Questões Regulatórias em
Biotecnologia, Biodireito e
Temas Interdisciplinares
Claudia Ribeiro Pereira Nunes
Cleyson de Moraes Mello
Leonardo Rabelo
(Coordenadores)
Rio de Janeiro
2018
Editora Processo
Tels: 3128-5531 / 3889-8181 / 2209-0401
www.editoraprocesso.com.br www.catalivros.com.br
Distribuição exclusiva da Catalivros Distribuidora Comércio Ltda ME
Copyright © 2018 Claudia Ribeiro Pereira Nunes; Cleyson de Moraes Mello; Leonardo Rabelo
Todos os direitos reservados.
Conselho Editorial
Maria Celina Bodin de Moraes (Presidente)
Luiz Edson Fachin
Ana Carolina Brochado Teixeira
Ana Frazão
Antônio Augusto Cançado Trindade
Antônio Celso Alves Pereira
Caitlin Sampaio Mulholland
Carla Adriana Comitre Gibertoni
Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho
Cleyson de Moraes Mello
Eneas de Oliveira Matos
Eugênio Facchini Neto
Fernando de Almeida Pedroso
Hélio do Vale Pereira
Joyceane Bezerra de Menezes
Marco Aurélio Peri Guedes
Marcos Ehrhardt Jr.
Maria Cristina De Cicco
Mariana Pinto
Martonio Mont’ Alverne Barreto Lima
Mauricio Moreira Menezes
Melhim Namem Chalhub
Ricardo Calderón
Sergio Campinho
Capa: Sheila Neves / Editoração Eletrônica: Deoclécio Serafim
CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.
PEREIRA NUNES, Claudia Ribeiro. MORAES MELLO, Cleyson de. RABELO, Leonardo
P342d Diálogos em direitos humanos, questões regulatórias em biotecnologia, biodireito e
temas interdisciplinares – estudos em homenagem ao prof. dr. Pedro Diaz Peralta / Claudia
Ribeiro Pereira Nunes, Cleyson de Moraes Mello, Leonardo Rabelo – Rio de Janeiro:
Processo, 2018.
427 p. ; 23cm.
ISBN: 978-85-93741-24-1
CDD 343.810922
Funções Atuais
– Pesquisador Visitante da Universidade Veiga de Almeida
– Investigador Visitante da Universidad Complutense de Madrid
Real Colegio Complutense no Institute for Global Law and Policy em Harvard
Law School
– Visiting Scholar em Real Colegio Complutense, em 2006-2008, com a pesquisa:
Aspectos relacionados à propriedade intelectual sobre comércio e comercialização
de plantas medicinais tradicionais e alimentos à base de plantas suplementos
André R. C. Fontes
Presidente do Tribunal Regional Federal
da 2ª Região (Rio de Janeiro e Espírito Santo)
Palavras da Coordenação
Coordenação Geral
Claudia Ribeiro Pereira Nunes
Cleyson de Moraes Mello
Leonardo Rabelo
SUMÁRIO
Prefácio
André R. C. Fontes ......................................................................................... xvii
Palavras da Coordenação ..................................................................................... xix
Artigos
O Acordo sobre aspectos dos direitos de propriedade intelectual relacionados
ao comércio – ADPIC (TRIPS) e os conhecimentos tradicionais
André R. C. Fontes ............................................................................................. 1
Overview of Patents on Pharmaceutical Active Ingredients and Other Active
Substances From Plants in the Light of Nagoya Protocol to CBD and the
Wto-Trips Framework
Cláudia Ribeiro Pereira Nunes, Fernando Gonzalez Botija e
Pedro D. Peralta ............................................................................................... 15
Nanotecnologia no Agronegócio: Aspectos de Tutela Constitucional-Ambien-
tal
Loreci Gottschalk Nolasco, Priscila Elise Alves Vasconcelos e
Nathália Alves de Oliveira .............................................................................. 27
El Estimulo Conductual (Nudge) como Instrumento de Concienciación de la
Mujer Ante el Aborto Clandestino
Claudia Ribeiro Pereira Nunes, Laura Dutra de Abreu e Pedro D. Peralta ... 43
Meio Ambiente e Cidadania: Desafios Contemporâneos
Reis Friede........................................................................................................ 57
Marco Legal da Regulamentação do Uso de Animais em Experimentação
Cientifica e Didática no Brasil
Luciana de França Oliveira Rodrigues, Henrique Lopes Dornelas e
Amanda Pessoa Parente ................................................................................... 69
Os limites impostos à autonomia privada no Direito Brasileiro: o paradoxal
convívio entre tutelas, indisponibilidades e liberdades individuais
Bárbara Gomes Lupetti Baptista e Daniel Navarro Puerari ........................... 85
O Estatuto da Cidade (Lei nº 10.257/2001) e seus instrumentos urbanísticos
Vanderlei Martins e Marcos Paulo Sobreiro Pulvino ..................................... 101
A Luta pelo Reconhecimento da Criança e do Adolescente Transexual: Uma
Análise a Partir do Tratamento Hormonal
Cleyson de Moraes Mello e Laura Dutra de Abreu ....................................... 115
Educação Em Direitos Humanos
Fernanda Baldanza, Katia Eliane Santos Avelar e
Maria Geralda de Miranda ...........................................................................127
O Direito de Morrer no Pensamento de Steven Luper
Luiz Augusto Marca e Andréia Fernandes de Almeida ..................................145
O Neoconstitucionalismo na Perspectiva dos Direitos Fundamentais – Novas
Formas de se Interpretar a Ciência Jurídica
Marcilene Margarete Cavalcante Marques e Hector Luiz Martins Figueira.....161
Proteção dos Cetáceos em Perspectiva Nacional e Internacional visando Ga-
rantir a Sustentabilidade dos Oceanos Globalizados
Mery Chalfun, Erika Tavares e Rossana Fisciletti.........................................173
Caso Vladimir Herzog vs. Brasil: Uma Experiência na Corte Interamericana
de Direitos Humanos
Morgana Paiva Valim e Mariana de Freitas Rasga.......................................187
A evolução do poder judiciário nas constituições do Brasil: de coadjuvante a
protagonista
Carlos André Coutinho Teles e Fernando Rangel Alvarez dos Santos ............203
Biossegurança à Brasileira: Quimera legislativa subjugada ao princípio da
dignidade humana
Vanele Rocha Falcão César ............................................................................221
Servidores públicos civis e reformas previdenciárias: um caso privilegiado de
constituição dirigente invertida
Darleth Lousan do Nascimento Paixão e Nilton Rodrigues da Paixão Júnior....235
Tombamento entre a Eficácia Legal e as Modificações que Ocorrem no Bem
Irene Celina Brandão Felix ............................................................................253
Uma Análise Lógica da Lei Anticorrupção Frente à Lei de Improbidade
Administrativa
João Victor Tavares Galil e Fernando Rangel Alvarez dos Santos .................267
The Dark Side of Fashion: Uma Análise Empírica sobre o Trabalho Escravo
Contemporâneo na Indústria da Moda
Carla Sendon Ameijeiras Veloso, Larissa Pimentel Gonçalves Villar e
Hector Luiz Martins Figueira.........................................................................281
(Há) Ética na Delação Premiada (?)
Ana Paula Couto e Marco Couto ...................................................................293
O Processo Administrativo Tributário como Meio Facilitador do Acesso à
Justiça e Exercício da Ampla Defesa Diante das Decisões do Conselho de
Contribuintes da Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro
Rosy Nery Guimarães e Marcilene Margarete Cavalcante Marques ............305
Direito ao lazer e dano existencial: reflexos nos direitos da personalidade do
trabalhador
Danielle Riegermann Ramos Damião e Jaqueline Nacata Garcia.................319
A Saúde em Juízo
Carlos José de Souza Guimarães.................................................................... 333
O Direito à Justa Memória para a Preservação da Dignidade Humana: Um
Novo Direito Fundamental
Armenia Cristina Dias Leonardi ................................................................... 341
O Sistema Proporcional e o Déficit de Cidadania no Brasil
Maurício Pires Guedes e Gabriela do Amaral Rezende................................. 351
Os Contratos nas Técnicas de Reprodução Assistida
Beatriz Capanema Young ............................................................................... 367
O Princípio da Imparcialidade como Garantia do Devido Processo Legal
Gisela Vasconcelos Esposel ............................................................................. 383
A Cooperação Dolosamente Distinta e sua Aplicabilidade no Delito de Latro-
cínio
Fabio Asty Dantas .......................................................................................... 395
Os Direitos Autorais analisados sob a perspectiva da era digital: O comparti-
lhamento nas redes sociais de obras fotográficas
Maria Cecília Mendonça Velez...................................................................... 407
A Função Social das Relações Contratuais
Fernando Ferreira Pascoal.............................................................................. 419
O Acordo sobre aspectos dos direitos de
propriedade intelectual relacionados ao
comércio – ADPIC (TRIPS) e
os conhecimentos tradicionais
André R. C. Fontes
1
como o prazo fatal para implantação de um sistema normativo que ampliasse
e intensificasse a proteção da propriedade intelectual, no ano de 2000.
Por tal acordo criou-se um regime internacional da propriedade intelec-
tual que afiança e integra o regime internacional criado pelas convenções já
existentes, sendo que se orienta pelos trabalhos de revisão da Convenção de
Paris. O ADPIC prevê um princípio que obriga os Estados aderentes a dar
aos nacionais dos outros Estados aderentes o mesmo tratamento, em maté-
ria de propriedade intelectual, reservado aos próprios nacionais. Estabelece
um nível de proteção mínima que cada Estado aderente deve adotar em ma-
téria de propriedade intelectual. É nesse acordo internacional que se estriba
todo o trabalho realizado entre os mais diversos países que o integram como
parte orgânica do processo comercial único nos diversos níveis das relações
de trocas em todo o mundo.
Na esfera acadêmica, esse acordo provocou um crescente interesse na
sua indeclinável aplicação, e tem gerado um grau de polêmica proporcional
aos estudos e debates a respeito de suas múltiplas e versáteis cláusulas. E o
principal interesse dos estudos do ADPIC (TRIPS) vai muito além das ques-
tões de propriedade intelectual, pois o acordo também tinha por objeto a
realização de investimentos, a imposição de deveres dos diversos países de
alterar suas legislações internas e, ainda, uma peculiar forma de ampliação e
introdução do Common Law em todo o mundo.
Inerente às formas de sua aplicação é o trabalho de diplomatas e analis-
tas que decidem concretamente sua realização diante das naturais tensões e
conflitos que sua execução provoca. E essas tensões são objeto de inúmeras
análises, que culminam ordinariamente na provocação dos membros dos va-
riados comitês da Organização Mundial do Comércio, a OMC.
O mais importante dos acordos internacionais relacionados à proprieda-
de intelectual, embora a ela não se limite, o Acordo sobre aspectos dos di-
reitos de propriedade intelectual relacionados ao comércio – ADPIC
(TRIPs), resulta da conhecida Rodada Uruguai de Negociações Comerciais
Multilarerais do Acordo Geral de Tarifas e Comércio, igualmente conheci-
do pelo acrônimo anglófono GATT, que provocou as discussões ao longo de
oito anos. A primeira rodada de negociações tarifárias foi realizada em Ge-
nebra, em 1947. E em 1948, o Acordo Geral de Tarifas e Comércio
(GATT) entrou em vigor e estabeleceu regras para o comércio internacio-
nal. Para um acordo e uma organização provisória, teve uma longa duração:
47 anos!
A realização do intento de criar uma instituição para regular a atividade
e a cooperação econômica internacional surgiu após a Segunda Guerra Mun-
dial, devido ao interesse na época em estimular e incrementar o comércio
entre as nações, embora já desde a década de 1930 já se promovessem a di-
minuição das barreiras alfandegárias e de medidas protecionistas para as
condições de aumento dos negócios entre os países.
Na edificação do GATT, criado para ser um acordo provisório, muitas
transformações ocorreram, e ele não ficou reduzido a uma letra morta, mas,
2
ao contrário, na qualidade de importante instrumento mundial de orienta-
ção dos negócios entre países, contribuiu para que se estabelecessem regras
para o comércio internacional desde seu início, em 1948, até 1995, ocasião
em que surgiu a Organização Mundial do Comércio, a OMC. Os êxitos al-
cançados pelo GATT e pela OMC assumiram papéis distintos e, de certa
forma, sucessivos, embora aperfeiçoados. Se com o GATT foram tão signi-
ficativos os resultados decorrentes de um simples acordo firmado com o ob-
jetivo inicial de regular o comércio mundial, a Organização Mundial do Co-
mércio surge como um organismo político concreto, definido a partir do que
o representou do GATT e, longe de significar algo ex novo, que rompesse
com o passado vencido e superado, sublinha a maneira disciplinada pelo
GATT e vai além, mas sempre de forma a consolidá-lo e dar-lhe apoio e apli-
cação. Ao firmarem o GATT, concordaram seus redatores na aplicação das
novas regras, ainda que em caráter provisório. Note-se que esse acordo exi-
giu que muitos representantes dos governos tivessem que se reunir com cer-
ta frequência para examinar as questões que surgiam, além de tratar de ou-
tras e novas discussões para futuras negociações e acordos. De maneira que
a criação de um órgão se fez necessária, para abrigar os serviços de secretaria
e sediar o encontro dos representantes. Tendo durado meio século, o GATT
deixou de existir e deu lugar à OMC, não obstante, ainda hoje, suas disposi-
ções como acordo continuem em vigor, sem obviamente ser o principal con-
junto de normas reguladoras do comércio internacional.
A assimilação permanente do Acordo (GATT) provocou vários ciclos de
discussões multilaterais com os Estados-partes da Convenção de Paris. Essa
convenção, datada de 1883, denominada oficialmente de Convenção da
União de Paris para a Proteção da Propriedade Industrial, e propunha aos
países-membros, de acordo com sua legislação interna, elaborassem um sis-
tema capaz de proteger a propriedade intelectual. Nessa convenção é que
foram estabelecidos os princípios básicos, tão difundidos, do princípio do
tratamento nacional, o princípio da prioridade, o princípio da inde-
pendência das patentes, o princípio da repressão ao abuso do direito de pa-
tente. Segundo o princípio do tratamento nacional, aos estrangeiros estaria
garantido o mesmo tratamento reservado aos nacionais em matéria de pro-
priedade industrial. Pelo princípio da prioridade, o inventor tinha um prazo
de um ano de preferência sobre a sua invenção, caso não tivesse realizado o
pedido de depósito em outro país. Pelo princípio da independência das pa-
tentes, deve ser considerado que cada patente é independente de outra con-
cedida em outro país, como dispõe o artigo 4º-bis. Pelo princípio da repres-
são ao abuso do direito de patente, fica assegurado o direito de importação
do produto patenteado, sem acarretar a caducidade para o detentor da pa-
tente, mas para que esse não abuse do seu direito frente às necessidades na-
cionais.
A Convenção de Paris não apresentou um caráter de obrigatoriedade,
tanto que permitia a renúncia a qualquer tempo como também a adesão em
qualquer hora, dependendo do interesse do Estado em participar ou não. Já
3
Acordo TRIPS rompe com a possibilidade de opção dos países signatários.
Essa adesão não é voluntária, já que impõe a cada um a obrigatoriedade de
adoção das medidas especificadas para a proteção da propriedade intelec-
tual. E embora não possua uma aplicabilidade direta sobre os países, estabe-
lece parâmetros mínimos a serem respeitados para a elaboração das leis na-
cionais.
De outro lado, o ADPIC (TRIPS) se conflita com as disposições com um
outro tratado internacional, a Convenção sobre a diversidade biológica, mais
conhecida pelo acrônimo CDB. A solução dos litígios relativos às conven-
ções impostas pelo CDB tem conduzido os litígios entre o ADPIC (TRIPS)
e a CDB a uma apreciação pelos membros do Comitê sobre Comércio e
Ambiente da Organização Mundial do Comércio, além de um próprio e es-
pecífico debate entre os membros da CDB.
4
marcação dos direitos para as diversas comunidades no interior das florestas,
as populações indígenas e as comunidades locais têm o poder geralmente co-
letivo dos conhecimentos utilizados para sementes e plantas medicinais e
das técnicas de produção, de colheita e de conservação e têm, além disso, o
compartilhamento das sementes e dos materiais genéticos. Além disso, os
melhoramentos relacionados às variedades das sementes e de outras inova-
ções são transmitidos de agricultores a agricultores e passam para outras co-
munidades. Há um verdadeiro livre acesso aos materiais genéticos, aos co-
nhecimentos e às inovações, se bem que, naturalmente, os materiais atuais,
como sementes e as plantas podem ser comercializados.
Esse sistema de inovação cooperativa e de compartilhamento comunitá-
rio vem naturalmente desafiando o novo sistema de direitos vinculados aos
conhecimentos representados pelo regime dos direitos de propriedade inte-
lectual e do ADPIC (TRIPS), que, neste momento, obriga os países mem-
bros da OMPI a escolher entre os sistemas de direitos que querem instituir
em relação aos recursos biológicos. De outro lado, se um país chegasse a ins-
tituir um sistema legislativo que confrontasse o atual regime em vigor, aca-
baria por facilitar a apropriação indevida dos direitos ligados aos conheci-
mentos das comunidades locais.
Tais poderes cederiam diante de moderno sistema de propriedade inte-
lectual e isso induziria, naturalmente, uma aplicação ampla de direitos de
propriedade intelectual sobre os conhecimentos e os recursos e distorceria,
a favor dos grandes laboratórios ou instituições de pesquisa, em detrimento
das comunidades locais, além de tornar impossível o processo de obtenção
dos direitos de que seriam titulares.
A apreciação da temática dos conhecimentos tradicionais frente a esses
desafios de ordem internacional não é menor que aqueles relacionados à
ciência moderna, a despeito das relações próximas entre um e outro. A ex-
periência tem mostrado que os conhecimentos tradicionais estão associados
a uma temática diferenciada de certo grupo (ou grupos) que personifica prá-
ticas, valores e regras comunitárias próprias, em cuja dimensão se manejam
esses conhecimentos por todo ou parte do grupo.
Não ter o grupo, em sua totalidade, o conhecimento tradicional, pode
significar que a dimensão coletiva do grupo seja de benefícios desses conhe-
cimentos, mas não seja que todo o grupo tenha acesso ou ainda seja produtor
desse conhecimento. A falta de um manejo generalizado faz com que esses
conhecimentos não sejam do grupo, mas de parte do grupo, e, portanto, não
tenham uma dimensão coletiva. Essa falta de caráter coletivo poderia signi-
ficar para alguns não se tratar de conhecimentos tradicionais, mas privativos
de um número reduzido de pessoas. Nessa particular forma de descaracteri-
zação, assim como a ciência é produzida por poucos e depois privatizada pe-
los poucos que a conhecem, esse conhecimento haveria de ser patenteado
ou submetido a um regime análogo. Em oposição aos adeptos da proteção
dos conhecimentos tradicionais, esses mais restritos pertencem a um grupo,
tanto como pertencem os conhecimentos científicos hauridos pelos cientis-
5
tas, tal como o sistema de patentes o preconiza, de modo que não haveria
que se distinguir os conhecimentos tradicionais daqueles que a sociedade
moderna produz com sua tecnologia.
Entre a variedade de estudos das comunidades tradicionais, portanto,
aquelas que destacam elementos do grupo dotados de capacidade de produ-
zir e utilizar conhecimento, toda atenção dispensada pelos estudiosos não
teria sentido, já que essas em nada difeririam da sociedade moderna que re-
conhece que um grupo somente teria a remuneração pelo que produziu.
Consideram, ainda, que o recurso das patentes ainda seria mais justo porque
limitaria no tempo o jus excludendi do titular.
A sistemática da oralidade, própria das comunidades tradicionais não se-
ria, a rigor, um impedimento, se contrastada com a forma escrita exclusiva
da sociedade moderna. É que em ambas as situações o conhecimento é man-
tido, a despeito de apenas não utilizar uma forma comum. No fundo, a ca-
pacidade de transmissão de um (tradicional) e outro (moderno) retiraria
qualquer dúvida de virtude de transmissibilidade do conhecimento, o que
faria com que ambos fossem devidamente tratados de uma só forma no re-
gime tutelar.
Ao se intensificar os embates entre a perspectiva da ciência moderna e
dos conhecimentos tradicionais, não se deve olvidar que a ciência moderna
se beneficia e se enriquece com seu caráter expansivo, tanto no campo eco-
nômico como jurídico e político. Além disso, a pretensão da ciência moder-
na de ser universal e de conduzir a uma metodologia confiável para se chegar
a verdade, reduziria os conhecimentos tradicionais a um plano inferior ou
secundário.
Abatidos por tantos anos de resistência e reação, os conhecimentos tra-
dicionais passaram a ser considerados algo de cunho marginal, dentro da
ciência moderna, atávico na sistemática econômica mundial e não jurídica
pelos estudiosos do Direito. A acusação de falhas, ineficiência e obscurantis-
mo à medida que caminha a ciência moderna, desvaloriza os conhecimentos
tradicionais porque estão fora da maneira moderna de fazer ciência, com ex-
perimento e observação, de reduzi-la a um papel acidental em um mundo
civilizado, de mera crendice em um mundo de religião, de mera prática em
um mundo de ciência, de uma expressão cultural não qualificada juridica-
mente.
O conteúdo de coesão da coletividade produtora dos conhecimentos
tradicionais não resulta de uma só chave: ele é complexo e variado. A rigor,
ele só se faz possível pela atividade do próprio subsistema na qual é integra-
do. Atributo inseparável das comunidades é o contexto histórico ou biofísi-
co no qual estão instaladas e que as obriga, por determinada necessidade, a
desenvolver tecnologias particulares, que se constituem em tradições pró-
prias. Outro aspecto da função social integrante está ligado ao povo ou ao
grupo social que é integrante que forma um sistema ou subsistema da qual
depende toda a estrutura formadora dos conhecimentos tradicionais.
6
Como já se demonstrou, o plano da ciência moderna está relacionado a
uma rede internacional progressiva e em expansão, na qual a produção do
conhecimento é financiada por altas quantidades de capital para fomentar o
desenvolvimento tecnológico e o crescimento econômico em grande escala
das companhias multinacionais. Por um lado, essa ciência nova e moderna
tende a dominar os espaços e contribuir decisivamente para o desenvolvi-
mento da medicina, da agricultura e da energia, por outro, atropela essa tec-
nociência as (etno)ciências que se produzem nos distintos cantos do mundo.
Na estrutura e dinâmica da organização das comunidades tradicionais,
exige-se, de maneira clara e direta, interação dos elementos dos diferentes
subsistemas do grupo com os demais elementos de sua organização social
propriamente dita, e em pé de igualdade uma mútua relação dos últimos en-
tre si. Como objeto de um próprio regime de análise apresenta bases consi-
deráveis de complexidade e necessita de uma epistemologia especial.
Uma epistemologia própria e um lugar específico de utilização são os
elementos autossustentáveis que formam nos grupos sociais os pontos de
sistematização do conhecimento do seu modo de vida. Essa forma coletiva é
em nível inferior a estrutura organizativa que mantém o seu modo de vida e
que constitui o marco de como funciona um conhecimento bastante com-
pleto para as suas necessidades, mesmo que estivessem em contato com ou-
tros grupos.
Como se disse anteriormente, a introdução dos feitos da ciência e da
técnica conduziu a verdadeiras revoluções na vida moderna e isso impulsio-
nou a tecnociência. Desapareceram limitações que hoje já não se justifica-
riam, mas, acima de tudo, deu um grau de universalidade na expansão do
conhecimento moderno para muito além dos limites até então conhecidos e
estabelecidos. Mudaram as estruturas de organização e formação do conhe-
cimento, com a intensificação de todos os aspectos da vida. Congressos e se-
minários científicos internacionais não mais se limitam a integrantes euro-
peus, japoneses e norte-americanos. O rol hoje inclui israelenses, indianos,
coreanos, chineses, vietnamitas e brasileiros. Desenvolvem-se temas técni-
cos e científicos a despeito das diferentes culturas que se apresentam.
Todos os critérios de eficácia, entretanto, tornam impossível achar que
entre eles haja de fato uma paridade universalizante. A homogeneidade apa-
rente não afasta a triste e enganosa realidade de que existem verdadeira-
mente hegemonias políticas e econômicas que não devem ser desconsidera-
das, nem mesmo nas relações propriamente científicas. Tais como as com-
panhias multinacionais que titularizam o conhecimento, a tecnologia mo-
derna tem suas bases não nos interesses gerais dos seres humanos, mas, ao
contrário, representa interesses locais e de grupos que têm sido globalizados
mediante o poder e o fim de sua influência.
A pertença de marcantes contrastes e embates não desvia a perspectiva
das muitas semelhanças entre a ciência moderna e os sistemas de conheci-
mentos tradicionais, ao menos se partirmos do entendimento com uma cer-
ta ciência formada com um conjunto organizado de conhecimentos relativos
7
a um determinado objeto, especialmente obtidos mediante a observação, a
experiência dos fatos e de um método próprio. Isso supõe que os sistemas
de conhecimentos tradicionais estejam dentro da categoria da ciência ou
que exista uma maneira variada de fazer ciência, cada uma com seus méto-
dos e finalidades próprias.
As diferenças das formas de fazer ciência, seja classificada como moder-
na ou tradicional, são dinâmicas que já mudam constantemente para se
adaptarem a novas situações sociais e contextos biofísicos diferentes. Uma
coisa é necessária: desfazer a noção muito difundida, mas equivocada, de
que os sistemas de conhecimento tradicional somente fazem referência ao
passado. O influxo dessa diferença é que, portanto, somente podem ser pre-
servados ou resgatados. Ignora-se que todas as tradições do conhecimento
estão in processu, e que a constância no aperfeiçoamento é tanto como foi a
sua formação. E isso se explica porque, ao menos com base em fatores ex-
ternos, como mudanças ambientais ou geopolíticas as modificações internas
nas suas instituições sociais e necessidades pela adaptação se fariam neces-
sárias.
Essas premissas têm um importante significado metodológico para a
análise das comunidades coletivas, se, como corolário desse entendimento,
a equiparação corriqueira entre o moderno e o contemporâneo, por um
lado, e entre o tradicional e o anacrônico, por outro, também se sustentasse.
Exige-se diferenciar as linhas de pensamento na sua análise de artifícios do
tempo no discurso antropocêntrico, constantes na premissa de que os exis-
tentes sistemas de conhecimento tradicional são coevos da ciência moderna
e não simplesmente vestígios de um tempo remoto desvinculado do mundo
contemporâneo. A composição dessas ideias significaria que os conhecimen-
tos tradicionais poderiam ser considerados tão modernos quanto a chamada
ciência moderna, o que levaria a que os conhecimentos tradicionais atual-
mente utilizados, por exemplo, pelos caiapós, pelos caingangues ou pelos ka-
xinawá pertencem ao século XXI tanto quanto a ciência moderna.
De tal maneira, ao se analisar os sistemas de conhecimentos tradicionais
verifica-se que surgem e operam dentro de seus respectivos processos histó-
ricos. Sob essa perspectiva, todo conhecimento haveria de ser tradicional, já
que pertenceria a uma específica tradição. Se se toma o conhecimento tra-
dicional de um povo indígena pode-se inserir em uma tradição milenar da
mesma maneira que a ciência moderna apela para Hipócrates, Arquimedes,
Bacon ou Newton, tal como mostram os historiadores da ciência.
Isso exige destacar que, com o surgimento da linha de pesquisa dos es-
tudos da ciência, sociológicos, antropológicos começaram a fazer pesquisas
etnográficas em laboratórios científicos, demonstrando que a ciência mo-
derna é passível de ser estudada dentro da própria tradição, tal como se faz
com qualquer outro sistema de conhecimento. E os nativos dessas pesquisas
já não são índios ou os camponeses, mas os bioquímicos, ou físicos nucleares
ou qualquer outro tipo de cientista.
8
A importância vital desses estudos levantou novos entendimentos sobre
os mecanismos sociais, políticos, econômicos e rituais inerentes à confecção
dos fatos científicos.
BIBLIOGRAFIA
9
BORDALÍ S., Andrés. Tutela jurisdiccional del medio ambiente. Santiago: Fallos
del mes, 2004.
BLANC-JOUVAN, Guillaume. Initiation au droit économique. Paris: EDL, 2008.
BUNGE, Mario. Laciencia, su metodo y su filosofia. Buenos Aires: Siglo Veinte,
s/d.
CALDERWOOD, James D. BIENVENU, Harold J. Padrões de desenvolvimento
econômico. Trad. Francisco M. da Rocha Filho. Rio de Janeiro: Fundo de Cul-
tura, 1962.
CARBONELL, Miguel. La construcción de la democracia constitucional. Mexico:
Porrua, 2005.
CASO, Roberto. Ricerca scientifica pubblica, trasferimento tecnologico e proprietà
intellettuale. Bolonha: Il Mulino, 2005.
CERQUEIRA, João da Gama. Tratado da propriedade industrial. Rio de Janeiro:
Forense, 1946.
CHAGNY, Mutiet. Droit de la concurrence et droit commun dês obligations. Paris:
Dalloz, 2004.
CORREA, Carlos M. Nuevas tendências sobre patentes de invencion em América
Latina. Revista del Derecho Industrial, nº 39, setembro-dezembro de 1991.
Depalma, Buenos Aires. P. 417-457.
DONATO, Luz Marina. et alii. Mujeres indígenas, territorialidad y biodiversidad
en el contexto latinoamericano. Bogotá: Universidad Nacional de Colombia,
2007.
ECHARRI, Alberto. PENDÁS, Angel. La transferencia de tecnología. Madri: Fun-
dación Confemetal, s.d.
ELLUL, Jacques. A técnica e o desafio do século. Trad. Roland Corbisier. Rio de Ja-
neiro: Paz e Terra, 1968.
ESCORSA CASTELLS, Pere. VALLS PASOLA, Jaume. Tecnología e innovación
en la empresa. Barcelona: UPC, 2004.
ESTEBAN PÉREZ, Miguel. Manual de los derechos intelectuales en la República
Dominicana. São Domingos: Trajano Potentini,2005.
FAUSTO NETO, Antonio et alii.Anais do Encontro nacional de unidades de asses-
soria e transferência de conhecimentos tecnológicos e sociais. Rio de Janeiro:
Universidade Federal do Rio de Janeiro, 1995.
FERNÁNDEZ, R. Tecnología Aquisição, desenvolvimento, proteção, transferência e
comercialização. Rio de Janeiro: Firjan, 1998.
FERRAZ, Maria Cristina Comunian Ferraz. BASSO, Heitor Cury. Propriedade in-
telectual e conhecimento tradicional. São Carlos: UFSCAR, 2011.
FERRETI, Degmar Aparecida. La protección jurídica de los conocimientos tradicio-
nales. Curitiba: Juruá, 2013.
FIGUEIREDO, Nuno Fidelino de. A transferência de tecnologia no desenvolvimen-
to industrial do Brasil. Rio de Janeiro: Ipea, 1972.
FLORES, César. Contratos internacionais de transferência de tecnologia. Rio de Ja-
neiro: Lúmen Júris, 2003.
FODELLA, Gianni. Diffusione della tecnologia e organizzazione nello sviluppo eco-
nômico. Milão: Giuffrè, 1988.
FONTE, Maria. Organismi geneticamente modificati. Milão: Franco Angeli, 2004.
FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. Trad. Roberto Cabral de
Melo Machado e Eduardo Jardim Morais. Rio de Janeiro: NAU, 1996.
10
GARRABOU SEGURA, Ramón; GONZÁLESZ DE MOLINA, Manuel. La reposi-
ción de la fertilidad en los sistemas agrários tradicionales. Barcelona: Icaria,
s/d.
GOMES, Orlando. Contratos. Rio de Janeiro: Forense, 2000.
GONZÁLEZ GARCIA, Marta I. LÓPEZ CEREZO, José A.. LUJÁN LÓPEZ, José
L. Ciencia, tecnologia y sociedad. Madri: Tecnos, 1996.
GONZÁLEZ GRANDIÓN, Ximena Andrea. Legitimación de conocimientos tradi-
cionales. Saarbrücken: Editorial Académica Española, 2011.
GRENIER, Louise. Conocimiento indígena. Trad. Oscar Chavarría Aguilar.Cartago:
Editorial Tecnológica de Costa Rica, 1999.
IACOMINI, Vanessa. Biodireito e o combate à biopirataria. Curitiba: Juruá, 2009.
KHOR, Martin. Proprietà intelectuale, biodiversità e sviluppo sostenibile. Trad.
Raffaella Patriarca. Milão: Baldini, 2004.
KOSZUOSKI, Adriana, Conhecimentos tradicionais. Cuiaba: Carlini & Caniato,
2006.
LAYTON, Robert. Teorie antropologiche. Trad. Stefano Montes. Milão: Il Saggiato-
re, 2201.
LAZZAROTTO, Lucien. La garantie de la propriété à láube de XXI siècle. Gene-
bra: Schltthess.
LITTLE, Paul E. Conhecimentos tradicionais para o século XXI Etnografias da in-
tercientificidade. São Paulo: Annablume, 2010.
LÓPEZ Y RIVAS, Gilberto. Antropologia, etnomarxismo y compromiso social de los
antropólogos. México: Ocean Sur, 2010.
LUSTOSA, João Augusto. O papel do sistema de patentes na transferência de tec-
nologia aos países em desenvolvimento. Rio de Janeiro: Forense-Universitária,
1979.
MARGENAU, Henry. La naturaleza de la realidad física.Trad. Adolfo Martin,
Madri: Tecnos, 1970.
MASSENO, Manuel David. Apontamentos sobre a Constituição Agrária Portugue-
sa. In Perspectivas Constitucionais nos 20 anos da Constituição de 1976. v. I.
Coimbra: Coimbra, 1996.
MEYLAN, Jacques-H. Essai pour une systémique du droit. Bruxelas: Bruylant,
2010.
MIES, MARIA, SHIVA, VANDANA. Ecofeminismo.Trad. Fernando Dias Antu-
nes. Lisboa: Piaget, 1993.
MILIBAND, Ralph. O Estado na sociedade capitalista. Trad. Fanny Tabak. Rio de
Janeiro: Zahar, 1972.
MIRANDA ROSA, F.A.. Sociologia do direito. 6ª ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.
MORAN, Emilio F. OSTROM, Elinor. Ecossistemas florestais. São Paulo: Edusp,
2009.
MOREIRA, Eliane. Conhecimento tradicional e a proteção. Revista T&C Amazônia.
nº 11, junho de 2007. p. 33-41.
MOURA E SILVA, Miguel. Inovação, transferência de tecnologia e concorrência.
Coimbra: Almedina, 2003.
O’FARRELL, Ernesto. Transferencia de tecnologia. Buenos Aires: Abeledo-Perrot,
1977.
OZAWA, Terutomo. La transferência de tecnologia de Japón a los países em desar-
rollo. México: Unitar, 1974.
11
PAMPILLÓN OLMEDO, Rafael. Un análisis empírico de la transferencia interna-
cional de tecnología. Revista Española de Economia. Madri: Instituto Nacional
de Prospectiva, Octubre-Dicembre 1979. p. 57.
PEREZ MIRANDA, Rafael. SERRANO MIGALLON, Fernando. Tecnologia y de-
recho economico. México: Porrúa, 1983.
PLATIAU, Ana Flávia Barros. VARELLA, Marcelo Dias. Diversidade biológica e
conhecimentos tradicionais. Belo Horizonte: Del Rey, 2004.
PRADO, Mauricio Curvelo de Almeida. Contrato internacional de transferência de
tecnologia. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997.
PRENTIS, Steve. Biotecnologia. Barcelona: Salvat, 1986.
PUNTEL, Lorenz B. Estrutura e ser. Trad. de Nélio Schneider. São Leopoldo: Uni-
sinos, 2006.
RAPELA, Miguel Angel. Derechos de propiedad intelectual em vetegales superiores.
Buenos Aires: Ciudad Argentina, 2000.
RIOS, Montserrat. DE LA CRUZ, Rodrigo. MORA, Arturo. Conociminto tradicio-
nal y plantas útiles del Ecuador. Quito: Abya-Yala, 2008.
GONZÁLEZ GRANDIÓN, Ximena Andrea. Legitimación de conocimientos tradi-
cionales. Saarbrücken: Editorial Académica Española, 2011.
RODRIGUES Jr., Edson Beas. POLIDO, Fabrício. Propriedade intelectual. São
Paulo: Elsevier, 2007.
ROMEO CASABONA, Carlos Maria. Biotecnología y derecho. Bilbao: Comares,
1998.
SALOMÃO FILHO, Calixto. Direito industrial, concorrencial e intresse público.
Revista de Direito Público da Economia nº 7, julho/setembro de 2004. Belo
Horizonte, editora Fórum.
SANCHEZ, Enrique. ROLDAN, Roque. SANCHEZ, Maria Fernanda. Derechos e
identidad. Bogotá: Disloque, 1993.
SÁNCHEZ MUÑOZ, María Paloma. La dependencia tecnologica española: contra-
tos de transferencia de tecnología entre España y el exterior. Madri: Ministerio
de Economia y Hacienda, 1984.
SCARDI, Vicenzo. Introduzione alla biotecnología.Milão: Garzanti, 1989.
SÉROUSSI, Roland. Introduction aux relations internacionales. Paris: Dunod,
2010.
SCUDELER, Marcelo Augusto. Do direito dasmarcas e da propriedade industrial.
Campinas: Servanda, 2008.
SHERWOOD, Robert M. Propiedad intelectual y desarrollo económico. Buenos Ai-
res: Editorial Heliasta, 1995.
SCHRAMM, Fermin Roland. Bioética e biosegurança. São Paulo: Gaia, 2006.
SILVA, José Robson da. Paradigma biocêntrico: do patrimônio privado ao patrimô-
nio ambiental. Rio de Janeiro: Renovar, 2002.
SCHOLZE, Simone Henriqueta Cossetin. Propriedade intelectual e biotecnología:
aspectos jurídicos e éticos. Notícia do direito brasileiro, nº 5, 1 semestre de
1998. P. 91-115.
SIVERA TEJERINA, Maria Asuncion. Los cambios técnicos de la agricultura en el
termino rural de Malaga: Siglos XVIII-XIX. Málaga: Grafima, 1988.
SLAME, María Cristina. Transferencia de tecnología. Buenos Aires: Depalma,
1982.
SOUZA, Allan Rocha de. Direitos culturais no Brasil. Rio de Janeiro: Azougue,
2013.
12
TOBON, Natalia. Los conocimientos tradicionales como propiedad intelectual en la
Comunidad Andina. Derechos intelectuales. Buenos Aires: Astrea, 2003. P.
135-151.
VALLE, José Ribeiro do. A famacologia no Brasil. São Paulo: DAG, 1978.
VANZETTI, Adriano. CATALDO, Vicenzo di. Manuale di diritto industriale. 6ª
ed. Milão: Giuffrè, 2009.
VARGA, Andrew C. Problemas de bioética. Trad. Guido Edgar Wenzel. São Leo-
poldo: Unisinos, 1982.
VINATEA MEDINA, Ricardo G. Propuestas para la protección jurídica de los co-
nocimientos tradicionales en el marco del tratado de libre comércio Perú-
EE.UU. Lima: Edição do autor, 2008.
WANDSCHEER, Clarissa Bueno. Patentes & conhecimento tradicional. Curitiba:
Juruá, 2009.
WIONCZEK, Miguel S. BUENO, Gerardo M. NAVARRETE, Jorge Eduardo. La
transferencia internacional de tecnologia – el caso de México. México: Fondo
de Cultura Econômica, 1974.
ZANIRATO, Silvia Helena. RIBEIRO, Wagner Costa. Conhecimento tradicional
epropriedade intelectual das organizações multilaterais. Revista Ambiente &
Sociedade. V X, nº I, janeiro-novembro de 2007. pa. 39-45.
13
Overview of patents on pharmaceutical active
ingredients and other active substances from
plants in the light of nagoya protocol to CBD
and the wto-trips framework1
Abstract: The research explores the need, from Brazilian and other bio-
diversity-rich areas, of promoting a set of specific laws to regulate the pat-
ent granting regime and other equivalent rights arising from Traditional
Knowledge, according international recognised principles of Sustainable
Development and Good Governance Practices. On the other side, the
European Union has endorsed the Nagoya Protocol, by Council Decision
2014/283/ EC and Regulation (EU) 511/2014 with the aims of safeguard-
ing of the legitimate rights of traditional societies of origin through the ob-
ligation of guarantee its fair use, as evidenced by internationally recognised
certificates of conformity or reliable equivalent evidence. The research then
briefly examines examples of comparative law and exposes the legal analysis
of patent legal regimas source of international obligations.
15
511/2014, com o objetivo de salvaguardar os direitos legítimos das so-
ciedades tradicionais de origem através da obrigação de garantir seu uso
justo, como comprovado por certificados de conformidade internacional-
mente reconhecidos ou provas equivalentes confiáveis. A pesquisa examina,
brevemente,os exemplos de leis comparadas e expõe a análise legal de re-
gimes legais de patentes como fonte de obrigações internacionais.
INTRODUCTION
16
tional dimension with the general aim of cover: (i) the economic analysis by
using framing model; and (ii) the legal analysis of corporate patents granted
and its challenging mechanisms.
The fair use of TK resources, as evidenced by internationally recognised
certificates of conformity or reliable comparable evidence, requires from
operators to ensure compliance with the rights and obligations under the
ABS Protocol, which is challenged in the practice by the different approach
on the control measures for the fair bioprospection of resources, in differ-
ent concerned countries. Other countries have not yet proceeded with an
effective implementation of the Nagoya ABS Protocol. Among them, Brazil
postpones still the direct application of The Cartagena Protocol on
Biosafety to the Convention on Biological Diversity (CBD) and the ABS
Protocol itself, in respect to the protection of Traditional Knowledge (TK).
Concerning the Nagoya Protocol, on spite of being signed on 2 February
2011 on behalf of Brazilian authorities, it has not still been formally ratified.
This review justifies the interests on understanding the legal framework
of the protection of TK through the revision of case studies since Interna-
tional Law does not yet unanimous recognise the value of protecting er-
gaomnes the Indigenous Knowledge as a Global commons.
The EU has endorsed the Nagoya Protocol, by Council Decision
2014/283/EC of 14 April 2014 and R 511/2014 of 16 April 14 with aims of
safeguarding of the legitimate rights of traditional societies of origin through
the obligation to guarantee Its fair use, as evidenced by internationally rec-
ognised certificates of conformity or reliable equivalent evidence aimed to
ensure the rights and obligations established under the Protocol.
This study is a work from Research Project: Economic development,
globalisation and sustainability.
The value of Indigenous Knowledge as a Traditional Knowledge (TK) to
the Sustainable Development on the agenda 2030.
Many of the Sustainable Development Goals and associated targets are rele-
vant for indigenous peoples. The Agenda 2030 for Sustainable Development
covers several issues that directly affect the lives of indigenous peoples. Lack
of access to relevant education and equitable justice, extreme poverty, and un-
mitigated climate change are just some of the challenges facing indigenous peo-
ples. The overarching framework of the 2030 Agenda contains numerous ele-
ments that can go towards articulating the development concerns of indige-
nous peoples.
17
If not, practical solutions are quickly found, there will be negative con-
sequences both for the survival of these populations and for their valuable
knowledge systems. It is therefore vital that the international community
begin to recognise indigenous communities as valuable partners in efforts to
reduce climate change and sustainable development.
The Nagoya Protocol sets out core obligations for its contracting Parties
to take measures in relation to access to genetic resources, benefit-sharing
and compliance.
A) Access obligations
B) Benefit-sharing obligations
C) Compliance obligations
18
Take measures providing that genetic resources utilised within their jurisdic-
tion have been accessed in accordance with prior informed consent, and that
mutually agreed terms have been established, as required by another contrac-
ting party
Cooperate in cases of alleged violation of another contracting party’s require-
ments
Encourage contractual provisions on dispute resolution in mutually agreed
terms
Ensure an opportunity is available to seek recourse under their legal systems
when disputes arise from mutually agreed terms
Take measures regarding access to justice
Take measures to monitor the utilisation of genetic resources after they leave
a country including by designating effective checkpoints at any stage of the
value-chain: research, development, innovation, pre-commercialisation or
commercialisation.
The case of patent on Turmeric (Curcuma longa) and Neem tree were
two of the main milestones for protecting TK through Patent legal mecha-
nisms. In the first case study, the US patent 5401504 was awarded to the
University of Mississippi Medical Centre in March 1995 for the use of pow-
dered turmeric as an agent for wound healing. The patent was revoked suc-
cessfully since the features of curcuma (C. longa) in India have been known
for centuries as revealed in the Indian Council for Scientific and Industrial
Research (CSIR) The use of powdered curcuma is registered among the in-
dications of the pharmacopoeia hindu and thus did not have the alleged nov-
elty.
The case of patent Neem tree oil was solved with the revocation, pro-
moted before the European Patent Office (EPO) granted a patent to the
US institutions (pat. EPO 436257) for implementing the fungicide of the
oil obtained from AzadirachtaIndica A. Juss. (Neem tree). In the revocation
process, a panel of EPO ruled that the patent claimed was the subject of
allocation prior unlawful (bio piracy) and the allegedly innovative process
for which was requested was documented and used in India since time im-
memorial. From Neem tree are obtained, inter alia, pesticides and other
biochemical compounds of natural interest such as azadirachtina, used as a
basis for insect repellents in India, anti-mould, cosmetic and soap.
19
Other case studies refer to Latin America indigenous crop resources
which has been subject of fair or unfair bioprospection: Quinoa, Stevia,
Maca (Lepidiummeyenii). Camu-camu (Myrciariaspp) Inchi. (Plukenetia-
volubilis, Ayahuasca (Banisteriopsiscaapi) Sangre de drago (Croton chu-
rutensis.) Nuez de Corazon Verde. Rupunina (Ocotearodiei), Cupuacu,
Cunanini, Acay palm, (widely cultivated in the northeast of Brazil,) Curare
or Quebra-pedras, Achiote, Seje. Paico (Chenopodium ambrosioides),
Yarumo (Cecropiapeltata).
Other case study was ayahuasca, a woody vine from the Amazonian rain
forest, is traditionally used by to create a hallucinogenic drink. As an impor-
tant part of the indigenous culture, these drinks are used for ceremonial and
spiritual purposes. According to Tupper, in 1986, Loren Miller was granted
a patent by the United States government for “Da Vine” new variety of the
ayahuasca plant, which he had been cultivating. Nevertheless, Miller had
found the plant within the Amazon rainforest but since not indigenous com-
munity claim any valid patent for the plant, the USPTO, the United States
Patent and Trademark Office grant finally the patent. The Coalition for
Amazonian Peoples and their Environment (Amazon Coalition) and the Co-
ordinating Body of Indigenous Organisations of the Amazon Basin
(COICA), challenged the patent and ask for a re-examination of patent,
claiming that the patent did not meet the requirements of the US Plant Pat-
ent Act on the basis that “Da Vine” had been previously cultivated and that
the patent violates the United States morality and public policy aspects of
the Act (Tupper, 2009). The United States government did remove
Miller’s patent because the same variety was found in Chicago’s Field Mu-
seum. Lately, in 2001, Miller submitted new evidence U.S. government’s
decision and a reinstatement of the “Da Vine” patent.
20
The EU Framework
Biotechnological inventions
21
tions. The limits and requirements for utilisation have been additionally in-
terpreted through the rulings of the UE Court of Justice (i.e. case C-34/10,
Oliver Brustle vs Greenpeace e.V., on extraction of cells of embryonic stem
cells precursors: The use of human embryos for therapeutic or diagnostic
purposes which is applied to the human embryo is patentable, but do not
use animals in scientific research)
Besides this, in the US law, GMOs may be considered as “products”
from human invention and therefore patentable against the sequences that
naturally occur in nature. The judgment of the US Supreme Court, Dia-
mond vs. Chakrabarty of 1980 relating to the patentability of a bacterium
which had been genetically modified by the claimant and whose inclusion
was compared by the Supreme Court with a ‘manufacture’
22
plements from the Amazon Rainforest are still largely underdeveloped and
only a few may be known to the local people for harvesting. Furthermore,
once active ingredients are isolated from a plant, the drug can be synthe-
sised in the lab. However, in some cases the active compounds are so com-
plex or so expensive to synthesise that it is easier to collect from natural for-
est or cultivate on foraging farms.
Notwithstanding that the award of the Nobel Prize for Medicine to Dr
Youyou Tu for the identification and isolation of the active substance
artemisinin from Artemisia annual, incorporating ancestral formulations
which formed part of the traditional Chinese medicine, has led to the rein-
forced recognition of the role of Traditional Knowledge and THM.
Local communities do not reap the benefits from drugs derived from
Amazon Rainforest plants because the cost associated with isolating and pu-
rifying the actives principles is unattainable.
CONCLUSIONS
23
purposes, besides obtaining authorisation, there should be a contract that
sets out how the benefits arising from the commercialisation of the re-
sources are to be distributed, royalties, and technology transfer, free li-
censes to products or process, and human capacity building. This contract
must include, among other elements, the resources accessed, benefit-shar-
ing provisions, rights and obligations, intellectual property rights, contract
cancellation clauses, and stating that all sole jurisdiction in case of any dis-
pute is with Brazil.
ACKNOWLEDGMENTS
REFERENCES
24
MATOS, D.C.L., FERREIRA. L.V. R. de. ‘Influência da distância geográfica na ri-
queza e composição de espécies arbóreas em uma Floresta Ombrófila Densa na
Amazônia Oriental’, in Rodriguésia 64(2): 357-367, 2013. DOI:
http://dx.doi.org/10.1590/S2175-78602013000200012.
