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EDMOND JABÈS

O LIVRO DOS LIMITES

I – O PEQUENO LIVRO DA SUBVERSÃO FORA


DE SUSPEITA (1982)

II – O LIVRO DO DIÁLOGO (1984)

III – O PERCURSO (1985)

IV – O LIVRO DA PARTILHA (1987)

TÍTULOS ORIGINAIS: LE PETIT LIVRE DE LA SUBVERSION HORS DE


SOUPÇON; LE LIVRE DU DIALOGUE; LE PARCOURS; LE LIVRE DU PARTAGE.

COPYRIGHT: LE PETIT LIVRE DE LA SUBVERSION HORS DE SOUPÇON ©


1982 BY ÉDITIONS GALLIMARD; LE LIVRE DU DIALOGUE © 1984 BY
ÉDITIONS GALLIMARD; LE PARCOURS © 1985 BY ÉDITIONS GALLIMARD; LE
LIVRE DU PARTAGE © 1987 BY ÉDITIONS GALLIMARD.

NOTA DA EDIÇÃO BRASILEIRA:

Pela primeira vez reúnem-se em um só volume os quatro livros que compõem o Livro
dos Limites
I – O PEQUENO LIVRO DA SUBVERSÃO
FORA DE SUSPEITA (1982)
A subversão é o movimento mesmo da escritura: o da
morte.

O escrito não é um espelho. Escrever é afrontar um


rosto desconhecido.

Demente é o mar por não poder morrer de uma só


vaga.
Branco, como um nome deixado em branco.


O que é a subversão?
– Talvez, da rosa que te fascina, o mais discreto
espinho.

Ao corpo, ao espírito o livro impõe seu ritmo.


Livre é, então, o campo da subversão.

O que quer que tu faças, és a ti que tu esperas


salvar. És a ti que tu perdes.

A verdade conhece todas as subversões.

«Se o que nos retém é o lugar, um entrave, uma humilhante peia terá sido, enfim,
a minha», dissera ele.

Para todo lugar, tu terás tido apenas a esperança de um lugar clemente para além
das areias: miragem do repouso.

A vida adiciona. A morte subtrai.

(Toda criação, tem, por lugar, um espaço cercado


rodeado de infinito.
Terei, por toda parte, abatido as cercas, oferecendo
às minhas obras, além de seu espaço próprio, o infinito
de um espaço interdito.)

Há um tempo para o preito. Tempo forte ou fraco.


Toda subversão reclama, primeiro, nossa plena adesão.
Não podemos dobrar a subversão. Pomos um fim a ela ao obrigá-la a mudar de
alvo.

Como a sombra aos pés da noite, a subversão só pode desembocar sobre si


mesma.

Viver é fazer sua a subversão do instante e morrer aquela, irreversível, da


eternidade.

«Cadência da subversão. Ah! Eu precisava reencontrar essa cadência», dissera


ele.

Tu não tens criado. A exemplo de Deus, em tua pequena esfera de ação, tu crias
para o instante.
A subversão é pacto de porvir.

«Em seu mais alto período, tão natural, tão inocente é a subversão, que eu seria
tentado a considerá-la como um dos momentos privilegiados do reestabelecimento de
nosso precário equilíbrio», dissera ele ainda.

A ameaça é ilegível.

Se a palavra clareia, o silêncio não obscurece: ele regenera.

A banalidade não é inofensiva: aciano.

(«A banalidade não é absolutamente desprovida de


subversão. Aliada do tempo que a desvaloriza, ela é
subversão banalizada», dissera ele.)

A subversão odeia a desordem. Ela é, ela mesma, ordem virtuosa oposta a uma
ordem reacionária.
O conhecimento se choca contra a fria extensão da ignorância, como raios solares
no espelho do mar cuja profundidade os estupefica.

(Não há ações excepcionais. Há apenas ações


naturais; mas, entre elas, há maiores e medíocres.

É criação.)
Sábios e loucos de meus livros, que me tendes familiarizado com a subversão,
vosso lugar permanece aqui. Nenhures. No meio das areias onde, deitado sem querer
morrer ainda, tenho, geralmente, deixado minhas mãos se abrirem ao vazio.
Profetas subversivos do árido reino aonde fui unir-me a vós, vós tendes
preenchido meus anos com vossas sentenças, alvejado meu céu com vossas questões
insistentes, sepultado minhas certezas sob vossos passos.
«O universo é um livro do qual cada dia é a folha. Nele tu lês uma página de luz
– de despertar – e uma página de sombra – de sono –; uma palavra de aurora e uma
palavra de olvido», havia ele notado.
O deserto não tem nenhum livro.
Caderneta

Bem marulhoso, o oceano embaraça o céu com suas


saltitantes questões.
É em um mar esgotado, recolhido à passividade da
água, que tu te banharás.

Sombras sem sombra,


Luzes sem luz
São os rastros realçados do olvido
e, aqui, o mistério do caminho.

Deus é, de Deus, o Silêncio que se cala.

O escravo do príncipe e o escravo do cortesão têm


mesmo estatuto de escravo.

Entrar em si mesmo, é descobrir a subversão.


A QUESTÃO DA SUBVERSÃO

(«Nós ameaçamos o que nos ameaça. A subversão


não é absolutamente de sentido único», havia ele
notado.

Esse pequeno livro, por seu título, através da obra


que o continha já, se ata aos dez tomos do «Livro das
Questões». Isso também é, provavelmente, da
subversão.

Gratificar com o mesmo título dois textos


diferentes, não é opô-los ainda mais, um ao outro,
impondo-lhes arbitrariamente uma unidade de
circunstância?
O conflito é interno.

Assim a palavra que nos nomeia é a que, cedo ou


tarde, violará o Nome inefável de Deus;
pois a ausência do nome divino é insuportável à
criatura.
Não havia ele escrito, uma vez: «Deus está à mercê
do homem por Seu Nome»?

A revolta de uma sombra precipita a vinda da luz,


assim como a ilegibilidade, erguida contra si mesma,
nos prepara à legibilidade perfeita.

Temos necessidade de continuidade, de


semelhança, de reciprocidade, assim como de pão
fresco.

O homem é, para o homem, a um só tempo a origem


e seu além.

Basta um sorriso para deter uma lágrima. Basta


uma lágrima para quebrar, para sempre, o sorriso.
«O que é subversivo não é, necessariamente, o que
se dá de início por tal mas, geralmente, o que, ao
contrário, para melhor agir sobre seres e coisas contra
os quais ele se insurge, se dispõe, sem reserva, a seu
lado até reclamá-los para si.
«Assim o branco faz derribar o branco em um
abismo fatal de brancura, afirmando-se, por sua vez,
como mesmo branco», dissera ele.

O Nada permanece a cartada inconsciente da


subversão.

«Eu só tenho maus discípulos – dissera um sábio. Buscando me imitar, eles me


traem e, crendo se me assemelhar, eles se desacreditam.»
«Tenho mais sorte que tu – respondeu-lhe um outro sábio – pois, tendo
empregado minha vida a interrogar, não tenho naturalmente discípulos sequer. »
E acrescentou: «Não é por essa razão que fui condenado por atividades
subversivas pelo Conselho dos Anciãos?»

«Não podemos fazer, com um nó, um outro nó mas, pelo contrário, podemos, com
um fio qualquer, fazer um nó.
«Todo nó, por conseguinte, é único.
«Dá-se o mesmo em nossa relação com Deus, com o homem, com o mundo»,
dissera ele.

O pensamento é sem amarras: ele vive de encontros e morre de solidão.

«Olha-me – dissera ele. Escuta. Sou o perpétuo questionamento que revivifica a


fonte.
«É ela que tu vês e ouves. Sobre ela, nas horas de sede, tu te inclinarás para
beber.»

Em cada livro, suas vinte e seis letras; em cada letra, seus milhares de livros.

Ele entregou, tremendo, a seu mestre, um caderno repleto de palavras de sua mão:
seu livro.
– Por que tremes? perguntou-lhe o mestre.
– Estas páginas – respondeu ele – como folhas de gelo, queimam-me os dedos.
Tremo de frio.
– Dize-me o que contêm estas páginas, retomou o mestre.
– Eu o ignoro, respondeu ele.
– Se tu não o sabes, quem o saberia? diz, então, o mestre.
– O livro o sabe.

(O cego guarda o olhar, assim como o mudo, a


palavra – um e outro, depositários do invisível, do
indizível.
... guardiões enfermos do Nada.)

«O que segue está por seguir. Ele não é jamais tributário do que foi mas do que
será», dissera ele.

Estas páginas testemunham não somente da impossibilidade de dar um fim ao


pensamento mas, igualmente, a si mesmo. Elas dizem nosso desvario face à impotência
de ser que nos caracteriza.
Toda duração está ligada à recordação.
Ao real sucede uma irrealidade, mais que real, de que se apropria a memória.
O pensamento segue um caminho contrário. Ele vai adiante da ausência cujo
trajeto ele contribui para fixar, ao se desfraldar.
O pensamento é o relâmpago que dilacera o vazio. O olvido é seu espaço de um
instante. A confusa recordação que guardamos disso seria, nesse caso, apenas o artesão
da recuperação do pensamento a favor de um novo espaço, o instigador zeloso da
confrontação do pensamento com seu passado e seu devir provável; o responsável por sua
colocação sob tutela definitiva.
De um lado a liberdade; do outro os ferros.
Prisioneiro do pensamento, Deus estaria sujeitado ao universo? O impensado –
que é sua não-duração inconcebível – seria só, então, a secretamente perpetuá-lo, pois a
eternidade é também não-duração límpida que escapa à duração percebida.
Deus é estranho ao tempo assim como à duração, pois Ele é sem prolongamento.

(«A ausência e a presença são dois elementos de


vidro destinados a se unir?
«O pensamento, nesse caso, seria a massilha»,
dissera ele.)
Não se tem, nenhures, sublinhado o bastante – havia ele notado – que o
pensamento, saído de um pensamento anterior – não, obrigatoriamente, o último na
ordem – se apoia sobre a influência que este exerce ainda sobre ele ou se comporta em
função da desconfiança que ele lhe inspira.
«Isso deixaria supor que o pensamento tem sua própria memória da qual não se
sabe se ela é ou não totalmente dependente da nossa.
«Ó complexidade das recordações que desfiamos na inexperiência que temos de
seu emaranhado e de seu final alcance.»

Não há recordação inocente.

O olvido é, em toda recordação, a recordação natimorta que aflige a memória.

«Preceder – havia ele acrescentado – deve igualmente ser tomado no sentido de


adiantar-se.
«O pensamento que precede o pensamento é, por vezes, aquele que se adiantou a
ele em sua travessia, constrangendo este a lhe ceder o lugar.
«É por isso que não poderemos jamais dizer com precisão qual, de um ou do
outro, foi pensado primeiro.
«Há todo lugar para crer que a memória do pensamento conserva tanto a
recordação de seu triunfo quanto a de sua incapacidade de ser em tal momento de sua
história; a recordação desses instantes de altivez e de humilhação, que permanecerão, por
nós, impercebidos.

Todo pensamento tem suas alegrias e suas feridas.

O pensamento só é atento às reações do pensamento.

«Tu pensas: tu imaginas, refletes e sonhas tudo ao mesmo tempo.»


«Tão logo amestrado, teu pensamento te reenvia a tua imaginação, a tua reflexão
e a teus devaneios.
«Tu não estarás jamais acima dele», dissera ele.
«Tu estarás sempre abaixo, não do que tu pensas, mas do que tens ainda a
pensar», dissera ele também.

«Tu pensas para conhecer. Tu nem mesmo conheces teu pensamento», havia ele
escrito.
«O dia está ligado à consciência. O inconsciente é noite opaca.
«Vê quão paradoxais são as vontades de Deus.
«De uma parte, Ele apela ao consciente para desenvolver, em nós, a ideia, o
sentimento da divindade; e, de outra, atingindo de interdito a imagem, Ele nos arremessa
no inconsciente onde Ele reina sem nós», havia ele, por outro lado, notado.

O nada é nosso eterno lugar de exílio; o exílio do Lugar.

Indiferente a Deus, ao homem, deixaremos a pedra, em sua dura solidão, velar


sobre o nada.

As imagens soçobram no inconsciente mas não se extinguem: clarões de olvido.

Ele dissera: «As imagens do inconsciente são símiles à fauna e à flora


submarinhas. A tocha viva do mergulhador as acossa.
«Fora d’água, elas não são mais que objetos heteróclitos, alfabeto indecifrado de
morta-memória; causa, geralmente, de internos rasgos.»

Vivemos sobre a recuperação de imagens enlutadas cujo número não avaliaremos


jamais.
A mais antiga é, incontestavelmente, a de Deus, da qual Deus, Ele mesmo, não se
recorda mais.
Imagem do primeiro dia.
Imagem da morte que nos será recusada até a morte.

A legibilidade é póstuma.
PEQUENOS LIMITES AO ILIMITADO

... de uma morte fecunda da qual ele seria o ponto


radioso de nascimento, ó vocábulo!

Deus não é nada além, para Deus, do que Ele mesmo.

Qualquer que seja a distância, esta é sempre concebível: pequena, ela é a presa do
olhar; imensurável, a presa da imaginação.

«A mais longa linha tem, por origem, a mais curta que é, ela mesma, apenas o
desejo inaplacado de ultrapassagem do ponto», havia ele notado.

«O infinito não dá a medida do Tudo ou do Nada; do cumprido, pois, ou do vazio;


mas do incumprido», dissera ele.

«Ao infinito, o traço promete, em vão, um fim ansiado», dissera ele.

«E se fosse necessária, a Deus, uma sombra para duvidar d’Ele mesmo?


«Essa sombra, talvez, seria o livro que é perplexidade da claridade e desalento da
noite», dissera ele.
E acrescentara: «Herdeiros do Livro, dispomos, por toda fortuna, apenas do pouco
de obscuridade e do pouco de claridade que nos foram transmitidos. Ah! todas as nossas
palavras são apenas criações de sombra, figuras da falta que nos mina.»

«Se a sombra é questão à luz, ela é também questão à sombra; se a luz é resposta
à sombra, ela é também resposta à luz. Ó círculo no círculo!» dissera ele.

«A sombra não é a falta, mas o pleno do vazio onde o astro reluz. Negror, negror
do Nada», dissera ele, por outro lado.
O menor clarão é suspeição de universo.

– Qual é teu olhar?


– O de meu livro.
– Qual é tua escuta?
– A de meu livro.
– Qual é tua respiração?
– A de meu livro.
– Qual é tua esperança?
– A de meu livro.
– Qual é tua sorte?
– A de meu livro.
– Qual será tua morte?
– A que me espreita na última página do livro: morte de todas as nossas mortes
partilhadas.

Se Deus fosse o Uno, Ele seria duplo; o único sendo apenas o impensado do Uno
que, tão logo pensado, cessa de ser único.

O passo não se resignará jamais a ser apenas um passo; um passo solitário.

II

(«Todo livro que não resistisse absolutamente ao


evento, não é um livro», havia ele dito.
«O tempo sempre derrotou o evento», haviam-lhe
retorquido.
«O livro é, então, esse tempo – havia ele concluído
– um tempo que não teria força de tempo mas que seria,
antes, fraqueza de eternidade.»)

A obra não é jamais cumprida. Ela nos deixa nesse incumprido onde morremos. É
essa parte branca que nos resta, não absolutamente a investir, mas a tolerar. Onde é
preciso nos instalar.
Aceitar o vazio, o nada, o branco. Tudo o que criamos está por trás de nós.
Estou, hoje – de novo – nesse branco, sem falas, sem gestos, sem palavras.
O que está ainda por cumprir, não é jamais senão o que se dá de bom grado por
cumprido: o deserto onde nossa impotência nos recalca.
Ficar pensando que o fim – o termo buscado – é impossível. Consolação, com
certeza, para a maioria dentre nós. Desalento para os desnorteados que o desconhecido
fascina.

Limites transgredidos em seus limites: nosso cotidiano.

As extremidades nos permanecerão sempre desconhecidas.

Tu escreves os olhos abaixados, mas o céu está em teus olhos.

Há apenas um céu, assim como há apenas uma folha.

Nosso vocábulos constelam as noites do pensamento; na manhã do impensado,


eles são imperceptíveis.

Páginas sem sombra do Livro de Deus; páginas deslumbradas do livro do homem.

Não podemos interrogar senão o Poder. O não-poder é a questão mesma.

A questão é de sombra. A resposta, breve claridade.

A resposta é sem memória. A questão só se recorda.

(«O cumprimento, talvez, seria apenas uma forma


reconfortante do incumprido: a só visível», dissera ele.

«... acima de tudo, a possibilidade para o


incumprido de tomar consciência da medida de seu
incumprimento», acrescentara ele.)
A FOLHA, COMO LUGAR
DE SUBVERSÃO DA PALAVRA
E DA BRANCURA

Subversiva é a folha onde a palavra crê tomar pé; subversiva é a palavra onde a
folha se abre à sua brancura.

Um passo na neve basta para abalar a montanha.

A neve ignora a areia. O deserto, entretanto, está nelas.

Glacial é a brancura em seus ápices.


Negro é o sol da palavra.

A aliança do papel e do vocábulo – do branco e do negro – é o acasalamento de


duas subversões erguidas uma contra a outra, no coração mesmo de sua união, e com
cujos custos o escritor arca.

O que se concede em aparência é, sobretudo, o que se dilacera interiormente. O


olho percebe apenas o que emerge.

A evidência é o terreno ideal onde opera a subversão.

Tu escreves. Tu ignoras todos os conflitos que tua pluma levanta à sua passagem
e dos quais o livro é a cartada.

O livro subversivo, talvez, seja aquele que denuncia, confundindo-as, a subversão


da palavra face-a-face com a folha e da folha, face-a-face com a palavra, na esteira de um
pensamento agredido.
Fazer o livro, nesse sentido, seria, no passo a passo de suas retomadas, apoiar
essas forças subversivas pelas quais a linguagem, assim como o silêncio, seriam
atravessados.

A subversão é tanto a arma favorita do inabitual quanto do diário.


«A relação com Deus, dissera ele, é relação indireta com a subversão.»

Toda palavra pronunciada é subversiva em relação à palavra calada. A subversão


passa, às vezes, pela escolha; pelo arbitrário de uma escolha que, talvez, seja uma
necessidade ainda obscura.

Subversivo, como Deus pôde pensar que o homem não o seria de nenhum modo
face-a-face com Ele?
Deus criou o homem à imagem de Sua subversão.

E se a subversão fosse apenas o afastamento entre a coisa criada e a coisa escrita?


Um mesmo abismo separaria, então, o homem do homem e o livro do livro.

(«Divino ou humano – ‘EU’ – dissera ele – é o


teatro de todas as subversões.»

«Uma arte de viver – dissera ele também – arte


avançada da subversão! Lá, talvez, esteja o começo da
sabedoria.»)
FORA-DE-TEMPO, O SONHO DO LIVRO

Tu crês sonhar o livro. Tu és sonhado por ele.

O que é o sonho senão a escritura apagada de um


livro escrevendo-se nesse apagamento e que leremos
com os olhos cerrados: a falta – lacuna, omissão,
deficiência – do livro?

Escrever seria ceder novamente, à imagem do


sonho, a realidade abstrata do signo.

Não há sonho senão no olvido de uma palavra.

A via que leva ao meu livro, é via inaugurada por dez caminhos.
Ele te recorda disso?
A areia, há muito tempo, os engoliu.
Restam apenas indatáveis estrias deslocadas pelo vento;
pois jamais o livro cessa de se aventurar fora do livro.
Estar em seu rastro, é errar sem fim.

«A fortaleza melhor edificada é sempre tributária do menor aluimento do solo»,


dissera ele.

– Não há caminho que não possa ser designado pelo dedo; mas, qual mão saberia
tomá-lo?
– Nenhuma, seguramente. Qualquer uma poderia, por outro lado, destruí-lo.
– Que concluir disso senão que nada é poupado pela morte, nem mesmo Deus;
pois pensamento, olhar e mão obram apenas para ela.

«A morte não mata. Nós matamos, a cada instante, para ela», dissera ele.
«Queimada de antiga ausência, viva é, no deserto, a subterrânea luz produzida
pelo esfregar do grão de areia sobre o grão de areia; ó desejo comum de eternidade! Ó
muda centelha de amor em minha alma desolada», escrevera ele.

«Da paixão do livro pelo livro, permanecem apenas os vestígios da paixão.


«Nossos dias e nossas noites foram apenas ardor e torpor desse louco
sentimento», dissera ele.

«Todo livro é dócil objeto dos desejos contraditórios que ele inspira ao livro que o
escreve», dissera ele também.

«Abre Deus. Eis o abismo», dissera ele.

Fazer, de seu nome, um rosário de nomes


inatribuídos.

Ed que o recebera de Emo que o recebera de Nod que o recebera de Don que o
recebera de Seb que o recebera de Jassé que o recebera, ele mesmo, de Bes que o
recebera da boca de Sebaya, dissera:
«Não há livros senão na morte do Livro; pois é sua própria morte que os escreve;
mas, essa escritura é condenada a não ter jamais sepultura.»
E acrescentara: «Para uma definição válida do livro, eu sacrificaria de bom grado
todas as obras do mundo, pois é justamente graças a essa ausência de definição que
nossos livros puderam, até aqui, se impor a nós enquanto enigma a decriptar.»

«Fecha o livro – dissera ele. Assim acrescentarás o


peso de uma sombra reclusa à sombra cósmica.»

«O desespero do escritor não é por não poder escrever o livro, mas por ser
constrangido a prosseguir indefinidamente um livro que ele não escreve.
«Dessa dor, eu só terei falado uma vez. Possa, hoje, tua palavra fraterna assumir o
turno da minha», dissera ele também.


« Deus é, a um só tempo, salvo e destruído pelo livro. Em sua glória e sua
miséria, o vocábulo no-lo ensina. »

«Deus tem necessidade da caução de Sua palavra e a Palavra, da caução do


Livro.»

«Deus dá a ler. Ele não lê.»

«Escrever o livro consistiria, talvez, pelo viés de cada uma de suas palavras, em
retornar à eternidade o instante lido.»

«Não é somente um vocábulo que tu formas ao escrevê-lo, mas também um


instante de tua vida que tu circunscreves», havia ele notado.

(«Falamos para romper a solidão; escrevemos para


prolongá-la», dissera ele.)
DA SOLIDÃO,
COMO ESPAÇO DE ESCRITURA

«A aurora – dissera ele – é apenas um gigantesco


auto-da-fé de livros; espetáculo grandioso do supremo
saber destronado.
«Virgem é, então, a manhã.»

O gesto de escrever é gesto solitário.


A escritura é expressão dessa solidão?
Pode haver escritura sem solidão ou ainda solidão sem escritura?
Haveria degraus para a solidão – portanto, várias plagas, diferentes níveis de
solidão – assim como há patamares de sombra ou de luz?
Poderíamos, nesse caso, sustentar que há certas solidões votadas à noite e outras,
ao dia?
Haveria enfim diversas formas de solidão: solidão resplandecente, redonda – a
do sol – ou solidão plana, tenebrosa – a das lajes funerárias; solidão da festa e solidão do
luto?
A solidão não pode se dizer sem, tão logo, cessar de ser. Ela pode apenas se
escrever na distância que a protege do olho que a lerá.
O dizer seria, pois, para o texto, o que a palavra oral é para a palavra escrita: o fim
de uma solidão assumida por uma e o prelúdio a uma aventura solitária, para a outra.
Aquele que, em voz alta, fala não está jamais só.
Aquele que escreve se une, pelo intermediário do vocábulo, à sua solidão.
Quem ousaria, em meio às areias, fazer uso da palavra? O deserto responde
apenas ao grito, o último, já envolto de silêncio donde surgirá o signo; pois não
escrevemos jamais senão nos confins imprecisos do ser.
Tomar consciência desse limite é, ao mesmo tempo, reconhecer, como ponto de
partida do escrito, a irregular linha de demarcação de nossa solidão.
Haveria, pois, assim, para a solidão e para o escrito, flutuantes fronteiras que
ladearíamos, a pluma à mão; fronteiras, por nós e graças a nós, reconhecidas.
Para cada livro, seus antros de solidão.
Sete céus se reclamam o céu. O vazio tem seus pavimentos. Assim a solidão, que
é vazio do céu e da terra, vazio do homem no qual ele se agita e onde ele respira.
Atada a toda origem, a solidão tem esse poder excepcional de romper o tempo, de
desprender a unidade primeira; de fazer, de alguma sorte, do múltiplo indeterminável, o
uno inumerável.
Buscar escrever, nessas condições, consistiria então, à margem do escrito, em
refazer primeiro, mas em sentido inverso, o caminho seguido pelo pensamento; em
reconduzir o pensamento ao objeto mesmo de seu pensamento; o escrito, ao vocábulo que
o continha; equivaleria, em suma, a sair de sua própria solidão para desposar a inicial
solidão do livro na ignorância ainda de seu começo e à qual o livro fornecerá seu nome;
pois é sobre as ruínas de um livro do qual nos desviamos que o livro se constroi; sobre a
pavorosa solidão de seus escombros.
O escritor não deixa o livro. Ele cresce e desmorona ao seu lado. Escrever, em um
primeiro tempo, seria apenas apanhar as pedras do livro desabado, a fim de edificar, com
elas, uma nova obra – a mesma, provavelmente –; edifício do qual o escritor seria o
infatigável mestre de obra, arquiteto e pedreiro; menos atento, entretanto, ao progresso de
sua construção, que ao movimento interno, natural que preside seu acabamento; atento,
antes de tudo, portanto, à escritura dessa dupla solidão – a do vocábulo e a do livro – que
se quererá progressivamente legível.
Nenhures alhures que nesse retângulo de papel fino reservado ao indizível,
palavras e morada não são tão fortemente ligadas umas à outra e, ao mesmo tempo – ó
paradoxo – tão distanciadas; pois nenhuma aliança é permitida à solidão, nenhuma união
ou associação; nenhuma esperança de libertação comum.
Só, ela se edifica; só, com a cumplicidade da escritura, ela organiza a leitura dos
orgulhosos lances de muros das épocas de seu esplendor ou de suas largas e profundas
feridas, na hora em que a obra que ela contribuiu para pôr de pé, cai em poeira; em que o
livro se quebra na quebradura infinita de suas palavras.
Solidão à qual o escritor se submete; concede, por vezes, mais do que ele pode
receber, não podendo se subtrair ao empenho assumido para com ela.
Mas, por quê? A solidão não é uma escolha deliberada do homem? Então, quais
são suas correntes que ele não forjou? Haveria uma solidão que escaparia à sua vontade,
que ele não poderia, impotente, senão sofrer?
A exigência dessa solidão da qual o escritor não saberia se alforriar é,
precisamente, aquela que a palavra que a denomina lhe impôs; solidão do recôndito de
sua solidão, como se houvesse uma solidão mais só, enterrada na solidão, onde a palavra
se modela sobre a imagem captada de si mesma, tal a criança no ventre materno.
Doravante, tudo se elaborará segundo uma ordem premeditada; pois o projeto do
livro é, primeiro, temerário projeto do vocábulo. Não podemos escrever o livro sem ter
indiretamente participado desse projeto que, talvez, seria apenas a intuição que temos do
livro, a partir da qual este se escreve.
Solidão de uma palavra, portanto; solidão da palavra antes da palavra, da noite
antes da noite em que, astro imerso, o vocábulo não brilha mais que para ela.
Mas, objetar-se-á, como podemos, a partir do livro, ir à palavra? – Como o dia vai
ao sol, responderei. Livro não é uma palavra? É sempre à palavra ‘Livro’ que
retornamos. O espaço do livro é aquele, interior, da palavra que o designa. Escrever o
livro seria, assim, apenas investir esse espaço escondido, apenas escrever nessa palavra.
Mas, essa palavra que reúne todas as palavras da língua – assim como o astro da
manhã toda a luz do mundo – é, desta, apenas o lugar de sua solidão; o lugar onde ela se
confronta com o nada; onde ela cessa de significar, não designando mais que o Nada.
«Tu não podes ler o que tu vives, mas podes viver o que tu lês», dissera ele.


– Quantas páginas tem teu livro?
– Exatamente noventa e seis superfícies planas de solidão. Uma abaixo da outra.
A primeira no topo; a última na base. Tal é o caminhamento da escritura – havia ele
respondido.
E havia acrescentado: «O que me intriga não é absolutamente ter descido, de folha
em folha, todos os passos do livro, mas saber como fiz para me encontrar, de entrada,
sobre o mais alto, o primeiro?»

O fundo d’água é semeado de estrelas.

A escritura é penhor de solidão; fluxo e refluxo de inquietude. Ela é também


reflexo de uma realidade refletida em sua nova origem e cuja origem, no coração de
nossos desejos confusos e de nossas dúvidas, afeiçoamos.
A ANTE-MORADA

«Antes da morada, interroga a soleira. A pedra aí


está já neutralizada», dissera ele.

Tudo estava à espera de Deus.


Assim a Criação precedeu o Criador.

... assim Deus se adiantou a Deus na Ideia de Deus.

Tudo estava à espera do Nada e o Nada precedera a


espera.

Deus é por ter respondido à questão: «És tu?»

«Se a existência de Deus fosse posterior à do homem, nada nos impediria de


pensar que o nada teria tido uma voz mais antiga que a do mundo e o deserto, em sua
relação com o vazio, uma palavra de antes do dia que teria sacudido as trevas.
«Voz abafada do mar. Voz afogada da areia», dissera ele.

A questão cria. A resposta mata.


Deus morreu por Sua resposta prematura à qual o homem se curvou.

É do mais longínquo da morte que Deus fala. Por todo tempo, estivéramos à
escuta desse silêncio.

O livro é o ante-termo?
Nesse caso, escreveríamos apenas para a morte; a escritura, chegada ao ponto
onde nada se escreve mais, abandonando-nos ao nada.
«A diferença entre nossos livros e o Livro divino, talvez, seja esta: os primeiros
têm a vida a atravessar para atingir Deus; o segundo, só a morte para chegar até a nós»,
dissera ele.

O uno é o duplo do Uno.


O interdito poupa o duplo.

Livro sobre livro! O Livro sagrado recobre, com sua transparência, o livro
interdito.

Não passamos do sagrado ao profano; mas, justamente do profano ao sagrado.


Assim como passamos de um silêncio povoado de palavras a um silêncio
recolhido à sua ausência inicial.

Exclusiva, a consoante protege a ilegibilidade do Nome divino: morada murada.

A vogal é canto melodioso da manhã.

«Nossa alma é ninho de vogais. Um pássaro está na origem da leitura infinita do


mundo», dissera ele ainda.

A ante-morada, talvez, seja vocábulo em potência.

(«O vocábulo não será jamais a morada – dissera


ele – e, no entanto, ele tem também suas bases e seus
vãos.»)

A palavra é baixio que a brisa marinha inebria. Ó


desejos insaciados! Ó imperdíveis viagens!)

O interdito é proibição de horizonte.


O INTERDITO DA REPRESENTAÇÃO

– Por que – perguntou-lhe ele – teu livro é apenas


uma sucessão de fragmentos?
– Porque o interdito não atinge o livro quebrado,
respondeu ele.
Mas, em seu diário, não havia ele, recentemente,
notado: «Escrevo um livro para restituir, em sua
integralidade, a Deus a imagem que, com palavras,
fabriquei d’Ele mesmo?
«Escrever, nessas condições, seria apenas perecer
da cólera divina?
«... apenas perecer de uma imagem interdita no seio
de toda imagem?»

Não podemos ler a rasura – dissera ele; mas, podemos imaginar uma leitura do
que foi definitivamente rasurado.
«Leitura da morte.»

Não lemos jamais senão o que falta à leitura total da palavra – dissera ele,
também.
«De sorte que é, cada vez, uma leitura diferente que somos levados a empreender
desta.»

Quem saberia promover a leitura do interdito que tenta levantar toda leitura do
livro?
Só o poderia aquele que, previamente, teria, do silêncio ao silêncio, conduzido o
vocábulo.
Dessa infinita distância que separa a ausência de si mesma, ele poderia fazer,
então, até o inevitável abandono, a leitura arriscada.

«Tu exibes o que não devia ser revelado. De fato, tu deixas entrever, do objeto
circundado, apenas aquilo por trás do qual ele se dissimula.
«E esse por trás do qual pode perfeitamente ser um outro objeto.
«Malicioso interdito», havia ele escrito.

«Deus é pleno de malícia; pois se não podemos ver Seu Rosto, é porque ele é, de
todos os rostos escrutados, o inexibível, o incontemplável pela virtude do qual toda
figura, em sua independência adquirida, acede à sua liberdade de enganar; quer dizer, a
ser, no instante, apreciada por ela mesma enquanto fortuita e fugitiva projeção de um
rosto ignorado», havia ele escrito também.

Deus escapa à mentira por uma mentira mais eloquente que, prestes a denunciar
toda outra mentira, acaba por se impor, ao crente, como sua só verdade.

E se o interdito divino atingisse, em primeiro lugar, a Verdade?


A imagem real de Deus cederia à pressão reiterada de uma ausência absoluta de
imagem; não seria mais que o motivo privilegiado do encarniçamento despregado por
esta para reduzi-lo ao nada.
O objeto se compraz em sua ausência. Assim, o Criador no homem e a criatura
em Deus. A ponto de ser, cada um, apenas a ausência de uma ausência reclamada, a
temporalidade dessa ausência através do rosto proposto que é ele mesmo apenas a
abdicação ansiada – recompensada – do primeiro e último rosto.
A verdade seria esse fim dramático de todo relato que teria Deus por heroi e o
homem por comparsa.
E se o interdito divino atingisse a Ideia mesma de Deus?
Duplo e idêntico sacrifício. O relato original se decifraria na superfície do oceano
que o teria engolido, no lugar assinalado de seu desaparecimento.
Podemos ler apenas as dobras deixadas atrás dela por uma palavra que naufragou
e da qual, pouco a pouco, a água acalmada se desfaz.
Restaria, então, apenas a onda atenciosa para velar sobre o interdito.

«O interdito está no interior do dito, não absolutamente tal o caroço no fruto, mas
como o sol na noite que ele abrasa», dissera ele.

De todo pensamento privado de apoio, o interdito faz um impensado sem rival.


– Se a luz é interdita à sombra porque lhe é fatal, qual é essa claridade indefinível
que percebo acima de nós?
– Talvez a de uma faca cuja fina lâmina brilha no anoitecer e da qual Deus se
serviu para separar a noite do dia, como metades de um mesmo fruto.

Todo escrito é campo fértil; na boa estação, ceifado


pela morte.
É por isso que a foice do tempo é a melhor arma do
interdito.

«Há o tempo do fazer e o tempo da foice: um mesmo tempo», havia ele notado.

«Os verdadeiros livros são apenas livros? Não são


também a brasa que dorme sob a cinza, como as
palavras dos Sábios, segundo Rabi Eliezer?»
Emmanuel Levinas.

«Sabes tu – dissera ele – o que, no deserto, dá às


vezes aos grãos de areia seu tom cinzento? – Não é a
aproximação da noite mas, de nossos livros sem
amanhã, o véu de cinzas que os recobre.»

Se queres que tuas palavras sejam as de Deus, tu farás, de teu livro provisório, um
livro de eternidade.
Mas, se assim cremos em Dov Baer de Meseitz, que escreveu: «O Santo bendito
seja Ele reside em cada letra», teu livro, antes de ter sido escrito, era já um livro
eterno .
É graças à sua parte divina que um livro sobrevive a o tempo. Que concluir
disso senão que essa parte di vi na est á em nós, como palavra premonitória de
um tempo em reserva de eternidade.

Silenciosa é a Palavra de Deus desde o dia em que, para se fazer ouvir,


Ele impôs silêncio às nossas palavras humanas, esquecendo que era através delas
que Ele nos falava .
O silêncio da Palavra de Deus não é jamais senão o silêncio infinito de
nossas comuns palavra s aterradas.
Não podemos atingir o silêncio de Deus senão desposando, nós mesmos,
esse silêncio. O reconhecimento da Palavra de Deus não seria, portanto, para nós,
senão a aceitação de nosso próprio silêncio.
Dizer esse silêncio, é dizer o sagrado; mas é, igualmente, tão logo aboli-lo.

Não há um Livro sagrado mas livros abertos ao silêncio do Livro


sagrado.
Escrever, a parti r desse silêncio, é inserir o Livro da eternidade no livro
morta l de nossas metamorfoses.

(«Tu não farás livro à imagem do Livro pois


Eu sou o Livro único.
«Tu não farás, tampouco, da palavra
amedrontada, andrajosa, uma palavra gloriosa;
«pois tu podes escrever apenas o que tu és e Eu te
quis poeira.»
Assim poderia ter-se expressado Deus; mas não
procede Ele, muitas vezes, por alusões?

«Desconfia do que é dito claramente, pois a


claridade é apenas a vertente acolhedora da sombra
e a Palavra de Deus se mantém afastada de uma e
de outra vertente», havia ele notado.

Haveria um sol para a obscuridade? Ele não


seria a estrela mas o cintilante segredo.)

– O que é um livro sagrado? O que confere ao livro seu caráter sagrado?

– O sagrado depende de nós?

– Um livro de saber, seria um livro sagrado? Não, já que o saber é


humano.

– Nós dizemos: «Neste livro, há a palavra de Deus. P ort ant o, é um livro


sagrado.» Mas, não somos nós mesmos que, buscando revelá-la, formulamos
essa palavra ?
A Palavra de Deus seria essa Palavra silenciosa que deixaria se romper
seu silêncio em cada um a da s nossas ?

– Não haveria, assim, mais livro sagrado q u e livro profano: haveria o livro.
Mas, qual livro? O Livro absoluto de Deus, o livro incumprido do
homem?

– O livro é, a um só tem po, apresentação – ele apresenta, se apresenta –


e representação – ele reproduz, busca fixar.
Mas, Deus não condenou toda representação d’Ele mesmo?

E se o interdito divino da representação se encontrasse também na escritura, a


um só tempo como sua implacável lei e sua parte maldita?
E se o sagrado, sendo Palavra de Deus, fosse apenas o silêncio de nossas
palavras?
E se o profano, sendo palavras emancipadas, fosse apenas desafio ao silêncio
divino?
A imagem seria, então, para a palavra o que a ausência de imagem é para o
silêncio.
Profano e sagrado se veriam arrastados em um inevitável face-a-face.
Escrever, sob o olhar constante de Deus, suporia reproduzir incansavelmente
apenas Sua Palavra; mas, reproduzir essa Palavra não é, contra sua vontade,
introduzir a imagem no texto?

