Resumo
O artigo propõe, a partir de uma reflexão da posição extraterritorial da psicanálise na cultura e as consequências disso sobre as
análises de Freud e de Lacan sobre a política, pensar a democracia. Procede-se então um questionamento das manifestações coletivas
ocorrida em vários países na contemporaneidade.
Abstract
This article proposes , from a reflection on the extraterritorial position of psychoanalysis in culture and its consequences on the
analyzes of Freud and Lacan about politics, to approach democracy . It then proceeds to a questioning of collective demonstrations
which took place in many countries in contemporariness.
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Betty Bernardo Fuks é doutora em Comunicação e Cultura pela UFRJ, psicanalista e professora do Curso de Pós-Graduação em Psicanálise, Ciência e
Sociedade da Universidade Veiga de Almeida - RJ e da Especialização em Psicanálise da PUC - RJ. É autora de Freud e a Judeidade, de Freud e a Cultura,
ambos publicados pela Editora Zahar, e de O Homem Moisés e a religião monoteísta. Três Ensaios. O desvelar de um assassinato, publicado pela Civilização
Brasileira. E-mail: betty.fuks@gmail.com
algumas delas tenham tidos heróis rebel- sistema econômico que a sustentava”. E o
des ou mártires como ponto de partida. A caso de perguntar: que sistema político é
morte, seja a do Pai da horda ou a de um esse que permitiu uma satisfação pulsional
mártir do século XXI significa o anúncio de de tal ordem ao ponto de quebrar os limi-
um novo tempo. tes das políticas democráticas?
Tudo começa inesperadamente na Na mesma linha, “Occupy Wall Stre-
Tunísia. Um jovem se sacrifica em frente et”, gerou a consciência de que “a forma
ao prédio do governo. O ato foi uma respos- institucionalizada de democracia repre-
ta à humilhação que sofria cotidianamen- sentativa não foi suficiente para combater
te - o confisco de sua banca de verduras e os excessos do capitalismo”. Dito de outra
frutas pela polícia local ao recusar se sub- forma: o “big brother Wall Street” contro-
meter ao pagamento de propina. A cena foi lou os Estados Unidos sem dificuldades,
postada na internet e, num curto espaço de corrompendo legalmente o Congresso. Em
tempo, levou milhares a protestarem con- termos lacanianos, a democracia, por estar
tra o governo. Em alguns dias, graças às submetida ao poder de Wall Street, não
redes sociais e à ocupação do espaço urba- pôde impedir a totalização e contabilização
no, o ditador Ben Ali deixava pais. Logo em do mais-de-gozar capitalista.
seguida chegou a Primavera Árabe”. Guar-
Finalmente no Brasil, o movimento
dando as diferenças político-ideológicas de
“Passe Livre” - que num princípio significou
cada país, o fato é que, em pouco tempo,
um grito de indignação contra o aumento do
os movimentos na Arábia saudita, na Líbia
preço dos transportes, revelou um sentido
e no Iêmen depuseram seus presidentes
muito singular: a tomada de consciência da
vitalícios e ditadores. No Egito a indignação
falácia dos partidos políticos, estruturas go-
do povo contra a pobreza, desemprego, se-
vernamentais, a falta de educação, saúde,
xismo, falsa democracia, opressão religio-
bem estar para o povo brasileiro, a redução
sa e brutalidade policial destronou o último
da democracia a um mercado de votos, prá-
dos faraós e deu origem a novos movimen-
tica essa exercida tanto pelos partidos de
tos políticos apoiados pelas redes sociais. direita como os de esquerda, negócios ma-
Chama a atenção nos protestos egípcios fiosos, corrupção, por parte do governo esta-
seu caráter anticapitalista: as manifesta- dual e federal. “Não são os centavos, são os
ções de indignação, segundo os analistas nossos direitos”! Indignação e reivindicação
politicas, recaíram sobre a “ditadura” do de direitos gerou uma proposta contunden-
capital travestido de democracia. te: “Trocamos dez estádios por um hospital
Mas vejam: os protestos também decente” - Nota se, por essa frase, que os
surpreenderam os países “francamente” de- manifestantes além de acusar a corrupção
mocráticos, dando mostras de que a demo- de um Congresso, tinham em mente uma
cracia precisa de ser reinventada, se é que solução coerente com qualquer nação de-
ela “existe” de fato em algum país. Exem- mocrática que, por princípio, tem como
plos: a Revolução das Panelas” na Islân- urgência a saúde e a educação do pais. Em
dia foi fruto da indignação de muitos frente poucas semanas, pela força da indignação,
aos resultados negativo das especulações segundo a análise do crítico literário Rober-
do capitalismo financeiro. Os Indignados to Schwartz (2013), o Brasil que logrou in-
na Espanha”, cientes do reino podre de seu cluir os excluídos foi substituído por outro
sistema político que admitiu os excessos pais, em que o transporte popular, a educa-
das especulações capitalistas cunharam ção e a saúde pública são um desastre.