MOREIRA, A.C., MÜLLER, A.C.A., PEREIRA JR., N. ‘Pharmaceutical patents on
plant derived materials in Brazil: Policy, law and statistics’, in World Patent In-
formation(28)(1):34-42, 2006. DOI: https://doi.org/10.1016/j.
wpi.2005.07.016
NAGOYA PROTOCOL on Access to Genetic Resources and the Fair and Equita-
ble Sharing of Benefits Arising from Their Utilisation to the Convention on
Biological Diversity. Montreal: Secretariat of the Convention on Biological Di-
versity. Available at: https://www.cbd.int/abs/doc/protocol/nagoya-protocol-
en.pdf. Last access is March 4th, 2018.
MEDAGLIA, J.C., Perron-Welch, F. & F-K Phillips. National Overview of national
and regional measures on access and benefit sharing. Challenges and opportu-
nities in implementing the Nagoya protocol – Brazil’s Amazon Natural Resour-
ces on Rainforest. 2014 Available at: http://www.florestal.gov.br/snif/recur-
sos-florestais/especies-florestais. Last access is March, 2nd, 2018.
O’CONNOR, D. ‘Governing the global commons: Linking carbon sequestration
and biodiversity conservation in tropical forests’, in Global Environmental
Change 18(3):368–374, 2008
RAGHAVAN, C.. ‘Neem patent revoked by European Patent Office’ in Third
World Network, 2000, p. 1-2.
ROBINSON, D.F. Confronting Biopiracy: Challenges, Cases and International De-
bates.London: Earthscan, 2000, p. 67-76 (Patent-Related Biopiracy Cases).
SAHAI, S. ‘Indigenous knowledge and its protection in India’, in Bellmann, C.,
Dutfield, G. & Melendez-Ortiz, R. (Eds), Trading in Knowledge. Develop-
ment Perspectives on TRIPS, Trade and Sustainability. London/Serling:
Earthscan Publication. 2013, p. 166-183.
TUPPER, K.W. ‘Ayahuasca healing beyond the Amazon: the globalisation of a tra-
ditional indigenous entheogenic practice’, in Global Networks 9(1): 117-136,
2000. DOI:10.1111/j.1471-0374.2009.00245.x
UN — General Assembly Resolution 70/299. 2015. Available at:
http://www.un.org/en/ga/search/view_doc.asp?symbol=A/RES/70/299.
Last access is February 6th, 2018.
UN — General Assembly Resolution on Sustainable Development Knowledge
Platform. Available at: https://sustainabledevelopment.un.org and Follow-up
and review of the 2030 Agenda for Sustainable Development at the global le-
vel. 2015. Available at: http://www.un.org/esa/socdev/unpfii/docu-
ments/2016/Docsupdates/Indigenous-Peoples-and-the-2030-Agenda-with-
indicators.pdf. Last access is January 18th, 2018.
YOUYOU, T. ‘The discovery of artemisin (qinghaosu) and gift s from Chinese me-
dicine’ in Nature Medicine, 17(10):1217-1220, 201.
25
Nanotecnologia no agronegócio: aspectos de
tutela constitucional-ambiental
27
mental damage, in addition to optimizing production, the rational use of re-
sources, and evaluation of the risks generated, aiming to reduce negative im-
pacts and promote the maximization of positive results.
INTRODUÇÃO
28
Nesse contexto, insere-se a aplicação da nanotecnologia para as indús-
trias agrícolas e alimentares. A nanotecnologia se apresenta como um campo
do conhecimento que está avançando “em pesquisa básica, desenvolvimento
de tecnologias e produção de novos materiais” (SILVA, 2010). Esse campo
vem surgindo com uma rápida evolução e com um potencial de revolucionar
os sistemas de agricultura e alimentos, em toda a cadeia agrícola.
Atualmente, a nanotecnologia é vista como uma opção importante para
aumentar a produtividade agrícola, que, juntamente com outras tecnologias
emergentes como a biotecnologia, vem complementar as técnicas conven-
cionais da agricultura. Investimentos em nanotecnologia são importantes
para garantir que o Sistema Nacional de Pesquisa se torne cada vez mais
competitivo, sendo a necessidade de manter a paridade tecnológica com os
concorrentes mundiais uma questão estratégica fundamental para a nação
nos setores agrícola e rural (PUERTA, 2012). Para a BCC Research (2016),
a área de superfície elevada oferecida por nanofibras, combinada com outras
propriedades físicas, elétricas, térmicas e mecânicas, as tornam adequadas
para várias aplicações comerciais de consumo e de serviços, incluindo eletrô-
nicos, energia, mecânica/química/ambiental e as ciências da vida. Nessa per-
pectiva, a nanotecnologia é uma das possíveis alternativas para tornar efetiva
a proteção ambiental, pois conforme denota Toma (2004), “a nanotecnolo-
gia é um caminho para a química verde. Significa menos uso de material,
menos poluição, obtendo-se a mesma eficiência.” Razão porque Hart et al.
(2004) apontam como um dos motivadores globais da sustentabilidade a rá-
pida emergência de tecnologias revolucionárias (convergentes), como o ge-
noma, a biomimética, a tecnologia da informação, a nanotecnologia e a ener-
gia renovável, todas representando a oportunidade para as empresas – espe-
cialmente aquelas que dependem fortemente de combustíveis fósseis, de
recursos naturais e materiais tóxicos – reposicionarem suas competências in-
ternas em torno de tecnologias mais sustentáveis.
Com isso, entende-se que o desenvolvimento da nanotecnologia é guia-
do pelos princípios da sustentabilidade, o chamado “caminho mais verde”
utilizando-se de práticas limpas (exemplo, redução de solventes e insumos
tóxicos, minimizar as necessidades de energia, evitando o desperdício) ou
produzindo tecnologias renováveis ou mais sustentáveis (exemplo, nanocris-
tais que criam células solares mais eficientes; nanocompósitos com veículos
que baixam as emissões de gases de efeito estufa, e nanopartículas de óxido
de ferro que separam os metais pesados da água potável) (REJESKI et al.
2008).
A temática ambiental é de crescente importância dentro do cenário
mundial, atingindo os mais variados aspectos da vida dos seres humanos, en-
tre os quais se inserem o social e o econômico. Na década de 1980 o Brasil
iniciou uma fase de conscientização da sociedade com relação à preservação
ambiental motivado pela regulamentação da Política Nacional de Meio Am-
biente (PNMA), através da Lei Federal nº 6.938, de 1981 (VASCONCE-
LOS, 2017). Contudo, desde a década de 1970 começou se consolidar uma
29
teoria dos direitos fundamentais que coincidiu com a emergência temática
do direito ambiental, face às exigências da complexidade social aliada à cres-
cente crise ambiental, derivada, principalmente, das alterações realizadas
pelo homem no planeta Terra (ações antrópicas) em relação ao meio am-
biente. A par desse desenvolvimento teórico de consolidação da importân-
cia do direito ambiental como um ramo autônomo do Direito, e de sua ina-
fastável correlação com os direitos fundamentais, houve a adoção do marco
jurídico-constitucional socioambiental resultado de um projeto político de
consolidação dos direitos humanos sob o enfoque do desenvolvimento sus-
tentável (SAMPAIO, 2015).
A partir do ideário de desenvolvimento socioeconômico em consonância
com a preservação ambiental que tem seu sedimento na Conferência Mun-
dial de Meio Ambiente de 1972, verdadeiro marco histórico da discussão
dos problemas ambientais no mundo, e consequentemente, da vida e saúde
humana, surgem diversos documentos e declarações internacionais de direi-
to, como o Relatório Brundtland (1987), reafirmados durante a Conferên-
cia das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento realizada
no Rio de Janeiro em 1992, através do Programa de ação da Agenda 21, da
Declaração de Princípios sobre o Manejo Florestal; da Convenção sobre Di-
versidade Biológica e da Convenção Geral sobre Alterações Climáticas; dos
Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM 2000), e, mais recente-
mente, da nova Agenda para o Desenvolvimento Sustentável (ODS 2030)
(ONU, 2015).
Todos esses documentos identificaram como prioritária para o futuro da
humanidade a adoção de um novo paradigma de desenvolvimento, dito sus-
tentável, de modo a garantir o progresso e ao mesmo tempo a preservação
do meio ambiente (o crescimento econômico, a preservação ambiental e a
equidade social). Esse último, direito difuso que extrapola os limites terri-
toriais do Estado Brasileiro, não ficando centrado, apenas, na extensão na-
cional, compreendendo toda a humanidade. Por isso, os países signatários
comprometeram-se a cumprir os programas e a considerar a degradação am-
biental como causa da pobreza, da fome e da ignorância. Razão disso, em
2015, o Brasil, junto com outros 192 países membros das Nações Unidas,
foi signatário da nova Agenda que estabelece 17 Objetivos para o Desenvol-
vimento Sustentável das Nações Unidas. Embutida no Programa Cidades
Sustentáveis, a Agenda 2030, informada por outros instrumentos, tais como
a Declaração sobre o Direito ao Desenvolvimento, está compromissada em
alcançar o desenvolvimento sustentável nas três esferas – econômica, social
e ambiental – de forma equilibrada e integrada, ao abranger todas as dimen-
sões da vida humana e da nossa relação com a biosfera, sumula os Objetivos
do Desenvolvimento Sustentável em cinco P’s: Erradicar a pobreza e a fome
de todas as maneiras e garantir a dignidade e a igualdade (Pessoas); Garantir
vidas prósperas e plenas, em harmonia com a natureza (Prosperidade); Pro-
mover sociedades pacíficas, justas e inclusivas (Paz); Implementar a agenda
30
por meio de uma parceria global sólida (Parcerias); e Proteger os recursos
naturais e o clima do nosso planeta para as gerações futuras (Planeta).
A ideia de sustentabilidade vem sendo representada pela elevação de ex-
pectativas em relação ao desempenho social e ambiental. A sustentabilidade
global tem sido definida como a habilidade para “satisfazer as necessidades
do presente sem comprometer a habilidade das futuras gerações para satis-
fazerem suas necessidades” (WORLD COMMISSION ON ENVIRON-
MENT AND DEVELOPMENT, 1987, p. 8). Similarmente, o desenvolvi-
mento sustentável “é um processo para se alcançar o desenvolvimento hu-
mano (...) de uma maneira inclusiva, interligada, igualitária, prudente e se-
gura” (GLADWIN et al. 1995). Uma empresa sustentável, por conseguinte,
é aquela que contribui para o desenvolvimento sustentável ao gerar, simul-
taneamente, benefícios econômicos, sociais e ambientais – conhecidos
como os três pilares do desenvolvimento sustentável (HART et al. 2004).
Ignacy Sachs (2002, p. 85-9), assim como Maurice Strong1 (que intro-
duziu no debate ocorrido no início da década de 1970, o “Ecodesenvolvi-
mento”), emprega os conceitos de “Ecodesenvolvimento” e “Desenvolvi-
mento Sustentável” como sinônimos, apontando atualmente oito dimensões
interconectadas de sustentabilidade: social, cultural, ecológica, ambiental,
territorial, econômica e política (nacional e internacional), a exigir medidas
que as promovam em equilíbrio (SACHS, 2004, p. 14-5). Essas dimensões
refletem a leitura que o filósofo faz do desenvolvimento dentro de uma nova
proposta, como uma estratégia alternativa à ordem econômica internacio-
nal, enfatizando a importância de modelos locais baseados em tecnologias
apropriadas, em particular para as zonas rurais, buscando reduzir a depen-
dência técnica e cultural (JACOBI, 1999, p. 175-183).
Nesse sentido, Canotilho (2004), ao denominar este modelo como Es-
tado Constitucional Ecológico, conceitua-o afirmando que, além de ser e
dever ser um Estado de Direito democrático e social, deve também ser um
Estado regido por princípios ecológicos. Os princípios ambientais encon-
tram-se, pois, no ordenamento jurídico, com função de orientar a atuação
do legislador e dos poderes públicos além de toda a sociedade na concretiza-
ção e cristalização dos valores sociais, relativos ao meio ambiente, harmoni-
zando as normas do ordenamento ambiental, direcionando a sua interpreta-
ção e aplicação, e ressaltando definitivamente a autonomia do Direito Am-
biental, como ciência (MARTINS, 2008).
O direito ambiental dita normas e diretrizes, visando à tutela do meio
ambiente, recebendo especial destaque o chamado princípio da precaução
(MORITZ; ARAÚJO; 2015). O princípio da precaução abrange o risco ou
perigo do dano ambiental, mesmo que houver incerteza científica, o que sig-
1 Na ocasião, Secretário Geral da Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Am-
biente e Desenvolvimento, depois se tornando o primeiro Diretor Executivo do PNU-
MA (UNITED NATIONS ENVIRONMENT PROGRAMME, 1972).
31
nifica dizer que sua aplicação é anterior ao prejuízo ambiental que pode re-
sultar das ações ou omissões humanas. Uma política ambiental adequada ao
referido princípio deve prever o controle ou afastamento do risco ambiental
e também do perigo ambiental se faz necessário para a proteção do meio am-
biente (COLOMBO, 2005).
Desse modo, a proteção do meio ambiente torna-se, assim, elemento
fundamental no processo de desenvolvimento, pois toda forma de cresci-
mento não sustentável seria oposta ao conceito de desenvolvimento em si,
ao implicar na redução das liberdades das gerações futuras (VARELLA,
2004, p. 43). Nesse sentido, temos a concepção do desenvolvimento como
apropriação efetiva de direitos, eliminando-se as privações de liberdade que
limitam as escolhas e oportunidades dos agentes, ou seja, em expansão das
liberdades, sendo esta o principal fim e meio do desenvolvimento (SEN,
2000, p. 10).
32
vergido para fornecer capacidades notáveis para a compreensão, fabricação
e manipulação de estruturas em nível atômico (GOTTSCHALK NOLAS-
CO, 2016). Segundo Durán, Mattoso e Morais (2006) “nano” é um termo
técnico usado em qualquer unidade de medida, significando um bilionésimo
dessa unidade, por exemplo, um nanômetro equivale a um bilionésimo de
um metro (1nm = 1/1.000.000.000m) ou aproximadamente a distância
ocupada por cerca de 5 a 10 átomos, empilhados de maneira a formar uma
linha, ou seja, é uma medida, não um objeto.
É nesse contexto que a nanotecnologia passa a ter um papel essencial no
ramo do agronegócio, pois a biotecnologia e a nanotecnologia criam produ-
tos e serviços a um nível molecular, sustentando o potencial de aumento de
produtividade e para eliminar o conceito de resíduo e poluição (DREXLER,
2006).
Desse modo, nanotecnologia pode ser conceituada como um conjunto
de técnicas utilizadas para manipular átomo por átomo para a criação de no-
vas estruturas em escala nanométrica. Vê-se o potencial que a tecnologia
pode proporcionar no desenvolvimento de nações (Estados) o que também
poderá gerar benefícios diretos ao desenvolvimento da sociedade, incluindo
o meio ambiente como um todo. Verificam-se possibilidades de melhora-
mento nas propriedades de diversos produtos utilizados pelas pessoas, e
também de seus resíduos que acabarão atingindo potencialmente o meio
ambiente (GOTTSCHALK NOLASCO, 2016).
Quina (2004) aponta que há “perspectivas animadoras dos benefícios da
nanotecnologia para a melhoria do meio ambiente”, entre eles: a) prevenção
de poluição ou danos indiretos ao meio ambiente. Por exemplo, o uso de na-
nomateriais catalíticos pode aumentar a eficiência e seletividade de proces-
sos industriais, resultando em aproveitamento mais eficiente das matérias-
primas e um consumo menor de energia, além de menor produção de resí-
duos indesejáveis; b) tratamento ou remediação de poluição, a exemplo da
coleta das partículas e da remoção de poluentes, facilitada pelo uso de nano-
partículas magnéticas; c) detecção e monitoramento de poluição com a fa-
bricação de sensores cada vez menores, mais seletivos e sensíveis com a fina-
lidade de detectar e monitorar poluentes orgânicos e inorgânicos no meio
ambiente.
Segundo Martins (2006), a questão relacionada à oportunidade tecnoló-
gica e ao meio ambiente aponta que a nanotecnologia proporcionará um me-
nor uso de matérias-primas e energia na produção dos produtos já conheci-
dos, o que implica diretamente na proteção dos ecossistemas naturais.
Ocorre que os nanomateriais liberados na natureza representam uma nova
classe de poluentes manufaturados, pois se pode esperar por potenciais im-
pactos ambientais (mobilidade e persistência no solo, água e ar, bioacumu-
lação e interações imprevistas com materiais químicos e biológicos) e esses
efeitos que não seriam observados nas mesmas partículas em tamanho ma-
cro.
33
Ressalta-se que a grande preocupação em relação ao meio ambiente é a
falta de pesquisa e informações sobre se esse comportamento afetará defini-
tivamente ou não os sistemas ambientais. Assim, surgem invariavelmente
questões como: de que forma estabelecer políticas adequadas para a gestão
de riscos da nanotecnologia para o meio ambiente? Como responsabilizar os
causadores de danos ambientais ocasionados pela nanotecnologia? Somente
a precaução basta para o eficaz controle dos possíveis impactos ambientais
(RAMOS, 2010).
O conceito de precaução tem origens longínquas, e muitos autores o fa-
zem derivar do conceito aristotélico de “prudência” ou “discernimento mo-
ral” (phronesis), embora a ciência experimental moderna não possa ser deri-
vada da concepção logoteórica aristotélica. A precaução foi alçada a princí-
pio do direito positivo com a criação do Vorsorgeprinzip (princípio da previ-
são, em alemão) na Lei do Ar Limpo, em 1974, na Alemanha. Na década de
1980, o princípio foi disseminado por toda Europa do Norte e, posterior-
mente, passou a fazer parte da agenda política global de proteção ambiental,
encontrando sua maior expressão na Declaração da Conferência das Nações
Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento de 1992 (TAVARES;
SCHRAMM; 2015).
Em 1992, a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e De-
senvolvimento ou Rio-92, foi o maior evento realizado no âmbito das Na-
ções Unidas até então. Delegados de 172 países e 108 chefes de Estado,
além de 10 mil jornalistas e representantes de 1.400 ONGs, estiveram pre-
sentes no Riocentro, enquanto membros de 7 mil ONGs e boa parte da po-
pulação do Rio de Janeiro, de várias cidades do Brasil e de outras partes do
mundo reuniram-se no Fórum Global, no Aterro do Flamengo.
A Conferência do Rio consolidou o conceito de desenvolvimento sus-
tentável, proposto pelo Relatório Nosso Futuro Comum, de 1987, que bus-
cava superar o conflito aparente entre desenvolvimento e proteção ambien-
tal. No contexto das decisões da Rio 92, estabeleceu-se a Convenção- Qua-
dro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima, a Convenção sobre Diver-
sidade Biológica, a Declaração de Princípios sobre Florestas, a Declaração
do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento e a Agenda 21. A Rio 92
representou, desse modo, ponto de inflexão na discussão internacional do
desenvolvimento sustentável.
As Nações Unidas decidiram realizar em 2002, na África do Sul, uma
Conferência para marcar os dez anos da Rio-92, cujo objetivo era analisar os
resultados alcançados e indicar o caminho a ser seguido para implementação
dos compromissos. A Cúpula Mundial sobre Desenvolvimento Sustentável
reuniu, em Johanesburgo, mais de 100 Chefes de Estado e reafirmou metas
relativas à erradicação da pobreza, à promoção da saúde, à expansão dos ser-
viços de água e saneamento, à defesa da biodiversidade e à destinação de re-
síduos tóxicos e não- tóxicos. A agenda de debates incluiu energias renová-
veis e responsabilidade ambiental das empresas, bem como a necessidade de
34
que todos os atores sociais somem esforços na promoção do desenvolvimen-
to sustentável (Rio-20, 2012).
De maneira geral, o Princípio da Precaução tem sido entendido como a
garantia contra os riscos potenciais que, de acordo com o estado atual do co-
nhecimento científico, não podem ainda ser identificados. Assim, permite a
ação mesmo que haja incerteza sobre as evidências do risco e expressa extre-
ma prudência, sendo indicado para aplicação em casos de efeitos adversos
onde a avaliação científica não permite que o risco seja determinado com a
certeza suficiente.
Na aplicação do Princípio da Precaução não utópico é justificável a ado-
ção de medidas e procedimentos quanto à análise de risco, cuja definição
significa a probabilidade dos perigos físicos, químicos, biológicos e ambien-
tais ocorrerem. Levando em consideração que não existe risco zero, seguran-
ça absoluta e nem a probabilidade zero ou de 100% na estimação de riscos
futuros em eventos biológicos, na análise de risco devem ser considerados os
seguintes temas: avaliação do risco, gerenciamento ou manejo do risco, além
da comunicação do risco (VALOIS, 2016).
O “desenvolvimento responsável” da ciência e da tecnologia é fator es-
sencial para a melhoria da qualidade da vida humana e o desenvolvimento
sustentável (em todas as dimensões), portanto é fundamental investir em
ciência e tecnologia para trazer inovações que maximizem o uso de recursos
naturais (redução de matéria prima, reciclagem, eficiência energética).
O desenvolvimento sustentável vem de um processo longo, contínuo e
complexo de reavaliação crítica da relação existente entre a sociedade civil
com seu meio natural, assumindo diversas abordagens e concepções. Apre-
sentar progresso em direção à sustentabilidade é uma escolha da sociedade,
das organizações, das comunidades e dos indivíduos, devendo existir um
grande envolvimento de todos os segmentos (BELLEN, 2005).
35
O Direito como ciência, por meio do estabelecimento de instrumentos
jurídicos deve criar medidas de gerenciamento preventivo e precaucional
para o risco, baseado nos princípios constitucionais da informação e da res-
ponsabilização, essa que fundamenta a aplicação do princípio da precaução
voltada para uma amplitude temporal (prospectiva) até então desconsidera-
da pelo Direito. Na prática, em termos jurídico-constitucionais, implica na
obrigatoriedade de adoção de medidas de segurança e precaução adequadas,
ordenadas e antecipatórias (legislação, instrumentos de avaliação e gestão de
riscos), que limitem ou neutralizem a causação de danos, cuja irreversibili-
dade total ou parcial gera efeitos, danos e desequilíbrios negativamente per-
turbadores da sobrevivência condigna da vida humana e de todas as formas
de vida centradas no equilíbrio e estabilidade dos ecossistemas naturais ou
transformados (GOTTSCHALK NOLASCO, 2016).
Apesar de a legislação brasileira ter um vasto leque de possibilidades ju-
rídicas, no que tange aos sistemas ambientais, somente essas leis não respon-
dem satisfatoriamente às questões arguidas. Dentre as principais normas ju-
rídicas envolvendo o tema de forma indireta, destacam-se: a Constituição
Federal de 1988, em seu art. 225 prevê a tutela ambiental e o direito ao
meio ambiente ecologicamente equilibrado; a Lei 6.938/81 – Política Na-
cional do Meio Ambiente; a Lei 7.347/85 – Lei da Ação Civil Pública; Lei
7.802/89 – Lei de Agrotóxicos; Lei 9.605/98- Lei dos Crimes Ambientais;
Lei 11.105/2005 – Lei de Biossegurança; além das resoluções do Conama
(FERRONATO, 2010).
No entanto, as normas jurídicas vigentes não possuem análises e dados
dos ciclos de vida, que salientam ainda mais as brechas regulatórias existen-
tes, pois apesar dos produtos entrarem no mercado global, ainda há dúvidas
sobre os potenciais riscos e benefícios da tecnologia para os consumidores,
trabalhadores, para a saúde humana e o meio ambiente.
Com os avanços da nanotecnologia é possível, através do desenvolvi-
mento de sensores, avançar na análise sensorial e no monitoramento da qua-
lidade de produtos agropecuários, tais como alimentos, bebidas, além de
permitir a detecção de contaminantes no solo e na água. O desenvolvimento
de novos materiais é chave para a consolidação de produtos e processos ino-
vadores em todas as áreas de produção tecnológica, incluindo-se o agronegó-
cio. Desta vertente, tanto interessam os novos materiais possivelmente ob-
tidos de produtos agrícolas como aqueles destinados ao desenvolvimento de
novos processos e produtos de base agrícola.
O desenvolvimento de novas tecnologias para o setor agropecuário a par-
tir de temas de fronteira, como a nanotecnologia, é uma necessidade já re-
conhecida pela Embrapa. Portanto, são necessários esforços no desenvolvi-
mento de novos materiais, destinados na aplicações de insumos, a conversão
de produtos agrícolas (particularmente em agroenergia), o tratamento de
efluentes gerados destes processos e a valorização de produtos agroflorestais
(EMBRAPA, 2011).
36
O uso da nanotecnologia promove o contato de nanopartículas e nanoes-
truturas com organismos vivos, em situações ainda não compreendidas ple-
namente. Na atividade agrícola isso pode ocorrer em larga escala, como no
caso de aplicações de agrotóxicos encapsulados em nanoestruturas de libe-
ração controlada, cuja toxidade inerente ao sistema de liberação ainda ne-
cessita de constante verificação.
A dificuldade de desenvolvimentos tecnológicos na área do Agronegócio
está na compreensão de modelos que permitam que estas novas tecnologias
cheguem realmente ao setor produtivo, pois o comportamento dessas tec-
nologias é assimilado de formas diferentes em cada setor. Assim, um mode-
lo único de transferência destas tecnologias pode ser falho, em maior ou me-
nor grau, em função do tipo de mercado que se deseja atingir. Esta dificul-
dade não é exclusiva dos trabalhos envolvendo o agronegócio, mas aparece
sistematicamente em todas as avaliações acerca da introdução de tecnolo-
gias inovadoras no Brasil (EMBRAPA, 2011).
Diante das enormes possibilidades oferecidas por essa ciência de
proporções pra lá de diminutas, um grupo de cientistas da Embrapa, univer-
sidades e instituições públicas e privadas de pesquisa decidiram se dedicar
ao estudo de nanossistemas para buscar rotas e caminhos sustentáveis em
prol da agricultura brasileira. O grupo de pesquisadores da Embrapa Recur-
sos Genéticos e Biotecnologia, em Brasília/DF, usa como objeto de estudo
os subprodutos da agricultura, ou seja, resíduos e rejeitos da produção con-
siderados muitas vezes sem utilidade para o setor produtivo e têm encontra-
do nesses resíduos (cascas, pelos de animais e partes dos alimentos que não
são comercializadas) caminhos sustentáveis capazes de reduzir o uso de sol-
ventes tóxicos, materiais sintéticos e outros produtos nocivos ao meio am-
biente e à saúde humana e de animais (EMBRAPA, 2014).
CONCLUSÃO
37
produtos com propriedades, funcionalidades e características distintas e
muitas vezes superiores aos materiais usuais. Entretanto, como qualquer
área da tecnologia que faz uso intensivo de novos materiais e substâncias quí-
micas, ela traz consigo alguns riscos ao meio ambiente e à saúde humana.
A inserção de uma abordagem baseada no princípio da precaução busca
evitar os riscos que podem ocasionar danos graves ou irreversíveis ao meio
ambiente, com intuito de proteger direitos. Portanto, o desenvolvimento
sustentável no agronegócio e a aplicação dos princípios constitucionais am-
bientais em conjunto com a nanotecnologia, podem gerar resultados positi-
vos na redução de custos e maior eficiência produtiva agroindustrial.
Referências
38
DURÁN, N.; MATTOSO, L. H. C.; MORAIS, P. C. Nanotecnologia – Introdu-
ção, preparação e caracterização de nanomateriais e exemplos de aplicação.
1. ed. São Paulo: Artliber, 2006.
EMBRAPA (2011-2015). Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento.
Nanotecnologia aplicada ao Agronegócio. Disponível em: “https://www.em-
brapa.br/busca-de-projetos/-/projeto/38194/nanotecnologia-aplicada-ao-agr
onegocio”. Acesso Set. 2017.
EMBRAPA (2014). Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento. Nanotec-
nologia verde provoca revolução sustentável na agricultura. Disponível em:
“https://www.embrapa.br/busca-de-noticias/-/noticia/1975958/nanotecnol
ogia-verde-provoca-revolucao-sustentavel-na-agricultura”. Acesso Set. 2017.
FERRONATTO, R. L. Nanotecnologia, ambiente e direito: desafios para a socie-
dade na direção a um marco regulatório. Disponível em: “http://www.egov.
ufsc.br/portal/sites/default/files/dissertacao_rafael_luiz_ferronatto.pdf”.
Acesso Jul. 2017
GOTTSCHALK NOLASCO, L.. Regulamentação jurídica da nanotecnologia.
Tese de doutorado- Universidade Federal de Goiás, 2016.
Hart, S.L.A; Milstein, M. B. Criando valor Sustentável, GV-Executivo, 3, 2,
maio/julho 2004.
INSTITUTO BRASILEIRO DE SUSTENTABILIDADE – InBS. (1987). Relatório
Brundtland “Nosso Futuro Comum” – definição e princípios. “http://www.
inbs.com.br/ead/Arquivos%20Cursos/SANeMeT/RELAT%23U00d3RIO%20
BRUNDTLAND%20%23U201cNOSSO%20FUTURO%20COMUM%23U201
d.pdf” Acesso Set. 2017.
MARTINS, J. X. F. A importância dos princípios constitucionais ambientais na
efetivação da proteção do meio ambiente. Disponível em: “http://www.re-
deacqua.com.br/wp-content/uploads/2011/09/Os-princ%C3%ADpios-cons-
titucionais-ambientais.pdf”. Acesso Set. 2017.
MARTINS, P. R. Nanotecnologia, sociedade e meio ambiente. São Paulo: Xamã,
2006.
Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento. Plano Agrícola e Pecuário
2011- 2012 / Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento. Secreta-
ria de Política Agrícola. – Brasília: Mapa/SPA, pág. 92. ISSN 1982-4033,
2011.
MINISTÉRIO DE MEIO AMBIENTE (MMA). Brasil. Resíduos Sólidos. Disponí-
vel em: “ http://www.mma.gov.br/mma-em-numeros/residuos-solidos”.
Acesso Set. 2017.
MORITZ, D. H; ARAUJO, L. E B.. A aplicação dos princípios da precaução e pre-
venção como instrumentos para uma agricultura sustentável. Disponível em:
“ http://repositorio.ufsm.br/bitstream/handle/1/11450/Monografia%
20ap%C3%B3s%20corre%C3%A7%C3%B5es.pdf?sequence=1”. Acesso Set.
2017.
POLITICA NACIONAL DE MEIO AMBIENTE. Lei 6.938/81. Disponível em:
“http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L6938.htm”. Acesso Set. 2017.
PORTER, M. E. Competição: estratégias Competitivas Essências. Rio de Janeiro:
Campus, 1999.
39
PUERTA, A. A. Pesquisa em nanotecnologia para o agronegócio: indicadores bi-
bliométricos de produção científica entre 2001 e 2010. Disponível em:
“https://repositorio.ufscar.br/bitstream/handle/ufscar/1089/4318.pdf?sequ
ence=1”. Acesso em 06 de setembro de 2017.
QUINA, F.H. Nanotecnologia e o meio ambiente: perspectivas e riscos. Química
Nova, São Paulo, 27, 6, 1028-29, 2004.
RAMOS, G. C. D. Nanotecnologia e Meio Ambiente. In: Nanotecnologia, ambien-
te e direito: desafios para a sociedade na direção a um marco regulatório, 2010.
Acesso Jul. 2017.
REJESKI, D.; LEKAS, D. Nanotechnology field observations: scouting the new in-
dustrial West, Journal of Cleaner Production, 16, 1014, 2008.
ROMEIRO, A. R. Desenvolvimento sustentável e mudança institucional: notas
preliminares. Instituto de Economia –Textos para Discussão, Texto 68, 1999.
Disponível em: “http://www.eco.unicamp.br/publicacoes/textos/t68.html”.
Acesso Ago. 2017.
SAMPAIO, R. S. R. Direito ambiental. Disponível em: “https://direitorio.fgv.
br/sites/direitorio.fgv.br/files/u100/direito_ambiental_2015-2.pdf”. Acesso
Set. 2017.
SILVA, V. J. B. Produção do conhecimento científico e tecnológico por meio da
análise dos registros bibliográficos dos artigos científicos e patentes sobre es-
pécies vegetais da biodiversidade amazônica. 2010. 94 f. Dissertação (Mes-
trado) – Instituto de Ciências Humanas e Letras, Universidade Federal do
Amazonas, Manaus.
TAVARES, E. T; SCHRAMM, F. R. Princípio da Precaução e Nanotecnociências.
Disponível em: “http://www.scielo.br/pdf/bioet/v23n2/1983-8034-bioet-
23-2-0244.pdf”. Acesso Set. 2017.
TOMA, H.E. O mundo nanométrico: a dimensão do novo século. São Paulo: Ofi-
cina de Textos, 2004.
VALOIS, A. C. C. O princípio da precaução em OGMs e recursos genéticos. Dis-
ponível em: “http://www.recursosgeneticos.org/Recursos/Arquivos/9._
O_princ_pio_da_precau_o_em_OGMs_e_recursos_gen_ticos.pdf”. Acesso
Set. 2017.
VANCONCELOS, P. E. A; VASCONCELOS, P.S. A study of reverse logistics in
the Brazilian solid waste policy. International Journal of Advances in Social
Science and Humanities(IJASSH), vol. 5, março 2017.
WORLD COMMISSION ON ENVIRONMENT AND DEVELOPMENT. Our
common future. Oxford: Oxford University Press, 1987.
GLADWIN, T., KENNELLY, J. E KRAUSE, T. Shifting paradigms for sustainable
development: implications for management theory and research. Academy of
Management Review, v. 20, n. 4, p. 878-907, 1995.
JACOBI, P. R. Meio Ambiente e Sustentabilidade. In: CEPAM. O município no
século XXI: cenários e perspectivas. São Paulo: CEPAM (Centro de Estudos
e Pesquisas de Administração Municipal), 1999.
MENDES, J. T. G; PADILHA JUNIOR, J. B. Agronegócio: Uma Abordagem Eco-
nômica. São Paulo: Pearson Prentice Hall, 2007.
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Transformando Nosso Mundo: A
Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável, 2015. https://nacoesuni-
das.org/pos2015/agenda2030/. Acesso Ago. 2017.
40
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS CONFERÊNCIA DAS NAÇÕES
UNIDAS SOBRE O MEIO AMBIENTE. Declaração do Rio sobre meio am-
biente e desenvolvimento. 1992. “http://www.onu.org.br/rio20/img/ 2012/
01/rio92.pdf”. Acesso Ago. 2017.
PADILHA JUNIOR, João. B. O Impacto da Reserva Legal Florestal sobre a Agro-
pecuária Paranaense, em um Ambiente de Risco. Curitiba, 2004. Dissertação
(Doutorado em Ciências Florestais), Universidade Federal do Paraná.
SACHS, Ignacy. Caminhos para o Desenvolvimento Sustentável. Rio de Janeiro:
Garamond, 2002.
SACHS, Ignacy. Desenvolvimento includente, sutentável, sustentado. Rio de Ja-
neiro: Garamond, 2004.
SEN, Amartya. Desenvolvimento como Liberdade. São Paulo: Companhia das Le-
tras. 8ª reimpressão, 2000.
VARELLA, Marcelo Dias. Direito internacional econômico ambiental. Belo Hori-
zonte: Del Rey, 2004.
41
El estimulo conductual (Nudge) como
instrumento de concienciación de la mujer
ante el aborto clandestino1
43
INTRODUCTION
2 El beneficio de una de las partes no puede aumentar sin penalizar las legitimas
expectativas de las otras
44
nal sin retirarles por ello su libertad de eleccion, principio esencial de todo
Estado Democrático mas alla de la criminalización o despenalización del
aborto en el sistema penal brasile ño.
Este enfoque metodológico basado en la revisión de la literatura relevan-
te, explora las posibles vias alternativas para superar el debate tradicional so-
bre control/represión del aborto por otro multiagente mediante el empleo
de los instrumentos analíticos propios de la Economía Conductual.
La palabra bioética deriva de una de las dos acepciones del griego clásico
para designar la vida: zoé, que se refiere a la existencia biólogica, y bios, a la
humanidad en su dimensión moral y política. Y en el caso del mundo occi-
dental, el concepto de humanidad ha venido abarcando también la dignidad
de la persona humana.
La bioética trata por tanto de la protección de la vida y de la dignidad
humana garantizando los derechos fundamentales: derecho a la integridad
física, a la presunción de inocencia, a la salud, a la autonomía y a la libertad
de conciencia. Idealmente, el respeto de estos derechos permite una exist-
encia pacífica y feliz de las personas humanas dentro de sus relaciones socia-
les.
De acuerdo con el artículo 2 de la Declaración Universal sobre el geno-
ma humano y los derechos humanos de 1997:
45
1.2. Revision histórica
46
años. En este sentido, con la revocación en 2016 po rparte de la Primera Cá-
mara del Tribunal Supremo Federal (STF) de la detención preventiva de va-
rios médicos de una clínica abortiva, medida que sólo era aplicable para los
directamente imputados, la más alta Corte del país abrió el camino para la
despenalización general de aborto para las mujeres y facultativos implica-
dos. Como se expone en el voto particular del magistrado Barroso: ¿Cómo
puede el Estado – es decir, un delegado de policía, un fiscal o un juez de de-
recho – imponer a una mujer, en las semanas iniciales de la gestación, que la
lleve a término, como si se tratase de un útero al servicio de la sociedad y no
de una persona autónoma, en el goce de plena capacidad de ser, pensar y vi-
vir la propia vida? (Habeas Corpus nº 124.306/RJ) Además de estos funda-
mentos, este voto particular considera el negativo impacto de la criminaliza-
ción sobre mujeres de clases bajas, alegando que el tratamiento penal siste-
matico del aborto como delito en el código penal brasileño impide que estas
mujeres, puedan acudir a los servicios sanitarios gratuitos dado que, por fal-
ta de recursos, este estrato de poblacion no tiene acceso a los servicios de
clínicas privadas (Op. Cit, 2016, s/p). Como consecuencia, son comunes los
casos de automutilación, lesiones graves y muertes siguiendo las prácticas
clandestinas. Citando investigaciones internacionales, el magistrado postula
en su voto que el castigo de prisión no disminuye el número de abortos, ca-
lificando en consecuencia como “dudosa” la idea de que su criminalización
protege la vida del no nacido. La prisión trae más costos sociales que benefi-
cios (Idem, 2016, s/p) mientras que el Estado dispone de otros medios para
evitar la práctica clandestina, como educación sexual, distribución de anti-
conceptivos, esterilizacion y apoyo a la mujer que, aunque desee tener hijos,
se enfrenta a serias dificultades para criar a un niño.
Es importante señalar que el artículo 128 del Código Penal Brasileño3
limita a tres las causas de despenalización del aborto: (i) que no haya otro
medio de salvar la vida de la gestante; (ii) que el embarazo resulte de viola-
ción y el aborto es precedido de consentimiento de la gestante o de su rep-
resentante legal cuando es incapaz, y (iii) en el caso de feto anencéfalo – ver
ADPF 54.
3 Articulo 128 del Código Penal: Será condenado con prisión de seis (6) meses a
cuatro (4) años el que produjere, financiare, ofreciere, comerciare, publicare, facilitare,
divulgare o distribuyere, por cualquier medio, toda representación de un menor de die-
ciocho (18) años dedicado a actividades sexuales explícitas o toda representación de sus
partes genitales con fines predominantemente sexuales, al igual que el que organizare
espectáculos en vivo de representaciones sexuales explícitas en que participaren dichos
menores.
Será condenado con prisión de cuatro (4) meses a dos (2) años el que tuviere en su
poder representaciones de las descriptas en el párrafo anterior con fines inequívocos de
distribución o comercialización.
Será condenado con prisión de un (1) mes a tres (3) años el que facilitare el acceso
a espectáculos pornográficos o suministrare material pornográfico a menores de catorce
(14) años.
47
2 CONTEXTUALIZANDO EL ESTIMULO CONDUCTUAL (NUD-
GE) NO IMPOSITIVO, LA ARQUITECTURA DE LA ELECIÓN Y EL
PATERNALISMO LIBERTARIO
2.1. Nudge
48
La arquitectura de elección, representa según Thaler y Sustein un poder
considerable para la formulación de políticas públicas siempre que se utilice
para fines de intereses público y de mejora del bienestar de los seres huma-
nos (2008, p.27). Es importante resaltar que la arquitectura de elección nos
permite decidir cuál es el principio normativo, así como el ético, en el dise-
ño de las elecciones de los ciudadanos (Op. Cit, p.29).
Reconocer el papel de este “arquitecto de elecciones”, y el poder que
éste detenta, es esencial desde el punto de vista de Thaler y Sustein, ya que
las personas se encuentran influenciadas incluso por cosas que no son explí-
citas. Si el poder de esta influencia se utiliza para fines de interés público, se
establece un marco adecuado para regular las relaciones entre instituciones
y ciudadanos (2008, p. 34-35). Los autores esbozan seis principios que debe
reunir una buena arquitectura de eleccion: (i) dotar las elecciones de estruc-
turas bien definidas; (ii) definir los roles; (iii) esperar errores; (iv) otorgar
incentivos; (v) predefinir opciones; y (vi) tomar en cuenta las opiniones pos-
teriores de los usuarios para mejorar el sistema (2008, varias páginas).
El sistema de arquitectura de elección ayuda a las personas a mejorar su
capacidad de elección y, por lo tanto, a seleccionar las opciones más adecua-
das. Una manera eficaz de conseguirlo es hacer que la información que faci-
lita el agente sobre las diferentes opciones sea más comprensible simplifi-
cando la presentación y el diseño de las diferentes opciones. Los ejemplos
deben incluir el número total de opciones, la información si son mutuamen-
te excluyentes o no, las alternativas de que se disponen y los incentivos aso-
ciados a cada una de ellas (2016, s/p).
El sistema pasa del binario polarizado a uno multifacético, permitiendo
al usuario analizar mejor la información disponible, positivar de modo cien-
tifico sus posibilidades y mejorar la transparencia de su elección.
49
negativa, lo que constituye per ser una tautologia que escapa a la propia de-
finición del término. Aunque en su estrategia, los autores sigan la premisa de
que las personas deben ser libres para hacer lo que quieran y elegir lo que es
mejor para sí mismas, no dejan de sustraerse al propio sesgo del paternalis-
mo. Como ejemplo, los casos en que la ley restringe las elecciones del indi-
viduo, pero en su propio beneficio, como la legislacion que castiga el trafico
de drogas, las normas administrativas que obligan al uso de cinturones de se-
guridad, etc, etc.
Robert Nozick afirma que la libertad individual consiste en el derecho
fundamental de todo hombre a vivir según sus propias elecciones, dispo-
niendo de sus bienes y tiempo como mejor considere siempre que respete
idéntica libertad en los otros. (2011, p. 22). La construcción de la teoría de
Nozick se hace a partir de una “explicación potencial fundamental” sobre la
naturaleza humana según la cual los individuos, en el estado de naturaleza,
son plenamente libres para dirigir sus acciones y disponer de sus bienes (Op.
Cit, p. 24).
En este punto, podríamos preguntarnos, como Dworkin, por qué esta vi-
sión necesita ser etiquetada por sus ideólogos como Paternalismo libertario,
entendiendo que, a diferencia del paternalismo tradicional que excluye las
elecciones por coacción o añade costos a las elecciones voluntarias, Nudge
simplemente cambian la presentación de las elecciones de tal forma que las
personas se vuelven más propensas a elegir unas opciones sobre otras
(DWORKIN, 2013, p. 26). Esta visión es libertaria porque preserva la liber-
tad de elección. Ninguna elección se elimina o se dificulta y nadie es coac-
cionado. El conjunto de opciones sigue siendo el mismo. No hay costos o in-
centivos significativos asociados a las opciones a las que el sujeto se enfrenta.
A su vez, este punto de vista tiene también aires paternalistas porque busca
promover el bien a través del nudging. Podríamos sustituir perfectamente
“paternalismo” por “benevolencia” y conservar todo el significado del con-
cepto, Si esta expansión de la definición de paternalismo está justificada o
no, depende de la transparencia del proceso. Hay Nudges que por definición
no pueden ser paternalistas porque su fin es promover el bien general, aun-
que el concreto sujeto no se beneficie. Como ejemplos se pueden citar va-
rios: instalar ascensores con botones en braille, o influir indirectamente a las
personas para que aporten fondos en una campana benéfica, colocando re-
tratos de niños desnutridos.
No obstante, la cuestión principal no es si la definición de paternalismo
es útil o no, sino en qué circunstancias Nudge es una practica adecuada para
influir en las decisiones humanas (DWORKIN, 2016, s/p). Así, practicar o
no un aborto en los casos permitidos o hacerlo incluso con plena consciencia
de que es un acto ilegal, puede ser al final una elección dirigida y no autóno-
ma. Una de las ideas centrales de la teoría es que los juicios y elecciones son
sensibles al contexto; el hecho de que una elección sea conceptualizada
como positiva o negativa influirá en la decisión final. (TVERSKY, KAHNE-
MAN, 1981, p. 453-458).
50
3. EL USO DEL ESTIMULO CONDUCTUAL (NUDGE) COMO
INSTRUMENTO DE CONCIENCIACIÓN DE LA MUJER ANTE EL
ABORTO
51
Desgraciadamente, es difícil decidir si ese tipo de consenso es lo sufi-
cientemente fuerte para construir una política pública sobre él. Si bien es
cierto que dos tercios de los brasileños manifiestan su rechazo al aborto se-
gún las últimas encuestas, no es posible sacar conclusiones sobre cómo se
comportarían exactamente esos dos tercios de ciudadanos si tuvieran que
enfrentarse directamente a esta situación. (En Brasil no hay todavía datos
fidedignos del Ministerio de Salud para afirmar qué porcentaje de la pobla-
ción comparte esa postura). Se da por válida la información de que en Brasil
se realizan 1,5 millones de abortos ilegales al año; de ese total, 250.000 mu-
jeres quedan con alguna secuela y unas 11.000 fallecen a consecuencia del
aborto practicado. En este contexto el supuesto apoyo social para continuar
con las restricciones legales al aborto no necesariamente depende de las ex-
periencias personales reales.
Los desarrollos posteriores de Nudges plantean la cuestión de si Suns-
tein y Thaler consideran apropiados o inapropiados bajo el contexto del
aborto, aunque, de partida, sus estudios no descartan el nudging en estos te-
mas. En un artículo reciente argumentan lo siguiente (SUNSTEIN, 1992, p.
241):
52
CONSIDERACIONES FINALES
Cualquier norma reguladora del aborto debe quedar sujeta al debate pú-
blico y sometida al escrutinio de la ley. Y, como explica Dworkin, en el uso
del pensamiento derivado como parámetro, la ley no abre la excepción hasta
el punto de permitir, por ejemplo, el aborto en casos de violación. Sin em-
bargo, en el uso del pensamiento independiente, se estaría desatendiendo
en última instancia una de las mayores garantías constitucionales de un Es-
tado: la libertad de cada uno y de sus creencias religiosas (2013, p.29).
El uso de Nudge puede ser demasiado prematuro para algunos, pero lo
demostrado hasta ahora sugiere que puede suponer una acción de gobierno
realmente efectiva y eficaz a la vez que sugerente.
Por supuesto, el presente analisis demuestra que es posible utilizar me-
dios menos coercitivos para ayudar en el proceso personal e institucional de
toma de decisiones. Por lo tanto, no hay nada de censurable en emplear
Nudge como medio de ayudar a los individuos dentro de las cuestiones que
tienen que ver con la reproducción del ser humano (añadiendo aquí clona-
ción y terapia génica, por ejemplo) Cierto es que, para el caso del aborto y
de sus opciones regulatorias, es necesario abrir un debate franco y abierto
que incluya a las propias mujeres y no proceder aquí con imposiciones polí-
ticas unidireccionales, de arriba a abajo, que no respeten la importancia de
las elecciones reproductivas y las legitimas aspiraciones de las mujeres.
Se puede defender la utilización de Nudges como forma de conciencia-
ción del aborto y salida consciente para que las personas reciban mejor infor-
mación sobre él o incluso una forma de flexibilizar su descriminalización,
que aún está muy incipiente en Brasil en base el art. 128 de su Código Penal.
La cuestión fundamental aquí es el hecho de que, sea de forma legal o ilegal,
se practican cada año miles de abortos clandestinos en Brasil y Nudges pue-
de ser una forma menos drástica y más concreta de ayudar en la decisión
correcta para las mujeres que pretendan o no realizarlo, conscientes de lo
que está en juego.
REFERENCIAS
53
Christian Coons and Michael Weber, 178-196. Cambridge, MA: Cambridge
University Press, 2013.
DADOS DO SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE – SUS. Disponible en: “http://data-
sus.saude.gov.br”. Accedido en 07 de mayo de 2017.
DICIONÁRIO DE TERMOS MÉDICOS. Disponible en: “https://www.infope-
dia.pt/dicionarios/termos-medicos/pess%C3%A1rio”. Accedido en 15 de fe-
breiro de 2017.
DWORKIN, Gerald. Defining paternalism. In Paternalism: Theory and practice,
ed. Christian Coons and Michael Weber, 25-38. Cambridge, MA: Cambridge
University Press. 2013.
_______. “Paternalism”, In: ZALTA, Edward N. (Org.), The Stanford Encyclope-
dia of Philosophy, Winter Edition, 2016. Disponible en: “https://plato.stan-
ford.edu/archives/win2016/entries/paternalism/”. Accedido en 05 de eneiro
de 2017.
DWORKIN, Ronald.Domínio da vida: aborto, eutanásia e liberdades individuais.
São Paulo: Martins Fontes, 2003.
HIPÓCRATES. Juramento hipocrático. Tratados médicos [Hippocratic Oath. Me-
dical Treatises]. Madrid: Planeta De-Agostini. 1995.
IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – Questão de Reprodução.
Disponible en: “http://www.brasilpost.com.br/2015/08/21/estados-aborto-
no-brasil-_n_8022824.html”. Accedido en 05 de mayo de 2017.
NOZICK, Robert. Anarquia, estado e utopia. São Paulo: WMF Martins Fontes,
2011.
PATASHNIK, Josh. A nudgeon a hot Button issue: Abortion. Disponível en:
“http://nudges.org/a-nudge-on-a-hot-button-issue-abortion/”. Accedido en
03 de febreiro de 2017.
PERSAD, Govind. Libertarian Patriarchalism: Nudges, Procedural Road blocks,
and Reproductive Choice. In: 35 Women’s Rts. L. Rep. 273 Spring/Summer
2014, p. 273-298. Disponible en: http://scholarship.law.georgetown.edu/cgi/
viewcontent.cgi?article=2520&context=facpub”. Accedido en 3 de marzo de
2017.
RIDDLE, J. ‘Oral Contraceptives and Early-Term Abort if acients during Classical
Antiquity and the Middle Ages’ in Past and Present, In: Eve’s herbs: a history
of contraception and abortion in the West. Cambridge, Massachusetts: Har-
vard University Press. No. 132, Aug, 1991, second publish on1997, pp. 3-32.
ROTHMAN, B. K., ‘Redefining Abortion’, In: Ethics in Practice, edited by Hugh
La Follette. Malden: Blackwell,1997, p. 103-111
SANDEL, Michael J. Justice: What the right thing to do? London: Macmillan Pu-
blish, 2010.
SCHWEIZER, Mark. Nudging and the principle of proportionality: obliged to nud-
ge? In: Mahis, Klaus (ed.), Economic Analysis of Law in European Legal Scho-
larship, Springer (Forthcoming). Paper presented at 4th Law and Economics
Conference, Lucerne 17-18 April 2015. Disponible en: “https://pa-
pers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=2607239”. Accedido en 20 de
april de 2017.
SUNSTEIN, Cass R.; MÖLLERS, Christoph. Key Note in the BBAW Leibniz Hall,
Berlin. Lecture: The Ethics of Choice Architecture. 2015. Disponible em:
“http://verfassungsblog.de/key-note-lecture-ethics-choice-architecture-2/”.
Accedido en 26 de noviembro de 2017.
54
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL – STF. ADPF 54. Disponible en: http://www.
stf.jus.br/arquivo/informativo/documento/informativo661.htm.” Accedido
en 02 de junio de 2017.
______. Habeas Corpus nº 124.306/RJ. Disponible en: “https://www.stf.jus.br/ar-
quivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/HC124306LRB.pdf. Accedido en 30 de
mayo de 2017.
THALER Richard H.; SUSTEIN, Cass R., Libertarian Paternalism Is Notan Oxy-
morum. The American Economic Review, 93, Nº. 2, 2003, p.175-179.
_______. Nudge. New Haven, Conn.: Yale University Press, 2008.
TVERSKY, Amos, and KAHNEMAN, Daniel. The framing of decisions and the psy-
chology of choice (traduzido para o português com o título Nudge: O Empurrão
para a escolha certa) Massachusetts: Yale University Press. 1981, Science 211:
453-458.
55
Meio ambiente e cidadania: desafios
contemporâneos
Reis Friede
1. INTRODUÇÃO
57
porque moravam fora de seus muros), estavam excluídos da participação e
das benesses proporcionadas pela cidadania.
Vê-se que, desde Roma, a cidadania esteve ligada a privilégios, pois os
direitos dos cidadãos eram restritos a determinadas classes e grupos de pes-
soas. Ao longo da história, porém, seu conceito foi se aprimorando, sendo
que na Idade Moderna ocorreu a união dos direitos universais com o concei-
to de nação, introduzindo os princípios de liberdade e igualdade perante a
lei e contra os privilégios. Entretanto, mesmo assim, a cidadania continuava
restrita às elites, porque depende de direitos políticos, vetados para a maio-
ria da população.
No Brasil, o conceito de cidadania vem sendo construído desde o adven-
to da Constituição de 1891 (redigida por Rui Barbosa), sendo que um gran-
de passo em seu desenvolvimento deu-se a partir da promulgação da Cons-
tituição de 1988, conhecida como “A Constituição Cidadã”.
Segundo Dallari (1998), trata-se de um conceito que expressa um con-
junto de direitos que dá à pessoa a possibilidade de participar ativamente da
vida e do governo de seu povo. Logo, quem não “tem cidadania está margi-
nalizado ou excluído da vida social e da tomada de decisões, ficando numa
posição de inferioridade dentro do grupo social” (DALLARI, 1998, p. 14).
Todavia, ainda prevalece entre nós uma inconteste visão reducionista da
cidadania, pois pode-se afirmar que uma grande parcela dos habitantes das
cidades (mormente os moradores de áreas favelizadas, onde até pouco tem-
po o poder público só se fazia presente por meio de intervenções de nature-
za exclusivamente policiais) ainda não a tem, ou não a exerce, pois na atual
sociedade de consumo, ser cidadão significa ter recursos para consumir,
conforme diria Nestor Clancline (2010).
O conceito contemporâneo de cidadania reside, sobretudo, na concep-
ção estruturante que preconiza que esta não deve mais se resumir a um con-
junto de direitos e deveres políticos e sociais: ela deve se desenvolver alicer-
çada na capacidade popular de organização, participação e intervenção so-
cial, com vistas também a possibilitar que o ambiente (construído) seja vis-
to, planejado e preservado pensando nas gerações futuras.
Por conseguinte, deve compreender um conjunto de deveres não só do
cidadão para com o Estado e com a nação derivada, mas também com o pró-
ximo e, em especial, com o meio ambiente (com o planeta), uma vez que
somos parte de um ecossistema complexo que funciona de maneira inte-
grada.
O homem, até pouco tempo, era visto sobretudo como um elemento su-
perior e extrínseco em relação ao meio ambiente (sujeito apenas de direitos
no que pertine a este), precisando refazer o caminho de integração como
parte componente que é deste, na qualidade fundamental de sujeito tam-
58
bém de deveres para com toda a biosfera. É importante consignar, por opor-
tuno, que biosfera é o conjunto de todos os ecossistemas da Terra, resultado
da conjunção de causas astronômicas, geofísicas, geoquímicas e biológicas
frequentemente ligadas entre si por relações de interdependência, ao passo
que meio ambiente é o conjunto de condições, leis, influências e infraestru-
tura de ordem física, química e biológica que permite, abriga e rege a vida
em todas as suas formas.
A concepção estruturante antropomórfica do homem no centro de tudo
requer, portanto, mudança de concepção (de pensar e de sentir), ainda que
se apresente com enorme dificuldade de ser rompida, eis que é a visão que
perdurou durante praticamente toda a história da espécie humana: o ho-
mem – e apenas este – era a razão da existência de tudo à sua volta, o exem-
plar máximo da perfeição da criação divina, tese esta corroborada fortemen-
te no Mundo Ocidental pela base filosófico-religiosa judaico-cristã.1
Trata-se não somente de uma questão de simplesmente repensar o ho-
mem, mas, em termos mais realistas, de reformular o papel do gênero hu-
mano na sociedade organizada, criando novos pilares a partir dos quais deve
ser construída uma nova concepção político-jurídica de cidadania2 – com
novos paradigmas de direitos e obrigações –, ampliando, consequentemen-
te, a limitada noção de responsabilidade social para incorporar o meio am-
biente e sua correspondente responsabilidade, forçando o desenvolvimento
de um novo e ampliado conceito de responsabilidade socioambiental.
O termo meio ambiente é conceituado na lei que instituiu a Política Na-
cional do Meio Ambiente (Lei nº 6.938/1981), em seu artigo 3º, inciso I,
como “o conjunto de condições, leis, influências e interações de ordem físi-
ca, química e biológica, que permite, abriga e rege a vida em todas as suas
formas”. Assim, o homem, como habitante da Terra, é uma destas formas de
vida que é abrigada e regida pelo meio ambiente, posto que é este conjunto
de fatores que possibilita à espécie humana sobreviver neste planeta.
Durante muitos séculos, o ser humano utilizou-se da matéria-prima
abundante ao seu redor para se desenvolver e evoluir, enriquecer, conceber
domínios etc. Tal uso não conseguiu, porém, diminuir a capacidade de rege-
neração do meio ambiente, seja pelo número de habitantes do mundo não
pesar sobre esta capacidade durante aqueles tempos (FRIEDE, 2014), seja
por ainda não serem utilizados métodos mais agressivos na consecução dos
objetivos pretendidos.
59
3. O DESENVOLVIMENTO INSUSTENTÁVEL
60
meio ambiente, uma vez que, na qualidade de ser pensante, ele precisa en-
tender que a sociedade de consumo tal como está estruturada não se susten-
ta. É desta compreensão que surge a ideia de desenvolvimento sustentável.
E todas estas questões dizem respeito à educação, ou estão intrinsecamente
ligadas a ela, pois é na escola que a “civilização ocidental” aprendeu que o
homem é superior e não aprendeu que os recursos naturais da Terra não
eram finitos. Na verdade, a escola não ensinou nem o respeito utilitarista ao
Planeta.
As normas jurídicas revelam o nível do estágio de consciência de uma
dita sociedade. Em se tratando de questões relativas ao meio ambiente, a
Constituição da República Federativa do Brasil (CRFB) de 1988, de forma
inédita e em perfeita sintonia com o processo de constitucionalização5 da tu-
tela do meio ambiente, dedicou ao tema um capítulo (Capítulo VI – Do
Meio Ambiente, Título VIII – Da Ordem Social) inteiramente destinado a
assegurar tal proteção, conforme previsão contida no artigo 225, assim
transcrito: “Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibra-
do, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, im-
pondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preser-
vá-lo para as presentes e futuras gerações”.
O parágrafo primeiro do mesmo artigo esmiúça em vários incisos as ta-
refas do Poder Público para efetivação desse direito, com destaque para:
criação de espaços territoriais e seus componentes a serem especialmente
protegidos (inciso III); estudo prévio de impacto ambiental para instalação
de obra ou atividade potencialmente causadora de degradação do meio am-
biente (inciso IV); promoção da educação ambiental em todos os níveis de
ensino e a conscientização pública para a preservação do meio ambiente (in-
ciso VI); proteção da fauna e da flora e vedação às práticas que coloquem em
risco sua função ecológica e provoquem a extinção de espécies ou submetam
animais a crueldade (inciso VII).
O parágrafo segundo versa sobre a obrigação dos que exploram recursos
naturais de recuperar o meio ambiente degradado, de acordo com solução
5 De acordo com HORTA (2002, p. 270), “Em matéria de defesa do meio ambiente,
a legislação federal brasileira, toda ela posterior ao clamor recolhido pela Conferência
de Estocolmo, percorreu três etapas no período de tratamento autônomo, iniciado em
1975: a primeira, caracterizada pela política preventiva, exercida por órgãos da adminis-
tração federal, predominantemente; a segunda coincide com a formulação da Política
Nacional do Meio Ambiente, a previsão de sanções e a introdução do princípio da res-
ponsabilidade objetiva, independentemente da culpa, para indenização ou reparação do
dano causado; e a terceira representada por dupla inovação: a criação da ação civil pú-
blica de responsabilidade por danos causados ao meio ambiente, sob a jurisdição do
Poder Judiciário, e a atribuição ao Ministério Público da função de patrono dos interes-
ses difusos da coletividade no domínio do meio ambiente”. Toda esta evolução legisla-
tiva demonstra como o homem já é visto no Estado Brasileiro como um sujeito não ape-
nas de direitos, mas também de deveres para com o meio ambiente, restando umbilical-
mente integrado a este e dele sendo plenamente indissociável.
61
técnica exigida pelo órgão público competente; já o parágrafo terceiro trata
das sanções penais e administrativas às condutas e atividades consideradas
lesivas ao meio ambiente, independentemente da obrigação de reparar os
danos causados.
Da leitura do citado artigo, notadamente de seu caput, percebe-se de
forma nítida que o Estado brasileiro já entende o ser humano como parte
integrante e indissociável do meio ambiente, concedendo-lhe o direito de
dele usufruir de uma maneira ecologicamente equilibrada, mas também lhe
impondo o dever de defendê-lo e preservá-lo para si e para as gerações vin-
douras.
Essa necessária simbiose entre o direito e o dever com relação ao meio
ambiente faz-se ainda mais importante se levarmos em consideração que a
pujança do Brasil sempre decorreu, em grande parte, de sua produção agrí-
cola, cujos cultivos da cana-de-açúcar e do café, bem como a agricultura me-
canizada de hoje em dia, proporcionaram e ainda propiciam longos períodos
de desenvolvimento econômico.6
Todavia, setores de alguns países ainda não percebem o homem como
uma parte do meio ambiente, insistindo na prática do desenvolvimento eco-
nômico a qualquer custo, dentre eles empresários da maior economia da
atualidade, os Estados Unidos.
Um exemplo recente é a exploração de gás de xisto pelo método de fra-
tura hidráulica7, que pode afetar o meio ambiente em decorrência do vaza-
62
mento de produtos químicos utilizados na extração do gás para lençóis freá-
ticos e pela liberação de gases causadores do efeito estufa para a atmosfera.
Por outro lado, sociedades tradicionalmente poluidoras têm apelado
para métodos drásticos na mudança de relação com o meio ambiente, como
é o caso da China, em que foi declarada uma verdadeira guerra à poluição.
Uma das principais armas nesta batalha está sendo a imposição da redução
do uso do carvão como fonte de energia.8
Por conseguinte, a tão almejada formação do novo conceito de cidadão
infelizmente não se concretizará enquanto ainda restarem no seio da socie-
dade global grupos com instinto destrutivo, característicos da humanidade
até poucas décadas atrás. Esses grupos interessados somente no lucro ime-
diato, a qualquer custo, deverão ser contidos por leis e dispositivos de pres-
são pública da população. O cidadão não pode e não deve aceitar o rio poluí-
do sem nada fazer.
4. A RESPONSABILIDADE SOCIOAMBIENTAL
se diversos problemas envolvendo tal método, desde possíveis tremores de terra até a
liberação de agentes cancerígenos ou poluidores de lençóis freáticos (What is shale gas
and why is it important?).
8 O corte no consumo de carvão, a principal fonte de energia no país, deve chegar a
220 milhões de toneladas este ano, um aumento de 3,9% em relação a 2013.
9 “Artigo 186. A função social é cumprida quando a propriedade rural atende, simul-
taneamente, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, aos seguintes
requisitos:
I – aproveitamento racional e adequado;
II – utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio
ambiente;
III – observância das disposições que regulam as relações de trabalho;
IV – exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores.”
63
com mais afinco, e com enorme razão, eis que é este, conforme já visto mais
acima, que abriga e rege a vida em todas as suas formas.
Essa nova responsabilidade não deve, porém, ser promovida apenas pelo
empresariado, mas também pelo Poder Público e pelos próprios cidadãos –
segundo se infere da leitura do caput do artigo 225 da CRFB –, nas mais va-
riadas vertentes, sob pena de não se conseguir uma proteção do meio am-
biente plenamente integrada.
Com relação ao Poder Público, um exemplo de promoção da responsa-
bilidade socioambiental é a recente mudança de paradigma na visão referen-
te à proteção da propriedade privada, cuja função a ser exercida não deve
mais se resumir apenas à social.
A Constituição de 1988 já faz menção a essa nova ideia em seu artigo
186, pensamento que foi melhor explorado no Código Civil de 2002 – fes-
tejado por suas inovações em diversas áreas –, que no artigo 1.228, §1º, traz
o seguinte: “Artigo 1.228.
64
Alguns exemplos: parte expressiva da qualidade e da quantidade da água
que compõe os reservatórios de usinas hidrelétricas, provendo energia a ci-
dades e indústrias, é assegurada por unidades de conservação. O turismo
que dinamiza a economia de muitos dos municípios do país só é possível pela
proteção de paisagens proporcionada pela presença de unidades de conser-
vação. O desenvolvimento de fármacos e cosméticos consumidos cotidiana-
mente, em muitos casos, utiliza espécies protegidas por unidades de conser-
vação. Ao mesmo tempo, as unidades de conservação contribuem de forma
efetiva para enfrentar um dos grandes desafios contemporâneos, a mudança
climática. Ao mitigar a emissão de gás carbônico e de outros gases de efeito
estufa decorrente da degradação de ecossistemas naturais, as unidades de
conservação ajudam a impedir o aumento da concentração destes gases na
atmosfera terrestre. Estes exemplos permitem constatar que estes espaços
protegidos desempenham papel crucial na proteção de recursos estratégicos
para o desenvolvimento do país, um aspecto pouco percebido pela maior
parte da sociedade, incluindo tomadores de decisão, e que, ademais, possi-
bilita enfrentar o aquecimento global.
Quanto ao papel dos cidadãos, pequenas ações condizentes com o con-
ceito de responsabilidade socioambiental já teriam o condão de auxiliar na
construção de uma nova concepção político-jurídica de cidadania, tais como
a economia no uso da água e da energia elétrica, a maior utilização do trans-
porte público em detrimento do veículo particular etc, além da participação
política no sentido de apoiar ações em prol do ambiente.
Vê-se, portanto, que é crucial que não apenas o mundo corporativo pro-
mova a responsabilidade socioambiental, pois só com a contribuição dos três
diferentes grupos citados é que se estará protegendo a contento o meio am-
biente.
O momento atual encerra um importante capítulo de nossa história ju-
rídico-hermenêutica no que concerne, em especial, à questão da cidadania.
Tal momento não somente permite mas, verdadeiramente, obriga-nos à re-
flexão que conduzirá ao estabelecimento de um novo e mais amplo conceito
de responsabilidade individual e coletiva, logo, de cidadania.
Nesse sentido, deve-se questionar paradigmas anteriores, que perce-
biam os problemas humanos de forma simplista e fragmentada, fundados no
método cartesiano de pensar. Esta visão, conforme Morin (2010), inevita-
velmente teria conduzido à atual crise ambiental, que exige repensar os pa-
radigmas educacionais disciplinares para que se possa formar uma nova (e
ampliada) concepção de cidadania, incluindo a responsabilidade socioam-
biental.
5. CONCLUSÃO
Após a reflexão trazida por este estudo, constata-se que somente com a
necessária criação de uma nova concepção de “cidadania” é que a humanida-
65
de conseguirá ultrapassar o atual momento em que vivemos sem maiores
prejuízos ou sofrimentos. Não há dúvidas de que estamos presenciando o
fim da vida em sociedade tal como a conhecemos, mas cabe somente a nós
fazermos esta transição de modo de vida de uma maneira que este fim seja
um novo começo – mais racional e harmonizador –, e não um ponto final na
existência de uma humanidade saudável neste planeta.
Para tanto, a formação de um novo conceito de cidadão faz-se mandató-
ria, pois só assim o homem passará a se ver como parte integrante e indisso-
ciável do meio ambiente, pautando suas ações com base na responsabilidade
socioambiental – responsabilidade esta que deverá ser o norte de atuação
também para o mundo corporativo e o Poder Público – e tendo um papel
primordial na preservação do meio ambiente.
Como diria Antonio Houaiss (2014), a falta de “cidadania ambiental”
nos diversos países (os desenvolvidos já esgotaram as suas matérias primas e
os subdesenvolvidos estão em rota de esgotamento) só contribuirá, cada vez
mais, para o esgotamento dos recursos naturais necessários à manutenção de
nossa própria existência no planeta. Não é por outra razão, portanto, que
deve ser reconhecida aos cidadãos a efetiva existência de novos deveres con-
dizentes com a realidade pautada pelo reconhecimento do ser humano
como parte integrante e indissociável do próprio meio ambiente, e não mais
como elemento diverso que apenas utiliza, em seu benefício, os recursos dis-
ponibilizados pela biosfera. Muitos, aliás, contaminam os bens ambientais
que são de todos (como o ar e a água) em benefício de seu próprio enrique-
cimento.
6. REFERÊNCIAS
66
DIAS, Renato Duro. Meio ambiente e patrimônio cultural: conceitos e representa-
ções. Disponível em: “http://www.ambito-juridico.com.br/site/in-
dex.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=8063” Acessado em: 8
Mai 2014.
D’URSO, Luiz Flávio Borges. A Construção da Cidadania. Disponível em:
“http://www.oabsp.org.br/palavra_presidente/2005/88/” Acessado em: 22
Abr 2014.
FRIEDE, Reis. A Hipocrisia Ambiental. Revista da EMERJ, v. 13, nº 50, 2010.
FRIEDE, Reis. A Raiz Matricial do Rompimento da Estabilidade Ambiental. Rev-
bea, São Paulo, V. 9, No 1: 37-42, 2014.
HORTA, Raul Machado. Direito Constitucional. Belo Horizonte: Del Rey, 2002.
HOUAISS, Antonio. Dicionário eletrônico Houaiss da língua portuguesa.
MEDEIROS, Rodrigo. YOUNG, Carlos Eduardo Frickmann. Contribuição das
Unidades de Conservação Brasileiras para a Economia Nacional. Disponível
em: “http://www.mma.gov.br/estruturas/240/_arquivos/relatorio_final_con-
tribuio_uc_para_a_economia_nacional_reduzido_240.pdf”. Acessado em: 22
Mai 2014.
OLIVEIRA, F. R. M. Relações públicas e a comunicação na empresa cidadã. São
Paulo: UNESP, 2000 (Monografia). Disponível em: “http://www.valoronli-
ne.com.br”. Acessado em: 21 Mai 2014.
WEBBER, Alexandra Andréa. A Proteção das Reservas de Biosfera no Direito In-
ternacional Ambiental: Aspectos Jurídicos Relevantes a Proteção das Reser-
vas de Biosfera. Disponível em: “revista.esmesc.org.br/re/article/down-
load/28/32”. Acessado em: 8 Mai 2014.
Environmental Science. Disponível em: “http://sites.allegheny.edu/envsci/”.
Acessado em: 2 Abr 2014.
Guerra à poluição na China será “batalha difícil”, diz primeiro-ministro. Agência
Brasil, Brasília, 13 Mar 2014. Disponível em: “http://agenciabra-
sil.ebc.com.br/internacional/noticia/2014-03/guerra-poluicao-na-china-se
ra-batalha-dificil-diz-primeiro-ministro”. Acessado em: 28 Abr 2014.
O que é a Responsabilidade Social Empresarial? Disponível em: “http://www.
adam-europe.eu/prj/5241/prj/Formacao%20em%20RSE_PT.pdf”. Acessado
em: 9 Mai 2014.
Princípios do Direito Ambiental. Disponível em: “http://www.jurisambien-
te.com.br/ambiente/principios.shtm”. Acessado em: 22 Mai 2014.
What is shale gas and why is it important? Disponível em: “http://www.eia.gov/
energy_in_brief/article/about_shale_gas.cfm”. Acessado em: 9 Mai 2014.
67
Marco legal da regulamentação do uso de
animais em experimentação cientifica e
didática no Brasil
69
INTRODUÇÃO
70
pode ser considerado como o documento internacional mais importante
para a proteção dos animais.
É importante frisar a Declaração Universal dos Direitos dos Animais de
1978, que tem validade mundial, para todos os países que fazem parte da
ONU, que em seu art. 3º, menciona, que: Artigo 3º 1. Nenhum animal será
submetido nem a maus tratos nem a atos cruéis. 2. Se for necessário matar
um animal, ele deve de ser morto instantaneamente, sem dor e de modo a
não provocar-lhe angústia.
Especificamente no que se refere a utilização dos animais em pesquisa a
Declaração Universal dos Direitos dos Animais é bem clara em seu artigo 8º
e enfatiza que: ARTIGO 8º: a) A experimentação animal, que implica em
sofrimento físico, é incompatível com os direitos do animal, quer seja uma
experiência médica, científica, comercial ou qualquer outra. b) As técnicas
substutivas devem ser utilizadas e desenvolvidas.
71
tuição), reduction (redução) e refinement (refinamento), conhecido como o
conceito dos 3R.
Qualquer técnica que refine um método existente para diminuir a dor e o des-
conforto dos animais, que reduza seu número em um trabalho particular ou que
substitua o uso de uma espécie animal por outra, de categoria inferior na escala
zoológica, ou por métodos computadorizados ou in vitro, deve ser considerada
como método alternativo (SILVA, 2018).
Indica que se deve usar, sempre que possível, materiais sem sensibilidade,
como cultura de tecidos, modelos em computador no lugar de animais vivos.
Além disso, os mamíferos devem ser substituídos por animais com sistema ner-
voso menos desenvolvido.
Desta forma, com a reposição do modelo acaba por reduzir o uso de ani-
mais, dependendo do objetivo experimental.
E por último, Refinement (Refinamento) que significa o aperfeiçoamen-
to de todos os processos envolvidos na experimentação visando, no fim, a
redução do uso de animais ou redução do seu sofrimento. Como exemplo
podem-se citar o aperfeiçoamento da aparelhagem dos biotérios (de criação,
manutenção, etc.) e de desenhos experimentais em si, das técnicas que pos-
sam proporcionar o menor nível de aversão (dor, estresse e afins) possível.
72
2. A Evolução da Legislação de Proteção aos Animais no Brasil
73
derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente, e dá outras
providências. No contexto da experimentação animal, é importante desta-
car, o art. 32 e seus parágrafos, segundo o qual praticar ato de abuso, maus-
tratos, ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos ou domesticados, na-
tivos ou exóticos: pena – detenção, de três meses a um ano, e multa, incor-
rendo nas mesmas penas quem realiza experiência dolorosa ou cruel em ani-
mal vivo, ainda que para fins didáticos ou científicos, quando existirem re-
cursos alternativos, com pena aumentada de um sexto a um terço, se ocorre
morte do animal.
74
Art. 17. As instituições que executem atividades reguladas por esta Lei estão
sujeitas, em caso de transgressão às suas disposições e ao seu regulamento, às
penalidades administrativas de:
I – advertência;
II – multa de R$ 5.000,00 (cinco mil reais) a R$ 20.000,00 (vinte mil reais);
III – interdição temporária;
IV – suspensão de financiamentos provenientes de fontes oficiais de crédito e
fomento científico;
V – interdição definitiva.
Parágrafo único. A interdição por prazo superior a 30 (trinta) dias somente po-
derá ser determinada em ato do Ministro de Estado da Ciência e Tecnologia,
ouvido o CONCEA.
Art. 18. Qualquer pessoa que execute de forma indevida atividades reguladas
por esta Lei ou participe de procedimentos não autorizados pelo CONCEA
será passível das seguintes penalidades administrativas:
I – advertência;
II – multa de R$ 1.000,00 (mil reais) a R$ 5.000,00 (cinco mil reais);
III – suspensão temporária;
IV – interdição definitiva para o exercício da atividade regulada nesta Lei.
Art. 19. As penalidades previstas nos arts. 17 e 18 desta Lei serão aplicadas de
acordo com a gravidade da infração, os danos que dela provierem, as circuns-
tâncias agravantes ou atenuantes e os antecedentes do infrator.
Art. 20. As sanções previstas nos arts. 17 e 18 desta Lei serão aplicadas pelo
CONCEA, sem prejuízo de correspondente responsabilidade penal.
Art. 21. A fiscalização das atividades reguladas por esta Lei fica a cargo dos
órgãos dos Ministérios da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, da Saúde, da
Educação, da Ciência e Tecnologia e do Meio Ambiente, nas respectivas áreas
de competência.
75
como previsão de sua criação o disposto no artigo 4º da Lei nº 11.794, 8 de
outubro de 2008.
Trata-se de um órgão integrante da estrutura do Ministério da Ciência e
Tecnologia, sendo uma instância colegiada multidisciplinar de caráter nor-
mativo, consultivo, deliberativo e recursal, para coordenar os procedimen-
tos de criação e utilização de animais em atividades de ensino e pesquisa
científica, conforme o disposto na Lei nº 11.794, 8 de outubro de 2008, e
no Decreto nº 6.899, de 15 de julho 2009.
O Conselho Nacional de Controle de Experimentação Animal – CON-
CEA, editou a Resolução Normativa nº 17, de 3 de julho de 2014 que dispõe
sobre o reconhecimento no país de métodos alternativos validados que te-
nham por finalidade a redução, a substituição ou o refinamento do uso de
animais em atividades de pesquisa, nos termos do inciso III do art. 5 da Lei
nº 11.794, de 8 de outubro de 2008, e sua regulamentação.
O artigo 2º da Resolução Normativa nº 17, de 03 de julho de 2014 esta-
belece o que seja método alternativo nos seguintes termos:
76
b) seguir os Princípios Éticos da utilização de animais em atividades de
ensino ou Pesquisa científica e os conceitos dos 3Rs; ressaltando que a utili-
zação do princípio dos 3Rs é fundamental para que sejam seguidas as normas
impostas pelo CONCEA (MORAES, 2016).
c) conhecer a biologia e a etologia da espécie que será utilizada, bem
como lembrar as diferenças entre espécies e que o bem-estar possui dois
componentes: o físico e o comportamental;
d) documentar a atividade didática por meio de filmagens, gravações ou
fotografias de forma a permitir sua reprodução para ilustrar práticas futuras,
evitando-se a repetição desnecessária de procedimentos didáticos com ani-
mais;
e) prover alojamento, ambiente, alimentação e controle ambiental apro-
priados para a espécie;
f) realizar manejo adequado para a espécie e prever que o mesmo seja
executado por pessoas treinadas para esse fim, pois a intensidade de sofri-
mento causado pelo mau manejo e mau alojamento, muitas vezes, supera o
sofrimento resultante dos procedimentos experimentais;
g) possuir equipe técnica devidamente treinada e capacitada;
h) ter médico veterinário responsável pela saúde e bem-estar dos ani-
mais;
i) apresentar seu projeto à Comissão de Ética no Uso de Animais perti-
nente antes de iniciar sua execução.
77
Utilização de Animais em Atividades de Ensino ou de Pesquisa Científica –
DBCA (Anexo da Resolução Normativa nº 30, de 02 de fevereiro de 2016
– DBCA) o seguinte:
a) Pesquisadores, professores e usuários de animais para fins de ensino
ou de pesquisa científica são responsáveis pelos aspectos relacionados ao
bem-estar dos animais. É de sua competência, no planejamento ou na con-
dução de projetos ou protocolos, considerar que os animais são seres sen-
cientes e que o seu bem-estar é fator essencial durante a condução das ativi-
dades de ensino ou de pesquisa científica.
b) Instituições que utilizam animais em atividade de ensino ou de pes-
quisa científica devem assegurar, por meio de uma CEUA, que o uso dos
animais ocorra em observância aos preceitos regidos nesta Diretriz, na Lei nº
11.794/2008, regulamentada pelo Decreto nº 6.899/2009, de 15 de julho
de 2009 e demais disposições legais vigentes pertinentes ao escopo da Lei nº
11.794/2008, especialmente com as resoluções do CONCEA.
c) Atividades de ensino ou de pesquisa científica que incluam animais
não podem ser iniciadas antes da aprovação formal e autorização da CEUA
da instituição em que os animais estarão sob análise.
De acordo com MORAES (2016) as principais normas que as CEUAs
devem seguir, de acordo com o CONCEA, são:
a) planejar e executar procedimentos baseados na sua relevância para a
saúde humana e animal, para o progresso dos conhecimentos, ou para o bem
da sociedade;
b) usar espécie, qualidade e número de animais apropriados;
c) prevenir ou minimizar o desconforto, a angústia e a dor de acordo com
os princípios da boa ciência;
d) utilizar sedação, analgesia ou anestesia apropriadas;
e) estabelecer o propósito do experimento;
f) propiciar manejo apropriado para os animais, dirigido e executado por
pessoas qualificadas;
g) realizar experimentos com animais vivos apenas por ou sob supervisão
direta de pessoas experientes e qualificadas.
78
devendo ser obrigada, pelo Poder Judiciário, a substituir os métodos de vivis-
secção por outros menos cruéis, como o emprego de simuladores mecânicos, já
disponíveis no mercado e que não teriam preços extravagantes. 2. Todavia, não
há como se impor que a UFSC substitua o critério empregado até o momento
– ao que consta, necessário para que futuros médicos possam adquirir habilida-
de cirúrgica –, por simuladores ou outros métodos. Até o momento, deve pre-
valecer a presunção de que a UFSC está respeitando as disposições da Lei
11.794/2008, que criou o criou o CONCEA (Conselho Nacional de Controle
de Experimentação Animal, responsável por monitorar e avaliar a introdução
de técnicas alternativas que substituam a utilização de animais em ensino e pes-
quisa) e estabelece, em seu artigo 14, que “o animal só poderá ser submetido às
intervenções recomendadas nos protocolos dos experimentos que constituem a
pesquisa ou programa de aprendizado quando, antes, durante e após o experi-
mento, receber cuidados especiais, conforme estabelecido pelo CONCEA”.
(TRF-4 – AC: 50096848620134047200 SC 5009684-86.2013.404.7200, Re-
lator: VIVIAN JOSETE PANTALEÃO CAMINHA, Data de Julgamento:
05/05/2015, QUARTA TURMA).
79
Todavia, o judiciário nos dois casos supracitados se valeu do argumento
de que a utilização de animais em atividades de ensino e pesquisa está devi-
damente regulamentada pela Lei nº 11.794/2008 (Lei Arouca), que estabe-
lece os critérios éticos a serem observados nos procedimentos didáticos
científicos com animais vivos, bem como determina que qualquer institui-
ção legalmente estabelecida, no Brasil, que utilize animais para ensino e/ou
pesquisa deve ser credenciada junto ao Conselho Nacional de Controle de
Experimentação Animal – CONCEA, estando as práticas das instituições de
ensino nos dois casos de acordo com a legislação.
Dispõe os parágrafos do artigo 14 da Lei nº 11.794/08, o seguinte:
80
protocolos dos experimentos que constituem a pesquisa ou programa de
aprendizado quando, antes, durante e após o experimento, receber cuidados
especiais, conforme estabelecido pelo CONCEA.
CONCLUSÃO
Referências
81
BRASIL. DECRETO Nº 24.645, DE 10 DE JULHO DE 1934. Revogado pelo De-
creto nº 11, de 1991. Estabelece medidas de proteção aos animais. Disponível
em “http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1930-1949/
d24645.htm”, acesso em 23 de fevereiro de 2018.
BRASIL. LEI Nº 11.794, DE 8 DE OUTUBRO DE 2008. Regulamenta o inciso VII
do § 1o do art. 225 da Constituição Federal, estabelecendo procedimentos
para o uso científico de animais; revoga a Lei no 6.638, de 8 de maio de 1979;
e dá outras providências. Disponível em “http://www.planalto.gov.br/cci-
vil_03/_ato2007-2010/2008/lei/l11794.htm”, acesso em 20 de fevereiro de
2018.
BRASIL. LEI Nº 6.638, DE 8 DE MAIO DE 1979. Estabelece normas para a práti-
ca didático-científica da vivissecção de animais e determina outras providên-
cias. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/1970-
1979/L6638.htm”, acesso em 20 de fevereiro de 2018.
BRASIL. LEI Nº 9.605, DE 12 DE FEVEREIRO DE 1998. Dispõe sobre as sanções
penais e administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio am-
biente, e dá outras providências. Disponível em “http://www.planal-
to.gov.br/CCivil_03/leis/L9605.htm”, acesso em 10 de fevereiro de 2018.
BRASIL. RESOLUÇÃO NORMATIVA Nº 17, DE 3 DE JULHO DE 2014. Dis-
põe sobre o reconhecimento de métodos alternativos ao uso de animais em ati-
vidades de pesquisa no Brasil e dá outras providências. Disponível em
“http://www.mctic.gov.br/mctic/export/sites/institucional/institucional/co
ncea/arquivos/legislacao/resolucoes_normativas/Resolucao-Normativa-CON
CEA-n-17-de-03.07.2014-D.O.U.-de-04.07.2014-Secao-I-Pag.-51.pdf”,
acesso em 16 de março de 2018.
BRASIL. RESOLUÇÃO NORMATIVA Nº 25, DE 29 DE SETEMBRO DE 2015.
Baixa o Capítulo “Introdução Geral” do Guia Brasileiro de Produção, Manu-
tenção ou Utilização de Animais para Atividades de Ensino ou Pesquisa Cien-
tífica do Conselho Nacional de Controle e Experimentação Animal – CON-
CEA. Disponível em “http://www.mctic.gov.br/mctic/export/sites/institu-
cional/institucional/concea/arquivos/legislacao/resolucoes_normativas/Reso
lucao-Normativa-CONCEA-n-25-de-29.09.2015-D.O.U.-de-02.10.2015-S
ecao-I-Pag.-04_ANEXO-retificado-no-DOU-de-06-10-2015.pdf”, acesso em
10 de fevereiro de 2018.
CAZARIN, Karen Cristine Ceroni; CORRÊA, Cristiana Leslie; ZAMBRONE, Flá-
vio Ailton Duque. Redução, refinamento e substituição do uso de animais em
estudos toxicológicos: uma abordagem atual. Revista Brasileira de Ciências
Farmacêuticas Brazilian Journal of Pharmaceutical Sciences, vol. 40, n. 3, jul.
/set. 2004. Disponível em “http://www.usp.br/bioterio/Artigos/Procedimen-
tos%20experimentais/Alternativa%20toxicologia.pdf”, acesso em 15 de feve-
reiro de 2018.
FERRARI, Bárbara Giacomini. Experimentação animal: aspectos históricos, éti-
cos, legais e o direito à objeção de consciência. Monografia de conclusão do
C urso d e Dire ito d a Univ e rsid ad e d e Bauru, 2004. Disponível em
“http://www.pea.org.br/educativo/mono_barbara.pdf” Acesso em 10 de mar-
ço de 2018.
82
GUIMARÃES, Mariana Vasconcelos, at al. Utilização de animais em pesquisas:
breve revisão da legislação no Brasil. Revista Bioética, 2016 Vol 24, n. 2. Dis-
ponível em “http://revistabioetica.cfm.org.br/index.php/revista_bioetica”
Acesso em 20 de fevereiro de 2018.
ONU. Declaração Universal dos Direitos dos Animais – Unesco – ONU. Disponí-
vel em “http://www.urca.br/ceua/arquivos/Os%20direitos%20dos%20ani-
mais%20UNESCO.pdf” Acesso em 02 de fevereiro de 2018.
PAIXÃO, Rita Leal. Experimentação animal: razões e emoções para uma ética.
[Doutorado] Fundação Oswaldo Cruz, Escola Nacional de Saúde Pública;
2001. 189 p. Disponível em “https://portalteses.icict.fiocruz.br/transf.php?
script=thes_chap&id=00003902&lng=pt” Acesso em: 18 de março de 2018.
SILVA, Deise Aparecida de Oliveira. Ética em pesquisa na área biomédica: Pes-
quisa em animais. Disponível em “http://www.comissoes.propp.ufu.br/si-
tes/comissoes.propp.ufu.br/files/Anexos/Bookpage/ceua_texto.pdf”, aces-
so em 17 de fevereiro de 2018.
83
Os limites impostos à autonomia privada no
Direito Brasileiro: o paradoxal convívio entre
tutelas, indisponibilidades e liberdades
individuais
85
1. Considerações iniciais sobre a problemática
A questão que nos instigou a escrever este texto diz respeito ao nosso
estranhamento acerca do paradoxal convívio entre tutelas, indisponibilida-
des e liberdades individuais no direito brasileiro.
Quais são os limites jurídicos do exercício da autonomia privada no Bra-
sil?
Como se dá a convivência entre a liberdade do cidadão, decorrente dos
direitos da personalidade, e a tutela exercida cotidianamente pelo Estado
Brasileiro, através dos Tribunais?
Algumas situações empíricas que retratam a colisão entre direitos da
personalidade, e que serão descritas neste texto, é que serviram de base e de
impulso para pensarmos sobre esta problemática, que se apresenta, ao me-
nos para nós, como paradoxal.
No Brasil, com a consagração da dignidade da pessoa humana na Consti-
tuição da República de 1988, aliada à garantia do parágrafo 2º do artigo 5º,
que trata da tutela geral dos direitos fundamentais, verificamos que certas
prerrogativas individuais, inerentes à “pessoa humana”, foram alçadas a um
status privilegiado.
A CRFB/88 expressa, em seu art. 5º, X, que são “invioláveis a intimida-
de, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a
indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”.
Além disso, osdireitos da personalidade também estão expressos em ca-
pítulo especial do CC/2002, arts. 11 a 21, tratando-se de direitos subjetivos
que todas as pessoas têm de defender o que lhe é próprio, ou seja, a suainte-
gridade física (vida, alimentos, o próprio corpo); a suaintegridade intelec-
tual (liberdade de pensamento, autoria científica, artística e literária); e a
suaintegridade moral (honra, imagem, recato, segredo profissional e do-
méstico, identidade pessoal, familiar e social). (LENZA, 2012, p.108).
Os direitos de personalidade, por não terem conteúdo econômico ime-
diato e não se destacarem da pessoa de seu titular, distinguem-se, portanto,
dos direitos de ordem patrimonial; e, nessa medida, conceitualmente, aca-
bam sendo considerados como direitos sobre os quais não se pode transacio-
nar ou dos quais não se pode, a princípio, dispor.
Além disso, a rigor, são: a) Intransmissíveis b) Irrenunciáveis c) Inaliená-
veis d) Imprescritíveise) vitalícios.
Pois bem. Associando-se esse contexto à clausula geral da tutela dos di-
reitos fundamentais, presente no parágrafo 2º do artigo 5º, que, como cedi-
ço, garante tutela aos direitos fundamentais não incorporados expressamen-
te, verifica-se que o núcleo da dignidade da pessoa humana passou a ser to-
mado como valor máximo do ordenamento jurídico.
A questão que este texto pretende colocar é, portanto, a de pensar sobre
o quanto esse núcleo dos direitos da personalidade, numa visão tutelar, res-
tringe as liberdades individuais (em vez de ampliá-las).
86
Melhor dizendo, em nome da tutela geral dos direitos da personalidade,
será que o ordenamento jurídico acaba restringindo a liberdade individual?
Ou seja, em nome de proteger a personalidade, será que o Direito a des-
protege e a desconsidera?
Será que a tutela estatal dos direitos da personalidade, acaba amputando
a liberdade individual e autonomia privada?
Eis aqui o aparente paradoxo que nos estimulou a compartilhar, neste
texto, nossas perplexidades e reflexões.
1 Tal classificação, todavia, não é pacífica na doutrina. Segundo Pedro Lenza (2012,
p. 960) haveria também a quarta geração, que, para autores como Norberto Bobbio,
seriam os direitos ligados à engenharia genética, como os que protegem o DNA humano.
Para Paulo Bonavides, citado por Lenza (2012), seriam os que garantem a universaliza-
ção das outras gerações de direitos no plano institucional. A quinta geração compreen-
deria o direito à paz e os direitos que protegem e regulamentam o mundo virtual, tendo
em vista a necessária proteção de direitos patrimoniais e extrapatrimoniais na era da
tecnologia da informação. (LENZA, 2012, p. 261)
87
modo a implementar políticas públicas que efetivem tais garantias, postura
típica de um Estado social. Já os direitos de terceira dimensão2 compreen-
dem direitos transindividuais, que transcendem os interesses meramente in-
dividuais e passam a se preocupar com a proteção do gênero humano. Tais
direitos se expressam pelos direitos ao desenvolvimento, ao meio ambiente,
de propriedade sobre o patrimônio comum da humanidade. São expressos
pela necessidade de um convívio fraternal entre todos os indivíduos, confor-
me esclarecem os autores acima citados (LENZA, 2012, p. 118):
2 Necessário aqui explicar que também a doutrina não é pacífica sobre quais direitos
estariam incluídos nessa terceira dimensão. Expusemos acima o entendimento majori-
tário. Todavia, segundo Pedro Lenza, para Karel Vasak, os direitos de terceira dimensão
seriam os ligados à paz, comunicação, meio ambiente e desenvolvimento, além dos re-
ferentes ao patrimônio comum da humanidade (LENZA, 2012, p. 261).
88
mocrática e, muito menos republicana, se não se estabelece proteção ao ser
humano em todas as esferas da sua existência.
No que toca, especificamente, aos direitos da personalidade, é certo que
Código Civil de 2002 também avançou, na medida em que, diferentemente
do Código Civil de 1916, consagrou expressamente alguns direitos da per-
sonalidade, bem como veiculou no artigo 12 uma cláusula geral protetiva
que abrange a esfera ressarcitória e preventiva contra violações e ameaças de
violação aos direitos da personalidade.
O artigo 12 traz em seu bojo uma cláusula geral de tutela e promoção da
pessoa humana, que, embora já fosse garantida pela Constituição Federal de
1988, foi explicitamente reconhecida no âmbito do direito civil e que tem
como núcleo a ideia de dignidade da pessoa humana e a sua valorização.
89
Hodiernamente não se encontra posição dogmática que contrarie a má-
xima prescritiva de que o fundamento de todo e qualquer Estado Democrá-
tico e Social de Direito é pautado no princípio da dignidade da pessoa hu-
mana.
Todavia, mesmo antes da promulgação de nossa Constituição, no plano
internacional, podemos citar outros documentos, considerados históricos,
mas que possuem plena vigência, que também consagram o princípio da dig-
nidade da pessoa humana, como a Declaração Universal dos Direitos huma-
nos de 1948 e a Convenção Americana de Direitos Humanos de 1969, de-
nominada como Pacto de San José da Costa Rica, assinada pelo Brasil, que
em seu artigo 1º e 5º. Elenca os seguintes direitos e deveres que devem ser
respeitados pelos países signatário, demonstrando a cristalina proteção à
dignidade da pessoa humana conferida pelo diploma:
1. Toda pessoa tem direito a que se respeite sua integridade física, psíquica e
moral.
2. Ninguém deve ser submetido a torturas, nem a penas ou tratos cruéis, desu-
manos ou degradantes. Toda pessoa privada de liberdade deve ser tratada com
o respeito devido à dignidade inerente ao ser humano.
90
dever-ser normativo e o ser da realidade, é identificada como efetividade da
norma (v. supra). O descumprimento de uma norma jurídica, que equivale à
não produção dos efeitos a que se destina, é passível de sanção judicial. O Poder
Público, de maneira geral, e o particular, quando afetado em algum direito seu,
podem exigir, judicialmente quando seja o caso, a observância das normas que
tutelam seus interesses. Modernamente, já não é controvertida a tese de que
não apenas as regras, mas também os princípios são dotados de eficácia jurídica.
Princípios constitucionais incidem sobre o mundo jurídico e sobre a realidade
fática de diferentes maneiras. Por vezes, o princípio será fundamento direto de
uma decisão. De outras vezes, sua incidência será indireta, condicionando a
interpretação de determinada regra ou paralisando sua eficácia.
91
tir, ao mesmo tempo, uma tutela da personalidade que seria indeclinável e
indisponível e, também, uma garantia civil de autonomia privada.
Quando há colisão entre os valores que norteiam os direitos da persona-
lidade, como o ordenamento se comporta? E quando existe colisão entre um
direito da personalidade e a liberdade individual desse mesmo cidadão?
92
Ou seja, a cidadania se relaciona com a liberdade com a autonomia indi-
vidual. No Brasil, entretanto, a ideia de cidadania e autonomia recebe con-
tornos muito peculiares, que ele vai chamar de “cidadania tutelada”.
Demo (1995) nos apresenta diferentes conceitos de cidadania, como a
cidadania tutelada, assistida e emancipada: a cidadania tutelada seria decor-
rente do clientelismo e paternalismo. Este tipo de cidadania é marcado pela
negação/repressão. Já na cidadania assistida há um relativo conhecimento
político, sendo voltada para a reprodução da pobreza política, uma vez que
não se compromete em diminuir as desigualdades sociais, caracterizando-se
pelos benefícios assistenciais. Já a cidadania emancipada refere-se a um su-
jeito ativo, com habilidades e competências para o exercício dos seus deve-
res e exigência dos seus direitos.
A formação da sociedade brasileira, portanto, detém aspectos singulares
provenientes de três séculos de colonização portuguesa, marcados pela cate-
quese indígena, por tribunais da inquisição adotados em Portugal até o sécu-
lo XVIII, por mandonismos locais e regionais que marcadamente se esten-
dem do século XIX ao XX.
Neste cenário também figura a família extensa patriarcal e a escravidão,
suportes para a exploração agrícola latifundiária iniciada no Nordeste, região
de ocupação primitiva das terras brasileiras.
Acrescente-se ainda o fato de o Brasil ter sido a única colônia das Amé-
ricas a sediar no Rio de Janeiro, nas décadas iniciais do século XIX, uma mo-
narquia absoluta, que mesclada aos ingredientes anteriores, concede à socie-
dade, ao estado e a sua divisão de poderes particularidades que distinguem
suas organizações e instituições das de países europeus e americanos.
(AMORIM e LUPETTI BAPTISTA, 2014, p. 288)
Ou seja, o Brasil conviveu, desde sempre, com poderes estatais permea-
dos por situações paradoxais em que traços das organizações do passado pa-
triarcal e estamental parecem sobreviver no presente como entraves para
agilizar a atualização de um mercado de consumo aberto a todos os brasilei-
ros e de uma cidadania compatível com a modernidade contemporânea.
Trata-se de uma forma singular de “patriarcalismo”, marcado pelo poder
centralizado dos senhores de engenho, instaurado durante três séculos de
colônia (Freyre, 2006)3 sob regime do grande latifúndio e da escravidão,
iniciados no século XVI parecem ter marcado a sociedade brasileira através
dos tempos.
Ou seja, a tradição paternalista e tutelar da sociedade brasileira está ar-
raigada na cultura jurídica de forma irremediável.