«Os verdadeiros livros são apenas livros? Eles não são também a brasa
que dorme sob a cinza, como a s palavra s dos sábios?»
Ainda é necessário precisar, aqui, de quais livros se trata. O que é um
verdadeiro livro? E haveria falsos livros?
Os verdadeiros livros, se eles são livros, são também ‘brasa sob a cinza’.
Esse também significaria que seu destino é se consumarem consumando os
outros até não serem mais que a força mesma dessa consumação? Como se a
consumação dos outros livros, longe de derrotá-los, lhes desse, ao contrário,
renovando-o, um vigor a toda prova ?
Os verdadeiros livros, então, s eriam os que con t i n u am a m o rr e r da
morte dos outros?
Mas, talvez, a brasa que av e rm el h a sob a cinza, seja apenas a Palavra
do sábio que sobrevive ao livro?
Os verdadeiros livros, nesse caso, seriam os que cessaram de ser livros,
para não ser mais que Palavra do livro sacrificado; palavra desse sacrifício,
portando o luto de um livro.
... luto de um livro que seria, em suma, apenas luto de um lugar. Mas, o
lugar é , igualmente, Deus através de um de seus inumeráveis nomes.
A que porvir está votada esta Palavra sem lugar ?
Em outros termos, haveria um porvir para o sagrado cuja Palavra
exemplar escapa a toda posse do lugar ?
Se não há lugar para o sagrado que não seja ausência abissal de lugar, o
que é um livro sagrado? Ele não poderia ser senão à medida dessa Palavra, não
ser mesm o senão essa Palavra, a um só tempo fora do tempo e ancorada em um
tempo que se empregaria em vão a consumá-la consumando-se e que, por esse ato,
lhe outorgaria sua estatuto de Palavra audível , legível.
Haveria assim, de um lado, uma Palavra sagrada, livre, soberana e, do
outro, um espaço indefinido que o homem se aplicaria a circunscrever e que
seria, talvez, o livro: livro profano, tributário de nossos vocábulos mas que a
proximidade deles com a Palavra sagrada içaria à altura desta .
O livro seria, então, a empreitada hu m a na mais audaciosa: a que t e r i a
p o r m e t a dar um lugar a uma Palavra única, universal – o sagrado é
impartilhável – que permitiria aos vocábulos, agrupados em torno dela, se
superarem na morte .
O livro, nessa hipótese, seria anterior à Palavra que, ela mesmo sendo
primeiro Palavra silenciosa, seria anterior ao livro que a revela. Palavra do silêncio,
fomentando esse silêncio no seio de toda palavra; m as , igualmente, Palavra
aproximada, captada no recôndito desse silêncio que seria, por um misterioso
retorno às origens, a virgindade do livro.
Haveria, pois, dois livros em um. O livro que está no livro – Livro sagrado,
austero, incaptável – e o que se abre à nossa curiosidade; obra profana mas cuja
transparência, aqui ali, trairia a presença do Livro enterrado nela: limpidez, de
repente, de um vocábulo inspirado, tão aéreo, tão deslumbrado , tão ávido de
duração que ele nos precipitaria, por um breve momento, ao coração de uma
eternidade pressentida, branca, nua; a do verbo divino do qual o verbo, saturado
pelo homem, seria o eco desesperado.
«Povos de pastores», em sua submissão ao mandamento de Yavé, os judeus
se reconhecem em u ma só Palavra: Palavra sagrada, santa; a palavra profana
não tendo direito de cidadão.
Ainda que em língua hebraica sagrado e santo sejam apenas uma mesma
palavra, podemos dizer, verdadeiramente, que o sagrado seja o santo ou
viceversa?
Uma mesma palavra, certamente, mas como uma noz aberta cuja parte
esquerda da casca, por exemplo, seria o sagrado e a parte direita, o santo é
cujo fruto teria o sabor primitivo do silêncio.
Assim o sagrado seria menos o santo que a sacralização de um silêncio
interiorizado, denso de todos os silêncios e o santo, menos o sagrado que a
santidade do dom.
Deus poria, na boca do homem, uma palavra profana? O homem, na boca
de Deus, u m a palavra sagrada ?
Tendo sido a cortante e definitiva resposta, o sagrado é mudo. Ele se situa
ante s e depois da q u e s t ã o .
A escritura, interrogativa até em suas afirmações – sempre em questão – é
nossa fraqueza; é por isso que ela é do domínio do profano.
Arrimado ao instante, o dizer sendo a palavra da abolição de toda palavra,
o absoluto da escritura, considerado como escritura do sagrado, não saberia ser
senão o silêncio do dizer.
Escritura de um fora-de-tempo, sempre fora e, e n t r e t a n t o , legível
através da palavra que ela transcende: u ma ultra-escritura, pois, e mesmo
exagerada que pesaria sobre nossa escritura com seu peso indeterminado de
ausência e que permitiria a esta afrontar, cada vez, seus limites em sua própria
dependência a u m ilimitado do qual ela seria a miserável expressão.
... em sua dependência, por conseguinte, ao silêncio que ela buscaria em vão
varar, não absolutamente para reduzi-lo, mas para sobreviver a ele.
O trajeto do l i v r o a o Livro absoluto, silencioso – uma palavra imutável
não pode ser senão silenciosa – é aquele da palavra personalizada à Palavra
impessoal; assim como o trajeto do Livro absoluto ao livro é o da Palavra de
fogo à palavra em chamas .
Mas, quem traçaria a fronteira?
No começo era o Tudo e o Tudo era o verbo sagrado e o verbo sagrado era
o infinito silêncio que nenhum barulho, nenhum som, nenhum sopro vieram
perturbar.
Uma vez concebido pelo homem, o Tudo se abismou no Nada e o Nada
e r a o vocábulo e o vocábulo e r a o livro e o livro era o turvo.
Desse turvo, conheceremos jamais sua extensão?
O ato de escrever faz pouco caso de toda distância. Elevar o efêmero – o
profano – ao posto do perdurável – o sagrado –, não é a ambição de todo
escritor?
Assim, a escritura, de uma obra a outra, seria apenas o esforço dos vocábulos
para esgotar o dizer – o instante – para se refugiar no indizível, que não é o que
não pode ser dito mas, pelo contrário, o q u e f o i tão intimamente, tão
totalmente dito que ele não diz mais que essa intimidade, essa totalidade
indizível.
O profano e o sagrado seriam, então, apenas o prelúdio e o termo de um
mesmo empenho: o que consiste, para o escritor, em viver a escritura até o
limiar do silêncio onde ela o abandonará; silêncio insustentável donde o
universo surpreendido emerge para se perder, por sua vez, no vocábulo que o
assume .
Se admitimos que o que inquieta, agita, recoloca febrilmente em causa é,
a princípio, profano, poderíamos deduzir que, de uma certa maneira, o sagrado, em
sua persistência desdenhosa, seria, de uma parte, o que nos fixa em nós
mesmos, uma espécie de morte perpetrada da alma e, de outra, a decepcionante
culminância da linguagem, o último vocábulo petrificado.
Além disso, é, em sua relação com o profano e através dele, que o
sagrado se dá a provar, não m ai s como sagrado m a s como sacralização do
profano ébrio de superação; como prolongamento indefinido do minuto e não
como eternidade estranha ao instante ;
pois a morte é da conta do tempo .
Não é, justamente, pela via da palavra impotente a se apropriar do dizer,
que a eternidade toma consciência de sua incompatibilidade com a linguagem?
Ao Deus invisível, fora necessário um Nome impronunciável.
Escrever – ser escrito – seria, pois, sem que nos demos sempre conta disso,
passar do visível – a imagem, a figura, a representação cuja duração é a de uma
aproximação – à não-visibilidade, à não- representação contra as quais luta,
estoico, o objeto; do audível, cuja duração é a de uma escuta, ao silêncio onde,
docilmente, vêm se afogar nossas palavras; do pensamento soberano à soberania
do impensado , remorso e suprem o tormento do verbo.
O sagrado permanece o desapercebido, o dissimulado, o protegido, o
inapagável; é por isso que escrever é também a tentativa suicida de assumir o
vocábulo até seu último apagamento, lá onde ele cessa de ser vocábulo para não ser
mais que rastro realçado – ferida – de uma fatal e comum ruptura: a de Deus
com o homem e a do homem com a Criação.
Passividade divina, irredutível silêncio face à imprevisível e perigosa
aventura da palavra entregue a si mesma .
Anterior ao profano, ele é, de todo limite, a desmedida arbitrária que o repele sem
cessar.
Sagrado. Segredo.
O sagrado se confundiria com o eterno segredo da vida e da morte?
Há um pós-dia, uma pós-noite aos quais dia e noite são invariavelmente
confrontados.
Eles são promessa de aurora e certeza de próximo crepúsculo. Vida e morte,
profano e sagrado, tais céu e terra convencidos de formar um mesmo universo, aí se
cotejam e se entremeiam.
O interdito original confere à não-representação seu caráter sagrado. A língua de
Deus é língua de ausência. O infinito não tolera nenhuma barragem, nenhum muro.
Nós escrevemos contra esse interdito; mas, não é infelizmente para nos chocar
violentamente contra ele? O dizer não é jamais senão desafio ao indizível e o
pensamento senão denúncia do impensado.
No seio do livro, o interdito da figura atinge mortalmente a palavra humana em
sua semelhança com a Palavra divina.
O livro sagrado seria para ler, então, através da recusa, por Deus, do livro do
homem; rejeição que preside sua destruição. Escrever, na esteira ou à sombra do Livro
absoluto, seria, nesse estágio, aceitar essa recusa.
O Livro de Deus permanece o Livro indecriptado cuja cifra é esse rubor vivo,
entre as cinzas de uma verdade condenada, que nos incumbe alimentar indefinidamente.
Escrever, nessa próxima distância, consistiria em recompor, com as palavras do
segredo, um livro destinado a se fundir nas margens e cuja ilegibilidade provisória
permitiria, em sua falta, a leitura infinita de nossas obras.
Um lance de céu está em cada parcela de terra e a tinta reluz, por vezes, de uma
luz mais intensa que a de uma fulgurante manhã.
Deus criou o homem à Sua imagem; depois, apagou esta Se apagando.
O homem, não tendo conhecido o rosto de Deus, não conhecerá jamais, a fortiori,
o seu. Ele sabe somente a dor da perda. Sabe que o que passa por ser seu rosto é, no
fundo, apenas a nostalgia de uma ausência de figura.
A imagem de Deus, seria apenas a de um infinito apagamento? A imagem do
homem, nesse caso, o seria também e a semelhança entre eles, aquela que uma imagem
ausente poderia ter com uma ausência de imagem; semelhança, no fim das contas, do
Nada com o Nada.
Buscar, a despeito de tudo, ter um rosto terá consistido, pois, para a criatura, em
sua tenaz vontade de existir, em inventá-lo.
Mas, toda criação é ligada a uma fração de tempo que, privada de futuro, é, ela
mesma, apagamento.
Então, qual é o rosto que exibimos? Seria ele apenas a imagem de uma imagem
reivindicada que, em nosso nascimento, herdamos?
Por trás dela há, provavelmente, o verdadeiro rosto surgido de seu apagamento e
perpetuamente apagado em seus novos traços: rosto de areia, esculpido na areia.
Podemos interrogar apenas a partir do nada.
O livro se fecha sempre sobre um rosto perdido.
OS TRÊS «ROGOS DE INSERIR»
DO LIVRO DAS SEMELHANÇAS,
RETORNADOS À AREIA

Vida e morte da areia são a p e n a s u ma mesma


aproximação do dia e da noite libertos do tempo do
qual o deserto é o berço e o último leito.

É de semelhança q u e vive a areia; é de seu


vazio matizado que ela morre .

A semelhança do grão de areia com o grão


de areia, talvez, seja a que haveria entre os c a c o s de
um espelho, no instante de sua queda, e os de um
espelho quebrado há milênios.

Não há semelhança senão ao preço de u ma


abdicação.

O Livro das Semelhanças

Um livro se lê através de sua semelhança com o livro perdido? Todo livro é


um livro de semelhança? A semelhança é o lugar desmascarado do livro?
Somos a p e n a s semelhança, mil vezes frustrada, com nós mesmos?
Um livro está para ler. Ele «se assemelha a um livro que não era, ele
mesmo, um livro – mas a imagem de sua tentativa.»
Nele cruzamos com «personagens que se assemelham a personagens
frequentados – mas que eram, eles mesmos, apenas herois de ficção».
Um novo Livro das Questões se a presentando, a um só tempo, como seu
duplo arbitrário e seu tirânico face-a-face, vê a luz do dia. Esse dia nos põe às
voltas com uma realidade que, até aqui, se dissimulava por trás de sua precária
aparência e, por su a vez , relança, em sua totalidade empenhada, a
interrogação.
(1976)

A suspeita O deserto

A dificuldade de ser estará ligada ao nome? Como se fosse pelo nome


inassumível que ela se desse a traduzi r?
A interrogação do nome, prosseguida de obra em obra, desde o
primeiro Livro das Questões – do qual O Livro das Semelhanças assumiu o turno
– é, de fato, apenas nossa própria e implacável colocação em questão através
do vocábulo que nos porta e nos rejeita?
Todo preito, plenamente assumido, t em sua origem – ó derrisão! – na
insuportável constatação do impossível pertencimento que, para não soçobrar,
concordamos em negar?
Mas, o livro, talvez, seja a p e n a s u ma etapa franqueada rumo ao
horizonte onde tudo se simplifica; pois só a morte é simples.
No coração da suspeita que cada u ma de suas palavras agrava, n o l i m i a r
do deserto onde e l e nos deixa, o livro seria, nomeado pelo que ele nomeia,
apenas a abertura e o encerramento infinito s do nome .
(1978)

A inapagável O desapercebido

Todos os livros estariam no último onde eles teriam colhido. Livro


antes dos livros. Livro da não-semelhança ao qual eles teriam buscado se
assemelhar. Íntimo modelo que nenhuma cópia igualará. Livro mítico. Único.
Com esse livro, o escritor conheceria, a um só tempo, a felicidade imensa de ter
podido, enfim, totalmente se exprimir e o medo pânico de não ter, doravante, nada a
dizer; então, que, ao contrário, seria pelo viés desse livro cumprido que a palavra lhe
seria restituída; mas, o que faria ele dela?
Estivera eu no extremo de minhas dúvidas, de meus receios, de minhas
esperanças e de minhas angústias?
Estivera eu, nessa hora em que para sempre fecho o livro, até o extremo de mim
mesmo?
Qual imagem do universo tomaria eu, hoje, à minha conta? A priori nenhuma em
particular ou – quem sabe? – talvez aquela que me propõe o livro: imagem de um sol
não aquecendo mais a terra e queimando o céu.
O homem aí prova a desmedida de sua solidão.
(1980)

(«As fronteiras da linguagem são nossas próprias


divisas.
«Aquém, há o pensamento do homem; além, há o
indetectável Pensamento de Deus?» havia ele escrito.

«De Deus, poderíamos a rigor compreender os


atos mas jamais o confundente Pensamento que os
comanda», havia ele escrito também.)
DO PENSAMENTO, COMO CRIAÇÃO
E DESTRUIÇÃO DO SER
ATRAVÉS DA PALAVRA

Perder a noite, é colher um pensamento.

«O pensamento retira o véu espesso que recobre o


universo para substituí-lo por um outro tão leve que
mal o adivinhamos.
«Percebemos o mundo apenas através da
transparência desse véu», dissera ele.
Acrescentando: «E se esse véu fosse a linguagem?»

Eu penso. Eu sou meu pensamento?


Para pensar meu pensamento é preciso que eu seja, eu mesmo, pensamento.
– O pensamento se dirige apenas ao pensamento; assim como a palavra, à
palavra.
Se eu sou meu pensamento, eu sou sua mastreação; logo, o movimento do Nada
que o porta ou deporta: esse Nada sobre o qual edificamos e no seio do qual
desmoronamos.
Sou eu o Nada de meu pensamento? Nesse caso, pensar não seria ‘ser’ mas
permitir ao pensamento varar seus caminhos.
Mas, como poderia eu lhe permitir isso sem ter já uma existência? E quais são
esses caminhos que não seriam, primeiro, os meus?
Resta a saber se, porque eu penso, eu sou ou se eu sou pelo fato de que meu
pensamento pensa em meu nome; não sendo mais, de meu pensamento, que a
embriaguez de seu advento; não sendo mais, de meu corpo, que o que ele deixa, por seus
cuidados, entrever e do qual meu pensamento fez o lugar esquartejado de sua
retumbância.
Eu te sustento com minhas palavras ; a s mesma s palavra s nos retêm .

Deus diz ‘Eu’ . Como o homem poderia, depois d’Ele, dizer ‘Eu’,
falando de si m e s m o ?
– Talvez porque ‘Eu’ seja apenas o vazio que um e outro preenchem. Um
pelo outro.

Pureza do silêncio! Não do silêncio que sabe, que ouviu e repetiu; mas do
silêncio que esqueceu.

Se o impensado é bem o branco, como não deduzir disso que, mais além, um
pensamento se prepara timidamente para nascer.

O pensamento é formado por um pensado – seu passado ebuliente – e de um


impensado – seu porvir problemático – entrelaçados: nó corredio ou de marca.

O futuro tem também um amanhã.

«O impensado é cotidianamente superado; o que reforça, se for possível,


minha convicção de que não há pausa para o pensamento.
«Símile à morte que está antes e depois da vida, o impensado seria,
assim, apenas a medida inverificável de um pensamento constantemente posto à
prova por seu insucesso », escrevera ele.
E acrescentara: «A quem pretendesse que não saberíamos superar o
impensável, precisamente porque ele nos priva de todo pensamento, eu
responderia que, para o pensador inebriado de superação, o impensado reside
nessa imagem esfiada do vazio, revelada pelo nó cortado de uma corda que um nó
novo está a ponto de substituir.»
E concluíra: «A vida do pensamento é uma sequência de miseráveis nós
sacrificados à sua perenidade.»
Não havia ele escrito: « O que é pensado e o que está por pensar são apenas o
mesmo fio do qual o impensado reuniu os filamentos. Apertamos nossos nós em torno
de uma ausência de pensamento que lhes registra seu grau de resistência» ?

Diante d e um a rosa, inexplicável é nosso comportamento.


Tomados de sua beleza, com um gesto maravilhado, nós lhe tiramos a
vida.
Escrever é renovar, sobre si, esse gesto.
O que morre em nós pode morrer apenas conosco.
O livro seria apenas o convite cotidiano para toda s essas mortes .
DA PALAVRA-CHAVE, COMO CRIAÇÃO
E DESTRUIÇÃO DO SER
ATRAVÉS DO PENSAMENTO

« O que rapidamente fizemos – dissera ele – foi confundir as palavras obsessivas


com as palavras-chave.
«A palavra-chave não é, necessariamente, uma palavra obsessiva. Ela é,
geralmente, ao contrário, uma palavra desapercebida, insuspeita.
«Para abrir uma p orta, é preciso pôr a chave na fechadura. O que faz, em
seguida, o possuidor da chave? – Ele a deixa deslizar em seu bolso .
«Não iremos lhe pedir que no-la mostre. O canhão, o furo, os dentes não
excitam nossa curiosidade.
«Toda chave é concebida para acionar uma fechadura; depois, para
desaparecer de nossa vista.
«Não há obsessão da chave, mas de sua perda.
«Em um escrito, a palavra- chave desempenha o mesmo papel. Ela é palavra
que abre o texto ao texto, por conseguinte, a nós mesmos.
«Ela não é a palavra do começo, mas a palavra de todo começo.
Encontramo-la tanto no início quanto no fim de uma página de escritura, n o
meio, logo após as primeiras palavra s ou antes das últimas.
«Não saberíamos, de saída, reconhecê-la, pois ela opera, geralmente, no
segredo; mas, seu gesto é luz.
«Em vão, buscaríamos marcá-la. Ela é a palavra que todas as palavras do
texto que a contém, alinhando-se, pronunciam tão baixo que ela não pode ser
ouvida por ninguém: palavra de passe misteriosa, por trás da qual se encontra o
livro.»

«E se a palavra-chave não fosse uma palavra mas uma chave da qual cada
palavra poderia s e servir? – I s s o significaria que poderíamos entrar no livro
apenas com a cumplicidade da palavra que detém, em sua posse, a c h a v e da porta
contra a qual teríamos esbarrado: palavra- chave p a r a a circunstância.
«Escrever seria, então, apenas facilitar essa troca de chaves entre as
palavras. É o que chamarei de relação instintiva com o texto», dissera ele ainda.

«É bem evidente – havia ele notado – que a palavra azul evoca a palavra
céu, mas não a revela. A palavra vazio, em contrapartida, o poderia.
«Se escrevo: Antes de ser negro, azul foi o vazio de minha alma, cubro, só
com essa frase, toda a extensão do céu.»

«Não é o escritor – havia ele notado também – quem detém a chave do


texto, tanto quanto não a detém o texto tal qual ele se oferece à sua leitura ;
mas, o que não se deixou encerrar na palavra .
«A chave é , provavelmente, essa falta, denunciada no livro por alguns
vocábulos portadores, eles mesmos, de u ma ausência imemorial: falta no infinito
da falta.
« É o que não vemos que nos permite ver. »

Todos os silêncios estão reunidos nas quatro letras da primeira e última


palavra silenciosa: Deus.
Quatro é a cifra do infinito.

O molho de chaves de Deus está enterrado no Texto. Esse dom divino


fei to aos vocábulos está na origem de sua íntima e demencial ambição.

Todo pensamento est á suspenso no capricho de u ma chave .

O espaço de uma palavra, nem o homem nem a palavra saberiam cercá-lo: ele é
imaginário.

A imaginação tem seus limites: os de uma realidade excessiva.

Imaginar é criar mais. Esse ‘mais’ é imprecisável.

A imaginação, talvez, seja apenas um pensamento deslastrado do peso de suas


origens; a audácia de uma palavra visionária à beira súbita do universo.

O menor cascalho é banhado de infinito.


A AUSÊNCIA, COMO ORIGEM,
OU A PACIÊNCIA DA ÚLTIMA QUESTÃO

A primeira questão é posta pela última.

Paciência do mármore. A árvore é sua permanente


preocupação.

«Apanhei, para ti, trinta e dois cascalhos


semelhantes.
«Dezesseis são questões da vida; dezesseis, questões
da morte.
«Mistura-os; pois, a cada uma dessas questões vãs,
só pode responder uma mesma vã questão», havia ele
escrito.
E havia acrescentado: «Para cada questão, uma
pedra; para as milhares de tumba onde jazo.»

Aprender a paciência sem, todavia, virar as costas para a impaciência.

Opor uma paciência secular à impaciência da questão.


Ser o alvo de todas as questões – o alvo que provoca a questão.
Desposar o aturamento do alvo.
Multiplicar a questão aguçando sua impaciência e, ao mesmo tempo, cultivar a
paciência que lhe permite perseverar.
Encarniçar-se na resposta. Reportar a si mesmo esse encarniçamento.
Ser a q u ele que fere e que é ferido.
É na morte que, com todos seus fogos, resplandece a verdade.

O evento prevalece.

«O evento, dissera ele, é uma das pequenas perfurações na margem esquerda de


minhas folhas, perfurações que me permitirão, um dia, destacar estas sem dano a
fim de entregá-las intactas ao vento: meu último dom.»
E acrescentara: «A eternidade é pontuada de precipícios: nosso perpétuo
cotidiano.»

Cremos viver, cremos escrever nossa vida: esburacamos.

O cotidiano é água que escorre; a duração, filtro.

O que adveio era previsível. Ninguém terá buscado evitá-lo.


Sem fraquejar, a noite espera o sol.

Só o que nos toca de perto nos preocupa. Nós nos preparamos, na solidão, a
fazer-lhe face.

Ele dissera: «A indiferença é o veneno que degustamos tal, no verão, um suco


de fruta gelado».

O horror predomina. A dor, sobre si mesma, se recurva.

Roda dos assassinos, o condutor do jogo não é sempre aquele em quem,


com toda conhecimento de causa, pensamos.

«Não julgamos a vítima mas o matador. A vítima foi já julgada: julgamento


de assassinos.
«Quantos sois vós a subscrever isso? Quantos a denunciá-lo?», havia ele
escrito.


Ele dissera: «O rosto de uma criança, não estando ainda esculpido pela
linguagem, é rosto fora do tempo.
«O tempo do rosto é o tempo de suas rugas.»

Ele dissera também: «O primeiro rosto é terno chamado aos rostos que ele
prefigura; o último, a soma de todos os nossos rostos murchados».

A identidade é menos a captura do rosto que sua conquista.


Uma aliança com a morte.

Todo pensamento da morte passa pela destruição do rosto.


Não podemos pensar a identidade fora do nada.

Deus desgasta o homem em Deus.


Crueldade do Nada.

O Nada pode ser pensado apenas através de todos os pensamentos reduzidos a


nada do tudo.

Não há absolutamente ausência que o tempo não tenha, previamente,


considerado como sua recreação merecida, seu repouso legítimo, seu sétimo dia.
A realidade, que é marcada pelo tempo, une-se, assim, por um breve
momento, à eternidade de u ma irrealidade que a teria imaginado e à qual, sem o
saber, ela teria dado existência.
É a esse tempo, destacado do tempo, que a ausência pertence.

A ausência é para a presença o que o tudo é para o nada: um mesmo


estupor.
... o que o sonho do sonho é para o devaneio.

«O tempo me foi poupado – havia ele notado. Eu teria sido meu


próprio devaneio. »
Ele dissera: «Sou sem lugar», como di rí am os : «Sou sem laços»,
sabendo, todavia, que toda palavra cria seu lugar.

Há instantes que nascem e morrem no instante. Eles não serão jamais


contabilizados .

Do que permanece , sou a part e leve de infortúnio: a palha queimada .

A questão, no seio do cotidiano, é, a um só t empo, o instante em


questão e a questão do instante .

A eternidade é sem questões.

Às interrogações do instante, a resposta deveria responder; às próprias


interrogações também da questões; mas, cabeça -dura, ela responde apenas a
si mesma.

A eternidade est á por trás do tempo .

Do nada ao impensado, há todo o trajeto do pensamento: de sua noturna


eclosão a seu fim encurtado.

Crer que temos ainda uma coisa a dizer, mesmo quando não temos
mais nada a exprimir.
A palavra nos mantém em vida.

Morremos sempre de uma palavra frustrada .

O instante é rico de uma eternidade entrevista, afrontada – como a vela


bem esticada é ébria de espaço e de chuviscos.

Insensível eternidade!
O céu desaparece no céu e o mar no mar sem provocar a menor turvação
nem inspirar a compaixão.
A perda do instante tem, imediatas ou distantes, consequências apenas para o
que germina ou verga.

Pa ra os céus, para o oceano, a noite não é nem o luto nem o sono mas o
impasse .
O sol joga a eternidade contra o instante .

Tomar a medida do instante , talvez, seja atiçar a eternidade .


De um punhado de areia apanhada no deserto, ninguém desvia sequer um
grão para pesá-lo .

A luz acima de nossas pálidas luzes. O pensamento é deslumbrado por ela.

Cego é o pensamento do vidente.

(«Não podemos escrever sobre a areia; seria


escrever sobre nossas próprias palavras; sobre um texto
já desconfessado pela areia», dissera ele.)
Areia

«Sou o refém de uma palavra que, ela mesma, é


o refém do silêncio», dissera ele.

«A morte está, primeiro, na palavra.


«Por isso não busques a minha lá onde, febris,
outras se pressionam mas lá onde elas se recurvam
sobre sua defunta eternidade», dissera ele.

Não pensamos a morte, o vazio, o nada, o Nada;


mas suas inumeráveis metáforas: uma maneira de
contornar o impensado.
Houvera meus livros escritos, não na areia ou com
areia , mas pela e para a areia .
Livros dos quais desposei o destino – a imóvel
aventura – decifrando-os à medida que eu me
identificava com eles até não ser mais que sua
escritura mesma . Milagre tornado possível ao preço
de minha própria dissolução.
Areias que, em nome do Nada, abolis o Nada, eu
vos despossuirei de vossa parte legítima de infinito?
O céu suplanta o livro mas não a areia que, através de cada grão, o
endurece.
Só, aqui, o peso do silêncio é pensável .

Deus não gravou absolutamente Sua palavra na pedra mas no eterno


instante de um silêncio petrificado.
A quebra das Tábuas é, primeiro, o ato fundamental que permitiu a
passagem da divina escritura do silêncio ao silêncio homologado de todo
escrito.

Riqueza da suprem a pobreza.

«Escrever, dissera ele, é um ato de silêncio dirigido contra o silêncio; o


primeiro ato positivo da morte contra a morte. »

«Para além do que eu poderia ter ainda a dizer.


«Cabe, a ti, ler. A mim, desaparecer.
«Intruso», havia ele notado.

«É o céu que desce sobre a terra e não a terra que


sobe ao céu; nosso planeta não tendo infelizmente a
leveza do azul ou da sombra», dissera ele.
E acrescentara: «Assim descerá a morte sobre
nossos corpos rígidos.»)

O escrito nos empenha. Nós, talvez, escrevamos apenas para nos


desempenhar sem saber que esse desempenho é apenas uma maneira, para nós, de
respeita r até o extremo nosso empenho.
... até o extremo, quer dizer, até lá onde, chegado a seu termo, o empenho
assumido se nos apresenta como um novo empenho.

Lemos – assim como se ceifa a erva – o que a treva nos toma .

O pensamento tem necessidade de se abaixar para retomar em seguida altura.


Seus topos são ainda seus limites .
É por isso que poderíamos dizer que o impensado é um pensamento sequer
abaixável.

Somos a presa de vária s escrituras .

«Se a verdade existisse, dissera ele, ela teria sido nosso único adversário.
«Felizmente, ela não existe e nós podemos as sim nos inventar inimigos.»

«Povoei a noite de reclames, dissera ele também. Alguns quiseram ver nisso
apenas estrelas tomadas de suas cintilações. »

O tempo inteiro cabe em um olhar .


O infinito abre nossos olhos, o instante os fecha.
Não há eternidade senão no olvido.

Ele dissera: «Generoso e impiedoso vocábulo. Tudo me foi concedido ou


recusado por ti, inclusive o instante que, hoje, infla de amor meu coração e
aquele que, em breve, o fará bater tão fraco que só a morte alertada chegará a
ouvi-lo.»

Toda leitura limita. O texto ilimitado é aquele que suscita, cada vez, uma
nova leitura à qual ele escapa em part e.
O que resta sempre a ler é só sua chance de sobrevivência.

Viver sem se perguntar: «Por quê?» é, de antemão, eludir a questão: «Como


morrer?»; é aceitar uma morte sem origem.

A história do pensamento, talvez, seja apenas o audacioso pensamento de


u ma história vivida no rente – como galho cortado rente ao tronco – do
pensamento.

Um livro sem fim pode ter por termo apenas o fim de seus imprevisíveis
prolongamentos.

O ar que tu respiras, ele te força a devolvê-lo ao ar.


Tal é o sopro.
Teu peito é estreito demais par a esse dom do céu.

«Sou, provavelmente, a memória de meus livros; mas, até onde meus


livros têm sido minha memória?», dissera ele.

O pensamento não nasce para o dia. Ele é o dia.


Diria eu, de minha parte , que ele nasce para a noite?

«Afeiçoo-me – dissera ele também – por esses pensamentos flutuantes, ainda


presos entre as bruma s do sono e os tímidos clarões do dia;
«entre o nada já menos escuro onde eles soçobraram e a espigueta
surpreendida pelo primeiro olhar.»

Pelo quê se define o pensamento ? – Não absolutamente pelo que ele é mas
pelo que ele circunda.
O que chamamos pensamento s e r i a , p o i s , a p e n a s sua capacidade de
circunscrever o que se oferece a ele.
Assim não sabemos jamais até onde pode nos levar sua curiosidade; esta, a
fi m de est ar à altura de nossa fé na li nguagem, subordinando, no mesmo lance,
o pensamento ao êxito imprevisível de sua formulação.

Grânulo ciliado, alado, de pelugem: o pensamento.

Ele comparava ora o pensamento a um campo de trigo, ora a um oceano.


Ele se enganava duas vezes. O pensamento é carga da espiga e dimensão de
oceano.

Bastardo pensamento , magra água .

Pensamento que sobe em grão. O impensado não tem nenhum caule.

«O impensado – di ssera ele – é o al ém do livro; seu horizonte


interior.»

Se, para defini-lo, comparo o impensado a um fermento determinado, ele


me aparece tão logo como o tormento infinito de meu pensamento .
Assim o além do livro é ainda o livro.

Posso pensar o impensado apenas partindo do limite.


Aonde vou não est á previsto.
Todos os degraus são par a o pensamento .
Para o impensado , a ausência abrupta de passos.

Conhecer cada intervalo de infinito, como os seres de uma morada .


O instante é minúscula porta da duração. Lá entramos, tendo-nos
tornado novamente bem pequenos.

Em minha morada , o tempo não est á ao abrigo.


«Posso dizer – havia ele notado – sem risco de me enganar, que o
impensado não é outra coisa senão o desmoronamento temido da ponte que ligava
entre si duas riba s indistintas .»

A terra gira n o temerário pensamento de sua rotundidade e no vazio do


impensado sobre o qual ela toma apoio.

Aquele que tem poder de desfazer, não pode, si mesmo, ser desfeito.

Escrevemos sempre ao fio do Nada .

Dizer do pensamento , como de um fruto, que ele se desenvolveu bem.

Não há saída senão no desconhecido.

Aquele que se vai – Abraão – para onde ele vai? Tendo partido em busca de
sua identidade, é o outro que ele descobre. Ele sabe de antemão que perecerá por
esse outro na insondável distância que o separa de si mesmo e donde emerge o
rosto de sua solidão.

Vivemos aquém. Morremos sempre além; mas a fronteira é mental.

Podemos pensar o outro? Podemos nos referir apenas à ideia que temos dele.
A relação com o outro seria apenas relação de dois pensamentos estéreis
postados de costas um para o outro, onde o impensado não ousa ainda dar
mostra de seu triunfo?
Assim se dá com a noite e o dia encurralados a perecer por suas próprias
armas .

A idade nos fere. Não sofremos senão sangrentos reveses; mas, no mais
baixo da curva, basta, por vezes, uma centelha de amor para iluminar nossa noite.
Não considerar jamais o saber adquirido senão como uma manifestação da
ironia do Nada .
Ter saber adquirido é, de uma certa maneira, viver sobre o humor salutar
do Nada .

«O pensador é um pescador calejado, dissera ele. Do oceano do impensado,


ele retira reluzentes pensamentos – peixe-lua ou peixe-globo; peixe-piloto ou peixe
chato – que, tendo mordido a isca, entre o azul do céu e o azul do mar, um momento
sacolejam, antes de encalharem, estrangeiros, sobre o solo.»

Casal terrível: a vida treme , a morte ri .

O pensamento é para a vida o que o impensado é para a morte: a mesma


boia.

Nós nos teremos servido, para viver e para morrer, da mesma bobinadeira.

Tal u ma lâmpada de cabeceira, o canto da cama; a liberdade clareia apenas


a sombra de um passo.

Pôr uma questão à ausência, isso parece, à primeira vista, absurdo.


E, no entanto, não interrogamos verdadeiramente senão a ela.

«Nós nos precipitamos com tanto cegamento para vastos rincões de


ausência , que estou assustado com isso.
«Todo devir é apenas ausência pouco a pouco assumida», dissera ele.
E acrescentara: «Minha alma foi amputada de sua melhor parte, como um
corpo são de seu braço direito.
«Ah! Quão fisicamente me faz mal essa part e faltante de mim mesmo!
«Que concluir disso senão que é pela dor que a ausência se manifesta a
nós. »

O sangue avermelha a tinta sem, no entanto, a entepidecer.


Todo vocábulo morre de frio.
Nossa ausência ao mundo, talvez, seja apenas nossa presença ao nada.

Tu podes contar apenas os dias que tu perdes.

Olhar cuja solidão não saberemos jamais imaginar : olhar do Nada.

Àquele que te quer mal, esconde tuas feridas: elas o exaltariam.

– Que vos apavora ?


– O que se instala em vosso nome e que vós não tendes mais necessidade de
justificar.
– Eu vos compreendo mal .
– E se eu vos respondesse que vossa verdade mata ?

(Se Deus é Sua Palavra, o deserto é mais velho


que Deus, tendo sido o lugar donde ela surgiu; mais
velho, portanto, que esta; mas, Deus é sem passado.
Dizer que Deus nasce de Deus e morre em Deus, é
admitir que Ele é, a um só tempo, a Palavra e o
Lugar?
Ao declarar: «Eu sou o Lugar», Deus buscava
marcar que Ele era Palavra de todo lugar e Lugar
de toda palavra?
A vida de Deus foi de uma brevidade
desconcertante; Sua morte, a de Sua Palavra
fulminada.
Dessa vida, o deserto testemunha por seu
silêncio. A essa morte, cada grão de areia nos
reenvia.)

Por ter oposto Deus a Deus, o Pensamento ao Pensamento, o Livro ao


Livro, tu os terás destruído um pelo outro;
mas, Deus sobrevive a Deus, o Pensamento ao Pensamento e o Livro ao
Livro.
É em sua sobrevivência que tu continuarás a provocá-los.
Ao deserto sucede o deserto, assim como a morte à morte .

(Não há ferida senão ferida.)


II – O LIVRO DO DIÁLOGO (1984)
A interrogação não desemboca sobre o diálogo:
ela é seu contraforte.

Amanhã: incaptável vocábulo. Jamais vivido.


Sempre a viver.

(«Vindo o tempo de um nome que me conviria, para


existir, havia-me ele escrito.
«Aquele do qual me tenho, até aqui, prevalecido é o
nome de minha ausência.»
«Tenho necessidade de minha vida para escrever;
mas, minha vida desejava ser escrita?» perguntara ele.
«Toda vida é escritura de uma vida», foi-lhe
respondido.

«A palavra francesa JE (EU) repousa sobre minhas


duas iniciais. Ausente, eu teria, graças a ela, adquirido
um estatuto de vivo», dissera ele.

«Para ti, ó esplendor, as cintilações do diamante;


para mim, os escuros derrames da ferida.
« Anoite do livro é livro de nossa noite.»

Solidão do bem; ao mal, cortês companhia.

«A palavra de Deus está na do homem.


«A palavra do homem, no silêncio de Deus»,
dissera ele também.
O COMEÇO DO LIVRO

«O livro não começa, respondeu ele.


«Todo começo está, já, no livro.»

Duvidosa é, a priori, a interpretação do livro pois, a todo momento, ela é


recolocada em causa pela opaca claridade de um vocábulo que poderia bem ser a
palavra-chave.
A riqueza do texto está nessa parte de sombra.

«Saber que penetramos no livro apenas após termos sido despossuídos dele.
«Assim, habitamos apenas nossa perda», dissera ele.

É necessária à claridade muita sombra para deslumbrar.

Teremos escrito sobre a superfície ondulante de um sopro!


DIÁLOGO ENTRE A VIDA
E A MORTE NA PALAVRA

«Eu sou, dissera ele, página de escritura para a vida;


assim como a morte, para mim, é a página que leio.
«É por isso que a escritura é, a um só tempo, medida
e desmedida da morte.
«Tu lês o que tu foste; tu fazes, de outrem, o leitor
de teu porvir.
«A vida, assim, seria, no livro, apenas essa
passagem da ilegibilidade à legibilidade atingida e, ao
mesmo tempo, perdida.»
E acrescentara: Elegível, a vida. Elegida, a morte.
«O diálogo ocultado, em sua crescente e angustiante
inaudibilidade, prossegue no recôndito inacessível de
nós mesmos.»

Ele havia escrito também: «O corpo é essa obra-


prima do pensamento que permite a este resplandecer e,
com ela, sangrar – raiar e perecer por seus próprios raios.
«Do corpo defunto, as cinzas são apenas as do
espírito.
«Teremos, até então, acompanhado nosso
pensamento.»

– A quem falamos ao escrever?


– A um ser do qual não sabemos jamais se ele é nós mesmos ou um outro.
– Falamos a um desconhecido?
– Seria absurdo dizer isso dessa maneira e, no entanto, é justamente isso que
poderíamos adiantar; não se dirigir a ninguém, ao falar, talvez, seja falar apenas a si
mesmo; mas, como falar a si mesmo sem fazer, tão logo, de si um outro.
– ... ainda mais porque somos, nós mesmos, esse outro.
– Não pretendo isso. Vós não me compreendestes ou, talvez, eu não tenha sabido
nem um pouco me fazer compreender. Esse outro é não eu-mesmo, nem minha invenção.
Ele é minha descoberta do outro em mim.
Esboçar o perfil de uma palavra sobre uma folha é, já, tomar língua com a página
branca.
Tudo o que vemos, ouvimos, abordamos, uma vez reconhecido, entra em diálogo
conosco.
O livro seria, assim, apenas espaço circunscrito pela palavra aberta à palavra. Não
somos escritos onde ele se escreve, mas inscritos onde ele se apaga.
Há uma linguagem da tumular inscrição que esta nos impõe ao nos forçar ao
silêncio. Denso silêncio à cata de um signo.
Ah o outro – homem, mundo, Deus – mais nós mesmos do que poderíamos sê-lo
no segredo de suas confissões; palavra de uma palavra à qual não ousamos ligar nosso
nome; pois se somos tributários dela, ela, pelo contrário, mal nos pertence.
Brancura, brancura de sangue. Séculos de orgulho e de derrotas jazem no
vocábulo. Tu os despertas revelando-o.
Um livro se entreabre no momento em que nos deixamos.

(«Não podendo dizer, nós mesmos, senão menos, as


palavras dizem, forçosamente, mais;
«pois a palavra é saída da palavra e nós, ai, do
Nada», dissera ele.)
PARTILHA DOS LUGARES

– O diálogo é possível?
– Como são possíveis a vida e a morte.
– Eu vivo e morrerei.
– Tu vives de uma impossibilidade de viver que a
morte tornou possível, a fim de poder pôr um fim a ela.
– O fim é impossível onde não há início.
– Toda palavra nasce de uma palavra refluída. A
reboque desse refluxo, nós falamos.




(– Que diz ele?
– Ele diz que, quando a vida cessa de interrogar a
morte e a morte de questionar a vida, não há mais
esperança. Há o olvido; o inferno do olvido.
– A paz?
– O inferno da paz. A folha no braseiro.
– Ah preserva teu livro. Ele te protege.
– Fala mais. Não pares.
– Debruçado sobre teu ombro, leio nosso livro. Ah
não te desvies do escrito. Tu és a pluma e a mão.
– A queimadura é leitura. Ela é nosso único bem.
– Por todo o tempo que conseguires decifrar o livro,
ele durará.

  ★

Ele dissera: «Esse incêndio, talvez, seja um livro


em chamas entre céu e ruínas.
«Diálogo entre fogo vivo e fogo agonizante.»
E acrescentara: «Carvalho imponente cujos ramos
não são mais linhas e cujas folhas cessaram de ser
palavras.»
«Árvore e livro são bandeiras do mesmo
abrasamento.»
– Onde está o incêndio? perguntara ele.
– Alhures, muito longe. Ninguém pode vê-lo daqui
mas a luminosidade do dia o trai.



  ★

O escritor queima para o livro: uma maneira de
poupá-lo.

À questão levantada: «Há um diálogo e como pode ele se estabelecer entre dois
estrangeiros?», ele respondeu: «Haveria um ante-diálogo que seria nossa lenta e febril
preparação ao diálogo. Ignoramos, sem dúvida, como ele se desenrolará e qual forma
tomará, mas sem podermos, entretanto, explicitá-lo temos, de antemão, a convicção de
que este, já, se encetou: diálogo silencioso com um interlocutor ausente.
«Haveria, em seguida, um pós-diálogo – ou pós-silêncio. O que poderíamos ter
dito ao outro, ao curso de nossa troca de palavras – que é, antes, um aprendizado de
palavras – que não diz virtualmente senão esse silêncio; silêncio ao qual nos reenvia toda
palavra insondável, cava, em vão escavada, centrada sobre si mesma.
«Haveria, enfim, o que poderia ter constituído o diálogo propriamente dito,
insubstituível, vital mas que, ai, não terá lugar, iniciando no momento em que nos
despedimos um do outro, recolhidos, ambos, à nossa solidão.»

Tal o diálogo, o livro tem suas bancadas de abordagem.


Escrever seria, então, apenas subir os degraus de nossas faltas.
A Palavra está no topo.

(«Insustentável, havia ele escrito, é minha vida no


livro e – loucura – é a essa vida que me sustenho.
«Vem a meu socorro. Partilha, comigo, minha
palavra e meu lugar.»)
O ante-diálogo, I

O poço, ó diálogo: o apoio de um instante d’água


prometido à nossa eterna sede.
Ilusória saída.

Tu escrutas seu rosto. Ele esculpe, ao mesmo


tempo, o teu.
Um sábio dissera: «Ao me dirigir a Deus, receio sempre confrontar Sua
sensibilidade, tanto minhas palavras são desajeitadas; mas se eu não Lhe falo, Ele poderia
deduzir disso que ele, talvez, me tenha ferido.
«A relação com Deus não é tão simples quanto se poderia supor.
«O homem a ignora, mas Deus a sabe. Ele, desde o começo, não marcou Sua
desconfiança para com o Verbo, iniciador, em Seu lugar, do Tudo e do Nada? Dois
criadores de igual poder se disputam a Criação. Deus pôs fim à discussão. Recusando a
partilha. Ele se refugiou no silêncio, entregando a palavra a si mesma.»
E acrescentara: «Herdamos uma Palavra órfã, errante, exilada, que temos buscado,
em vão, dominar, sem duvidar que ela nos reenviava à nossa comum solidão.
«Capital é o diálogo. De um extremo ao outro de uma vida extinguindo-se da vida
exaltante – exaltada – que ela abraça.»

Um diz: «Eu sou o ponto. Ah eu amaria bem, um dia, descobrir o círculo do qual
devo ser o centro: meu universo.»
O outro diz: «Eu sou o círculo. Ah eu amaria bem, um dia, descobrir o centro que,
à aventura da linha, dá um sentido.»

Tomar consciência de seu universo, dissera um sábio, seria apenas se atacar a


alargar seu insuportável encerramento; a partir de uma cela exígua, sonhar com uma
imensa prisão.
«Nós nos arrumamos um espaço que, sem o sabermos, se fecha, tão logo, sobre
nós mesmos.
«O espírito perece sufocado.
«Pensar seria, então, apenas infatigavelmente retificar as redondas fronteiras do
pensamento.
«Nós nos comunicamos, uns com os outros, no interior destas.
«Assim dialogar seria, cada vez um pouco mais, investir conjuntamente um
espaço descerrado.»
E acrescentara: «Nossa sede de liberdade nos fornece a prova disso. Chocamos
com os muros que temos, por outro lado, elevado com nossas próprias mãos, esquecendo
que somos chamados a nascer e a morrer da mesma sede.
«A liberdade está nesse olvido.»

«Tu sabes por que ficas constrangido diante do mutismo provocante de teu
interlocutor? É porque com ele o jogo é viciado. Ele te impede de falar de ti a ti
mesmo», havia ele escrito.
E havia acrescentado: «Outrem não seria senão nosso rosto de retroca, a máscara
oportuna que, a um só tempo, nos subtrai à sua visão e nos permite enfim livremente
ver?
«É necessário, às pupilas, um caminho novo; à solidão, o fiel apoio de um olhar
cego.
«Tão cara é tua presença, ó doce presente do olho em sua pureza nativa.
Tão vivazes e sólidos – tão verdejantes – são nossos laços secretos.»

