerada a mais longa do
Cone Sul (trinta e cinco anos de governo de um mesmo presidente: Alfredo Stroessner- 1954
à 1989), este arquivo dispõe também de documentação de extrema relevância a nível
internacional, como as relacionadas a ‘Operação Condor’4. Se apresentando como um espaço
de memória da ditadura de Stroessner (SILVA, 2013, p.3), neste local, além de atividades
administrativas como a de expedir cópias de documentos a pedido das vítimas ou seus
familiares, de responder ofícios judiciais, são realizadas também visitas de estudantes, eventos
culturais, visitas de estudantes, pesquisadores, etc.
Além dos arquivos, outros espaços vêm também se configurando nos processos de
transição democrática nos países do Cone Sul. Dentre estes, destacam-se os museus que
abordam sobre a repressão. Criados especialmente para expressar os passados ditatoriais e as
arbitrariedades por eles perpetradas, neste trabalho estaremos perspectivando dois desses
museus, o Museo de la Justicia e o Museo de las Memorias, ambos localizados em Assunção,
Paraguai.
Vinculado ao ‘Archivo del Terror’, o Museo de la Justicia, foi inaugurado em 22 de
dezembro de 2007 como um “[...] regalo de 15 años” (AGUILAR, 2013, p.11) da descoberta
4
Operação de Inteligência criada no Chile, com o apoio da Argentina, Brasil, Bolívia, Paraguai e Uruguai que perseguia
militantes de esquerda oriundos de qualquer um destes países. Ver: PAZ, Alfredo Boccia, LÓPEZ, Miguel H.; PECCI V.
Antonio. En Los Sontanos de los generales- los documentos ocultos del Operativo Condor. Assunção; Paraguai: Servi
Libro; Expo libro, 2002.
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do arquivo. Este espaço, doado pela Corte Suprema, conta com dezessete vitrines onde expõe
acerca da história da justiça no Paraguai. Segundo o site do referido museu:
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demandas por justiça, reparação, conscientização sobre as violações perpetradas, etc. Desta
forma vêm se estabelecendo como um lócus de grande importância para (re) configurar e (re)
significar as histórias e as memórias das ditaduras.
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Tal simbologia permeia também outros enunciados: “hemos abierto la “puerta del
pasado” y por “ella pudimos acceder a esa historia contada minuciosamente por los propios
represores con la frialdad del esquema nazi” (ZORRILLA,2014). Neste sentido, a descoberta
do arquivo e seus documentos, assim como seus usos no presente, constituiu e permanece
sendo, um dos principais marcos da história recente deste país.
Essa dimensão de uma ‘abertura’ é perceptível também em relação ao ‘Museo de las
Memorias’: “con la apertura del Museo de las Memorias se abrieron las heridas de las
Memorias reclamando justicia”(ZORRILLA,2014). Este, para Martín Rivarola, tem sua
importância em mostrar “a los jóvenes, que no han pasado en esa época, todo es para que no
vuelva a suceder, no solamente acá en Paraguay, si no en todos los paises sudamericanos que
tuvimos, para que no vuelva a suceder, ojala que Brasil también aprenda esto” (RIVAROLA,
2013, p.6). Pois, “[...]es bueno conocer la verdad, y es bueno que trabajemos la memoria, la
memoria es un espacio de lucha política, cuando la gente coloca los nombres por las paredes
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Lei 12.527 de 18 de novembro de 2011. Esta lei permitiu a consulta a documentos e informações produzidos pelos poderes
públicos, acabando com o sigilo eterno de documentos
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Considerações Finais
Referências
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Anais do XV Encontro Estadual de História “1964-2014: Memórias, Testemunhos e Estado”,
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