A ideia de que as pessoas não conseguem, não devem e, portanto, não
podem resolver os seus problemas e os seus conflitos, sozinhas – sem a inter-
venção estatal – é algo que marca a cultura jurídica de uma forma impressio-
3 Gilberto Freyre, Casa Grande & Senzala, clássico da sociologia brasileira, publica-
do pela 1ª vez em 1933. Hoje conta quase 50 edições.
93
nante, de maneira que impedir ou até minimizar a intromissão da tutela ju-
risdicional na vida particular dos cidadãos é quase um ato de “anarquia”. O
controle estatal sobre a vida dos cidadãos é uma característica essencial da
cultura social e também jurídica, de modo que acaba justificando e legiti-
mando essa restrição à autonomia, em nome de uma tutela que protegeria
esses cidadãos desprotegidos. (LUPETTI BAPTISTA, 2008)
Faoro, em seu texto clássico, “Os donos do Poder” (1958), delineia, mi-
nuciosamente, a relação de submissão existente entre os indivíduos e o Es-
tado, destacando características que marcavam a estrutura tutelar da socie-
dade brasileira, valendo transcrever o seguinte trecho que exemplifica a
ideia: “Tudo é tarefa do governo, tutelando os indivíduos, eternamente me-
nores, incapazes ou provocadores de catástrofes, se entregues a si mesmos
[...].” (p. 96).
Narrando as características do Brasil do século XVI, Faoro (1958; p. 98)
continua a destacar o papel do Estado como “fonte de todos os milagres e pai
de todas as desgraças”, visão esta que perdura até hoje e, como não poderia
deixar de ser, reflete-se no Direito Brasileiro.
Os cidadãos são tidos pelo sistema jurídico brasileiro, mesmo hodierna-
mente, como hipossuficientes, incapazes de fazer valer os seus interesses le-
gítimos no processo, o que leva a uma intervenção incontrolável do Estado
nos direitos de cidadania (AMORIM, KANT DE LIMA, MENDES; 2005).
É neste contexto que ganha espaço uma visão que tutela os direitos da
personalidade contra a autonomia privada, num exercício de “defender o ci-
dadão dele próprio”, numa espécie de ato “anti-antropofágico” dos cida-
dãos.
Aliás, essa questão, da tutela dos direitos no Brasil, parece nunca ter sido
tão atual. Quanto mais se avança em direção ao aprimoramento das institui-
ções democráticas, menos fica evidente o usufruto do tripé dos direitos que
lhe dão sustentação.
José Murilo de Carvalho (2002), tratando sobre a dificuldade no avanço
da cidadania no Brasil, enquanto fenômeno histórico, já refletia esse contex-
tosobre as três dimensões da cidadania: direitos civis (direito à liberdade, à
propriedade e à igualdade perante a lei); direitos políticos (direito à partici-
pação do cidadão no governo da sociedade – voto) e direitos sociais (direito
à educação, ao trabalho, ao salário justo, à saúde e à aposentadoria).
E o objetivo geral do autor era justamente o de demonstrar que no Brasil
não houve um atrelamento dessas três dimensões políticas, e que isso, con-
forme aparece em sua tese, tem gerado historicamente neste país uma cida-
dania inconclusa.
Sendo assim, a descrição de todo esse contexto pretendeu demonstrar
que existe espaço no campo jurídico brasileiro para o paradoxo que nos mo-
tivou a escrever este texto. Melhor dizendo: parece-nos que o contexto da
formação da sociedade brasileira autoriza (ou favorece) que o Direito adote
essa postura, de pretender tutelar e defender os cidadãos brasileiros de suas
próprias vontades.
94
O que, no entanto, nos impacta e nos causa perplexidade é verificar que
esse paradoxo não causa estranheza, como se fosse natural a intervenção do
Estado na autonomia privada, mesmo em situações em que o próprio cida-
dão decide relativizar algum direito de sua personalidade.
95
Estranha limitação de um ato de boa vontade!
Se fosse para amigos, por exemplo, a “doadora” não poderia emprestar
temporariamente uma função do seu corpo, pois seria ilícito contrariar esses
dispositivos normativos expressos.
Tais normas desconsideram a possibilidade deste procedimento ser uti-
lizado por pessoas que não possuem a tradicional construção familiar, que
não possuem parentes de até quarto grau, desconsiderando o formato plural
para a constituição familiar, adotado pelo nosso sistema jurídico.
Não podemos olvidar, ainda, que a limitação imposta pelas normas bus-
ca proteger interesses de caráter exclusivamente moral, na medida em que
proíbe qualquer pessoa que não seja parente (ainda assim em certo grau) de
colaborar para com a mulher que deseja ter um filho e não pode, em seu pró-
prio ventre, geri-lo.
Desta forma, conseguimos perceber que o ordenamento jurídico brasi-
leiro restringe a liberdade advinda da vontade destas pessoas que pretendem
exercer a maternidade, mas por meio da gestação de um filho em ventre
alheio.
O caso sobre o qual refletimos nesse item demonstra, portanto, que a
vontade estatal impera sobre a vontade do particular, mesmo quando não se
vislumbra qualquer prejuízo de ordem física ou moral aos envolvidos. Ou
seja, o estado tutela a vontade do indivíduo mesmo quando a expressão des-
sa vontade não compromete minimamente o próprio indivíduo ou terceiros.
Note-se que no caso da gestação por substituição, a questão é oposta a
do aborto. Aqui, os interessados não buscam o exercício do direito funda-
mental à liberdade para extinguir uma vida, mas pelo contrário, para gerá-la.
Mesmo assim, vemos a posição tradicional do estado como tutor dos interes-
ses privados.
4 “A mexicana Maria Jose Cristerna, conhecida como “Mulher Vampiro”, posou para
fotos durante uma cerimônia de abertura para exibição de suas pinturas em Guadalaja-
ra, no México. Ela mostrou, recentemente um novo implante de chifres de titânio, pre-
sas na boca e diversos piercings que tem pelo corpo.” Fonte: “http://www.jb.com.br/
ciencia-e-tecnologia/noticias/2011/08/06/mulher-vampiro-exibe-novos-chifres-de-tita
nio-e-implante-de-dentes/” acessado em 10/01/2018.
96
A autonomia privada, nesses casos, fica limitada, em nome de uma pro-
teção à integridade física da própria pessoa.
E a questão cerne deste trabalho repousa justamente nesta situação.
Até que ponto o Estado limita, através de suas normas, a autonomia pri-
vada, ou seja, a liberdade do indivíduo?
Temos o exemplo do artigo 13 do Código Civil Brasileiro, que dispõe:
Art. 13. Salvo por exigência médica, é defeso o ato de disposição do próprio
corpo, quando importar diminuição permanente da integridade física, ou con-
trariar os bons costumes.
Parágrafo único. O ato previsto neste artigo será admitido para fins de trans-
plante, na forma estabelecida em lei especial.
6. Considerações finais
97
bre o próprio corpo, gênero e nome, é cristalina expressão da dignidade da
pessoa humana. Justamente este é a questão mais complexa sobre o tema
analisado. Uma vez que a liberdade é expressão maior da dignidade da pes-
soa, em tese, não faria sentido restringir tal liberdade se esta própria liber-
dade não causasse dano algum à terceiros ou à sociedade em geral.
Entretanto, como percebemos, em determinadas situações, a pondera-
ção de valores realizada no caso concreto proíbe o indivíduo de exercer a sua
liberdade, algumas vezes em nome de questões morais.
Desta forma, pudemos perceber que as liberdades individuais possuem
certos limites para o seu exercício. Tais limitações, todavia, se encontram
não apenas na própria Constituição Federal, norma jurídica que confere o
direito à liberdade que, possui, inclusive, status de cláusula pétrea, mas tam-
bém em normas infraconstitucionais. Tal fenômeno causa estranheza quan-
do verificamos que doutrina pátria sobre direito constitucional que analisa
os direitos e garantias fundamentais os elevam à categoria de normas autoa-
plicáveis, com produção de efeitos imediatos e de eficácia plena. Ou seja, a
norma que consagra a liberdade em nossa carta magna, não sendo uma nor-
ma constitucional de eficácia limitada ou contida, não poderia sofrer qual-
quer limitação por regras infraconstitucionais.
E seguimos sem respostas para a pergunta que nos instigou.
Será que, em nome da tutela geral dos direitos da personalidade, o orde-
namento jurídico acaba restringindo a liberdade individual?
Ou seja, em nome de proteger a personalidade, será que o Direito a des-
protege e a desconsidera?
Será que a tutela estatal dos direitos da personalidade, acaba amputando
a liberdade individual e autonomia privada?
A nossa inquietude, portanto, decorre dessa estranha percepção de que,
no Brasil, em nome de uma proteção jurídica, os direitos da personalidade
se tornam irrenunciáveis e indisponíveis para o próprio cidadão.
Eis aqui o aparente paradoxo que nos estimulou a compartilhar, neste
texto, nossas perplexidades e reflexões.
Referências Bibliográficas
ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. 2 ed. São Paulo: Malheiros.
2012.
ALVES, Cleber Francisco. O princípio constitucional da pessoa humana: O enfoque
da doutrina social da igreja. 1ª. ed. Editora Renovar. 2001.
AMORIM, M. S.; LUPETTI BAPTISTA, B. G. Quando direitos alternativos viram
obrigatórios. Burocracia e tutela na administração de conflitos.. Antropolítica
(UFF), v. 37, p. 287-318, 2014.
AMORIM, Maria Stella de; KANT DE LIMA, Roberto; MENDES, Regina Lúcia
Teixeira (Org.) Ensaios sobre a igualdade jurídica: acesso à justiça criminal e
direitos de cidadania no Brasil. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, introdução.
98
BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo. 6. ed.
São Paulo: Saraiva, 2011.
BRASIL. Presidência da República.Constituição da República Federativa do Brasil.
Disponível em: “http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Consti-
tuicao.htm”. Acesso em 06 jun. 2016.
__________. Presidência da República.Lei 10.406 de 10 de janeiro de 2002. Insti-
tui o Código Civil. Disponível em: “http://www.planalto.gov.br/cci-
vil_03/leis/L8078.htm”. Acesso em 06 jun. 2016.
__________. Poder Judiciário. Conselho da Justiça Federal. Enunciados Aprovados
da I, III, IV e V Jornada de Direito Civil. Disponível em: “http://www.cjf.jus.
br/cjf/CEJ-Coedi/jornadas-cej/enunciados-aprovados-da-i-iii-iv-e-v-jornada-
de-direito-civil/compilacaoenunciadosaprovados1-3-4jornadadircivilnum.pdf
/at_download/file”. Acesso em 03 ago. 2016.
CARVALHO,José Murilo de. Cidadania no Brasil. O longo Caminho. 3ª ed. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.
COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. 10ª.
ed. São Paulo. Ed. Saraiva, 2015
CONVENÇÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Convenção
Americana sobre Direitos Humanos.Assinada na Conferência Especializada In-
teramericana sobre Direitos Humanos, San José, Costa Rica, em 22 de novem-
bro de 1969. Disponível em: “https://www.cidh.oas.org/basicos/portu-
gues/c.convencao_americana.htm”. Acesso em 03 ago. 2016.
DEMO, P. Cidadania tutelada e cidadania assistida. São Paulo: Autores Associados,
1995.
FAORO, Raymundo. Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro.
Porto Alegre: Globo, 1958.
FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de direito civil: volu-
me 1. 11. ed. Salvador: Jus Podium, 2013.
REYRE, Gilberto.Casa-Grande&Senzala, 50ª edição. Global Editora. 2005.
GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro, volume 1: parte geral. 14.
ed. São Paulo: Saraiva, 2016.
KANT DE LIMA, Roberto. Direitos civis e direitos humanos: uma tradição judiciá-
ria pré-republicana? São Paulo em Perspectiva, São Paulo, vol. 18, n. 1, São
Paulo Jan/Mar 2004. Disponível em: “http://dx.doi.org/10.1590/S0102-
88392004000100007”. Acesso em 20 jul. 2016.
LENZA, Pedro. Direito constitucional esquematizado, 16ª. ed. São Paulo: Saraiva,
São Paulo, 2012.
LUPETTI BAPTISTA, Bárbara Gomes. Os Rituais Judiciários e o Princípio da
Oralidade: construção da verdade no processo civil brasileiro.Porto Alegre:
Sergio Antonio Fabris Editor, 2008.
MARMELSTEIN, George, Curso de Direitos Fundamentais. Rio de Janeiro: Atlas
2014.
MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito
Constitucional. São Paulo: ed. Saraiva, 2015.
REALE,Miguel. Lições preliminares de Direito. 25ª. ed. Saraiva. São Paulo. 2001
RIDOLA, Paolo. A dignidade humana e o “princípio liberdade” na cultura constitu-
cional europeia; coordenação e revisão técnica Ingo Wolfgang Sarlet; tradução
Carlos Luiz Strapazzon, Tula Wesendonck. Livraria do Advogado, 2014.
99
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria dos di-
reitos fundamentais na perspectiva constitucional. 12ª. ed. Porto Alegre: Revis-
ta do advogado editora, 2015.
SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais. 6ª. ed. São Pau-
lo: Malheiros, 2004.
VENOSA, Silvio Salvo Venosa. O novo Código completo. 3ª. ed. Atlas. São Paulo,
2004.
100
O Estatuto da Cidade (Lei nº 10.257/2001)
e seus instrumentos urbanísticos
Vanderlei Martins
Marcos Paulo Sobreiro Pulvino
1. Introdução
101
ção experimentada pelas cidades, o país começou a sentir o fenômeno do
êxodo rural, em que os moradores do campo migraram para as cidades com
o fito de buscar uma vida melhor com mais oportunidades. “Somente entre
1970 e 1980 se incorporaram a população urbana mais de trinta milhões de
novos habitantes1” Com isso, a população das cidades do Brasil passou a ser
urbana e tal fenômeno parece não ter mais volta. Tanto isso é verdade que o
último censo do IBGE feito em 2010, registrou uma taxa de urbanização de
mais 80%, sendo precisamente a porcentagem de 84,36%2 da população.
Esse fenômeno é nacional, mas mais acentuado em certas partes do país.
“A urbanização no Estado de São Paulo já está consolidada, alcançando a
taxa de 96%, a mais alta do país3”. Já na região norte essa mudança não é tão
acelerada.
Também na América Latina a alta taxa de urbanização tem modificado
o panorama das cidades. O que se vê é uma alta taxa de urbanização e a des-
proporcional distribuição de terras é um dos agentes causadores de inúme-
ros problemas urbanos.
102
2. Dos instrumentos urbanísticos disponíveis no Estatuto da Cidade e que
são meios
103
(...) Está centrado na organização conveniente dos espaços habitáveis, é o ins-
trumento básico da política urbana municipal, deve ser elaborado de maneira
participativa e deve servir como instrumento de realização da função social da
propriedade. Alo organizar os espaços habitáveis em toda a área do Município
(urbana e rural), deve ter, sim, uma preocupação social, de justiça social, de
realização do mandamento constitucional (art. 3º, III), no sentido da erradica-
ção da pobreza e da marginalidade e redução das desigualdades sociais e regio-
nais5.
104
Definir as áreas urbanas consideradas não utilizadas, não edificadas e subtiliza-
das, para o poder público municipal aplicar, de forma sucessiva, o parcelamento
ou edificação compulsórios, Imposto sobre a Propriedade Predial e Territorial
progressivo no tempo e a desapropriação para fins de reforma urbana, ao pro-
prietário de imóvel urbano, nos termos do parágrafo 4º do artigo 182. (...) É
incumbência do Plano Diretor a definição de critérios para a utilização dos ins-
trumentos estabelecidos no Estatuto da Cidade, tais como a outorga onerosa do
direito de construir, as operações urbanas consorciadas, o direito de preemp-
ção, a transferência do direito de construir e as zonas especiais de interesse
social7
Caso o plano diretor seja aprovado por lei ordinária (o que é possível) ele pode-
rá ser normalmente alterado por lei ordinária posterior que discipline pontual-
mente uma dada matéria de forma distinta daquela prevista no plano original.
O autor somente faz a ressalva de que a limitação que se impõe é de natureza
lógica (princípio da razoabilidade), que impede a adoção de uma medida pon-
tual que seja desconforme ao sistema geral que caracteriza o plano diretor8.
105
Por derradeiro, o Estatuto ainda ordena que cidades que tenham mais
de meio milhão de habitantes devem elaborar um plano de transporte urba-
no integrado, que seja compatível com o Plano Diretor ou que seja integrado
nele. É sabido que cidades desse porte já podem apresentar problemas de
circulação graças a numerosa população. Assim, o Plano Diretor deve ser
pensado também quanto a mobilidade.
106
O estabelecimento de uma ZEIS serve tanto para a regularização de loteamen-
tos, conjuntos habitacionais e favelas, de modo que o parcelamento e as
construções sejam aprovados pelo poder público; como também para a execu-
ção de projetos de habitação de interesse social, o que representará padrões
diferenciados de construção quando destinados à população de baixa renda11.
107
direito privado e analisar o instituto com os olhos voltados para o direito ci-
vil, iluminado pelos princípios constitucionais e do direito público12.
E então começam as diferenças entre o usucapião individual e o coletivo.
O individual tem uma única finalidade, qual seja de empreender a regulari-
zação fundiária de áreas ilegais. “Já o usucapião coletivo incumbe dupla ta-
refa: não só regularizar a situação fundiária, mas permitir a urbanização de
áreas ocupadas por população de baixa renda, alterando o perfil social inde-
sejável de determinados núcleos habitacionais urbanos.13”
O usucapião individual se destaca por ter alguns requisitos, como a pos-
se da área urbana com metragem máxima de 250 metros quadrados; o bene-
ficiário não pode ter recebido outro imóvel por usucapião; exige-se a posse
ininterrupta por, pelo menos, 5 anos; além de que a posse deve ser destinada
para a moradia da família.
O Código Civil, que entrou em vigor um ano após o Estatuto da Cidade
trouxe uma hipótese de usucapião urbano. Houve alguma incompatibilida-
de? Há duas hipóteses: Eis a primeira, que ventila a manutenção de todas as
formas individuais de usucapião especial urbano
O Código Civil de 2002 no artigo 1240 tratou da usucapião urbana pró mora-
dia. Suscitou-se a hipótese de abrogação do texto da lei especial, entretanto, o
Enunciado nº 85 d CNJ pacificou a questão, a saber:
Artigo 1240: Para efeitos do artigo 1240, caput, do novo Código Civil, enten-
de-se por área urbana o imóvel edificado ou não, inclusive unidades autônomas
vinculados a condomínios edilícios.
Assim, pode-se afirmar que as duas espécies de usucapir imóveis urbanos per-
manecem no ordenamento. Agora acrescidas da terceira forma originada do
mesmo dispositivo constitucional (artigo 183, CF) conforme expressamente
estabelecido no artigo 60, caput, da Lei nº 11.977/0914.
108
disciplina algo diversa. Logo, a revogação deu-se pela incompatibilidade das
duas normas regularem a mesma situação jurídica, para os mesmos destinatá-
rios. Prevalece, portanto, a lei posterior, que no caso é o Código Civil15.
109
Aquela área integral onde não se conhece onde começa o direito de cada
possuidor pressupõe a usucapião coletiva, em que é permitida ao poder pú-
blico usar essa ação coletiva para transformar ao final do processo aquela fa-
vela em um local digno, integrado na cidade formal.
Em verdade, o usucapião coletivo só é possível quando há um plano pré-
vio e urbanização da localidade. Por isso se diz que além de promover a re-
gularização fundiária o instituto também facilita a conformação urbanística
da terra.
Não é razoável que o plano diretor estenda a toda a cidade a obrigação de par-
celar, edificar ou utilizar compulsoriamente a propriedade. Pois, neste caso,
tais obrigações deixariam de ser sanção administrativa por desentendimento de
norma – clara intenção do Estatuto da Cidade – para ser nova regra de uso da
propriedade19.
110
Já quanto a lei especifica, tem-se o Estatuto da Cidade, que veio para
regulamentar a matéria. Ele trouxe os artigos 5º e 6º para fala do parcela-
mento, edificação e utilização compulsórios. O artigo subseqüente tratou do
IPTU progressivo no tempo. E o artigo 8º cuidou da desapropriação.
Como a área deve estar descrita no plano diretor, é óbvio, como relata a
letra da lei que é subutilizado aquele que fica aquém do que estipulou o Pla-
no Diretor. Os parágrafos 2º e 3º do artigo 5º tratam da notificação que o
Poder Público precisa fazer para o proprietário, dando-lhe ciência da obriga-
ção que precisa ser cumprida.
Após a ciência, vem o prazo para o munícipe dar início a obrigação im-
posta. Segundo a lei, será de um ano, a partir da notificação, para que seja
protocolado o projeto no órgão municipal competente e após isso, dois anos
a partir da aprovação do projeto, para iniciar as obras do parcelamento, edi-
ficação ou utilização compulsórios.
Nos termos do artigo 7º, em havendo descumprimento das obrigações
anteriores, o Município poderá cobrar o IPTU progressivo no tempo, varian-
do até a alíquota máxima de 15%. É vedada a concessão de isenções, já que
a natureza desse instrumento é servir como sanção por um descumprimento
prévio.
A parte final do artigo 7º ainda estipula que a cobrança do imposto pro-
gressivo pode ser cobrado por cinco anos consecutivos.
Eis a lentidão desse procedimento, o que faz o instrumento urbanístico
perder um pouco da sua eficácia. Para chegar até aqui, o Município já deve
ter dado os prazos para o parcelamento, edificação ou utilização compulsó-
rios, como foi examinado nas linhas acima. São três anos até a possibilidade
de cobrança do imposto predial desse artigo 7º. Nesse tempo, a cidade já
pode ter mudado em vários aspectos, talvez fazendo ser inócua a obrigação
imposta anteriormente.
111
imóvel para a Administração Pública, mas deve ser dada uma destinação que
efetive a melhoria da política urbana.
Mais uma vez é possível refletir sobre o tempo. Até chegar nesse estágio,
um lapso temporal enorme já transcorreu, fazendo com que o instituto seja
pouco utilizado. Esse instrumento é útil? Seus resultados para a política ur-
bana vem depois de muito tempo, depois de ter passado alguns mandatos
eletivos. Um mandato eletivo no Brasil é de 4 anos. Para chegar até a desa-
propriação, é preciso passar antes pela fase do parcelamento, edificação e
utilização compulsórios, cujos prazos somados dão 3 anos. Depois, na se-
qüência, vem o IPTU que pode ser cobrado por 5 anos. Já são oito anos en-
quanto a cidade, dinâmica, vai mudando. Fica a pergunta para reflexão: esse
instrumento pode mesmo ser útil para a política urbana?
3. Considerações finais
112
das pelo Estatuto da Cidade. E o Estatuto foi além: criou diversos mecanis-
mos para atuar na expansão e melhoria da ordem urbanística.
Como conclusão principal tem-se que os instrumentos da política urba-
na são extremamente necessários para que a cidade possa ganhar mais qua-
lidade de vida e para que os seus cidadãos vivam melhor.
Além disso, a Constituição da República definiu o Município como com-
petente para a maioria das medidas do Estatuto da Cidade, pois o morador
guarda íntima relação com esse ente público; é a pessoa política mais próxi-
ma do cidadão. Por essa razão a Constituição concedeu a possibilidade de o
Município criar o plano diretor, de modo que esse documento escrito foi
erigido a instrumento básico da política de desenvolvimento urbano, tão
grande é a sua importância.
O Estatuto da Cidade, então, atendendo ao mandamento do Pacto So-
cial firmou as hipóteses em que os Municípios terão de elaborar tal plano,
como foi trazido ao longo do trabalho.
Essa legislação tratou de permitir a aplicação de formas que efetivem a
política de desenvolvimento urbano, fazendo com que ela seja mais dinâmi-
ca e eficiente, o que pode ser considerado um grande avanço. Merecem mui-
tos aplausos a obrigatoriedade da incisiva participação popular na gestão da
cidade e a tomada do planejamento como diretriz fundamental para o au-
mento da qualidade de vida dos cidadãos, distintivos essenciais do Estatuto
da Cidade.
Com os instrumentos, tem-se que eles são variados e cada um tem o seu
regime próprio. Entretanto, há alguns que são mais utilizados que os outros.
Assim, por derradeiro, o que os que trabalham em prol das cidades devem
fazer é usar todos os instrumentos urbanísticos disponíveis sempre, eis que
os obstáculos são bastante grandes e o trabalho de transformar o meio urba-
no num espaço mais justo bem árduo. Se esses aparelhos não forem aprovei-
tados, os problemas que já são enormes agigantar-se-ão.
Só assim, com o uso regular e efetivo desses mecanismos diante dos pro-
blemas urbanos é que se transformará de fato a cidade num lugar melhor.
5. Referências bibliográficas.
CÂMARA, Jacintho Arruda. Plano Diretor. In: In: DALLARI, Adilson Abreu; FER-
RAZ, Sérgio. (Coord.). Estatuto da Cidade. Comentários à Lei Federal
10.257/2001. São Paulo: Malheiros Editores, 2002 apud CHAUVET, Luiz
Eduardo. Regularização fundiária plena e direito social a moradia no espaço
urbano. Dissertação de mestrado. Pontifícia Universidade Católica. Rio de Ja-
neiro: PUC, 2011;
CHAUVET, Luiz Eduardo. Regularização fundiária plena e direito social a mora-
dia no espaço urbano. Dissertação de mestrado. Pontifícia Universidade Cató-
lica. Rio de Janeiro: PUC, 2011;
113
DALLARI, Dalmo de Abreu. Instrumentos da política urbana. In: DALLARI, Adil-
son Abreu; FERRAZ, Sérgio. (Coord.). Estatuto da Cidade. Comentários à Lei
Federal 10.257/2001. São Paulo: Malheiros, 2002;
GOMES, Rosângela Maria de Azevedo. A legitimação da posse na Lei nº
11.977/09: uma análise sobre a aquisição de direitos;
INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Séries históricas
e estatísticas. Disponível em: “http://seriesestatisticas.ibge.gov.br/se-
ries.aspx?vcodigo=POP122”. Acesso em 07 de setembro de 2017;
LENCIONI, Sandra. Uma nova determinação do urbano: o desenvolvimento do
processo de metropolização do espaço. In: CARLOS, Ana Fani Alessandri; LE-
MOS, Anália Inês Geraiges (Orgs.) Dilemas urbanos: novas abordagens sobre
a cidade. São Paulo: Contexto, 2003;
LOUREIRO, Francisco. Usucapião coletivo e habitação popular. In: ALFONSIN,
Bethânia; FERNANDES, Edésio. Direito à moradia e segurança da posse no
Estatuto da Cidade: diretrizes, instrumentos e processos de gestão. Belo Hori-
zonte: Fórum, 2014;
MARICATO, Ermínia. Metrópole na periferia do capitalismo: ilegalidade, desigual-
dade e violência. São Paulo: Hucitec, 1996;
MONTEIRO, Vera. Parcelamento, edificação ou utilização compulsórios. In: DAL-
LARI, Adilson Abreu; FERRAZ, Sérgio. (Coord.). Estatuto da Cidade. Co-
mentários à Lei Federal 10.257/2001. São Paulo: Malheiros, 2002;
SAULE JÚNIOR, Nelson. A proteção jurídica da moradia nos assentamentos irre-
gulares. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2004;
114
A luta pelo reconhecimento da criança e do
adolescente transexual: uma análise a partir
do tratamento hormonal
115
Introdução
(...) temos o direito a ser iguais quando a nossa diferença nos inferioriza; e te-
mos o direito a ser diferentes quando a nossa igualdade nos descaracteriza. Daí
a necessidade de uma igualdade que reconheça as diferenças e de uma diferença
que não produza, alimente ou reproduza as desigualdades.1
116
Neste contexto, a busca pela liberdade existencial6 7 da criança e do
adolescente transexual avulta a prioridade de seu interesse como pessoa,
bem como o desenvolvimento da sua livre personalidade, e não mais do po-
der familiar ou até mesmo o paternalismo do Estado. Assim sendo, mais que
sobrepor a vontade dos pais ou a proteção paternalista estatal, cuida-se de
uma tutela que privilegie o que é o melhor para aquele ser em formação; em
observância, portanto, ao princípio do melhor interesse da criança e do ado-
lescente disposto no art. 227 da CF/88, bem como ao princípio da dignidade
da pessoa humana, disposto no art. 1º, III da CF/88. Logo, é dever do Esta-
do, da sociedade e da sua família, a proteção deste direito, seja sob o caráter
repressivo (sob o binômio lesão-sanção), seja sob o caráter promocional.
117
ganizar uma sociedade sem preconceito e sem discriminação, fundada na
igualdade de todos, não contém norma expressa acerca da liberdade de
orientação”. Muito menos podemos falar nas questões atinentes aos transe-
xuais.
Em sua obra, “Diferentes, mas Iguais”, o Ministro do Supremo, assinala
que9:
118
inúmeros problemas. A ideia de sexo reprimido, não é somente objeto de
teoria, conforme Foucault12:
A afirmação de uma sexualidade que nuncafora dominada com tanto rigor como
na época da hipócrita burguesia negocista e contabilizadora é acompanhada
pela ênfase de um discurso destinado a dizer a verdade sobre o sexo, a modificar
sua economia no real, a subverter a lei que o rege, a mudar seu futuro [...] Dizer
que o sexo não é reprimido, ou melhor, dizer que entre o sexo e o poder, a relação
não é de repressão, corre o risco de ser apenas um paradoxo estéril. Não seria
somente contrariar uma tese bem aceita. Seria ir de encontro a toda a economia,
a todos os “interesses” discursivos que a sustentam.
12 Ibid., p.14.
13 TEPEDINO, Gustavo, apud DONEDA, Danilo. Os direitos da personalidade no
novo Código Civil (arts. 11 a 21). In: TEPEDINO, Gustavo (coord.). A Parte Geral do
novo Código Civil/Estudos na perspectiva civil-constitucional. 3ª ed. revista. Rio de Ja-
neiro: Renovar, 2007. p. 59.
119
rico, sujeito a manipulações diversas, segundo Barroso. Ainda continua o au-
tor:14
120
Outro ponto chave nesse contexto, diz respeito ao livre desenvolvimen-
to da personalidade.
Poderia então esse indivíduo invocar o seu direito fundamental para agir em
contrariedade ao ato do poder público? Para que se possa analisar a restrição a
um direito, liberdade e garantia, é necessário conhecermos o âmbito de proteção
das normas constitucionais consagradoras desse direito. No caso em espécie, de-
vemos analisar o âmbito de proteção inerente à liberdade consagrada pelo livre
desenvolvimento da personalidade. Daí a problemática quanto às duas corren-
tes. Uma primeira defende que o âmbito de proteção é qualquer manifestação
nais ou internacionais, mas sua estatura constitucional tem sido amplamente reconheci-
da. E nem poderia ser diferente. O mínimo existencial constitui o núcleo essencial dos
direitos fundamentais em geral e seu conteúdo corresponde às pré-condições para o
exercício dos direitos individuais e políticos, da autonomia privada e pública. Não é
possível captar esse conteúdo em um elenco exaustivo, até porque ele variará no tempo
e no espaço. BARROSO, Op. Cit, 2012, p.24-26.
16 MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional: Direitos Fundamentais,
tomo IV, 4.ed., Coimbra: Coimbra Editora, 2008, p. 91.
17 Nas lições de PAULO MOTA PINTO, O Direito ao Livre Desenvolvimento da
Personalidade, in Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra, Portugal-Brasil ano
2000, Coimbra Editora, 1999, p. 160, que diz que “a noção de desenvolvimento da
personalidade – e a própria concepção de personalidade em causa – comporta já uma
componente de liberdade.(...) “não protege, nomeadamente, apenas a liberdade de ac-
tuação, mas igualmente a liberdade de não actuar (não tutela, neste sentido, apenas a
actividade, mas igualmente a passividade, com uma garantia não unidimensional de ac-
tuação, mas pluridimensional, de liberdade de comportamento, enquanto decorrente
da ideia de desenvolvimento da personalidade”.
18 J. J. CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7.ed. Coim-
bra: Almedina. 2002, p. 1275.
121
humana, independente desta ter significativa relação com o desenvolver da per-
sonalidade. A segunda defende que o âmbito de proteção restringe-se às
manifestações que compõem o núcleo da personalidade, e que afetam diretamen-
te no seu desenvolvimento.
122
deste ou sua negação transformar-se-iam em manifestações de opressão le-
vando o sujeito a se ver como menor, enfraquecido e subjugado22.
Portanto, é através do reconhecimento e deferência pelas diferenças
que se afirmam as particularidades culturais que fomentam e permitem a
existência de culturas diversas, fortalecendo, assim, o pleno exercício de
suas identidades.
O processo tradicional de interferência extremamente paternalista dos
representantes legais do menor e do adolescente trans, bem como por parte
do Estado, no tocante a liberdade existencial, em sentido amplo, destes, não
pode ser mais visto como absoluto, pois estaria a limitar e aniquilar o livre
desenvolvimento das crianças e adolescentes, bem como assolando a sua dig-
nidade.
É próprio do ser humano possuir uma identidade para que exista como in-
divíduo e como parte da sociedade, meio em que está inserido e vive. Dentro
de sua individualidade é que ele se reconhece e se distingue dos demais em ca-
racterísticas próprias, se afirmando como um indivíduo único, como pessoa.
Um dos maiores desafios do século XXI é a questão das novas identidades
culturais, ou seja, aqueles aspectos de nossa identidade que surgem de nosso
“pertencimento” a culturas étnicas, raciais, lingüísticas, religiosas e nacionais.
Stuart Hall23 esclarecendo acerca da importância do que denomina crise de
identidade e, ainda a este respeito, ressalta que a identidade somente se torna
uma questão quando está em crise, quando algo que se supõe como fixo, coe-
rente e estável é deslocado pela experiência da dúvida e da incerteza.
Hall24 continua asserverando que as mudanças trazidas pela modernida-
de libertaram os indivíduos, até então, seguros por encontrarem apoio para
suas convicções nas tradições e nas estruturas, minando sua visão de ser in-
dividualizado, apontando que o status a classificação e a posição de uma pes-
soa na “grande cadeira do ser” – a ordem secular e divina das coisas, predo-
minavam sobre qualquer sentimento de que a pessoa fosse um indivíduo so-
berano.
Honneth, por sua vez, relaciona questões como luta social e reconheci-
mento com os processos de formação das identidades individuais e coleti-
vas. A luta por reconhecimento seria uma força motriz que geraria o desen-
volvimento e as conquistas sociais. Neste sentido, esclarece25:
123
(..) são as lutas moralmente motivadas de grupos sociais, sua tentativa de esta-
belecer institucional e culturalmente formas ampliadoras de reconhecimento re-
cíproco, aquilo por meio do qual vem a se realizar a transformação normativa-
mente gerida das sociedades.
Conlusão
O tema que ora nos propusemos a esboçar, engendra este tipo de ques-
tionamento conflitante. No entanto, isso não impede que argumentemos e
nem que possamos propor soluções legítimas para tal celeuma. A sociedade
por mais evoluída que possa ser em relação a esta questão ainda encontra-se
inculta, onde o convencionalismo para com os transexuais é enorme; tendo
em vista o desconhecimento da sociedade como um todo sobre o assunto.
Muitos estudos já existem acerca da transexualidade, como por exem-
plo o direito ao nome social, a cirurgia de redesignação de sexo e a mudança
de nome no registro civil; bem como, propostas de um Estatuto da Diversi-
dade Sexual, como forma de minimizar os efeitos em relação à dignidade do
transexual27.
124
A doutrina e jurispridência, muitas vezes, vão buscar uma solução mais
ampla do que a que apresenta o direito subjetivo contida, assim, na situação
jurídica subjetiva. Nesse sentido, a situação jurídica subjetiva é definida
como centro de interesses no qual estão englobados o direito subjetivo, o
poder jurídico, o interesse legítimo, entre outros; e por este motivo, mais
ampla que o direito subjetivo. Em síntese, a exclusividade da solução dos
problemas jurídicos através da noção de direito subjetivo não coincide com
os próprios interesses traçados na Constituição de 198828.
Invocamos, com frequência, na epistemologia os inúmeros procedimen-
tos pelos quais o cristianismo antigo nos teria feito detestar o nosso próprio
corpo:
(...) mas, pensemos um pouco em todos esses ardis pelos quais, há vários séculos,
fizeram-nos amar o sexo, tomaram desejável para nós conhecê-lo e precioso tudo
o que se diz a seu respeito; pelos quais, também, incitaram-nos a desenvolver
todas as nossas habilidades para surpreendê-lo e nos vincularam ao dever de
extrair dele a verdade; pelos quais nos culpabilizaram por tê-lo desconhecido por
tanto tempo. São esses ardis que mereceriam espanto hoje em dia. E devemos
pensar que um dia, talvez, numa outra economia dos corpos e dos prazeres, já
não se compreenderá muito bem de que maneira os ardis da sexualidade e do
poder que sustêm seu dispositivo conseguiram submeter-nos a essa austera mo-
narquia do sexo, a ponto de votar-nos à tarefa infinita de forçar seu segredo e de
extorquir a essa sombra as confissões mais verdadeiras. Ironia deste dispositivo:
é preciso acreditarmos que nisso está nossa “liberação”29.
125
Referências Bibliográficas:
126
Educação em direitos humanos
Fernanda Baldanza
Katia Eliane Santos Avelar
Maria Geralda de Miranda
INTRODUÇÃO
127
vida concreta da população mais vulnerável, interpõe-se uma distância ho-
mérica. Conforme ressalta o autor, ao redor do mundo pessoas continuam
sendo vitimadas pela fome ou por doenças de fácil prevenção; seres huma-
nos são sistematicamente torturados e quando presos submetidos a condi-
ções de encarceramento absolutamente degradantes; indivíduos são discri-
minados, humilhados e até assassinados em razão de fatores como etnia, na-
cionalidade, gênero, religião, deficiência ou orientação sexual. A dignidade
da pessoa humana, conforme proclamado em todo o sistema de proteção aos
direitos humanos, continua sendo arbitrariamente retirado da vida cotidiana
das pessoas, especialmente as mais vulneráveis.
Fatos históricos reforçam a ideia de uma constante violação de direitos
humanos ao longo de toda a história da humanidade. A escravidão, a Inqui-
sição, as guerras mundiais, as bombas nucleares, o apartheid na África, a cri-
se dos refugiados, conflitos armados de grupos extremistas e terrorismo, são
apenas alguns exemplos de graves violações a direitos humanos ocorridas ao
longo da história da civilização, citados em razão de sua notoriedade.
Nas favelas brasileiras, por exemplo, existe uma política de extermínio
habitual direcionada seletivamente aos suspeitos pobres e residentes destes
locais1, fatos estes que geralmente não são sequer investigados (SARMEN-
TO, 2016). Não são poucos os exemplos de populações que além de margi-
nalizadas, também são consideradas descartáveis, homo sacer ou vidas matá-
veis. (AGAMBEN, 2007)
A verdade é que o mundo atravessa um momento crítico e testemunha-
se o maior nível de sofrimento humano desde a Segunda Guerra Mundial.
Segundo a Cúpula Mundial Humanitária2, que ocorreu no mês de maio de
2016 em Istambul, mais de 125 milhões de mulheres, homens e crianças em
todo o mundo necessitam de ajuda humanitária, por razões de conflitos ar-
mados e desastres. (ONU – CMH, 2016)
A urgência de uma nova forma de concepção dos direitos humanos se
mostra evidente e para tanto é imprescindível que sua doutrina alcance o
maior número de pessoas. Sobre direitos humanos, muito se discute, mas
pouco se ensina, e em razão deste desconhecimento estrutural, surgem as
percepções completamente distorcidas do que venham a ser os Direitos Hu-
manos.
1 Dados podem ser verificados no documento “Você matou meu filho” publicado em
2015 pela Anistia Internacional. Disponível em “https://anistia.org.br/direitos-huma-
nos/publicacoes/voce-matou-meu-filho/”
2 A Cúpula Mundial Humanitária em Istambul, entre 23 e 24 de maio, pretende ser
o marco de uma grande mudança na maneira como a comunidade internacional previne
o sofrimento humano ao preparar-se para responder a crises. Para maiores informações
acessar o documento Agenda pela Humanidade, disponível em “https://nacoesuni-
das.org/cupula-mundial-humanitaria-da-onu-propoe-agenda-pela-humanidade/”
128
EDUCAÇÃO EM DIREITOS HUMANOS NO PLANO INTERNA-
CIONAL
Para que as pessoas possam se valer de todo sistema de proteção aos di-
reitos humanos é preciso que todos – mulheres, homens, jovens e crianças –
conheçam e compreendam sobre a relevância dos direitos humanos para
suas preocupações e aspirações. (BENEDEK, 2012)
É compreender, acima de tudo, que os princípios e procedimentos de
direitos humanos habilitam as pessoas a participar nas decisões determinan-
tes em suas vidas, atuam na resolução de conflitos e na manutenção da paz,
e se constituem em uma estratégia perfeitamente viável para um desenvol-
vimento humano, social e econômico centrado na pessoa (BENEDEK,
2012). Cabe salientar que esta centralização não se trata de um individualis-
mo radical, mas consiste simplesmente em transformar o indivíduo no pro-
tagonista de sua própria vida.
É a partir desta forma de ensino-aprendizagem que será desenvolvida
uma cultura de direitos humanos baseada no respeito, proteção, satisfação,
cumprimento e prática dos Direitos Humanos. (Ibidem.)
Neste sentido destaca-se a ponderação de Shulamith Koenig, citada no
Manual de EDH (BENEDEK, 2012, p. 45): “A educação, a aprendizagem e
o diálogo para os direitos humanos têm de evocar o pensamento crítico e a
análise sistémica com uma perspectiva de gênero sobre as preocupações po-
líticas, civis, económicas, sociais e culturais, no âmbito do sistema dos direi-
tos humanos”.
Benedek (2012) sugere que quatro objetivos principais devem consti-
tuir a base para a educação em direitos humanos: a) a transformação de co-
nhecimento e de informação; b) o desenvolvimento de aptidões; c) modifi-
cação de atitudes; e d) a atuação.
No item “a” será explicitado o conteúdo, as normas e a proteção relacio-
nada aos direitos humanos e o que estes direitos representam na vida coti-
diana e trabalho dos indivíduos.
O item “b” significa um empoderamento dos indivíduos a viver e traba-
lhar respeitando e implementando os direitos humanos, desenvolvendo ap-
tidões tais como comunicação, escuta ativa, argumentação e debate, análise
crítica, etc.
A modificação de atitudes consiste em uma reflexão sobre a relatividade
dos papeis culturais e de gênero de cada um, para uma reconstrução de va-
lores baseada nos direitos humanos.
A atuação por sua vez pretende implementar uma consciência de direi-
tos humanos tanto na vida cotidiana quando no trabalho.
Feitas estas considerações preliminares, passa-se à análise dos principais
documentos internacionais em matéria de EDH.
A preocupação da comunidade internacional com a Educação em Direi-
tos Humanos nasce juntamente a proclamação da Declaração Universal de
129
Direitos Humanos (1948, pág. 14), que trouxe em seu texto, especifica-
mente no item 2 do art. 26 do documento, a seguinte recomendação:
130
1995 a 2004, através da Resolução 49/184, e criaram o Plano de Ação Inter-
nacional para a Década, que apresenta em seu art. 2º a definição de EDH e
em seguida os cinco objetivos principais do projeto:
131
tação e de difusão de informação, orientado para a criação de uma cultura
universal de direitos humanos. Uma educação integral em direitos humanos
não somente proporciona conhecimentos sobre os direitos humanos e os
mecanismos para protegê-los, mas, além disso, transmite as aptidões neces-
sárias para promover, defender e aplicar os direitos humanos na vida cotidia-
na das pessoas. “A educação em direitos humanos promove as atitudes e o
comportamento necessários para que os direitos humanos para todos os
membros da sociedade sejam respeitados”.
As disposições relativas à EDH foram incorporadas em inúmeros docu-
mentos internacionais, em destaque a Declaração Universal de Direitos Hu-
manos (artigo 26), o Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e
Culturais (artigo 13), a Convenção sobre os Direitos da Criança (artigo 29),
a Convenção sobre a eliminação de todas as formas de discriminação contra
a mulher (artigo 10), a Convenção Internacional sobre a Eliminação de to-
das as formas de Discriminação Racial (artigo 7) e a Declaração e Programa
de Ação de Viena (Parte I, parágrafos 33 e 34 e Parte II, parágrafos 78 a 82),
bem como na Declaração e Programa de Ação da Conferência Mundial Con-
tra o Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia e a Intolerância Correla-
tas, celebrada em Durban (África do Sul), em 2001 (Declaração, parágrafos
95 a 97 e Programa de Ação, parágrafos 129 a 139). (UNESCO, 2006)
Ainda no contexto do Plano de Ação para a primeira fase, PMEDH-1
(UNESCO, 2006) é possível encontrar claramente a definição de educação
em direitos humanos como sendo o conjunto de atividades de capacitação e
difusão da informação, orientadas para a criação de uma cultura universal na
esfera dos direitos humanos através da transmissão de conhecimentos, do
ensino de técnicas e da formação de atitudes, e estabelece ainda suas princi-
pais finalidades:
132
b) Valores, atitudes e comportamentos: promoção de valores e fortalecimento
de atitudes e comportamentos que respeitem os direitos humanos;
c) Adoção de medidas: fomentar a adoção de medidas para defender e promo-
ver os direitos humanos.
133
Os objetivos da educação no Brasil podem ser extraídos da leitura do art.
205 da Constituição do Brasil, que assim dispõe: “A educação, direito de to-
dos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a co-
laboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu
preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”.
(BRASIL, 1988)
A educação representa, no seu sentido amplo, tudo aquilo que pode ser
feito para desenvolver o ser humano, e, em sentido estrito, a instrução e o
aperfeiçoamento de competências e habilidades. (VIANNA, 2006)
Para Freire (1967), o ponto de partida da educação está em considerar
a liberdade e a crítica como modo de ser do indivíduo. Em uma sociedade
dividida em classes, a educação é potente ferramenta para a mudança social.
Freire (op. Cit.) sustenta ainda que a educação para o desenvolvimento deve
ser uma prática de conscientização permanente, que possibilite ao homem a
discussão corajosa sobre a sua problemática, e a partir disso, obtenha a força
e a coragem necessárias para lutar e se tornar protagonista de sua própria
vida. Uma verdadeira pedagogia do oprimido: aquela que tem de ser forjada
com o ser humano e não para ele, na luta incessante de recuperação de sua
humanidade. (FREIRE, 2014).
A Constituição de 1988, no artigo 214, determina que a lei estabeleça
um Plano Nacional de Educação, com duração decenal, com objetivo de ar-
ticular o sistema nacional de educação e definir diretrizes, objetivos, metas
e estratégias de implementação para assegurar a manutenção e o desenvolvi-
mento do ensino em seus diversos níveis, destacando no inciso V a preocu-
pação soberana com a promoção humanística do País, incluindo-se nesta dis-
posição a educação em direitos humanos.
O Plano Nacional de Educação, que tem duração decenal (2014-2024),
foi aprovado através da Lei 13.005 de 25 de junho de 2014 para regulamen-
tar o art. 214 e adota em seu texto claras disposições sobre educação em di-
reitos humanos. Dentre as diretrizes constantes do art. 2º, cumpre salientar:
“V – formação para o trabalho e para a cidadania, com ênfase nos valores
morais e éticos em que se fundamenta a sociedade; VII – promoção huma-
nística, científica, cultural e tecnológica do país; X – promoção dos princí-
pios do respeito aos direitos humanos, à diversidade e à sustentabilidade so-
cioambiental”.
A Lei de Diretrizes e Bases (BRASIL, 1996) determina em seu art. 1º
que a educação “abrange os processos formativos que se desenvolvem na
vida familiar, na convivência humana, no trabalho, nas instituições de ensino
e pesquisa, nos movimentos sociais e organizações da sociedade civil e nas
manifestações culturais”. Entre os princípios elencados no art. 3º da Lei de
Diretrizes e Bases da Educação Escolar (1996), é possível constatar que al-
guns se encontram fundamentados em vertentes da educação humanista, a
saber:
134
Art. 3º O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios:
I – liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar a cultura, o pensamen-
to, a arte e o saber;
III – pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas;
IV – respeito à liberdade e apreço à tolerância;
XII – consideração com a diversidade étnico-racial.
135
Com base nessa explanação é possível identificar três eixos principais da
EDH: i) educar para princípios; ii) educar para valores; iii) educar para di-
reitos.
É neste contexto histórico surgem as primeiras versões do Programa Na-
cional de Direitos Humanos (PNDH), produzidos entre 1996 e 2002. Com
relação ao tema da EDH o documento orientador principal é o Programa
Nacional de Direitos Humanos-3, conhecido como PNDH-3 (2009), que
apresenta no eixo orientador V as determinações sobre a Educação e Cultu-
ra em Direitos Humanos com foco no desenvolvimento de uma nova men-
talidade coletiva para o exercício da solidariedade, do respeito às diversida-
des e da tolerância bem como em combater o preconceito, a discriminação
e a violência, promovendo a adoção de novos valores de liberdade, justiça e
igualdade.
Com relação à educação não formal, há previsão específica na Diretriz nº
20 do V Eixo Orientador V, objetivo Estratégico I do PNDH-3 (2009),
Ação Programática I, item “b” que versa sobre a inclusão da temática de
educação em Direitos Humanos na educação não formal de responsabilida-
de da Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República,
Ministério da Cultura, Secretaria Especial de Políticas de Promoção da
Igualdade Racial da Presidência da República; Secretaria Especial de Políti-
cas para as Mulheres da Presidência da República; Ministério da Justiça de
forma a:
No ano de 2006, o Brasil concebe seu primeiro Plano Nacional para Edu-
cação em Direitos Humanos, elaborado pela Secretaria Especial de Direitos
Humanos da Presidência da República em parceria com órgãos do poder
Executivo especificamente os Ministérios da Educação e Justiça, contando
ainda com a colaboração da Unesco, para então consagrar uma política edu-
cacional do Estado Brasileiro direcionado às 5 principais esferas educacio-
nais (MEC, 2011): educação básica, educação superior, educação não for-
mal, mídia e formação de agentes públicos de segurança e justiça.