«O olho é um círculo, havia ele notado; mas, a íris é o abismo.


«Falamos em nome de uma solidão à qual tomamos emprestadas nossas
palavras.»

O fundo sem a forma é um pensamento sem corpo. A forma sem o fundo é um


corpo sem pensamento.
– Tu és pela forma ou pelo fundo?
– É o mesmo que me perguntar se sou pela onda ou pelo mar.

... mas, é o corpo abismado que, em sua sequência, enleva o espírito ao vazio ou, o
espírito, na cumeada de sua potência, que precipita o corpo estorvante no nada?
«Somos as vítimas de um grave erro de cálculo, dissera ele; de uma temeridade
abusiva ou de uma negligência fatal.»

Não batemos nas portas da morte. Nelas entramos ou delas saímos.


A consolação estaria na manobra?
A memória nos apavora. A recordação nos empresta mão-forte.
Nós nos rememoramos dos poucos momentos de uma morte pessoal – anônima? –
da qual a vida conservou a imagem amarrotada.

Para o silêncio, a imagem é requisição satisfeita.


«Onde tudo se cala, o olho vê», havia ele notado.
«Como se apoiar sobre um instante que, si mesmo, não se apoia sobre nada?», nós
lhe perguntamos.
«O apagamento tem, por porvir, o apagamento mas ninguém pode passar uma
borracha senão sobre o que foi», respondeu ele.

A morte rasura minuciosamente a morte.

(A idade: lá onde me exibo com minha alma e meu


corpo. Lá estão o tempo e o espelho.
Tenho a idade do consentimento.)


Quando não te recordares mais de nada, tu começarás a te recordar dos começos
de tua vida, tão antiga, e das coisas.

Está em nosso poder pensar Deus – poder enganador – mas não podemos nos
recordar d’Ele. Não há absolutamente retorno a Deus; Deus está adiante.

«Se Deus não pode entrar em nossas recordações, haveria, pois, uma parte do
homem onde Deus não teria jamais penetrado», dissera ele.
E acrescentara: «Deus não reina totalmente senão sobre a morte.»
A memória é garrafa empalhada da qual a recordação é a rolha.
Faze esta saltar. Tu te inebriarás com seu conteúdo.

Leal é a memória; traidoras, as recordações.


Teremos edificado nosso passado sobre a infidelidade do grão de areia.
Probo é, no entanto, o deserto; íntegro, o vazio.

O diálogo tem seus patamares: abatimento de abismo.


O nada também tem seus escalões.

O céu da formiga não é absolutamente o nosso; o da folha, muito menos.


Tu escreves, a mão nas nuvens ou afundada na luz.
O campo onde evoluem os vocábulos torna-se proporcional a seu objeto: o espaço
adequado. Somos sós a poder salvaguardá-lo.
O escritor testemunha da vitalidade do signo.
... olhar que capta, doravante, apenas o invisível. Tão claros são os horizontes.

O olho delimita o infinito; opõe-no, fragmentando-o, a si mesmo.


Toda ruptura é acessão ao diálogo, prelúdio e termo de uma palavra legada.

Escrever é refutar o diálogo, mas é também instaurá-lo nessa refusa.

Todo diálogo não é jamais senão o afrontamento de dois monólogos condenados.


Violência da fraternidade.
Quem nos julgará por esse assassínio?

O que está por pensar é pensado na esteira de um pensamento do qual não


podemos realçar senão a passagem.
Não é esse pensamento que será jamais captado: ele somente abriu o caminho.

O importante não é a experiência. O que, talvez, o seja, é o grau de intensidade


atingido ao vivê-la.

Verdade e liberdade não podem, uma sem a outra, se conceber; elas são relvas do
mesmo prado.

Escrever é fazer o Nada pensando fazer o Tudo? Só esse fazer cotidiano, para nós,
terá contado.


«O que passou nos deixou o lamento.
«Aquele que é esperado nos trará a esperança?
«O primeiro, tão logo, nos reconheceu. O segundo, recorda-se ainda de nós?
«Passado e porvir são faces obscuras do mesmo dado», dissera ele.

E se Deus fosse apenas sobrevivência de Deus no coração de sua infalível


memória? Não poderíamos abordá-Lo senão através dela. Ó total disponibilidade.

Não criamos. Rememoramo-nos.


... culminar nessa soberana disponibilidade. Rumor. Ah repelir esse zunzunzum
fastidioso, não ser mais que a escuta de uma planetária escuta; descobrir sendo, em suma,
apenas desenchavetar.
Perder. Perder. Perder.

Não recebemos nada.


Doamos tudo.

«Não há, repetiras tu no abandono, ó miserável reconforto, diálogo mas um tempo


subtraído ao tempo e consagrado à elaboração da palavra.
«Guarda, em tua posse, esse tempo.
«O que buscamos nos dizer está, já, perdido para toda palavra.
«Ó silêncio. Ideal harmonia.
«Assim o mar se une ao mar apenas quando cai o vento.»

(«Nascemos fonte, dissera um de meus amigos.


Morremos areia assedentada.»)

«Talvez escrevamos apenas para salvar algumas palavras do incêndio que se


incuba em nós», dissera ele igualmente.


E se o diálogo fosse apenas a quebra de um livro anônimo cujas partes buscariam
menos se reconstituir do que marcar a quebra?
Nós nos falamos através de uma quebra cuja origem sempre ignoraremos.

A linha é negro traçado da morte.


A vida se expõe em pontilhados brancos.

(«A quebra, talvez, seja origem da eternidade.


«A ferida, incontestavelmente, origem da vida; de
uma vida que se escorre entre quatro velhos espelhos»,
havia ele notado.)
O ante-diálogo, II

... esse intervalo insignificante que separa a morte


do morrer.

Não se aceita nem se recusa, ó morte, vazio, ar, sol.


O ‘Eu’ é milagre do ‘Tu’.

«Isso decorre, dissera ele, de uma certa lógica: o ‘Eu’ para designar o ‘Tu’, o ‘Tu’
para justificar o ‘Eu’ e ‘Ele’ para desaparecer.»

Não há tempo presente. Há um tempo assombrado pelo passado e um futuro


esquartejado pelo passado.
O presente é tempo da escritura; a uma só vez, a obsessão e o corte de um fora-de-
tempo encharcado de vida.

(Quanto a mim, que mal soube falar a mim mesmo,


agora que tudo se calou em meu ser, saberia eu ainda
falar? Não me ouço quase mais. É sobre esse «quase»
que assentarei minha palavra, ou antes o que teima em
se querer ainda palavra – ainda que ela seja surda ao
chamado do universo – a fim de tomá-la inteiramente à
minha conta; pois, não exprimindo, doravante, mais
nada, ela melhor me exprime.)

Para a dor, o olvido é ilha de flores.


O nada embalsama.

Fabulosa eclosão de uma rosa


no campo de pobreza das coisas.

A noite não encontra consolação na noite, mas na extravagante estrela ornada de


todos os seus fogos.

Outrem é uma ficção.


O SONHO

Tomei o hábito, um pouco antes de me pôr, por exemplo, à minha mesa de


trabalho – em todo caso antes de me ocupar de qualquer tarefa – de ir me sentar, cada
manhã, no sofá colocado no fundo do cômodo onde me refugio. Meu sofá, tendo-o
adotado há muito tempo.
Nesse dia, na mesma hora, os olhos semicerrados, empenhava-me a cavar o vazio
em mim a fim de dar livre curso aos pensamentos mais diversos que me assaltavam,
deixando-me guiar por eles, sem meta precisa nem vontade de obedecer ou de
recalcitrar.
Eu estava ainda no ponto morto de minhas reflexões e meditações quando ouvi
baterem à minha porta – que, por precaução, fecho sempre para não ser inutilmente
perturbado – e, quase ao mesmo tempo, vi aparecer uma jovem mulher a quem eu
não ousara, imediatamente, dirigir a palavra, tanto eu ficara paralisado por sua
conduta desenvolta e pelo silêncio que ela impunha; silêncio mais exigente que
aquele que reinava no quarto.
Ela tomou lugar, à minha frente, no sofá que faz par com o meu, me observou por
um breve instante; depois, à queima-roupa, me rogou para ter a amabilidade de lhe
revelar seu nome – mas com um sorriso tão desabusado, uma tão dolorosa insistência
no olhar, que eu arrepiei.
Ela adivinhou meu incômodo pois, logo, se levantou, vergonhosa, parecera, de si
mesma, se dirigiu para o corredor – ela havia deixado, ao entrar, minha porta
entreaberta – e, sem prestar a menor atenção à minha pessoa, se eclipsou.
Dessa mulher da qual não sei nada, senão que, uma manhã, ela inopinadamente
irrompeu em minha casa para se esvanecer tão rápido, mas cuja pergunta continua a
atormentar minha memória, não se fará, neste livro, nenhuma menção; nem da
doçura infinita de sua voz, nem, muito menos, dessa incurável ferida que ela viera
confrontar à minha;
mas seu rosto e sua voz não são, por isso, senão mais presentes nessas páginas;
seu rosto para alimentar minha imaginação; sua voz, prova irrefutável de sua
realidade.
Imagem do livro e voz que o atravessa de parte a parte. Orvalho para um deserto
inexplorado e sonho com um oásis areado.

«Quando lançamos uma bala contra um muro, o que se passa? O muro no-la
reenvia; mas, o gesto de apanhar a bala e relançá-la em seguida, segundo as regras do
jogo, varia.
«Passamos da comodidade à dificuldade, do encarniçamento à moleza sem ter,
previamente, procurado por isso.
«Assim se dá com o diálogo», dissera ele.

O coração do diálogo é repleto dos batimentos da questão.

Haveria dois silêncios em cada silêncio, assim como há duas palavras em cada
uma.
Alces o tom. Suprimas o muro.

A palavra de verdade floresce por trás do muro. Precisaremos, ah, precisaremos


fender a pedra para colhê-la?

«Os precipícios, assegurara-nos ele, comunicam-se entre si através da atração que


eles exercem sobre nós.
«Assim estaríamos na origem de seu chamado vertiginoso.»
«Mas, o que é a origem? nós lhe respondemos, senão a vertigem de um hipotético
começo?»

O abismo é o vazio indispensável à eclosão da universal memória.


Esse vazio da alma nos veste de sombra, ó grotesca cabeceira donde emerge um
rosto que escorre de suor.

Necessário é o nada.

– Vim para te interrogar, diz o discípulo.


– Não esperes, de minha parte, nenhum ensinamento, respondeu o mestre.
Recebemos em partilha a mesma luz: nosso humilde saber.
– É preciso, tão cedo, que eu te deixe? diz o discípulo.
– Tenhas paciência. Tratarei, com meu melhor, de te ajudar. Ensinar-te-ei, pouco a
pouco, a desaprender. Tal é a virtude do diálogo, respondeu o mestre.

A verdade se afirmaria como cumprimento se o incumprimento não atestasse a


falha da verdade que alcançara seu termo.


 
Ele era louco. Ele perguntou: «Há um limite para a interrogação do livro? Ah qual
é esse limite? Onde ele se situa?»
Ele era sábio. Ele respondeu: «O limite do dia é o dia.»

Uma chance de durar? O livro a concede apenas ao livro. O autor, às vezes, se


beneficia dela.

Ele dissera: Se tu te afundas no deserto, o silêncio não te envolverá mais. Tu virás


a ser, ti mesmo, silêncio a ponto de tornar o deserto falante.
«Tu sabes, dissera ele também, o que é a liberdade? Um longo fio que cremos,
cada vez, cortar mas que escapará sempre às tesouras, pois irrechaçável é sua
transparência.»

A verdade não é ligada à liberdade, mas não há liberdade que não seja leitura da
verdade.

Ele era louco. Ele perguntou: «O que é que se fixa no aberto?»


Ele era sábio. Ele respondeu: «Talvez o infixável no momento preciso em que ele
é surpreendido.»

Há uma escuta da morte de que não podemos tirar proveito – com efeito – senão
na morte.

«A morte, dissera ele, talvez, seja, na virada de uma vida animada, o impasse
deserto onde retine o eco de um diálogo interrompido.»

Floração do livro. O diálogo é a trás-flor.

O que se forma em seguida é, geralmente, o que, fora da vista, se tinha já


constituído. O porvir periodicamente lhe revisa seus contornos.



Um jovem homem foi encontrar seu Mestre e lhe diz: «Posso te falar?»
O Mestre lhe respondeu: «Retorna amanhã. Nós falaremos.»
No dia seguinte, apresentando-se de novo a ele, o jovem homem lhe diz: «Posso te
falar?»
Assim como na véspera, o Mestre lhe respondeu: «Retorna amanhã. Nós
falaremos.»

«Ontem, eu vim, respondeu, decepcionado, o jovem homem, e te pus a mesma


questão. Tu te recusas a me falar?»
«Desde ontem nós dialogamos, respondeu, sorrindo, o Mestre.» «É nossa culpa se
temos, ambos, péssimos ouvidos?»

(Jamais o advento tem lugar. É nesse «jamais tem


lugar» que ele reside.)
A FOICE O FALSO

O ante-texto é campo fértil.


A foice ceifa o falso: o trigo.
Nudez, nudez do livro.

«Faze, degredado do espírito, de uma pluma, uma impiedosa foice.


«Não podemos nos alimentar senão de nossa fome», dissera ele.

«De minha janela, olho, com as gaivotas, esvoaçar o mar.


«Daqui, partirei, um dia. Não carregarei, comigo, a imagem da terra, mas a visão
da infinita ferida celeste», havia ele escrito.

Neutralidade da história, minha vida reduzida a esse negro seixo: eternidade


endurecida.
A LINHA DE DEMARCAÇÃO

... uma linha que é apenas o traçado trêmulo –


tremido – da questão.

A questão é o caminho que cria, ao inaugurá-lo, o


caminho.

– A fronte, é fronteira do espírito?


– É o mesmo que sustentar que o horizonte é nosso
limite.

Produzir um ponto é, já, definir o espaço do escrito.

Toda criação guarda sob silêncio as diferentes fases de seu desabrochar.


Criar, pelo viés da escritura, é, primeiro, varar esse silêncio.

– A falta é origem?
– Toda origem diz a falta.

Aplainar, recobrir com uma camada de asfalto a pedra igualada.


Uma estrada não se constroi de outro modo. A circulação tem seus imperativos.
É preciso poder correr à morte com toda segurança.

A periferia é reborda de infinito.

O que é muito bem percebido acaba sendo impercebido; mas, o desapercebido é


eterno.
Simples – simplificadas – são nossas aspirações comuns: ter uma meta;
transformar a louca esperança, em meta.

Pensamento estanque, infinitamente liso.


Querer ser acessível, não é se desviar do obscuro mas, de todo esse negro
constrangedor, empírico brocador, liberar um filete de claridade para a alegria de nossos
olhos.
Ver simplifica.

«À luz, dissera ele, não responde uma luz estrangeira, mas o estranhamento da
sua.»

Se cada instante é o início de um diálogo, a eternidade seria seu fim? Mas, esse
fim não saberia ser um sendo infinito, sendo indefinidamente o fim de um fim inaceitável.
Toda-potência passageira! Duas eternidades se disputam essa espiga.

«A palavra, dissera ele, tal a onda, arrebenta sobre a praia mas é sempre um pouco
de sua espuma que deciframos.»

Silêncio de fim do mundo, de encontros esquecidos; silêncio de todas as partidas e


dos reencontros interditos.
Eu piso no limiar, sem voz.

«O silêncio não está no envelope vazio onde introduzo minha missiva, mas no
sinete de cera ardente que o selará», havia ele notado.

Ao contrário do pássaro, o livro morre as asas projetadas.


A PROFECIA O MEDO

A palavra que deve sua força, menos à certeza que


ela marca, ao se articular, que à falta, ao abismo, à
incerteza inventiva de seu dito.

A eternidade, o infinito não podem se apreender


senão depois do lance: ousadia do gesto limitado e
ressalto presunçoso do tempo.

«A recordação é contadora da duração: esta, dissera


ele, sendo apenas armadilha estendida ao tempo que
perdura pelo tempo que a avalia.»

Penetrar na palavra pela via de sua diferença. Não é,


entretanto, essa diferença aparente, constatada, que seria
só a considerar mas, antes, aquela que opera no interior
da linguagem e à qual esta deve o não poder jamais ser
senão o esquartejamento de um universo reivindicado.

E se a morte fosse apenas uma ruptura de linguagem


que dá nascimento a uma outra linguagem, aquela
impenetrável da opacidade ou da transparência?

«Esperamos, disseras tu, na agitação ou na


serenidade, a morte.»
Mas, se a morte está diante, de qual morte futura
morremos diariamente para termos uma intuição tão
cruel dela? E se ela está atrás, qual despertar acalmado
nos ensinará que nós a ultrapassamos?
Figura do instante, morremos do apagamento de
ontem e da cumplicidade de amanhã.
A voz é anterior ao signo, mas não é ela, primeiro, a voz deste?
Uma voz calada é um signo morto.
«Escrever é acompanhar uma voz que, pouco a pouco, se cala», dissera ele.
E acrescentara: «Tristeza de quem ouve, ao escrever, apenas o rumor de sua
pluma.»
O medo, aqui, é a perda de uma escuta.

Diálogo solitário! Sonoridades, sonoridades na mira do silêncio.

Escrever, falar, não para vencer o medo, mas para não se incrustar nele.
Não ser mais que medos trocados.

Na palavra donde a morte parecia não poder ser desalojada, minha vida se instala,
ocupa o espaço que ela arrumou para si.
Vocábulo adivinho após ter sido divino. Cada letra é grão de oráculo.
A palavra prediz e, por sua vez, é predita – pre-dita.
Deslizamos, do livre afrontamento com o desconhecido, ao fatal encerramento de
uma predição realizada.
O espírito tem também suas correntes.

(– A partir de qual momento podemos declarar que


estamos em diálogo?

– Talvez no momento crucial em que o universo não


é mais nada.)

Fundear sobre o intervalo; sobre o silêncio determinante.


O DIREITO À LIBERDADE

«A presença é presente demais para ser livre e a


ausência, ausente demais para poder sê-lo», dissera ele.

Ele dissera também: «A liberdade se reclama a


presença, mas se exerce apenas na ausência.
«Tal é o dilema.»

Tu estás perto de mim. Tu és livre?


Eu estou longe de ti. Eu sou livre?
A liberdade faz pouco caso da distância e do tempo.
E, no entanto, ele pode ser por um instante apenas livre
e, específica, apenas uma área conquistada.

A liberdade me liga à liberdade que acorrento.


«Fiz, da liberdade, meu elo», escrevera ele.

Nascer é assumir o arbitrário de uma escolha; mas,


toda liberdade é nascimento.

«Nasço do que me fez nascer e morro do que faço


morrer», escrevera ele também.

A liberdade se vive fora de si. Ela está no ato que nos liberta.
Ah tu não és livre onde tu te escondes, mas somente lá onde tu te expões.

«A liberdade engendra a liberdade, dissera ele. E, talvez, seja ela apenas esse
fecundo engendramento.»
«Mas, até onde, acrescentara ele, um espírito livre pode usar essa liberdade que,
em sua fidelidade a si mesma, se volta, cada vez, contra ele?
«É a uma inimiga, sempre melhor armada, que o espírito deve fazer face.
«A liberdade que o anima o enfraquece.»

Outrem é avalista de minha liberdade? Mas, minha liberdade não pode, em


nenhum caso, se embaraçar de uma caução qualquer. «Seria, havia ele dito, pôr
chumbo em suas asas.»
Portanto, outrem é livre de sua liberdade e eu, da minha; pois a liberdade pode ser
concedida apenas àquele que, por seu lado, tem o respeito pela nossa.

Aspirar à liberdade e suscitar no outro a mesma aspiração. Nessa reversão dos


laços, inscreve-se a fraternidade; estes cessando de ser uma restrição para não ser
mais que levedo de liberdades conjugadas.
O direito à liberdade é, em suma, apenas o direito de ser homem entre os homens.

Há uma ordem em nossas liberdades, assim como há uma ordem em nossas


abordagens da verdade.
Mas, o que é uma ordem sem restrição?
Liberdade e verdade se ganham à força de perdas de verdades e de liberdades.
À força de nossos trinchos.

A vida não tem outra liberdade que ser a vida, e a morte, que ser a morte.

Ó devorante – sorrateiro – incêndio que o vento propaga.

O tempo se desprende das cinzas do tempo.

Ó Livro parcialmente consumido cuja acre fumaça nos sufoca.


Caderneta, I

Emprestar mão forte ao abismo.


A SOBRECARGA

O silêncio está ligado à brancura, jamais ao negro do luto. O negro é sobrecarga


do silêncio. Tem o peso de uma sobrecarga. O branco é sem espessura, privado de
peso. Ele é espaço aberto, ilimitado, transparência do que, em nenhum momento, terá
sido.

Precipício sem memória, insondável Nada, refratário a toda sombra, a toda


claridade exterior. A brancura está no extremo do apagamento. Cristal: ó perenidade
da alma.

O que será, para se mirar, terá o abismo; por nele se refugiar, encontrará o nada.

Mas, o nada não é o branco. Ele é a imagem infiel, mental que poderíamos ter
dele.

A brancura é leve; ela é a cor invisível da leveza. Aérea.

Tu escreves no espanto. As palavras, em torno de ti, voam, alçadas de brancura,


arrebatadas por ela sem que tu possas retê-las.

Algumas, entretanto, permanecem. Sobrenadam. A folha as propõe à leitura. Elas


são vocábulos rígidos à superfície da tinta, como peixes mortos sobre a água, vítimas
de sua vontade de atingir à legibilidade que não era outra coisa que seu secreto
desejo de morrer. O olho pesa sobre elas.

A morte é menos leve que a eternidade.


O LIVRO

Um dissera: «Nossa mão direita está no livro. O privilégio de abrir e de fechar


este cabe, entretanto, à mão esquerda.
Assim duas mãos presidem os amanhãs do livro.»

O outro respondera: «Se figuro no livro, é porque meu nome deve estar lá, em
alguma parte, citado.
«Ora, nenhures, encontro rastro desse vocábulo.»

O diálogo recobria seu lugar que permanecera, por muito tempo, desocupado;
refazia, de si mesmo, subitamente, superfície.

Estávamos, de novo, no primeiro dia da palavra.

... diálogo constantemente contrariado, tal o da rolha


de cortiça submetida aos caprichos da onda.
Eterno. Eternizado.

«O mar é minha memória; minha assustadora memória», pensara aquele que, a


nado, se distanciava da orla.

Não seremos jamais mestres dos horizontes.


LENDA

Ele leu, uma vez, que um sábio, no deserto, havia conseguido conversar com a
areia.
Impressionado por essa proeza, decidiu, por sua vez, dialogar com a fonte.
Ele ignorava que, no silêncio, exclusiva é nossa voz; pois o que, em si, é lamento
ou canto é, já, palavra distanciada.
A morte fala. A vida é falada.

(...porque tu estás ainda lá onde eu parecia não


estar mais).

«Falarei sem me interromper para aquele que não diz mais nada, não para incitá-lo
a me imitar, mas a fim de confortá-lo em seu mutismo. Tão eloquente é seu
silêncio», havia ele notado.
E mais longe: «É sempre o silêncio que fala àquele que lhe sacrifica suas
palavras.»
NESSE LIMITE INSUSPEITO

– A morte está próxima.


– Como tu o sabes?
– Ela se calou.

– A partir desse silêncio. Último Silêncio. Insuperável limite.

– A partir do último limite, pois? Ah quem poderia, com certeza, fixá-lo?

– Ninguém, certamente. Nem mesmo eu. E, entretanto,...

– Entretanto?

– Tudo me deixa pensar que alcancei esse limite. Tenho o sentimento – talvez seja
apenas uma intuição? – de que o porvir – o que, impudico, se manifesta diante de mim – é
ainda esse imemorial passado enterrado em meus livros.
A memória é mais antiga que a recordação. Nós sabíamos disso, já?
É preciso, para captar o futuro, deliberadamente lhe virar as costas.

– Dirias tu que o porvir é projeção de um passado esquecido que os vocábulos


exumam ao se formarem, como se eles mesmos fossem afeiçoados por uma memória da
qual podemos tomar consciência apenas em repentes?

– O porvir do livro, sim.

– O livro, pois, permaneceria eternamente arrimado ao livro; continuaria sem


repouso a explorar-lhe o fundo: seu próprio fundo?

– O livro mergulha e se afoga nos livros ainda por escrever que não são senão sua
tentativa reiterada de escapar à morte; quer dizer, à ilegibilidade à qual ele é votado.

– Não escreveríamos, então, senão o mesmo livro?

– Um livro que decanta, em voz baixa, o desespero de ter sempre sabido que ele
não será absolutamente lido em sua totalidade.
Toda verdadeira leitura é marcada por essa ferida.
Decepção do leitor! O livro a terá tomado também em conta.

– Lemos apenas o que sobreviveu à leitura.


Assim o tempo do livro é o apagamento de um tempo do qual cada livro prova a
nostalgia: um tempo em uma ausência aproximada do tempo, como um livro no coração
escancarado do livro.

– A falta é vertigem do livro. A borda das palavras não pode esperar sobrepujar,
um dia, o abismo.

– Essa falta foi meu lugar.

– De quais vocábulos tu te serviste?

– Dos que creríamos indiferentes à dor, mas que esta habita.

– Não haveria palavras de alegria? Para dizer a alegria, seríamos privados de


palavras?

– Há uma alegria da morte na palavra: alegria do dito tão logo engolido no


silêncio.

– A morte se esquece no dito. Ela foge. Infelizmente nenhum dito é assaz forte
para resistir a seu precário destino.
Murmúrio... murmúrio.

– O olvido da morte, talvez, seja a chance do livro.


– Todo livro é, no coração do nada, lugar sonoro que perturbam os últimos passos
da morte.
Morte do frágil instante no desenrolar ininterrupto da morte.

– Parece-me que nosso diálogo não rompe o silêncio no qual nós nos debatemos.
O silêncio é menos vulnerável que o livro.

– Não podemos escrever senão sobre esse silêncio. O silêncio é mestre da


duração. As palavras que ele agrupa lhe devem sua parte de eternidade.
–... como se tudo o que não tivesse sido expresso se desse enfim a ouvir, a ler,
fora das palavras? No espaço circunscrito de sua renúncia.

– ... com palavras ainda, mas tão interiorizadas que eles seria audíveis, legíveis
apenas para mim.
Palavras nas palavras sacrificadas, circundadas para além de seu sacrifício.

– Se é a essas camadas superpostas de brancura donde lentamente ele emerge que


tu fazes alusão, eu diria que o livro se abre progressivamente ao livro, como o
universo extinto pela manhã.

Tantos vocábulos adormecem nele. Cabe a ele despertá-los com palavras de


mesma origem.
Retornar o silêncio de uma noite constelada ao insondável silêncio da noite
impartilhável é, de uma certa maneira, através das palavras caladas de nossos preitos,
restituir o livro infinito ao infinito do livro.

(«A vida desvencilha, a morte descreve», dissera


ele.
E, após ter observado um tempo de pausa: «A
eternidade oscila.
«De uma parte, o efêmero; da outra, o
hermeticamente fechado.
«À esquerda, a semente; à direita, o prego.»)




– Então, eu te pergunto, ó minha amada de um imortal instante, se, entre ti e mim,
um diálogo teria sido possível?
Entre nós, uma só palavra poderia ter-se deslizado? E qual podia ser essa palavra?
Ó silêncio! Dirijo-me a mim mesmo, através de ti, e não reconheço minha voz.
Quem fala para nós desde que atingi essa parte do ser onde a água não abebera o
solo, onde a relva cessou de crescer, onde o sol clareia apenas o passado, onde o porvir
está definitivamente mergulhado na noite?
Dize uma palavra. Ah possa minha boca emitir os poucos sons esperados que nos
salvariam da morte.

Houve o fim de um ciclo e o fim de um outro ciclo. Houve tantas páginas de


confidências, de reflexões, de interrogações para preencher – assim como preenchemos
um desejo antigo, uma necessidade – o vazio.
Há essa barreira, hoje.
Encontra-se ela, já, por trás de nós?
Esburacada?
Ah essas sombras, essas sombras.
Entrar no futuro, é escapar ao poder tirânico delas? Desnorteantes são nossas
palavras, nossos gestos. Eles parecem obedecer às ordens de um fantasma. Ser
significaria apenas ter sido?
Temos ido, sem o sabermos, mais longe que o sol?
Pensar consigo que não haverá mais manhã porque não pode haver livro: cruel
constatação.

... pensar novamente consigo que talvez haja uma palavra que se recuse a
capitular. Ajudá-la a sobreviver.

Esperar-te-ei por muito tempo ainda?


Onde tu estás, tu que, uma vez, tentaste me fazer sair de meu torpor? Por quem me
é insuflado esse ar fresco que infla meu peito? Donde sopra esse vento violento, ébrio por
expulsar as trevas? Qual astro inesperado projeta essa tímida luz no meio da folha? Dois
dedos trêmulos entreabrem minhas pálpebras; depois, meus lábios. Tu estarias lá, perto de
mim?
Branco milhano, de asas imóveis, reluzentes de signos diluídos, tão alto, de
repente, está o livro.
O livro da alma se lê os olhos levantados.
A ANTE-QUESTÃO

Àquele que dissera: «Eu teria, antes de morrer,


tantas coisas a perdoar a Deus. E, primeiro, por ter-nos
recusado a leitura do Livro, a fim de nos constranger a
nos ler indefinidamente.»
Àquele que acrescentara: «A criança, de retorno à
sua casa, contando as pedras coletadas no caminho, tem
os olhos domesticados; a noite, enumerando, de sua
janela aberta, as estrelas, ele tem os olhos de um rei.»
Foi respondido: «Se, para a terra, as pedras são, por
vezes, estrelas; para o céu, pelo contrário, elas são
sempre espelhantes pedras.»

«Se minha questão clama, de tua parte, por uma resposta; esta poderia pretender,
para si só, ter esgotado a questão?
«Se tua resposta clama, de minha parte, por uma questão; esta poderia pretender,
para si só, ter-se desembaraçado da resposta?
«Tudo se passa como se a resposta morresse da questão introduzida e a questão,
da morte prematura da resposta.
«Não interrogamos senão o nada», havia ele notado.

A questão é a mais longa morte: ela é a vida.


A QUESTÃO

Judia é a questão que, indefinidamente, se questiona


na resposta que ela provoca.

Ele dissera que, quando nos pomos uma questão, somos, de uma certa maneira,
judeus porque o judeu já, mais de uma vez, se pôs a mesma questão.

Ele dissera que, quando, no lugar da questão que nós queríamos nos pôr, nós nos
pomos uma outra a fim de poder em seguida, indiretamente, através desta, nos pôr a
primeira, isso é ser tão judeu quanto pode sê-lo um judeu.

Ele dissera que, quando não temos mais a força nem a vontade de nos pôr
questões, aspirando a gozar de um repouso bem merecido, somos ainda judeus
porque isso prova que temos, tanto quanto ele, estremecido com a questão.

(«A diferença entre nós, dissera ele, é a seguinte:


Tu crês firmemente em uma verdade reconhecida, ao
passo que aquela que me fascina jamais se preocupou
com reconhecimento.»)
A SOLIDÃO DA QUESTÃO

A questão se erige na solidão onde nos deixa toda resposta.


Questão solitária posta ao universo.
Donde vem, todavia, que o judaísmo se emaranha apenas em uma progressiva
retirada; o isolamento sendo, a um só tempo, a trama e o fio disciplinado?
A um único Deus, um povo unanimemente só?
A um nome impronunciável, a poeira dos nomes supérfluos?
Nessa perspectiva, em si, inovadora, – a originalidade não tem sido o trunfo maior
da renovação do Pensamento judeu, o ferro de lança? – nessa perspectiva arriscada, o
judaísmo se definiria como gesto inelutável, premeditado, chamado a abrir o Livro aos
livros a fim de que, no perpétuo despertar de seus vocábulos, uma palavra milenar se leia
em sua transparência turvada.
Dessa palavra interior – anterior a toda outra – a área avermelhada – alvorecer ou
crepúsculo – nos subjuga.
Somos os mantenedores de sua legibilidade.

★

A questão que atormenta o judeu, não é absolutamente questão à pertença, à


diferença mas, primeiro, à semelhança.
Em quê o que eu digo ou escrevo se assemelha ao que, judeu, eu teria tido que
dizer ou escrever? Em quê o que eu faço se assemelha ao que, judeu, eu teria tido que
fazer?
Ah o que é que, através de minhas palavras e meus atos, me autoriza a me
considerar judeu? O que é que, em meus livros, indica que eu penso, escrevo, à sombra
ou à luz do judaísmo?
O judaísmo só pode ser ultrapassado pelo judaísmo mesmo. Ele se insurge contra
tudo o que o prega a um solo qualquer, sabendo que este não será jamais o seu. Ele é o
oscilante movimento – ó imortalidade de Deus – do absoluto do livro ao Livro absoluto.
E se a imortalidade divina encontrasse, verdadeiramente, confirmação na
intemporal – inextricável – relação de uma palavra à cata de uma origem com uma
Palavra originária?
A eternidade de Deus, no texto, seria, então, apenas o afastamento entre letra e
letra; a intrusão sistemática de Sua invisibilidade: uma palavra humana, um silêncio sem
fim.
A cartada está na alternância.

★



 Deus, dizem-nos, atarefado em amassar a argila donde devia sair o homem,
soprava sobre ela para nela gravar Sua semelhança.
A semelhança da criatura com o Criador está no sopro divino. Ela é o sopro.
Deus é unido ao homem por uma mesma respiração.
Enquanto Ele soprava sobre o monte de greda, Deus sentia o sopro do homem
penetrar n’Ele.
A escritura herdou o sopro. Ela é escritura do sopro.
Deus não podia tolerar que o homem se lhe assemelhasse fora do Livro. Essa
semelhança, desagravada da imagem, é a vida total, a vida na vida.

(«A questão de Deus é questão ao Livro.


«Deus apostrofou severamente os anjos que o
impediam de nos ceder o Livro dos livros: “Impudentes,
diz-lhes ele, que fingis ignorar que, sem o homem, vós e
Eu não temos mais existência.”
«E, em nossa intenção, Ele acrescentou: «Mais que
um povo de pastores Eu, para minha sobrevida, fiz de
vós um povo de leitores.»
«O livro perpetua o livro ao nos perpetuar. Assim
falou Deus», escrevera ele.)

  ★

(« Não ter jamais sabido o que significa ser judeu –


tanto esse não-saber contém de saber – e, entretanto, ter
aceitado morrer das recaídas dessa subjacente questão,
aí está nossa contradição e aí, também, o turvante
mistério de uma origem», havia ele escrito.
E acrescentara: «... assim, na noite de uma questão
em suspenso, inscreve-se, em pontilhados cintilantes, o
ilógico, o frágil, o constante devir judeu.»

«Ah, dessa fragilidade, dissera um sábio, qual força


insuspeita temos tirado!
«Em cada certeza, há uma turba de incertezas
sobre as quais, altiva, ela reina.
«Teremos sido, a um só tempo, o desalento e a
exaltação da dúvida, prova de toda verdade.»)

«Tu nasces pó em questão e morres questões em pó.


«Múltiplos são o nascimento e a morte.
«Pluralidade do singular», dissera ele.
A PALAVRA ‘DEUS’

«A verdade é olhar sobre o VERDADEIRO, sobre a


dominância do raio.
Discreto refúgio – feltrado de olvido – onde nos
aninhamos por trás de nossas persianas. Ela é esse longo
olhar ávido, fixado sobre o entalhe feito pelo sol à
sombra obsequiosa que nos envolve.
Livre és tu para designar esse lugar familiar –
ferido – pela palavra ‘Deus’», dissera ele.
E acrescentara: «Deus não é a verdade. Ele é
revelação da verdade: sua referência.»

O traço: a atração de um ponto para um ponto.

A inteligência separa. O olhar une; mas, há uma inteligência do olhar que divisa,
para reconstituir, em sua fingida aparência, a unidade que ele minou do interior.

No livro, a ostensível indiferença de Deus, a respeito de sua Palavra, é símile


àquela que a palavra arvora para com a palavra. Ela se traduz pela extrema distância
onde, face-a-face com o nome, Seu Nome se encontra.
Seu desprendimento da escritura teria, entretanto, por motivo, menos uma falta de
interesse por esta, que o receio do que, com ou sem Ele, ela é capaz de cumprir.
A ausência é rasura do escrito; a presença, o grito.

(«Senhor, Tua presença no mundo, Tu ma deves.


Mas é a Ti só que devo minha ausência?», havia ele
notado.
E concluíra: «Se, para uma parte igual àquela que
te cabe, minha ausência é estranha à Tua, não é,
definitivamente, porque eu Te pertenço, aqui em baixo,
apenas pela metade?»)
Ligar uma ausência a uma ausência: penhor do laço.
E se a palavra «Deus« fosse a aposta mantida?

O DESERTO

Linguagem alapada que não é a das mãos, nem dos olhos; língua de ultra-gesto,
de além do olhar, do sorriso ou das lágrimas que nos fora necessário aprender! Ah qual
deserto as ressuscitará hoje?
Pensávamos ter atravessado o soturno rincão desolado aonde a palavra nos havia
enlevado, fazendo de nós, ao longo de toda nossa errância, as testemunhas estupefatas de
sua perenidade.
E eis que o silêncio nos introduz em seu reino de vidro, mais vasto à primeira
vista, estilhaçando todo rastro de nossa passagem.
... primitivo silêncio ao qual não escaparemos mais.

Não confundas estufa e deserto, planta e palavra. O silêncio agasalha; a areia


esmigalha.
Principesca é a planta; a palavra, poeira.

Imagem privada de sua eloquência verbal – não dizemos, de uma imagem fiel,
que ela é falante? – não representando mais nada. Amarelada. O olvido teria uma cor? Ah
esse amarelo, cor da areia desperta!

A maior parte de meu passado está lá. O que persiste, a escritura o recupera por
fragmentos.
Escrever, escrever, escrever para se recordar.

Tu só podes compreender o que destróis.


ALARGAR OS HORIZONTES DA PALAVRA

(Palavra. Acelga-brava: mesmo dom dos meios


úmidos, de folhas sonoras, de folhas verdes.)

«A terra nos fala através de cada rebento de erva,


cada ramo de árvore, cada fruto; o céu, através do
infinito silêncio de nossas palavras disseminadas»,
dissera ele. «E o cascalho?», nós lhe perguntamos.
«O cascalho, uma vez, falou para o universo, antes
de se tornar definitivamente cascalho», respondeu ele.

Boca monstruosa, abandonada por suas primeiras


palavras, ó buraco gigante, precipício de olvido.)

Nós nos habituamos à dor. Os outros nos habituam a ela.

«O que, na escritura, encanta, embala, cativa, é o muro, o obstáculo a sobrepujar;


assim como o seria, para o mergulhador, o marulho ou o espelhamento da água», havia
ele notado.

Fascinação do olho. Devaneio da audição.


Não mais ver, não mais ouvir, não mais esperar.
Descer.

... sem jamais, entretanto, se glorificar por ter tocado o fundo.


A onda no-lo ensina.
Ela diz a dor de saltar eternamente acima do fundo. Ela diz o fundo da dor.

Esse dito é o interdito.

Transparentes são os muros do tempo.

No indizível se dissimulam as palavras inúteis que nós reivindicamos na


sequência.
Pequenas estrelas. Pequenas estrelas.

Todo livro tem seu peso.


Não busques adensá-lo com uma imagem, com um silêncio, com um pensamento
em demasia nem aliviá-lo de um só signo.

Deveríamos poder determinar o peso do livro, assim como determinamos o peso


da atmosfera.
Infelizmente, para chegar a isso, carecemos de experiência; logo, de meios.

Para o deserto que o vazio esmaga, pesado é o céu.


O despertar e o sono têm, por fardo, o universo.

«Um livro de peso é mais leve que o azul. Aéreo é o pensamento. A escritura é
legibilidade de seu imperceptível desfraldar», dissera ele.

Reencontrar a facilidade com a qual as palavras se exprimem entre si: dificuldade


de dizer, de escrever.

Nenhuma palavra é banal. Elas o são na medida em que não escapam à usura.
Além disso, não se trata de salvar as palavras da banalidade, mas de ir a elas como a esses
fornos ou a esses moinhos dos quais toda pessoa que faça parte de uma senhoria era
obrigada a se servir mediante tributo.

Ah todas essas somas devidas ao silêncio, quem as avaliará?


Pagamos para continuar a viver.
Escrever, nesse sentido, seria assegurar com regularidade os reembolsos,
escalonados no tempo, de uma dívida da qual sabemos de antemão que ela não será
jamais extinta?

II

Descida.
Das cinzas
ao infinito.

A morte, assim como o céu, está em baixo. Abaixo da escada. No topo, há o voo,
a alma, a vida.

Tombar é atravessar verticalmente a morte.


Tumba. Tumba: um buraco que somos chamados a tapar.

Nenhuma laje para perpetuar a memória, mas o escancaramento permanente de


um buraco. Tu aí contemplarás o universo, como através de uma longa-visão, o dia e a
noite preservados de um insaciável infinito.

Amanhã é o fruto de uma espera que a mão se apronta para apanhar.

A noite é povoada de pássaros de sombra.


A estrela na fronte.
No sonho, tu andas sobre suas asas projetadas; lúcido sobre o solo endurecido de
seu amplo abandono.
Ó solidão do mundo.
O azul do céu, talvez, seja o avesso da noite. Mas, quem revirará as palavras que a
tinta enegreceu?
Nesse caso, escrever seria, com cada signo, inaugurar um novo dia que a palavra
assume.
Não chegamos jamais a dar cabo da esperança.
O DESPERTAR

O que vem é condenado a vir.


Ele é o que fatalmente vem.

... palavra desligada por uma palavra esquecida.


Alforriada.
Palavra de manhã seguinte.

O olvido não é buraco de memória, mas buraco no


originário segredo donde jorra a fonte.

«Na origem, houve o segredo; depois, o segredo se


fez verbo e o verbo defensor do segredo», dissera ele.

Virtude da água de chuva associada à luz. A manhã


é apenas dons prodigados.

... mas todas essas lágrimas escorrendo sobre o


escrito, embaçando-o por trás de sua tela d’água salgada,
qual sol providencial as secará; qual asa de pássaro
imaginativo batendo à altura de nossas pálpebras; qual
vento alertado por nossos soluços, qual chama, qual
parcela de areia?
O limiar pedregoso do deserto é duro silêncio de
nossos lutos.

Esquecer o texto que pariu o texto. Escrevemos a partir desse olvido.