uma frase bastante contundente: “Nossa Os brasileiros vivem hoje o paradoxo
democracia parlamentar faliu junto com o de estar comemorando o fim do golpe mili-
tar de 1964 e, ao mesmo tempo, manifestar Seria preciso então admitir, com Ja-
indignação pelo fracasso do regime demo- cques Derrida, a concepção de “democracia
crático que o sucedeu. As Jornadas de Ju- por vir”. Para esse filósofo a democracia é
nho nada mais foram do que uma resposta, um sistema politico a ser permanentemen-
como todo o sintoma, à esse fracasso. Po- te construído. Nesse sentido, se pudermos
demos arriscar dizer que a diferença entre enquanto analistas traduzir a ideia de de-
o acontecimento de maio de 1968 em Pa- mocracia por vir, diria que trata-se de con-
ris e a de junho de 2013 no Brasil, reside ceber a possibilidade de exercer uma poli-
em que se a primeira solicitava um Mestre, tica em base a reescrita de seus próprios
a segunda tenta mudar a história política traços originários. O porvir exige uma luta
brasileira e seus infortúnios nas mãos de incessantemente contra o poder arbitrário,
líderes e partidos políticos obscenos. Res- seja ele o protótipo da figura mítica do Pai
ta saber, o que talvez ainda seja impossível totêmico, o chefe que promete às massas
determinar o destino do que as manifesta- o fim do conflito e uma sociedade perfeita,
ções começaram a denunciar. ou qualquer outra figura hodierna, como
por exemplo o capitalismo global. Reescre-
Continuemos, a partir daqui, na
ver a herança arcaica, nos termos de Totem
companhia de interlocutores que se em-
e Tabu (Freud, 1913/2013a), os traços e os
penham e refletir sobre a singularidade da
rastros do acontecimento mítico originário
incursão da psicanálise na politica. O que
- a morte de uma figura de poder arbitrária.
nos interessa nesse momento é refletir so-
A reescrita dessa herança como estratégia
bre a democracia, definida pela psicanalise
política significa uma esperança, não no
como o sistema político fundado na asso-
sentido usado por Castell no título de seu
ciação de irmãos que pactuaram entre si
livro, que tomei emprestado, mas no sen-
deixar vazio o lugar que fora ocupado pelo
tido dp exercício de uma ética orientada
poder tirânico. A democracia, enquanto
ao real. Uma esperança sem utopia; uma
sistema fundado sobre as leis da lingua-
promessa que tem lugar no aqui e agora
gem, é marcada pela falta. Recorrerei ao
pensamento do Yaniis Stravrakakis, cientis- nos termos de Derrida: “em um aqui e ago-
ta politico e autor de muitos trabalhos so- ra que trato regularmente de dissociar do
bre a relevância da psicanálise para a teoria presente” (Derrida, 1996).
social e análise do politico. Em seu livro Essa esperança sem utopia encon-
Lacan e o político (Stravrakakis, 2007), ele tramos, por exemplo, na declaração de uma
defende que a radicalização da democracia rede criada em torno do grupo do Facebook:
só pode ocorrer dentro de uma perspectiva “Todos somos Khaled Said”, um manifes-
ético-política, em base ao estatuto ético da to à memória do jovem ativista espancado
concepção freudiana do Inconsciente e às até a morte pela polícia num cibercafé após
evidências demonstradas por Lacan, a par-
distribuir um vídeo mostrando a corrupção
tir do conceito de “Spaltung”, de que cam-
policial em Alexandria. A identificação dos
po social é intrinsicamente dividido. Stra-
manifestantes à verdade excluída do campo
vrakakis (2007) propõe que no lugar de uma
social é a tomada de uma posição ética sob
ética de harmonia social, a ética sem ideal,
a forma de uma promessa pois, conforme o
tal como formulada na tradição lacaniana,
pensamento de Derrida, não há linguagem
seja incorporada ao exercício da democra-
sem a dimensão performativa da promessa.
cia. Desde essa perspectiva não é possível
“Todos somos Khaled Saíd” é uma resposta
conceber uma forma de democracia acaba-
ao intolerável do aqui e agora.
da e sem faltas porque isso significaria de-
fender uma utopia à serviço do império da Se for possível para nós brasileiros
demagogia e da corrupção. fazermos o mesmo tipo de manifesto e nos