Os Planos Nacionais são executados por políticas públicas a serem de-
senvolvidas pelos Municípios em regime de colaboração com as demais esfe-
ras do poder público. O Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos
incorpora os principais aspectos dos documentos internacionais sobre Direi-
tos Humanos, contemplando exigências antigas e contemporâneas da socie-
dade pela construção de uma cultura de paz, democracia, desenvolvimento
e justiça social. (PORTAL BRASIL, 2011)
De acordo com o Plano Nacional para Educação em Direitos Humanos
(2007) a educação não-formal em direitos humanos orienta-se pelos princí-
pios da emancipação e autonomia, visando executar o processo de sensibili-
136
zação e construção de uma consciência crítica, podendo ser entendida como
educação para a vida no sentido de garantir o respeito à dignidade do ser hu-
mano.
A Educação em Direitos Humanos, conforme preconiza o PNEDH
(2007) é percebida como um processo pluridimensional e sistemático que
conduz a formação do sujeito de direitos, composta por 5 dimensões nortea-
doras:
137
f) educação para a vida no sentido de garantir o respeito à dignidade do ser
humano.
138
01/2012: “I – dignidade humana; II – igualdade de direitos; III – reconheci-
mento e valorização das diferenças e das diversidades; IV – laicidade do Es-
tado; V – democracia na educação; VI – transversalidade, vivência e globali-
dade; e VII – sustentabilidade socioambiental”.
No esteio de documentos nacionais sobre EDH, importante destacar a
inserção dos valores de educação humanista na formação de profissionais do
magistério na educação básica através da promulgação das Diretrizes Curri-
culares Nacionais para as Licenciaturas, definidas pela Resolução nº
02/2015 do Conselho Nacional de Educação, órgão vinculado ao Ministério
da Educação, ambos do Poder Executivo. Ainda no preâmbulo a preocupa-
ção com a matéria se mostra evidente tendo em vista a Resolução considerar
a educação em e para os direitos humanos um direito fundamental e inte-
grante do direito à educação e também
uma mediação para efetivar o conjunto dos direitos humanos reconhecidos pelo
Estado brasileiro em seu ordenamento jurídico e pelos países que lutam pelo
fortalecimento da democracia, e que a educação em direitos humanos é uma
necessidade estratégica na formação dos profissionais do magistério e na ação
educativa em consonância com as Diretrizes Nacionais para a Educação em Di-
reitos Humanos;
CONSIDERAÇÕES FINAIS
139
las reduzidas de renda e por conseguinte, transmitem essa situação desprivi-
legiada para seus descendentes gerando um ciclo vicioso de reprodução de
elites e mobilidade social reduzida.
Não obstante, a educação em direitos humanos pretende garantir ao
educando uma educação imparcial, livre de valores pré-concebidos, pautada
no respeito, solidariedade e alteridade, que descortine a realidade e forneça
subsídios teóricos, históricos, sociais e jurídicos para que o educando arqui-
tete a sua própria concepção crítica. Ao reforçar o pensamento crítico cria-
se um filtro para recepção de verdades absolutas sem questionamentos e
abre-se um próspero caminho para ideias baseadas em fatos e não em qual-
quer forma de mitologia. A EDH objetiva incutir valores de respeito, tole-
rância, alteridade, solidariedade, justiça social e estabilizar uma cultura de
paz nas práticas cotidianas.
Mais do que nunca, o mundo precisa de Educação em Direitos Huma-
nos, para justamente reconhecer que somos todos humanos, iguais em dig-
nidade e direitos. Sendo assim se torna crucial esclarecer que os Direitos
Humanos se constituem hodiernamente como princípios fundadores da so-
ciedade moderna uma vez que refletem uma cultura de proteção e respeito
ao outro como também representam formas de luta contra as situações de
desigualdade de acesso aos bens materiais e imateriais, às discriminações
perpetradas sobre as diversidades culturais e religiosas, e, de forma geral, às
opressões vinculadas ao controle do poder por minorias. (BRASIL, 2011)
Neste sentido é preciso conceber uma nova forma de educação direcio-
nada à construção de um pensamento humanista na sua essência, de base
ideológica e comportamental. A educação em direitos humanos se propõe,
essencialmente, a buscar possíveis soluções para um grave problema estru-
tural na cultura brasileira que é o desconhecimento de direitos e propor um
modelo de desenvolvimento pautado na potencialização de capacidades in-
telectuais e comportamentais do indivíduo.
REFERÊNCIAS
140
_______. Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República.
Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3). Ed. Rev. Brasília:
SEDH/PR, 2010.
_______. Texto orientador para elaboração das Diretrizes Nacionais da Educação
em Direitos Humanos. Brasília: Conselho Nacional de Educação, 2011.
_______. MEC. Diretrizes Nacionais para a Educação em Direitos Humanos.
Conselho Nacional de Educação. Resolução nº 1/12. Brasília: MEC, 2012.
_______. MEC. Conselho Nacional de Educação. Diretrizes Curriculares Nacio-
nais para as Licenciaturas. Resolução n 02/2015. Brasília: MEC, 2015.
_______. Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República (SDH). Ca-
derno de Educação em Direitos Humanos. Educação em Direitos Humanos:
Diretrizes Nacionais – Brasília: Coordenação Geral de Educação em SDH/PR,
Direitos Humanos, Secretaria Nacional de Promoção e Defesa dos Direitos
Humanos, 2013.
_______. Comitê Nacional de Educação em Direitos Humanos. Plano Nacional de
Educação em Direitos Humanos / Comitê Nacional de Educação em Direi-
tos Humanos. – Brasília: Secretaria Especial dos Direitos Humanos, Ministé-
rio da Educação, Ministério da Justiça, UNESCO, 2007. Disponível em
http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_docman&view=downloa
d&alias=2191-plano-nacional-pdf&category_slug=dezembro-2009-pdf&Ite
mid=30192 Acesso em 13/06/2016.
________. PORTAL BRASIL. CIDADANIA E JUSTIÇA. Governo realiza pesqui-
sa de implementação do Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos.
Publicado em 29/07/2011. Disponível em “http://www.brasil.gov.br/cidada-
nia-e-justica/2011/07/governo-realiza-pesquisa-de-implementacao-do-plano
-nacional-de-educacao-em-direitos-humanos” Acesso em 03/06/2016.
______. STF. A Constituição e o Supremo Tribunal Federal. 4ª ed. Brasília: Secre-
taria de Documentação, 2011.
BENEVIDES, Maria Vitoria. Educação em Direitos Humanos: do que se trata?
Palestra de abertura do Seminário de Educação em Direitos Humanos, São
Paulo, 18/02/2000. Disponível em http://hottopos.com/convenit6/victo-
ria.htm Acesso em 18/11/15.
______. Fé na luta: a comissão justiça e paz de São Paulo, da ditadura à democra-
tização. São Paulo: Lettera, 2009.
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 10. ed. São Paulo: Malhei-
ros, 2000.
CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. Para um relato da elaboração da De-
claração e Programa de Ação de Viena. “Balanço dos resultados da Conferên-
cia Mundial dos Direitos Humanos: Viena, 1993”. Revista Brasileira de Polí-
tica Internacional n. 36, 1993, pp. 9-27.
COUTINHO, Diogo R. Direito, Desigualdade e Desenvolvimento. São Paulo: Sa-
raiva, 2013.
DIAS, Clarence. Educação em Direitos Humanos como estratégia para o Desen-
volvimento. In: Educação em Direitos Humanos para o século XXI. Organiza-
do por George J. Andreopoulos; Richard Pierre Claude; traduzido por Ana
Luiza Pinheiro. São Paulo: Edusp: Núcleo de Estudos da Violência, 2007.
FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade. Rio de Janeiro: Editora Paz e
Terra, 1967.
______. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 2014.
141
HUMAN RIGHTS. Uma breve história dos direitos humanos. Disponível em
“http://www.humanrights.com/pt/what-are-human-rights/brief-history/cyr
us-cylinder.html” Acesso em 27/05/2016.
ONU. Declaração Universal dos Direitos Humanos. Assembleia Geral da ONU:
Paris, França, 1948. Disponível em http://www.dudh.org.br/wp-con-
tent/uploads/2014/12/dudh.pdf Acesso em 17/11/15.
______. Carta da ONU. São Francisco, 1945. Disponível em “http://unicrio.org.
br/img/CartadaONU_VersoInternet.pdf” Acesso em 13/06/2016.
______. Conferência Mundial sobre Direitos Humanos. Declaração e Programa de
Ação de Viena. Viena, 1993. Disponível em: “http://www.dhnet.org.br/direi-
tos/anthist/viena/declaracao_viena.htm” Acesso em 1/11/15.
______. Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (PIDCP). Genebra:
ONU, 1966. Disponível em “http://www.gddc.pt/direitos-humanos/textos-
internacionais-dh/tidhuniversais/cidh-dudh-direitos-civis.html” Acesso em
12/06/2016.
_______. Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PI-
DESC). Genebra: ONU, 1966. Disponível em
“http://www.unfpa.org.br/Arquivos/pacto_internacional.pdf”Acesso em
15/11/15.
______. Década para Educação em Direitos Humanos (1995-2004). Plano de Ação
Internacional da Década das Nações Unidas para Educação em matéria de
Direitos Humanos. Genebra: ONU, 1995. Disponível em “http://www.gddc.
pt/direitos-humanos/serie_decada_1_b.pdfAcesso em 17/11/15.
______. Declaração das Nações Unidas sobre Educação e Formação em Direitos
Humanos. Resolução 66/137. AGNU, 2012.
______. Declaração sobre o Direito ao Desenvolvimento. AGNU: Nova York,
1986.
______. Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre a Mudança de Clima. Nova
York, 1992.
______. Cúpula Mundial Humanitária. Agenda pela Humanidade. AGNU: Istam-
bul, 2016. Disponível em
“https://consultations2.worldhumanitariansummit.org/bitcache/e49881ca33e37
40b5f37162857cedc92c7c1e354?vid=569103&disposition=inline&op=vi
ew” Acesso em 13/02/2016.
SARMENTO, Daniel. A dignidade da pessoa humana: conteúdo, trajetórias e me-
todologia. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2016.
SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade (da Pessoa) Humana e Direitos Fundamen-
tais na Constituição Federal de 1988. Porto Alegre: Livraria do Advogado Edi-
tora, 2015.
SEN, Amartya. Desenvolvimento como Liberdade.Tradução: Laura Teixeira Mot-
ta; revisão técnica Ricardo Doninelli Mendes. São Paulo: Companhia das Le-
tras, 2010.
UNESCO. Programa Mundial de Educação em Direitos Humanos – Plano de
Ação Primeira Fase. Nova York e Genebra, 2006. Disponível em “http://
www.dhnet.org.br/dados/textos/edh/br/plano_acao_programa_mundial_edh
_pt.pdf” Acesso em 13/06/2016.
_______. PMEDH – Plano de Ação Segunda Fase. Brasília: MEC, 2012. Disponí-
vel em “http://unesdoc.unesco.org/images/0021/002173/217350por.pdf”
Acesso em 18/11/15.
142
_______. PMEDH – Plano de Ação Terceira Fase. Brasília: MEC, 2015. Disponí-
vel em “http://unesdoc.unesco.org/images/0023/002329/232922POR.pdf”
Acesso em 13/06/2016.
_______. Declaração Universal sobre o Genoma Humano e os Direitos Humanos.
AGNU: Paris, 1997. Disponível em “http://unesdoc.unesco.org/ima-
ges/0012/001229/122990por.pdf” Acesso em 13/06/2016.
143
O direito de morrer no pensamento
de Steven Luper
Abstract: The unavailability of the right to life has always been one of
the first reasons for all legal protection, a principle that encompasses from
the beginning of life to its cessation, threshold zones, surrounded by com-
plexity, ambivalence and contradictions. And it will be at the end of life and
in the possibility of exercising the autonomy of the will by its owner, that
the study of Steven Luper is based, where death can not always be consid-
ered as an injury, nor the act of killing seen as necessarily maleficent and
reprehensible.
Considerações Iniciais
145
miares, ambivalentes e contraditórias, divergências no que tange à determi-
nação do exato momento em que a personalidade passaria a existir no ser
humano e também quando ao instante em que ocorreria sua cessação1.
E será nesta seara que o debate acerca da eutanásia e de um suposto di-
reito à morte digna transcende por sua complexidade o campo da argumen-
tação estritamente jurídica. Aspectos bioéticos filosóficos e morais devem
ser tomados em consideração sob pena de injustificável redução do tema.
O presente artigo pretende contribuir para o debate apresentando o
pensamento filosófico de Steven LUPER, professor e diretor do departa-
mento de Filosofia da Universidade de Trinity nos EUA, cujas reflexões so-
bre o tema, em especial as manifestadas em sua obra A Filosofia da Morte
podem colaborar para uma renovada compreensão de tão relevante questão.
Com isto se pretende buscar em sua argumentação, suporte moral que
embase e fundamente o discurso jurídico, quanto à admissibilidade do ato
de matar, quanto à possibilidade da pessoa “titular” da vida e/ou terceiros,
que tenham seu consentimento, para matá-la.
146
Quanto aos elementos que definiriam a humanidade, três alternativas
possíveis são apresentadas:
Inicialmente, o essencialismo animal sustenta que os seres humanos são
animais; o essencialismo mental afirma que o que nos define enquanto hu-
manos é nossa mente (definida como a capacidade de entidade capaz de
consciência); por fim, o essencialismo pessoal afirma que somos definidos
pela capacidade de autoconsciência.
Num segundo momento, passa-se a analisar a morte. Reconhecida a am-
biguidade do termo, este pode ser compreendido como um processo ou o
resultado de um processo (Op. cit., p. 56). Leo PESSINI reforça este enten-
dimento:
A morte é vista hoje como processo e não como evento e, portanto, não pode
ser determinada como ocorrendo num momento específico. É um fenômeno
progressivo. Em primeiro lugar morrem os tecidos mais dependentes de oxigê-
nio, sendo o mais sensível de todos o cérebro. De três a cinco minutos de falta
de oxigenação são suficientes para comprometes irreversivelmente o córtex do
paciente, que daí em diante terá apenas vida vegetativa, ou seja, estará incons-
ciente, mas respirando e com o coração batendo (PESSINI, 2004, p. 52).
147
cil – e avançaríamos a expressão, o atualmente impossível – é que, apesar de não
haver dúvida quanto à existência de um instante, um momento ultrapassado o
qual não há condições de reverter o processo, nós não possuímos meio de esta-
belecer a ocasião precisa em que isso ocorre, em outras palavras, quando o pon-
to limite de retorno impossível é atingido, o chamado point of no return dos
autores ingleses (PESSINI, 2004, pp. 54-55).
Defining death is one thing; providing criteria by which it can be readily detec-
ted or verified is another. A definition is an account of what death is; when, and
only when its definition is met, death has necessarily occurred. A criterion for
death, by contrast, lays out conditions by which all and only actual deaths may
be readily identified. Such a criterion falls short of a definition but plays a prac-
tical role. For example, it would help physicians and jurists determine when
death has occurred (LUPER, 2016, p.06).
These current criteria are subject to criticism, even if we put aside reservations
concerning the qualifier ‘irreversible’. Animalists might resist the criteria since
2 Cabe destacar que o Brasil considera a ocorrência do óbito no caso de morte ence-
fálica. No dia 15 de dezembro de 2017 foi publicado no Diário Oficial da União a Re-
solução 2.173/2017 do Conselho Federal de Medicina do Brasil – CFM, que define os
critérios do diagnóstico de morte encefálica, estando previsto no art. 1o. os requisitos
para caracterização da mesma: “Art. 1º Os procedimentos para determinação de morte
encefálica (ME) devem ser iniciados em todos os pacientes que apresentem coma não
perceptivo, ausência de reatividade supraespinhal e apneia persistente, e que atendam a
todos os seguintes pré-requisitos: a) presença de lesão encefálica de causa conhecida,
irreversível e capaz de causar morte encefálica; b) ausência de fatores tratáveis que pos-
sam confundir o diagnóstico de morte encefálica; c) tratamento e observação em hospital
pelo período mínimo de seis horas. Quando a causa primária do quadro for encefalopatia
hipóxico-isquêmica, esse período de tratamento e observação deverá ser de, no mínimo,
24 horas; d) temperatura corporal (esofagiana, vesical ou retal) superior a 35°C, satu-
ração arterial de oxigênio acima de 94% e pressão arterial sistólica maior ou igual a 100
mmHg ou pressão arterial média maior ou igual a 65mmHg para adultos, ou conforme a
tabela a seguir para menores de 16 anos (...)”. Cabe destacar também a Lei n. 9.434, de
4 de fevereiro de 1997, que dispõe sobre a retirada de órgãos, tecidos e partes do corpo
humano para fins de transplante e tratamento post mortem, destaca que tal procedimen-
to somente poderá ser realizado após a comprovação de morte encefálica.
148
the vital processes of human beings whose entire brains have ceased to function
can be sustained artificially using cardiopulmonary assistance. Mindists and
personists might also resist the criteria, on the grounds that minds and all psy-
chological features can be destroyed in human beings whose brain stems are
intact. For example, cerebral death can leave its victim with an intact brain
stem, yet mindless and devoid of self-awareness (Op. cit., p. 06).
Matar representa uma família de ideias cuja condição central é causar direta-
mente a morte de alguém, enquanto deixar morrer representa uma outra famí-
lia de ideias cuja condição central é evitar intencionalmente uma intervenção
causal a fim de que uma enfermidade ou ferimento cause uma morte natural
(BEAUCHAMP, 2013, p. 244).
149
Para LUPER, tal diferença é apresentada como relevante, na medida em
que:
A distinção é importante, pois pode ser permissível deixar uma criatura morrer
mesmo não sendo permissível matá-la (embora seja, sem dúvida, errado matar
um ser quando é errado deixá-lo morrer). É controverso quantos famintos devo
ajudar a não deixar morrer, mas bastante óbvio que não posso matar nenhum
deles (LUPER, 2010, p. 172).
150
sentada por DWORKIN poderia fornecer uma explicação útil. Para o autor,
no que se refere aos interesses fundamentais de uma pessoa, estes são divi-
didos em dois grupos: os interesses experienciais – ligado ao valor dos fatos
e circunstâncias como experiências – e os interesses críticos – capazes de
tornar as vidas sensivelmente melhores ou piores, uma vez vividos ou igno-
rados (PEREIRA, 2010, p. 02). O principal traço distintivo entre tais inte-
resses reside justamente na influência que os segundos têm sobre a qualida-
de de vida da pessoa. DWORKIN sustenta que tal diferenciação é necessária
para entender as convicções sobre o modo como as pessoas devem ser trata-
das (DWORKIN, 2016, pp. 283-286). Sendo a preocupação com os inte-
resses experienciais um fenômeno natural (na medida em que a obtenção da
sensação de prazer e, ao reverso, o evitar a sensação de desprazer ou dor se-
jam características instintivas de todos os animais), seu estudo é centrado na
figura dos interesses críticos, e o porquê das pessoas se preocuparem com
eles (ainda que de forma não totalmente consciente). Para tal análise, o au-
tor (após recusar perspectivas biológicas ou sociológicas que abordam o
tema) oferece uma explicação que denomina intelectual, que parte da pre-
missa de que as pessoas possuem um desejo de ter uma vida boa, e que se
preocupem com o que se possa considerar como tal.
As pessoas consideram importante não apenas que sua vida contenha uma va-
riedade de experiências certas, conquistas e relações, mas que tenha uma estru-
tura que expresse uma escolha coerente entre essas experiências – para algu-
mas, que demonstre um compromisso inequívoco e autodefinidor com uma
concepção de caráter ou de realização que a vida como um todo, vista como
uma narrativa integral e criativa, ilustre e expresse. Sem dúvida esse ideal de
integridade não define, por si só, uma forma de vida: pressupõe convicções
substantivas (Op. cit., p. 290).
We have said that dying is a bad thing for us since it frustrates our desires.
However, a more accurate way to put matters is that dying is bad for us if it
thwarts our desires. On the strength of the premise that what thwarts my de-
sires is a misfortune for me, we cannot conclude that my dying is a bad thing
problem of supplying a clear way in which death is bad: death seems unable to have any
ill effect on us while we are living since it will not yet have occurred” (LUPER, 2007 p.
239).
151
for me unless I have desires that would be thwarted by my death. A death
which comes when I have exhausted all of my ambitions will be a welcome
release from a life destined to be one of excruciating emptiness (LUPER, 1987
p. 236).
Em que pese ser apontada como mais factível, esta ideia estaria sujeita a
duas críticas: a menor plausibilidade do hedonismo positivo, quando compa-
rado a outras teorias sobre o bem-estar, bem como o fato de não explicar a
razão de ser mais reprovável pôr termo a vida de um ser humano do que a
outras criaturas (Id., pp. 174-175).
152
Rejeitadas as combinações da Explicação do Dano com as teorias hedo-
nistas, LUPER passa a abordá-la sob uma ótica “pura”, dissociada de qual-
quer ideia particular sobre bem-estar. Assim analisada, esta explicação teria
como atrativo estabelecer uma hierarquia entre as diferentes formas de vida
(implicando, portanto, numa gradação da ilicitude do ato de matar). Assim:
Suponha, por exemplo, que os seres com autodeterminação (ou pelo menos
autoconscientes) em geral extraem da vida. Essa suposição é atraente, pois os
interesses dos seres autodeterminados são bem mais abrangentes e sofisticados
do que os de entes meramente sencientes, ao passo que as formas de vida não
sencientes, como as plantas, não tem ponto de vista a partir do qual o que acon-
tece com elas seja importante a elas. Com essas suposições, a Explicação do
Dano implica que matar algumas espécies de criaturas seja pior que matar ou-
tras, embora isso também seja ilícito. Chamemos essa afirmação de tese da hie-
rarquia (Id., p. 175).
153
elucubra se uma pessoa poderia ser prejudicada quando morta contra sua
vontade mesmo quando ser morta não lhe causasse mal.
Uma segunda explicação possível para o problema moral do ato de matar
é denominada explicação do valor do sujeito. Esta pressupõe que determi-
nados tipos de sujeitos possuam um valor intrínseco. “Valor do sujeito” é de-
finido como aquele que decorre de forma objetiva da própria natureza de
sujeito, permanecendo constante durante a existência de uma pessoa – di-
versamente do que ocorre com seus níveis de bem-estar, ou com os valores
por ela professados, que oscilarão durante o transcurso de sua vida, e que são
apresentados como relativos e pessoais, na medida em que dependem da
própria percepção de bem daquela pessoa (Id., p. 178). A análise das
implicações morais de matar, à luz da explicação do valor do sujeito, esta-
riam contidas na seguinte fórmula:
4 Tal dificuldade é refutada por outros autores como John FINNIS, para os quais o
valor da vida humana deriva de uma condição partilhada por toda a humanidade, e que
não pode ser perdida ainda que diante do comprometimento de alguma de suas facul-
dades (FINNIS, 2011, p.221).
154
Princípio do Valor do Sujeito: Fazer A contra o sujeito S é totalmente errado
se, por causa de A, o valor intrínseco de sujeito que S alcançará ou reterá seja
menor do que teria sido se A não tivesse sido feito; o grau de ilicitude de se
fazer A contra S depende de quanto valor do sujeito A priva S; quanto mais
valor do sujeito S teria alcançado ou retido (caso A não tivesse sido feito) a mais
do que o valor de sujeito que S realmente alcançará, mais censurável é fazer A
a S (Id., p. 181).
155
(independente de sua capacidade de autodeterminação) é importante do
ponto de vista moral (Id., p. 191). Assim, para indivíduos competentes, a
escolha quanto a ser morto é o ponto predominante, sendo moralmente re-
provável qualquer de matar que contrarie. Em se tratando de indivíduos não
competentes (ou que ao menos não tenham manifestado seu desejo em al-
guma diretriz antecipada de vontade), predominaria o princípio da não ma-
leficência, sendo vedado matar-lhes sempre que tal ato gerar um dano maior
do que a sobrevivência (num raciocínio inverso, quando tal continuidade
não representar dano, seria lícito tirar-lhe a vida).
Consideradas as implicações morais do ato de matar, LUPER sustenta
que tanto o suicídio (cometido pelo próprio suicida, ou assistido por tercei-
ro), quanto a eutanásia podem constituir opções racional e moralmente jus-
tificáveis. Seriam racionalmente aceitáveis na medida em que encerrassem
uma vida de sofrimentos irreversíveis. Neste caso, atenderiam a questões
prudenciais, devendo ser, preferivelmente, realizados sob assistência de
profissional médico:
Em geral, um bom meio para o suicídio seria indolor, rápido e confiável. Com
toda probabilidade, envolveria algum tipo de droga prescrita por um médico.
Quando morrer é do interesse de uma pessoa, diria que o suicídio seria pruden-
te. Contudo, não diria que é a única abordagem prudente ao suicídio ativo,
tampouco a melhor. A melhor seria tirar a vida sob a supervisão de um médico
disposto a nos ajudar que interviria caso algo inesperado acontecesse. No caso
de algo dar errado, o médico faria a eutanásia. No entanto, obviamente, isso
pressupõe que a eutanásia ativa seja permitida e disponível (Id., p. 213).
156
4. Quando um indivíduo está temporariamente fora de suas capacidades men-
tais quando decide suicidar-se ou quando pede para morrer, outros não devem
auxiliá-lo (a menos que seja necessária a paliação); ao contrário, devem intervir
e ajudá-lo a recuperar sua competência.
Considerações Finais
157
ção tão delicada, onde seu estado de saúde debilitado, compromete toda
uma dignidade construída ao longo da vida, o que pode culminar no desejo
de encerrar esta situação que lhe parece indigna. Fatos como este, onde a
continuação da vida a qualquer custo vai de encontro com a dignidade da
pessoa humana, devem ser deslocados do foco do seu prolongamento, por
um encerramento pautado em sua autonomia da vontade.
Embora a tese esposada pelo autor não seja inteiramente capaz de res-
ponder à questão dos indivíduos despidos de competência para decidir
quanto ao desfecho de sua existência, os critérios apontados possuem o ine-
gável mérito de respeitar-lhe a autonomia quanto ao direito de encerrar uma
existência que contrariando seus interesses e desejos seja, em si, um dano.
Tais critérios podem fornecer suporte moral ao discurso jurídico notada-
mente em ordenamentos que pautados pela noção de respeito e promoção
da dignidade humana, devem assegurar à própria pessoa prioritário respeito
à sua autonomia, naquilo que se refere a seus interesses existenciais.
Referências
ARENDT, Hannah. A condição humana. 13ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universi-
tária, 2017.
BEAUCHAMP, Tom L.; CHILDRESS, James F. Princípios de Ética Biomédica.
Trad. Luciana Prudenzi. 3ª ed. São Paulo: Edições Loyola, 2013.
CANARIS, Claus-Wilhelm. Direitos Fundamentais e Direito Privado. Tradução de
Ingo Wolfgang Sarlet e Paulo Mota Pinto. Coimbra: Almedina, 2016.
CASTELLS, Manuel. O Poder da Comunicac?ao. Sao Paulo: Paz e Terra, 2015.
DWORKIN Ronald. O Domínio da Vida. Trad. Jefferson Luiz Camargo. 2ª ed. São
Paulo: Martins Fontes, 2016.
ESTEVES, Luciana Batista. (In)Disponibilidade da vida? In: Revista de Direito Pri-
vado. Volume 24, p.89. Out/2005.
FINNIS, John. Human Rights and Common Good. Collected Essays, v. III. Nova
York: Oxford University Press, 2011.
LUPER, Steven. A Filosofia da Morte. Trad. Cecília Bonamine. São Paulo: MA-
DRAS, 2010.
_____________. Death, The Stanford Encyclopedia of Philosophy (Summer 2016
Edition), Edward N. Zalta (ed.), URL = “https://plato.stanford.edu/archi-
ves/sum2016/entries/death/”. Acesso em: 20.03.2018.
_____________. Annihilation. Philosophical Quarterly, 37(148), 233-252. Dispo-
nível em: https://digitalcommons.trinity.edu/phil_faculty/index.2.html.
Acesso em: 21.03.2018.
____________. (2007). Mortal Harm. The Philosophical Quarterly, 57(227), 239-
251. doi: 10.1111/j.1467-9213.2007.482. Disponível em: https://digitalcom-
mons.trinity.edu/phil_faculty/46/. Acesso em: 21.03.2018.
PEREIRA, Tânia da Silva. O Direito à plenitude da vida e a possibilidade de uma
morte digna. In: PEREIRA, Tânia da Silva, et. al. Vida, Morte e Dignidade Hu-
mana. Rio de Janeiro: GZ ed., 2010.
158
PESSINI, Leo. Eutanásia: Por que abreviar a vida? São Paulo: Centro Universitário
São Camilo; ed. Loyola, 2004.
WERTHEIN, Jorge. A Sociedade da Informação e seus desafios. Ciência da Infor-
mação, v. 29, n. 02, mai./ago. 2000, p. 71-77.
159
O neoconstitucionalismo na perspectiva dos
direitos fundamentais – novas formas de
se interpretar a ciência jurídica
Resumo: O presente artigo tem como fito discutir como os avanços tra-
zidos pelo neoconstitucionalismo proporcionaram mudanças no cenário dos
direitos fundamentais no Brasil. Deste modo, para a efetiva concretização
dos direitos fundamentais, é necessário repensarmos o modelo do positivis-
mo jurídico, na busca de um olhar mais constitucionalizado do Direito, com
ênfase na realidade social. Assim, este artigo pretende relacionar o momen-
to pós-positivista com a entrega dos direitos sociais. Noutraspalavras, de-
monstrar como o neoconstitucionalismo se preocupa em garantir os direitos
fundamentais e limitar a atuação estatal.
Abstract: This article aims to discuss how the advances brought by neo-
constitutionalism have provided changes in the scenario of fundamental
rights in Brazil. Thus, for the effective realization of fundamental rights, it
is necessary to rethink the model of legal positivism, in the search for a more
constitutional view of Law, with emphasis on social reality. Thus, this arti-
cle intends to relate the post-positivist moment with the delivery of social
rights. In other words, demonstrate how neo-constitutionalism is con-
cerned with securing fundamental rights and limiting state action.
INTRODUÇÃO
161
tucional previu em seu artigo 5º uma gama de direitos a fim de garantir a
cidadania plena dos direitos dos brasileiros e dos demais que aqui residem.
Contudo, já foi constado que o postulado escrito não é certeza de efetivida-
de plena de tais direitos, e a prática do dia a dia dos tribunais também cor-
robora com a tese de que leis não mudam realidades.
Mesmo tendo em vista estas premissas jurídicas e sociais, não podemos
jamais deixar de acreditar na força de nossas instituições e principalmente
na força do direito constitucional em território pátrio. Encampado por um
movimento denominado neoconstitucionalismo, muitos autores brasileiros
estão repensando nossas estruturas jurídicas e prospectando sobre o futuro
deste direito principiológico e demasiadamente importante para a sobrevi-
vência dos demais ramos da ciência jurídica. A expressão neoconstituciona-
lismo foi usada pela primeira vez pela autora italiana Suzanna Pozzolo, em
1993. Neste sentido, Streck (2009, p. 8), ressalta que o neoconstituciona-
lismo é:
162
mentais e limitar a atuação estatal. No primeiro momento faremos uma ex-
planação sobre o movimento neoconstitucionalismo na era pós-positivista.
Adiante, apresentarei o contexto em que se encontram os direitos funda-
mentais nesta seara, e na última quadra apresento especificadamente a
questão dos direitos sociais.
163
dos direitos fundamentais foram as marcas de muitos regimes políticos ao longo
do século passado”.
164
dico, de onde irradia sua força normativa, dotada de supremacia formal e
material. Funciona, assim, não apenas como parâmetro de validade para a
ordem infraconstitucional, mas também como vetor de interpretação de to-
das as normas do sistema” (Barroso, 2010, p 28).
Podemos inferir, então, que o neoconstitucionalismo é um ramo do co-
nhecimento jurídico que tem diversas facetas. Em todo caso, o que se pode
alegar, nesse momento, é que estamos inseridos em um período de transição
jurídica e social. Uma das provas disso é o fato de que temos diversos meca-
nismos constitucionais que atuam de forma internacional. Com o advento
da globalização, que atingiu o homem moderno no final do século passado, o
neoconstitucionalismo ganhou as proporções internacionais que são muito
evidentes na atualidade.
Ao fim e ao cabo das explicitações acerca do neoconstitucionalismo não
poderia deixar de mencionar os fenômenos que levam ao neoconstituciona-
lismo, para tanto, nos valeremos da preciosa lição do professor Daniel Sar-
mento (2009, p. 95):
Assim fica claro que são inúmeros os benefícios trazidos pelo movimen-
to do neoconstitucionalismo, sendo imprescindível, portanto, este estudo.
No mais, cabe agora nesta próxima quadra demonstrarmos e relacionarmos
os direitos fundamentais com o movimento constitucionalista.
165
cabe ao intérprete das normas constitucionais, precipuamente aguçar seu
olhar sobre o desenvolvimento da realidade social, com o objetivo de efeti-
var princípios garantidores e assecuratórios. Neste sentido (Dallari, 2010,
p.306):
Artigo 16º. Qualquer sociedade em que não esteja assegurada a garantia dos
direitos, nem estabelecida a separação dos poderes não tem Constituição. (De-
claração dos Direitos do Homem e do Cidadão. França, 178910).
Sob esta perspectiva, para organizar, orientar e garantir todo este pro-
cesso democrático amplia-se a figura da Constituição, que, dentre outras di-
retrizes, vem garantir dentro da lógica do estado de direito a proteção das
minorias, basicamente via preservação dos direitos e garantias fundamen-
tais. Por este motivo, se faz tão importante à organização de um Estado De-
mocrático de Direito forte e atuante, neste sentido, Canotilho, (2013,
p.116):
166
bém se garante o respeito à denominada soberania popular, permitindo que o
povo (o titular do poder) participe das decisões políticas do Estado, seja por
meio de representantes eleitos, seja por meio de mecanismos de democracia
direta. (DANTAS, 2014, p. 65-66).
167
ao desenvolvimento econômico e a preservação ambiental, visando consa-
grar a solidariedade.
Partindo dessa evolução é possível fazer um rol dos seguintes direitos
fundamentais: direito à vida, à liberdade, igualdade, legalidade, proibição da
tortura e de tratamento desumano ou degradante, liberdade de manifesta-
ção do pensamento, liberdade de culto e crença religiosa, liberdade de ativi-
dade intelectual e artística, direito à proteção dapropriedadee inviolabilida-
de domiciliar, sigilo de comunicações, liberdade de profissão, liberdade de
informação, liberdade de locomoção, direito de reunião, direito de associa-
ção, direito à herança, direito de petição, direito à inafastabilidade da juris-
dição, direito ao devido processo legal, direito à segurança jurídica e respei-
to, dignidade da pessoa humana, direitos políticos, direitos sociais (saúde,
educação).
[a] expressão “social” encontra justificativa, entre outros aspectos (...), na cir-
cunstancia de que os direitos de segunda dimensão podem ser considerados
uma densificação do princípio da justiça social, além de corresponderem a
reivindicações das classes menos favorecidas, de modo especial da classe operá-
ria, a titulo de compensação, em virtude da extrema desigualdade que caracte-
riza (e, de certa forma, ainda caracterizada) as relações com a classe emprega-
dora, notadamente detentora de um menor grau de poder econômico.
168
blica: “As normas definidoras de direitos e garantias fundamentais têm apli-
cação imediata”.
Entretanto, há grande dificuldade na efetividade dos direitos sociais – e
de outros direitos que exigem prestações estatais positivas – se refere à tex-
tura aberta, em maior ou menor grau, em geral caracterizadora das normas
constitucionais que os veiculam. A Constituição da República consagra, por
exemplo, o direito à saúde, inclusive determinando a vinculação de um mí-
nimo de recursos públicos à sua satisfação (arts. 6º, 196 e 198, § 2º, da
CR88). Todavia, o texto constitucional não define expressamente em que
consiste o objeto do direito à saúde, limitando-se a uma referência genérica.
Não é possível inferir, por exemplo, se o direito à saúde como direito a
prestações abrange todo e qualquer tipo de prestação relacionada à saúde
humana (desde atendimento médico até o fornecimento de óculos, apare-
lhos dentários, etc.), ou se esse direito à saúde encontra-se limitado às
prestações básicas e vitais apenas.
Como se percebe pelo exemplo, os direitos sociais são de incomensurá-
vel desafio para as instituições brasileiras. São denominados pela dogmática
clássica de direitos fundamentais de segunda dimensão e determinam a pro-
teção à dignidade da pessoa humana, enquanto os de primeira dimensão ti-
nham como preocupação a liberdade encontra partida ao poder de imperium
do Estado.
Ou seja, a segunda dimensão visa não uma abstenção estatal, mas uma
atuação positiva (ação) do Estado. As prestações positivas exigidas pela po-
pulação visavam a efetividade das liberdades pleiteadas pela primeira di-
mensão dos direitos fundamentais, posto que sem qualidade de vida, educa-
ção, saúde e igualdade fática ocorreria instabilidade nos direitos fundamen-
tais consagrados anteriormente (primeira dimensão). Nesse sentido, precio-
sa a lição de (Marmelstein, 2008, p. 51-2):
169
A segunda dimensão dos direitos fundamentais visa, entre outras razões,
consagrar a dignidade da pessoa humana através de prestação positivas obri-
gatórias impostas ao Estado para alcançar a justiça social (igualdade mate-
rial, e não formal). Deste modo, a segunda dimensão dos direitos fundamen-
tais, quer proteger a dignidade humana conforme Magalhães (2001, p. 248)
“A dignidade da pessoa humana é o núcleo essencial de todos os direitos fun-
damentais, o que significa que o sacrifício total de algum deles importaria
uma violação ao valor da pessoa humana”.
Um dos debates mais associados ao neoconstitucionalismo presente é a
consagração plena dos direitos sociais, no sentido de configurarem direitos a
prestações positivas sensivelmente exigíveis conforme a vontade constitu-
cional que lhes é ínsita. No Brasil, a tutela de tais direitos sociais diz respeito
diretamente à prática judicial de nossas Cortes, na perspectiva de elegerem-
se, no ambiente dogmático, diretrizes prático-racionais e hermenêuticas de
ampliação dos contornos definidores dos direitos postos na Constituição e
sua consentânea aplicação cotidiana.
O problema da efetividade das normas constitucionais (e infraconstitu-
cionais) tem sido um dos mais graves entraves constatados no ordenamento
jurídico brasileiro. E um problema crônico. Novo gênero de patologia que
recrudesce em meio a um ambiente acrítico e desprovido de proposições lú-
cidas; parece que há muito diagnóstico, mas pouco prognóstico. Noutras,
palavras não se vê uma solução razoável para nossas questões sociais, políti-
cas e econômicas e seguimos fracassando em índices de desenvolvimento so-
cial e econômico se comparado a outros países do globo.
Considerações finais
170
da tomada de novos valores morais e éticos, o que leva a uma nova raciona-
lidade política, social, cultural e econômica.
Ao que tudo indica, em nosso país, os entraves que impedem a concre-
tização dos dispositivos jurídicos decorrem não apenas do caráter de ideali-
dade presente em seu conteúdo, mas também da ausência de vontade do po-
der público. Há, ainda, casos em que a inefetividade decorre dos interesses
particulares de classe ou do poder de veto de alguns grupos hegemônicos.
Há, por conseguinte, um fosso que separa a expectativa gerada pela expan-
são dos direitos formais de cidadania e sua realização no cotidiano dos indi-
víduos. Esse desconforto gera nas pessoas a crença segundo a qual os direitos
não existem para serem realizados, sendo, tão-somente, adereços ou
formulações abstratas inexecutáveis.
Estalacuna demonstra bem que o Direito é um instrumento social que
não escapa à esfera do político, ou ainda que: “a Constituição, sem prejuízo
da sua vocação prospectiva e transformadora, deve conter-se em limites de
razoabilidade no regramento das relações de que cuida, para não comprome-
ter o seu caráter de instrumento normativo da realidade social” (Barroso,
2001, p.89)
Ao fim e ao cabo, o neoconstitucionalismo apareceu como nova forma
de interpretar o direito ajudou a enxergar as diversas facetas do direito fun-
damental, principalmente a lançar um olhar mais apurado para os direitos
sociais. De modo, que somente hipervalorizando princípios como a dignida-
de da pessoa humana e prestando atenção nos valores democráticos e repu-
blicanos poderemos construir uma sociedade mais justa.
Referências
171
COMANDUCCI, Paolo. Formas de (neo)constitucionalismo: un análisis meta-
teórico. In: CARBONELL, Miguel (Org.). Neoconstitucionalismo(s). Madri:
Trota, 2003.
MAGALHÃES FILHO, Glauco Barreira. Hermenêutica e unidade axiológica da
Constituição. 2 ed. Belo Horizonte: Mandamentos, 2001.
MARMELSTEIN, George. Curso de direitos fundamentais. São Paulo: Altas,
2008.
SOARES, Ricardo Maurício Freire. Reflexões sobre o Pós-Positivismo Jurídico. Re-
vista Formandos Direito. p. 205, Revista Jurídica dos Formandos em Direito
da UFBA. – Vol. 7, n.11 (jul/dez. 2007). – Salvador: UFBA, 1996-2007 – Se-
mestral ISSN: 1414-0101. Disponível em: “http://www.abolicionismoanimal.
org.br/revistas/Revista%20Formandos%20Direito.pdf#page=205”. Acesso
em: 17 junho. 2017.
SARLET, Ingo Wolfgang; MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel.
Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014.
___________ Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 9 .ed., rev.,
ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008.
SARMENTO, Daniel. O neoconstitucionalismo no Brasil: riscos e possibilidades.
Revista Brasileira de Estudos Constitucionais – RBEC, ano 3, n. 9, p. 95-133,
Belo Horizonte, Fórum, janeiro, 2009.
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 22 ed. São Pau-
lo: Malheiros, 2003.
STRECK, Lênio Luiz. Hermenêutica, neoconstitucionalismo, e o problema da dis-
cricionariedade dos juizes. Anima: Revista Eletrônica do Curso de Direito da
OPET, ano I, n. 1. Curitiba, 2009. Disponível em: http://www.anima-opet.
com.br/primeira_edicao/artigo_Lenio_Luiz_Streck_hermeneutica.pdf. Aces-
so em: 14 maio 2017.
172
Proteção dos cetáceos em perspectiva nacional
e internacional visando garantir a
sustentabilidade dos oceanos globalizados1
Mery Chalfun
Erika Tavares
Rossana Fisciletti
173
INTRODUÇÃO
174
de Montego Bay ou UNCLOS (United Nations Conventionon the Law of the
Sea)
Nesta perspectiva, houve uma longa negociação para que se chegasse a
um consenso no conflito entre a livre navegação dos mares, com consequen-
te utilização e exploração, e de outro lado a soberania dos Estados Costeiros.
2 Este texto é uma síntese do panorama apresentado pela instituição protetiva dos
animais marinhos. Disponível e m : “http://www.icmbio.gov.br/portal/comunica-
cao/noticias/20-geral/6910-temporada-de-reproducao-atrai-15-mil-baleias-para-o-lit
oral-brasileiro.html” Acesso em 07 de janeiro de 2016. As alusões referentes às ciências
biológicas e ambientais são necessárias, dada a interdisciplinaridade do tema.
175
Há que se analisar, portanto, a diferença de atuação do Brasil nos diver-
sos espaços marítimos no que se refere à proteção contra a matança ou caça
a baleias, seja, no mar territorial, plataforma continental, zona econômica
exclusiva ou alto mar. Cabe destacar que tais espaços3 são definidos e regu-
lamentados através da Lei nº 8617, de 04 de janeiro de 1993.
3 A Zona Costeira e Marinha do Brasil se estende da foz do rio Oiapoque (AP) à foz
do rio Chuí (RS), e abrange os limites dos municípios da faixa costeira a oeste até as 200
milhas náuticas, incluindo as áreas em torno do Atol das Rocas (RN), dos arquipélagos
de Fernando de Noronha (PE) e de São Pedro e São Paulo (PE), e as ilhas de Trindade
e Martin Vaz, situadas além do limite marinho. Sua faixa terrestre se estende por apro-
ximadamente 10.800 mil quilômetros ao longo da costa – computados os recortes de
litoral e reentrâncias naturais- e possui uma área de aproximadamente 514 mil km.
Disponível em “http://www.mma.gov.br/informma/item/6618-a-biodiversidade-na-
zona-costeira-e-marinha-do-brasil” Acesso em 07 de janeiro de 2016
4 MMA e ICMBio possuem listas de espécies ameaçadas de extinção, 12.256 espé-
176
cies foram analisadas entre 2013 e 2014. As listas foram divulgadas em 2014, sendo
divididas por espécies e critérios de risco.Os pesquisadores incluíram 720 novas espé-
cies na lista, totalizando 1.173 espécies ameaçadas, que se subdividem em três catego-
rias: Criticamente em Perigo (CR), Em Perigo (EN) e Vulnerável (VU). Houve um
aumento em relação às avaliações anteriores, realizadas em 2003 e 2004, que contabili-
zaram 627 espécies ameaçadas. Naquele momento, entretanto, o universo contemplado
era bastante reduzido – apenas 1.137 espécies foram analisadas. Quanto aos cetáceos
podem ser citados como exemplos dessa lista:
“Baleia Cachalote: Physeter macrocephalus é encontrada em todos os oceanos. A
espécie foi intensamente caçada no passado, suspeitando-se que houve um declínio po-
pulacional de pelo menos 50% nas últimas três gerações (período de 96 anos), inclusive
no Brasil. As causas da redução (caça) são claramente reversíveis, compreendidas e ces-
sadas. Portanto, a espécie foi categorizada como Vulnerável (VU), segundo o critério
A1d.
Baleia Franca do Sul: Eubalaena australis possui distribuição circumpolar no he-
misfério sul. A caça ilegal realizada até 1973 reduziu a população de baleias francas na
costa brasileira à quase zero, e a estimativa populacional ainda é bastante reduzida, in-
clusive comparada aos dados históricos pré-caça. Estima-se um declínio de pelo menos
70% nos últimos 86 anos (três gerações) provocado pela caça. Há evidencias de gargalo
genético intensificado pela caça comercial intensiva realizada em todo Hemisfério Sul.
A população total na costa sul do Brasil é estimada em cerca de 555 indivíduos, com
aproximadamente 206 indivíduos maduros. Atualmente, a população está crescendo,
contudo, a população atual é extremamente pequena em comparação com as estimati-
vas originais, representando menos de 10%. Portanto, a espécie foi categorizada como
Em Perigo (EN) segundo os critérios A1d e D.
Baleia Sei: Balaenoptera borealis é encontrada em todos os oceanos. A exploração
de baleias-sei no Hemisfério Sul ocorre desde o início do século passado, e foi intensa
entre 1950 e 1970, quando os estoques foram seriamente reduzidos. A exploração co-
mercial cessou em 1979. Estima-se que a caça comercial tenha reduzido a população
global em cerca de 80-90% nas últimas três gerações (cerca de 70 anos). A população no
Brasil foi reduzida concomitantemente à redução na Antártica e índices de abundância
na área de caça da Paraíba indicaram um declínio de quase 90% no período 1966-72. A
causa da redução é compreendida, reversível e cessada. Portanto, a espécie foi categori-
zada como Em Perigo (EN) segundo os critérios A1ad. Cruzeiros de pesquisa realizados
entre 1998 e 2001 sugerem que esta população ainda não se recuperou. Uma série tem-
poral maior, e mais recente, seria necessária para avaliar a tendência atual da população.
Baleia azul: Balaenoptera musculus parece ter sido sempre rara na costa brasileira,
porém não existem dados históricos para comprovação da abundância da espécie antes
do período de intensa caça. Diversos esforços recentes de levantamento de cetáceos na
costa brasileira, não resultaram em qualquer registro de baleia-azul. Embora haja evi-
dências de que algumas populações estejam se recuperando, estima-se que a população
remanescente no Hemisfério Sul (Antártica) represente menos de 1% da existente no
período anterior à caça comercial (antes de 1904), com um declínio de pelo menos 90%
no período de três gerações (93 anos). A causa da redução é compreendida, reversível e
cessada. Portanto, a espécie foi categorizada como Criticamente em Perigo (CR) segun-
do os critérios A1abd.
Baleia fin: Balaenoptera physalus ocorre em todos os oceanos. As baleias-fin foram
exauridas pela caça comercial de baleias em todo o mundo no século XX. A população
global sofreu um decréscimo superior a 70% entre 1929 e 2007 (período de três gera-
ções), sendo que o maior declínio ocorreu no Hemisfério Sul. No Brasil, Balaenoptera
177
2.1.2. Plataforma continental
physalus sempre foi rara na antiga área de caça na Paraíba, porém, houve exploração em
Cabo Frio (atual Arraial do Cabo) no início da década de 1960. Não há informações
sobre as proporções de redução populacional nas águas brasileiras. Supõe-se que as ba-
leias-fin do Brasil migrem para a Antártica, porém não se conhece as rotas de migração
nem o destino dos animais. Acredita-se que a população no Brasil foi reduzida concomi-
tantemente à redução na Antártica. Portanto, a espécie foi categorizada como Em Peri-
go (EN) segundo os critérios A1ad. É provável que as populações estejam crescendo,
uma vez que a causa da redução populacional foi suspensa e é reversível.