«Há, dissera ele, palavras de horizontes que a distância, o distanciamento nos
impedem de captar. Essas palavras são de luz. Elas se assinalam, a nós, desposando as
cores que o espaço lhes consente.
«Ah surpreender, seguir, contemplar, em suas primeiras ou últimas metamorfoses,
uma palavra que não ouviremos jamais.»

(Duplo despertar, onde se estira um universo tão


logo saído do sono: ó diálogo! Estamos reunidos.)

«Um livro se abre ao segredo, mas se fecha em segredo.


«Ler seria, entretanto, apenas constatar sua abertura», dissera ele também.
E acrescentara: «... esta, talvez, seria o segredo».

«Uma flor eclodida não é imagem de abertura, mas milagre do encerramento.


«A rosa cresce, fechada para o mundo. Morre, oferecida ao nada», havia ele
escrito.
A INSÔNIA

... angústia de não poder dormir, irmã gêmea,


noturna, da inexprimível angústia de não dormir.

A eternidade, talvez, seja apenas angústia do tempo


incessantemente posto em presença de seu fim diferido.

«O que, na morte, me apavora, dissera ele, é que há


várias e não saberemos jamais qual será a última.»

O Livro, talvez, seja apenas escritura decodificada


de insônia.

«O sono é justamente um dos artifícios utilizados pela morte para nos seduzir;
uma maneira – a mais direta – de se fazer aceitar por nós, através do bem-estar que
proporciona o legítimo repouso», dissera ele.
E acrescentara: «O sono, entretanto, não é um antegosto da morte nem a soleira.
Ele é essa doce aleia sombreada que a alma toma, no instante em que se adormece o
corpo.»
A insônia seria, assim, raiva descontrolada da morte por se saber mal amada, ao
invés de sobressalto de vida às voltas com a ciumenta luz.
A menos que ela seja as duas, mas isso suporia uma cumplicidade difícil de
admitir entre rivais resolutas.

(«Consciente é a morte de usar a vida.


«Inconsciente de morrer sem ela», havia ele
notado.)
O tempo da vida é apenas a vida do tempo concedido ao homem para morrer;
tempo favorável ou hostil – o nosso – que não podemos amestrar, mas do qual
participamos, como o balé do inseto, do balé de fogo.

A imortalidade, talvez, seja apenas uma feliz distração da morte.

A passividade seria o passo evitado – esquivado: o passo sem o passo?

Não morremos de todos os vocábulos.

A história me permite não mais pensar para mim.


Caderneta, II

Falar a só, à soleira, a já mais, ao que foi, ao que se


anuncia; ser sua própria lenda.
Aureolar o real: vocação do vocábulo.

«Somos de uma mesma língua; mas, tu fazes


recurso a ela apenas para dizer quem tu és; eu, para
aprender quem sou. Nós dois nos enganamos; talvez,
seja isso que nos aproxima», escrevera ele.

«Minha língua materna é uma língua estrangeira.


Graças a ela, estou em pé de igualdade com meu
estranhamento, dissera ele.
E acrescentara: «Tenho, pacientemente, forjado
minha língua com palavras estrangeiras para delas fazer
palavras irmãs.»
Não havia ele, outrora, escrito: «Não tomei tua
alma. Eu ta dei»?

O que é um estrangeiro? – Aquele que te faz crer


que estás em casa.

(A criação é jogos de claridade e de sombra; zona


de guerra e zona de paz.
Mas, quem as delimitará?

Esbravejar e escarnecer – Ah todos meus livros se


esfumam na palavra ‘escrever’.
Assumir o contraditório.

Na orla do Nada.)

PÁGINAS REENCONTRADAS

A fala não desemboca sobre o silêncio; mas, sobre uma inicial disponibilidade da
palavra, fundadora do diálogo.

O judeu está em diálogo, assim como nos pomos em condição de escuta: a cada
vez, a ponto de estar.

Ir às fontes, para o judeu, é, ao liberar para si uma passagem no passado,


atravessar a via de seu devir.
«Extraímos em dois poços: o mesmo», havia ele notado.

Só o livro atesta a ausência de Deus.

A transparência se descobre apenas para a transparência.

Tu testas o silêncio enquanto, com tua mão, ele se escreve.


Que fino ouvido te é necessário para ouvi-lo na palavra!

Ele dissera: «Deus não criou o universo, mas concebeu o espaço. Ó prodigiosa
disponibilidade do vazio.»
E acrescentara: «A ideia sufoca, pois o homem sufoca em seu corpo. Sempre
faltará espaço indispensável a seus plenos desabrochares.
«Divino é, por essência, o pensamento. Daí sua desgraça.»

«O judaísmo testemunha da pertença do escrito ao não-escrito, assim como do


não-escrito ao escrito; pois a Palavra é livro para o judeu e o livro, leitura recomeçada de
seu destino», dissera ele também.

Sem data

«O porvir do judeu é subordinado aos múltiplos


riscos de seu desaparecimento. Essa funesta ameaça é
seu surdo fermento», havia ele escrito.

Passagem do específico à não-especificidade, do grão de areia ao deserto.


Essa dimensão exagerada, desproporcional ao objeto mesmo ao qual ela se refere,
não é, no entanto, desmedida, mas penhor de plenitude, condição de sua exigência.

«O limite é fechadura, dissera ele. O ilimitado, a chave.»

Passagem de si ao infinito onde se dissolve o si.


Assim o judeu aborda a difícil realidade judia, tendo feito da palavra ‘Judeu’ uma
outra palavra – palavra de uma não-pertença ao extremo de toda pertença; a um só tempo,
afirmação e sublime negação deste.

«O Nome impronunciável, notara ele, terá, uma vez ao menos, sido pronunciado
no fogo por nossos nomes em cinzas.»

Sem data

Ele escrevera: «O Eu sou aquele quem sou de Deus,


que significa senão: Eu sou Luz para uns, Obscuridade
para os outros, e, para todos, o desconhecido?»

Aureolar o dia. A auréola é ainda luz.


« A sombra não pode contestar a luz: ela é sua
noite», dissera ele.

« Quem pensa, perguntara ele, quando nós


pensamos? Somos rodeados de pensamentos, é o que
fazia um sábio dizer que somos ladrões de pensamentos.
«Tenho o sentimento de que, ao pensar, projetamos,
em torno de nós, uma turba de pensamentos contidos no
pensamento rumo aos quais nós nos precipitamos, tais
crianças perseguindo a borboleta que as maravilha.»

«Leve, leve é nossa fé. Jamais ela foi fardo para o


pensamento que, acima de nossas frontes, a mantém à
sua altura», dissera ele.
«Não podemos pensar a morte senão ao nos pensar
a nós mesmos enquanto seres mortais.
«É por isso que, para Deus, esta não será jamais um
motivo de preocupação», dissera ele também.

«Deus nasceu, depois morreu sem tê-lo sabido.


«Sua imortalidade, Ele a deve, talvez, a essa lacuna, assim como devemos o ser
mortais à consciência que temos de Sua ignorância», havia escrito um sábio que entrara,
pela grande porta, na loucura de sua sabedoria.
«Pobre, pobre, disseram, dele, seus discípulos. Ele não sabe mais, do navio que o
transporta, distinguir a proa da popa.»

«Ah por que, meu Deus, é preciso que o que é toda simplicidade para Ti, arvore,
para nós, a insondável complexidade?», havia ele exclamado.
Ele havia tão rápido esquecido que ele mesmo era o autor destas linhas: «Deus
disse à Sua criatura: Eu sou Aquele que, da obscuridade, fez a luz e, da humana
complexidade, a simplicidade divina; mas, a luz Me é ainda um enigma e a simplicidade,
um impasse»?

Sem data

Detenho-me nesta frase de sua caderneta: «E Deus disse: Só Moisés se me


assemelha. Eu o quis, como Eu, ausente: ausente do Livro onde resplandece Minha
Palavra, ausente da terra onde, por Minha vontade, ele terá até o limiar conduzido Meu
povo.»
«Ademais é ele a mais próxima de Minhas criaturas. E a mais dolorosa; pois a
ausência que eu lhe consenti em partilha é Meu infinito sofrimento. »

A ausência de Moisés é verdade da Lei.


Sobre essa ausência, Deus Se escreve.

E os discípulos se agruparam em torno de seu Mestre e lhe perguntaram:


– Nós somos – tu nos fizeste lê-lo – os descendentes de Abraão.

– Nós somos – tu nos fizeste lê-lo – os descendentes de Isaac.

– Nós somos – tu nos fizeste lê-lo – os descendentes de Jacó.

– Não somos, também, os descendentes de Moisés?

– Quem pode se dizer o filho de uma palavra?– respondeu-lhes o Mestre.

«Usar a linguagem da terra para dialogar com o céu e a linguagem do céu para
dialogar com a terra. Depois de Deus, quem o poderia?»

«O sangue do pacto era apenas tinta negra da visibilidade», havia ele notado.

Sem data

«Onde tu estás? A essa questão de Deus, o homem responde: Eu estava


escondido. Entendera ele com isso: Eu escondi meu nome, tendo duvidado que era
através de seu nome que Deus o interpelava?
«Eu escondi, como Tu, meu nome mas permanecerei sempre visível para Ti, tal é
minha interpretação da resposta de Adão; pois o que ele não confessa, resume-se a isto:
«Duas vezes, tentei me libertar de Teu rosto; furtando-me, primeiro, a Teu olhar;
depois, não tendo podido fugir dele, evitando o meu», havia ele escrito.
Nós somos a mudança de Deus, dissera ele, assim como as cores, as variações de
temperatura, os reflexos são metamorfoses do Tempo em que ele cessa de escrever para
ser escrito por nossos sentidos.
A escritura nos terá proporcionado frescor e calor, terá atiçado e magoado nosso
olhar, terá decuplicado nossos reflexos, nos terá mascarado e desnudado sem escrúpulo.
Mas, o escrito não muda também onde ele não se escreve mais a fim de ser,
indefinidamente, reescrito?

«Desunidos na vida, o Eu e o Tu – ó plenitude – festejam sua união na morte»,


dissera ele.

O espírito tropeça no inaudito: cristal, cristal.

«Onde tu estás?» A essa questão do homem, Deus responde: «Onde o ar é o Nada


e o Nada, aéreo.
«Da pureza desse ar, tu vives; de sua impureza, tu morrerás.»

Sem data

E Deus disse a Caim: «Que tu fizeste?» pensando: «Que tu fizeste de teu nome
todo respingado do sangue do nome de teu irmão adjunto ao Meu?»
Caim sujou o inviolável Nome do Senhor ao sujar o seu. Seus descendentes
arrastarão, consigo, até o fim dos séculos, o remorso desse ato.
Escrevemos sobre esse remorso.

(A escritura é violência em seus esforços de pactuar


com o vazio. Aí está seu desespero.
A réplica de Caim: «Sou eu o guardião de meu
irmão?» poderia bem se traduzir por: «Sou eu a palavra
de meu irmão? Não tenho tampouco o direito de me
exprimir?»
Desposar a palavra do outro é, de uma certa
maneira, renunciar à sua.
Violência contra violência.
O verbo é gerador de conflitos. Ele é expressão
agressiva de nossa comum finitude.)
«O amante não sabe jamais, de antemão, como serão percebidas, pela amada que
as inspira, as palavras de amor que ele lhe destina.»
E ele acrescentara: «... de todas as palavras que imploramos, ah! quais, uma vez,
nos preencherão?»

Deus está além do amor.


Ele é seu além.

Ausência: aurora das essências.

«A realidade da luz é a sombra, respondeu ele, e nem mesmo a percebemos».

Sem data

«A lei nos precede, dissera um sábio, mas também se adianta a nós; pois se nosso
passado está em cada palavra da lei – e, por vezes, em seu silêncio – nosso porvir, através
de lágrimas de pesar e de júbilo, assim como a água para certos animais ou vegetais –
está em sua revivescência. »
E acrescentara: «Tenho-me, geralmente, perguntado por que a Lei de Moisés
podia se ler apenas na alegria ou na dor. Minha resposta é esta: porque somos sua
beberagem, assim como ela é nosso duplo horizonte.»

Invisível é, em nossos comentários, a Lei. Entre a palavra e a palavra, ela é o


espaço forte. Por vezes atrás, por vezes adiante.

«Minha Lei é minha riqueza e ela é o Livro. Meu livro é minha pobreza e ela é
minha lei», havia ele escrito.

Minha mão – a do espírito – amestra o livro e minha lei – a do escrito – minha


mão.

(– O que é a lei?
– A abertura do diálogo.
– O que é o diálogo?
– A abertura da lei.)

Insolente palavra face a um silêncio insolente.


Deus, mais de uma vez, teve medo de Deus.

«A abelha e a ovelha, dissera ele, são fortuna da Lei. De uma nos vem o mel; da
outra, o leite.»

Mais tarde

– Tu estás aí, responde, tu estás aí? Qual outra certeza teria eu de minha
existência?

«Deus, escrevera ele, não saberá jamais quem Ele é, sendo fundamentalmente Si
mesmo na ausência incomensurável de Si.»
O pós-diálogo

A eternidade não é o desejado, mas o eternamente


desejável do desejo.

O ser é futuro.

Do domínio do tempo, salvar, despersonalizando-o,


o diálogo.
Assim não falaremos mais que nas palavras.

«A questão não é formulada pelo largo mas, em voz


baixa, pelo porto de registro; não pelo alto mar, mas pela
âncora; não pelo horizonte, mas pelo molhe.
«A experiência é lição do passado sobre a qual se
apoia a verdade.
«Toda verdade seria apenas verdade de ontem?
«Tendidos para o porvir, nosso drama – ó ironia – é
estar sempre em falta de uma verdade», dissera ele.

Não é a verdade que importa, mas o uso que


fazemos dela.

Sem rosto é a verdade. Tendo-lhe emprestado o


nosso, nós o tornamos perecível.
«Da divina Verdade, podíamos fazer apenas uma
verdade humana. Assim, no mesmo ato, nós a
entregávamos à morte», havia ele escrito.
Crer significa «ter fé em... – ter a fé –, mas crer
que.. – significa: pensar que... ter o sentimento de que...
– emitir uma opinião sobre...»
Assim passa a verdade, da certeza que ela desperta
de saída em nós, às primeiras dúvidas que se instalam
em nós mesmos, em seu nome.

«Deus não é nossa verdade. Sua verdade não nos


concerne, mas ela é, entretanto, de nossas verdades
perturbadas, o modelo incontestável e, por vezes, o
álibi», havia ele escrito também.
A relação com o conhecimento é a mais ameaçada; melhor: ela é essa ameaça
mesma no seio do conhecimento.

«Aspiro a me conhecer. Não aspiro, pois, senão a morrer», dissera ele.

O último saber é olvido.

A ausência: proeza divina.

O pensamento não pensa o que ele sabe. Ele pode pensar apenas o que ele ignora.
Ele é a ignorância do Saber que ele enriquecerá ao pensá-lo.
O porvir do espírito é doado.

Uma colmeia de questões. Para todo pensamento, sua ração de mel!


Abelhas. Abelhas.

Criar não é se afirmar mas, através do objeto criado, infirmar a criação; é opô-la a
si mesma onde ela se impõe; é, como nas operações de esmaltagem, fazer recurso ao
recozimento; a negação passando sempre, de uma maneira ou de outra, pelo fogo.

Tu lês a nudez.

(A dor do mundo não comove a pedra e, no entanto,


em alguma parte ela sangra.
– Eu sonhara com um livro impresso de serenidade
e é, no fim das contas, um livro de queimadura –
queimado – que te estendo.
– Talvez porque a serenidade seja orla desertada
da palavra e tu só tenhas feito errar em um nevoeiro
espesso.

«Meus ossos não irão à terra, mas ao vento», havia


ele escrito.)

Não há infinito senão por trás do inefável.

A morte não escuta: ela ouve o que tu escutas, orelha na orelha.


A morte não vê: ela vê o que tu olhas, pupila na pupila.
A morte não fala. Ela é tua palavra, voz na voz.

«A escritura é uma prática, dissera ele. Uma prática da invenção.»


E acrescentara: «Escrever seria, então, depois das palavras, ter adquirido uma
certa intuição da descoberta?»

A voz nos desvia do signo, mas ressoa apenas nele.

«Tu crês descobrir, ensinara um sábio. Tu destrancas invisíveis portas que abrem
sobre cômodos vazios.»

A feiura não choca a beleza: ela a intriga.

Encontrar a formulação e o tom justo: melhor que uma arte de escrever, uma arte
de viver e morrer.

Entre o feio e o belo, entre o verdadeiro e o falso, entre o bem e o mal, tão
imprecisa é a fronteira, tão flutuante.
O esfiar de um fio.
(«O livro, dissera ele, se apropria de minha vida
mas não a prolongará.
«Ele é já um outro livro.»

Auroral pensamento: a luminosidade do dia é


imprevisível.)

Quem quer que tu sejas, entra. O que tenho, impaciente, a te dizer, tu o sabes
desde o primeiro dia e o que tu me responderás, eu mo tenho repetido tantas vezes.
Tu és vinda; não é o essencial? De tão longe, de tão perto que, nos dois casos, eu
não podia te ver – mas eu não te vi? – nem te ouvir – mas não fui inebriado por tua voz?
–; de perto demais, tendo confundido a voz de minha alma com a tua; de longe demais,
tendo, com teu silêncio, envolvido o mundo para devolvê-lo à tua ausência.
Não te mexas mais. De ti, exijo tudo. Tu és o excepcional e o costumeiro.
Onde quer que tu estejas, tu és minha salvação.

... esse movimento rumo a ti que atravessa o livro, eu jamais o contrariei?


Assegurei-lhe o ritmo. Ele foi, eu o sei agora, o batimento regular de minha vida.

(Ele dissera: «Meu coração está em cada vocábulo.


Tu percebeste isso?
«Se, em nenhum momento, tu foste inquietado pela
diminuição ou aceleração das pulsações dele em minhas
frases, é porque tu ignoras tudo dele e de meus escritos;
«porque o coração é lugar de vida onde se
afrontam palavras de amor, de ódio, de revolta, de riso
e de sofrimento; porque nosso corpo é, do verbo, o
carnal universo, e o espírito, o infinito atraente.
«O livro nos folheia.»
O abismo

O que é o abismo senão, do vazio, a negação dos


cimos?

«A luz não acusa nem linha de falha nem linha de


cume.
«A sombra, pelo contrário, sempre prestes a se
desdobrar, ora se quer berço para a estrela e, ora, túmulo
do cascalho», dissera ele.

«No livro branco – dessa brancura das palavras


intactas – qual espaço nos foi reservado?
«De nossa própria autoridade, nós o ocupamos.
«Essa audácia advoga por nossa vida», dissera ele
também.
E acrescentara: «Branca é a palavra para a palavra
que se escreve.»

«O desconhecido, havia ele notado, talvez, seja do


que tu conheces, tudo o que te resta a conhecer.
«Assim o conhecimento seria apenas essa parte
desvelada de um saber universal ao qual não acederemos
jamais.
«Abismo. Abismo.»
«De uma frase à outra. De uma linha à outra.
«Lá no alto, há o passado; em baixo, o futuro, dissera ele.
E acrescentara: «Lá no alto, há a luz. Em baixo, há a luz.»

«Barras de um instante, palavras alinhadas dos meus livros, a folha teria sido
minha prisão sem os virgens espaços – minha liberdade – que o texto se aplica a
preservar», havia ele escrito.

«Aquele a quem se tomou o sol não recebeu, em troca, a lua.


«Doravante seu céu não conta nenhum astro», dissera ele ainda.
Mas, foi-lhe respondido: «Não creias nisso. Ele recebeu, uma vez, uma estrela em
tecido, para coser sobre seu peito, e morreu por ela.»

(O falso não pode se assemelhar ao falso. De outro


modo, ele seria o verdadeiro.

Podemos ser o autor de uma mentira. Somos


sempre os adeptos de uma verdade.

Não criamos uma verdade. Ela nos cria.

Nós nos reclamamos uma verdade para escapar à


mentira, assim como nos aliamos à vida para distanciar
a morte.
Na rédea de dois reinos, Deus é memória dos
limites.)

Aquele que não falava mais, de repente, gritou: «Clarão», e, incomodado por essa
luz intensa, virou as costas para a manhã e fugiu.

Aquele que não falava mais, de repente, gritou: «Precipício», «Noite», e, tragado
por essas palavras, sentiu o chão se abrir sob seus pés e se abismou.

Aquele que não falava mais, de repente, gritou: «Nada», e, brutalmente


confrontado a esse vocábulo, se desintegrou no vazio aonde vem encalhar o tempo.

Onde a palavra surpreende, o lugar está em perigo.

«Escrever, dissera ele, não é colocar no preto sobre o branco mas ser, si mesmo,
esse preto no qual as palavras se põem.»
O DESERTO, II

Poderíamos imaginar o deserto, como um retângulo sem ângulos, como um


círculo sem contorno, mas jamais poderíamos imaginá-lo como um quadrado ou um
triângulo; pois imaginá-lo como um quadrado seria, tão logo, murá-lo em nossa memória;
abordá-lo como um triângulo seria, a essa incontornável memória, assinalar uma base e
um topo.

A morte é um turbilhão do qual a vida seria a massa de ar ou a ração d’água.


Passiva é, no mais físsil de sua duração, a vida; dinâmica, em seu furor de viver, a
morte.

O deserto nos fornece a imagem de uma eternidade plana, imutável.

Meu caminho tinha um termo?


«Os ventos de areia nos cegam, dissera um sábio, a fim de nos ensinar a andar, a
cabeça abaixada, o passo no passo do homem que nos precedeu; pois a meta está sempre
depois da meta.»

O desespero incuba a esperança como, no vão de uma montanha, uma águia ferida
pela bala de um caçador, seus ovos vermelhos de sangue.

«Quando, no deserto, ouvires o grão de areia te contar a história de cada grão de


areia, tu saberás que te tornaste enfim uma infinita escuta. Disponibilidade
reencontrada!» dissera ele.
Apanhando um punhado de areia, o nômade diz: «Aqui está a minha vida»;
depois, com a outra mão repetindo o mesmo gesto: «E aqui está a minha morte. Todo o
resto é miragem.»

O que acrescentar de mais para aquele que sabe tudo de mim?


Ah esse mais é poder do nada, impotência do verbo.
O diálogo

Uma grande doçura não-empregada banha o mundo.


Ela reenvia a flor a seu perfume, saciando-a.
Orvalho.

– Qual palavra poderia escapar ao livro? perguntara


ele.

– Uma só: aquela que, a si mesma, escapa, foi-lhe


respondido.
Uma verdade apenas se distingue de uma outra pela diferença de seus destinos.

«Haveria, dissera ele, jovens e velhas verdades. Conflitos de gerações as


acachapam. Ocorre que as contemporâneas têm dificuldade em se liberar das antigas.
«Se soubéssemos quais defender, interviríamos.»

Do inaceitável ao cientemente aceito, a margem é, geralmente, inexistente.

Não busques teu rosto no de teu vizinho. Tu não verias nem o teu nem o dele.

O fogo não é jamais senão o signo que o consagra: signo em fogo.

Tu estarás sempre em atraso com a leitura do livro. Ele é o fruto de seu próprio
deciframento.

A voz não se recorda de nada. De algumas dentre elas, eu me recordo.

Nem objeto de morte, nem projeto de vida, o Nada é um suspiro; a leve ferida de
um sopro.
A vida festeja o rosto; a morte o murcha.

– Sempre sobre o mesmo livro? nós lhe havíamos perguntado.


– Sempre sobre o livro mesmo, havia ele respondido.

«Fazer o livro não é de nenhum modo empreitada narcisista mas, ao contrário,


ceder às pressões do escrito – um escrito não somente capaz de nos restituir uma imagem
fiel de si mesmo, mas também de preservar, ao longo de toda nossa leitura, o salutar
diálogo que o livro, ao se formar, instaura; suas páginas sendo, doravante, dispostas de tal
sorte que, uma vez a primeira virada, nenhuma das seguintes saberia se furtar ao face-a-
face previsto. Assim conseguimos enganar nossa solidão», havia ele notado.

«O que me parece injusto, dissera ele, é que não possamos amar um morto.
Morrer é ser, subitamente, despossuído do amor do qual fomos o objeto durante nossa
vida.
«O falecimento de um ser próximo no-lo torna, de repente, estrangeiro. Choramos
aquele que ele foi e não aquele que ele veio a ser. Toda inclinação, todo apego sendo
sentimento de vida.
«Mas, talvez, a morte não tenha jamais sido outra coisa que decisiva ruptura de
amor.»

Eu percebia, em torno de mim, apenas confusas subidas de palavras. Por vagas


sucessivas, elas saltavam para ir se quebrar contra o rochedo. Ó destroçamento do livro
cujos gritos soltos por cada um de seus vocábulos me ensurdeciam.
Fujo, esquecendo que ninguém foge da morte.

«O último livro, talvez, seja a patética mensagem lançada ao mar por um


desconhecido e que não nos resignamos a deixar indefinidamente flutuar sobre as ondas
em sua garrafa de vidro, por medo de ler nela, em transparência, por trás do relato de uma
morte individual, aquela, humilhante, de todos os vocábulos.
«O livro não nos salva do nada, mas do livro», havia ele notado.
O porvir da morte está na morte por vir.

«Nós imaginamos a morte tal um torno de bancada, ao passo que ela é pluma de
pardal à discrição do vento», dissera ele igualmente.

– A solidão do céu é a de uma estrela – só é o dia e só a noite; a solidão da terra –


metade no céu e metade no barro – é a de uma pedra.

– E a solidão do homem?

– ... talvez, a imensa solidão dos dois reunidos.

Rumor da ausência na ausência.


Surdo estrondo dos precipícios.

Nesses confins da renúncia onde os desertos se tocam, o diálogo toma fim, mas o
nada continuará, sem nós, a falar do nada.
Tépido sopro – o da ressurgência da palavra – contra sopro frio – o do insaciado
silêncio.

(Tu não podes ser esquecido.


Tal é o dilema.)
III – O PERCURSO (1985)
... ora, o conhecimento que cremos ter de nossos
escritos não é um. Ninguém pode conhecer o que não se
conhece a si mesmo.

Interrogar o livro. interrogar o judaísmo. Interrogar


o livro judeu, é menos questionar o livro e o judaísmo
que formular a questão; pois o judaísmo e o livro são a
questão mesma que os questiona.

O livro se transforma à medida que ele se escreve.


Haveria, assim, diferentes versões de um mesmo
texto.
Qual lemos nós?
Versão, para o homem, do livro ilegível de Deus;
versão para Deus, do livro invisível do homem?
Traduzimos o que deciframos; lemos o que
transcrevemos.
O escrito atesta que houve leitura. Ele é sua
confirmação viva.
E se a subversão fosse apenas uma versão
subterrânea – a primeira – de um livro a reescrever, o de
Deus; uma sub-versão que se inscreve em falso contra
todas as outras?
Deus não tem escrito. Ele tem, para confundi-lo,
permitido ao homem escrever.
Penso para não morrer de minha morte mas da
morte de meu pensamento.
Escrevo para não morrer de minha morte mas da
morte do livro.

Fazer progredir a origem, tal é a vocação de toda


origem.

A verdade se conta. Ela é a história de uma vida.


A cada um sua verdade, seu relato inédito.

A morte não é a morte quando ela é escrita.


Ela é a vida humana: o que recolhe e o que
dispersa.
De um abismo ao outro, nosso percurso permanece
o do livro; de uma morte sem certeza a uma morte certa.

O nada tem, por só respondente, o nada;


Deus, por única referência, Deus.

Para o judeu, o ponto de partida e o ponto de


chegada se confundem.
Eles estão, ambos, nesse nome solitário: Judeu.
Primeira e última palavra de um livro onde todo o resto
se apagou.
Como traduzir, em palavras duráveis, o progressivo
desenvolvimento de nossa relação com o judaísmo se,
sem moderação alguma, este, cada vez, nos rejeita,
ávido por horizontes novos?
O desconhecido é sua memória.

Há uma escritura da morte?


A resposta é uma questão: Há um pensamento da
morte?
Ser a morte, mas como chegar a isso quando esta
apela à vida para morrer?
O Nada não cria o Nada.

Podemos tudo inventar, afora o silêncio: ele nos


inventa.

E se a ausência fosse uma palavra – um pensamento


da ausência?
Temos tido relação apenas com ele.

O livro de Deus, talvez, seja obsedante projeto de


livro que nós nos esforçamos em realizar com as
palavras que lhe temos emprestado.
Atarefados na leitura da obra, não lemos senão esse
divino desígnio?

ANTE-DIZER

Estas páginas de reflexões, de obstinadas interrogações – refletir, questionar,


talvez, sendo apenas dar, como pasto ao pensamento, um reflexo – são apenas folhas
retidas de um livro em suspenso no livro mesmo, onde a certeza tem, por adversário, a
certeza; onde, desmunidos, judeu e escritor, em sua comum submissão ao texto, aí se
arriscam, em busca de sua verdade.
Livro, a um só tempo, da aproximação e da distância.
Eu teria tido tendência a considerá-lo como um ensaio, se, desde a saída, esse
vocábulo, em sua precisão rigorosa, tivesse tido uma chance de lhe desprender a
paradoxal cartada: conseguir, de uma parte, no mais forte da escritura, abraçar o livro e,
de outra parte, fazer recuar, simultaneamente, seu limite.
O ESTRANGEIRO

Se ‘Eu’ é verdadeiramente ‘Eu’, seu emprego


poderia ser reivindicado apenas por um estrangeiro.
Para ser, enfim, si mesmo, o judeu devia ser sem
compromisso.
«O estrangeiro do estrangeiro», eu, uma vez,
escrevi.

O que se distingue, não se assemelha.


Só o que se ajusta, tal a chave na fechadura, se
assemelha. A recíproca afinidade nos afeiçoa.

O prego tem, por imagem, o buraco. Malicioso


espelho. O buraco, por penhor, o prego.

O que está diante de ti, te reenvia à tua imagem; o


que está por trás, a teu rosto perdido.

Perder terra: se perder. Sem país, em nenhuma


época, o judeu se perdera. Ele recuperou sua perda, aí se
enleando, aí se lendo.

A semelhança do judeu com o judeu,


provavelmente, se deve ao fato de que ele foi, por todo
tempo, mantido afastado pelos que mal o toleravam.
Ainda que não se deva confundir semelhança e
solidariedade, para o judeu, esse solidariedade exemplar
é declaração de semelhança.
Tão estreito é o vital espaço que lhe foi consentido.
Seu livro desborda seu obscuro universo.

A semelhança do judeu com o judeu, apesar de


tudo, talvez, seja apenas uma dissemelhança
desconfessada com a qual ele pactuou.

Uma palavra estrangeira, que se tornou, desde então, pessoal, tendo feito, de mim,
um estrangeiro, me aproximou de todos os que, diversamente, assumem essa condição;
pois há similitude de pertença – inegável conivência – entre exilados, assim como há
misturas das águas.

Dessa dissemelhança, fomos o olvido; desse olvido, a precoce esperança.

A singularidade é subversiva.

O que espera viver, escreve-se; o que cessou de esperar é escrito.

Uma mesma espera, no desejo, associa o corpo ao espírito: esse laço é reserva de
vida.

Espera. Esmera.

O corpo é obra do tempo; o espírito, joguete da infinita duração.

Meu espírito não é meu corpo mas meu corpo é o de meu espírito.

Resistir à tentação de se arredondar, de se fazer pérola para um colar mas compor


com cada cascalho da estrada.
Partir.
A vida é discordância. Incompatibilidade do instante com o instante.
E a escritura, a expressão esfarrapada da irredutível oposição do limite ao limite.

Igualar o desigual legalizando-o mas se insurgir contra toda veleidade de pôr em


pratos limpos.
A lei é escala de harmonia.

Sujeitado ao tempo, o corpo é ruptura; o espírito, liberdade na continuidade.


Não absolutamente pássaro mas clareira.

E se, indefinidamente recomeçada, a morte fosse uma mesma gama de cores, tão
pálidas em certas alturas que, no distanciamento, ninguém saberia jamais qual dentre elas
foi a última?
O universo é sustentado pela forma.

Tu crês tudo ver. Tu não vês nada. Detém-te sobre um detalhe. O olho
compreenderá.
Mas, o que é o detalhe quando ele não representa nada?
Não é o indizível que se exprime, aqui; mas, o dizível do inefável Tudo.

O que é que – ó punhal – com um golpe seco de sua lâmina esfiada, é capaz de
tocar mortalmente um vocábulo, senão a clara consciência que tomamos, subitamente, de
sua inutilidade?

Quantas vezes, na confiança e na estima, enquanto dávamos livre curso a nossas


palavras, parecemos, de repente, ter trocado cascalhos?
Pedra é o vocábulo adensado de nada.
A morte endurece seres e coisas.

Querer-se, ao mesmo tempo, si e o outro, não é se guardar de ser si


uniformemente e, em sua integralidade, o outro? À fraternidade, precisamos, cada vez,
conceder uma parte de nós mesmos; uma pequena parte de nosso amor por nós mesmos.

A ausência nos esculpe. A presença nos expõe.


Duas vezes ausente é o judeu; duas vezes presente.

Duas solidões reunidas não formam jamais senão uma.


... curtos instantes que desejávamos eternos, esquecendo que a eternidade os
havia, já, engolido.
Um vocábulo úmido, um vocábulo queimado: o mesmo.
E se o diálogo da areia e do mar tivesse sido apenas o cósmico monólogo da
morte?

Deus não existe, mas Sua palavra existe.

Retomar, em sub-obra, o trabalho minucioso da morte, ah, é, justamente, isso:


escrever?

Tu cumprirás o que foi, por Deus, já cumprido e que fora apenas o cumprimento
de Sua solidão.
O livro divino se abre nesse local.
Ele se escreverá após o livro do homem que, à sombra do de Deus, acreditava ter
escrito o seu.

Uma palavra qualquer de uma página qualquer de um livro qualquer e o universo,


tão logo, existe.
Mas, esse prestigioso vocábulo, dotado de um tal poder, não tem mais
consistência que um grão de poeira no vento.
Há milagres que a maioria dos homens negligencia contabilizar.

Como saber quem sou se só o porvir é mesmo capaz de mo ensinar?


Amanhã não pode ser interrogado.

Nomear, é personalizar; denominar é, já, despersonalizar.


Diferença entre o Eu e o Ele; entre uma via d’água e a via láctea.
Ao imigrante, ao exilado, o nome desaprendido da designação; não a negação do
nome mas o nome dessa negação.
Todas os soleiras e todos os céus. Quem saberia nomear a eternidade, o infinito?
Nenhum signo para o inconcebível.
OS COMEÇOS

No começo era a utopia.


E a utopia era imagem.

No começo era o Nada.


E o Nada era silêncio.

No começo era o silêncio.


E o silêncio era olvido.

Ó deserto! A verdade é miragem do Verdadeiro; o


universo, sonho perpetrado de um mundo real.

Escrever, talvez, seria apenas confrontar a


irrealidade do vocábulo, à realidade do livro.

Clareados pela tocha que eles seguravam em suas


mãos, eles atravessavam a noite.
Duvidavam eles, por maior que fosse sua fé, que
eles se consumiam com esta?

... e que esse grosseiro archote era sua memória?

O nome
Deus nomeia. O livro denomina.

Não um nome de empréstimo mas de impressão.


Ó rastros; atemporais rastros.

Fraquezas de nomear. Ousadia em denominar.


O prefixo ‘de’ captando, provavelmente, a atenção.
A profunda escuta abala, às vezes, a escuta.
Em ‘denomina’, eu ouço, concorrentemente, os inumeráveis começos dessa
palavra e seu fim inelutável. Tal, no rio, o barulho difuso da água em conflito com a
água.
Nomeado, o objeto existe por mim e não mais, como na ausência onde, não tendo
ainda recebido nome, mas pronto para receber um, ele gozava de sua plena liberdade.
A de-nominação, talvez, seja apenas o estilhaçar do nome; ela é a expressão de
sua negatividade mas também de uma positividade indiscutível; o elemento ‘de’
indicando, a um só tempo, a privação e a extensão.
Rompendo com a etimologia – o que não é, hoje, para me desagradar – entendo
‘denominar’ como uma palavra formada, em seu duplo preito, por ‘desfazer’ e
‘desfraldar’.
A unidade, por vezes, é surpreendente união dos contrários.
Toda a energia do mundo está na arbitrária determinação de um lance de dados.

O segredo A letra

Suméria é a palavra escrita.


Deus em Sumer, ao Se dissimular na letra, levantou
uma parte de Seu véu.

Antes da letra, houve a palavra; após a palavra, houve o mundo.


Obedecendo a Deus que o havia nomeado, Adão nomeou por sua vez. Ele não
havia aprendido a soletrar.
Ele nomeou plantas e minerais, animais e insetos. Nomeou a água e o fogo.
Nomeou a planície e a montanha.
Do céu, ele sabia o nome.
O branco que a isola faz, da letra, um todo. Esse todo é uma chave.

Se, graças ao espaço que, limitando a palavra a si mesma, a distingue das outras e,
confortando-a em sua dimensão de veículo do pensamento, lhe favorece o desabrochar;
se, graças ao mesmo espaço, mas no interior do vocábulo, a letra, confirmada em sua
plenitude, desposa seu destino de letra, quem pode certificar que esses úteis –
indispensáveis – espaços não lhes parecem, às vezes, excessivos, desmedidos?
Poderíamos, então, imaginar uma palavra só, uma só letra no vazio.
Poderia haver uma solidão da palavra, da letra, cortadas da origem.
A palavra nasce para a palavra. Só há novos nascimentos, contestações renovadas
de sua condição. E o texto, repartições premeditadas dessas contestações, pulverização do
lugar onde Deus, agora, jaz; a denominação evocando apenas a despossessão do sujeito
ou do objeto nomeados.

Se o escrito é terra semeada, a palavra é grão de sede. Quais visões – quantas


privações – a esquartejam?
A escritura é eclosão de paixões maiores. Mas, a morte a arrebata. Haveria, no
coração de todo desejo, o desejo mórbido de morrer?

E se a letra fosse apenas o segredo do nome? Deus Se teria constrangido a ignorá-


la?
Sendo a origem, teria Ele admitido que todo começo podia ter-se iniciado antes de
ser reconhecido como origem?

Tendo denunciado a origem, Deus renunciou ao nome.

Frustrado, o homem inventou o signo que era, primeiro, apenas imagem de uma
imagem, representação de um irrepresentável à cata de si mesmo.

Imagem, figura contra as quais o signo reagirá, mais tarde, até aboli-las para
aceder, em seu apogeu, à dignidade de letra.
E se o interesse levado à letra fosse apenas a divina atração exercida, sobre nós,
pelo segredo?
A verdade é secreta. Teremos, em nosso fervor, interpelado a letra enquanto
guardiã do segredo e, através de seu enigma, como criadora da palavra a conquistar.
E se escrever fosse apenas deslastrar a palavra de seu segredo?
E se, ansioso para testar o gênio do homem, Deus tivesse, deliberadamente,
ocultado a letra a fim de poder, um dia, com os olhos de Sua criatura, Se ler no interior
de Seu Nome?
E se, não tendo jamais habitado a palavra, o segredo fosse a palavra mesma?
O Nome dos nomes, em sua incondicional soberania, nos apareceria, tão logo,
como Nome do segredo e segredo do Nome.
Enfermidade da linguagem.

A vida o Ponto

No começo era a vida; depois, a vida se fez verbo. Ocorreu-me, uma vez, de
escrever essa palavra: v’herbal.
O broto de erva é primeiro indício, tímido anúncio do surgimento próximo da
Palavra divina; sua previsível – natural – consequência: a precária chance de uma
escritura antes do escrito.
Deus, em seguida, se calou e a erva secou.
Mas, o deserto era Seu Livro. Ele lhe sacrificou Sua imagem, deixando o cuidado,
a cada vocábulo, de reconstituí-la, um dia.
Os ventos do céu se abateram sobre suas folhas, desafio a seu furor; escavaram
por longo tempo a areia; depois, acalmaram-se, ao fim das devastações.
Tal é a história que me fora contada.

No começo era o traçado sem o rastro. Com Seu index, Deus designou o caminho.
Ele impôs uma direção à leitura – uma ordem – que o homem fará suas, persuadido de tê-
las concebido.
Livro, não da areia, mas de areia, cuja ausência de palavras mantinha em respeito.
– O livro respira por suas letras, como a pele, por seus poros–.
Livro na vacância da palavra que assombram, já, as lendas. O porvir a ele coteja o
passado.
Livro de um nome areado no deserto do nome. Deus aí se desviou, fugindo de Sua
própria morte.
Tal é a história que me fora contada.

No começo era a treva, a noite do livro.


Nos olhos de Adão, um clarão brilhara, encerrado em si mesmo, recurvado sobre
si.
Esse clarão era a chave?

No começo teria, pois, havido a chave. O clarão, pela forma que ele tomava,
reforçando-se, assemelhava-se espantosamente à maçã da árvore cobiçada do
Conhecimento, redonda como um ponto; esse ponto do qual o judeu, mais tarde,
adivinhou que ele era vogal antes da vogal, chave do livro antes da chave.
No tempo em que ela era apenas um fruto proibido, Eva foi tomada por ele.
Tendo-o degustado, ela o ofereceu a Adão que o mordiscou.
Sem tê-lo procurado, eles ficaram, bruscamente, em condições de decifrar o
universo.
Irritado com o poder deles que Ele havia, no entanto, considerado lhes conceder,
Deus fechou, sobre eles, o Livro.
Tal é a história que me fora contada.

No começo era o ponto e esse ponto escondia um jardim.


Motivados por seu passado, os judeus, em sua prática cotidiana do Texto,
perceberam que cada palavra tinha suas próprias raízes. Eles fizeram, da consoante, o
tronco e, da vogal, o ramo nutriente, como Deus fizera, de um ponto brilhante, o astro do
dia e de um ponto deslumbrado, o astro da noite.
O livro tomou o lugar da árvore. O mundo podia, doravante, ler o mundo e crescer
tanto mais.

A falta de Eva seria apenas pecado de leitura e de escritura antecipadas?


Mas, se essa falta fosse louca paixão pela aurora? A aliança do judeu com seu
Deus seria, em uma símile eventualidade, a harmoniosa fusão de duas vozes
reencontradas.
Tantos começos para um começo contestado.
A chave, entretempos, havia soçobrado no clarão; o clarão, no signo; o signo, no
nada. Posta, de novo, em colaboração, a areia recobriu, uma segunda vez, o livro. De
sorte que, até o fim dos séculos, um livro permanecerá sempre por desterrar.

No começo era o futuro.


O RELATO

Ao passar uma borracha sobre Seu nome, Deus


passou uma borracha sobre a origem.

A plenitude – a perfeição – da Palavra divina está


em seu desalento.
Só a desgraça é perfeita.

E se o mal fosse apenas a parte de sombra do Bem?


Grande é a dor de Deus por ter tido que admitir isso.

Entrar no pensamento do livro, assim como


entraríamos no de Deus.
O judeu levou a leitura a esse nível.

Nossas letras quadradas tinham, já, a forma


universalizada do livro.

Escrevemos, não com letras, mas com livros


exumados.

Se Deus fundou o mundo sobre o Livro (o Seu), o livro (o do homem) e o Relato


– de qual relato se trata?
O de Deus ou o do homem? O de um e do outro?
Contrariamente ao que se tem costume de pensar, a ficção não é, a priori, mentira.
Para o judeu, a verdade está no relato; ela é mesmo o relato.
Contam-me apenas sua verdade porque a verdade é nossa história. Que importa
se, em certos lugares, a parte bela é dada à invenção? Inventar não é, justamente,
redescobrir?
(Ninguém crê jamais estar em erro. O erro, talvez, seja crer.)
A maneira pela qual a história é reportada não engana, tão centrada no detalhe. O
detalhe não saberia trair. Uma formulação justa tem, por si, a verdade de sua justeza.
Dessa verdade, o livro se gaba.
A prosa reenvia a escritura a si mesma, a poesia a multiplica. Uma a dobra, a
outra a desdobra. Entre um aquém e um além imprecisáveis, a escritura judia se abre uma
passagem. Ela é essa passagem. Ora enlevada pelas palavras – que são apenas movência
infinita do pensamento, a expressão adequada dessa movência –, ora, preocupada em
testemunhar, em fazer participar outrem da total aventura na qual ela conscientemente se
empenhou.
A ruptura é, para ela, sobressalto de vida, penhor de reatamento com o
desconhecido.
Do silêncio a escrever ao silêncio escrito, o livro judeu, na meticulosa demarcação
do de Deus, para sempre permanecerá um livro incumprido.
O ESPÍRITO

Severidade: seiva e verdade.


Tal é a severa lei judia.

«Esta é a Palavra de Deus a Zorobabel: Nem pelo


poder nem pela força mas somente por Meu espírito.»
Zacarias, IV – 6

Nem pelo poder, pois o poder tem, por sustentação,


o poder.
Nem pela força, pois a força tem, por aliada, a
força.
Mas por Meu espírito, pois o espírito é chama para
a vela e infinito para a chama.

Nossa luz é irmã de nossas recordações; nossa


noite, inconsolável órfã de uma escuta desaparecida.
Rastros espelhantes que tomávamos por pegadas de
estrelas, nossa noite é constelada de lágrimas; nossas
manhãs são mais nuas que a água de nossas fontes.
Essa nudez, árido deserto, tendo-se tornado, uma
vez o poço exaurido, aquela, incomparável, do Nada.

O Nada. O reatribuído.
Deus é poder mas o poder não é Deus.
Deus é força mas a força não é Deus.
Deus é espírito mas o espírito não é Deus.
Estrangeiro para nós mesmos, a Si-mesmo, Estrangeiro.

E se crer em Deus fosse, apenas, crer em Seu estranhamento?

A verdade tem seus degraus de sombra, assim


como a torre, suas bancadas furtivas.

Deus está em dívida com Deus – em dívida de


Deus –.

O espírito é, a um só tempo, o campo e a espiga.

A origem não é nem a sombra nem a luz. Ela é o que as desempata para
salvaguardar sua autonomia.
Haveria, assim, para uma um direito adquirido à obscuridade e, para a outra, o
mesmo direito à luz; o privilégio, para esta última, de deter as chaves da claridade; o
encargo, para a sombra, de velar por seus precipícios.

No meio do deserto – Quem o situaria? –,


um traço imaginário, uma fronteira.
A esse rio, o espírito deve sua fertilidade.

A solidão do pensamento é a do sulco: uma mesma ferida.

Pontualidade da maré; ó dúvida! Teremos vivido ao ritmo do fluxo e refluxo do


mar.

Antes de devorar o homem, a incerteza, já, corroía Deus.


E se, em seu infinito despedaçamento, o universo fosse sua flagrante
confirmação?
A anormal ausência de Deus ao mundo encontraria, talvez, uma explicação.
Ninguém pode ultrapassar o livro: ele se adianta a nós.

O NÓ E A SUBVERSÃO, I

Não é o dia que, no escuro, faz derribar a noite,


mas a sombra mesma.

... regiões enlutadas da alma onde Deus Se vê.


A luz não está sempre onde o cremos.

Deus é negação do laço, um fio fino demais para


um nó.

Deus é à imagem da falta.

A simplicidade encerra sua própria complexidade;


ela, talvez, seja apenas uma complexidade simplificada
ao extremo.
Assim, à simplicidade do sagrado, sucedeu a
complexidade do profano.
Uma subvertendo a outra.

Deus não é Deus. Deus não é Deus. Deus não é Deus. Ele é. Ele é antes do signo
que o designa. Antes da designação.
Ele é o ante-vazio, o ante-pensamento; logo, o ante impensado também – como se
pudesse haver um ante-nada.
Ele é o ante-grito, o ante-tremor.
Ele é a noite sem noite, o dia sem dia. O ante-olhar. A ante-escuta.
Ele é o ar antes da respiração. O ar inspirado e expirado pelo ar. Não ainda o
vento mas o ar leve, indiferente, em sua ociosidade primeira.
Ó infinito vacante.

A resposta, do judeu, em nome da coletividade, poderia ser a seguinte:


«Teremos denunciado a arrogância do cego poder.
«Teremos virado as costas para a derrisória força.
«Teremos, assim como para a vida, despertado para o espírito;
«pois o pensamento é vitória do espírito sobre a noite;
«pois, sobre esse espírito, Deus edificou Seus dois reinos.»
Ó páginas face a face no livro que as perpetua!

De nossa impotência inata em encará-lo, Deus receberia Sua temível potência?


Assim, contra sua vontade, a água reina como déspota sobre o fogo.

Feminina é a potência.

Nossas vias são diversas, incontáveis. E, no entanto, elas são apenas duas: a que
leva ao Tudo que é o Nada e a que leva ao Nada que é o Tudo.
Uma é poeira; a outra, fumaça.

Dou a ler o que eu não tinha lido mas que, sem que eu o soubesse, me leu.

O destino do judeu é ler o que lhe acontece e esquecer o que lhe aconteceu?
Nosso olvido é amassado por dores.

O judeu se define no presente.

É necessária, ao judeu, tanta paciência a circundar a inconstante verdade, quanto


constância a acossá-la.
Sua verdade, talvez, esteja nessa teimosia.
Sono branco dos pássaros de olvido.
Transparência do despertar. Acima
do espírito nada, ah, nada.
A manhã arrebatando seu bem.

A palavra é coisa em si. É nessa qualidade que ela se impõe ao pensamento; que o
pensamento, por sua vez, a impõe.

A parte humana da escritura é a parte conhecida; a parte divina, a desconhecida.

Tão esmagador é o peso de nossa irrealidade que se eu devesse, por uma imagem
suplementar, ilustrar a realidade, eu penderia por aquela de um homem curvado,
atravessando, esgazeado, o espaço indeterminável onde a vida se une à morte.

– Não posso conhecer outrem senão através de mim. Mas, quem sou eu?
– O fogo conhece o fogo?
A madeira conhece a madeira?
É, à madeira que ele consome, que o fogo deve o ser fogo; assim como a madeira,
ao fogo que a reduz a cinzas, deve o ter cessado de ser madeira.

A vida, por vezes, nos perde de vista.


A morte, sem fim, nos olha descaradamente.

Se tu te aplicasses a seguir, em seu avanço, uma palavra marcada do livro, tu a


reencontrarias, ao fim, tal qual?
Eu tenho sido essa palavra.

Entrar no Pensamento de Deus, é se deixar, pouco a pouco, guiar por ele mas é
também perecer, do livro onde Deus Se escreve.

Não podemos pensar o impossível pondo-nos, previamente, a questão do possível.


Não culminaríamos em nada.
O impossível não é nem pensável nem impensável.
Ele não pertence nem à manhã do pensamento nem à noite do impensado.
Ele mesmo é memória exaurida.

Em todo possível, há um impossível que o atiça. Esse impossível, no entanto, não


é o impossível. Ele é somente o fracasso do possível.
Sempre alhures é o impossível. Ele não é mesmo senão o alhures; não
absolutamente o inatingível mas o aberto sobre o Nada; o Nada do aberto.
Esse impossível é Deus. Não te obstines, em teu orgulho, a querer transformá-lo
em um permanente possível.
Ninguém pode – ó silêncio, ó nada – ir a Deus. Ninguém pode senão deixá-lo,
assim como alguém retorna, sempre, a si, o espírito e as mãos vazias.

Todas as possibilidades do livro são, geralmente, contrapostas por sua


fundamental inaptidão em explorá-las.

A essa imperícia, ele deve uma parte apreciável de seu mistério.

O impossível, sob o qual curva-se o homem, é lassidão de Deus: a falta


voluntária, o gesto em falta.
Assim, ao longo de toda uma vida, no deserto cujos confins são apenas flutuantes
beiras do desespero, temos sido constrangidos a errar.
Não houve salvação, para nós, senão fora da salvação.

A consciência de Deus é o Livro. A inconsciência do escritor, um livro que


rivaliza com o Seu.

O que, completamente, escapa à consciência, não é, para o escritor, senão palavra


herdada de Deus, condenada a se calar?
Haveria, assim, em toda palavra, uma trás-palavra interdita que seria, talvez,
apenas o miserável silêncio de um silêncio traído.

... lisa é essa parte do pensamento sobre a qual o pensamento, tão logo levantado,
volta a se deitar.

Eu teria querido que tudo terminasse entre o livro e mim.


Eu não sustentei sempre que a melhor abordagem do judaísmo era inocente?
Penetramos em um livro sem estarmos seriamente preparados para tal. Ao fio da
leitura, nós assumimos isso.
Assim, o judeu abre seu livro esquecido. O olvido está na origem de seu gesto.
Cada palavra, entretanto, lhe relembra precedentes leituras, assim como todo
lugar reencontrado nos confronta com nosso passado.
Mas, essa familiaridade com o texto não exclui a desconfiança.
Um lugar não é jamais idêntico. O que não tínhamos observado nele, emerge da
carência desse olhar que, tornado suspeito, abala, de um só golpe, a confiança que
tínhamos nele.

A palavra não se repete. Ela não rediz jamais senão o que, por ela, foi dito, pois
ela vive.
O livro é vivo. A morte só tem o poder de interromper a leitura.
Aqui, inicia-se a interrogação. Aqui, a inteligência recobra seus direitos
elementares.
Todo comentário do livro é comentário do lugar deserto onde fracassamos.
Disposta na casca do veleiro, ó viagem, a verdade é a preciosa palmeta. O texto é
uma asa projetada ao vento do mar. Nós a seguimos com os olhos, em seus batimentos e
deciframos sua sombra no inflar das vagas e sobre a areia úmida.
O que conta, é nossa vontade de ler. Nossa alegria vem da ideia de que fomos
escolhidos para celebrar o livro; nossa tristeza, de saber, por nós mesmos, que não
poderemos jamais esgotá-lo.

O judaísmo é afrontamento de leituras. Todas falsas. Todas verdadeiras, na


medida em que são pessoais. Algumas são exemplares mas não saberiam nos servir de
exemplos, pois arriscariam pesar sobre as nossas. Elas nos convidam a igualá-las em sua
ambição.
Interpretação do Livro para um livro de interpretações. A obra não freia o
movimento. Ela é o movimento mesmo de seu escoamento.
Infinito finiscente no infinito nascente.
E Deus? Ah Deus, talvez, seja, para o homem, o deslumbramento de sua fatal
ruptura que o livro vem parcialmente colmatar.
O ESCRITO A ESCRITURA

Do escrito à escritura, da orla ao mar, sempre mais


longínqua é a meta, o livro.
Nós o leremos na distância onde ele se articula e na
proximidade onde ele se acaba.

O livro está na semente.


A semente é vocábulo.
O vocábulo está no livro.
A leitura do livro, talvez, seja apenas leituras dos grãos germinados.

Do grão, tu fizeste o grão; do trás-livro, tu farás, amanhã, o livro.

Partilhar com discernimento o que era para conhecer; que foi, de cada um,
insuficientemente conhecido.
O instante é conhecimento. Haveria uma aprendizagem do conhecimento ao qual
o instante emprestaria seu vivido. A eternidade, o que dura na duração, brancura selada
na brancura, é saber diluído no saber: o incomunicável.
Ah quantas folhas imaculadas! Deus as tomaria por eternas? O homem recalcitra.
Ele escreve o minuto efêmero, enterrado na eternidade que lhe escapa. Ele escreve a
abissal ausência.

Substituir, uma pela outra, duas palavras sinônimas, é uma operação delicada;
pois, na maioria das vezes, não levamos em conta tudo o que essas palavras recalcam: o
campo de seu inconsciente.
Predominância da escuta.

O escrito é, para a escritura, sua justificação.


Reconfortante ilusão.

O escrito é, na escritura, o advento que não terá lugar: alvorecer natimorto.

O livro não retém a escritura; a escritura, pelo contrário, retém o livro.

Em todo nome, há um nome perturbante: Auschwitz.

Jamais o escritor abre o livro. Como se, de antemão, ele tivesse medo disso, ele o
fecha cada vez que o abre a escritura.
O livro é de essência divina. As palavras aventaram a leitura que Deus, uma vez,
fez dele. Elas chamam, em vão, essa leitura que as revelaria a si mesmas. Mas, Deus está
morto.

Toda a memória do homem está em uma imemorial recordação da qual sabemos


que ela não é ligada ao tempo mas à eternidade: gênese da obra e do mundo.

Suplantar o mármore. Desmistificar a eternidade.

Felicidade e infelicidade, para o judeu, são, de um velhíssimo pergaminho, apenas


as palavras superpostas: palimpsesto de uma sobrevida.

A área do pássaro é recortada no silêncio da ausência.


Haveria, para nós também, intuitivas extensões de inerte memória a fender com
nossas asas?
A revoada é, entretanto, perigosa.
Ninguém explora o olvido. Ele nos explora.

Não ouço o tempo que, comigo, entra em minha vida; mas, já, o ouço
distintamente preparar nossa saída.
O tempo, talvez, seja essa invisível presença que, sem o menor esforço, nos
acompanha até a morte: seu monótono trajeto.
Pensar o tempo, é pensar o arrancamento.

Ó solidão! A vida é, de uma beirada à outra da trama cerrada dos dias, apenas
comprimento e finura de um fio: uma meada?
O Percurso

Estar à mão.
Destino. Destino.

Primeiro, a provação; depois, a prova.

Não busques provar. A prova é o que se destroça.

O judaísmo põe, ao mundo, uma questão política,


pela fundamental questão da irredutível fidelidade a si
mesmo.
Sua liberdade está aí.

É preciso saber, hoje, que a mais eficaz oposição à


loucura do mundo é fornecida pelo murmúrio.
A loucura é caos, tortura, massacre e discurso de
impudência.
Falar o mais baixo possível. Falar para esse
possível.
Aqui, o silêncio é à imagem do glacial e cortante
cutelo.
Mais que exprimir: espremer o pensamento.

Se pensar não é jamais senão contar seu


pensamento, estas páginas bem poderiam ser lidas como
um relato.
Por que não? O relato de uma infinita interrogação,
no coração do infinito mesmo da questão.

Não te conto nada. Em teu relato, conto-me.


Tu fazes minha história.

O destino de um homem, talvez, seja apenas o dado


(lançado) de seu instinto.
O segundo dado estando ainda na mão da morte.
MÉTODO

Aí está o espírito. Aí está a alma. Aí está o


pensamento. Aí, o desconhecido.
E esse lugar vivaz é vocábulo.

Leveza despertada.
Gravidade dormente.

É tão leve falar de Deus quanto da morte.


Que gravidade, todavia, nessa leveza.

Devemos, obrigatoriamente, partir de uma data para calcular o tempo empregado


a escrever o livro; assim como devemos esquecer esta para afrontar a eternidade.
O tempo não começa. Ele desata nossos começos.
Os vocábulos vida e morte são palavras sinônimas, pois são, cada um, a um só
tempo vida e morte do universo e do homem.
Eles não designam a morte ou a vida. Eles são a vida e a morte mesmas.

Entrego esta nota da qual jamais ousei me servir: «Eu não creio em Deus. Deus
crê em mim.»
... como o ar, para ter fé em si, tem necessidade de ser respirado; como, para a
estrela, é indispensável saber que ela cintila; como, da terra, o sol espera um sinal de
reconhecimento para a vital claridade que ele espalha;
mas, talvez, eu apenas tenha escrito esta frase a fim de conceder à ausência um
estatuto de presença; ó perene presença de uma ausência incrédula.

De todas as palavras do dicionário, a palavra ‘Deus’ é a mais refratária. Não


estamos jamais seguros do uso que dela fazemos.
Não podemos confiar senão nas palavras que conhecemos – que nos conhecem.

Não imites Deus, que morreu por ter querido dar uma resposta ao universo
questionando.
Tu morrerás em tua hora mas de uma resposta à qual tu te terás, contra tua
vontade, aliado e que é a do infinito à eternidade: teu abandono.

Tu eras apenas escritura. Teus escritos ficaram taciturnos. Tão logo, teu coração
cessou de bater.
A palavra é mais breve que o instante.

Morrer, a pluma na mão, tal o pássaro, de asas ainda infladas de vento.


PRIMEIRO PASSO

Todo percurso é a proeza de um passo.

O judeu arrastou sua ingênua esperança, seu amor


pela vida até o extremo de seu sofrimento. Além, há o
olvido de si.

O olvido me escreve com seu olvido.

Escrevo ao presente. O presente me escreve. Ele não pode, entretanto, senão se


referir a meu passado.
Declarar, respondendo a uma pergunta precisa: «Nasci em 16 de abril de 1912»,
significa «Atesto ser esse homem nascido em 1912, em 16 de abril, às três horas
exatamente, cujo corpo e, por que não?, o espírito, até sua extinção, testemunharão isso.»
A prova de nosso nascimento, de nossa existência nos é fornecida por outrem. Eu
existo porque qualquer um pode afirmar isso. Esse testemunho nos acalma, nos consola.
A dúvida vem, infelizmente, de nós.
Se o indivíduo tem um começo é, em suma, porque sua carteira de identidade lhe
dá tal fé. A data de seu óbito não está inscrita lá. Ela o será, um dia, sobre sua tumba ou,
se ele tiver julgado preferível não ter uma, no registro público de estado civil da
Administração de seu bairro ou de seu vilarejo.
Mas, o ano de 1912 é, também, o milésimo noningentésimo décimo segundo ano
da era cristã e cinco milésimo sexcentésimo septuagésimo terceiro ano do calendário
judeu; um passado, em sua quase totalidade negligenciado, do qual me fora concedida
uma parte ínfima; a parte da qual asseguro, agora, tendo conseguido me incrustar no
tempo, a duração.
Para cada vida, seu ingênuo traçado, assim como para cada aurora, sua gama,
ascendente e descendente, de luz. A morte é o nada, o desaparecimento do signo, sua
condenação. Implacável é a eternidade.
As frases dos meus livros se reclamam duas datas: 1912, primeiro; depois, aquela
do dia e do segundo em que foram escritas: 18 de janeiro de 1984, às nove horas e onze,
para esta última.
E os meus livros? No melhor dos casos, eu poderia assinalar o instante em que sua
existência tomou fim.

Nasci, pois, para a escritura entre 1912 e 1984, mais para o início.
Nasci para o judaísmo entre 1912 e 1984, mais para o fim.
É a certos eventos, aos quais não me referirei, desta vez, que devo isso.

O passado é representação – figura –. O porvir, ausência de figura – vazio –. A


interdição de reproduzir é mandamento do futuro.

O futuro, talvez, tenha, por desconhecido, sua imagem.

Tu lerás amanhã o que, hoje, foi recusado à leitura.

Sempre me cativou a imagem; não pelo que ela representa mas pela transparência
à qual, um dia, ela chegará.
Contemplar o Nada.

Caber no Nada e conseguir enlaçar o tudo: medida e desmedida do homem.

... mas esses barulhos, esses sons como murmúrios reprimidos do mar; essas
sonoras, ainda que ensurdecidas, manifestações de um ante-mundo em gestação!
Ah quem os encorajou em sua esperança de cumprimento, em sua firme vontade
de nomear, sacrificando seu nome?

O desejo é memória: memória do desejo.


À questão: «Quem sou eu?» responderei: «Um escritor?»
Escritor e judeu, tenho sido levado a precisar; menos, entretanto, para arvorar meu
judaísmo, que para tomar minhas distâncias com ele, a fim de me deslizar mais
comodamente nessa rachadura.
Isso fora insensato?
Prevalecendo-me de um e do outro, traio apenas o desejo – a ambição – de ser
considerado, antes de tudo, como um escritor. Mas, como explicar, então, o desejo – a
ambição – de ser, ao mesmo tempo, reconhecido judeu?
É, verdadeiramente, um desejo, uma ambição? E se isso fosse, o que os
motivaria?
A menos que eu encarasse de outro modo a questão.
O que é um escritor? O que é um judeu?
Judeu e escritor não têm nenhuma imagem de si mesmos a brandir. «Eles são o
livro.»

Quando Deus faz um milagre, uma palavra se clareia.


Quando, do mundo, Deus se retira, uma palavra se extingue.

Exterior é o limite. Interior, o ilimitado.

Quando o judeu me ensina que me cabe redescobrir a ordem do Livro ao qual dou
vida ao decriptá-lo, não é o judeu que eu sou quem agradece mas o escritor.
Quando o judeu me faz saber que a palavra que leio é, a um só tempo, aquela que
me distancia e me aproxima mais da palavra que devo ler, não é o judeu que eu sou quem
agradece mas o escritor.
Quando o judeu me deixa entender que ler o livro, talvez, seja a melhor maneira
de rogar preces, porque toda prece está em nosso livro, assim como o ouro está em nossas
mãos, não é o judeu que eu sou quem agradece mas o escritor.
E se nossos livros fossem apenas coletâneas, periodicamente postas em dia, de
nossas preces preferidas – essa preferência se justificando, ela mesma, por sua própria
referência ao sagrado –?
Santidade do escrito.

Deus é esse vocábulo inquietante que muitos dentre nós esquecem, do qual outros
se recordam mas que é uma palavra tão ancorada nas palavras que estas, tomando-nos por
confidentes, não hesitam, em voz baixa – em aparte – em declarar o constrangimento que
ela lhes causa; talvez, porque, não podendo ter sentido – existência – senão fora delas, a
palavra Deus as acabrunha esquartejando-as.

Ninguém pode à força restituir a palavra; por vezes, ela nos aterra.
Nossa força e nossas fraquezas são as suas. Ela é nosso futuro, ainda que tendo
seu exclusivo passado.

Nossos amanhãs foram precedidos por nossos braços estendidos. Eles estão
forrados, desde então, de nossas magras mãos cortadas.

A última palavra é o ante-primeiro vocábulo. Assim, o Tudo do qual dissemos


tudo, é apenas laboriosa preparação ao dizer.

O Nada é o laço.

Debruçado sobre teu livro, é ele que te inflete.

Eles eram cinco. Ao mais jovem, o ancião diz: «Tu és a vogal, a alma»; ao
segundo: «Tu és a consoante, o pilar»; ao terceiro: «Tu és o vocábulo, o universo», ao
quarto: «Tu és o silêncio, o infinito.»
«E tu, perguntaram-lhe eles, quem és tu?»
«Eu sou o livro, respondeu ele; porque, como ele, abro-me sobre meu corpo e
meu espírito; depois, como um enigma, resolvo-me em mim mesmo. Porque, sem vós
quatro, não sou nada.»
O TEMPO O ESCRITO

Há uma invisibilidade que é visibilidade diferida e


uma visibilidade que é ilegibilidade desencorajante.
Essa ilegibilidade nos confirma que tudo o que é
visível não é, em virtude desse princípio, legível mas
que, pelo contrário, o que é invisível permanece a futura
aposta de toda legibilidade.

O escrito do tempo não é o tempo do escrito, mas seu saber adquirido.

Fazer recurso ao tempo que sendo apenas o curso do tempo é, a fortiori, privado
de recurso.
O tempo tabula sobre o tempo.

A ilegibilidade do próximo passo. Só é visível a estrada.

Delimitar os sulcos do infinito.

Para melhor preparar o homem para morrer do homem, Deus criou o tempo?
Para deixar o tempo a Deus para morrer de Deus, o homem concebeu a
eternidade?
O instante prevalece sobre a duração, jamais sobre a eternidade que é duração
incontrolável.

Para toda presença, a esperança de durar; para a ausência, a eternidade.

E se ontem – ó noite cravejada, todo meu passo – se recusasse a abdicar?


Não há absolutamente palavra que não esteja, já, envolta em porvir.
A dor, o dissabor acedem, também, à manhã.

Questionamos na noite; mas, movida por uma compreensível necessidade de ver


e, para nós, de nos ver nela, a questão está sempre virada para a luz.

A luz da questão não é jamais senão questão à luz.

Uma vela acesa basta para delimitar o espaço de nossos pensamentos, de nossos
gestos, de nossos escritos.

Amarga é nossa decepção em não poder franquear as fronteiras da claridade.


Escrever seria, então, apenas projetar um pouco de luz em torno das palavras.

Humildade do olho face à obscuridade.

O olho está na palavra. Ele nos vê. Nossos olhares nos confundem.

Para o escritor, o que é o tempo? – Talvez um som, um signo, a pressão,


levemente sensível, de um dedo sobe o papel branco.
Passagem do tempo que não é o tempo que passa mas tempo surpreendido em sua
passagem.
Não podemos reter o ar – nossa respiração – mas podemos contar os batimentos
do pulso que escandem a fuga dos dias.

E se fosse a recordação que, a partir de uma presença desaparecida, prolongasse o


tempo da ausência?
Não podemos nos recordar de Deus. Recordamo-nos da distância que ele
estabeleceu entre Ele e nós.
Haveria um dia antes do dia que, para a palavra, seria a surpreendente constatação
de uma realidade à qual ela estava mal preparada. Tal o vidro trabalhado, no cristal de sua
forma, ela aí veria, mesmo que fosse por um instante, surgir seu rosto ignorado?

A transparência não oferece rosto mas o universo a contemplar: imagens colhidas


de sua solidão.

O suicídio não é ruptura com o tempo mas pausa voluntária, golpe de parada fatal
em nossa relação com ele.
A morte não escapa ao tempo. Ela preside um morto-tempo, tornado o nosso.
... um morto-tempo que não é um tempo morto mas o tempo eterno do morrer.

A interrupção no texto – interrupção do tempo – tem, geralmente, por origem, o


suicídio inesperado – ou temido – de uma palavra que, tendo por muito tempo sonhado
com uma morte vertiginosa, cedeu à irresistível atração do vazio.
Aqui, não é o fim que justifica os meios mas os meios que inocentam o fim.

De nossos desejos e de nossas ancestrais angústias, o tempo toma ato, datando-os.


Ele põe em andamento, com nosso concurso, um passado que, doravante, assumiremos
juntos.

A vida é fita colorida do tempo. A morte poderia ser, então, rasgo inevitável da
fita; a usura sendo, habitualmente, sua causa direta.

Do ínfimo filete d’água, em seu derrame, ó pedra inoportuna!

É preciso ter muito chorado para apreciar um sorriso.


Arco-dos-lábios. Arco-íris.

A palavra é da natureza da onda. Passiva em aparência, como esta, ela é sujeita à


cólera, à revolta que são, geralmente, reflexos de fraqueza.

A impaciência do instante contrasta singularmente com a paciência da eternidade.


Impaciência de cumprir seu destino mortal; paciência de ser ligada à duração.
Uma mesma inquietude as enrosca: por ter-se infiltrado no tempo, para a
primeira; para a segunda, por ter sido dele excluída.
A realidade não é jamais senão espetacular ressalto da memória.

O livro subversivo é aquele que destroi a ordem estabelecida para impor, pouco a
pouco, a sua.
Escrever não é outra coisa senão a busca por essa ordem; somente a busca.
A subversão faz face à subversão; donde o mal-estar que ela provoca sobre nós.
Esse mal-estar, na realidade, não é um mal-estar mas o mau estado, o mofo do
muro: a realeza amputada de seu reino.
Mas, de qual ordem se trata, então? Provavelmente de uma franja de olvido,
entregue às tesouras da memória.

Aparar a solidez da rocha.


Pequenas mordeduras; pequenas mortes seguras.

Emudecer a morte, conceder voz apenas à vida, à cristalina vida quebrada, ébria,
entretanto, de sobreviver.

Direito de quebra. Direito de destroços.


Sua pobre chance.
Inválidos do mar.

Do deserto ao mar, estende-se a sombra imensa de um navio em partência: seu


sonho comum.
A solidão se nutre de desconhecido.
O NÓ E A SUBVERSÃO, II

Moisés, de repente, causou medo em Deus.


Ele encarnara a subversão.

A leitura nos eleva.

... e essa colina se enche de palavras sob as quais os


hebreus se abrigaram. Eles aí pousam desde então.

– Uma vila pode ser um livro?


– A vila que tu evocas é o livro.

Ó chamas devastadoras, ó Jerusalém, leitura


terrestre e celeste do abismo.
Tu foras, outrora, por seus aspectos antitéticos, um
livro perturbante, antes de vir a ser, hoje, em seus
fundamentos vitais, o livro da subversão.

O Templo estava no Livro antes que o Livro


estivesse no Templo.

Nada: vocábulo aspermo que o vazio dissipa.


Um monte de cinzas.
O livro enterrado remexe.
A leitura se faz fogo.

Espinçar o infinito.

Subversão por toda parte. Na abrasadora paisagem do judaísmo.


SUB (em baixo) mas à VERtente (a colina) de SiÃO.
Orgulho das areias, nossos cinco livros teriam erigido esse montículo, capaz de
rivalizar com as mais altas montanhas?
Dando-se a decodificar da direita à esquerda, sua escritura nos permitiu fazer,
cada vez, sua ascensão.
Um rolo protegido, em sua dupla aparência, desapruma o universo. Seu escrínio é
o azul. O rabino, na sinagoga, o entreabre durante o ofício, para que os fiéis reunidos, no
nível abaixo, levantem, sobre ele, os olhos.
O topo da colina é topo de leitura.

Um ponto reluzente, topical, arrebatado à terra pelo céu, nos dias mais trágicos,
fora nossa estrela. Esse astro se fez, de si mesmo, tão pequeno; tão pequeno que ele
aterrissou sobre nosso peito. Dois corações, doravante, batiam em uníssimo: um, de
sangue; o outro, de luz.

Invejosa obscuridade que buscavas nos esconder o cume, sabias tu que este, sem
que tu o soubesses, podia reluzir para nós? Tu esqueceras que eras também sua sombra?
Ah quantas noites hostis precisamos atravessar para atingir a vista!

O topo do deserto é ainda o deserto.

Livro de adeus: o de Deus. Livro a Deus: o do homem.


Segredo do silêncio, ó divinos versículos, no silêncio das areias.

Deus é subversão do Livro; o opressor silêncio. Ele é o Nada que desequilibra o


Tudo e o Tudo que indispõe o Nada.
O obstáculo no obstáculo. O insuplantável a suplantar.

E se, vaporoso anel, o halo fosse um nó corredio?


O que nos ata é o que nos mata.
O ritmo do universo é balanço de enforcados.

Nossa memória sufoca sob os restos amontoados de um livro incendiado.


Sabíamos que os muros do Templo eram blocos reagrupados de escritura divina?

Cada grão de poeira se recolhe por trás de sua história; ataca-se ao demencial
projeto de pactuar com a morte a fim, ele também, de se reclamar um livro.
Palavras da recusa. A tinta lhes colore, em vão, suas letras que o desconhecido
perfura.
A transparência se lê na nua transparência à qual ela atingiu; o nada, ó luto, no
recôndito do nada
PORVIR E DEVIR JUDEUS

«A história me permite não mais pensar para mim.»

«Não ter jamais sabido o que significa ser judeu –


tanto esse não-saber contém de saber – e, entretanto, ter
aceitado morrer das recaídas dessas subjacente questão,
aí está nossa contradição e aí, também, o turvante
mistério de uma origem.
«Assim, na noite de uma questão em suspenso,
inscreve-se, em pontilhado, o frágil, o constante devir
judeu.»

«O porvir do judeu é subordinado aos múltiplos


riscos de seu desaparecimento.
«Essa funesta ameaça é seu surdo fermento.»
(O Livro do Diálogo)

Nenhum porvir assegurado para o judeu, mas um precário devir do qual ele é o
solitário artesão.
Assim também se dá com o instante rebelde, preso na engrenagem do tempo.

Vir por... Vir de...


Ao porvir falta sempre uma direção; ao devir, uma intuição.
Nossas referências – nossas preferências – são nossos apoios. Vivemos do que
sabemos; tão pouca coisa.

Vivemos de empréstimos. Na hora de morrer, precisaremos assinar nosso último


reconhecimento de dívida à eternidade. Ninguém passa de vida a passamento sem ter
cumprido essa humilhante formalidade. Trêmula assinatura, já embaraçada de além.
Uma carta-branca contra uma quitação.

Não peças a Deus para varrer em tua porta. Ele não inventou a vassoura.

A verdade não está absolutamente na questão. Menos ainda na resposta.


Ela está na provocação de uma e no abalo da outra.

Que meio tínhamos nós, para paliar a defecção do dia, senão criar, para nosso uso,
nossa própria luz?
Não vemos, desde então, senão por nós.

Óleo lustroso! No rente das trevas, ó pó de diamantes, sinais alvissareiros de


resplandecentes vitórias.
No meio, enorme brilhante talhado em círculo, a lua da qual não distinguimos
mais as facetas.
Falsas riquezas. Toda a glória é para o sol.
O fogo purifica. A luz unifica.
Virgindade do universo.

O rumor produzido pelo movimento das coisas verdadeiras na incaptável Verdade


e que chega até nossas orelhas, não é nem de triunfo nem de derrota.
Ele é tormento do barulho confuso, ininteligível, causado por seus deslocamentos.

Não é o comentário que comenta, mas o texto que o inspirou.


O comentário é mudo.

Moldar a morte, assim como moldamos uma palavra.

A definição é, do finito, a parte definida de sua infinitude.


O fracasso do definido não é o advento do indefinido mas justamente, do finito, a
encarniçada tentativa – ó louca tentação – de escapar à nomeação.

Perecemos com o nome que nos faz perecer.

... Poderíamos, então, nessa perspectiva, nos arriscar a daí concluir que, estando o
definido a sondar, no seio de um indefinido invasor, Deus poderia ser reconhecimento e
denegação de uma realidade fugidia, negativa, que se afirmaria enquanto objetiva
realidade de Sua suprema negatividade.

Deixa, pouco a pouco, o longínquo – o alhures – subverter o próximo; depois,


deixa, ao próximo, o cuidado de lhe fazer o reproche, antes de se fundir nele.
Lemos, escrevemos nas margens dessa legítima desaprovação.

Trocar o livro de uma vida pela vida de um livro.


Não ter mais que uma vida.

Deus é, para além da ideia, a ideia mesma desse além.

O negro, talvez, seja apenas uma infinita brancura sobre uma parte da qual a
sombra se alongou, depois adormeceu.

Uma definição aceitável passa pelo desejo – a alegria, o constrangimento, a


felicidade – ou pela dor, em seguida pelo saber. Ela é, de algum modo, apenas definição
de nossa relação com o universo e com outrem.
Declarar: «Branca é a folha», é repetir o que cada um sabe. Celebrar, pelo
contrário, «a eloquente ou silenciosa brancura da página», é fazer sobressair, pelo viés de
uma definição mais avançada, a particularidade da brancura em questão; definição que
leva em conta esse indefinível ao qual ela pertence e pelo que, ela mesma, se define;
toma, pois, à sua conta o que resta a definir no seio de toda definição.
Essa abordagem subjetiva é a mais objetiva.
Estamos face ao mundo, na completa dependência de uma palavra exclusiva; de
outro modo, desapareceríamos.
Ó precipício, na noite estrangeira das palavras de outrem.
Definir sendo, praticamente, apenas explorar, após ter suplantado, uma vez, ao
menos, os limites, qual definição dar de Deus, do livro, do judaísmo? – Talvez aquela de
um despertar e de um retorno às fontes da história; a definição da irrealidade de um
passado escrito que as brumas protegem e que aqueles dentre nós, obstinados a reescrevê-
lo, recobrem, assim como recuperamos a posse de um bem roubado, através de sua
imediata realidade.

A palavra não atinge Deus mas a palavra que o consagra.


Judaísmo e escritura

Ouvir Deus em Sua escritura, tal me parece ser a


lição do judaísmo.

Olhar para trás, para o judeu, é ver o futuro antes de


vivê-lo.

Alinhar palavras para delas fazer frases, não é lhes


mostrar o caminho que as levará direto à meta?
Mas, a meta não existe.
E qual sutil compreensão é necessária ao escritor
para convencer, chamando-os de novo à ordem, os
retardatários, os sonhadores e os recalcitrantes.
A escritura, talvez, seja apenas matéria de
persuasão.

– De onde vem esse poder de convicção que exerce,


sobre as palavras, o escritor?
– Das palavras mesmas, provavelmente, mas
também do antiquíssimo conhecimento que o escritor de
raça tem das palavras.
– E esse poder de convicção que exercem, sobre o
escritor, as palavras?
– Do escritor, provavelmente; mas, também do
conhecimento, ainda mais antigo, que as palavras têm do
homem.

A CHAVE

Lado de dentro: duas (vezes) dentro.

Ler, assim como pensamos, sofremos, falamos, do


lado de dentro.

O neutro é a abertura.
E, no entanto, abrir é um empenho. Abrimos a
passagem mas recusamos a direção. Queremo-nos
atentos, receptivos.
O que vem é o que devia vir. Não vamos a ele.
Vamos, cegos, vamos...

Insinuar-nos no silêncio do livro, assim como nos


deslizamos, solitários, na morte.
Essa solidão é bem a nossa.

Aonde vai o judeu, o gueto o segue.


Nossas correntes estão em nós mesmos. Elas são
escritas.
Tu esperas, manifestamente, de mim que eu introduza a chave na fechadura. Esse
gesto cumprido, que eu a vire, uma ou duas vezes, no bom sentido; depois, que eu
empurre, diante de mim, a porta, agora sem resistência; limiar conduzindo a outros
limiares que tu franquearás, depois de mim; graduais etapas do saber que põem
cotidianamente à prova nossos conhecimentos adquiridos.

Nada se esquece que, previamente, não devia ser esquecido.

O livro é, para a morte, o inestimável suporte.

A impossibilidade de dizer, seria apenas uma impossibilidade de nascer?


Não há palavras para relatar a morte de Deus.
Há somente a morte.

O estranhamento de Deus está em Seu nascimento e em Sua morte; Seu


nascimento sendo o espanto de Seu estranhamento e Sua morte, a confirmação deste.
A morte de uma palavra é ainda um momento vivido do livro.

De todas as chaves dispostas sob meus olhos, qual empregarei?

Optei por aquela que, tendo transposto o maior número de portas, se tinha, de
tanto abri-las, tornado, ela mesma, abertura: como se a abertura fosse, ela também, uma
chave; como se, enfim, a abertura, em um dado momento, assegurasse a si só a passagem,
abrindo-se a si mesma.

O que está por abrir, uma vez aberto, abre.


Nessa abertura, nessa série de aberturas, eu me inscrevo.

O judaísmo e a escritura me parecem participar de uma mesma abertura: abertura


a uma palavra que somos chamados a viver em sua totalidade.
Palavra de uma palavra de horizonte à qual somos arrimados desde o primeiro
livro: esse livro fora do tempo que o tempo, entretanto, sem alterá-lo, perpetua,
perpetuando-se a si mesmo, nele.

O que é lido não é outra coisa senão o que se escreve todos os dias, por nós, nas
faltas do livro: faltas que não são suas margens, mas rastros de palavras sepultadas na
palavra; signo sobre signo, pois, que o olhar, deslumbrado pelo que esses signos
escondem, branqueia por excesso de luz; branqueia como o tempo, o cabelo, até a
transparência.

Assim o judeu se debruça sobre seu livro, sabendo de antemão que esse livro
permanece sempre por arrematar em seus vocábulos e seus silêncios.
Ler, nesse caso, seria, chegado ao cabo de sua semelhança, quebrar, na palavra, as
barreiras de nossas pertenças a fim de torná-la intacta à sua inicial e límpida pureza.

Deus, como prova tangível do apagamento voluntário de Seu Nome, teria Ele
legado, ao povo hebreu, um livro branco?
Mas, como ler essas palavras de brancura senão com o concurso de nossas
palavras? Mas, como ouvir o silêncio de suas páginas senão através de nosso silêncio?
A escuta é leitura da audição.

A legibilidade tem seus limites.


Não podemos confiar senão em nossos olhos, senão em nossa inteligência para
tentar captar tudo o que está contido no escrito; não podemos abordar o infinito de uma
palavra a ler senão através dos insuportáveis limites de uma palavra lida.
De sorte que é sempre a uma impossível palavra que nós nos chocamos e à qual
sacrificamos a nossa.

Uma palavra cabe em alguns signos, ocupa o espaço desses signos. No interior,
ela tem o porte do universo.

Abraçar o universo de uma palavra é, de uma parte, apreendê-la no constante


alargamento ao qual a constrangem os vocábulos que a habitam e, de outra, apreciar, em
função das novas dimensões dessa palavra, os progressos da leitura que temos feito dela;
pois ler, talvez, seja apenas substituir um vocábulo por todos aqueles que o
decriptaram.

Essa leitura exemplar, o judeu a pratica há milênios.


Debruçado sobre um texto que ele precisa interrogar sem repouso porque nele
reside a verdade, sua interrogação tem necessidade de sua vida inteira para se
desenvolver não somente por causa de tudo o que ela pode ainda lhe ensinar mas por
causa daquilo mesmo que, uma vez aprendido, o ajuda a melhor formular sua próxima
questão.
A palavra sobrevive às palavras assumindo o vazio, que, ao desaparecerem, estas
deixaram nela.

Ele deve sua amplidão ao fracasso da tentativa delas de circunscrevê-lo.


O vazio se assemelha ao vazio? Eles se diferenciam por seu conteúdo ao qual eles
se adaptam indiferentemente.

A totalidade poderia colmatar o vazio?

O que designamos pelo ‘Tudo’ é apenas uma parte da invisível totalidade –


Incaptável –; uma de suas partes visíveis: a letra que o vazio sustém, assim como ele
porta o mundo.
O vazio é, assim, reino do Pensamento; livre extensão da plenitude.

Nessa perspectiva, a palavra Deus seria a palavra mais vazia do vocabulário?


Esvaziada tão completamente que o universo do homem e o infinito de sua alma aí
podem encontrar, a todo momento, seu lugar?

Fico pensando, por exemplo, nas transformações que o canto da sinagoga faz a
palavra sofrer. O cantor invoca Deus e, através das modulações que ele tira de cada uma
das letras do Nome divino, passando do soluço à alegria, da revolta ao reconhecimento,
ouvimos, no recolhimento, nossas palavras caladas nessa palavra que o seu silêncio
afeiçoa e que a salmodia nos restitui.