Síntese de informações disponíveis em: “http://www.icmbio.gov.br/portal/comu-
nicacao/noticias/4-destaques/6658-mma-e-icmbio-divulga-novas-listas-de-especies-
ameacadas-de-extincao.html”. Acesso em: 09 jan. 2016.
178
A nova delimitação beneficiou os estados com extensas plataformas,
mas a solução foi o princípio do patrimônio comum da humanidade, confor-
me artigo 82 da Convenção, podendo ser adotado tanto para proteger a ex-
cessiva exploração como também o “apoderamento por um único estado
costeiro de patrimônio que deveria ser universal”.
179
A preocupação maior foi com o bacalhau e o haddock, mas houve refle-
xo no Brasil, pois os pesqueiros se deslocaram para o Atlântico Sul em busca
de atum, além da pesca ou caça a tubarões, golfinhos e baleias, pesca de es-
pinhel e finning6:
Não há soberania no alto mar, ou seja, nenhum Estado possui poder so-
berano sobre a parte que engloba as áreas marítimas não incluídas no mar
territorial, zona econômica exclusiva ou águas interiores de um Estado (ar-
tigo 86 da Convenção). Adota-se o princípio da liberdade dos mares, que en-
globa a liberdade de navegação, pesca e investigação científica, no entanto,
há preocupação com a vida humana e também preservação das espécies.
O Alto Mar é área ou espaço aberto a todos os Estados, com direito de
pesca, navegação, investigação científica, mas com condições que devem ser
180
respeitadas por todos, como preservação de recursos vivos, cooperação en-
tre os Estados e gestão dos recursos. O artigo 1.1, define área como “o leito
do mar, os fundos marinhos e o seu subsolo, além dos limites da jurisdição
nacional;” e continua, em seu artigo 136, normatizando: “A ‘Área’ e seus re-
cursos são patrimônio comum da humanidade”.
Assim, conforme a Convenção, apesar de não haver soberania, todos
possuem deveres, como assistência, impedir transporte escravo, combater
pirataria e tráfico de entorpecentes (artigos 98, 99, 100 a 108). Proteger as
espécies e impedir crueldade e extinção.
A Convenção de 1982 limita a liberdade de pesca; apresenta nítida preo-
cupação com as espécies migratórias e transzonais, bem como com sua con-
servação. Segundo a convenção, os estados devem trocar informações, res-
peitar tratados bilaterais e multilaterais de organizações internacionais com-
petentes. Caso não haja um controle efetivo, a pesca em alto mar acabará se
concentrando no atum e nas baleias.
Os navios em alto mar devem se submeter às leis civis, criminais e admi-
nistrativas dos estados cuja bandeira naveguem; estão submetidos a jurisdi-
ção destes estados, mas, excepcionalmente poderão se submeter a outras
jurisdições, como por exemplo em caso de renúncia do comandante do na-
vio (artigo 92, da Convenção).
Portanto, o comércio e prática internacional devem observar e respeitar
os padrões de proteção ambientais, que são necessários ao bem-estar da so-
ciedade global.
181
3.1. Estudo de Caso 1 – Proteção às Baleias
182
Na Islândia, o pretexto é cultural e diversos animais são mortos cruel-
mente nas Ilhas Faroe, o que gera crítica mundial.
Em 2007, a 59ª reunião da Comissão Baleeira Internacional teve a parti-
cipação de mais de 20 países, que concluíram pelo bem-estar, conservação e
proteção dos cetáceos; e, consequente posicionamento quanto à proibição
de caça.
Apesar disso e da moratória, diversos animais permanecem sendo caça-
dos. A atuação dos governos e das Organizações de Proteção, como Sea
Shepherd, ganham cada vez mais destaque.
Em 31 de março de 2014, a partir de uma denúncia da Austrália em
2010 e pressão de entidades de proteção ambiental e vida marinha, Green-
peace eSeaSheperd, junto à Corte Internacional de Justiça, foi determinada
a suspensão da caça de baleias em águas internacionais da Antártida, fazendo
cumprir a moratória de proteção aos cetáceos e considerar que a questão en-
volvia a pesca comercial e não científica como sustenta o Japão.
Recentemente, porém, em outubro de 2015, tal determinação foi sus-
pensa, pela CIB, sendo determinada a possibilidade de caça às baleias com
algumas restrições quanto à quantidade de animais caçados.
No entanto, apesar da decisão da Corte Internacional, principal órgão
jurídico da ONU, o Japão declarou recentemente que continuará o progra-
ma anual de caça às baleias, por entender que a competência da corte não se
aplica neste caso, ou seja, quanto a pesquisa e conservação de recursos vivos
do mar. O plano é caçar em torno de 330 baleias este ano e 4000 durante os
próximos 12 anos. Reduzindo assim a meta de 900 por ano.
183
A carne do golfinho é contaminada com o mercúrio existente nas águas
do Japão. Ainda assim a população se alimenta, muitas vezes sem conheci-
mento de que a carne é de golfinhos, contaminando-se. Muitas vezes essa
carne é vendida como sendo de baleia, muito consumida no país.
Em 1999, uma equipe de cientistas estrangeiros, trabalhando no Japão,
avaliou amostras de carne de baleia e de golfinho e encaminharam os resul-
tados à Comissão Internacional Baleeira – IWC.
O resultado da pesquisa foi de que mais de 91% das amostras de golfi-
nhos e pequenas baleias excederam os limites aceitáveis para poluentes,
uma amostra teve mais de 1.600 vezes o permitido de mercúrio, e que 24%
das amostras de carne de baleia eram de golfinhos.
No Brasil, a caça de golfinhos é proibida8, no entanto, a pesca ilegal, in-
clusive através de redes fixas (prática proibida) ainda ocorre. Nessas redes
fixas, 25% são considerados lixo (tartarugas, golfinhos, outras vidas mari-
nhas), além disso, a pesca não seletiva, ou seja, captura de uma espécie para
que se possa apanhar outra é uma grave ameaça à sobrevivência destas espé-
cies, calcula-se que cerca de 300 mil baleias, golfinhos e botos morram
anualmente em redes de pesca.
8 No Brasil pode ser citado como exemplos alguns casos que foram levados a juízo:
1) CASO GOLFINHOS – AMAPÁ – Processo 2007.31.00.001910-7 – 2ª Vara
Federal = AÇÃO CIVIL PÚBLICA. (Advogado Cristiano Pacheco. Instituto Sea Shep-
herd Brasil. Instituto Justiça Ambiental). Apesar da lei de Cetáceos, diversos golfinhos
foram mortos no Amapá. Filmagens divulgadas em rede nacional, como rede Globo,
Senado, TV Cultura, TV Justiça entre outras mostraram imagens de 83 golfinhos mor-
tos em um dia de embarcação. Em um mês de atividade, em torno de 2500 animais em
apenas uma embarcação. Foram utilizados iscas de tubarão (prática do finning). E os
golfinhos, olhos para confecção de talismã, dentes para colares e vendidos no mercado
negro da região. Destaca-se a crueldade, pois muitas vezes olhos e dentes foram extraí-
dos com os animais ainda vivos dentro das embarcações. As filmagens foram do IBAMA,
mas houve silêncio quanto ao nome das embarcações “Graças a Deus” e “Damasco III”,
por tal motivo o IBAMA também foi processado.
2) Caso Pescado do Amaral. Ação Civil Pública 2006.71.00.016888-4 RS. Prática
de Pesca de Arrasto.(Utilização de material, equipamento que prende animais de gran-
de porte (ex: tartarugas, golfinhos, lobo marinho). A Sentença em 2007 (Juiz Federal
Candido Alfredo Silva Leal Junior) condenou a empresa Pescado do Amaral a não rea-
lizar pesca de arrasto dentro das três milhas marítimas, com o uso de apetrechos proibi-
dos, conforme legislação, e pagamento de indenização no valor de R$ 97.550,00 com
correção, pelos danos que causou com a prática de pesca predatória (conforme art. 13
da lei 7347\85) e Multa de R$ 97.500,00 para cada vez que descumprir as determina-
ções = realizar prática predatória.
3) IJA (Instituto Justiça Ambiental) x Wal Mart Brasil e Carrefour = utilizando a
Lei 8078\90 em prol de animais marinhos, ou seja, dever de informação da origem,
características, qualidade do produto. É direito do consumidor saber se o cação compra-
do é de espécie em extinção, se é de origem de pesca predatória.
184
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
185
LEITE, José Rubens Morato. AYALA, Patryck de Araújo. Direito Ambiental na So-
ciedade de Risco. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004.
LEVAI, Laerte Fernando. Direito dos Animais. 2.ed. Campos do Jordão, SP:Man-
tiqueira, 2004.
LOURENÇO, Daniel Braga. Direito dos Animais: Fundamentação e Novas Pers-
pectivas. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2008.
MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito Ambiental Brasileiro. 13. ed. São Pau-
lo: Malheiros, 2005
MARCELO, Szpilman. Tubarões: Feras assassinas ou vítimas? Revista do Protuba,
Rio de Janeiro, Instituto Ecológico Aqualung, ano 1. n. 1. 1º semestre de 2005.
MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Curso de Direito Internacional Público. 9ª ed.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015
MILARÉ, Edis. Direito do Ambiente. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009.
PORTELA, Paulo Henrique Gonçalves. Direito Internacional Público e Privado. 7ª
ed. Salvador: JusPODIVM, 2015.
REGAN, Tom. Jaulas Vazias. Porto Alegre: Lugano, 2006.
RODRIGUES, Danielle Tetü. O Direito e os animais: Uma abordagem Ética, Filo-
sófica eNormativa. 4. ed. Curitiba: Juruá, 2006.
SANTANA, Heron José de. Direito Ambiental Pós-Moderno. Curitiba: Juruá,
2009.
___________. Abolicionismo Animal. Salvador: Evolução, 2009.
TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. Direitos Humanos e Meio Ambiente: Pa-
ralelo dos Sistemas deProteção Internacional. Porto Alegre: Sergio Antonio Fa-
bris, 1993.
186
Caso Vladimir Herzog vs. Brasil:
uma experiência na corte interamericana
de direitos humanos
RESUMO: Este trabalho tem por objetivo refletir sobre os rituais e ex-
periências de campo vivenciadas entre os dias 22 a 25 de maio de 2017 na
Corte Interamericana de Direitos Humanos, em San José, na Costa Rica.
Neste sentido, será realizada uma aproximação por contraste das atividades
observadas naquele tribunal internacional em relação aos existentes no Bra-
sil, especialmente a forma como o caso de Vladimir Herzog foi tratado por
espaços jurisdicionais distintos. De modo que, mediante uma abordagem
crítico-reflexiva os vieses de cunho descritivo-compreensivo serão destaca-
dos, especialmente, quando verificada in locu a audiência pública do caso do
jornalista Herzog, morto sob tortura por agentes da ditadura brasileira em
outubro de 1975.
RESUMEN: Este trabajo tiene por objetivo reflexionar sobre los ritua-
les y experiencias a través de la observación de campo vivida entre los días
22 a 25 de mayo de 2017 en la Corte Interamericana de Derechos Huma-
nos, en San José, Costa Rica. En este sentido, se realizará una aproximación
por contraste de las actividades observadas en aquel tribunal internacional
en relación a los existentes en Brasil. De modo que, mediante un enfoque
crítico-reflexivo, los sesgos descriptivos-comprensivos serán destacados, es-
pecialmente, cuando se verifica in locu la audiencia pública para el juicio del
periodista Vladimir Herzog, muerto bajo tortura por agentes de la dictadura
brasileña en octubre de 1975.
187
1. INTRODUÇÃO
188
partes componentes do sistema regional de proteção. Um dos mecanismos
utilizados pela Corte é o chamado “controle de convencionalidade”, conce-
bido como um instrumento que permite a análise da legislação interna em
relação aos tratados e convenções internacionais que o Estado se comprome-
teu a cumprir. Segundo OLIVEN; RASGA (2017, p. 267-268):
189
Apenas por necessidade de esclarecimento aos leitores3: A vítima e viú-
va de Vladmir Herzog, no dia 20 de abril de 1976, e, seus filhos Ivo e André
ajuizaram uma ação judicial face a crueldade do regime ditatorial militariza-
do ao seu marido, a fim de desconstituir a versão dada pelos militares pelo
hipotético suicídio de Herzog.
Durante todo percurso processual a vítima Clarice Herzog apesar de
deixar evidente não desejar valores indenizatórios e sim a declaração de ve-
racidade da barbárie cometida em nome do Estado, recebeu uma sentença
que prolatava a necessidade de pagamento de verba indenizatória, sem con-
tudo, responsabilizar os autores.
Em 27 de outubro de 1978, o juiz federal Márcio José de Moraes, da 7ª
Vara da Justiça Federal em São Paulo, declarou a responsabilidade da União
pela prisão, tortura e morte do jornalista:
3 http://docvirt.com/docreader.net/DocReader.aspx?bib=bibliotbnm&pagfis=17
666
190
tigação serviram de mote para uma alegada constituição de coisa julgada ma-
terial e com isso de que os crimes cometidos contra a suposta vítima teriam
prescrito pelo tempo-espaço-jurídico, ou seja, a jurisdição interna do Estado
brasileiro asfixiou uma possível condenação dos responsáveis pela morte de
Herzog.
O Brasil apesar de admitir ter realizado uma reparação simbólica ao edi-
tar livros, sites em memória dos fatos ocorridos, em seu ato de permanente
impunidade, feriu diretamente à Convenção Americana de Direitos Huma-
nos em vários de seus dispositivos, assim como, a jurisprudência da Corte o
que o faz incorrer numa responsabilidade internacional por omissão promo-
vendo um abismo entre direitos sonegados e regras inobservadas.
Diga-se que a criação da Comissão da Verdade e a Comissão de Mortos
e Desaparecidos no regime político tornaram indelével a morte de Herzog.
No entanto, o pagamento de 100 mil reais a vítima e seus filhos, a retificação
da certidão de óbito que antes continha a afirmação de morte de enforca-
mento por asfixia mecânica e após por “lesões e maus tratos sofridos duran-
te o interrogatório em dependência do 2º Exército (DOI/CODI)” imple-
mentaram parte da história na memória coletiva recente, mas, não restaura-
ram a verdade dos fatos.
A internalização dessas informações nos legitima a acreditar que pelaau-
sência de investigação séria, aprofundada e pautada na necessidade de puni-
ção severa dos responsáveis pela tortura e execução de Vladimir Herzog é
que se (re)construiu todo o processo investigativo com vias ao oferecimento
de uma representação à Corte Interamericana de Direitos Humanos.
4 http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2017/07/1898582-homem-que-ameacou-
queimar-juiza-viva-e-condenado-a-20-anos-de-prisao.shtml
5 http://www.espacovital.com.br/noticia-27670-homem-atira-na-exmulher-em-fo
rum-mata-advogado-e-e-morto
191
sede jurisdicional. Práticas como essas nos fizeram compreender a necessi-
dade do seguimento dos regramentos impostos. Prima-se pela segurança de
todos.
Os portões dos tribunais aqui no Brasil abrem em horários distintos6 a
depender da serventia e muitas das vezes sequer encontramos a totalidade
de seus serventuários quiçá os magistrados lotados para o atendimento pre-
conizado como público e a serviço da população.
A arquitetura em estilo clássico do prédio da Corte Interamericana de
Direitos Humanos promove o destaque imponente da casa branca, entre co-
lunas romanas, mas, com todo aparato de vigilância que o local merece. Afi-
nal ali transitam Chefes de Estado e autoridades de máxima repre-
sentatividade dos Estados, Organizações não governamentais e Organiza-
ções Internacionais.
O espaço físico interno destinado a realização das sessões está divido em
três grandes fileiras com algumas dezenas de cadeiras de médio conforto. E,
sob a perspectiva visual do público para a entrada no recinto, a disposição
desse lugar possibilitava perceber que: do lado esquerdo, por detrás da mesa
dos representantes das vítimas, seus assessores e estagiários, se posiciona-
vam aqueles que pretendiam reforçar a defesa da parte fragilizada.
Já a fileira central onde se posicionava a mesa dos delegados, assistentes
da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, que é o órgão de fiscali-
zação dos direitos humanos para admissibilidade das denúncias, geralmente
se acomodam os ouvintes com posição neutra. E, do lado direito, o espaço
está destinado a mesa composta pela delegação do Estado denunciado pelas
violações cometidas, sempre representado por seus advogados e diplomatas
e, ainda, pelos ouvintes ou convidados que aparentam dar apoio ao mesmo.
Nosso dilema teve início em compreender essa disposição de lugares,
porque afinal, em que pese outros entendimentos não há no Brasil essa po-
larização de partes em relação aos ouvintes, mas, muito evidente entre as
partes litigantes.
Como desconhecíamos esse código silencioso nos sentamos do lado di-
reito que era justamente o lugar onde havia mais cadeiras disponíveis. No
entanto, verificamos uma série de olhares insidiosos em nossa direção. E,
após uma longa pausa para entendimento tivemos a sensação de que havía-
mos nos colocado numa posição de enfrentamento acidentalmente, eis que,
os defensores buscavam apoio entre olhares e apertos de mão mesmo com
os ouvintes desconhecidos para que suas fileiras fossem logo preenchidas.
Fato que contornamos à francesa.
Curiosamente, uma recém-nomeada defensora interamericana pelo Es-
tado brasileiro, que depois soubemos que se encontrava em curso prepara-
tório, sentou-se a nossa frente e logo foi repreendida por sua colega para se
posicionar na fileira que correspondia a defesa da vítima, que era o lado es-
6 http://www.tjrj.jus.br/ca/leiacessoinformacao/info-inst/horario-atend
192
querdo para onde já tínhamos nos dirigido, o que nos deu a certeza que essa
composição cênica é preservada e extremamente demarcada como um ri-
tual.
À nossa frente um estrado com grandes dimensões e com as bandeiras
dispostas dos 35 (trinta e cinco) países que ratificaram a Carta da Organiza-
ção dos Estados Americanos – OEA.
Salienta-se que a Corte é composta por 07 (sete) juízes e todos são indi-
cados7 por meio dos Estados em razão do profundo conhecimento de direito
internacional e direitos humanos; dos mais relevantes serviços prestados em
seus países e de sua honradez para o cumprimento de um mandato de seis
anos, podendo ser reeleitos por um único período.
Em contraste, no Brasil, o preenchimento das vagas na magistratura de
primeira instância ocorre por meio de concurso público8 de provas e títu-
los9. Caso, os magistrados cometam atos ilegais ainda assim tem seus venci-
mentos garantidos por meio de aposentadoria compulsória10.
Diversamente, a regra do concurso púbico não se aplica aos tribunais su-
periores, como por exemplo, o Supremo Tribunal Federal, composto por 11
Ministros indicados pelo Presidente da República e sabatinados pelo Senado
Federal. É nesse cenário político de viés duvidoso que os nomes dos indica-
dos, por vezes, são alvos de críticas já que nem sempre o notável saber jurí-
dico e a conduta ilibada estão presentes.
E, é aí que começam os questionamentos. De início pelos vencimentos.
De certo que, pela Lei Fundamental de nosso país, esse deveria ser o maior
valor pago aos servidores, já “vantagens pessoais ou de qualquer outra natu-
193
reza”. Fora outros penduricalhos associados, tais como: auxílio-moradia, au-
xílio-alimentação; gratificações por acúmulo de varas; auxílio-saúde, desem-
bolsos por produtividade, por aulas em escolas da magistratura, gratificação
por cargos de direção, por integrarem comissão especial, por serem juízes
auxiliares, licença especial, gratificações relacionadas ao magistério, “Bolsa
Pesquisa”, “ajuda de custo” para se instalarem em outra cidade.
No Brasil os dados estatísticos11 apresentados no ano de 2016 revelaram
que dos 10.765 Juízes, Desembargadores e Ministros do Superior Tribunal
de Justiça muitos recebem vencimentos superiores a quantia de R$ 33.763,
cujos valores são em regra pagos aos ministros do Supremo Tribunal Fede-
ral.
Já os vencimentos dos juízes da corte estão previstos no artigo 17 do Es-
tatuto da
Corte Interamericana de Direitos Humanos e fixados apenas e de acordo
com as obrigações e compatibilidades de suas atribuições.
Se, por um lado, tudo isso nos instigava, por outro, causava também cer-
ta estranheza decorrente de experiências, muitas vezes frustradas, no cam-
po jurídico brasileiro. E, por tudo isso, tínhamos cada vez mais a necessidade
de absorver essa experiência culturalmente diferenciada do nosso país de
origem.
11 https://oglobo.globo.com/brasil/mais-de-dez-mil-magistrados-recebem-remunera-
coes-superiores-ao-teto-20340033
12 E-3.048/04 – SÍMBOLOS DA ADVOCACIA – A IMAGEM DA JUSTIÇA (TÊ-
MIS), A BALANÇA, A BECA E AS INSÍGNIAS PRIVATIVAS DO ADVOGADO –
RAZÕES ESTATUTÁRIAS, ÉTICAS E HISTÓRICAS DITADAS PELA NOBREZA
DA ADVOCACIA – INFLUÊNCIA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS BRASI-
LEIROS. Os símbolos do advogado, cujo direito de uso é assegurado pelo inciso XVIII
do artigo 7o da Lei nº 8.906/94 e regrado pelo Provimento nº 08/64 do C.F.O.A.B.
(influenciado pelo I.A.B.), são representados (i) pela figura mitológica de Têmis – deusa
grega que personifica a Justiça –, equilibrada pela balança e imposta pela força da espa-
da; (ii) pela Balança, que representa o mencionado equilíbrio das partes; e (iii) pela
Beca, usada pelo profissional do direito como lembrança do seu sacerdócio e respeito ao
Judiciário. A presença do crucifixo nas salas de júri e dos advogados é um alerta para o
cometimento de um erro judiciário que não deve ser esquecido, enquanto que a figura
de Santo Ivo justifica o título de padroeiro dos advogados, pelo conhecimento de Direi-
194
Pontualmente às 9h do dia 24 de maio, na sala de audiência da Corte,
escutamos em aviso sonoro: SEÑORAS Y SEÑORES, LA CORTE! Todos
os presentes imediatamente colocaram-se de pé e em respeito solene nada
era ouvido além das passadas calmas e ritmadas dos juízes. Depois que todas
as autoridades sentaram, os presentes foram se alocando em suas cadeiras e
nada mais era pronunciado pelos ouvintes. Não havia toques de celulares
nem mesmo conversas ao pé do ouvido. Toda sessão foi transmitida ao vivo
pelo site da Corte, o que permitiu o acesso em tempo real por qualquer pes-
soa do mundo. Mesmo assim notamos a presença de canadenses como ob-
servadores do ato processual.
Ficamos imóveis até a abertura dos trabalhos que passaram a ser condu-
zidos pelo atual secretário, Pablo Saavedra,13 que dentre tantas funções or-
ganiza o procedimento da Corte Interamericana de Direitos Humanos.
Para além dessas questões, retornamos ao movimento de reconhecimen-
to do espaço físico onde ocorrem as sessões, nota-se que do lado esquerdo
foi possível perceber um quadrículo reservado com cadeira e microfone para
oitiva das supostas vítimas de violações de direitos humanos e das testemu-
nhas e do lado diametralmente oposto da mesa onde permanece do início ao
fim o secretário da Corte que ocupa uma função de extremada relevância.
Indissociável perceber que ali as rotinas são cadenciadas e cronometra-
das. Tudo isso permeado pelo atravessamento de integração e conexão de
espaço-tempo. Esse processo permitia o reconhecimento das identidades e
as hibridizava, ou seja, todos os partícipes do processo eram tratados com o
mesmo merecimento e valor.
Diferentemente do Brasil onde advogados, partes, juízes e ministros
transformam esse espaço num palco de aberrações e espetáculos14. Fazen-
do-nos crer que é traço patológico comum na cultura judicial e na identida-
de dos representantes dessa casta.
to que detinha e por sua luta em defesa dos necessitados. O uso de desenhos, logotipos,
fotos, ícones, frases bíblicas, orações ou citações célebres, ainda que eventualmente de
boa estética, é vedado pelo artigo 31, caput, do Código de Ética, letras “c” e “k” do
artigo 4o do Provimento nº 94/00 do CFOAB e artigo 4o da Resolução nº 02/92 do
T.E.P. “Mas as insígnias que lhe são privativas devem ser ostentadas com orgulho pelo
advogado”.V.U., em 21/10/04, do parecer e ementa do Rel. Dr. BENEDITO ÉDISON
TRAMA – Rev. Dr. GUILHERME FLORINDO FIGUEIREDO – Presidente Dr.
JOÃO TEIXEIRA GRANDE.
13 Em todos os lados das paredes existiam quadros com fotografias dos juízes que
anteriormente foram designados para atuação na Corte juntamente com a figura do se-
cretário. Pudemos acompanhar marcadamente o passar de anos em relação ao mesmo
por intermédio das fotografias dispostas nos quadros e também credibilizadas nas
informações informatizadas no site da Corte, onde seu encargo é realizado há muitos
anos naquele lugar. Tal fato, o torna imprescindível para a memória dos julgamentos
daquela Corte.
14 https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2014/06/11/achei-pessimo
-diz-marco-aurelio-sobre-advogado-expulso-do-stf.htm.
195
Se, por um lado, tudo isso nos instigava, por outro, causava também cer-
ta estranheza decorrente de experiências, muitas vezes frustradas, em are-
nas jurídicas brasileiras. E, por tudo isso, tínhamos cada vez mais a necessi-
dade de absorver essa experiência culturalmente diferenciada do nosso país
de origem.
Embora problemático reconhecer o distanciamento dos rituais no Brasil
do ocorrido em San José na Costa Rica, a partir dessas interfaces nossa ten-
tativa era a de sermos capazes de captar a complexidade de todos esses sim-
bolismos.
Como dito antes, dos movimentos ritualísticos brasileiros, as audiências
são realizadas num movimento de entra-e-sai de jurisdicionados e o falatório
de todos, por vezes, provoca um frenesi na sala de audiências, são raros os
momentos em que o silêncio é preservado em nome da ordem e do respeito
para o interessado falar e ser ouvido.
“Ué? Eu não posso falar? Eu preciso falar!!! É mentira tudo o que eles estão
falando!!!
196
Vê-se assim que o sistema binário de ganhador-perdedor, talvez estives-
se presente no inconsciente de Clarice Herzog que a motivava falar mesmo
em momento inoportuno, como se isso legitimasse a disputa nesta sessão, e,
principalmente, a validade de seus reclamos, não apenas como discurso, mas
para externar a sua realidade, reforçando sua dor, sofrimento, angústia, que
mais pareciam estigmas repousados sob um véu destituído de poder, mas,
incontestavelmente permeado de significados quando olhamos pelo prisma
dos rituais brasileiros.
Pausa para almoço. Sessão encerrada: LA CORTE SE RETIRA!
Mais uma vez, ficamos de pé, em silêncio sepulcral. Saem os juízes, o
retorno das atividades foi programado para às 13:30h. Nos dirigimos ao res-
taurante mediano mais próximo da Corte, e, qual não foi nossa surpresa que
a juíza Elizabeth Odio Benito, que foi vice-presidente da Costa Rica, juíza
do Tribunal Penal para a ex-Iugoslávia e juíza do Tribunal Penal Internacio-
nal, caminhava ao nosso lado na rua e sentou em mesa oposta à nossa, sem
ser cortejada foi tratada como todo cidadão costarriquenho o é.
Isso nos causou tanta surpresa que indagamos ao garçon se ele conhecia
aquela figura pública. Afirmativamente ele, deixa claro seu conhecimento
sobre o exercício da função da juíza e nos informou que os servidores públi-
cos da Costa Rica caminham com o povo, andam de transportes coletivos,
sem seguranças de qualquer ordem, recebem e ouvem os pedidos da comu-
nidade local por que são eleitos para essa tarefa e dos mais baixos aos altos
encargos, a função precípua é atuarem com lisura e inclinação ao bem-fazer
público.
Em nosso retorno, as mesmas formalidades, de praxe na entrada dos juí-
zes na Corte. Mais depoimentos da tríade formada por todos os repre-
sentantes, fosse da vítima, da Comissão de Direitos Humanos ou do corpo
de defesa do Brasil. Cada fala tinha seu tempo demarcado e respeitado. Não
houve as interveniências pela “ordem” ou por “máxima vênia”.
O que há de determinante no contexto em que estão imbricadas as a-
ções dos agentes públicos é uma possibilidade de leitura onde os elementos
antidemocráticos não se ajustam e se definem como processos sociais de vio-
lência nas questões de ordem, de controle social e ameaça moral a sociedade
pelo processo de terror instituído por estas categorias de profissionais. Em
larga medida esses agentes, para se fazerem respeitar, impõem o uso inten-
cional da força física e do abuso de poder. De fato, nessa intrincada trama de
personagens que dividem territórios físicos e simbólicos, os efeitos do desa-
pontamento são inevitáveis ao longo da malfadada trajetória do regime mili-
tar que viabilizou o afastamento de um convívio pluralista e inclusivo.
Nesse fosso criado pelo regime ditatorial no cometimento de crimes em
nome do Estado é que eles passam a ser considerados por sua lesão enorme
ante a persistência, impunidade e o mecanismo das violações que atingem
patamares máximos de desumanidade e impedimento de fruição dos direi-
tos mínimos de todo e qualquer cidadão.
197
Evidenciam um discurso assimétrico imbuído de táticas, estratégias e re-
cortes totalizantes de desajustes e ilegalismos por meio de burocracias não
só nas normas jurídicas, mas, sofrem as vítimas uma disciplinarização como
forma de controle das dinâmicas sociais na dimensão jurídica de um consen-
so inalcançável numa conexão de jogos onde as práticas se transformam em
verdadeiros labirintos de papel (TISCORNIA, 2008).
Pensar sobre os requisitos caracterizadores da impunidade, da crueldade
e da inexplicável violação de direitos humanos praticadas pelos agentes em
nome da Lei é uma medida também de fortalecimento das burocracias ad-
ministrativas e judiciais como medida de interrupção de busca da verdade.
O caso do brasileiro Herzog se desenha na opacidade e na lógica do se-
gredo. Num lugar onde os ritos judiciais se sedimentam erigindo um arca-
bouço desolador, impossibilitando a significação dos conflitos, onde a reso-
lução de situações-problema permanece no espaço de forma e conteúdo su-
jeitos a extrema precarização da subjetividade interna de cada país, num
duelo onde os dispositivos se alinham entre a abstração da norma que não é
descortinada para a resolução das tensões e embates sociais.
Por isso, a Corte Interamericana de Direitos Humanos os direitos da
proteção da pessoa humana, sua liberdade de expressão entre outros ele-
mentos são levados à preservação quando os fatos jurídicos são inobservados
nos países de origem.
Sem mais nada a ouvir, os trabalhos foram encerrados, com o mais alto
grau de zelo nos procedimentos, bem como, na respeitabilidade devida dos
juízes em relação aos partícipes. Em observações empíricas já realizadas pu-
demos perceber que o movimento da desconfiança, da descrença e da inqui-
sitorialidade, traços referenciais dos magistrados brasileiros (VALIM; RAS-
GA, 2016, p.46) não foram verificados na Corte.
O caráter interpretativo de regras, ao ser iminentemente subjetivo, de-
flagra os gradientes de ininteligibilidade de ações no espaço jurídico, eis que,
a impossibilidade de sentido ou de questionamento em tais formulações ar-
gumentativas estão contidas no interior das sensibilidades do julgador o que
delimita um campo fértil para as iniquidades. Posto que, estarão fadados
muitos jurisdicionados à morte silenciosa de seus direitos universais tais
como: os civis, sociais e políticos. A amplitude dessas ações marca na arena
jurídica uma semiologia particularizada do discurso de se “aplicar o direito”
no mundo dos segredos oficiais de normalização, neutralização e dominação
da mecânica de ordem imposta pelo Estado.
Ao ser instada a Corte Internacional dos Direitos Humanos a rotina dos
desacertos, da politização, da hierarquização e do monopólio do poder vão
reorganizando de “fora para dentro” os Estados em comandos que fecham o
fosso intransponível do direito dogmatizado.
As sentenças da Corte apresentam-se como um resultado em amplo es-
pectro, eis que, não se restringem às reparações de caráter exclusivamente
financeiro, mas também determinam imperativamente a necessidade de
uma tomada de medidas que visem assegurar uma mudança interna nos paí-
198
ses para as mais complexas violações aos direitos humanos aliado ao fato de
intentar prevenir ocorrência de situações assemelhadas no futuro.
No Brasil, raramente, as sentenças são cumpridas. Indenizações não são
pagas. O judiciário atua numa morosidade que produz ineficácia e recalci-
trância de ações violadoras de direitos.
A partir disso quando um Estado sofre uma condenação por violação aos
direitos humanos por parte da Corte, além do constrangimento internacio-
nal que permanece a exercer pressão política, a Corte cristaliza uma garantia
de não repetição em cenário interno de tais subtrações de direitos ao moni-
torar o cumprimento da decisão. O que vale dizer, suas sentenças emanam
um efeito transformador no entendimento de tribunais nacionais e os in-
fluenciam diretamente na determinação de reformas nas políticas públicas
específicas desses Estados.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
199
Enfatizamos que os dilemas e dramas dos casos retratados apesar de apa-
rentarem comuns não podem ser restringidos aos fenômenos jurídicos cons-
tantes no limite de nossa reflexão, onde nossas motivações, resultados, difi-
culdades de olhares e críticas alimentam que a nossa necessidade de expe-
riência calcada no ensino-aprendizagem aponta para uma busca de olhares
para a administração de conflitos em perspectiva crítica que sendo expandi-
da em outras pesquisas de campo certamente apontarão para novos cami-
nhos quando o ponto de partida é a persecução de direitos essenciais do ho-
mem para o gozo de seus direitos econômicos, sociais e culturais, bem como
dos seus direitos civis e políticos e o fim não é o monopólio do poder ditato-
rial tampouco arbitrário, por isso o estudo por contraste foi-nos essencial.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
200
PIOVESAN, Flávia. Diálogo no sistema interamericano de direitos humanos: desa-
fios da reforma. Revista Campo Jurídico, n. 1, p. 163-186, mar. 2013.
______. Direitos humanos e diálogo entre jurisdições. Revista Brasileira de Direito
Constitucional – RBDC, n. 19, p. 67-93, jan./jun. 2012.
______. Direitos humanos e justiça internacional: um estudo comparativo dos siste-
mas regionais europeu, interamericano e africano. 2. ed. São Paulo: Saraiva,
2011.
______. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 11 ed. São
Paulo: Saraiva, 2010.
______. Hierarquia dos Tratados Internacionais de Proteção dos Direitos Huma-
nos: Jurisprudência do STF. In: AMARAL JUNIOR, A.; JUBILUT, L. O STF
e o Direito Internacional dos Direitos Humanos. São Paulo: Quartier Latin,
2009.
______. Reforma do Judiciário e Direitos Humanos. In: TAVARES, André Ramos
et al. Reforma do Judiciário, analisada e comentada. São Paulo: Método, 2005.
VALIM, M.P; RASGA, M. F. “A crise estrutural contida no poder judiciário: Cen-
tralização, Hierarquização, Burocracia e Dilemas Corporativos. Considerações
sobre um modelo de gestão problematizante.”. In: CONPEDI (Org). POLÍTI-
CA JUDICIÁRIA, GESTÃO E ADMINISTRAÇÃO DA JUSTIÇA: XXV
CONGRESSO NACIONAL DO CONPEDI: Curitiba: CONPEDI, 2016,
v.1, p. 37-57.
VIANNA, Luiz Werneck e outros. Corpo e alma da magistratura brasileira. Rio de
Janeiro: Revan, 1997.
TEIXEIRA, Sálvio de Figueiredo. O JUIZ: seleção e formação de magistrados no
mundo contemporâneo. Belo Horizonte: Livraria Del Rey Editora, 1999.
TISCORNIA, Sofía. Activismo de los derechos humanos y burocracias estatales. El
caso Walter Bulacio. – 1ª ed. Buenos Aires: Del Puerto/CELS, 2008.
201
A evolução do poder judiciário nas
constituições do Brasil: de coadjuvante
a protagonista
203
frame the Constitution of 1824, which lasted until the end of the dictators-
hip. With the advent of the 1988 federal constitution, the country inaugu-
rated a new phase of its history, and the Democratic Political Charter,
among many innovations, made judicial power independent (BARROSO,
2012). The results point out that this independence was achieved through
respect for the system of tripartition of powers inspired by the work of
Montesquieu and the constitutionalizing of political rights, which culmina-
ted in the development of the constitutionalism of the effectiveness com-
manded by BARROSO (2015). Relevant is the study of the theme since
Constitutionalism is directly linked to social, economic and legal changes, as
well as the structuring of the State throughout history. From a methodolo-
gical point of view, the present study is based on the deductive model regar-
ding the study of the absence of independence and effectiveness of the Bra-
zilian Judiciary until the enactment of the Citizen Constitution, aiming to
demonstrate, in a non-exhaustive way, the reasons that caused the inde-
pendence of the Judiciary will only come about when it is promulgated. In
the end, from the constitutionalism of effectiveness, two new phenomena
are identified: judicialization and judicial activism, which emerge as new pa-
radigms of judicial action and create a new field of research on the contro-
versies arising in these new legal institutes.
INTRODUÇÃO
204
Por fim, percebe-se que Luís Roberto Barroso desconsidera toda a histó-
ria constitucional brasileira, enaltecendo a força normativa da Constituição
e a independência dos tribunais a partir da Constituição de 1988, o que deu
origem a doutrina da efetividade e com ela dois novos fenômenos jurídicos
nesses últimos quinze anos despontaram em nosso Tribunal Constitucional:
a judicialização dos direitos e o ativismo judicial.
A CONSTITUIÇÃO DE 1824
205
instituto do controle de legalidade e ou constitucionalidade por parte do po-
der judicial, pois, segundo Marquês de São Vicente: “Só o poder que faz a
lei é competente para revoga-la, quer expressa ou implicitamente no todo
ou em parte.” (SÃO VICENTE, 2002, p. 82).
Com efeito, o Conselho de Estado, conforme previsto na Carta de
1824, seria composto por até dez membros vitalícios, tendo como função
aconselhar o imperador em todos os negócios graves e ações gerais da admi-
nistração pública, principalmente em questões relativas à declaração da
guerra, ajustes de paz, negociações com as nações estrangeiras, etc.
Tal Conselho tinha a atribuição de árbitro em contenciosos administra-
tivos e conflitos de competências, especialmente no julgamento dos recur-
sos contra as decisões dos presidentes das províncias e dos ministros de Es-
tado, além de exercer o papel de guardião da constitucionalidade e da lega-
lidade dos atos do Executivo. Em suas sessões eram discutidas questões
como candidaturas ao Senado, aprovação de leis, atos legislativos, constitu-
cionalidade das resoluções dos conselhos gerais das províncias, convocação e
prorrogação da Assembleia Geral, petições de graça, queixas contra magis-
trados, questões eleitorais, supressão de rebeliões e revoltas, bem como re-
conhecimento de cidadania. São Vicente (2002, p. 84)
A partir das breves considerações acima, verifica-se que, por mais que
houvesse quem defendesse a independência do Poder Judicial, haviam
limitações quanto às matérias que poderiam ser conhecidas e julgadas, assim
como deveria este Poder restringir-se à interpretação das leis que lhe eram
submetidas a apreciar não sendo de sua atribuição a realização qualquer con-
trole de legalidade e ou constitucionalidade. O Brasil ainda não possuía um
Tribunal Constitucional.
A CONSTITUIÇÃO DE 1891
206
cessário porque Barbosa, alguns anos depois faz severas críticas à referida
Constituição, o que veremos adiante.
Por outro lado, uma das características marcantes da República Velha
foi a parceria existente entre Poder Executivo, Legislativo e com os ‘Coro-
néis’. O Coronelismo1 assegurava durante as eleições, por meio dos votos de
cabresto, que seus representantes fossem eleitos e reeleitos, políticos estes,
que representavam os interesses dos ‘Mandões’2 das antigas províncias, ou
seja, os Coronéis dos novos Estados da Federação.
Em que pesem os conceitos liberais de Rui Barbosa se propagarem aos
quatro cantos da nação, e, por mais que seus ensinamentos importados da
doutrina americana, formassem seguidores, as oligarquias dos Estados ti-
nham maior voz e representatividade no Congresso Nacional, fato este que
engessava os ideais liberais da época.
De fato, a Constituição inovou quando permitiu a todo e qualquer juiz
realizar o controle difuso de constitucionalidade da legislação nacional, ins-
trumento este oriundo do sistema de freios e contrapesos, capaz de conter
as arbitrariedades do Poder Legislativo. Outras conquistas da época foram a
previsão do habeas corpus e do estado de sítio no bojo da Constituição, ins-
trumentos estes que trouxeram repulsa da classe política. (VIANNA, 1974,
p. 504)
Com efeito, durante discurso ocorrido em sua posse como presidente
do IAB, registra Barbosa (1914) que:
1 O coronelismo é um sistema político, uma complexa rede de relações que vai desde
o coronel até o presidente da República, envolvendo compromissos recíprocos.Carva-
lho (1997).
2 O mandão, o potentado, o chefe, ou mesmo o coronel como indivíduo, é aquele
que, em função do controle de algum recurso estratégico, em geral a posse da terra,
exerce sobre a população um domínio pessoal e arbitrário que a impede de ter livre
acesso ao mercado e à sociedade política. Carvalho, (1997)
207
Alberto Torres (1914, p. 34) faz duras críticas à ausência de clareza no
fato de haver interpretações dúbias sobre a possibilidade de recurso para o
Supremo Tribunal Federal de julgados oriundos dos tribunais locais, o que
demonstra o empoderamento daqueles juízes locais. (VIANNA, 1974, p.
499).
O conluio entre as facções legislativas e os coronéis, de fato, foi a maior
característica da república velha, tanto que a história (CARVALHO, 2007,
p. 131) nos traz relatos daquele tempo sob a denominação da república oli-
gárquica, como se segue:
208
de interpretar a lei e declará-la inconstitucional. Com isso, em última ins-
tância, ao invés do Supremo Tribunal Federal ser o órgão revisor, guardião
da constitucionalidade das leis, a reforma projetada tornava uma das câma-
ras do congresso o derradeiro revisor (BARBOSA, 1914).
A Constituição de 1934 não foi elaborada para e por uma elite que igno-
rava o país, na verdade, tratava-se de um documento que classificava e esta-
belecia grupos, criando direitos e deveres específicos. No viés social, tratava
a Carta de reconhecer direitos sociais do cidadão brasileiro, empoderava sin-
dicatos, criava o salário mínimo, reconhecia a mulher como eleitora e ainda
lhe assegurava direitos trabalhistas.
Já, no viés judicial, foi regulamentada pela nova Constituição a Justiça
Militar e a Justiça Eleitoral, sendo reconhecida Justiça do Trabalho como ór-
gão administrativo. Houve significativo avanço no que diz respeito à inde-
pendência da Corte Suprema sob a ótica de que em incorrendo nos crimes
de responsabilidade, os Ministros não seriam mais julgados pelo Senado,
mas, por um por um Tribunal Especial, cujo presidente era o mesmo da Cor-
te Suprema, tribunal este composto por nove Juízes, sendo três Ministros da
Corte Suprema, três membros do Senado Federal e três membros da Câ-
mara dos Deputados, tendo o Presidente do Tribunal Especial o voto de mi-
nerva.
Porém, em 1931, Vargas invocando “imperiosas razões de ordem públi-
ca”, por meio do Decreto nº 19.711 aposentou seis juízes do Supremo Tri-
209
bunal Federal (STF), o que, por si só, já demonstrava sinais de dias tenebro-
sos que estariam por vir para o poder Judiciário brasileiro. Passados três anos
da promulgação da Carta de 1934, sobreveio a outorgada Constituição de
1937 que instalava um regime ditatorial no país.
Todos os atos acima enumerados eram considerados questões exclusiva-
mente políticas e, tanto a Constituição de 1934, como a Constituição de
1937 vedava, expressamente, ao Poder Judiciário de conhecer e, por conse-
quência, julgar questões de natureza política. A Carta de 1937 conferiu ao
chefe do Executivo amplos poderes e a faculdade de legislar por meio de de-
cretos-leis, inclusive sobre assuntos constitucionais, transformando o Poder
Legislativo e o Judiciário em poderes subordinados.
A referida Carta Magna instituiu o controle político sobre as decisões
dos membros do Poder Judiciário quando, em primeiro lugar, determinou
que, só por maioria absoluta de votos da totalidade dos seus Juízes, pode-
riam os Tribunais declarar a inconstitucionalidade de lei ou de ato do Presi-
dente da República, o que retirou a autonomia dos juízes, monocraticamen-
te, declararem a inconstitucionalidade de leis monocraticamente.
Mas não é só. Nos casos em que fossem declaradas a inconstitucionalida-
de de lei, o Presidente da República, para assegurar o bem-estar do povo,
primando pela promoção ou defesa de interesse nacional de alta monta
(conceitos vagos e abertos), poderia submeter à lei declarada inconstitucio-
nal ao exame do congresso nacional e se este a confirmasse sua legalidade
por dois terços de votos em cada uma das Câmaras, ficaria sem efeito a de-
cisão do Tribunal. Verifica-se, então, que o Tribunal Constitucional além de
não poder conhecer de questões políticas, quando exercia sua precípua atri-
buição de controlar as arbitrariedades legislativas poderia ver vilipendiadas
suas decisões por meio dos atores políticos desprovidos de jurisdição.
A CONSTITUIÇÃO DE 1946
210
Destarte, o texto constitucional ter se baseado nas ideias liberais da
Constituição de 1891 e ainda nas ideias sociais da de 1934. Na ordem eco-
nômica, procurou harmonizar o princípio da livre-iniciativa com o da justiça
social. Na forma do art. 1º, os Estados Unidos do Brasil mantinham, sob o
regime representativo, a Federação e a República, prestigiando, ainda, o mu-
nicipalismo. A teoria clássica da tripartição dos poderes de Montesquieu foi
restabelecida. Importante destacar que o Poder Judiciário era exercido pe-
los seguintes órgãos: a) Supremo Tribunal Federal; b) Tribunal Federal de
Recursos; c) Juízes e Tribunais militares; d) Juízes e Tribunais eleitorais; e)
Juízes e Tribunais do Trabalho
Lado outro, por mais que a Constituição de 1946 preservasse as liberda-
des democráticas, os parágrafos 1° e 2º do artigo 135 estabelecia os casos de
perda ou suspensão de direitos políticos. Aproveitando-se disto, os congres-
sistas que se opunham aos ideais comunistas, sob o fundamento de que o
Partido Comunista não era uma agremiação democrática, cassaram e extin-
guiram aquele partido.
Todavia, para que os idealistas comunistas não voltassem mais ao con-
gresso, o senador Dario Cardoso (PSD/GO) apresentou emenda ao artigo
32 do Código Eleitoral, pela qual não poderiam disputar cargos eletivos os
que professassem ideias de partidos suprimidos por ato do Poder Legislati-
vo. Não apenas os comunistas percebiam o caráter perigoso dessa emenda,
amplos setores da opinião pública, inclusive no Poder Judiciário, percebiam
que o atestado de ideologia passaria a ser uma perigosa arma contra oposicio-
nistas e a falência do regime democrático instituído na Carta de 1946. (PE-
REIRA, 1996).
O próprio Código Eleitoral é um exemplo de como diferentes grupos da
Constituinte trabalharam para conservar o controle do governo sobre o Po-
der Judiciário. O anteprojeto vencedor atribuía ao presidente da república o
poder de nomear os Ministros que compunham o Tribunal Superior Elei-
toral.3
O autor mencionado acima também criticava o modo pelo qual as clas-
ses dominantes se conduziram na Constituinte para constituir um Poder Ju-
diciário que lhes fosse dócil (PEREIRA, 1964, p. 134), citando a competên-
cia do Presidente da República para nomear os Ministros do Supremo Tri-
bunal Federal, dependendo posteriormente, da sabatina do Senado, aliás,
modelo semelhante ao de hoje. Registra que esta atribuição permitiu que
Juscelino Kubitscheck nomeasse tantos juristas mineiros que em sua totali-
dade compunham a metade da Corte que, embora impolutos, deviam defe-
rência ao chefe do Poder Executivo.
211
Percebe-se que o espírito democrático que imbuiu a Constituição de
1946 não foi efetivado, pois o sistema democrático que se idealizava insti-
tuir no país, deveria se estruturar em duas bases, quais fossem legalidade e
controle judiciário. O primeiro desses princípios significa que a autoridade
pública deve efetivar-se e acordo com a lei, segundo as normas prescritas e
dentro dos limites postos pela lei. Já o segundo princípio, mas palavras de
Gonçalves Filho (1978, p. 35), significava que:
A CONSTITUIÇÃO DE 1967
212
indicados pelas Assembleias Legislativas dos Estados, em sessão pública e
mediante votação nominal.4
Por fim, em que pese, naquele tempo, o Supremo Tribunal Federal, em
sua maioria, ser composto por Ministros honrados e comprometidos com a
defesa da Constituição, vivia-se em um estado autoritário. A força do Poder
executivo militar sempre foi, de sobremaneira, desproporcional relação aos
demais poderes, o que se podia verificar, mesmo em tempos democráticos,
na conclusão do voto proferido pelo Ministro Nelson Hungria, quando não
conheceu da segurança do writ (MS nº 3.557) impetrado por Café Filho que
pretendia retornar à Presidência da República:
213
feita pelo Supremo Tribunal, posto que este não iria cometer a ingenuidade de,
numa inócua declaração de princípio, expedir mandado para cessar a insurrei-
ção.