Canto das vogais ressuscitadas, traindo o avesso selado da palavra e palavra


captada em seu além pelo viés desse canto interior: sonoridade de um vivido, de uma
aliança, de um infinito no instante que os evoca.

Talvez seja a esse canto que caiba exprimir o indizível: prolongar o indizível do
dito em seu apagamento; pois não apagamos jamais nada. Somos apagados, à medida que
apagamos, por esse eterno apagamento, tão ativo quanto o instante que nos consome
empenhando-nos a vivê-lo.
O sentido de uma palavra, talvez, seja apenas abertura ao sentido.
A palavra ‘Deus’ não tem um sentido, nem vários. Ela é o sentido: a aventura do
sentido e seu desmoronamento.

Referindo-me a tudo isso, eu, uma vez, adiantei que o judaísmo e a escritura são
apenas uma mesma espera, uma mesma esperança, uma mesma usura.

O judeu, no livro, é, ele mesmo, livro. O livro, no judeu, é, ele mesmo, palavras
judias; pois o livro, mais que uma confirmação, é, para este, a revelação de seu judaísmo.

Fazer o livro, para o escritor, é aprender a ler o livro que está no livro: livro de sua
ambição, de sua obsessão.

Pelo quê responde o judeu? Em primeiro lugar, por sua fidelidade ao livro; pois
ela é fidelidade a si mesma.
Nesse perpétuo frente-a-frente com o escrito, ele se reconhece: voz na voz, canto
no canto, palavra na palavra, em nome de uma verdade da qual ele é o frágil e, no
entanto, tão robusto defensor: a um só tempo, carvalho e caniço.

Sua identidade – como o escritor, a sua – o judeu a espera do livro. Além disso, é
menos ao acaso de seu nascimento que ele deve o ser judeu que ao porvir que ele se
esforça em modelar até nos menores detalhes. Aí está seu gênio.

O judaísmo é uma fé que não repousa unicamente sobre a fé, mas na prova que o
faz sofrer indefinidamente o texto de sua fé, sobre cada palavra desse texto que ele
assume, pondo-a, por sua vez, à prova.
Interminável questionamento do qual a morte é o termo.

Talvez, seja por isso que o sétimo dia da semana, considerado como dia de
repouso, poderia ser, igualmente, um dia retirado do livro; retirado do livro mas,
provavelmente, ainda no livro como espaço imaculado, como entrelinha. Nesse dia, o
judeu não está nas palavras do livro mas, a exemplo do andarilho que, em tempos de
grande sol, se refugia sob uma árvore, à sombra destas.

O escritor se aplica a circundar o livro que, já, sem que ele o saiba, o havia
amestrado. Suas páginas despertam nele uma angústia à qual ele não escapará jamais.
Ser o que escrevemos. Escrevemos o que somos. Tal é a cartada.

A questão que obseda o judeu é esta: «O que me autoriza a me considerar judeu?


Em que o que eu digo e faço são palavras e atos judeus?»
Assim se forma nele e se desenvolve uma dupla interrogação: aquela que faz, sem
dúvida, sua certeza e aquela que à sua certeza faz a dúvida.
E se o judaísmo fosse apenas o devir desse dúvida cheia de certeza?

Mas, trata-se verdadeiramente de dúvida? – Antes, da necessidade de pesar, cada


vezes, o pró e o contra.
A certeza não podendo nascer senão dessa confrontação.
Meio provado que conduz o judeu a um aprofundamento de sua certeza; esta se
confundindo com esse aprofundamento.

A questão ao judaísmo é questão ao livro; pois, como formular uma questão senão
pela linguagem? As palavras de nossas interrogações afrontam as palavras das respostas
que só a seus leitores o livro destina.
Todo diálogo é diálogo de palavras. Ele dá existência ao universo e ao homem.

Saído do livro, o questionamento, para o judeu assim como para o escritor, sendo
primordial, ele é, por conseguinte, de uma atualidade abrasadora; de cinco mil anos, para
um; ancorada no futuro, para ambos;
pois o que é a modernidade sem a abertura? – Ela não é mesmo senão isso.

A abertura, para o judeu, foi primeiro a que o deserto oferecia à Palavra de seu
Deus. Abertura indispensável a semelhante Palavra.
Sem o deserto, não teria, talvez, havido, por falta de espaço suficiente a seu
desabrochar, esse judaísmo que, passando pela Palavra de Deus, passa necessariamente
pelo livro;
pois, mais que um rincão desolado, o deserto é terra de silêncio e de escuta; terra
propícia ao silêncio e à infinita escuta, onde o silêncio se embebe de todos os seus ecos e
a escuta, de todas as sonoridades recolhidas no coração desse silêncio; assim como a
morte se inebria das falas da morte e da vida, da leveza aérea da vida, sílex e vento, areia
e céu e nada, nada, nada entre.
Nada além do jorro de uma Palavra autoritária que um sábio recolheu.

Mas, no deserto de sua ausência, na cumeada da nudez de um mundo pulverizado,


Deus verdadeiramente falou? E, se essa Palavra, para se fazer ouvir, se tivesse querido
mais silenciosa que o silêncio a fim de nos ajudar a aperfeiçoar nossa audição?
A escuta do deserto é aquela da vida e da morte. Escutar a morte é não mais
perder um momento de sua vida. Perceber as últimas palavras da vida – cada palavra de
vida é a última – é ter, já, entrado na morte.

A seu povo, Deus manda escutar: «Escuta, Israel...»; mas, escuta o quê? Escuta as
palavras de teu Deus; mas, Deus é ausente e Suas palavras sem voz; pela distância,
cortadas de seus sons. Escuta o silêncio;
pois é nesse silêncio que Deus fala à sua criatura; pois é com uma palavra nutrida
desse silêncio que o judeu responde a seu Deus.
E se fosse para pô-la na boca de um povo receptivo que Deus se tivesse desfeito
de Sua palavra a fim de partilhar, em seguida, sua escuta?
A palavra imperativa está sempre a nascer. Ela dá livre curso às nossas atentas
palavras.
A espera é o levedo da questão, pois ela é, em si, atenção ao desconhecido,
abertura à esperança.
Mas, se, filha do deserto, a questão ao desconhecido fosse, ela mesma, apenas
deserto da questão? Ela não seria mais que solidão de uma questão à questão da solidão:
infinita solidão da questão de Deus à trágica solidão da questão do homem.

O face-a-face com o texto substituiu o face-a-face com Deus. Escuta o que se


escreve.
Duas solidões se reencontram em presença uma da outra: a de antes e a de depois
da palavra.

É por isso que a relação com o judaísmo é estritamente individual antes de se


saber – de se querer – coletiva.

Entretanto, privilegiar a questão não é, já, instaurar o diálogo; não é, sem deixá-la
totalmente, escapar em parte à solidão?
Nessa parte libertada, residem nossos laços.

Se o judeu, diante de seu judaísmo, se apresenta só, cada judeu poderia definir
esse judaísmo pela originalidade de suas abordagens, quer dizer, através da leitura que ele
fez de seu livro.
Se o livro – porque livro aberto – autoriza suas diversas abordagens, ele as
justifica no mesmo ato. Essa justificação acarretando inevitavelmente a própria colocação
em questão do leitor.

O ser judeu é apenas o judeu do ser.


Mas, se, lendo-se em seu livro, ele lesse apenas seu desejo de ser lido por ele,
como se ele fosse, antes da letra, o devir imprevisível, ainda que inelutável, desta?

Ser não atesta senão ter sido. O futuro se apossa do que tem vocação de
prolongamento para inscrevê-lo na duração; transformando-o, insensivelmente, dia a dia.
De sorte que durar não é jamais senão viver, no espanto, essas cotidianas metamorfoses.
Assim às suas diferentes imagens de si mesmo, o judaísmo opõe sua ausência de
imagem.

Ser judeu, ser escritor seria, então, apenas a possibilidade outorgada a cada um de
chegar a essas condições. O além das palavras é ainda o aquém do ser. Amanhã é o cerne
de seu advento.
Não dizemos, aliás, de uma coisa negligenciável, desinteressante, que ela é sem
porvir?

Mas, a qual rosto familiar nos reportar caso se trate de descrever nossos próprios
traços?
E que é um rosto que não deveria sua particularidade senão a todos os rostos que
se reconhecem nele?

E se o rosto fosse, a si só, o livro?


Juventude de Deus. Velhice do homem.
Assim o judaísmo interroga o judaísmo, apostando tanto sobre essa interrogação
quanto sobre a perenidade de seu fundamento.

A lei está no livro ou então é o livro que está na lei?


Todo livro tem sua própria lei ou toda lei, seu livro?
Em outros termos ler, escrever é, através do livro, sofrer o jugo de sua lei ou, ao
contrário, pouco a pouco forjá-la a fim de lhe submeter o livro?
A lei é invenção do livro; invenção de um livro que teria força de lei.

E se a lei fosse desejo do livro e o livro, desejo da lei à qual ele deve sua
articulação?
E se a origem fosse apenas o desejo de origem do Livro? Deus seria essa origem?
Bem mais que seus signos, é o silêncio do livro que nós interrogamos: seus signos
sendo apenas rastros enumerados desse silêncio.

Rastros do desejo do livro pelo livro, como impressões de passos na neve ou na


areia, que a areia ou a neve recobrirão.
As palavras seriam, então, apenas os gritos reiterados do desejo, gritos de amor ou
de desalento, no instante de seu atolamento.

Se todos os livros não têm a mesma origem, eles têm, em comum, o mesmo
silêncio.
«Se admitimos – escrevi em uma de minhas obras –que o que inquieta, agita,
recoloca febrilmente em causa é, a princípio, profano, poderíamos deduzir que, de
uma certa maneira, o sagrado, em sua persistência desdenhosa, seria, de uma
parte, o que nos fixa em nós mesmos, uma espécie de morte perpetrada da alma e,
de outra, a decepcionante culminância da linguagem, o último vocábulo petrificado.
«Além disso, é, em sua relação com o profano e através dele, que o
sagrado se dá a provar, não mais como sagrado mas como sacralização do
profano ébrio de superação; como prolongamento indefinido do minuto e não
como eternidade estranha ao instante;
«pois a morte é da conta do tempo .
«Não é, justamente, pela via da palavra impotente a se apropriar do dizer,
que a eternidade toma consciência de sua incompatibilidade com a linguagem?

«Escrever – ser escrito – seria, pois, sem que nos demos sempre conta
disso, passar do visível – a imagem, a figura, a representação cuja duração é a
de uma aproximação – à não-visibilidade, à não- representação contra as quais
luta, estoico, o objeto; do audível, cuja duração é a de uma escuta, ao silêncio
onde, docilmente, vêm se afogar nossas palavras; do pensamento soberano à
soberania do impensado , remorso e suprem o tormento do verbo.
«O sagrado permanece o desapercebido, o dissimulado, o protegido, o
inapagável; é por isso que escrever é também a tentativa suicida de assumir o
vocábulo até seu último apagamento, lá onde ele cessa de ser vocábulo para não ser
mais que rastro realçado – ferida – de uma fatal e comum ruptura: a de Deus
com o homem e a do homem com a Criação.
«Passividade divina, irredutível silêncio face à imprevisível e perigosa
aventura da palavra entregue a si mesma .
«Anterior ao profano, ele é, de todo limite, a desmedida arbitrária que o repele
sem cessar.
«Sagrado. Segredo.
O sagrado se confundiria com o eterno segredo da vida e da morte?
«Há um pós-dia, uma pós-noite aos quais dia e noite são invariavelmente
confrontados.
«Eles são promessa de aurora e certeza de próximo crepúsculo. Vida e morte,
profano e sagrado, tais céu e terra convencidos de formar um mesmo universo, aí se
cotejam e se entremeiam.
«O interdito original confere à não-representação seu caráter sagrado. A língua de
Deus é língua de ausência. O infinito não tolera nenhuma barragem, nenhum muro.
«Nós escrevemos contra esse interdito; mas, não é infelizmente para nos chocar
violentamente contra ele? O dizer não é jamais senão desafio ao indizível e o
pensamento senão denúncia do impensado.»

Deus fazendo de Seu povo, através da Lei, um povo de pastores, Ele fizera dele,
através do livro, um povo de leitores.
Dando, à Sua criatura, Seu livro a ler, Ele exigira desta, em retorno, que ela lhe
ensinasse a relê-lo com olhos humanos.
Assim estaríamos nós, talvez, habilitados a sustentar que se o judeu é judeu pela
escolha de Deus, Deus é judeu por criaturas interpostas.

O judeu vive na intimidade de Deus e Deus na intimidade do judeu no seio das


mesmas palavras. Uma página divina. Uma página humana, e ambas têm, por autor,
Deus, e ambas têm, por autor, o homem.

Donde, para o judeu, a familiaridade com seu Deus que não é jamais ditada pelo
desrespeito mas se deve à singularidade, à especificidade de suas relações; à pontualidade
de suas trocas.

Deus tinha necessidade do homem para que Sua Palavra fosse entendida além de
seu imediato entendimento, até onde o homem está só face a si mesmo e ao homem.

Todo leitor é um escritor em potência. Ele faz, do livro, seu livro. Ele o reescreve
para si mesmo. E que importa se esse livro não vê jamais a luz?! Sobre a transparência de
suas palavras se alinham as palavras impressas do livro sobre o qual ele se debruçou. De
sorte que o livro enterrado no livro é, ora, esse livro sonhado, inigualável, inimitável, ao
qual já fiz alusão e, ora, nesse livro único, o livro que, através de sua articulação e do
essencial de seu dizer, tenta em vão se lhe assemelhar; nosso livro perecível.

É por isso que, meditando, de minha parte, sobre minha condição judia e minha
condição de escritor, eu pude notar: «Acreditei, primeiro, que eu era um escritor; depois,
dei-me conta de que eu era judeu; depois, não mais distingui em mim o escritor do judeu,
pois um e outro são apenas o tormento de uma antiga palavra.»

Reportando-se a essas frases, alguns puderam deduzir delas que eu havia feito, do
judeu, um escritor e, de todo escritor, um judeu; ao passo que eu me havia simplesmente
autorizado a sublinhar a relação comum deles com o texto.
A ninguém, mais que ao judeu, convém essa apropriação: «Ele fala como um
livro.» E não por jogo ou por pedantismo, o que justificaria a ironia de uma tal
observação; mas, porque o judeu não deixa jamais o livro, mesmo quando crê tê-lo
abandonado.

Privado de liberdade. Privado de território, era normal que o judeu se refugiasse


no livro tornado, tão logo, o lugar permanente onde sua liberdade podia se exercer.

Assim como para o escritor com o escritor, a relação do judeu com o judeu se
concretiza por uma troca de livro.

Entre si e si, há outrem: não o humano obstáculo mas o mediador ideal.

E se outrem fosse, já, o livro? – Outrem, como livro; livro, como outrem?

Isso não implicaria mais que nós sejamos os avalistas de uma mesma palavra mas
as testemunhas da ressonância que esta tem tido em nós; do vivido, de algum modo,
dessa palavra por trás da qual se desliza nossa própria história.

Vital é o diálogo. O livro dos vivos não pode ser senão o livro do diálogo.

O diálogo é só a poder, por um instante, enganar a morte.


Reivindicado por duas vozes, preso entre dois fogos, ele escapa pela metade ao
nada; pois, ainda que vítimas das mesmas chamas, não é jamais juntas que essas vozes se
extinguem; um tempo de sobrevida sendo sempre concedido à outra.

Assim, é de uma palavra arrancada à palavra que morremos e do silêncio ao qual


ela nos restitui, que vivemos.

Em um diálogo, os dois parceiros estão em igualdade de posição. Têm mesmo


posto. Têm, um pelo outro, mesma consideração.
Dignidade do homem – como se Deus tivesse querido que Sua criatura estivesse à
altura de Sua mensagem – e também necessidade, para esta, de intervir e julgar.
O que, no coração do judaísmo, me fascina nessa relação Deus/homem é que o
homem impõe sua linguagem a Deus. Não é mais o que Deus diz que prima mas o que,
no silêncio da Palavra divina, o homem diz.

Ele diz indefinidamente essa Palavra com as palavras que a receberam. Ele se
engenha a perdê-la, para melhor reencontrá-la ao cabo de sua perda. Virtude do
comentário judeu que não é jamais vulgar comentário do texto mas aprofundamento de
uma palavra interior confrontada ao indecifrável do texto. Aí, Deus se cala, deixa falar
Sua criatura e toma a medida de sua escuta.

Simplicidade e dificuldade de ser judeu; difícil simplicidade – diria eu –; mas,


donde vem que o judeu, interpelado sobre sua identidade, não hesita um segundo em
responder: judeu? Ele esquece tão rápido sua dificuldade em sê-lo unanimemente? Donde
vem que o não-crente, tanto quanto o crente, podem, para se prevalecer dele, se reclamar
um mesmo judaísmo? É porque o passado e o porvir deles são símiles? Haveria um
destino judeu?

Há o destino de um livro; o passado e o porvir de um livro em que se dissimula


uma origem tão antiga que ela não é mais ferida, quase o arranhão deixado por um
momento de audácia do silêncio ao silêncio que, doravante, a envolve?
Origem da palavra judia.

«Entra com tuas palavras, em cada uma de minhas palavras parece nos
recomendar o livro. Tu tens aí teu lugar; um lugar onde posso te acolher com teu passado
e teu porvir; pois tenho a idade do tempo e a ausência de idade da eternidade; pois sou a
eternidade no tempo e o tempo eterno.»

E se essa dificuldade em ser plenamente judeu fosse apenas a dificuldade de todo


homem em ser integralmente homem?

A grandeza do homem está na questão; nas questões que ele é capaz de se pôr,
pondo-as a seus semelhantes. Questões ao universo também.

Há, no texto, um impercebido que nos assombra; uma palavra-chave que nos
obseda.
A morte é um turbilhão de palavras às quais a vida se exercita a dar um sentido,
esquecendo que elas a engolirão.
A história dos judeus é a história do mar tornado areia a fim de que, dessa areia,
da imensidão movediça dessa areia, uma palavra surja e se faça livro.
A certeza, talvez, seja apenas motivação de toda questão. Ela estaria, nesse caso,
na formulação da última questão.

Ocorre-me ainda de me perguntar se saí verdadeiramente da grisalha do primeiro


livro; se despertei.

O sono não é, sempre, perda de consciência. Deus adormeceu o mundo para criá-
lo e se adormece na Criação a fim de ser. Si mesmo, por ela, criado.

Fechamos os olhos para nos fundir no universo a fim de sermos despertados por
ele.

Ninguém pode apostar senão sobre o despertar. O porvir do homem está nos
olhos. Ele, talvez, seja apenas a secreta espera de um olhar infinito.

E se, até a extrema legibilidade, escrever fosse, na interdependência das palavras,


desposar esse olhar?

Não exijas do judeu mais do que ele pode consentir. Esse mais é sua ferida.
E, sobretudo, não te arrisques a condená-lo em nome de não sei qual certeza; pois
esta não saberia, no melhor dos casos, ser, para ele, senão um novo motivo de
interrogação.

– Com quais experiências tu vieste nos entreter?


– Com aquelas pelas quais posso responder e com aquelas pelas quais ninguém o
poderia.

O homem que trata seu cão, acaba sendo tratado por ele.
Como é livre o nômade! O deserto não lhe pede nada.

Do exílio, um dia, o exilado se desviou. Ele se torna o exilado desse exílio, como
se, ó paradoxo, o exílio fosse o lugar de asilo que ele precisasse, periodicamente, deixar.
Assim, no começo, teria havido o exílio, origem e razão de nossa errância.
Senti-me o exilado do exilado, no dia quando me reconheci judeu.
Mas, a origem é, ela mesma, transmitida.
Ela é o passo que motiva o passo.

... haveria um desabrochar no apagamento: aquele


de Deus; assim como há um cumprimento do livro,
através da leitura que o apaga.

... um lugar sem lugar que terá sido apenas um


itinerário.
Sempre, entre dois exílios, se move o exilado.

OS DOIS LIMITES

Pensei o limite e encontrei o ilimitado.


Pensei o ilimitado e encontrei o limite.

O não-peso teria uma imagem?


Ver é dotar o objeto de uma leveza celeste; tirar-lhe
todo peso.
Ao não-peso, o olho fornece uma imagem: a do
universo visto.

Quando o Templo foi destruído, as portas do céu se


fecharam, salvo uma, a das lágrimas.
O sofrimento é verdade.
Toda verdade é sofrimento.

Ele soluça. Ele, momentaneamente, se despojou de


suas mentiras.
Ah como a proximidade da verdade nos deixa
desamparados!

E se o sofrimento fosse, para nós, o meio de nos


aproximar e de nos distanciar de Deus, como se Ele se
mascarasse na aproximação e se desmascarasse no
distanciamento?
Nossa relação com a verdade seria perturbada por
essas idas e esses retornos episódicos: renegação e
reencontros.

O branco é subversão de brancura. Ele faz derribar a


ausência de cor na cor ausente.
Ó vertigem!

Escrevo a partir de dois limites.


Além, há o vazio.
Aquém, o horror de Auschwitz.
Limite-real. Limite-reflexo.
Lede apenas a inaptidão em
fundar um equilíbrio.
Lede apenas a dilacerante e desajeitada
determinação de sobreviver.
Em um mesmo grito, irmãs despóticas,
vida e morte se extinguem, enlaçadas.
Opaca é a eternidade.

Se eu devesse, essa noite, gratificar, com uma imagem, meu pensamento, eu


escolheria a de uma linha luminosa, limite; tão fina que ela desafia os olhos.

Não obrar na meta de aproximar os contrários mas constrangê-los a se aferir, a se


julgar, não com vistas a uma fusão ou a uma problemática reconciliação, mas a fim de
firmá-los, endurecê-los em sua vontade de durar.

Eu tinha, uma vez, imaginado – ocorre-me de crê-lo ainda – que a eternidade era a
via liberada pelo sabre que, irmãs siamesas, havia separado a vida da morte, o dia da
noite.
Via ignorada por nossas vias mas dobrando-as até onde, tendo cessado de se
estender, elas não são mais que escancaro de olvido.

Uma linha é o porvir do signo.

Não cultives o deserto. Ele te cultiva.


A areia pertence apenas à areia.

O PARADOXO

... escrever, em última instância, seria apenas


sacrificar – sacrifício pelo fogo – todas as imagens de
que a vida está saturada, a uma só: aquela inconcebível
da morte.

A imagem de uma palavra, é apenas a palavra de uma imagem?


O escrito de uma imagem, é apenas a imagem do escrito?
A imagem não está mais onde ela se produz. Desviando-se da variedade de seus
signos, de mil figuras recusadas, ela compõe uma figura fugitiva. Seu excesso.
O escrito é porvir do escrito. Ele escreve o assujeitamento que o escreve.
Assim, a imagem de um Tudo ou o Tudo de uma imagem não podem ser
percebidos, captados senão através da abolição desse impensável Tudo que o fragmento
visualiza.
A imagem de um livro é seu título. Ela não é jamais imagem mas túmulo.
O impensável, talvez, seja apenas um impensado ao qual acrescentamos seu lote
de areia.
Ó deserto. Pródigo deserto.

O traço tem essa virtude admirável de jamais trair o que ele anula.
A IMAGEM O ESCRITO

A imagem da palavra está na palavra. A letra não


tem nenhuma imagem.
Ela é a imagem do desaparecimento da palavra; o
comprometedor rastro.

Como se servir de um branco? Como diferenciá-lo


de um outro branco?
O branco mesmo nos dá o meio para tal, revelando-
nos o trajeto: trajeto do branco visível ao invisível
branco.
Assim, uma palavra se diz no lugar de uma palavra
que não pode ainda se dizer, sendo, ó dor, a palavra
provisória – prematura – mas, no entanto, precisa do que
não se dirá jamais.

A imagem é lida no desfraldar de sua escritura. Teremos buscado lê-la em seu


mistério.

O que perco, o que não posso fazer senão perder, tu o recuperarás para mim?
Ah nos associar, nos unir para essa humilde tarefa. Comum é nossa
responsabilidade.
Não escrevemos mais com a poeira. A poeira nos escreve.
Onde não há nada, há Deus: amplidão do Nada.

A LINHA DE HORIZONTE

A morte cultiva a visibilidade.

Não há imagem silenciosa.


Há o silêncio onde nós o encerramos.

Atraídos por todas, escrutamos apenas uma imagem


por vez.
Com todas as palavras da língua, acompanhamos,
na morte, apenas uma palavra só.

A imagem do frio é nossa imagem no frio: anônimo


esboço de um corpo arrepiante.

A imagem não reflete a realidade, mas, de toda


realidade, descreve o fim espetacular.

Ver é morrer; olhar morrer.

Ao vento, à areia, a volúpia de vencer o olhar, de


fazer chorar.
Amarelada pelo tempo, a imagem não nos entrega
mais que sua nostalgia: imagem de uma imagem
perdida.

O vazio não é invisível. Uma imagem poderia lhe ter convindo; mesmo que fosse
aquela de sua invisibilidade.
Ele é a impertinência da não-representação do Nada.

Eles eram dez em torno de uma mesa.


A discussão tinha subido um tom.
Entre os convivas, um só se calava.
Distração? Tédio? Ao contrário. Ele escutava, com a mais viva atenção, através
do fluxo de palavras que o ensurdecia, o que, nessas palavras, se obstinava a guardar o
silêncio.
O mais velho dentre eles lhe diz, então: «Tu nos tens, por tua atitude, oferecido,
de Deus, a imagem verdadeira. Tu tens buscado, como Ele, ouvir o que não chegaremos
jamais a exprimir.»

De livro em livro, pelo viés de sua escritura, tenho interrogado apenas o


judaísmo?
Creio ter percebido que a escritura judia saberia ser, em sua relação com a
eternidade, apenas escritura saída do feroz combate do livro oposto à sua imagem: a
palavra da imagem face à imagem da palavra. Combate ao qual essa escritura credita o
inconstatável termo.
Brancas são a primeira e a última páginas do livro.

Após ter sido o da ausência de Deus – Sua toda presença – o nome


impronunciável é, igualmente, o do livro e, pela via do vocábulo, o do escritor e do
judeu?
Translúcidas são as palavras ‘escritor’ e ‘judeu’. Elas são apenas limpidez, apenas
pura transparência da palavra na qual, em vão, elas se debatem.

O incaptável – o invisível – perturbam, por vezes, para além do tolerável.

O desaparecimento de Deus, confirma a supremacia da morte sobre a vida.


Deus ausente, não há mais eternidade.
Toda claridade é acréscimo de obscuridade.
O pincel é sem recursos.

Não mais dar a ver, mas ver o que foi dado.


Renunciar a pintar. Pintar essa renúncia.

Lá longe, lá longe, nos confins dos oceanos recobertos de escuma, flutua, à


deriva, nosso rosto irreconhecível.

... mas, o judaísmo é vida; ele é fé inabalável na vida e no homem.

IMAGEM DO EXÍLIO

E se o muro fosse uma folha branca? Muro de longarina.


Descemos os passos de uma escadaria que nós, antes, não sem algum esforço,
subimos.
E se escrever fosse essa descida ainda bem impregnada, para nós, da recordação
da lenta subida que a precedeu?
No interior do edifício, não podemos ultrapassar o último andar.
Uma página de escritura tem seus patamares. Suas margens estão no exterior. Não
saberíamos encher de palavras o vazio.
Minha morada está destruída; meu livro, em cinzas.
Nessas linhas, ponho palavras de exílio.

O muro é o mais duro silêncio

Negar o Nada.
O LIVRO LIDO; AQUI, INICIA-SE
A LEITURA DO LIVRO

Negar o Nada. Sobre esta frase, eu quis edificar o livro; pois o que é o livro,
senão negar o Nada?
O Nada, obsessão de Deus; o Nada, terror do universo que traem suas miríades de
olhos metamorfoseados em estrelas; o Nada, adversário do homem; o Nada, enfim, rival
do livro.
Frase, em aparência otimista que nos reenvia ao Tudo; a Deus, Totalidade das
Totalidades; ao universo, ao livro; que nos incita a abordá-los separadamente, em sua
Totalidade inacessível.
Mas, o Tudo não era, já, o Nada?
Viver sobre o Nada, da vida partilhada do Tudo.
Morrer ao pé do Tudo, da breve sobrevida do Nada.
Teremos seguido o caminho clareado, para nós, pela palavra judia. Duas frases
nos terão, na errância, acompanhado: Para a respiração: «Deus criou o homem à Sua
imagem»; para a expiração: «... pois pó, tu foste, e pó, voltarás a ser.»

Como a onda, o oceano, invencível, em sua


tenacidade, é o passado, que, saltitando, para sempre
vem agitar o futuro.

O judeu será salvo pelo livro que ele mesmo


contribuiu a preservar.
Todo livro, talvez, seja o relato regenerado desse
salvamento.

E se o rosto de Deus fosse abuso de rostos – rosto


abusivo que suplantasse o nosso?
E se não fosse Deus quem tivesse modelado o
homem à Sua semelhança mas o homem que tivesse
empreendido, um dia, imaginar Deus à sua imagem?
Orgulho e humildade da criatura capaz, ela
também, de criar.
E se, em sua incompletude, a Criação divina
repousasse apenas sobre o desespero onde nos mergulha
toda criação?
E se o livro, em seus ardis e suas ousadias, fosse
apenas a demente resistência ao nada da última folha?
IV – O LIVRO DA PARTILHA (1987)
Muito cedo, encontrei-me face ao incompreensível,
ao impensável, à morte.
Desde esse instante, eu soube que nada, aqui em
baixo, era partilhável porque nada nos pertence...

Há, em nós, uma palavra mais forte que todas as


outras – mais pessoal também.
Palavra de solidão e de certeza, tão enterrada em
sua noite, que mal ela é audível para si mesma.
Palavra da recusa mas, igualmente, do empenho
absoluto, forjando seus laços de silêncio no abissal
silêncio do laço.
Essa palavra não se partilha. Ela se imola.
O tormento do livro

Entre um livro e outro, há o espaço deixado por um


livro desaparecido do qual não sabemos ao qual ele
estava atado.
Nós o chamaremos o livro do tormento, na
dependência dos dois.

Há livros favorecidos em relação a outros.


Eles devem esse privilégio ao acaso, a todas as
espécies de circunstâncias das quais eles têm
aproveitado, ao curso de sua elaboração.
Eles despertam, em torno de si, a inveja.
Mas, há livros, tal este, que não se têm beneficiado
de nenhuma vantagem particular, salvo, talvez, do
longínquo apoio de um escritor solitário que, nas horas
de desencorajamento e de silêncio, não esperando quase
mais nada de sua pluma e do mundo, continuava, sem se
confessar isso, a espreitar, em segredo, sua vinda.

«Em qual momento vós começastes a escrever?»


perguntáramos a um velho homem, sentado à sua mesa
de trabalho.
«Desde que o livro se abre ao livro», foi sua
resposta.
Se Deus é o livro, Sua perfeição só pode estar na
língua.
Introduzir a autobiografia no texto judeu, reabilitar
o Eu – o particular donde emerge o universal –, afirmar
o rosto, depois proceder ao lento apagamento dessa
afirmação.
«Um dia, conseguiremos ler os espaços brancos
entre as palavras graças aos quais podemos abordar
estas.
Deus, nesse dia, terá, definitivamente, perdido o
livro», havia ele escrito.
«E se, como ao homem, a palavra mentisse,
também, a Deus?
«Nossa noção da verdade assim seria, seriamente,
abalada», dissera ele.
A verdade de Deus está no silêncio.
Tornar-se, por sua vez, silencioso na esperança de
se fundir nela.
Mas, só podemos tomar consciência disso através
da palavra.
Infelizmente, esta, a cada vez, nos distancia da
meta.
«Nós sabemos, dissera ele, que jamais uma palavra
nos exprimirá totalmente.
E, no entanto, precisamos bem escolher uma; fazer
como se ela fosse a mais justa, a só.
«Tal é o drama do escritor.
«Enganado, traído por si mesmo.
«Sabê-la e negá-la.
«Sofrer por ela e por ela morrer.»
A ordem do livro é, geralmente, vitória sobre o
olvido.
Como ler um relato pontilhado de brancos?
Isso nos pareceria tão logo incompreensível. Fazer
apelo a todos os recordos, abandonar-se à memória.
Não negligenciar um rastro. Realçá-los todos com
minúcia.
Não há desvios – o desvio é buraco de memória.
Medo do desconhecido.
Carência. Lacuna.
Uma linha curva é apenas uma linha apavorada com
sua audácia.
Imagem securizante do círculo.
Seu nome de cristal, Judeu.
Cintilante no firmamento.
Britar o diamante, espalhar, fino resíduo, o schlamm
sobre a cinza de nossos mortos.
Tenebroso esplendor de além.
Últimas provas polidas: morasse.
Velhos caracteres reunidos. Amanhã, a vida de um
homem te será, com seu consentimento, revelada. Para
esta vida, um título por encontrar. O nada o fornecerá.
Um pássaro plaina acima de nossas cabeças.
Ó malha. Vestígios de magnificência de palavras
revoadas.
Nos céus, nada está para ler.
Enterram-se os mortos com seu livro.
O Livro

Não teremos jamais estado em atraso com nossa


vida.
Relógio de areia, o livro, a cada vez, nos terá
indicado a hora exata.
A HERANÇA, I

Há toda a noite a atravessar para chegar à manhã.


Lutar contra cada sombra, não as afrontando mas as assumindo.
Contornar destramente a dificuldade.
Driblar suas manobras.

Se, para o homem, a certeza é uma necessidade, em si, ela é apenas vaga resposta
a uma penúltima questão, a última permanecendo em suspenso.
... vaga, tal um terreno vago sobre o qual jamais se elevará um edifício qualquer,
pois ele cairia, tão logo, em ruínas.

«Minha pluma é honesta, dissera um sábio. Infelizmente, as palavras o são


menos.»

«O que é a pureza? – uma pura impostura.


«A mentira tem, por vezes, a limpidez da verdade», dissera ele.
E acrescentara: «É por causa de sua transparência que nós as confundimos, a
maior parte do tempo.»

«Quem saberia falar em nome do oceano? Quem poderia se gabar de ser o porta-
voz do infinito?
«O cascalho só se dirige ao cascalho, mas com palavras de universo.
«Teria eu pretendido escrever, movido por minhas certezas? – dissera um sábio.
«Escrevo porque não tenho nenhuma.»
«Negação de nossas incisivas questões, o deserto é questão ao Tudo e horizonte
do Nada.»

Jamais uma lâmina de faca dará cabo de uma barra de aço.

Jamais a areia renegará a areia.

A HERANÇA, II

«O chamado divino precede Deus. O chamado da


palavra precede o livro», dissera ele.

Que alívio, para o espírito, a verdade!; mas, uma


vez esta entrapercebida, que tormento!

«Não há lugar privilegiado para o livro mas haveria,


talvez, um não-lugar formado de todos os lugares
fitáveis», havia ele escrito.
A isso, foi-lhe respondido:
«Se ninguém jamais soube onde foi enterrado
Moisés, não é de modo nenhum porque não pode haver
um lugar único para o Livro? »

A verdade é sem partilha.


Ela é, na origem, já partilhada.
Resta a legitimar a partilha.

«O que tu nomeias Verdade – dissera ele – é


verdade em farrapos.
«Para cada um, o seu.
«Uma vez arrancado ao Tudo, esse miserável
farrapo de verdade não é mais que palavra de ferida.
«Ele é verdade da desgraça.»

Nós estamos pela verdade; mas, se este pela, a fim


de nos confortar em nossos pensamentos e em nossos
atos, se dirigisse menos à verdade que a nós mesmos,
detentores presumidos dessa verdade?
Valeria mais, então, dizer: Nós estamos ao lado da
verdade, assim como alguém está bem perto daquilo em
que crê, sabendo pertinentemente que toda crença não é
jamais senão reconhecimento de si, através do que dá
um sentido à vida.
Uma verdade como justificação de uma vida, em
suma.

– Como tu vês a verdade?


– Como a verdade me vê.

Partilha do universo, ó livro da perseverança e da


percebível pobreza.
Livro a descoberto – vulnerável, oferecido, tal um
rosto a descoberto.

Deus dissociou a sombra da luz.


Em seu vivo espanto, Ele viu o dia se fazer noite e a
noite, manhã.
Irresistível atraência dos extremos.
Anel.

Ler, talvez, seja perseverar em sua leitura; escrever,


ó vocábulos impostos, pobreza percebida.
Irreembolsável, em sua totalidade, é nossa dívida
para com o absoluto.

E se o pensamento fosse apenas arrependimento do


impensado; a confissão tardia de um remorso?
Tal o instante para o instante que o segue, a palavra,
no livro, só saberia ser lida pela palavra aparecida
depois dela; ler o livro, talvez, sendo apenas encetar uma
inocente leitura do porvir.

Candura do conhecimento, em seus primeiros


passos.
Preservar essa pureza.
Ó sabedoria do primeiro saber.

«Escrever, talvez, seja falar pela primeira vez»,


dissera ele.

Quem jamais escreverá a errância? – Ela se escreve


conosco.
Errante, eu sou escritura.

«Mas voltemos à nossa expressão: envelope vazio. Decididamente, ela me


atormenta.
Envelope vazio, sim, como um envelope vazio no qual nos teríamos esquecido de
deslizar a mensagem.
É isso, não é?
Porque não há jamais mensagem; ou, antes, porque a mensagem é, no fundo,
pura criação do destinatário. Essa mensagem esperada, desejada, sendo aquela que ele
teria amado se dirigir para si mesmo mas se servindo da mão de seu correspondente.
Aqui, dar e receber se confundem.
Que tinha eu a dar ou a receber? – Mais nada, tendo tudo dado, tudo recebido. O
questionamento causou o vazio. Fora necessário esse vazio para que uma outra
interrogação, virgem, livre, visse a luz.»

«Do Deserto ao Livro»


(Conversas com Marcel Cohen)

«O que tenho recebido como herança – dissera ele – é a esperança de um livro.


«Legado envenenado. Desde então, com cada uma de minhas obras, é um pouco
dessa esperança que se evanesce.»
E ele acrescentara:
«O caminho, pacientemente traçado pela escritura, é apenas a lenta agonia de um
esperar em vão alimentado?»

Do Livro divino, alguns afirmam que o povo hebreu só ouviu a primeira palavra;
outros, que ele só ouviu a primeira letra.
Moisés era só a poder revelar suas frases, depois suas páginas.
O povo hebreu leu o livro de Moisés, assim como leríamos uma obra da qual nos
fossem comunicadas apenas passagens.
Uma vez o livro inteiramente transmitido, Moisés se calou.
Nesse silêncio, o judeu reconhecera seu Deus.

A HERANÇA, III

Quem é judeu? – Aquele, talvez, que, não tendo tido


jamais a segurança de sê-lo, descubra, pouco a pouco,
sua judaicidade nessa probabilidade.

O judaísmo se conjuga no futuro.

Ler em si – e não somente para si – o livro que


decriptamos com cuidado.
Ler a rasura
sob a escritura.

«Essencial, no judaísmo, é o constante recurso à


citação.
«Ah! Quanto, em sua completude, em relação à
palavra judaidade me parece luminosa a palavra
judaicidade», dissera um sábio.
SELAGEM E SEDIÇÃO

«E tu escreverás Meu Livro falsificando-o e essa


falsificação será o tormento que te agitará ao extremo.
«Meu livro falsificado inspirará um outro e, assim
por diante, até o fim dos tempos; pois longa será tua
descendência.
«Ó filhos e netos do pecado de escrever, a mentira
será vossa respiração e a verdade, vosso silêncio.»
Assim, poderia ter falado Deus a Moisés.
E Moisés poderia ter respondido: «Por que, Senhor,
por que condenares Tuas criaturas a mentir?»
E Deus poderia ter acrescentado:
«A fim de que cada um de vossos livros seja vossa
verdade e que, face à Minha, essa verdade indigna se
desmorone e, de si mesma, caia em poeira.
«Aí está a Minha glória.»

«Faze calar, em ti, a Palavra moribunda que, há milênios, se calou para o


universo, não apoquentando mais que o santo e o profeta.
«Ó noite irritável, perpétua; noite enterrada na noite dos tempos de que tu vieste a
ser, talvez sem o saberes, a premonitória palavra», escrevera um sábio.
Gentes do Livro
do qual Moisés, após Deus,
foi a letra
pela qual Deus foi,
tendo cessado de ser.
Santos intermediários.
Homologar a ausência
divina. Escrever o texto
dessa ausência lida.

«Toda palavra humana é afronta à Palavra divina, não absolutamente porque ela
se ergue, a cada vez, contra ela mas porque força esta a negá-la», havia ele escrito.
E, mais abaixo, sobre a mesma página:
«E se esse encarniçamento de uma em querer substituir ou destruir a outra apenas
fosse, para elas, seu único meio de existir?»

Deus é nomeado no mais secreto de sua ausência.

«A impossibilidade de viver de Deus, talvez, esteja na possibilidade do homem de


morrer», dissera ele.
ADÃO, OU O NASCIMENTO
DA ANGÚSTIA

Assim, com a falta


nasceu a angústia.

Uma maçã caída por terra – enquanto, sobre o


mesmo galho, Eva colhia aquela que lhe havia sido
designada – continua a se alterar ao pé da árvore abatida.
Fruto apodrecido, ele tem, por nome: ANGÚSTIA.

Imagem do vazio antes do vazio.


Ao morder a maçã, Eva sabia que era sua alma que
ela devorava?

E se o livro fosse apenas memória infinita de uma


palavra faltante?
Assim a ausência fala à ausência.
«Meu passado advoga por mim – dissera ele –; mas
meu porvir permanece muito evasivo quanto à variedade
de sua cestada.»

Imagina um dia sem um trás-dia, uma noite sem


uma trás-noite.
Imagina o Nada e alguma coisa no meio do Nada.
E se alguém te dissesse que essa tão pequena coisa
fosse tu?

E Deus criou Adão.


Ele o criou homem, privando-o de memória.
Homem sem infância, sem passado.
(Sem lágrimas, sem risos nem sorrisos.)
Homem surgido do Nada, não podendo mesmo reivindicar uma parte desse Nada.
Deus um instante sonhou que Ele privava, de um só golpe, esse homem de tudo o
que Ele consentirá, no futuro, às outras criaturas?
Adão, filho do Nada, pela vontade de Deus, fruto desse bom querer gratuito;
fruto maduro antes de madurar; árvore folhuda antes de crescer, universo acabado
antes de emergir do nada; mas no Pensamento de Deus, somente.
Homem de um pensamento estrangeiro ao qual, contudo, sua vida é ligada.
Homem acorrentado ao Nada, acorrentado à ausência de toda ausência.
O passado nos tranquiliza. Homem sem segurança, entregue a quem? A quê?
Homem sem claridade nem sombra, sem origem nem caminho, sem lugar, senão
desse lugar fora do tempo, indiferente ao homem.
Assim devem se sentir os objetos. Mas, eles têm, provavelmente, sua memória de
objetos; suas recordações de madeira ou de aço, de argila ou de mármore. A recordação
de seu lento avanço na ideia, no conhecimento do objeto, até se fundir nele.
Ó vazio! Encostar-se em nada, não poder se repousar sobre nada, é isso a
angústia?
O tempo nos amassa. Sem passado, o presente não existe, o Eu é inimaginável.
Órfão em toda a acepção do termo, de pai e de mãe mas, também, de si mesmo –
não somos engendrados pelo instante vivido carnal e espiritualmente? – o que poderia
ser, para ele, o olhar, a escuta? Que significariam, para ele, falar, agir? Qual peso poderia
ter uma palavra, quais repercussões no porvir; qual proveito poderia ele tirar; qual
contentamento, qual aplacamento poderia ele esperar de um gesto qualquer?
Descobertas, encontros, espantos, decepções ou maravilhamentos?
Provavelmente. Mas, em relação a quais outras abordagens, em resposta a qual íntima
interrogação, a comparação fazendo falta?
A chave está no ovo fecundado, no óvulo, no feto.
O mistério e o milagre.
Fértil olvido. Ele nos impele a sondar a alma e o espírito em nome do espírito e da
alma. Ele nos ajuda a cavar as diversas vias da consciência; aprender, desaprender,
apreender indistintamente na aurora e na madrugada o que elas nos oferecem;
diariamente, enfim, nos criar.
Eu não sou. Jamais fui senão aquele que a vida me permitiu ser.
Assim, eu existo, tendo sido amassado pelo melhor e pelo pior, por tudo o que
amei ou de que fugi; por tudo o que adquiri ou perdi; amassado pelo segundo à mercê do
segundo, no escoamento de uma vida.

Eva saiu do sono de Adão, despertou junto a ele, segundo o voto de Deus; mulher,
ela também, antes de ter sido criança, não tendo visto seu corpo crescer, se formar, não
tendo assistido ao desabrochar de seu espírito, ceder às voluptuosas vontades do sexo ou
lutar contra.
Eles se olharam sem proferir uma palavra. Que podiam eles se dizer? Eles podiam
apenas se observar, apenas estudar sua diferença.

Dias de tédio, de mal-estar se sucederam. De ansiedade também.


Eles eram, de Deus, o joguete. Viver juntos e não poder nada obter um do outro.
Viver e não ter nenhum marco de existência, mesmo que fosse uma imagem, um retrato
de si que lhes atestaria sua realidade.
Só um corpo desconhecido e uma inteligência incapaz de pensar.

Aqui, entra em jogo a serpente. Aqui, chega-lhes, até a orelha, a voz maviosa do
réptil que seria, talvez, apenas a voz premente de sua angústia.
Ah essa necessidade de saber que não seria de nenhum modo, de sua parte,
curiosidade mas esperança de cura; pois Deus introduziu, neles, o sofrimento, o mal de
ser. Deus se enganou. Deus errou.

E se o pecado de Eva fosse, de verdade, aquele de Deus que esta, por amor por
Ele, tomou à sua conta? A um só tempo, pecado de amor e louco desejo de se salvar e de
salvar Adão?
A angústia tinha favorecido o ato, apressado o advento de sua liberdade.
Infringir o mandamento de Deus é, para um e para a outra, reencontrar sua
humanidade.
A natureza tomando sua revanche, o pecado de carne se confessará ser apenas
pecado de procriação, glorificação da semente.
Do que nasce, a efêmera eternidade.

Eva e Adão acarinharam de antemão, em sua fragilidade, sua futura descendência,


através da infância que jamais eles tiveram; pois Deus os havia, já, abandonado à sua sina
a fim de ser, por Sua vez, abandonado por eles; a liberdade deles – ó solidão, ferida –
decorrente, inegavelmente, desse duplo abandono.
Mas, duas questões subsistem.
Deus, ao criar o homem, sabia que Ele não conseguiria jamais fazer dele um
homem já que só a este cabe vir a sê-lo por si mesmo?
A fraqueza de Eva apareceu, mais tarde, a Deus como uma lição e a Adão, como a
essencial provação que desemboca sobre uma certa consciência de existir; na aceitação da
vida e da morte?

GRISADO

Angústia do branco e do negro: Gris.

Palavras que não tiveram o tempo para enegrecer, tanto sua passagem foi rápida –
teríamos dito em pontilhado. Mas, resta esse tom gris deixado, por elas, sobre a folha;
turva cor, equívoca, familiar, tão cara aos nossos olhos cerrados.

... pensamentos de um instante, capturados no voo. Gris é sua sombra que,


misturada à poeira, jamais saberá que ela foi, uma vez, noite absoluta.

«Quando, de negra que ela era, de uma vez só uma palavra escrita se encontra
gris, é que o infinito da página a branqueou.
«Ó transparência!», dissera ele.
E acrescentara, mais para si mesmo que para os outros:
«A transparência, ah eis o milagre.»

Fumaça. Fumaça. O céu é gris. A terra e o mar igualmente.


O que impede a noite de se unir ao dia é uma morte sem precedente que toda a
grisalha do mundo vem alargar.
Ó dor! Abismo!
Qual dentre nós conseguirá descrever o que ele sabe ter visto e que essa fumaça
dissimula? O que, no fundo de si mesmo, se assinala por sua obsedante presença e que,
obstinadamente, repele o olhar?
Cinzas. Cinzas.
Ah amar apenas o que vive apenas para si, a fim de não ser, cedo demais,
arrebatado com o que morre.

«Recluso – ó paralisante obscuridade – como o homem poderia atingir, de Deus,


as palavras solares?
«Tu quebrarás o livro do selo.
«Deus, que é ascensão de luz, como, na passagem, poderia ele, onde mais nada
reluz, Se demorar, um instante, sobre nossas palavras tenebrosas?
«Alguns vocábulos, somente, separam o homem de Deus», escrevera um sábio.

Gris, era o universo, em seu começo.

«Se tu fixas longamente um ser, um objeto, estrela, flor ou cascalho, tu terminas


vendo o vazio que está nele.
«Fadiga dos olhos ou olhar em seu apogeu; o que importa!?
«O vazio é visto», dissera ele.

O finito: tudo o que não é mais.


O infinito: tudo o que é mais.
LÍNGUA FONTE LÍNGUA ALVO

Pensar o silêncio é, de algum modo, gritá-lo aos


quatro ventos.

O silêncio não é fraqueza.


É, bem ao contrário, força.
A fraqueza da palavra é ignorá-lo.

– Qual é teu bem?


– Um sopro. E ele me vota à morte.

Mais que ao sentido, apega-te ao silêncio que


modelou a palavra.
Tu aprenderás ainda mais sobre ele e sobre ti, não
sendo mais, um e o outro, senão escuta.

O barulho do livro: uma página que viramos.


O silêncio do livro: uma página que lemos.
Como se a passagem do silêncio ao silêncio não
pudesse se fazer sem algum gemido.

O barulho é surdo; sua enfermidade o torna, por


vezes, insuportável.
O silêncio é universo de solidão. Ele exige, da
orelha, destreza e acuidade.
É por isso que, querendo custe o que custar nos
fazer ouvir o que o ouvido tem muito custo para
perceber, ele é, geralmente, tão doloroso.

«Escrever é um ato de silêncio, que dá a ler em sua


integralidade.
«É porque todo gesto de Deus é silencioso, que ele
é escrito», ensinara um sábio.

Há livros que «fazem barulho» e outros que impõem o silêncio.


Os primeiros são bem pequenos nadas, imbuídos de suas sonoridades; os
segundos, bem pequenos nadas irredutíveis.

Escrever é ver tão distintamente de dia quanto de noite.


Águia e coruja.
Águia na luz da manhã: o escritor: coruja, no coração da noite: o vocábulo.
Fundidos no mesmo e infinito olhar.

A voz, assim como o sopro, delimitam o espaço da palavra. Espaço exterior.


Vital.
O espaço do vocábulo é aquele, ilimitado, do livro; noite associada ao dia, desde
sua saída das trevas.
Ó sobrevida.

«Falar, dissera ele, é sacrificar ao comunicável. Escrever também, mas torturado


pelo incomunicável.»
Ele dissera ainda: «Pensar é errar com seu Pensamento.
«O pensador sabe que ele tem, por todo bem, o caminho e o desconhecido por
amanhãs.»

«Se me perguntassem qual é, de todos os mistérios, aquele que, para sempre,


permanece impenetrável, eu responderia sem hesitar: a evidência.» – havia ele notado.

Irmãos siameses, separados pela cabeça: o


pensamento e a poesia.

Tudo é pensamento. A poesia poderia bem ser, assim, a expressão de uma dupla
sensibilidade: a do coração e do espírito. Palavra em seu Zênite.

A poesia pensa no interior da poesia; o pensamento convida, em torno de si, a


pensar. Lustre pendurado no teto ou farol varrendo o mar, eles estão no centro de toda
superveniência.
Universo cerrado – profundo enclave – de nossas crenças e de nos incredulidades.
Só há salvação na saída.

A poesia que é intuitiva claridade, envolve, de sombra leve, a palavra para


acompanhá-la até o limiar do dia em que se escreve o poema.
Não há mistério que não seja, em um momento ou outro, frustrado.

O poeta pensa em poesia, na exaltação que lhe proporciona o poema; o pensador,


no desconforto em que a poesia deixou seu pensamento.

Como o pensamento, para o pensamento ou como o amor, para o amor, a poesia


só pode ser salva pela poesia.

«Tu queres partir. Não sou eu quem saberia te deter. Nem minhas lágrimas, nem a
recordação de nossos risos.»
Voz feminina, voz de minha terra natal, quantas vezes ela se debateu com o
olvido?
Aquele que, de novo, partiu só tinha, por toda bagagem, um livro inacabado.
Ó meu amor.

Um sábio dissera:
«Não houve, para nós, nem partidas nem retornos.
«Houve a longa e difícil travessia do livro.»

Produzir o Nada.
Fazer reluzir.

E se, por trás do Nada, se escondesse um texto?


Texto de nada.
Todos nossos livros?

Respiramos, como lemos.


No mesmo ritmo.

A língua escrita é uma língua, a um só tempo, fora da e na língua; que, de uma


língua comum, destaca uma língua para si e leva esta para além da língua onde ela se
reencontra só, face ao infinito mas sempre no coração da linguagem da qual ela explorou
todas as possibilidades?
Falamos para aqueles que nos falam; escrevemos na solidão onde a palavra veio
se unir a nós.
É, provavelmente, a essa confrontação de duas solidões que a palavra escrita deve
sua singularidade.

Há – cada um o sabe – uma língua materna, a primeira língua aprendida, falada


por nós.
Fortalecidos desse truísmo, podemos declarar que há uma escritura ‘materna’, um
escrito comum, páginas de nossos primeiros balbucios?
Os primeiros escritos de uma criança são aprendizagem de escritura e não
preocupação com redescobrir o texto de origem: o texto gerador de textos a escrever que,
ainda que nos escapando sempre, não cessa de nos assombrar.
A tarefa do escritor, é ler o que lhe escondemos.
Tonicidade do escrito.
Podemos dizer, de um compatriota: «Ele fala, tão bem quanto vocês e eu, a nossa
língua.» Podemos dizer: «Ele escreve como vocês e eu?»
É que no escrito, na escritura de um escrito, alguma coisa outra se passa – mal
percebida; alguma coisa misteriosa, verossimilmente muita velha que a palavra oral julga
mal, tão apressada em se afirmar.
E, talvez, escrever seja, justamente, diferir essa afirmação?
Escrevemos entre duas renúncias.

Com as palavras da língua, o escritor forja palavras novas; não novas palavras,
palavras irrigadas com seu sangue; funda uma segunda língua, amarrada, certamente, por
todas as suas fibras, à primeira mas que, doravante, pertencendo-lhe propriamente, ó
paradoxo, não pertence mais a ninguém. A língua do escritor só se querendo aquela do
livro; a do instante e da duração de uma palavra emancipada.

A palavra oral só é audível no mais perto de seu objeto, do que, considera-se, ela
deve exprime diretamente; a escritura, no mais longe. Uma diz e se cala. A outra se
inquieta com o que ela tem ainda a acrescentar a seu dito. Uma circunda e divulga o que
ela captou. A outra encoraja o dito a se ultrapassar, a fim de circunscrevê-lo, em seguida,
em seu vertiginoso desfraldar.

Não se deve confundir claridade da língua e claridade do texto.


Uma brilha no exterior; a outra, no interior.
Flexuosas fronteiras.

Descartar-se de um mau trunfo.

As palavras de um escritor dispõem de algumas vantagens a mais ou a menos que


as palavras usuais. Aí reside sua precisão: esse mais ou esse menos sendo, ora, o que o
escritor acrescenta a ele: visões, abordagens arriscadas, sonhos, fantasmas e, ora, vazio
infinito que outras palavras buscarão reduzir. De sorte que escrever é sempre esperar, de
um vocábulo por vir, a salvação, o escritor só podendo se exprimir no futuro.

Não crer que uma escritura em retirada seja uma retirada de uma escritura em
favor de uma outra, portanto, passiva.
O texto vive e morre na palavra mas, dessa morte, não sabemos nada, senão que
ela é posteridade de toda palavra.
«Gravada, a palavra corrói o que ela grava, mármore ou cobre para, por sua vez,
ser corroída por eles.
«Encharcada de tinta, ela dá a beber à folha e morre de sede, com ela», dissera um
sábio.
E acrescentara: «Irmã da crença do livro no livro, ó sede, fé obstinada na
ressurreição da água.»

«Tu notaste esses buracos na areia – dissera um sábio a um companheiro de


estrada. Eles são os mais antigos rastros conhecidos de palavras.
«E foi o vento que os cavou.»

Primavera do verbo. Vernação, ó botão em folhas.


A ordem do escrito está na palavra.

O SONHO

A campainha da porta de entrada do meu apartamento me desperta em


sobressalto.
Tenho dificuldade em me levantar para ir abrir.
Um jovem homem entra em meu quarto. «Eu sou o carteiro», me diz ele. E tenta
me entregar uma carta.
Constatando minha dificuldade em estender o braço para pegá-la, ele me diz: «Eu
a porei na pequena mesa oval, de frente para a sua cama» e desaparece.
Dias, meses, talvez anos depois, eu a encontro.
Abro-a e leio no alto da página:
L. M.
(Penso em LIVRO. MORTO. cujas duas primeiras letras acabavam de me ser
entregues.)
E mais abaixo:
«Aqui, tem fim toda leitura.»
TRÊS LENDAS

Ele ofereceu seu livro a seu Mestre, que o leu, o reescreveu e, por sua vez, o
ofereceu a seu Mestre.
O Mestre o leu, o reescreveu e, renovando o gesto de seus discípulos, foi oferecê-
lo a seu Mestre.
O Mestre o leu, o reescreveu e, preocupado, ele também, com o julgamento de seu
Mestre, apressou-se em lho oferecer.
Atentamente, o Mestre o leu e, sentindo-se, por seus quatro discípulos, visado em
seu ensinamento, o lançou ao fogo.

Ao rico que se vangloriava de sua fortuna, o sábio diz: «Tenho pena de ti por tua
pobreza.»
Ao pobre que chorava seu infortúnio, o sábio diz: «Regozijo-me de tua riqueza.»
Como nem um nem outro compreenderam as palavras do sábio, este diz ao rico:
«Tua riqueza te cega; é por isso que a manhã é, para ti, espessas trevas.» Ao pobre, ele
diz: «Tão vastos, por trás de tuas lágrimas, são teus olhos, que o mundo não tardará a se
refugiar neles, em sua total disponibilidade descobrindo aí seu lugar.»
E acrescentou: «A pobreza de Deus é esse olhar liberto da Criação que, vazio, lhe
permite abraçar, de uma vez, as inumeráveis riquezas celestes e terrestres, restituídas a si
mesmas.
«Mas, tenho fome», diz o pobre.
E o sábio soluçou.

A um discípulo que lhe dissera que o Livro divino, talvez, não fosse tão perfeito
quanto se crê, o mestre respondeu:
«O embaraço, com Deus, é que não sabemos, de verdade, se Ele está totalmente
morto ou totalmente vivo.
«Nesse ‘totalmente’ reside seu mistério.»
E acrescentara: «Se Ele está morto, precisamos aceitar Seu Livro como único e lê-
lo consequentemente.
«Mas, se Ele está vivo, estamos no direito de considerar Seu Livro, como uma
primeira obra, abrindo a via para uma segunda obra e nossa leitura só pode assim ser
sensivelmente modificada.»

«Algumas questões subsistem, dissera um comentador, estas primeiramente:


«E se Deus não fosse o Deus do Livro único?
«Precisaríamos buscar a Palavra divina em outras obras.
«Mas, quem ousaria se arriscar a isso?»

«E se a Palavra de Deus só tivesse, por supremo objetivo, nos fazer correr esse
risco?
«Ah! ouvir, ver se projetar e, sobre si mesmo, se recurvar o silêncio. Essa, talvez,
seja a mensagem divina.»

«Não há, talvez, livro divino – dissera um outro comentador. Haveria a divina
incondicionalidade de adesão a um livro branco.»

Nada é perfeito. Tudo está por perfazer.


O futuro nos faz e desfaz.

A PARTE DO BEM

«O que te pertence? – Quase nada e, ainda, esse


quase é de mais.
«... de mais, como o jarro d’água estendido àquele
que não tem sede», havia ele escrito.

«A questão para jamais se pôr é esta: O que me


pertence?
«A questão que me ponho é a seguinte: De quê, ó
meus jovens amigos, me sois vós devedores?», dissera
um sábio.
Acrescentando, imediatamente: «Provavelmente, de
nada; pois o que valeria meu ensinamento se ele não
fosse escutado?
«Meu bem é ainda mais o vosso que o meu.»
«Mas, qual é esse bem que não poderemos jamais
avaliar, já que ele só nos pertence na medida em que nos
desapossamos dele?» responderam os discípulos.
«O peso, talvez, do Nada», diz o sábio.
«De qual peso poderia pesar o Nada, se ele mesmo
é Nada?» retorquiram, em coro, os discípulos.
«E se esse peso – diz, então, o sábio – fosse a soma
de nossos conhecimentos acumulados ao curso dos
séculos? Um pecúlio de grânulos.»

O sol é astro de pobreza.

A questão poderia ter sido meu bem se, ela mesma, não fosse tão desmunida.

Dispomos do instante para a resposta e da eternidade para a questão.

A sábio tem, sempre, sobre nós, o avanço de uma leitura.

Todos os caminhos levam à morte; um só, ao nada.

Avançar, fazer avançar o avante.


Fatal acasalamento.
Todo fim, talvez, seja apenas apressada conjunção do fogo macho e do fogo
fêmea.
Desgraça da duração.
Ah fogo uma chama.

No texto, ter, também, parte ligada com o espaçamento – a entrelinha –: a um só


tempo, promessa e ruptura do laço.

De um fio reforçado a um fio tênue: o trajeto de uma vida.

Ele havia, outrora, notado: «Levar o passado à sua culminância não é lhe impor
um fim mas, ao porvir, atribuir uma função e, assim, lhe conceder, talvez, um sentido.»

Ontem poderia ter rimado com atem mas se pronuncia diferentemente.


Assim como atamos neles – ou entre eles – as palavras, os sons, fixaremos algum
dia o que se engenha a se esquivar?
Aposta do atamento.
A legibilidade, talvez, seja apenas a ilegibilidade posta aos pedaços, o grandioso
espetáculo desse saque.

Quebradura de quebras.

A passagem da escritura ao escrito não deixando, por trás de si, rastros, é sempre
original; não absolutamente origem na mas contra a origem. Indetectável começo.

A morte é uma aranha ocupada em fiar sua teia e a palavra, uma mosca capturada
em voo.
Ó nascimento póstumo do livro.

Uma vez escrito, o Mim não é mais que escritura exaustiva do Mim.
Ratificação.

Um pouco de cinzas me terá, um instante, pertencido; restos entregues ao vento


de um livro calcinado.

A poeira é sem poder.

Cordel enfardador: harmonia.

Parentesco entre duas línguas. A parte com enxerto.

Uma folha ao vento, um grão de areia recuperado pelo deserto.


Tu lês essa recuperação. Tu lês a vitória do deserto sobre o grão de areia depois,
inopinado reviramento – reverso, reverso – a vitória do grão de areia sobre o deserto.
Todo livro é, primeiro, um livro de história.

Seiva ascendente, a vida que viceja, ó verdade.

Raspar o tempo, edificador de séculos.


Rebranquear as paredes do Templo.
Pequena chama. Pequena chama, no coração do sono. Doce iluminação propícia à
eclosão dos sonhos. Nebulosa espiral, ó versão noturna da história escondida do sol.

Dispendiosa irrealidade.

Fendedura. O diamante a ela se submete.

Na sombra onde ela jaz, em pé, a vela resvala, atraída pela chama para sua
oscilante luz.
Se ela parece derreter, é apenas uma ilusão de ótica.
Na realidade, a morte irreversivelmente a arrasta para além de sua regressiva
claridade.

Deslumbrante nada. Suprema queimadura.


Dois universos para um sol.
Ó noite, calmo repouso, espaço salvo do silêncio que nossas pálpebras abaixadas
assombrearam.

Teremos vivido a morte de uma vida infiltrada na nossa, a do livro.


Uma palavra para uma fração de instante.
Assim, teremos aprendido a viver e a morrer conjuntamente da legibilidade e da
ilegibilidade de uma mesma existência.
Ao ritmo de nosso pulso.

Se soubesses quão vulneráveis são nossas moradas, o quão tu mesmo o és, tu com
isso tremerias.
Fraqueza em que a força se aprecia pelo número de proezas. Resistência de toda
fraqueza. Capitulação de toda força.
O homem é tão exposto quanto o livro. Um pela mediação do corpo e do espírito;
o outro, pela via das palavras que o minam.

Para que o Tu seja, verdadeiramente, o Tu, seria necessário, previamente, que o


Eu seja, realmente, Eu.
Ao «Quem sou eu?» faz eco o «Quem és tu?» – mas essa questão é votada a se
dissolver na questão.

Poder, assim como fechamos um livro, encerrar, um dia, minha vida, persuadido
de que, no interior desse encerramento, um tesouro está sempre escondido.
Toda possessão nos frustra onde ela nos favorece.
Folha. Folha.
Perecemos do que nos fez ser, bem mais que do que somos.

Nenhum de nossos bens reconhecidos é exclusivamente nosso. Ao contrário, o


gozo que eles nos proporcionam poderia sê-lo.

«Nós sabíamos que possuíamos poucas coisas – escrevera um sábio – mas, a ideia
jamais nos viera de que esse pouco de coisa é ainda o que não possuímos.»

Ninguém se despossui senão de si.

Escritura sob a escritura. Sub-escrever. Não escrever sob; mas, escrever assim
como sub-tendemos o arco. Ó alvo longínquo. Palavras de uma outra memória.
Morrer antes da palavra, abandoná-la à sua morte órfã.
Não teremos nada escrito que não nos tenha sido soprado pelo próprio escrito.

Silenciosa é a escuta. Alguém duvida de que ela era página de escritura sutilizada
ao olho?
Brancura. Brancura.
Ler o que se retira.
Seca! Fome!

Toda palavra é, primeiro, o eco de uma palavra perdida.

A morte tem toda latitude para operar lá onde ela está segura em encontrar o que
ela busca e não lá onde não podemos, infelizmente, mais nada lhe oferecer.
O direito à morte, nessas condições, talvez, seria apenas o direito legítimo de
recusar à eternidade o último dom de si; uma chance de morrer, de nossa firme vontade,
com alguma coisa que nos pertença ainda.

«Minha vida – dissera ele – gasta pela fricção, é um velho cabo enferrujado que se
pui mas que, todavia, não cederá, enquanto o navio dos anos me contar entre os seus
passageiros.»
E acrescentara: «A imagem de uma vida, talvez, seja apenas aquela da usura
contínua de um laço sem defesa: amarreta ou correia.»
À claridade, nenhuma sombra de correntes.

Ninguém dispende sua morte. Ao morrer, a vida se esmigalha.

«Repetir, por vezes, reforça o dito. Amplifica-o.


– A toda voz que verga, seu repetidor: revezamento amplificador –
A palavra se agarra a um fio, move-se sobre um fio», havia ele notado.

Aquiescer às proposições da morte.


Fraqueza da alma.
Morrer sem fazer careta.
Rebento.

Todo começo se apropria da origem. Ele é, não o já lá, mas a recusa do já.
O lance de dado do trapaceiro.

Delimitar nossas propriedades. Ainda é necessário saber até onde elas se


estendem?

A noite se conta.
Negro relato.
Vocábulos envoltos de sombra.
Desalento. Desalento.
Branco é o desenlace.

A palavra se escrevendo, se desprende do escrito, tal o viajante, cativado pelo


caminho, da meta perseguida.
Aqui, nenhuma sombra de preito ao texto, mas submissão à escritura.

Não deixes as palavras azedarem. Eles têm mesma longevidade que o vinho.

Agrura do mão-de-vaca.

Aceita-me tal como não sou. Tu me forçarias a me renegar.


Graças a esse estratagema, talvez aprenderei, de ti, quem eu poderia ter sido?

Tu queres tudo pensar, mas teu pensamento não pode pensar tudo.
Entre querer e poder, ó infinito, ó vazio do impensado.
Ó o sol.
Olho só.

Ele dissera: «Imagina o pensamento como uma planta, como uma árvore, como
uma flor, como uma fruta e mesmo tal um broto.»

«O impensado, como o céu, o céu azul, o céu da luz e da noite.


«O desconhecido nos assedenta.
«Água, água para sobreviver.»

Tu optaste pela segurança, a tranquilidade: a resposta.


Eu escolhi a insegurança, a inquietude: a questão.
Eu piso à beira da vida enquanto tu, já, atingiste as orlas da morte.
Morrer no limiar.

O homem criou Deus, dotando-o dos mais puros atributos; ele o suprimiu ao lhos
tirar, um a um.

Corta as asas de tuas alegações. Tu as verás rastejar na lama, como vermes.

Quem escreve para mim? Que é que, nesse momento, se escreve em meu nome?
Em que distinguir o que eu escrevo, do que uma mão mais pronta – mas, como ela fez
para eliminar a minha? – se engenha a escrever, atribuindo-me essa paternidade?
Há aquele que se cala em mim – comigo – quando me calo.
Há aquele que fala em mim – comigo – quando me exprimo.
É o mesmo homem?

«Fazemos corpo – dissera ele – com o Nada.


«Toda partilha de um bem é partilha de si.»
O «Vai-te» de Deus a Abraão, o que significa, senão: «Que tua errante presença,
doravante, seja, para tua progenitura, o luminoso penhor da toda-potência de Minha
Ausência?»
Teria eu sido judeu até ao me identificar ao propagador venerado desse terrível
mandamento?

O silêncio de Deus é abismo do vocábulo.

Ponderoso infinito.

O ilimitado O limite

O limite é o neutro, pois ele é, já, o ilimitado.

A palavra atordoa. O livro, jamais.


Há uma audibilidade do silêncio que é escritura.
A CARTADA

A mão conhece seus limites;


a folha nem mesmo os concebe.

Em torno de ti, o invisível; mas, teu olhar vê.


O olho é suplantado pela visão.
Ah captar, captar o infinito.

Um som – emitido por quem? – e depois nada.


Uma palavra – escrita por quem? – e depois um branco.
Escutar esse nada. Ler esse branco.

Ser ligado apenas aos batimentos de uma asa.


Infidelidade.
Permeável, não projetando nenhuma sombra, nem céus, nem terra saberiam reter
o pensamento.
Julgamos, em geral, outrem, sobre a fé de uma palavra dada.
A escritura tem, também, seus indícios, seus marcos, sua linha de fé.
Sua franqueza e suas malícias.
Suas peças de convicção.

Pretora sobre penhores: a língua.

E se, de toda linguagem, Deus fosse penhor de silêncio?


O inexprimível.

Não se nomeia Deus. Deus tem, por nome, o inominável.


Silêncio celeste.
O nome é o obstáculo?
Não ter rastro de nome. O «rastro de nome», por ser a ausência de nome, é
também o rastro no divino Nome impronunciável? O primeiro rastro para o invisível,
para o indizível?
Uma vitória do ante-dizer sobre o não-dito?

Tu esperavas, com a ajuda de um cordel, fixar, no mais reto, o limite do


pensamento?
Flutuantes são as beiradas da vida e da morte.
Os limites se dispõem, acima de nós, ao infinito como, em sua escala, frases
desajeitadas de adolescentes, no caderno de escola.

Não oponhas o silêncio ao barulho.


Sem descanso, eles se revezam.

Ele dissera que a rosa era, pela metade, silêncio e, pela metade, perfume. O que a
tornaria tão bela.
Saberemos jamais se é sua beleza que embalsama ou se, para nós, seu perfume
desenhou sua beleza?

Desconfia do entorpecimento. Ele tem um ressaibo que mente.


Um ressaibo amargo de traição.

Não saias de modo nenhum de tua reserva. Acentua-a.


Reserva-te, desde agora, o direito de te reencontrares só face a ti mesmo, no
instante supremo em que, como antanho, no mar, tu colocarás um pé no nada.

Responde apenas ao tempo que te resta. Tu arrematarás, mais cedo, tuas


caducâncias; tu alcançarás mais rápido a última palavra.

Meus limites são minha liberdade.

O infinito é clausura infinita.

«É necessário que tenha havido restrição para que haja liberdade; pois não há
liberdade senão lá onde ela pode se exercer.
«Demos o nome de ‘Liberdade’ ao que é apenas meios postos, por nós, em obra
para sermos livres», dissera ele.

Deus ignora a liberdade.


Nada lhe resiste.

Sabia eu, até aqui, que abrir e fechar contra o impensado, e o livro que se
os olhos, se alongar, se mover, pensar, escreve contra o livro escrito.
sonhar, se calar, escrever, ler, são gestos Existir, pensar, escrever nos
e manifestações da subversão; o empenharia, então, a procurar
despertar vindo abalar a ordem do sono, indiretamente um equilíbrio interior,
o pensamento se encarniçando sobre o face a atos de subversão, equilíbrio que
nada a fim de o suplantar, a palavra seria enfim encontrado ao deixá-los se
rompendo, ao se desfraldar, o silêncio e afrontarem em nós.
a leitura que recoloca, a cada frase, o Nós somos o lugar esquartejado
escrito em questão? desses conflitos. Conseguimos localizá-
Sabia eu, também, que há graus para a los ao espaçá-los e limitá-los no tempo;
subversão, que não somos é o que chamamos: viver, com nós
verdadeiramente subversivos, em nossas mesmos, em harmonia.
relações com outrem, senão quando não
nos aplicamos de modo nenhum a sê-lo e
quando, nesse clima de não-suspeição, (O pequeno livro da
favorecido por nosso comportamento, subversão fora de suspeita)
ninguém, ao nosso redor, se percebe
disso ainda?
A vida se ergue, em todos os
instantes, contra a morte; o pensamento
Três «Rogos de inserir» ou curtos Um livro de mais – não a mais mas de
rogos para recitar, em voz baixa, para mais, como pode haver um grau de mais
fazer recuar os limites do livro para o calor ou então em nossa relação
... em voz subterrânea – em oposição com o escrito e com o infinito.
a voz subterrânea –, a fim de ser ouvida A via onde me embrenhei é aquela
pelos mortos enterrados com seu livro. traçada por meus livros e cada um foi,
por sua vez, benévolo assentador de
Um livro de rogos, talvez, seja apenas divisas.
rogos preferidos do livro. Ao ilimitado, eles foram sacrificados.
Fizemos nossa sua seleção. Àquele que, sentado, a esperava, sem
verdadeiramente a esperar, ela perguntou
Todo pensamento é rogo do espírito; se ele sabia o nome que ela teria querido
todo vocábulo, rogo de um escrito; toda portar para existir.
morte, rogo de eternidade. Diante do mutismo deste, ela se
Rogar preces: arrancar pedras. eclipsou para, por todo o sempre,
desaparecer.
Não busques dobrar a palavra; ela, A causa do fracasso de todo diálogo
já, na passagem, te dobrou. reside em nossa impossibilidade de nos
revelar, tais como somos, a outrem.
«Em um texto – dissera ele – tudo vai Estrangeiro face a estrangeiros.
tão veloz que, não podendo avaliar essa Mas, o diálogo prossegue,
velocidade, nós o cremos fincado à precisamente lá onde, através do silêncio
folha» onde se funda o livro, ele não é mais que
o afrontamento desesperado de duas
E se a subversão fosse, primeiro, por impotentes palavras à cata de sua
si mesma, subvertida? verdade.
Dissabores e despeito do diálogo.
(O Livro do Diálogo, 1984)
Nesse ponto do percurso, necessitei,
«O homem – dissera ele – roga preces por preocupação, provavelmente, de
com palavras de carne e de alma; a precisão, de objetividade – mas,
pedra com palavras de poeira e de céu; podemos ser objetivos? – repensar
a relva, com palavras de gramíneas e de minha relação com o judaísmo e com a
orvalho; o sol, com palavras de escritura.
claridade e de fogo; o mar, com Com um certo judaísmo – teria eu
palavras de sal e de onda; a chama, com bastante sublinhado isso? – passando
palavras de queimadura e de cinzas. pelo livro e se reconhecendo nele.
«E a carne e a alma e a poeira e a Essas páginas poderiam ter tomado a
relva e o orvalho e a claridade e o sal e forma de um diário. Elas têm parte
a onda e a sombra e o fogo e a cinza? ligada com a vida.
«Relva, orvalho, claridade, sal e Toda reflexão é especulativa.
onda, sombra e fogo, poeira e cinza Interrogamos, em primeiro lugar, o que
estão em todo rogo.» – respondeu ele. inventamos.
Um gravador de nigelas não será E quem sabe se essa invenção não é,
jamais um gravador de palavras. si mesma, verdade; único meio, em todo
Livro para a morte contra o livro de caso, de atingir a verdade?
uma vida. Nada é dado. Tudo está a se apreender
– a se aprender.

(O Percurso, 1985)
... uma vez esse ponto litigioso
esclarecido, instantaneamente se Abordar a partilhar por esta questão:
iluminou o percurso. «O que me pertence?»
Balanço de uma vida, referendado
pela morte.
Tudo o que não tem outra existência
que aquela que lhe outorga a partilha.
Um bem selado é um bem perdido.
Dar, oferecer-se para, em retorno,
receber, de outrem, um dom de igual
importância seria, à primeira vista, a
partilha ideal.
Mas, o Tudo é partilhável?
Um sentimento, um livro, uma vida
podem se partilhar em sua integralidade?
Por outro lado, se não podemos tudo
partilhar, o que resta e restará sempre
fora da partilha? O que, no seio do que
nos pertence, não terá jamais sido nosso?
E se partilhássemos apenas o vital
desejo de partilhar, único meio, para nós,
de escapar à nossa solidão, ao nada?
PROLONGAMENTOS

... percurso da subversão ao diálogo, fissura de onde sobressalta a vida, onde se


infiltra a morte.
A falha.

O defeito: fenda no ferro, jaça no diamante, risca no vidro.


Impura é a morte.

Como te confessar? Como te escutar?


A aridez suplantará, um dia, o espírito?
Percurso, Rachadura – riacho, regato, rio – um fio d’água, inexaurível murmúrio,
mantém desperto o mundo.
O que espero? O mais esperado não é o menos cômodo de precisar; o menos
exigido, portanto o imprevisto?

Menores mutações. Mutância.


Inventar não seria apenas aventar um segredo?
Luz, luz. Ó noite, lustrar a estrela.

Não há laços senão de amor.

Feixe de cordõezinhos coloridos; nó antes da letra; palavra antes da palavra.


As tribos antigas que ignoravam a escrita, duvidavam que toda palavra fosse
desafio à Criação?
Seu livro de fitas só oferecia à leitura seu desespero de não poder escapar à
solidão.

Parte, corre, foge de mim – dissera um sábio a seu discípulo aturdido. Tu não vês
que estou sujeitado à eternidade cuja insensibilidade é incomensurável?
«Em breve, eu terei, também, um coração de pedra.»

Percurso. O porvir não está, já, mais lá.

«Há – dissera ele – obras que jamais puderam aceder à luz mas das quais as
palavras disseminadas conservam a nostalgia.
«Com esses melancólicos vocábulos nós refazemos, intuitivamente, um livro de
lamentos.»

«O visível – havia ele notado, uma vez – não é negação do invisível mas sua
perversa expressão.
«O chamado do precipício.»

Altas ou mortas, como o mundo e como a vida, o livro tem, ele também, suas
estações.

Subverter, talvez, seria apenas dessolar.

Solo estéril, arável, ou então


o Nada de um sonho de existência.
Encontrar um equilíbrio, no desequilíbrio em que nos mergulham nossas forças
vivas.
Tal como se cura o mal pelo mal; frustrar a subversão ao nos servirmos dela.
Assim, mais leve que a água, o navio desposa a ondulosa lâmina que, muitas
vezes, havia tentado quebrá-lo.

«O homem – dissera ele – se encarniçou a subverter o Livro de Deus, enquanto,


de seu lado, com toda serenidade, Deus subvertia o do homem.»

E se o nome impronunciável de Deus fosse apenas o nome excluído, de quatro


consoantes consumptíveis?
... destruído porque irrefutável?
Guardião do livro areado: da noite deitada sobre o livro.
Toda leitura esgotada.
Guarda inútil. Guarda do Nada.
Desertos. Desertos.

O limite imita o limite. Não há espaço senão viciado.

A subversão não tem nem começo nem fim. Ela é reversão de alianças e
reviravolta de situação.
A armadilha.

TRANSPARÊNCIA! Quem duvida ainda do milagre?


Divino ato, hialino.
Pacto de aliança.
Nenhumas divisas, para o desconhecido
nem fronteiras, para o infinito.
O horizonte. O horizonte. O horizonte.

Indivisível invisível!
Ver. Primazia
de nossas escolhas.

Ele dissera que, para Deus, tudo se havia tornado tão límpido, que seu olhar,
desde então, atravessava, sem vê-lo, o universo.
Assim, mais nada, doravante, separa Deus de Deus.
(«E a mim, dissera ela, ó meu amante, tu me
quiseste tão ausente que nem mesmo percebes que teu
olhar, transpassando-me como uma flecha, deixa, a
cada vez, de meu corpo, escorrer um pouco de sangue?
Existo apenas para a dor e ela te exclui.»)

Ela não era mais que perfume de mulher; desejo, para o homem, da amada.
Inefável gozo.
Há, de uma parte, o sonho, em sua inocente realidade; da outra, a dura realidade
sobre a qual desemboca o sonho.
Mas, entre as duas?
E se o voto de pureza de toda pedra fosse apenas seu fantasma do cristal, sua
obsessão do incaptável?
E se esse incaptável fosse tudo o que havíamos esperado captar através do que nos
foi permitido abordar, roçar, apalpar?
E se, de nossos vocábulos escoados, um só, o mais tenaz, tivesse sobrevivido;
lucidez do Nada, ao qual somos arrimados?
Não te espantes de ter, às vezes, sangrado ao longo da estrada. O universo é de
vidro. Teu caminho é forrado de cacos que a luz orna de mil cores emprestadas.
A transparência é riqueza do dia.
Mas, não podemos nos abstrair da noite. A noite nega o que se diferencia.
Jamais, ah jamais, tu não terás sido tão só.
Ligação

Para o horizonte, exageradamente próximo é o


horizonte.
USO

Tu crês ter ganhado um livro. Tu o perdeste para


sempre.
Confiar no corpo para satisfazer às exigências da
errância; confiar no espírito para despossuir o olvido.
Floresta, o pensamento virgem é caminho clareado
a facão.
Picada persuasiva.

«As riquezas que tu tens, ao curso dos anos, acumulado, são apenas as que tu tens,
nos mesmos períodos, dilapidado.
Assim, terás tu passado, da pobreza plena, à pobreza privada de seus bens»,
dissera ele.
Humar o humano, perfume da alma.

«Não me perguntes quem eu sou – dissera um sábio. A questão mesma me é


incompreensível. Além disso, há muito muito tempo que cessei de pô-la.
«Pergunta-me, antes, aonde vou. Daí deduzirás, para meu espanto, que eu com
isso, em nenhum momento, me preocupei.»

Perdoa a meus escritos. O desespero é sua escusa.

«O ponto de vista de Deus – dissera ele – é um ponto. O hebreu fez dele uma
vogal a fim de que, graças a ela, toda escritura tendo-se, doravante, tornado legível, em
cada palavra, o ponto de vista fosse lido.»

... nesse ponto de convergência e de conflito.


Estrela.

Tu cortarás no vivo dos dias. O porvir tem o pudico rubor da aurora.


Impaciente recém-nascido, que te lavará da materna ferida da qual a recordação
acabrunhante, até a morte, reavivará, em ti, o remorso?
Em nenhum momento, teremos estado ao abrigo de nós mesmos.

Podemos pensar o que vemos, tocamos ou ouvimos pela primeira vez?


Podemos pensar o espanto, o maravilhamento ou o desgosto?
Ontem é pensado. Amanhã é impensável.
Somente esperado...

O pensador seria apenas uma criatura do


pensamento?
Pensar seria, então, se deixar modelar por seu
pensamento; não ser mais que o vivo modelo ao qual ele
nos imola: nosso duplo apavorante.

Do informe pensamento, o pensamento tira sua


nova forma.
Assim o informe, talvez, seja apenas a imensa noite
em que se debate toda forma e o pensamento, o ponto
irradiante do dia.

A vida de uma ideia é a nossa, na medida em que a ideia nos pertence; mas, como
imaginá-la? E, de outra parte, como não imaginá-la?

A ideia desabrocha e murcha na ideia.


Não perdemos, ao fio dos dias, nossas ideias; são elas que nos deixam.

O pensamento só se cumpre no pensamento que o infirma.

Convencer e não constranger.

Argumentos de apoio, cada página de escritura se esforça em persuadir a seguinte


da necessidade de prolongá-la.
Um livro é apenas uma série de prolongamentos recíprocos. Mas, a que atribuir o
poder de persuasão de uma palavra?
– Talvez à intensidade de seu silêncio.

O silêncio é o laço.

II

O Nada é só habilitado a atestar o Nada.

Maviosa irrealidade. Despótica.


Destacar-nos-emos, um dia, de nossos sonhos estorvantes?
Ó noite! A realidade, talvez, seja apenas objeto de rebrotar – sobressalto? – de
consciência.
Reconfortante espessura.
Quem ousaria impelir o ridículo até querer forjar o que não saberia ceder a
nenhuma pressão externa? Nossos peitos não são bastante largos nem nossos braços
suficientemente longos para abraçar o universo.
O espaço faz obstrução. A distância é a inimiga de nossas audácias. Não te
aventures longe demais no desconhecido. Não te ices alto demais no céu. Não te arrisques
a vasculhar por tempo longo demais o fundo do mar. Tu sufocarias.