(...) O ilustre impetrante bateu em porta errada. Um insigne professor de Di-
reito Constitucional “doublé” de exaltado político partidário, afirmou, em en-
trevista não contestada, que o julgamento deste mandado de segurança enseja-
ria ocasião para se verificar se os Ministros desta Corte eram “leões de verdade
ou leões de pé de trono. Jamais nos inculcamos leões. Jamais vestimos a pele do
rei dos animais. A nossa espada ê um mero símbolo. É uma simples pintura
decorativa no teto ou na parede das salas da Justiça. Não pode ser oposta a uma
rebelião armada. Conceder mandado de segurança contra esta, seria o mesmo
que pretender afugentar leões autênticos, sacudindo-lhes o pano prelo de nos-
sas Iogas. Sr. Presidente: o atual estado de sítio é perfeitamente constitucional
e o impedimento do impetrante para assumir a Presidência da República, antes
de ser declaração do Congresso é imposição das forças insurrecionais do Exér-
cito contra a qual não há remédio na farmacologia jurídica. Não conheço do
pedido de segurança.
A CONSTITUIÇÃO DE 1988
214
A ascensão do Poder Judiciário se deve, em primeiro lugar, à reconstitucionali-
zação do país: recuperadas as liberdades democráticas e as garantias da magis-
tratura, juízes e tribunais deixaram de ser um departamento teìcnico especiali-
zado e passaram a desempenhar um papel político, dividindo espaço com o Le-
gislativo e o Executivo. Uma segunda razão foi o aumento da demanda por jus-
tiça na sociedade brasileira. De fato, sob a Constituição de 1988, houve uma
revitalização da cidadania e uma maior conscientização das pessoas em relação
à proteção de seus interesses. [...] Aos fatores mencionados acima – ascensão
institucional do Judiciário e aumento da demanda por justiça – somam-se inú-
meros outros que contribuíram para alçar a atuação de juízes e tribunais a uma
posição central na vida pública contemporânea. De fato, circunstâncias como a
amplitude da Constituição, a combinação da jurisdição constitucional concen-
trada e difusa, bem como a constitucionalização do Direito deram lugar a um
feno?meno muito visível no Brasil contemporâneo: a judicialização das relações
políticas e sociais. Judicialização, entenda-se bem, não se confunde com usur-
pação da esfera política por autoridades judiciárias, mas traduz o fato de que
muitas mateìrias controvertidas se inserem no âmbito de alcance da Constitui-
ção e podem ser convertidas em postulações de direitos subjetivos, em preten-
sões coletivas ou em processos objetivos.
215
Como exemplo da judicialização de questões políticas podemos citar al-
guns casos emblemáticos que foram decididos pelo Pretório Excelso, como
a cláusula de barreira, a distribuição das bancadas estaduais na Câmara dos
Deputados, os critérios distributivos do Fundo de Participação dos Estados,
as pesquisas com células tronco, o aborto de feto anencefálico, o casamento
homoafetivo, a distribuição dos royalties do petróleo, o financiamento de
campanha, etc.
Esse fenômeno deu origem a outro fenômeno, conhecido como ativismo
judicial5. O ativismo judicial traduz uma postura proativa e expansiva de in-
terpretar a Constituição pelo julgador, dando efetividade ao sentido e ao al-
cance de suas normas, para ir além do legislador ordinário (BARROSO,
2012).
A ideia de ativismo judicial está associada a uma participação mais ampla e in-
tensa do Judiciário na concretização dos valores e fins constitucionais, com
maior interferência no espaço de atuação dos outros dois Poderes. A postura
ativista se manifesta por meio de diferentes condutas, que incluem: a) a aplica-
ção direta da Constituição a situações não expressamente contempladas em seu
texto e independentemente de manifestação do legislador ordinário; b) a decla-
ração de inconstitucionalidade de atos normativos emanados do legislador, com
base em critérios menos rígidos que os de patente e ostensiva violação da Cons-
tituição; c) a imposição de condutas ou de abstenções ao Poder Público, nota-
damente em matéria de políticas públicas.
Por outro lado, neste mesmo trabalho, Barroso (2012) critica a passivi-
dade do Judiciário nacional durante todo o período que antecedeu a Consti-
tuição de 1988, intitulando este fenômeno como autocontenção judicial,
tratando-se da
(...) conduta pela qual o Judiciário procura reduzir sua interferência nas ações
dos outros Poderes. Por essa linha, juízes e tribunais a) evitam aplicar direta-
mente a Constituição a situações que não estejam no seu âmbito de incidência
expressa, aguardando o pronunciamento do legislador ordinário; b) utilizam
critérios rígidos e conservadores para a declaração de inconstitucionalidade de
leis e atos normativos; e c) abstêm-se de interferir na definição das políticas
públicas.
216
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS:
BARBOSA, Rui. O estado de sitio: sua natureza, seus efeitos, seus limites. Rio de
Janeiro: Companhia Impressora, 1892.
_______. O Supremo Tribunal Federal na Constituição brasileira. Discurso proferi-
do pelo Conselheiro Rui Barbosa no Instituto dos Advogados, ao tomar posse
217
do cargo de presidente, em 19 de novembro de 1914. Trabalhos jurídicos. Rio
de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa (Obras Completas de Rui Barbosa,
v. 41, t. IV). [Links], 1914.
BARROSO, Luís Roberto. A Nova Interpretação Constitucional e o Papel dos
Princípios no Direito Brasileiro. Revista da EMERJ, v. 6, n. 23, 2003.
______. Judicialização, ativismo judicial e legitimidade democrática.(Syn) the-
sis5.1, p. 23-32, 2012.
______. O constitucionalismo democrático no Brasil: crônica de um sucesso impre-
visto.Barroso, Luís Roberto, O novo direito constitucional brasileiro, 2012.
______. Curso de Direito Constitucional contemporâneo: os conceitos funda-
mentais e a construção do novo modelo. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 2015.
BRASIL. Ato Institucional n. 1. Diário Oficial da República Federativa do Brasil,
Brasília, DF, 09 abr. 1964.
______. Ato Institucional n. 2. Diário Oficial da República Federativa do Brasil,
Brasília, DF, 27 out. 1965.
______. Ato Institucional n. 3. Diário Oficial da República Federativa do Brasil,
Brasília, DF, 07 fev. 1966.
______. Ato Institucional n. 4. Diário Oficial da República Federativa do Brasil,
Brasília, DF, 07 dez. 1964.
______. Ato Institucional n. 5. Diário Oficial da República Federativa do Brasil,
Brasília, DF, 13 dez. 1968.
______. Constituição da República Federativa do Brasil. Diário Oficial da Repúbli-
ca Federativa do Brasil, Brasília, DF, 05 out. 1988.
______. Constituição da República Federativa do Brasil. Diário Oficial da Repúbli-
ca Federativa do Brasil, Brasília, DF, 24 jan. 1967.
______. Constituição dos Estados Unidos do Brasil. Diário Oficial, Rio de Janeiro,
DF, 19 set. 1946.
______. Constituição dos Estados Unidos do Brasil. Diário Oficial da União, Rio
de Janeiro, 10 nov. 1937.
______. Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil. Diário Oficial da
União, Rio de Janeiro, 16 jul. 1934.
______. Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil. Diário Oficial da
União, Rio de Janeiro, 24 fev. 1891.
______. Constituição Política do Império do Brazil de 1824. Disponível em
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao24.htm.
Acesso em: 28 mar. 2017.
CARVALHO, José Murilo de. Mandonismo, coronelismo, clientelismo: uma dis-
cussão conceitual.Dados, v.40, n. 2, 1997.
______. Cidadania no Brasil: o longo caminho. 5. ed. Rio de Janeiro: Editora Civi-
lização Brasileira, 2004
______. Os três povos da República.Progresso e religião: a república no Brasil e
em Portugal 1889-1910, 2007.
GONÇALVES FILHO, Manoel Ferreira. A democracia possível. Edição Saraiva,
1972.
KOERNER, Andrei. Ativismo Judicial? Jurisprudência constitucional e política
no STF pós-88.Novos Estudos-CEBRAP, n. 96, p. 69-85, 2013.
218
MONTESQUIEU Charles de Secondat, Baron de. O Espírito das Leis. São Paulo:
Martins Fontes, 1996.
PEREIRA, Osny Duarte. Que é a Constituição? Crítica à Carta de 1946 com vis-
tas a Reformas de base. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1964.
______. No cinqüentenário da constituição de 1946, a defesa da carta na posse de
café filho. Revista de Sociologia e Política, n.06-07, p. 59-66, 1996.
SÃO VICENTE, José Antônio Pimenta Bueno, Marquês de. Direito Público Brasi-
leiro e Análise da Constituição do Império. São Paulo: Editora 34, 2002.
VIANNA, Francisco José de Oliveira. Instituições políticas brasileiras. 2 vols. 3ª
ed. Rio de Janeiro: Record, 1974.
219
Biossegurança à brasileira: quimera
legislativa subjugada ao princípio
da dignidade humana
Introdução
221
nas técnicas de reprodução humana assistida, do mapeamento do genoma,
do prolongamento da vida mediante transplantes, da alteração de sexo, da
clonagem, da engenharia genética, da seleção de sexo, das combinações qui-
méricas e híbridas, assim como da pesquisa com células-tronco embrionárias
para aprofundamento de estudos para a cura de diversas patologias.
Fundado em tal premissa, buscar-se-á investigar algumas influências da
Bioética e do Direito nas consequências da modernidade. A legislação que
servirá de base ao desenvolvimento deste trabalho é a Lei nº 11.105, de 24
de março de 2005, conhecida como Lei de Biossegurança.
Analisar-se-á, portanto, o conceito de biossegurança e o conteúdo da lei
regente sobre o assunto, bem como os pontos de contato entre a biossegu-
rança e os direitos humanos, haja vista a necessidade de preservação do ser
humano e de sua dignidade para salvaguardá-lo de investigações abusivas
que aviltem a sua condição de pessoa humana.
1. A Bioética e o Biodireito
222
A despeito da Bioética informar todos os processos biotecnológicos, in-
troduzindo limites e princípios reitores a experimentos científicos envol-
vendo seres humanos, de modo a coibir a sua coisificação, a mesma não pos-
sui a coercibilidade ínsita às normas jurídicas. Por isso, o Direito passa a dis-
ciplinar as repercussões jurídicas advindas de tais experimentos, com a im-
posição de normas cogentes e aplicação de sanções, em um primeiro mo-
mento, através da regulamentação trazida pelo Biodireito.
Os avanços na área biotecnológica, sobretudo a partir do século XIX, co-
meçaram a abalar categorias jurídicas que até então pareciam imutáveis
(BARBOZA, 2003, p, 57). Conforme acentua Heloísa Helena Barboza, a re-
produção humana passa a ser “assistida”, interferindo a Medicina e a Biolo-
gia em processo até então “natural”, impondo a revisitação e/ou criação de
novo conceito para pessoa, pai, mãe e filho. Enquanto as técnicas de repro-
dução assistida passam a afrontar os conceitos de início da vida e de sua pro-
teção jurídica, os transplantes de órgãos e tecidos e o prolongamento da vida
passam a abalar o conceito de morte (BARBOZA, 2003, p, 56). De igual
modo, a possibilidade de mudança de sexo, o sequenciamento do genoma
humano, a clonagem terapêutica e reprodutiva, a produção de alimentos
transgênicos – dentre outras situações vivenciadas nas sociedades pós-mo-
dernas – exigem eficaz regulamentação jurídica (BARBOZA, 2003, p, 57)
para que possam ser coibidos eventuais abusos decorrentes de tais práticas.
Constata-se, assim, que toda e qualquer expansão biotecnológica vai neces-
sariamente extrapolar o campo da Bioética, carecendo de uma normatização
jurídica, que, em um estágio inicial, vai ficar a cargo do Biodireito.
Para o campo jurídico, é notória a relevância do tema para a adequada
valoração normativa, visto que as inovações oferecem oportunidades de de-
senvolvimento ao mesmo tempo que expõe bens jurídicos potencialmente
relevantes. Em feliz síntese, Peralta (2017, p. 15-16) expõe esta problemá-
tica:
Por otro lado, el mejor acceso que ofrece hoy la ciencia a la información gené-
tica general de las especies vivas plantea a su vez otros dilemas adicionales, que
surgen de la manipulacion y transferencia a gran escala de material genético
entre especies, (lo que permite a su vez la supervivencia de organismos modifi-
cados genéticamente), como son: la protección de la diversidad y de la integri-
dad genética propia de cada especie, la utilización de principios activosaislados
de los seres vivos, el aprovechamiento con fines de lucro de esa informacion y
la cuestión general de la patentabilidad de los seres vivos.
223
O Biodireito consiste, portanto, no ramo do direito que cuida da teoria,
da legislação e da jurisprudência relativas às normas reguladoras da conduta
humana diante dos avanços da Biologia, da Biotecnologia e da Medicina
(BARRETTO, 2006, p, 101). Heloísa Helena Barboza ressalta que, apesar
de o Biodireito manter estreita relação com a Bioética, não se confunde com
a mesma, nem se limita a ser o seu correspondente jurídico, tendo em vista
que o Biodireito compreende o conjunto de fenômenos resultantes da Bio-
tecnologia e da Biomedicina, também estudados pela Bioética (BARRET-
TO, 2006, p, 101). A base principiológica desta área está assentada na Cons-
tituição da República, podendo-se afirmar que os princípios constitucionais
constituem os princípios do Biodireito (BARRETTO, 2006, p, 73).
O direito à vida é assegurado no art. 5º da Constituição da República de
1988 e afigura-se como o primeiro e o mais importante de todos os direitos
fundamentais do ser humano. Ives Gandra da Silva Martins acentua que o
direito à vida é o “primeiro dos direitos naturais que o direito positivo pode
simplesmente reconhecer, mas que não tem a condição de criar” (MAR-
TINS, 1999, p, 128). De igual modo, o art. 5º, caput, da Constituição da
República proclama a igualdade entre todos perante a lei, a partir da qual
decorre, segundo Alarcón (2004, p. 264), os seguintes enunciados:
224
O Estado Brasileiro, porquanto Estado Democrático, tem por finalidade
garantir o bem-estar da sociedade, estando ínsita a proteção à saúde pública
(MORAES, 2003, p. 1925), como decorrência do direito à vida e à existên-
cia de uma vida digna. O direito à saúde passou a ter status constitucional
com a promulgação da Carta Política de 1988, a qual estabelece em seu art.
196 que a saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante
políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de
outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua
promoção, proteção e recuperação. O art. 197 da Carta Política proclama
que as ações e serviços de saúde são de relevância pública e cabe ao Poder
Público dispor, nos termos da lei, sobre sua regulamentação, fiscalização e
controle, devendo sua execução ser feita diretamente ou através de tercei-
ros e, também, por pessoa física ou jurídica de direito privado.
Nesse sentido, salienta José Afonso da Silva (2005, p. 831) que
A saúde é concebida como direito de todos e dever do Estado, que a deve ga-
rantir mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de
doenças e outros agravos. O direito à saúde rege-se pelos princípios da univer-
salidade e da igualdade de acesso às ações e serviços que a promovem, prote-
gem e recuperam. As ações e serviços de saúde são de relevância pública, por
isso ficam inteiramente sujeitos à regulamentação, fiscalização e controle do
Poder Público, nos termos da lei, a quem cabe executá-los diretamente ou por
terceiros, pessoas físicas ou jurídicas de direito privado. Se a Constituição atri-
bui ao Poder Público o controle das ações e serviços de saúde significa que so-
bre tais ações e serviços tem ele integral poder de dominação, que é o sentido
do termo controle, mormente quando aparece ao lado da palavra fiscalização.
2. O conceito de Biossegurança
225
conceito era utilizado em acepção muito mais restrita do que a dos dias
atuais, conforme será visto alhures.
A partir dos anos 90, após o seminário realizado no Instituto Pasteur em
Paris, o termo biossegurança passou a ser relacionado a ética em pesquisa, ao
meio ambiente, a animais e processos envolvendo tecnologia de DNA re-
combinante, em programas de biossegurança (COSTA; COSTA, 2018). A
biossegurança passa, então, a ser concebida como o “conjunto de ações vol-
tadas para a prevenção, minimização ou eliminação de riscos inerentes às ati-
vidades de pesquisa, produção, ensino, desenvolvimento tecnológico e pres-
tação de serviços, visando a saúde do homem, dos animais, a preservação do
meio ambiente e a qualidade dos resultados” (TEIXEIRA, 1996). Desta for-
ma, o conceito de biossegurança evoluiu para englobar também os mecanis-
mos de prevenção dos riscos da biologia. Nesse sentido, a biossegurança en-
volve as relações de risco entre a tecnologia e o homem; entre o agente bio-
lógico e o homem; entre a tecnologia e a sociedade e entre a biodiversidade
e a economia (COSTA; COSTA, 2018).
Apesar da evolução citada, a Lei 11.105/2005, em seu art. 1º, autoriza a
formulação de um conceito de biossegurança ainda mais amplo, para com-
preender o conjunto de normas de segurança e mecanismos de fiscalização
sobre a construção, o cultivo, a produção, a manipulação, o transporte, a
transferência, a importação, a exportação, o armazenamento, a pesquisa, a
comercialização, o consumo, a liberação no meio ambiente e o descarte de
organismos geneticamente modificados e seus derivados, bem como sobre o
avanço científico das pesquisas biotecnológicas, com vistas à proteção da
vida e da saúde humana e do meio ambiente.
Segundo Costa, apesar da evolução do conceito de biossegurança, tecni-
camente, a biossegurança está mais voltada para saúde do trabalhador e pre-
venção de acidentes, de forma que prefere chamar o conteúdo da Lei
11.105/2005 como biossegurança legal (COSTA; COSTA, 2018).
Mesmo numa significação mais dilargada, para abranger questões atinen-
tes a organismos geneticamente modificados ou patógenos, radiações ioni-
zantes e não-ionizantes, substâncias citotóxicas ou mutagênicas que provo-
quem alterações capazes de gerar doenças ou mal-formações fetais (MAR-
TINS-COSTA; FERNANDES; GOLDIM, 2018), o termo biossegurança
também não guardaria relação com a pesquisa e utilização de células-tronco
embrionárias, as quais são igualmente regulamentadas pela Lei de Biossegu-
rança. No entanto, o presente trabalho enfrentará algumas questões afetas
ao tema questão, uma vez que se desenvolverá sob a ótica da denominada
biossegurança legal.
226
escopo estabelecer normas de segurança e mecanismos de fiscalização de
atividades que envolvessem organismos geneticamente modificados e seus
derivados, criar o Conselho Nacional de Biossegurança, reestruturar a Co-
missão Técnica Nacional de Biossegurança e dispor sobre a Política Nacional
de Biossegurança.
A Exposição de Motivos do Projeto de Lei nº 2.401/2003 consignou ex-
pressamente em seu bojo que o objetivo da Lei de Biossegurança era o de
estabelecer um novo marco legal para regular as atividades que envolvessem
organismos geneticamente modificados e seus derivados, desde a pesquisa
até sua comercialização, visando proteger a vida e a saúde humana, dos ani-
mais e das plantas, bem como o meio ambiente e eliminar os conflitos legais
então existentes entre a revogada Lei de Biossegurança – Lei nº 8.974/95,
de 05 de janeiro de 1995, a Medida Provisória nº 2.191-9, de 23 de agosto
de 2001 e a legislação ambiental.
Isto porque, à época, era proibido pela Lei nº 8.974/2005 o cultivo e co-
mercialização de organismos geneticamente modificados, os chamados ali-
mentos “transgênicos”, ante a ausência de mecanismos para se estabelecer
os riscos que tais organismos poderiam gerar para a vida e saúde humana,
assim como para os animais, plantas e meio ambiente.
No entanto, pelo menos desde o ano de 1998, o tema ganhou repercus-
são nacional, na imprensa escrita e falada, quando a Comissão Técnica Na-
cional de Biossegurança emitiu um parecer favorável à liberação do plantio
e comercialização de soja transgênica a serem realizados por empresa multi-
nacional no país, sem exigir a realização do estudo de impacto ambiental. A
autorização em questão motivou o Instituto Brasileiro de Defesa do Consu-
midor a ajuizar ação civil pública em face da União Federal e da aludida em-
presa para impedir a liberação da soja transgênica, sendo o pedido julgado
procedente.
Não obstante, contrariando a decisão judicial prolatada na aludida ação
civil pública, o então presidente Fernando Henrique Cardoso editou a Me-
dida Provisória nº 2.191-9, em 23 de agosto de 2001, a fim de possibilitar o
cultivo, a importação e a comercialização de transgênicos no país.
A discussão se reacendeu no ano de 2003, ao ser divulgado nos princi-
pais meios de comunicação que estavam sendo cultivadas no Brasil sementes
geneticamente modificadas, especialmente de grãos de soja no Rio Grande
do Sul, sendo estimado à época, pelos mesmos canais de comunicação, que
80% (oitenta por cento) de sua lavoura era composta de transgênicos. O nú-
mero expressivo se justifica pela proximidade com a fronteira da Argentina,
país em que são autorizados o cultivo e a comercialização de transgênicos e
de onde seriam contrabandeadas as sementes geneticamente modificadas.
No início de março de 2003, o Presidente Luiz Inácio Lula da Silva se
manifestou contrário à liberação da produção e consumo de alimentos trans-
gênicos, louvando-se no princípio da precaução e argumentando que não
existiam estudos suficientes para comprovar que o consumo de tais alimen-
tos seria inofensivo à saúde, nem garantias de que o plantio dos mesmos pu-
227
desse ser implementado de forma ecologicamente responsável e sustentá-
vel.
Contudo, em virtude das pressões políticas, principalmente dos planta-
dores de soja do País, poucos dias depois, em 26 de março de 2003, foi edi-
tada a Medida Provisória nº 113/2003 autorizando a comercialização da pro-
dução de soja transgênica da safra de 2003, sendo a mesma convertida na Lei
nº 10.688, de 13 de junho de 2003. A par da ilegalidade da produção de soja
transgênica após o período indicado na referida Lei, alguns produtores con-
tinuaram traficando e cultivando o grão geneticamente modificado e, mais
uma vez, foram beneficiados por nova autorização governamental para o co-
mércio do produto, já que foi editada a Medida Provisória nº 223/2004, de
14 de outubro de 2004, convertida na Lei nº 11.092, de 12 de janeiro de
2005, para liberar a comercialização da safra de 2004/2005.
Foi, então, neste contexto histórico político-legislativo que se deu a ela-
boração do Projeto de Lei nº 2.401/2003, que originou a atual Lei de Bios-
segurança, o qual, no seu nascedouro, não contemplava a pesquisa com célu-
las-tronco embrionárias.
A regulamentação de pesquisas com células-tronco embrionárias somen-
te foi introduzida no Projeto de Lei nº 2.401/2003, aproximadamente uma
semana antes de sua votação pela Câmara dos Deputados, por meio de subs-
titutivo de Aldo Rebelo. O então Deputado justificou que a apresentação do
substitutivo para contemplar a realização de pesquisas com células-tronco
embrionárias, se dava em razão dos reclamos da comunidade científica, visto
que as células-tronco embrionárias seriam detentoras de enorme potencial
terapêutico em doenças ainda resistentes a outras formas de tratamento e,
por conseguinte, não podia ser mantida na nova Lei de Biossegurança a proi-
bição de tais pesquisas existente na Lei nº 8.974/95.
A partir do substitutivo do Deputado Aldo Rebelo, o foco da atenção foi
deslocado das bancadas ruralistas e ambientalistas para as bancadas católicas
e evangélicas, bem como para manifestações de organizações não-governa-
mentais que questionavam a produção de seres humanos para experimenta-
ção e outras finalidades terapêuticas.
A visão panorâmica dos antecedentes históricos da Lei nº 11.105/2005
denota, portanto, que a mesma não guardava – originariamente – qualquer
pertinência com a questão da pesquisa científica com células-tronco em-
brionárias. Após essa pequena digressão sobre os antecedentes históricos da
Lei de Biossegurança, cumpre agora analisar o seu fundamento de validade e
seu conteúdo.
A Lei nº 11.105/2005 foi editada para regulamentar os incisos II, IV e V
do § 1º do art. 225 da Constituição da República, o qual dispõe que todos
têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso co-
mum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder
Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presen-
tes e futuras gerações. Com vistas ao asseguramento desse direito, a Carta
Política estabelece que incumbe ao Poder Público deveres de preservação,
228
fiscalização e controle. Contudo, o legislador ordinário reuniu, no mesmo
corpo legislativo, tal como numa “colcha de retalhos” (MARTINS-COSTA;
FERNANDES; GOLDIM, 2018) a regulamentação acerca da pesquisa e a
fiscalização dos organismos geneticamente modificados; a utilização de cé-
lulas-tronco embrionárias para fins de pesquisa e terapia; o papel, a estrutu-
ra, as competências e o poder da Comissão Técnica Nacional de Biossegu-
rança e a formação do Conselho Nacional de Biossegurança.
Martins-Costa, Fernandes e Goldim alertam para o fato de que o Capí-
tulo I da Lei, a pretexto de servir como sua parte introdutória, traz no art.
1º as pautas fundamentais quanto às normas de segurança à vida, à saúde hu-
mana, animal e vegetal e ao meio ambiente, fiscalização e utilização em geral
dos organismos geneticamente modificados, tanto para fins de pesquisa,
como para fins comerciais, apontando o princípio da precaução como prin-
cípio basilar a ser observado. Contudo, segundo os autores, “não cabe a Lei
aprisionar princípios em conceitos rigidamente traçados, sendo tarefa da ju-
risprudência e da doutrina formular, paulatinamente – e de acordo com a
experiência e a necessidade – o conteúdo dos modelos jurídicos (REALE)
cuja moldura (KELSEN) é traçada pelo legislador” (MARTINS-COSTA;
FERNANDES; GOLDIM, 2018).
O princípio da precaução, como asseveram Peralta e Botija (2008, p.
80), autoriza que a Autoridade Pública adote posições conservadoras e até
medidas excepcionais quando o risco envolvido não encontra-se plenamente
esclarecido pela ciência. A escolha do texto legal adotado gera uma “perigo-
sa combinação” entre o que rotula de uma ausência e um excesso, qual seja,
a falta de indicação de critérios de concretização do princípio da precaução
(art. 1º) combinada com o excessivo poder discricionário cometido à Co-
missão Técnica Nacional de Biossegurança (art. 14, de forma especial).
No que tange à regulamentação das pesquisas com a utilização de célu-
las-troncos (art. 5º) (MARTINS-COSTA; FERNANDES; GOLDIM,
2018), o legislador, sem qualquer critério científico, fixou o marco de 03
(três) anos após o congelamento para utilização dos embriões tido como “in-
viáveis”, sem esclarecer, todavia, o que entendia por “embriões inviáveis”,
mantendo nos dispositivos subsequentes as mesmas imprecisões jurídicas.
O parágrafo primeiro do art. 5º da Lei exige o consentimento dos genitores
como um dos requisitos para a realização da pesquisa científica com células-
tronco embrionárias, ingressando em um intrincado campo jurídico, que é o
de estabelecer se os embriões são “pessoas”, tendo, portanto, ascendentes,
pai e mãe. Para Martins-Costa, Fernandes e Goldim (2018), a imprecisão
legislativa “abre-se para complicadas questões práticas”:
229
A par de tais questões – aparentemente insolúveis no âmbito da legisla-
ção em vigor – os autores citados (MARTINS-COSTA; FERNANDES;
GOLDIM, 2018) ainda suscitam outras questões que dizem respeito à ga-
rantia da privacidade das pessoas que demandam técnicas de reprodução as-
sistida que, diante da importância do tema, convém trazer à colação:
230
Após exaustivo debate sobre o tema, inclusive com a manifestação pú-
blica de diversos segmentos, tanto sociais quanto religiosos, com argumen-
tos contra e a favor da autorização legal da realização de pesquisa científica
com a utilização de células-tronco embrionárias, a Corte Constitucional, por
maioria, entendeu, sem qualquer ressalva, pela constitucionalidade do dis-
positivo legal em testilha.
O relator, ministro Carlos Ayres Britto votou pela total improcedência
do pedido, fundamentando seu voto no direito constitucional à vida, à saú-
de, ao planejamento familiar e à pesquisa científica, bem como ressaltou o
espírito de sociedade fraternal preconizado pela Constituição Federal, ao
defender a utilização de células-tronco embrionárias na pesquisa para a cura
de doenças. O ministro Carlos Ayres Britto rotulou a Lei de Biossegurança
como um “perfeito” e “bem concatenado bloco normativo” e destacou que
para existir vida humana, é preciso que o embrião tenha sido implantado no
útero humano. O zigoto, segundo o ministro é a primeira fase do embrião
humano, a célula-ovo ou célula-mãe e, portanto, representa uma realidade
distinta da pessoa natural, porque ainda não tem cérebro formado. Britto se
louvou, ainda, nos dispositivos constitucionais que versam sobre o direito à
saúde (artigos 196 a 200) e na obrigatoriedade do Estado de garanti-la, de-
fendendo, assim a utilização de células-tronco embrionárias para o trata-
mento de doenças. Acompanharam o relator as ministras Ellen Gracie e
Carmen Lúcia, bem como os ministros Joaquim Barbosa, Cezar Peluso,
Marco Aurélio e Celso de Mello.
O julgamento histórico envolvendo a constitucionalidade da realização
de pesquisas cientificas com o uso de células-tronco embrionárias reafir-
mou, de forma contundente, o princípio da dignidade humana como o bali-
zador e limitador de todas as pesquisas científicas envolvendo células em-
brionárias.
Paulo Vinícius Sporleder de Souza (2004, p. 238) destaca que “a huma-
nidade está sendo chamada a administrar responsavelmente o presente e o
futuro da sua evolução, nos limites de seu saber e poder”, o que não pode ser
esquecido pelo progresso técnico-científico, tendo em vista que não só a na-
tureza pode ser manipulada, mas o próprio ser humano, impondo a fixação
de limites a tais intervenções, visando a proteção da dignidade humana.
Infere-se, portanto, que a dignidade humana é o principal vetor que vai
orientar e informar as pesquisas científicas, impondo limites à realização in-
discriminada das mesmas, tanto na esfera nacional quanto internacional,
como se verá a seguir.
Considerações Finais
231
pecialmente com a introdução das técnicas de reprodução humana assistida,
o mapeamento do genoma, o prolongamento da vida mediante transplantes,
as técnicas para alteração do sexo, a clonagem, a engenharia genética e de-
mais institutos correlatos. O Biodireito não possui uma base teórica sedi-
mentada como os demais ramos do Direito, visto que os fatos por ele regu-
lados são relativamente novos e permeados pelo ineditismo. Não obstante,
sua base principiológica está assentada na Constituição da República, o que
permite se afirmar que os princípios constitucionais constituem os princí-
pios do Biodireito e norteiam todas as suas regras. Embora o conceito de
biossegurança, em sentido estrito, não possua nenhuma pertinência com os
conceitos de Bioética e de Biodireito, visto que aquele se restringe aos riscos
ocupacionais, tal conceito foi dilargado pela Lei de Biossegurança brasileira,
pelo que se fez necessário o recurso à Bioética e ao Biodireito para contex-
tualização e melhor entendimento do tema apresentado neste trabalho.
A ampliação extremada do alcance da Lei de Biossegurança fez com que
a mesma se tornasse alvo de inúmeras críticas doutrinárias, não só porque
regulamentou diversos institutos que não guardam qualquer correlação en-
tre si, bem como porque é permeada de obscuridades e imperfeições técni-
cas. Sem embargo da legislação brasileira, de uma maneira geral, não ser pa-
radigma em técnica jurídica, um dos fatores preponderantes para que a Lei
de Biossegurança fosse rotulada pela doutrina de “colcha de retalhos” re-
monta ao seu nascedouro, como explicitado por ocasião da análise dos ante-
cedentes históricos da Lei.
A constitucionalidade da pesquisa com células-tronco embrionárias, re-
gulamentada pelo art. 5º da Lei de Biossegurança, foi submetida ao crivo do
Supremo Tribunal Federal por meio de Ação Direta de Inconstitucionalida-
de por suposta violação ao direito à vida e à dignidade da pessoa humana,
sendo que após exaustivo debate sobre o tema, a Corte Constitucional, por
maioria, entendeu, sem qualquer ressalva, pela constitucionalidade do dis-
positivo legal em testilha. Após um julgamento histórico, o Supremo enten-
deu que o direito constitucional à vida, à dignidade da pessoa humana, à saú-
de, ao planejamento familiar e à pesquisa científica seriam prestigiados atra-
vés da pesquisa com utilização de células-tronco embrionárias, por repre-
sentar a cura potencial para diversas doenças. A despeito de qualquer con-
trovérsia sobre o tema, no âmbito do próprio Supremo Tribunal Federal, foi
reafirmado, de forma contundente, que o princípio da dignidade humana é
baliza limitadora de todas as pesquisas científicas.
Referências bibliográficas
232
BARRETTO, Vicente de Paulo (Coord.). Dicionário de Filosofia do Direito. Rio de
Janeiro: Renovar, 2006.
BARRETTO, Vicente de Paulo. Bioética, Biodireito e direitos fundamentais. In:
TORRES, Ricardo Lobo (Org.). Teoria dos direitos fundamentais. Rio de Ja-
neiro: Renovar, 1999.
COSTA. M. A. F.; COSTA, M. F. B. Biossegurança: elo estratégico de SST. Dispo-
n í v e l e m : “http://www.fiocruz.br/biossegurancahospitalar/dados/mate-
rial10.htm”. Acesso em: 25 nov. 2009.
COSTA. M. A. F. Biossegurança: da prática a legal. Disponível em: “http://www.
safetyguide.com.br/artigos/biosseg.htm”. Acesso em: 25 nov. 2009.
MARTINS-COSTA J., FERNANDES, M., GOLDIM, J.R. Lei de Biossegurança —
medusa legislativa? Disponível em: “http://www.ufrgs.br/bioetica/ibios-
seg.htm”. Acesso em: 25 nov. 2009, [ 2].
MARTINS, Ives Gandra da Silva. O Direito Constitucional comparado e a inviola-
bilidade da vida humana. In: BRANDÃO, Dernival da Silva et al. (Org). A vida
dos direitos humanos. Bioética médica e jurídica. Porto Alegre: Sérgio Antônio
Fabris, 1999.
MORAES, Alexandre de. Constituição do Brasil interpretada e legislação constitu-
cional. São Paulo: Atlas, 2003.
PERALTA, Pedro Diaz. Contribuciones, desde una perspectiva europea, al articulo
“As relações da Biologia com o Direito e seus dois maiores desdobramentos: o
Biodireito e a Biopirateria”. Revista Interdisciplinar do Direito — Faculdade
de Direito de Valença. Valença, v 14. jan./jun. 2017.
PERALTA, Pedro Diaz; BOTIJA, Fernando González. Medidas cautelares y provi-
sionales previstas en la legislación y su aplicación en el campo de la seguridad
alimentaria. Cuadernos de Derecho Agrario, Madrid, v. 5, 2008.
SILVA. José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 25ª ed. São Pau-
lo: Malheiros. 2005.
GOLDIM, J.R. Conferência de Asilomar. Disponível em: “http://www.ufrgs.br/
HCPA/gppg/asilomar.htm”. Acesso em: 23 nov. 2009.
SOUZA, Paulo Vinícius Sporleder de. Bem jurídico penal e engenharia genética
humana: contribucto para a compreensão dos bens jurídicos supra-individuais.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004.
TEIXEIRA, P.; Valle, S. Biossegurança: uma abordagem multidisciplinar. Rio de Ja-
neiro: Fiocruz, 1996.
233
Servidores públicos civis e reformas
previdenciárias: um caso privilegiado de
constituição dirigente invertida
ABSTRACT: the social security reforms clash with the social security
rights of civil servants by giving priority to the financing of public debt, es-
tablishing a true state of permanent financial exception that has been lasting
from 1996 to the present day, thereby shaping the supremacy and shielding
of the Financial Constitution over the Economic Constitution and Social
Constitution, witgh na attendant social setback.
INTRODUÇÃO
235
O estudo dessa trajetória, que envolve direitos sociais garantidos na
constituição originária e paulatinamente degenerados, se fez pautado na
constituição federal, emendas constitucionais e em artigos doutrinários que
dão suporte a uma possível hipótese: a constituição dirigente brasileira tor-
nou-se uma constituição dirigente invertida.
A constituição de 1988 privilegiava valores sociais, especialmente sob a
influência de ideais humanistas, como a Declaração Universal dos Direitos
do Homem, buscando estabelecer o Welfare State. Entretanto, na trajetória
de vinte e nove anos de vigência, ideias neoliberais foram ganhando espaço e
sendo blindadas. O apelo da não intervenção do estado no mercado de capi-
tal e o incentivo de financiamentos públicos em projetos de capital privado
se tornou uma realidade.
Medidas para reduzir o financiamento público, nas ações que promovem
garantias sociais, transformaram-se em emendas constitucionais. Alterações
nas regras de aposentadoria, pensão, contribuição previdenciária e tempo de
serviço degeneraram direitos antes defendidos e até comprometidos em
programas de governo.
O país, inserindo-se num mundo globalizante e ainda como membro de
organismos internacionais como o Fundo Monetário Internacional – FMI e a
Organização Mundial do Comércio – OMC, sujeitou-se à preponderância
dos poderes econômicos nos moldes do mercado de capital.
A escolha originária por uma constituição dirigente, que determina me-
tas e programas a serem alcançados para a promoção o bem-estar social, fun-
dada especialmente em valores individuais e coletivos (erradicação da po-
breza, redução das desigualdades regionais, valorização do trabalho), foi se
transformando numa constituição financeira, orientada pela ordem interna-
cional capitalista e macroeconômica, na prevalência do mercado de capital
privado e do comércio internacional. Houve uma inversão de metas e pro-
gramas. O sistema financeiro como instrumento para o alcance dos objetivos
fundamentais sociais da constituição tornou-se fim e a redução de direitos
sociais meio.
1 De acordo com Noberto Bobbio e outros, nação é um dos termos de valor semân-
tico dificíl e incerto para se conceituar. Pode ser entendida como o fundamento natural
do poder político numa união necessária entre nação e estado. Não é mais um termo
vago a ser atribuído à simples ideia de grupo (povo com língua, costumes e valores co-
236
O poder constituinte originário possui características próprias: poder
inicial, ilimitado, incondicionado, indivisível e permanente.
O Brasil após o fim do regime militar e início de uma democracia com
alicerces em direitos fundamentais e sociais da pessoa humana, escolheu um
sistema jurídico tendo a constituição como norma fundamental, da qual ir-
radia princípios e fundamentos de validade para o ordenamento jurídico a
ela subordinado.
237
Atualmente, fala-se em crise do constitucionalismo dirigente. Esta crise está
ligada a diversos fatores, como a globalização econômica, que diminui o poder
real dos Estados-nacionais de implementarem os projetos consagrados nas suas
constituições; a emergência de ordens jurídicas internacionais e regionais dis-
putando espaço com o constitucionalismo estatal; os problemas econômicos e
políticos enfrentados pelo Welfare State. (NETO e SARMENTO, 2017, p. 62-
63)
238
A aposentadoria se daria por tempo de prestação de serviço público e de
contribuição, fixando idade apenas para os casos de aposentadoria compul-
sória.
Estava também determinada à aposentadoria e às pensões a garantia do
recebimento integral da remuneração, sem desconto previdenciário, bem
como a paridade dos benefícios e vantagens recebidas pelos servidores da
ativa.
A administração dos recursos recebidos a título de contribuição previ-
denciária, de caráter contributivo e solidário, e pagamentos desses benefí-
cios está a cargo do Regime Próprio de Previdência Social – RPPS5, sob ges-
tão da Secretaria de Previdência do Ministério Fazenda.
O tempo não para, traz mudanças e a sociedade demanda inúmeras ne-
cessidades que nem sempre estão abarcadas no texto constitucional originá-
rio ou, quando estão, precisam ser ajustadas. Então reformas à CF começam
a surgir na trajetória de 1988 até os dias atuais.
239
2. Emendas Constitucionais
240
A EC 20/1998 ao vincular idade e tempo de contribuição aumentou efe-
tivamente o tempo para a aposentadoria. Antes bastavam 35 anos de contri-
buição, se homem, e 30 anos de contribuição, se mulher, com a possibilida-
de de aposentaria proporcional ao tempo de contribuição, 30 anos, se ho-
mem, e 25 anos, se mulher.
A mudança passa a exigir requisitos de idade e tempo de contribuição,
cumulativamente: 35 anos de contribuição e idade de 60 anos, se homem, e
30 anos de contribuição e 55 anos, se mulher. Em situação prática, um ho-
mem e uma mulher que ingressassem no serviço público com 18 anos, pode-
riam entrar na inatividade com 53 e 48 anos, respectivamente. Após a EC 20
trabalhariam mais 7 anos para a fruição desse direito.
241
O §3º do art. 40 ainda mantém a integralidade dos proventos calculados
na remuneração do servidor em que se desse a aposentadoria.
A aposentadoria proporcional de 30 anos de contribuição para homens e
25 anos de contribuição para mulheres deixa de existir.
A mensagem do Poder Executivo nº 306, de 1995, que expõe os moti-
vos da reforma constitucional, originou a Proposta de Emenda Constitucio-
nal – PEC nº 21, de 1995; posteriormente devido ao seu desmembramento
em outras quatro PEC’s, foi considerada prejudicada, dando sequência na
tramitação da matéria a PEC nº 33, de 1995, que se transformou na EC
20/1998.
Nos termos da citada exposição de motivos7, a alegação da reforma
constitucional se deu basicamente em resposta a um “déficit previdenciá-
rio”, com a justificativa de que o arrecadado não era suficiente para fazer
face às despesas com aposentadorias, pensões e riscos de doença, mesmo
quando resultantes de acidente do trabalho. Nota-se ainda que o governo as-
sume problemas relacionados a índices de evasão e sonegação, na concessão
e manutenção de benefícios fraudulentos e nos altos custos administrativos
de previdência social.
Alerta-se aqui para o fato de que os servidores públicos têm o regime
previdenciário próprio denominado Regime Próprio de Previdência Social
(RPPS)8, nos termos das normas previstas no art. 40 da Constituição Fede-
242
ral e na Lei nº 9.717/98, além de terem suas políticas elaboradas e executa-
das pela Secretaria de Previdência do Ministério da Fazenda.
A exposição de motivos ratifica a importância da unificação dos regimes
previdenciários especiais9. A intenção desde aquela época era a unificação
dos regimes previdenciários com um valor máximo de aposentadoria (teto).
243
podendo aderirem a regime de previdência complementar, caso sejam insti-
tuídos (art. 40, §§14, 15 e 16).
Os proventos de aposentadoria não terão como referência a última re-
muneração percebida na atividade, tanto para os futuros servidores públicos
quanto para os que ainda estão na ativa, ou seja, fim da paridade. Os proven-
tos terão como base de cálculo a média de todas as remunerações utilizadas
para fins das respectivas contribuições durante toda a vida laboral (art. 40,
§§3º e 8º).
Todos os servidores públicos, inativos e pensionistas contribuirão de for-
ma permanente para o sistema previdenciário. (art. 40, §18).
Aqueles servidores públicos que alcançaram o direito de fruição da apo-
sentadoria poderão ser beneficiados com ausência da contribuição, a título
de abono de permanência, caso continuem na atividade (art. 2° da EC
41/2003).
A paridade entre as remunerações dos servidores da ativa e as aposenta-
dorias e pensões deixa de existir. Haverá apenas reajustes para preservar o
seu valor real, nos termos de critérios a serem estabelecidos em lei. Somen-
te aqueles que tenham cumprido todos os requisitos legais para aposentado-
ria antes da promulgação dessa emenda, aposentados ou ainda por opção na
ativa, terão direito à regra de paridade (art. 40, §19).
O valor das pensões deixa de ser integral e passa a ter limite imediato de
70% (setenta por cento) dos proventos do servidor, podendo ainda ser redu-
zido mediante lei ordinária (art. 40, §7º, I e II, da CF/1988).
A exposição de motivos, semelhante à da EC 20/1998, segue na linha
dos mesmos argumentos: “déficit previdenciário”, necessidade de unifica-
ção dos regimes previdenciários, acrescentando a questão da longevidade
dos servidores e trabalhadores12.
244
Ressalta-se que a partir dessa emenda o regime da integralidade e pari-
dade foi extinto. Os proventos passam a se dar sobre média de todas as
remunerações utilizadas como base de cálculo para as contribuições, garan-
tindo-se a atualização monetária para preservar o valor real da moeda.
245
No exemplo dado anteriormente, o mesmo homem e mulher que traba-
lhariam 7 anos a mais (para alcançar as idades de 60 e 55 anos), a partir dessa
EC 47 teriam a possibilidade de se aposentar um pouco mais cedo, cumprin-
do um pedágio de 4 anos (56 anos e 52 anos, respectivamente).
“Art. 40 ...
§4º É vedada a adoção de requisitos e critérios diferenciados para a concessão
de aposentadoria aos abrangidos pelo regime de que trata este artigo, ressalva-
dos, nos termos definidos em leis complementares, os casos de servidores:
I – portadores de deficiência;
II – que exerçam atividades de risco;
III – cujas atividades sejam exercidas sob condições especiais que prejudiquem
a saúde ou a integridade física.
...
§ 21 A contribuição prevista no § 18 deste artigo incidirá apenas sobre as par-
celas de proventos de aposentadoria e de pensão que superem o dobro do limite
máximo estabelecido para os benefícios do regime geral de previdência social
de que trata o art. 201 desta Constituição, quando o beneficiário, na forma da
lei, for portador de doença incapacitante.” (NR)
É importante observar que essa reforma trouxe situações ainda mais di-
fíceis para se aposentar, porque, ao exigir 15 anos na carreira e 5 anos no
cargo, gerou uma imobilidade para o servidor público, que diante de uma
boa oportunidade em nova carreira deverá sopesar a onerosidade do tempo
de trabalho a mais que deverá cumprir.
Art. 40 ...
§ 1º ...
II – compulsoriamente, com proventos proporcionais ao tempo de contribui-
ção, aos 70 (setenta) anos de idade, ou aos 75 (setenta e cinco) anos de idade,
na forma de lei complementar;
246
idade de 65 anos para homens e mulheres e 25 anos de contribuição, desde
que cumprido, no mínimo, dez anos de efetivo exercício no serviço público
e cinco anos no cargo em que ocorrerá a aposentadoria. Essa proposta reduz
o tempo de contribuição, indo de encontro com as justificativas governa-
mentais de “déficit orçamentário”, uma vez que o sistema previdenciário se
dá no binômio contribuição/retribuição.
Os proventos de aposentadoria e pensões serão pagos de forma escalo-
nada, começando por 51% podendo chegar aos 100% da média das
remunerações e dos salários utilizados como base de cálculo das contribui-
ções.
Veda o recebimento de mais de um benefício, ou seja, mais de uma apo-
sentadoria, mais de uma pensão por morte ou aposentadoria e pensão por
morte, salvo os casos de acumulação autorizados na CF.
Considerando que tal proposta ainda se encontra em tramitação, inicia-
da na Câmara dos Deputados, não se fará mais comentários.
Passa-se a uma análise da constituição dirigente frente a todas essas
alterações que degeneraram paulatinamente direitos sociais, em particular
dos servidores públicos sob razões majoritariamente de ordem financeira.
247
redistribuição de rendas. Mesmo porque há uma interface direta da socieda-
de e de seus interesses no constitucionalismo atual.
Ao lado da subconstituição política, em que se encontram os objetivos
fundamentais do desenvolvimento nacional, da erradicação da pobreza, da
redução das desigualdades sociais e do bem-estar social, assim como toda a
organização administrativa e política do estado, estão as subconstituições
econômica e financeira, as quais deveriam ser os instrumentos de concreti-
zação daqueles objetivos fundamentais.
Na trajetória do estado brasileiro de 1988 até os dias atuais, inúmeras
crises financeiras ocorreram e ainda estão presentes, em especial sob o argu-
mento de que para manter o estado do bem-estar social a intervenção na
economia se fazia necessária.
Teorias para superar a crise do estado do bem-estar social começaram a
surgir: algumas com ideias radicais, como o neoliberalismo, em defesa do es-
tado mínimo, e o de pós-modernidade, pautada numa sociedade de risco e
na desregulamentação, deslegalização e desestabilização de instituições15.
Tradicionalmente para resguardar direitos sociais e coletivos, leis de
emergência intervinham nas liberdades políticas e econômicas. “Hoje, dá-se
o contrário: a utilização atual dos poderes de emergência caracteriza-se por
limitar os direitos da população em geral para garantir a propriedade privada
e a acumulação capitalista)”. (BERCOVICI, 2006, p. 97)
O orçamento público, nos termos do art. 165 da CF, com o plano plu-
rianual, diretrizes orçamentárias e orçamentos anuais, estipula as diretrizes,
objetivos, metas e prioridades a serem cumpridas pela administração públi-
ca. O orçamento passa a ser matéria interdisciplinar envolvendo aspectos ju-
rídicos e econômicos.
A ideia primeira é a de aumentar as receitas, com maior peso nos tribu-
tos, para fazer face às despesas com prestações públicas, sobretudo em ques-
tões de incentivos fiscais, dos subsídios, da previdência social e da segurida-
de. Não sendo suficiente o alto percentual tributário, o país se endivida in-
terna e externamente, caindo numa malha de juros insuportáveis gerando
orçamentos deficitários16.
248
É importante salientar que o país faz parte do cenário mundial do co-
mércio. Como estado-membro de organizações internacionais, especial-
mente do FMI – Fundo Monetário Internacional e a OMC – Organização
Mundial do Comércio17, se sujeitando às convenções e acordos ali delibera-
dos, inclusive para se beneficiar com as concessões de empréstimos.