A lei que governa o livro não tem nenhum domínio sobre a voz: ela lhe é mesmo
visceralmente submissa.
A voz do livro é mais antiga que sua lei.

Ele comparava a eternidade a uma lâmpada que ninguém teria acendido e que, por
conseguinte, ninguém virá apagar.
Claridade para quem fechou os olhos; obscuridade, para que os abre.

Um grito. A noite, de repente, não é mais que medo incontrolável; infinito tremor
de estrelas onde cintilam nossos antigos pavores.

Morrer, ah prender e perder paciência para morrer.

Volúpia, deslizamento do quase ao nada.


Desnudo é o desconhecido.
Todo mistério nos turva por seu impudor.

Se fosse necessária uma imagem ao segredo, eu optaria por aquela de uma mulher
desvelada; unicamente porque são seus véus, uma vez caídos, que a privam de imagem.
Assim, a figura retornada à sua transparência é substituída por uma ausência
infinita de figura; ó zombador nada, indiferente às súplicas de nossas mãos estendidas;
pouco preocupado com as imprevisíveis consequências decorrentes do que não pôde ter
lugar que, jamais, jamais, terá lugar.

Segredo. Degredo.

O primeiro livro é cimo. O último, raízes.


Tornar-se outra vez semente para a ausência.
III

«A toda questão, responder por uma questão do


livro», dissera um sábio.

Se por ventura evocares minha relação com o


judaísmo, não digas jamais o judaísmo, mas esse
judaísmo.
Entre tua noite e a minha, há o obstinado infinito de
uma noite incondicional.

«Tudo isso para um ‘Talvez’?»


O Talmude.

Tudo isso para um ‘Quase’?

... quase um clarão; talvez a manhã?

Eu estava à minha mesa escrevendo. Apesar da hora tardia, eu não tinha sono
algum. No entanto, parece que, uma ou duas vezes, fechei os olhos. Tudo, ao meu redor,
não era mais tão real.
Lá fora, a noite testava seus horizontes, retificava suas fronteiras.
Subitamente, da penumbra, três homens surgiram. Sem esforço, tanto minha
surpresa era grande, apossaram-se de uma parte de minhas folhas.
Um dissera: «Essas páginas são minhas»; os outros dois visitantes: «Estas são
nossas. Nós quase as escrevemos a todas.»
Eu retorqui: «Quase vocês disseram? Talvez, então, eu seja o autor de algumas
dentre elas? Esta mancha em meu indicador provaria isso.»
Eles retomaram: «Essas folhas nos cabem de direito. Viemos de longe para
recuperá-las. Nós te reenviaremos as que tivermos, após exame, rejeitado.»
«Tantos dias e tantas noites, pensei, quando eles partiram, tantos sacrifícios e
lágrimas e tudo isso para um quase e tudo isso para um talvez?»
De novo, eu estava só, apertando contra meu peito um maço de folhas
amarrotadas, tão brancas, tão bizarramente brancas...

IV

Não há morte alegre, mas há uma alegria que enche de felicidade a morte.
Da letra ao vocábulo, frágil passarela religando a realidade do Nada à irrealidade
do Tudo.
E se essa passarela fosse o arco esboçado de um sonho acima do abismo?
Vulnerável, mais que o tempo, seria a eternidade.

O tempo é protegido pelo homem. A eternidade é sem defesa.

Nós nos reconhecemos, não absolutamente na abundância de nossos bens, mas no


fundamento de nossas despesas.

O pensamento passa onde a ideia passou.


A despeito de sua violência, um rajada de vento no deserto só levanta um pouco
de areia.

«Se eu te visse, eu saberia donde tu vens. Meus olhos estão apontados sobre
tantos séculos», dissera um sábio.

E se o tempo fosse o vivido consciente do homem?


A eternidade – esse infinito e profundo sono – seria, então, o tempo do
inconsciente; existiria como tempo apagado do consciente. Tempo atemporal. Tempo do
deserto.
Mas, quem evoca a soberania, vira as costas para o grão de areia.

O tempo, talvez, seja redução pensável da eternidade; uma eternidade


«deseternizada».
Aqui, o deserto é onipresente.

Dormente eternidade.
Verdade de olhos cerrados.
A vida se desfia. Instante.
Mentira euforizante.

Responde por... Responder a...


Existir. Existir.
E, talvez, para mim, o desvio pelo judaísmo terá sido apenas o mais curto
caminho do particular ao universal e do universal ao particular.
A estrada mais larga não é jamais, na partida, senão uma pedra ajustada à pedra.
«Saibas – dissera ele – que a Estrada Real, por mais prestigiosa que seja ela, é,
quando a olhamos de bem perto, apenas uma rota ordinária, de baixa extração.»

Deus sabe o que tu sabes, mas tu não sabes sempre o que Deus sabe.
E, no entanto, és tu que pensas.

«Mestre da resposta, Deus tolera apenas a questão. E, no entanto, esta só lhe


proporciona preocupações», havia escrito um sábio.

Conhecer o que, por indiferença, talvez, Deus não conheça.


Haveria, assim, uma parte do universal conhecimento ao qual o homem teria só
acesso. Outra confirmação de nossa solidão – e da Sua.
E se nossas ansiosas interrogações, doravante, não concernissem mais Deus?
Olvido. Celeste olvido.

O interdito da representação, seria, primeiro, o interdito da ideia?


– Ideia , dados viciados nas mãos de Satã.–
Atingir o espírito em suas obras maiores.
Deus é salvo pelo nada.

«Não te fies na ideia, flecha cega.


«Aprende a manejar o pensamento, o arco», dissera ele.

Pescador experiente. Paciente.


E se o pensamento fosse a anzol e a ideia, o peixe?
Restaria a definir o mar.

E se Deus, onde Ele Se inventa e Se ausenta, estivesse no centro deste dilema:


condenar ou encorajar Sua criatura em sua tentativa de entrever o divino?
No desespero de Deus, talvez, resida a infinita esperança do homem?

Mensageira da alma, ó palavra tão interiorizada que ela desconcerta o ouvido;


fremente, não por se fazer ouvir mas integralmente sentir, provar.
Ó volúpia, ó carícias, ó arrepios. Há uma embriaguez no silêncio, como há um
gozo da água ao contato da água.
Fina pele.

«Tu pensas o mundo como a arenícola pensaria o oceano. Deus pensa a criação
assim como, após ter sobrevoado o deserto, a águia poderia pensar um sílex avistado em
meio às areias», dissera ele.
E acrescentara: «Pensar o nada, assim como o verme dos mortos pensa um
cadáver, seu fétido universo.»

... esse peso que pousa a leveza.

O ser é linguagem? A linguagem é reconhecimento do ser?


O ser põe em xeque a linguagem – que não pode circundá-lo – mas a linguagem
põe, ela mesma, em xeque o ser – que não pode amestrá-la.
O ser seria, pois, apenas suas possibilidades de ser pela linguagem e a linguagem,
uma possibilidade, pela via do ser, de obter um estatuto de existência.
O laço do nada com o nada.
Do Nada com o Nada.
Do vazio com o vazio.
O traço de união em cinzas.

«E se o passado – o que não espera mais –, o presente – o que espera – e o futuro


– o que rompeu a espera – fossem, todos três, o frágil esquife que, não desempatando
mais o tempo, introduz sua própria duração no seio mesmo do instante?», dissera ele.
E acrescentara: «O passado, o futuro, não são, no entanto, do escrito, o
presentemente presente mais o ante e o pós presente, no que, à medida, se escreve.
«Dimensão insuspeita do texto.
«Os quatro horizontes não se disputam o cascalho?
«Nenhum vocábulo para a eternidade.
«O livro é escritura do tempo.
«Arranhaduras.»

O silêncio nos precede. Ele sabe que o apanharemos de volta.

E se o tempo fosse apenas instinto da duração? O instante seria apenas


consagração do olor do tempo. Seiva, ó movimento do sonho no caule olorado; o que, na
flor, se alinha sobre o infinito desejo da flor, afluxo de infinito.
Assim, pensar seria, talvez, pressentir. E o pensador, uma espécie de mago; um
homem-adivinho, divinamente humano – dos sentidos excepcionalmente afinados?
«O pensamento – havia ele escrito – é o fruto de uma particular sensibilidade do
espírito ao mundo ambiente; a infalível intuição do último devir do homem.»

Difícil é, às vezes, o fácil.


Desleal dificuldade.

«Dos dez fios trançados, dos quais, a princípio, são formados nossos laços, um só
que permanece na sombra é, geralmente, causa de irremediável ruptura», dissera ele.

A verdade se oferece a nós toda nua. Nós a ornamos de véus.


A cada vez que pomos um deles sobre seus ombros, cremos ter dado um passo a
mais no Verdadeiro, como se ir à verdade fosse, progressivamente, obscurecê-la.
O deslumbramento não convém ao homem:
A prova: ele o cega.

A qual cálculo, a natureza se entregou para, a tal ponto, desgraçar o deserto?


A verdade, irmã do grão de areia, talvez, seja só a sabê-lo.

«O deserto não é a morte. Ele não é, tampouco, a vida. Ele é a prova de viver; a
prova de força empenhada, pela vida, contra a morte militante.
«... como ele fora, outrora, a prova da liberdade e do amor», havia ele notado.

Revestir de uma armadura


a vida.
Desequipar a morte.
Utopia.

O Eu não é o que está em jogo, mas o jogo em...


Espelho. Espelho.

Silêncio: sono de pássaros.

«O conhecimento – dissera ele –, por origem, tem, do não-conhecimento do qual


ele é oriundo, o não; negação, igualmente, da origem.
E acrescentara: «O não-dito não é, obrigatoriamente, o não-pensado; mas, o não-
pensado é, sempre, o não-dito.»

A criação se pensa no futuro, na esteira de um futuro menos próximo.

Provedor de proas, ó pensamento, intrépido pensamento!

Povo judeu, contemporâneo de um passado e de um porvir aos quais tu dedicaste


tua voz.
A morte, para ti, jamais fora morta; a vida, a ti, nem uma vez, tirada.
À fidelidade de tua memória, tu deves tua perenidade.

ROSTOS

... esse mundo tem um rosto: o nosso.

Vira, para mim, teu rosto.


O universo é, de verdade, tão pequeno?

O rosto envelhece com o nome já velho.

Estrangeiro. E tanto tenho errado. E, quantas vezes,


reedificado?

Que tenho eu, ah, dizei, vós que me conhecestes,


que tenho eu guardado para mim?
Absolutidade do Nada.

Tivéramos nossos reis.


Mas, esses reis estão mortos.
Tivéramos nossos príncipes.
Mas, esses príncipes pereceram.
Tivéramos nossos sábios.
Mas, sábios, eles viraram a página de sua vida.
Fôramos um povo.
Mas, esse povo se dispersou.
Somos o livro,
no coração do incêndio.

Com as chamas que, uma noite, lamberam nossos


livros, pintaremos, sobre cada guarda-fogo, um rosto
vivaz.

O fogo não é o fogo enquanto não nos tiver


queimado.
Ele é a imagem enganosa do fogo.

O Nada está ligado ao Nada.


Supremacia da corda.

Um sopro e tu existes. Pouco a pouco tu sais do


anonimato, sem duvidares que é para ele que tu te
encaminhas.

Teu rosto reflete tua idade. Se tu envelheces, é porque vives. A idade de teu rosto
é a que a morte dá a ele.
Visível, através de seus traços, é tua vida; perceptível, tua morte, através de suas
rugas.
Beleza do que respira; hediondez do que expira.
A hora virá em que, para sempre, teu rosto se desviará de teu passado.
Ele se oporá impiedosamente a si mesmo.
Toda reserva de presente é excedente repisado de passado.

Acolhendo o rosto celebramos o mundo.


Repelindo-o, nós condenamos este.

Não há absolutamente, para o homem, crista inacessível.


A morte bem o sabe, guardiã da mais alta.

É necessário muito amor para sobreviver ao amor que em seu paroxismo pode,
sem se desdizer, se transformar em ódio: ódio pelo outro no amor louco por si.

E se a sabedoria não fosse senão ternura do espírito pelo coração?

Antecipa. Recapitula. Tua vida é tanto o instante passado quanto o instante que o
ultrapassa.
Não aceleres de nenhum modo o passo. Toda pressa seria funesta. Nem recues.
Luz, ar, voz, tua vida vibra.
Tua alma é vida.

Como a tristeza ou a alegria, como a fadiga ou o repouso, o tempo tem seus


rostos.
Fascinada por todos, a eternidade os toma, um por vez.
Através das brumas enfraquecidas da ausência, uma figura, que permaneceu até
aqui em retiro, transparece. Honra teu olhar.
Não há retratos sonhados.

Escrever sendo, principalmente, buscar se manter no texto, descubro, hoje, um


parentesco singular entre o escritor e o adepto apaixonado desse jogo antiquado de cartas
chamado reversi, em que o ganhador é aquele que faz menos lances.

O escritor não tem nenhum passado. Tal o livro.

Reverdecimento do espírito, ó devaneio.


Sonho, mas tão discreto, tão modesto: o sonho de um grão de arroz.

Tão carregado de séculos é o livro que tu exumas.


Cada uma de tuas frases o rejuvenesce. Ó traição. Suprimir, nas margens, o
obelisco, basta para fazer dele teu livro?

O pensamento só clareia o pensamento.

Os mortos têm sua mortalha. A morte, suas trevas.


À alma permeável, seu revestimento protetor de ínfima espessura: um filme.

II

Um rosto do qual só restariam as rugas. Um rosto em sua cotidianidade


estilhaçada, em sua eternidade confusa.
Não reivindicado. Tendo oscilado para o outro lado do horizonte, arrastando,
consigo, o tempo.
Aqui, o passado retornado ao passado. Lá ao longe, o porvir semeado de
desconhecido.
Ó rasgos. O infinito não é o mar estagnado, dourado pelo sol, nem a noite, velada
pelas altas estrelas.
O infinito está adiante. O que resiste ainda é, provavelmente, o que tinha, para si,
a duração.
Mas, não é esta duração que, constantemente, é ameaçada por si mesma? A
ameaça não vem do instante sacrificado.

O que destroi inspira alívio ou lamento; jamais é causa de pavor. O que teima em
perseverar, ao contrário, acachapa por sua insolência.

De carne e osso e, também, de aéreos pensamentos, somos votados à redução ao


nada. O que não pode morrer tem, sobre nós, a superioridade de seu estranhamento, a um
só tempo, angustiante e fascinante.
Aspirar a ser. Não ser, doravante, senão essa aspiração e fingir ignorá-la. À nossa
morte natural, junta-se uma outra: aquela que se abate, indiferentemente, sobre a Criação
e da qual somos a vítima aterrorizada e a lúcida testemunha.
A eternidade não se agarra ao fugaz instante, mas ao instante glorioso que se
incrusta.
Medo de perecer e de sobreviver, duplo medo que zomba de nossa impotência e
faz tremer o livro.
Escrevo, não para acabar, mas para prolongar esse tremor, como se não se tratasse
mais, para mim, senão de alimentar esse medo mesclado de alegria sem o qual eu não
existiria mais.
Deus não é a morte, assim como Ele jamais fora a vida: Ele é, de ambas, a
insondável ambiguidade; pois, o que é morrer, senão nascer para a morte; e o que é viver,
senão morrer para a vida?
Deus é salvo por Sua ausência de rosto. Ele cria o incomparável rosto a partir
daquele que fora, talvez, o Seu. Ele é suprema criação mas, sendo, igualmente, soberana
destruição, Ele é sem semelhança e, como o vazio, sem respondente.
O desejo de criar nos liberta da Criação. Esse desejo, por outro lado, não sendo,
para ser direto, senão desejo de si mesmo, firme determinação de produzir, suplanta a
Criação. Criamos contra a Criação na liberdade que ela nos outorga.
E se Deus fosse apenas divina paixão do universo pelo universo, a concreta
confirmação dessa perene paixão?
E se, para a ausência, a presença fosse breve tomada de consciência de sua própria
realidade, o esboço de uma possível imagem de sua demissão, a súbita vontade de um
rosto?
Errância na ausência incomensurável de Deus.
A mosca ousaria se comparar à águia?
Projetadas, as asas pontudas do céu, a cada batimento, arranham os dois
horizontes. O sol é seu coração. Suas asas recolhidas, o céu priva de espaço a luz. Juntos,
eles soçobrarão. Fatal fraqueza do infinito.
A noite é o precipício onde jaz um pássaro defunto, em torno do qual choram as
estrelas. Ó luto, ó infinito. E, ao longe, por toda parte, importunados pelo fogo, esses
olhos úmidos de ultra-vida, dolorosos, terríveis.
Temos apenas uma história, aquela imperturbavelmente repetida, do planetário
clarão que, no momento adequado, deslumbrou o universo.
Nossa história está em nossas pupilas. Cada imagem nos restitui nosso rosto. A
morte é, provisoriamente, posta em xeque, ó figura do mundo, tornada a nossa.

Um muro se ergue em tua passagem. Olvido endurecido pelo olvido. Porvir de um


passado esquecido; mas, usura dos anos, esse muro, por vezes, se racha.
Agrava, se tens os meios para tal, suas fissuras, oportunos reencontros do passado.
Entramos no futuro com uma bagagem limitada. Proibição de tudo carregar consigo; mas,
quem nos ordena isso? Ao cabo da luz, apagamo-nos, enfim nus, por entre as sombras.
A maldição está sobre nossos traços. Rosto de pária.
E por que não, em sua miséria, rosa resplandecente, figura de profecia, ou, melhor
ainda, em sua amarga esperança, erva teimosa das areias, subtraída ao tempo?
Planta estéril, dádiva para o Nada.
Festividade. Núpcias celebradas do despojamento e do raiar.
A realeza é interior.
A sede contém mais água que o oceano.
O mar retirado, ó rosto amarrotado. Tu o reconheces? Lastimável rosto de uma
vida.
Todavia, não era ele que tu escrutavas mas um ponto fixo, indistinto; apesar de
tudo, tão nítido.
Rosto do livro. Teu rosto refletido pelas palavras.
Para cada família, seu álbum de retratos. As nações têm seus manuais de história;
os povos, suas lendas; os homens, suas recordações, as poucas coisas das quais se
recordam.
O rosto não está lá onde ele se recorta mas onde ele se alivia do peso de sua
aparência, de seu preito.
Esse rosto desconhecido de meus olhos, mas tão familiar à minha alma, eu o
reconstituo em seus menores detalhes. Ele fora, outrora, lugar puro do espírito,
encruzilhada de pensamentos aventurosos, antes de ser, na plenitude de seu
desprovimento, rosto de abismo.
Recordo–me de um dia quando, contemplando, em sua beleza crepuscular, o rosto
cavado de um sábio debruçado sobre seu livro, tive o sentimento, a quase-certeza de que
a eternidade o elegera para marcar, vivamente em sua carne, suas idas e vindas
clandestinas.
A eternidade obra em segredo. O que a trai não é jamais senão o derrisório
traçado de uma caducância.
Rugas que não são absolutamente dobras da pele mas, talvez, linhas no último
estágio de apagamento dos vocábulos, onde mais nada está por ler.
O pensamento, geralmente, está em atraso consigo mesmo. Jamais o livro está na
rabeira do livro.
Inocência. Inocência.
Criança, eu chegara, com a ajuda de algumas varinhas ou fósforos, a reconstituir a
paisagem com a qual eu sonhara na véspera.
Eu conseguia introduzir nela personagens com os quais eu entretinha relações
misteriosas e estreitas.
Seus rostos não me deixavam. Não posso, entretanto, daí concluir que eles me
intrigavam.
Eles eram presentes tais a morte e a vida. Identificáveis através do que, sem eles,
continuava a ser e que tinha somente sido.

Semelhante ao da rosa, perdendo sua primeira


pétala, quem dirá como um tão fraco tremor pôde
sobreviver ao livro?
– O livro não diz senão esse arrepio.
NA DEPENDÊNCIA DO LIMIAR

A sombra só é transparente para a sombra.

O saber adquirido, precário apoio.

O que me pertence é o que mantém-se ainda no seio


do que não me pertence mais.
Uma rolha de cortiça ao mar.

A sabedoria não é por saber mas por ter sabido.

Tal o zangão, contra a vidraça, o instante se choca com o infinito e perece das
feridas que ele, a si mesmo, infligiu.
«Somos vis blasfemadores – escrevera um sábio. No Livro de Deus interpolamos
cinicamente fragmentos, a cada vez mais largos, de nossas obras.
«Adjunções – nossos únicos bens – face ao bem – o único – de Deus.»

Sonho com esse menino desconhecido cujo nascimento coincidirá com o instante
de minha morte: um instante para a vida e para o nada.
E fico pensando comigo que o habitaremos, ambos, eternamente; eu, assegurando,
nele, a continuidade do que cessou de ser; ele, extraindo dele sua vida.

Fazer a junção entre a vida e a morte, ó lucidez! Ser esse nó reforçado pelo
instante.
E se a morte fosse seu brusco desnodamento?

Fazer a junção entre o que, por não ser, o é sem reserva, e o que, por querer ser
absolutamente, não é mais.
Ó sono. Ó despertar.
Indecisa é a fronteira.

Um duopólio, a associação do escritor e do livro.


Vender o Nada por quase nada.

Indivisibilidade de Deus, todo signo abolido, no seio do Nome.


Lugar melhor defendido, o mais seguro, do silêncio. Lugar sem lugar ou, antes,
lugar no não-lugar do livro.

Germinadouro. Amanhã, semearemos.

«Do céu à terra, da base ao cimo, o sono segue, na noite, o cego movimento de
nossos olhos e espreita o momento em que a fadiga se apossará deles para enfim reinar
sobre nossa alma e nosso corpo, doravante à sua mercê.
«Mas, singularmente, é o sono que, ao levantar do dia, nos cede novamente
nossas forças», havia ele escrito.

O homem adormecido é tão fraco quanto a noite.

«Nosso poder, por mais estendido que seja, não é jamais senão acessório,
portanto, negligenciável, face ao de Deus.
«E, no entanto, o poder de Deus cessaria, tão logo, de se exercer sobre o mundo,
se, subitamente, lhe fizesse falta o suporte do nosso», havia costume de dizer um sábio a
seus discípulos.

«Restavam tantas coisas a dizer àquele que havia tomado a firme resolução de se
calar, que ele se abriu, uma manhã, as veias, a fim de dissuadir, por esse gesto
espetacular, toda eventual palavra, de fazer ainda apelo a ele.

«Não o imites, isso seria absurdo, pois inútil.


«A palavra é volúvel. Um outro que ti se apropriaria dela imediatamente», dissera
ele.
E acrescentara: «Não acabrunhes as palavras. Elas têm, por vezes, muita labuta
para nos atingir, lá onde não estamos jamais seguros de estar.»

Resistir frontalmente ao silêncio.

«Um sonho fora meu bem de um dia; a pobreza, o


de sempre», dissera um sábio.

Escrever, talvez, seja apenas aclimatamento;


gradual costumagem à noite da palavra.

Não percas de vista a origem. Tu não podes te


aproximar dela senão por origens interpostas.

Não dizer: «Ele morreu de...» mas «Ele morreu,


provavelmente, de...»

Introduzir a noção do problemático no texto.


Abertura.

Turvar a água com um pouco de cinza.


Conceder o imprevisto, o aleatório.
Destronar o sistemático.
Obter a rubrica do possível.
Alargar. Alargar a margem.
A marca é a impressão da morte.
A caducância.

Vemos apenas o porvir. E, no entanto, é o presente


que nos mata.

Olhos vazios de escrutar o espaço; nada senão o


infinito, o céu infinito. Azul, azul antes de ceder à noite.
O nada pode, também, dar mostra de suas cores.

Ele olhava o mar morrer no mar e ficava pensando


consigo que a vida se sustinha a um olhar.
Deus baixa os olhos e nós não somos mais.

Em Auschwitz, todos os olhares dos deportados


alinhados estavam fixados sobre o polegar direito do
guarda graduado. À esquerda, a morte; à direita,
provisoriamente, a vida.

Mas, os recém-chegados ao campo apenas viam


nisso o incompreensível balanço do dedo de um
funcionário em função.

E se o silêncio fosse a palavra que, por não mais


nada designar, designa ainda esse nada à ausência?
Uma falha na estrutura da linguagem – fendimento
ou então fingimento do vocábulo?
E se ele fosse apenas o tempo vital de uma
respiração?
Legibilidade, audibilidade sempre em jogo.

A palavra se obstina a reconhecer apenas a palavra.

Onde o rio se contrai, a água é privada de espaço,


aumentando destarte sua pressão sobre suas ribeiras.
Mas, é às fontes ou à terra que se incumbe tal
responsabilidade?
Vermelho é o fundo do rio.
O mar não tem outro confidente que o mar e outras
testemunhas que o céu.
Há apenas um só infinito.

Mais que negação do provável, o improvável seria


apenas a impulsiva ou – quem o dirá? – a instintiva
demissão deste? A alegria tranquila, por si mesma, de
não ter, doravante, nada a esperar do futuro?
Fugidio horizonte do que foi.

O LIVRO LIDO

Quando a cinza se faz livro póstumo, as palavras


renascem de seus primeiros sons.

Audível é a pós-morte. Tê-la-emos tornado legível?

Tu cessaste de ouvir. Para ti, o universo foi.


Tu te uniste à origem onde, divina, a palavra
engendrou o silêncio.

«Olho silencioso. Mão salva do zunzunzum


ambiente.
«Nós só lemos, só escrevemos o livro do silêncio»,
dissera ele.
Uma página de céu. Uma página de areia.
Um livro em cinzas.
No meio, a um só tempo os separando e os unindo,
o traço a oco de uma vida sem saída.

Ele pensava ter sepultado seu livro.


Ele tinha somente enterrado suas mãos.

Pouco antes de sua morte, um sábio tomou a decisão de legar, a cada um de seus
discípulos, uma parte de seu bem mais precioso.
Mas, como lidar com isso quando se trata de um livro?
Ele os reúne, em torno de si, e lhes diz: «Cada livro é cinzas recolhidas do livro
único que nossas palavras abrasadas vêm, periodicamente, engrossar.
«Não há leitura do livro. Lemos apenas sua consumação pelo fogo,
incessantemente reanimado, da criação.
«Uma chama é nossa pluma.»
E ele partilhou, entre eles, equitavelmente, um punhado de pó cinza.

«Um sábio cego, um sábio mudo e um sábio atingido de surdez, formariam juntos
três sábios enfermos, se todos três não fossem, na realidade, senão o mesmo sábio: cego,
face a Deus; mudo, face ao Texto e surdo às seduções de nossas frívolas palavras»,
dissera ele.

Seria necessário considerar a infância como o primeiro desvelamento da origem; a


adolescência, como o segundo; a velhice, como o último.
A vida põe a nu a origem.
Noite constelada. O tesouro escondido.
Claridade. Claridade.
Um raio de sol nos terá servido de caminho, mas era apenas um traço
luminescente, puxado, sobre nossa existência, pela morte.
Nascemos e morremos, banhados de luz.
Provavelmente, a mesma.

«Deus é por toda parte. Aqui e alhures.


«Após ter sido todas as letras do alfabeto, Ele é todos os acentos faltantes do
Livro», havia ele escrito.
E acrescentara: «O Livro divino engloba todos os livros inacabados dos homens.
«Assim, crendo ler Deus, lemos apenas a nós mesmos.
«Fortalecidos dessa significativa descoberta, não estamos no direito de afirmar
que Deus é em nós e que a alma é uma das páginas imaculadas de Seu Livro?»
«A morte – dissera um sábio – talvez, seja apenas o livro de uma vida, cujas
páginas foram rasuradas.»

« Veio a hora, para ele, de abandonar seu livro.


Ele o tomou, entre suas mãos, não para relê-lo mas, com uma longa e leve carícia
dos dedos, página após página, linha após linha, a fim de acalmar para sempre, ao fechá-
los – vocábulos dos quais não resta mais, às beiradas do abismo, que o olhar – os
milhares de olhos interrogativos fixados sobre ele.
Todas as estrelas do céu se apagaram, imediatamente. Confrontado, pela primeira
vez, com a noite total, a absoluta negatividade do incognoscível o paralisou.
Não é o nada que nos para mas a visão do Nada.

Pela primeira vez, ele se sentiu sem peso. Aliviado ao extremo. Desagregado.
Ó cinzas de litigiosa imortalidade, na radiosa imortalidade em cinzas de Deus.

Poeira, poeira, Deus se desvia de si mesmo.


Podia ele, sem reagir, aceitar sua derrota?
Perdurável história da poeira. História do homem e do universo.
Não temos pagado bastante caro nosso sonho comum de eternidade?
E, Deus, sabia Ele que a imortalidade era apenas o avesso da morte?

«Quando Deus quis destruir a terra, um grande fogo jorrou do chão, arrastando-a
no incêndio.
– Mas, Deus não está morto.
«Quando Deus quis quebrar o mar, uma gigantesca vaga se destacou das outras e,
em seu furor, o carregou.
– Mas, Deus não está morto.
«Quando Deus partiu, ao abri-lo, o livro – ó desolação – uma paisagem de ruínas
se ofereceu a seus olhos.
«E ele se afogou em suas lágrimas.
– Mas, o homem vive ainda.
«Tal é o milagre», diz ele.

«Todo ato de pensamento, de amor, de vida necessita de um desvio pela morte.


«A origem está lá.
«Olvido fecundo», diz ele também.

Abrir, ao naufrágio, o nada.


Divisão das águas! Nossos limites são interiores.

Assegurar o revezamento. Do livro ao livro.

Aproxima-te. Toma teu bem onde enterrei o meu.


O livro, talvez, seja apenas, em sua infinitude, parcial partilha do vazio onde se
escreve o mundo com as palavras incertas do destino.

Global é a visão divina da Criação e, no entanto, o


ínfimo detalhe é sua caução.

«Um só vocábulo basta para designar o universo; –


dissera ele – mas a quantas palavras precisamos recorrer
para entreabri-lo?»

O EXEMPLO

Clarão providencial.
Entre fogo e fogo,
onde passam as andorinhas,
onde a passagem é partilha.

– O julgamento do rei Salomão é o julgamento de Deus? – perguntou um homem


da lei a um sábio.
– Deus o inspirou, respondeu Deus
– E o sublime sacrifício da mãe, reduzindo a nada a sentença inumana de seu
Deus e de seu rei?
– O Senhor o inspirou, igualmente.
– Isso me tranquiliza, diz, então, o homem da lei, pois, em matéria de partilha,
Deus é tão noviço quanto nós.
E desmunido, face ao que é justo.

Cercada, em sua área estreita, está a Justiça. O juiz aí morre, por vezes, asfixiado.
Abrir, ao aberto, o vão.

Páginas queimadas
I

Corta impunemente na carne do incêndio.


A partilha tem, por lâmina, a chama.

Não há nenhum limite que não seja profundamente


provado.
– um fio de sangue e eis, já, uma fronteira a
transpor.

O livro da partilha é o livro dos limites.


De um lado, a efêmera claridade de uma lâmpada;
do outro, o escuro desconhecido.

A partilha, talvez, tenha apenas por objetivo


levantar um lance da espessa cortina noturna de nossa
solidão.
«A justiça partilha o remorso do justo», havia ele
notado, um dia, em sua caderneta surrada.

Não escapamos a nós mesmos. Experimentamos


essa realidade.

Haverá sempre, no deserto, mais areia do que


poderia levantar o vento e, em nossas mãos, mais cinzas
do que elas podem conter.

«Pensar a partilha – dissera um sábio – é colocar em causa a moral e o direito;


é, também, colocar em questão as noções de felicidade e infelicidade; é, ainda, fazer o
processo da humanidade, da vida e da morte.
«Tudo está por partilhar e nada é partilhável: a sina do homem, assim como a do
mundo. Sobre essa dificuldade, inerente à sua natureza-mesma, se funda, talvez, a
reciprocidade do dom.»
E acrescentara: «E, no entanto, existir é se abrir progressivamente à partilha; é
partilhar a vida com a vida, a alegria com a alegria, a dor com a dor, a morte com a
morte; o instante, em suma, com o instante.»
A partilha seria, em si, apenas arbitrária apropriação?
Ao nascer, eu me aproprio da vida; ao morrer, faço mão-baixa sobre a morte;
aposso-me, sem saber, do além.
Uma ação só se pode julgar em sua plenitude; um sentimento, igualmente. Nossos
comportamentos nos são próprios.
Nós agimos, como se tivéssemos o direito de agir destarte. Nós nos movemos,
como se fôssemos sós a nos deslocar.
De nossas inclinações ou de nossas repulsões, infinitamente diversas são as
motivações. O motivo é pessoal.
Nós pesamos sobre os homens, com todo nosso peso de razão, sensibilidade,
complexidade ou de indiferença. É necessário nos aceitar tais como somos. Assim, atam-
se nossas relações com outrem. Assim, operam o tempo e a eternidade aos quais somos
submetidos.
Pode-se, nessas condições, encarar, com serenidade, a partilha de um bem
determinado: ouro, prata, amor, convicção, ideal, ideia? E qual valor conceder a um
dom que, de ofício, exclui a equitável partilha? Ele preencherá um e decepcionará outro,
seu valor sendo subjetivo.
Aí reside a dificuldade. Ela provém, não da natureza do bem, mas de sua
destinação, a despeito da escolha; pois a justa partilha se apoia na mesma capacidade
de gozo do bem recebido; ela implica uma mesma ideia desse bem, um mesmo interesse
para ele.
Mas, quem saberia estimar, em seu verdadeiro preço, o que ele possui? Não
possuir nada é, também, possuir esse nada. O nada, como o tudo, não se partilha, não
sendo jamais senão um nada ou um tudo no infinito do tudo e do nada cuja medida
ninguém, em nenhum momento, chegará a tomar.
A impossibilidade da partilha se deveria às nossas diferenças?
Partilhar um amor, viver, a dois, a mesma vida, não é, em definitivo, senão viver,
em sua completude, sua parte de amor e de vida. Não temos, através do outro,
relacionamento senão com nós mesmos. A partilha está nessa condição; é por isso que
ela é, em sua base, ilusória. O outro nos restitui a nós mesmos e viceversa.
Partilhar uma cama, uma refeição não é jamais senão obter, para si, um lugar
em uma cama ou uma parte da refeição; mas, esse lugar consentido, essa parte de
alimento variam necessariamente segundo nossa corpulência ou o grau de nosso apetite.
Uma cama, uma refeição, assim como uma existência, não se partilham jamais pela
metade.
A troca não é a partilha; pois, ao contrário desta, ela implica a conivência.
Em uma troca, nós damos menos ou mais do que colhemos. Isso não poderia ser
de outro modo.
O livro é sua perfeita ilustração.
Ninguém partilha um livro, mesmo que fosse apenas por causa da diversidade
das abordagens que ele suscita.
Um livro nos reenvia a um só livro: o da nossa leitura.
Não teremos, tendo-o lido, nada partilhado mas guardado tudo para nós ou tudo
concedido sem contrapartida.
Ao exemplo esmagador de Deus.

«Como ler uma página já queimada, em um livro


que queima, senão apelando para a memória do fogo»,
dissera um sábio.

Ele dissera também: «O rastro deixado por um


livro, talvez, seja apenas um tenaz odor de instantes
queimados.
«O tempo necessário para um pequeno monte de
cinzas para acabar de se consumir é aquele variável, de
sua duração.»

Ele dissera ainda: «A chama se recorda apenas da


chama.
«Assim, o pacto com o livro seria apenas pacto
assinado com o fogo.
«O nome perece primeiro.»
Ele dissera por fim: «Ninguém pode se servir senão
de palavras conhecidas; é por isso que todo livro que se
escreve é um livro já lido.»
E acrescentara: «Escrever, talvez, seja,
desesperadamente destruir a mesma obra, obsedado
pelo livro que ninguém jamais fará.»

Ó pensamento, purificado pelo fogo.


Límpida é a eternidade. O homem sabe disso?

Basta se aproximar do céu para, tão logo, se


reencontrar na pele de um anônimo intruso.

A morte é mestra da partilha.

Essas poucas páginas queimadas eram, na origem, páginas confidenciais de uma


carta. Eu soube disso muito tempo depois que o fogo as houvera restituído para mim.
Carta que, verossimilmente, não havia alcançado seu destinatário – ou sua
destinatária –; pois, por mais estranho que isso possa parecer, o envelope que a continha
estava intacto e ainda colado.
A qual meta inquietante ela fora escrita? Tão rasamente, por outro lado, tão
impudicamente insistente que a urgência só poderia escusá-la.
Converter para destruir.
O envelope se encontra, desde então, em minhas mãos. Acreditei, um momento,
ler nele, sem infelizmente conseguir, um nome que eu tenho ainda na borda dos lábios,
não tendo jamais chegado a articulá-lo; mas, talvez, ele seja o da jovem mulher, privada
de identidade, que veio, uma manhã, mo perguntar; nome que havia sido o seu e que ela
havia misteriosamente esquecido.
E se esse nome fosse, também, aquele que eu, em vão, reclamei para mim mesmo
e que corrói, perfidamente, o nome que uso?
E se essa missiva fosse aquela que um carteiro desconhecido, um dia, depositou
em minha mesa e da qual eu só soube decifrar, no alto da página, dois signos: L.M.?
Jamais a chama reduzirá ao nada o enigma.
«Com meus livros, alimento o fogo e ele me
alimenta com minha morte», dissera um sábio.

«O porvir repousa sobre uma triagem extravagante


e nós só vemos aí fogo – dissera, também, esse sábio –;
pois ninguém saberia prolongar o que está perdido nem
abolir o que continua.»

Uma trégua: o sonho.

«Escuta. Não penses que tudo esteja


definitivamente destruído.
«A chama, ao queimar, não desfia, para a chama,
certas frases, piedosamente retidas, de nossos livros
consumidos?
«Basta esticar a orelha para, distintamente, as
reouvir.
«Ó salmodia de nostálgico incêndio», havia ele
notado.

«Como partilhar o nome, de quatro consoantes


desvozeadas, de Deus?», questionara ele.
«Só teremos partilhado o silêncio.»
E ele acrescentara:
«Por outro lado, se ninguém pode tudo partilhar, o
que resta e restará sempre fora da partilha? O que é
que, no seio do que nos pertence, não terá jamais sido
nosso?
«E se só partilhássemos o vital desejo de partilhar,
único meio, para nós, de escapar à nossa solidão, ao
nada?»
AURORA

Fazer a parte do fogo, onde se desfralda o escrito.

O fogo se ataca ao livro por suas extremidades


vulneráveis.
Ah, um instante de mais, salvar, das chamas, as
poucas palavras de uma vida sobre as quais o acaso quis
que ela se extinguisse.
Um sábio não dissera: «Após tê-lo aberto, lança ao
fogo teu livro, para que cada uma de suas palavras seja a
presa familiar da chama que o leu?»

...eu o vi se distanciar. De costas, eu não conseguia identificá-lo senão por sua


marcha.
É justamente esse homem que tenho acompanhado por toda parte? E, por qual
razão, eu, desta vez, o deixei prosseguir só seu caminho?
Uma indizível lassidão me invade. Renunciar a partir, a errar.
Sento-me na divisa perto da qual eu me encontrava.
Passos, que eu adivinhava próximos, me fizeram, repentinamente, sobressaltar.
Já. Retomar, já, a estrada.
O homem, meu guia, meu companheiro, meu duplo temerário e impiedoso, se
postava diante de mim.
Abri, com uma certa pressa, o livro que ele me estendia. À medida, entretanto,
que eu tentava decriptá-lo, o texto ia se apagando.
Atrás de nós, restos abandonados de um fabuloso incêndio, os últimos tições
vermelhantes de minha alma, davam sinais de esgotamento.
Ah escrever, escrever, para manter vivo o fogo da criação; fazer ressurgir da
calma noite em que elas estavam enterradas, as palavras ainda espantadas com sua
ressurreição; mas, é somente, ó funesta loucura, a fim de entregá-las às impacientes
chamas do devorante nada que as revelará à morte, o sofrimento sendo, também, seu
quinhão?

Aurora, imenso desejo do livro.


Sabíamos nós, ó fatalidade, que a deslumbrante
manhã era, deserto de cinzas, apenas miragem de além,
onde o fogo está em seu zênite?

«O livro da partilha, dissera ele, talvez, seja apenas


o livro de uma esperança partilhada das palavras de que
o alvorecer e o crepúsculo – ó claridade de toda clave –
foram o despertar e o termo.»

Do ardor de um primeiro fogo ao desfiguramento de


um fogo agonizante, teremos, com palavras reluzentes,
divisado o abismo.
SUMÁRIO

I – O PEQUENO LIVRO DA SUBVERSÃO FORA DE SUSPEITA (1982)

Caderneta

A questão da subversão
Pequenos limites ao ilimitado
A folha, como lugar de subversão da palavra e da brancura
Fora-de-tempo, o sonho do livro
Da solidão, como espaço de escritura
A ante-morada
O interdito da representação
Os três «Rogo de inserir» do Livro das Semelhanças, retornados à areia
Do pensamento, como criação e destruição do ser através da palavra
Da palavra-chave, como criação e destruição do ser através do pensamento
A ausência, como origem, ou a paciência da última questão

Areia
II – O LIVRO DO DIÁLOGO (1984)

O começo do livro
Diálogo entre a vida e a morte na palavra
Partilha dos lugares

O ante-diálogo, I

O ante-diálogo, II

O SONHO
A FOICE O FALSO
A LINHA DE DEMARCAÇÃO
A PROFECIA O MEDO
O DIREITO À LIBERDADE

Caderneta, I

A SOBRECARGA
O LIVRO
LENDA
NESSE LIMITE INSUSPEITO
A ANTE-QUESTÃO
A QUESTÃO
A SOLIDÃO DA QUESTÃO
A PALAVRA ‘DEUS’
O DESERTO
ALARGAR OS HORIZONTES DA PALAVRA
O DESPERTAR
A INSÔNIA

Caderneta, II

PÁGINAS REENCONTRADAS

O pós-diálogo

O abismo

O DESERTO, II

O diálogo

III – O PERCURSO (1985)

Ante-dizer
O estrangeiro
Os começos
O relato
O espírito
O nó e a subversão, I
O escrito A escritura

O Percurso

Método
Primeiro passo
O tempo O escrito
O nó e a subversão, II
Porvir e devir judeus

Judaísmo e escritura

A chave
Os dois limites
O paradoxo
A imagem O escrito
A linha de horizonte
Imagem do exílio
O livro lido, aqui, inicia a leitura do livro

IV – O LIVRO DA PARTILHA (1987)

O tormento do livro

O Livro

A herança, I
A herança, II
A herança, III
Selagem e sedição
Adão, ou O nascimento da angústia
Grisado
Língua fonte Língua alvo
O sonho
Três lendas
A parte do bem

O ilimitado O limite

A cartada
Prolongamentos

Ligação
Uso
Rostos
Na dependência do limiar
O livro lido
O exemplo

Páginas queimadas

Aurora

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