17 Na cidade de Bretton Woods, nos Estados Unidos da América, no ano de 1944, foi
instituído através de acordos entre 44 países, dentre eles o Brasil, o Fundo Monetário
Internacional (FMI) e o Banco Mundial (BM), de forma a criar mecanismo de integra-
ção e liberalização das relações de comércio internacional, estabelecendo paridades
cambiais no padrão outo-dólar. DAL RI, Arno Júnior. História do Direito Internacional:
comércio e Moeda, Cidadania e Nacionalidade. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2004,
p. 118-133.
249
garantem o desenvolvimento social. Ao contrário, retira direitos sociais para
adequar à má administração que dá causa a essas perdas tributárias e déficits
orçamentários.
... para garantir a atração dos investimentos privados, o Poder Público brasileiro
tem que estabilizar o valor real dos ativos das classes proprietárias. Ou seja, o
orçamento público deve estar voltado para a garantia do investimento privado,
para a garantia do capital privado, em detrimento dos direitos sociais e serviços
públicos voltados para a população mais desfavorecida. (BERCOVICI, 2006, p.
69)
CONCLUSÃO
250
formas redutoras de direitos sociais com o fim de garantir e atrair investi-
mentos privados, materializa evidente retrocesso social.
REFERÊNCIAS
251
Tombamento entre a eficácia legal e
as modificações que ocorrem no bem
INTRODUÇÃO
253
ceituar e distinguir as modalidades de tombamento de bens imóveis. Na se-
gunda parte, apontamos os problemas referentes ao que pode ser conceitua-
do como patrimônio histórico no caso do tombamento voluntário, destacan-
do qual o conteúdo da história que será objeto de lembrança. No terceiro
momento, cuida-se do tombamento compulsório de bens imateriais, tendo
como mote o patrimônio cultural afro-brasileiro, como os Terreiros que
atualmente são objeto de preservação patrimonial por parte do Estado Bra-
sileiro.
No âmbito da Municipalidade, nos termos do inciso IX do artigo 30 da
Constituição da República Federativa do Brasil, cumpre a promoção e a pro-
teção do patrimônio histórico-cultural local, observada a legislação e a ação
fiscalizadora federal e estadual.
Em razão da localização do bem objeto de tombamento, é o Município
quem realiza a verificação e a indicação de qual será objeto de tombamento,
ainda que seja de conteúdo imaterial, bem como recebe os pedidos de tom-
bamento voluntário nomeadamente de bens imóveis, móveis e imateriais,
não obstante que o IPHAN também o faça. Como consequência lógica, em
razão de ser o Município quem aprova todo e qualquer pedido de autoriza-
ção para construção civil, acaba por exercer a fiscalização da conservação dos
bens imóveis objeto de tombamento, em virtude do poder de não deferir a
autorização para construção, quando se tratar tombamento de bem imóvel.
Ainda que seja deferida a autorização para construção, demolição ou obras
de conservação depende da concordância do IPHAN, órgão responsável pela
conservação do patrimônio histórico.
O problema da pesquisa se resume em apertada síntese, em perquirir
qual o conteúdo da história que se pretende ver lembrada e em qual local a
história deve ser preservada no caso de tombamento de bem imóvel de for-
ma voluntária.
A justificativa para a reflexão acerca do tombamento se faz necessária
em razão do aumento da proteção do patrimônio imaterial constituído da
história cultura e arte do povo brasileiro. Embora seja recente a preocupação
de preservar estes bens de cunho imaterial, a história cultura e arte dos po-
vos de matriz africana no Brasil, são neste momento objeto de tombamento
em razão da Portaria nº 118/96 do IPHAN.
O tombamento de bem imóvel voluntário, por gerar um custo elevado
de manutenção e representar uma forma de intervenção na propriedade e a
restrição que sofre a propriedade da vizinhança em razão da limitação de uso
e fruição, provoca o engessamento do mercado imobiliário tendo por conse-
quência forte impacto no desenvolvimento urbano. A metodologia empre-
gada no trabalho é a pesquisa teórica, conceitual utilizando referências bi-
bliográficas de livros e artigos de periódicos publicados.
254
CONSIDERAÇÕES TEÓRICAS SOBRE O TOMBAMENTO
255
nunciada rigorosamente dentro dos prazos legais, sob pena de a omissão ou re-
tardamento transformar-se em abuso de poder (MEIRELLES, 1985, p. 3).
256
Alexandre Ferreira de Assumpção Alves (2008:67) destaca que as
restrições administrativas ao direito de propriedade não se direcionam ape-
nas ao imóvel tombado, mas podem atingir sua vizinhança, a fim de permitir
que o entorno não fique descaracterizado.
Em virtude dos efeitos provocados pelo tombamento de bens imóveis,
verifica-se o engessamento do mercado imobiliário, a limitação do direito de
propriedade em razão da preservação do imóvel tombado, a desvalorização
que implica em prejuízo ao proprietário, restringe o direito de propriedade
da vizinhança, e, por consequência gera o impacto no desenvolvimento da
malha urbana, alterando o desenho das cidades, com as limitações impostas
em razão do tombamento. Sob este enfoque, é forçoso reconhecer que o
prejuízo financeiro que experimenta a vizinhança de um imóvel tombado
em razão das limitações ao uso da propriedade.
Nos casos de tombamento de bens imóveis de propriedade do ente pú-
blico, preconiza o Decreto Lei nº 25/37 que o tombamento de bens públicos
deve ser de ofício nos termos do artigo 5º do referido Decreto Lei, mediante
simples notificação ao ente público que pertencer o imóvel. Caso seja tom-
bamento de documentos ou bens móveis que estejam sob a guarda do ente
público, o procedimento da notificação é o mesmo, e seus efeitos começam
a partir do momento em que o ente destinatário da notificação recebe a me-
dida.
Se faz necessário que o órgão técnico responsável se manifeste. O órgão
técnico que na esfera federal é o Instituto do Patrimônio Histórico e Ar-
tístico Nacional (IPHAN), instituído como autarquia pelo Decreto nº
99.492/90 com autorização inserida na Lei nº 8029/90. Neste Decreto, re-
cebeu a denominação de Instituto Brasileiro do Patrimônio Cultural (IBPC)
e após modificado para IPHAN. O Tombamento possui processo adminis-
trativo com rito próprio a ser seguido sob pena de nulidade.
257
Nos casos de tombamento voluntário ou compulsório, atinge como ob-
jeto o bem particular. De forma voluntária, o tombamento pode ser reque-
rido pelo proprietário ou por qualquer pessoa, desde que preenchido os re-
quisitos necessários. No caso do tombamento compulsório, é feito pelo ente
público contra a vontade do proprietário.
258
bastante genéricos e amplos, principalmente nos casos de tombamento vo-
luntário. Os requisitos que deverão ser observados referem-se ao procedi-
mento administrativo do tombamento e não ao conteúdo da história ou da
arte. Quando há por parte do ente público uma preocupação em conservar
determinado período histórico, são feitos levantamentos dos bens existen-
tes e encaminhados ao tombamento. No caso do tombamento voluntário,
que pode ser requerido pelo proprietário ou por qualquer pessoa, basta que
se apresente uma justificativa demonstrando de forma clara a razão do pedi-
do de conservação por meio do tombamento e a autoridade administrativa
poderá iniciar o procedimento, em razão de ser um ato de natureza discri-
cionária do ente público.
Assim, caso seja indicado um bem imóvel para tombamento de forma
voluntária e administrativa sem lograr êxito, resta ao cidadão o pedido judi-
cial. Assim, “qualquer cidadão tem o direito subjetivo (de caráter difuso) de
ver a coisa protegida, embora não seja o titular imediato desta universalida-
de, mas pode exigir a sua conservação e restauração pelos meios processuais
próprios, v.g., a ação popular (art. 1º, §1º, da Lei nº 4.717/65)” (ALVES,
2008, p. 83-84).
259
existentes nos centros históricos das cidades brasileiras. Importante obser-
var que o conteúdo do que seja o período histórico é bastante controvertido.
260
De acordo com Otair Fernandes e Luciane Barbosa (2016:03) o reco-
nhecimento do patrimônio cultural afro-brasileiro no âmbito da preservação
patrimonial por parte do Estado é algo recente no Brasil. Isso porque se por
um lado, a ampliação da noção de patrimônio operada conceitualmente me-
diante adoção da referência a natureza imaterial da cultura colocou no cen-
tro do debate questões relacionadas a pluralidade e diversidade cultural, o
que implica numa transformação teórica e metodológica no campo dos estu-
dos sobre patrimônio. Por outro lado, a luta histórica dos afro-brasileiros por
direitos e reconhecimentos também deve ser considerada, em particular o
protagonismo do movimento negro nacional mediante as suas várias formas
de organização na luta por reconhecimento, reparação e valorização da cul-
tura afro-brasileira, sobretudo, ao longo do processo de democratização do
país, desde os anos oitenta.
A Carta Magna de 1988 catalisa esse processo não apenas definindo o patrimô-
nio cultural brasileiro como os bens de natureza material e imaterial, tomados
individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação,
à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, como os
afro-brasileiros e indígenas, mas, sobretudo, determinando a participação des-
ses grupos, em parceria com o Estado, nas políticas de preservação do patrimô-
nio considerando a democratização do acesso aos bens de cultura e a valorização
da diversidade étnica e regional. (FERNANDES E BARBOSA, 2016, p. 3).
Art. 1º – Aprovar Ações para Preservação de Bens Culturais dos Povos e Comu-
nidades Tradicionais de Matriz Africana, disposto nos eixos de Identificação e
Reconhecimento, Formação e Capacitação, Apoio e Fomento e Valorização, na
forma do Anexo I, que assume compromisso junto aos Povos e Comunidades
Tradicionais de Matriz Africana pelo período de 04 anos.
261
A referida portaria é do ano de 2016 e se vigora por quatro anos, termi-
nará sua vigência no ano de 2020 e merece ser prorrogada por sua importân-
cia. A informação que será adquirida durante a vigência da Portaria em co-
mento, é de extrema importância tendo em vista o desconhecimento da cul-
tura de matriz africana por boa parte da sociedade brasileira.
A cultura de matriz africana representa uma riqueza contida na diversi-
dade cultural existente em todas as regiões brasileiras.
No anexo I da referida Portaria, constam as
262
A valorização da arte, cultura, e, a preservação da identidade e história
brasileira também influenciam o turismo nas cidades e provocam um envol-
vimento e participação maior da comunidade tanto durante o processo ante-
rior ao tombamento, na fase de tombamento provisório, quanto após o tom-
bamento de forma definitiva.
263
ção em seu preço, causando prejuízo financeiro principalmente ao proprie-
tário.
Da mesma forma sofre aquele que adquiriu o bem tombado a responsa-
bilidade da manutenção de um bem penalizado com a intervenção direta do
tombamento.
De certo que existe uma dificuldade na fiscalização do poder público no
que se refere a conservação do patrimônio histórico, em razão das constru-
ções realizadas no interior dos imóveis tombados, sem o devido requerimen-
to de autorização junto a Municipalidade, alterando substancialmente o
imóvel objeto de tombamento.
“Acresce que é de competência municipal a autorização de construções,
mediante aprovação das respectivas plantas; já têm ocorrido hipóteses em
que aprovada pela Prefeitura, vem depois a construção a ser impugnada pelo
IPHAN (cf. parecer in RDA 93:379)” (DI PIETRO, 2003, p.140).
É importante observar o disposto no § 2º do artigo 19 do Decreto Lei nº
25/37, que prevê a possibilidade do proprietário requerer o cancelamento
do tombamento, quando o poder público tem o ônus de executar as obras de
conservação do bem.
Merece destaque, o disposto no artigo 20 do Decreto Lei nº 25/37, em
razão de preconizar o citado artigo, a permanente vigilância sobre as coisas
tombadas, inspecionando-as sempre que julgar conveniente. No caso de mo-
radias tombadas, fiscalizar o interior da casa da família é sempre constrange-
dor.
No caso específico da moradia, a necessidade do morador vai alterando
com o tempo, e as obras de modificação também. Não despiciendo observar
que o imóvel residencial tombado pode ser vendido a outras pessoas, que
também acabam por realizar mudanças importantes na habitação sendo
muito difícil revelar quem fez a modificação e quando foi feita a intervenção
em que pese haver perícia técnica. No caso de tombamento apenas de facha-
da de moradia, é mais fácil perceber quando há obras de modificação. Neste
sentido, já há algumas Decisões Judiciais, que apontam no sentido que o
atual morador não pode ser responsabilizado pelas alterações promovidas
anteriormente.
De forma diferente ocorre nos casos de tombamento de bens imateriais
remanescentes da história e cultura onde não há um bem móvel. A história
e cultura e arte têm sido preservadas em grande parte por meio de Registro
em Livro Tombo e procedimento próprio e específico da competência do
IPHAN.
CONCLUSÃO
264
e bens móveis e também aqueles destituídos de cunho material, como são os
bens imateriais de caráter histórico, citados no curso do trabalho como os
Terreiros, de matriz africana existentes em nossas cidades.
De caráter bastante controvertido, o instituto do tombamento no que
tange aos bens imóveis, gera restrição ao direito de propriedade do proprie-
tário e também da vizinhança, não se mostrando como uma melhor solução
em termos de conservação de patrimônio histórico. Quanto aos bens mó-
veis, também não se revela o tombamento a melhor opção, em razão da di-
ficuldade de conservação do bem.
Por outro lado, é forçoso concluir que após o advento da Constituição da
República Federativa do Brasil, houve um aumento no conteúdo do que seja
patrimônio histórico cultural e artístico, bem como da história que se pre-
tende preservar.
No caso do tombamento voluntário, o conteúdo da história que se pre-
tende preservar é genérico e subjetivo. Com a criação da Portaria nº 188/06
do IPHAN, que determina a conservação de dos bens culturais dos povos de
matriz africana, emerge cristalina a democratização do acesso aos bens de
cultura e a valorização da diversidade cultural de cada região do País. Em li-
nhas conclusivas, vale dizer que o Tombamento não altera a propriedade de
um bem; apenas proíbe que ele venha a ser destruído ou descaracterizado.
Logo, um bem tombado não necessita ser desapropriado, mas deve manter
as características que possuía na data do tombamento.
Não se pode olvidar que o tombamento é uma das iniciativas possíveis
de serem tomadas não sendo a única forma de preservação dos bens cultu-
rais/ambientais, na medida em que impede legalmente a sua destruição e
descaracterização. É necessário deixar claro que aquele que ameaçar ou des-
truir um bem tombado está sujeito a processo legal que poderá definir mul-
tas, medidas compensatórias ou até mesmo a reconstrução do bem como es-
tava na data do tombamento dependendo do veredicto final do processo.
A Constituição Federal no Artigo 216, estabelece que é função da
União, do Estado e dos Municípios, com o apoio da comunidade, preservar
os bens culturais e naturais brasileiros, dando especial atenção aos sítios ar-
queológicos. A notificação do achado de um sítio arqueológico ou qualquer
projeta de intervenção em áreas de sítios arqueológicos devem ser comuni-
cadas ao IPHAN.
REFERÊNCIAS:
265
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo, São Paulo, Atlas, 2003,
16º ed.
FERNANDES, O. e BARBOSA, L. Patrimônio Cultural Imaterial dos Afro-Brasi-
leiros na Baixada Fluminense: contradições e possibilidades. In: Entre o Local
e o Global, nº XVII, Nova Iguaçu, Anais Nova Iguaçu: Anpuh, 2016, p. 1-9.
MEIRELLES, Hely Lopes. Tombamento e Indenização. Revista de Direito Admi-
nistrativo, Rio de Janeiro, v. 161, p. 1-6, jul./set. 1985.
NADER, Paulo Introdução ao Estudo do Direito, Rio de Janeiro: Forense, 1998,
16ª ed.
Jurisp. Mineira, Belo Horizonte, a. 58, nº 181, p. 49-418, abr./jun. 2007.
PAOLI, Maria Célia. Memória, história e cidadania: o direito ao passado. In. O di-
reito à memória: patrimônio histórico e cidadania. São Paulo: DPH, 1992, p.
25-28.
PELEGRINI, Sandra C. A. O patrimônio cultural e a materialização das memórias
individuais e coletivas. Patrimônio e Memória. São Paulo, v. 3, n. 1, p.87-100,
maio, 2007.
RIBEIRO, Cláudio Rezende; SIMÃO, Maria Cristina Rocha. Relações e contradi-
ções: direito à cidade e patrimônio urbano. In: III Encontro da Associação Na-
cional de Pesquisa e Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo arquitetura,
cidade e projeto: uma construção coletiva São Paulo, 2014, p.1-12.
RODRIGUES, Francisco Luciano Lima. Breve estudo sobre a natureza jurídica do
tombamento, 32 Pensar, Fortaleza, v. 8, n. 8, p. 32-38, fev. 2003.
TOMASEVICIUS FILHO, Eduardo. O tombamento no Direito Administrativo e
Internacional. Revista de Informação Legislativa. Brasília v. 41, n. 163, p. 231-
248, jul./set. 2004.
266
Uma análise lógica da Lei Anticorrupção
frente à Lei de Improbidade Administrativa
Abstract: This essay analyzed to the anticorruption law and the admin-
istrative improbity by a logical analysis of Lourival Villanova involving the
language resources for the public punitive law. This research begins from
the idea that could or not happen legal repetition, it means, bis-in-idem on
the both laws who treats public punitive law. The methodology involved the
bibliographic sources and the doctrine to verify the hypotheses the results
show us juridical difficulties on the application of both laws, mainly when
its refers to the plea bargaining.
267
argumentam que Lei não passa de mais um documento normativo que pou-
co inova no sistema jurídico.
Grande parte deste incômodo vem da confusão gerada quando pensada
na aplicação de seus dispositivos paralelamente à aplicação da Lei de Impro-
bidade Administrativa, Lei nº 8.429/92.
É inegável que a existência contemporânea dos dois diplomas normati-
vos criou uma massa cinzenta recheada de dúvidas em relação à incidência e
campo de atuação do poder preventivo-punitivo de cada um.
Não é para menos. Afinal, as condutas tipificadas por cada um destes do-
cumentos guardam incrível similaridade entre si. É o caso de como, por
exemplo, aquela estipulada pelo art. 5º, I da Lei nº 12.846, que prevê a san-
ção à pessoa jurídica que “prometer, oferecer ou dar, direta ou indiretamen-
te, vantagem indevida a agente público, ou a terceira pessoa a ele relaciona-
da;”, que mantém características muito parecidas aos incisos elencados pelo
art. 9º da Lei de Improbidade Administrativa – referentes aos atos de im-
probidade que importam em enriquecimento ilícito.
Diante deste cenário, tem surgido discussões, desde as bancas de con-
gressos relativos a temas de direito administrativo até as páginas da doutrina
especializada1, sobre se seriam perfeitamente aplicáveis ou não ambos os
textos normativos, se teriam havido algum tipo de derrogação da Lei mais
antiga ou se a vigência simultânea resultaria em situações que tocassem em
algum tipo de reflexão sobre a proibição do “bis in idem”.
De forma dissonante ao que pode parecer e com reconhecida ousadia
que, mais do que criticável, deve ser encorajada para o bom desenvolvimen-
to da Academia, não se acredita que tal debate de importe em enorme tor-
tuosidade, nebulosidade e necessite de profunda meditação pelos estudio-
sos e aplicadores do Direito em questões de alta abstração.
Pautar-se-á a discussão sobre critérios meramente lógicos, sem que tal
adjetivo possa soar pejorativo, no sentido de que a visão sobre a estrutura
das normas que compõe os diplomas e a relação por eles tratada é elemento
suficiente para chegar-se a uma conclusão que, se não definitiva, constitui
enorme fonte de solução de dúvidas e problemas que a muitos servem de
angústia.
Para clarificar a exposição do tema, e a absorção de nossas ideias para
quem as lê, pautaremos, sempre que necessário, a comparação das duas con-
dutas sobre as características da conduta conhecida comumente como cor-
rupção, de modo que o art. 5º, I da Lei Anticorrupção2 e o art. 9º, “caput”3
1 José Roberto Pimenta Oliveira afirmou seu entendimento de que as pessoas jurídi-
cas podem ser sancionadas pela Lei de Improbidade Administrativa ao comentar o art.
2º da Lei Anticorrupção em obra coordenada por Maria Sylvia Zanella Di Pietro e Thia-
go Marrara (OLIVEIRA in DI PIETRO; MARRARA. 2017, p. 24).
2 Art. 5º Constituem atos lesivos à administração pública, nacional ou estrangeira,
para os fins desta Lei, todos aqueles praticados pelas pessoas jurídicas mencionadas no
parágrafo único do art. 1o, que atentem contra o patrimônio público nacional ou estran-
268
e incisos assumem papel primordial sem, no entanto, descaracterizar a con-
clusão relativa aos diplomas em suas respectivas amplitudes.
A compreensão deste fenômeno é essencial para solucionar uma impor-
tante discussão levantada ao fim deste trabalho, que, acredita-se, ser de
grande importância no cenário após a entrada em vigor da Lei Anticorrup-
ção: Se a celebração do Acordo de Leniência seria uma produção de provas
do colaborador contra si mesmo, visto haver ali a exposição de fatos que ba-
seariam o ajuizamento de uma Ação de Improbidade Administrativa. Esta,
por sua vez, tendo como sustentáculo fático o mesmo ato de corrupção e
como polo passivo o mesmo sujeito presente no acordo celebrado.
(...) suprir uma lacuna existente no sistema jurídico pátrio no que tange à res-
ponsabilização de pessoas jurídicas pela prática de atos ilícitos contra a Admi-
nistração Pública, em especial por atos de corrupção e fraude em licitações e
contratos administrativos.
269
Conforme claramente pode se verificar, reconhecia-se neste momento
que a legislação não respondia de forma suficiente aos atos ilícitos contrários
à Administração Pública – dentre eles, os de corrupção – praticados por Pes-
soas Jurídicas.
Embora condutas tipificadas pela nova Lei daquele momento já tives-
sem anteriormente sido estabelecidas – a exemplo das sanções existentes da
Lei Geral de Licitações – fato é que, até aquele momento, nenhum diploma
tinha se preocupado em estabelecer procedimentos expressos para buscar a
responsabilização objetiva das Pessoas Jurídicas de forma tão concisa e deta-
lhada quanto ao diploma Anticorrupção5.
Neste cenário, a Lei de Improbidade Administrativa assumia caráter de
enorme protagonismo, utilizada por órgãos de controle, sobretudo o Minis-
tério Público, como base para o ajuizamento de Ação responsável por sancio-
nar os agentes causadores do dano. Mais especificamente, vale afirmar, a
Ação de Improbidade Administrativa.
No entanto, para que a Ação de Improbidade Administrativa fosse o cor-
reto diploma para tal responsabilização buscada, deveria estar a Lei daquele
momento redigida a fim de poder incidir e realizar efeitos sobre aquela per-
sonalidade fictícia.
Os agentes ímprobos que não são agentes públicos e que podem sofrer
os efeitos da Lei nº 8.429/92 são, até hoje, aqueles previstos do art. 3º dessa.
Tal a letra da Lei:
Art. 3° As disposições desta lei são aplicáveis, no que couber, àquele que, mes-
mo não sendo agente público, induza ou concorra para a prática do ato de im-
probidade ou dele se beneficie sob qualquer forma direta ou indireta.
270
De fato, pela própria natureza conotativa de tais verbos, passa-se a inter-
pretar o ato de improbidade administrativa no sentido de que este, por si só,
deva possuir em sua base estrutural a presença do dolo do agente envolvido.
É assim em relação ao agente público, pessoa física, e assim deve ser em re-
lação ao particular que com ele atue.
Desse modo, todas as condutas elencadas em incisos dos artigos 9º, 10 e
11 da Lei7 haveriam de ser condutas necessariamente dolosas, abrindo-se
aqui uma pequena ressalva às condutas especificamente do artigo 10 – rela-
tivo aos atos que importem danos ao Erário – por ter decidido a própria Lei,
explicitamente, em admitir a conduta culposa8.
Fica então a dúvida: se a conduta que será vista como ato ímprobo im-
porta em elemento volitivo, como pode então uma pessoa jurídica, despro-
vida de dolo ou culpa por sua própria natureza fictícia, ser vista como agente
ímprobo?
Aqueles que defendem a possibilidade valem-se da Teoria da Realidade
Técnica9, de forma a atribuir às pessoas jurídicas, forçadamente, um âmbito
de intenção de agir que não se confundiria com a intenção daquelas pessoas
naturais que dela se utilizam.
Tal interpretação, extensiva e, portanto, não permitida no âmbito do Di-
reito Administrativo Sancionador, divide ainda espaço com outra interpre-
tação insistente em atribuir às pessoas jurídicas a responsabilidade pelos atos
elencados: aquela que as posiciona na figura do “beneficiado” mencionado
no art. 3º10.
Tais hipóteses são minimamente, insistimos, forçadas e não há porque
adotá-las. O ato ímprobo só é ato ímprobo quando ocorre a incidência da
conduta realizada no mundo dos fatos sociais sobre a hipótese do mundo das
normas.
A norma jurídica é composta de um antecedente – uma hipótese que re-
corta fatos do mundo social, sem poder abrangê-lo como um todo – e um
consequente – uma relação modalizada, podendo apresentar-se como obri-
7 Não julgamos apropriado tratarmos aqui da conduta tratada pelo art. 10-A, incluí-
do na Lei de Improbidade Administrativa por força da Lei Complementar nº 157 de
2016, por acreditarmos que fugiria do restante do tema aqui trabalhado.
8 Art. 5° Ocorrendo lesão ao patrimônio público por ação ou omissão, dolosa ou cul-
posa, do agente ou de terceiro, dar-se-á o integral ressarcimento do dano.
9 “De notar-se que, a partir da teoria da realidade técnica, confere-se às pessoas jurí-
dicas a capacidade de aquisição e exercícios de direitos, capacidade para a prática de
atos e negócios jurídicos, enfim. Pode-se afirmar, de todo modo, que possuem elas uma
vontade distinta da vontade de seus integrantes(...)” (GARCIA, Emerson; PACHECO
ALVES, Rogério. 2014, p. 928).
10 “Também as pessoas jurídicas poderão figurar como terceiros na prática dos atos de
improbidade, o que será normalmente verificado com a incorporação ao seu patrimônio
dos bens públicos desviados pelo ímprobo” (Idem. p. 368).
271
gatória, proibida ou permitida, e que se estabelece quando confirmada a hi-
pótese do antecedente.
Além disso, a norma jurídica, por ser um dever-ser imposto pelo legisla-
dor, é composta ainda por um functor-de-functor – representado pela variá-
vel D – e um conector , responsável por modalizar a conduta em uma das
três formas pelas quais, ontologicamente, deve se apresentar (comando per-
mitido, proibido ou obrigatório)11.
Reduzindo complexidades, observamos a seguinte estrutura lógica: D
[H C].
Especificamente em relação ao consequente, este vem a estabelecer
uma relação jurídica entre dois sujeitos, necessariamente, distintos: S’ R S’’.
É o que se convencionou denominar como caráter irreflexivo do Direito, pe-
rante o qual a norma jurídica nunca poderá estabelecer uma relação entre o
sujeito consigo mesmo. Caso assim ocorra, opera-se o instituto da confusão,
responsável por extinguir relações jurídicas12.
Primeiramente, a relação estabelecida se consubstancia em um dever de
conduta imposto pelo sistema – essa é o que se chama de norma primária –
cujo descumprimento corresponde a uma nova hipótese que, por sua vez,
estabelecerá uma nova relação entre um sujeito da norma primária detentor
de direito subjetivo e o Estado-juiz, responsável por forçar o sujeito que des-
cumpriu o seu dever de prestação a cumprir com o mesmo – essa é a norma
secundária.
A junção da norma primária e secundária constitui-se na estrutura com-
pleta da norma jurídica, que afirma que em caso de descumprimento da
conduta consequente da norma primária, cumprida estará a hipótese da nor-
ma secundária e, portanto, sua respectiva consequência, responsável por es-
tabelecer uma nova relação que abarcará, desta vez, o Estado-juiz: D {(H’
S’ R’ S’’) v [-(S’ R S’’) S’ R’’ S’’’]}
Ocorrendo então uma conduta típica de corrupção, como o oferecimen-
to de vantagem a agente público, ainda assim não é sustentáculo o suficiente
para afirmar que pratica a empresa um ato ímprobo. Pode até ser algum ato
tipificado em Lei, mas ímprobo, conforme tratado pelos termos da Lei nº
8.429/92, não é.
Isso porque a conduta exigida pela norma primária ali existente – neste
caso o de agir de forma proba perante a Administração Pública – e gerar a
relação jurídica prevista pela Lei de Improbidade Administrativa, estabele-
272
ceu relação (R) entre o Estado-Administração (S’) e o agente público ou o
agente privado que com aquele atuou (S’’).
Consequentemente, em caso de descumprimento deste dever de con-
duta, será a força sancionadora do Estado-juiz (S’’’) destinada a sancionar
este mesmo sujeito da relação primária (S’’).
A pessoa jurídica pode, por sua vez, vir a compor relação conexa, mas
que com aquela não se confunde. Pode a pessoa jurídica sim, ser utilizada
pelo agente privado para fins de ato de improbidade, mas não se confere em
sujeito na relação estabelecida, nem mesmo como beneficiado13. Prova dis-
so, é a redação dos incisos do art. 12 da Lei responsável, que ao elencar as
sanções em seus princípios, é expressa ao afirmar que sofrem as sanções
aqueles terceiros, mesmo beneficiados, “ainda que por intermédio da pessoa
jurídica da qual seja sócio majoritário...).”14
O que ocorre, neste caso, é uma relação anterior entre um sócio, por
exemplo, e uma entidade que goza de personalidade jurídica – como uma
sociedade empresária que, no momento da prática do ato ímprobo, é utiliza-
13 Mesmo dentre aqueles que considerem a pessoa jurídica como beneficiada da rela-
ção, admitem que a sanção sobre ela não é o mecanismo adequado aos termos da Lei.
Neste sentido, Waldo Fazzio Junior afirma que: “Para alcançar os verdadeiros beneficiá-
rios (sócios) de ato de improbidade que formalmente favorece pessoas jurídicas (cuja
existência e patrimônio são distintos dos sócios e de seu cabedal), o instrumento legal
indicado é a desconsideração da personalidade jurídica.” (Op. cit; p. 69).
14 Art. 12. Independentemente das sanções penais, civis e administrativas previstas
na legislação específica, está o responsável pelo ato de improbidade sujeito às seguintes
cominações, que podem ser aplicadas isolada ou cumulativamente, de acordo com a
gravidade do fato: (Redação dada pela Lei nº 12.120, de 2009).
I – na hipótese do art. 9°, perda dos bens ou valores acrescidos ilicitamente ao
patrimônio, ressarcimento integral do dano, quando houver, perda da função pública,
suspensão dos direitos políticos de oito a dez anos, pagamento de multa civil de até três
vezes o valor do acréscimo patrimonial e proibição de contratar com o Poder Público ou
receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios, direta ou indiretamente, ainda
que por intermédio de pessoa jurídica da qual seja sócio majoritário, pelo prazo de dez
anos;
II – na hipótese do art. 10, ressarcimento integral do dano, perda dos bens ou valo-
res acrescidos ilicitamente ao patrimônio, se concorrer esta circunstância, perda da fun-
ção pública, suspensão dos direitos políticos de cinco a oito anos, pagamento de multa
civil de até duas vezes o valor do dano e proibição de contratar com o Poder Público ou
receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios, direta ou indiretamente, ainda
que por intermédio de pessoa jurídica da qual seja sócio majoritário, pelo prazo de cinco
anos;
III – na hipótese do art. 11, ressarcimento integral do dano, se houver, perda da
função pública, suspensão dos direitos políticos de três a cinco anos, pagamento de mul-
ta civil de até cem vezes o valor da remuneração percebida pelo agente e proibição de
contratar com o Poder Público ou receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios,
direta ou indiretamente, ainda que por intermédio de pessoa jurídica da qual seja sócio
majoritário, pelo prazo de três anos.
273
da como “ferramenta”. Essa relação anterior, no entanto, não é suficiente
para deslegitimar o que vem sendo até agora apresentado.
O sistema jurídico, vale dizer, é composto das mais variadas relações ir-
reflexivas, anteriores ou não à hipótese de determinada norma jurídica, for-
mando uma teia de tão altíssima complexidade que apenas um “juiz-Hércu-
les dworkiano”15 seria capaz de conhecer por inteiro.
Por este motivo, a intenção do legislador em estabelecer relação oriunda
de ato de corrupção na qual figuraria uma pessoa jurídica exigiu previsão em
norma distinta àquelas inseridas na Lei de Improbidade Administrativa. A
Lei Anticorrupção veio a assumir a posição até então vaga.
Enquanto a Lei de Improbidade Administrativa estabelece relação R
unindo o agente privado que, por sua vez, utilizou-se de pessoa jurídica, e a
Administração Pública, a Lei Anticorrupção é responsável por posicionar em
relação análoga a figura da pessoa jurídica.
A problemática mora na hipótese referente ao dever de probidade que-
brado, que gerará a relação secundária na qual o dever de improbidade des-
cumprido será imposto, em forma de sanção, pelo Estado-juiz.
O que ocorre, na realidade, é que diferentes normas estabelecem dife-
rentes hipóteses sobre diferentes fatos jurídicos recortados do mesmo fato
social, de forma que o ato no mundo social pode gerar diferentes consequên-
cias no mundo jurídico oriundas de diferentes hipóteses confirmadas (dife-
rentes fatos jurídicos).
Nesse sentido, CARVALHO (2015, p. 160) observa:
(...) normas diferentes podem incidir sobre o mesmo suporte fáctico, engen-
drando também fatos jurídicos diversos. Um único fato social comparece aos
olhos do jurista como dois fatos jurídicos distintos porque objeto da incidência
de normas jurídicas diversas
274
Neste caso ocorre a incidência da norma constante na Lei de Improbida-
de Administrativa, tendo o agente privado como sujeito da relação, e da Lei
Anticorrupção, tendo a pessoa jurídica como sujeito de outra relação, não
devendo existir qualquer tipo de confusão. Importa perceber, nestes casos,
que o recorte oferecido pela hipótese da norma de uma Lei não é igual ao
oferecido pela outra, embora mantenham como raiz o mesmo fato do mun-
do social, cujo a ocorrência pode gerar várias relações no mundo das normas.
275
houve, por parte das pessoas físicas, dolo ou culpa, e a pessoa jurídica restou
beneficiada, a Lei Anticorrupção visa responsabilizar objetivamente deter-
minada entidade sem exigir a presença do agente público.
Ora, adotar este argumento seria desconsiderar totalmente as relações
previstas nos textos normativos e aqui já demonstrados. As responsabiliza-
ções são cíveis, portanto de mesma natureza, o que de pronto já seria pres-
suposto para não acreditarmos em incidência conjunta sobre o mesmo sujei-
to pelo mesmo ato – pois isso, sim, é caso de “bis in idem”.
Além do mais, se a questão do agente público fosse o diferencial das
duas incidências legais, a aplicação do art. 5º, I da Lei de 2013 – já mencio-
nado – geraria um enorme desconforto, já que o tipo ali previsto exige, por
si só, a presença do agente público.
Não há porque prolongarmos a discussão, pois ela se resolve na fórmula
já demonstrada. As relações possuem sujeitos distintos e, portanto, podem
coexistir no mundo jurídico. Uma está referente a pessoa física, a outra re-
fere-se a pessoa jurídica, e a discussão sobre existência ou não do “bis in
idem” foi erroneamente levantada pela indevida prática de aplicar-se a Lei
de Improbidade Administrativa a pessoas jurídicas, algo que não deveria ter
ocorrido.
276
Imagine-se, portanto, a seguinte situação hipotética de uma empresa que re-
solve celebrar acordo de leniência e revela a prática de várias condutas tipi-
ficadas na Lei de Improbidade Administrativa pelo seu corpo social.
Poderia imaginar-se se essas informações seriam permitidas para funda-
mentar uma ação de improbidade administrativa e, se caso o fosse, se respei-
tado estaria o princípio da segurança jurídica no procedimento de celebra-
ção do acordo de leniência.
Ora, de fato criar-se-ia um cenário altamente desmotivador ao acordo
de leniência, visto que sua celebração, ao passo que permitiria a suspensão
de uma ação baseada em uma lei, certamente resultaria no ajuizamento de
ação distinta sobre o mesmo relato fático.
No entanto, vale ter-se em mente tudo que foi aqui relatado: a relação
criada pela Lei de Improbidade Administrativa é distinta da criada pela Lei
Anticorrupção. Em ambos os documentos, verifica-se que, em momento
processual algum, há a figura da Administração Pública como sujeito da re-
lação tanto na Lei nº 8.429/92, através da redação do art. 1717, quanto na
Lei nº 12. 846/2013.
A diferença se manifesta no polo oposto. Conforme verificou-se, a Lei
Anticorrupção veio a trazer a possibilidade de sanção às pessoas jurídicas por
atos já tipificados na Lei de Improbidade Administrativa que, por sua vez,
dirige-se apenas a pessoas físicas.
De acordo com esta perspectiva, não haveria motivo para advogar no
sentido de que o acordo de leniência fere a segurança jurídica de quem o ce-
lebra. Se o acordo de leniência é um instrumento que surge no meio da re-
lação entre uma pessoa jurídica e a Administração Pública, percebe-se que
esta procura, com tal instrumento, exatamente as informações necessárias
para punir as pessoas físicas que agiram contrárias a Lei de Improbidade Ad-
ministrativa, de modo que, se houvesse, imagina-se, a possibilidade do acor-
do de leniência suspender a propositura da Ação de Improbidade Adminis-
trativa, o acordo de leniência perderia parte do seu caráter investigativo e
sua importância no sistema.
Por este motivo, discorda-se parcialmente do entendimento de Valdir
Moysés Simão e Marcelo Pontes Vianna quando estes afirmam que “A pes-
soa jurídica colaboradora (no acordo de leniência), entretanto, ficará sujeita
à responsabilização judicial com base na própria Lei Anticorrupção (LAC) e
na Lei de Improbidade Administrativa (...)”18, pois defende-se a permanên-
cia da aplicação da Lei de Improbidade, mas não aos mesmos sujeitos previs-
tos na Lei Anticorrupção.
17 Art. 17. A ação principal, que terá o rito ordinário, será proposta pelo Ministério
Público ou pela pessoa jurídica interessada, dentro de trinta dias da efetivação da medi-
da cautelar.
18 (SIMÃO; VIANNA, 2017. p. 57).
277
No entanto, concorda-se com os mesmos autores quando estes afirmam
que “a pessoa jurídica deve trazer informações sobre a conduta de pessoas
naturais”, afirmando ainda que a responsabilidade seja objetiva “(...) não
deve servir de pretexto para o fornecimento de provas que oculte a identi-
dade daqueles que efetivamente praticaram atos delitivos”19.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
19 Idem, p. 117.
278
Referências:
279
The dark side of fashion: uma análise empírica
sobre o trabalho escravo contemporâneo na
indústria da moda
281
emerged as a research theme in Organizational Studies since the early
2000s, drawing attention to the use of this practice. In Brazil, it is a matter
of great concern, justifying itself, after denunciation in the Inter-American
Court of Human Rights and confession of the use of this practice in the XXI
century. Contemporary slave labor is found in the most diverse economic
activities, from charcoal to textile industries or even trades, whether in ur-
ban or rural areas. In this article we will analyze the view of some consumers
about consumption in companies that were denounced using slave labor.
We adopt the fashion industry as the focus of research because it obscures
the reflection of consumers who, when shopping, feel like entering another
world: beauty and fantasy, in search of their own satisfaction. Added to this
is the fact that the Brazilian fashion industry is one of the largest in the
world (ABIT, 2015). This article will use quantitative and qualitative meth-
odology, as well as existing legal literature.
INTRODUÇÃO
1 Relatório elaborado pela Fundação Internacional Walk Free Slavery, “uma organi-
zação global com a missão de acabar com a escravidão moderna em nossa geração pela
282
res e crianças presos na escravidão moderna, em todo o mundo, abrangendo
os cinco continentes.
Como bem disse Gustavo Luís Teixeira das Chagas (2012, p. 65), a re-
dução do ser humano à condição análoga à de escravo perpassa pela liberda-
de do ser humano em sua acepção mais essencial: a de poder ser.
A liberdade em sua essência é eivada de livre arbítrio, e, é nessa linha
que foram deliberadas as leis protecionistas no Estado brasileiro. Suprimir a
liberdade do cidadão em pleno século XXI significa podar seu próprio des-
tino.
Segundo Miraglia (2011, p. 216), a liberdade diz respeito não apenas ao
direito subjetivo de ir e vir, significando, no âmbito coletivo, a liberdade de
associação e exercício da atividade sindical obreira. Ademais, pode-se afir-
mar que também é possível inferir dessa liberdade o direito de livre-arbítrio
na escolha do serviço prestado e o direito de o trabalhador encerrar a relação
jurídica a qualquer tempo.
No mundo da moda nos deparamos com o trabalho escravo em diferen-
tes matizes, sendo necessário um questionamento sobre as possíveis políti-
cas de erradicação e as consequências no consumo.
“Quantos escravos trabalham para você?” é a pergunta que o aplicativo
Slavery Foot print, da Organização Não Governamental (ONG) anglo-aus-
traliana Made in a Free World, utiliza para instigar as pessoas a pensarem
sobre o tema. O teste é composto por onze perguntas, que incluem a aquisi-
ção de produtos de higiene, alimentação, vestuário, entre outros, a fim de
mensurar quantos escravos podem ser encontrados ao longo dessa cadeia
produtiva.
Enquanto o internauta responde às questões, são exibidas informações a
respeito do trabalho escravo no mundo e sua relação com o consumo.
Por meio da conscientização, a ONG busca fazer com que as pessoas re-
pensem seus hábitos de compra e, em consequência, desestimular a prática
criminosa de trabalho escravo.
No Brasil, a ONG Repórter Brasil desenvolveu, em 2013, o aplicativo
Moda Livre, que avalia grandes grupos varejistas de moda e relaciona aque-
les em que a produção têxtil foi flagrada em casos de trabalho escravo.
Mesmo com tantos mecanismos, órgãos e legislações que objetivam
combater o trabalho escravo, vale ressaltar, que o Brasil foi condenado em
2016 perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos pela prática
desta conduta.
Não é raro notícias de resgate de trabalhadores em condições análogas a
de escravidão.
283
A proposta é que o consumidor conheça a conduta das marcas antes de
efetuar a compra e, assim, se torne um agente no combate ao trabalho es-
cravo.
1. PRESENTE?
284
temporâneo, oferecemos à sociedade pontos para reflexão a respeito de suas
próprias escolhas.
Assim, a sociedade poderá ser estimulada a pensar se suas escolhas con-
tribuem para a manutenção de práticas corporativas criminosas contra aque-
les que estão em condições de desigualdade em relação aos consumidores
das marcas para a qual produzem.
Há uma questão cultural muito forte em nosso país referente a escravi-
dão, assim como na atualidade podemos destacar o analfabetismo, exclusão
social, abismo econômico que acarreta na pobreza e desemprego. Tudo isso
é somado a ausência eficaz estatal em todos os recantos do nosso país que
facilita o aliciamento de trabalhadores.
Além disso, o aspecto psicológico do escravizado e o medo da denúncia
aos órgãos competentes dificulta o flagrante e consequentemente a sua li-
bertação.
O Estado Brasileiro tem diante dele certas expressões da questão social
que são a pobreza, exclusão social, analfabetismo, desemprego e essa reali-
dade social beneficia a prática da escravidão contemporânea. Tais sintomas
sociais se coagdunam a precarização dos direitos do trabalho que são um dos
problemas mais graves na atualidade, e, uma ausência de políticas públicas
de coibição a prática deste crime.
Existe uma questão muito forte de dependência entre o senhor que de-
tém os meios de produção e o escravo que possui a força de trabalho.
A luta pela sobrevivência de um lado pelo trabalhador e a visão de um
lucro exorbitante pelos empregadores facilita a mitigação de custos, a viola-
bilidade dos direitos e a perpetuação do trabalho escravo.
Há denúncias cada dia mais frequentes que hasteiam a bandeira da res-
ponsabilidade social, do respeito, do comportamento ético e do compromis-
so com a verdade. Criam códigos de conduta que contemplam missões, va-
lores e princípios dignos de um Estado Democrático de Direito e, com isso,
vinculam sua imagem à probidade, ao decoro e aos direitos humanos e utili-
zam-se da mão de obra escrava.
É difícil acreditar que exista uma realidade de tamanha crueldade e co-
vardia tão perto de nós. Trata-se da exploração de pessoas realizada por gri-
fes de renome e de solidez econômica, das quais provavelmente já adquiri-
mos produtos. É uma escravidão impune, pois não está visível aos olhos da
sociedade. A melhor solução para combater esse crime talvez esteja em nos-
sas mãos: o poder do consumidor. Quando compramos, estamos depositan-
do nosso voto de confiança na empresa e na forma como aquela mercadoria
foi produzida. É preciso fortalecer essa consciência e repugnar grifes que
exercem trabalhos análogos à escravidão.
Quando compramos, estamos depositando nosso voto de confiança na
empresa e na forma como aquela mercadoria foi produzida. É preciso forta-
lecer essa consciência e repugnar grifes que exercem trabalhos análogos à es-
cravidão.
285
2. IMPRESSÕES DO CAMPO PRÁTICO:
Quantitativo 8 pessoas
Sexo Feminino
Idade De 18 a 55
Escolaridade Sem critério3
* Quadro elaborado pelo autor
3
Vários tipos de respostas foram fornecidos pelos entrevistados, aqueles
que se espantam, e se chocam ao saber. E aqueles que não se incomodam e
não esboçam nenhum tipo de reação, bem como aqueles que preferem ficar
em silêncio. Sendo assim, a pesquisa qualitativa que pretendo fazer ao longo
da minha tese se mostra embrionária, mas já dá alguns sinais, a respeito das
entrevistas já colhidas com algumas consumidoras do mercado da moda.
Veja:
3 Apenas uma das entrevistadas não possuía ensino superior. As demais ou eram
formadas ou já estavam cursando uma universidade.
286
Entrevistada 1 – “Blogueira” de moda.
Olha! Eu não sabia disso! “Mas, eu não deixo de comprar porque as rou-
pas são bonitas e me vestem muito bem.”
Entrevistada 2 – Médica.
Entrevistada 6 – advogada
Tenho uma preocupação com estas questões, pois milito nesta área no
meu trabalho. Não vou te dizer que não compro nada na Zara, mas evito ao
máximo de entrar lá e consumir qualquer produto. Essa realidade de traba-
lho escravo é muito grave e vai se asseverar ainda mais no Brasil de hoje, pós
reforma trabalhista.
287
Entrevista 7 – empregada doméstica
Eu não compro roupa lá porque não tenho dinheiro, mas se tivesse não
compraria agora que estou sabendo disso, eu tenho uma irmã que já foi qua-
se escrava num apartamento da zona sul, é a maior humilhação e tristeza que
pode ter na vida de uma pessoa.
1. OU FUTURO?
288
dores consideram as consequências sociais do seu ato de consumo, ou utili-
zam-se do boicote como forma de promover mudanças ou ainda privilegiam
empresas que mostram maior responsabilidade social ou ambiental (WEBS-
TER JR, 1975).
Observa-se uma legitimação moral que segundo Crane (2013) consiste
na aceitação mínima no campo institucional, como, por exemplo, de clientes
e comunidade local propicia a perpetuação dessa prática. Nesse sentido, os
argumentos quanto ao boicote ser um caminho para promover as mudanças,
vai ao encontro da posição de Crane (2013), por ser esse uma ação que não
sustenta e não compartilha com essa prática.
O consumidor ético forja uma nova cultura do consumo, expressando
sua visão social de mundo e sua ética. Esse consumidor considera as conse-
quências do seu consumo e assume responsabilidade pelas questões sociais
(FONTENELLE, 2007, 2010). Nesse contexto de surgimento de figuras de
consumidores socialmente responsáveis e outras formas de pensar o consu-
mo, como o consumo ético, verde, consciente, político, entre outras
denominações (CRAIG-LEES E HILL, 2002, MALPASS ET AL, 2007; MI-
CHELLETTI ET AL, 2003), que chamam a atenção para a importância do
consumo como um processo psicológico e social.
Os argumentos centram-se na ideia de que, no Brasil, o trabalho escravo
contemporâneo é uma prática ilegal e criminosa, no entanto, as empresas,
para lucrarem mais, infringem as leis, tornando-se ilegais e criminosas, po-
rém, isso não as intimidam. Já os consumidores que adquirem esses produ-
tos tornam-se coniventes, incentivando que essa prática criminosa se perpe-
tue e se torne uma prática de gestão, legitimando-a moralmente (CRANE,
2013).
A necessidade e a reputação das marcas como motivadores de compra
revelaram que existem consumidores que procuram evitar o consumismo,
procurando um comportamento racional e responsável. Estes consumidores
indicaram que se veem inseridos na cadeia produtiva e têm consciência das
consequências sociais do ato de consumir, procurando utilizar 89 do seu po-
der de compra para promover uma mudança social, seja por meio do consu-
mo de produtos oriundos de empresas responsáveis ou do boicote àquelas
que não possuem comportamento compatível com a visão social dos consu-
midores (WEBSTER JR, 1975).
Encontrar consumidores com esse comportamento indica que existe es-
paço para o consumo consciente, no entanto, esse espaço é percebido pelas
organizações como importante para o crescimento de um mercado, como
criticado por Barros et al (2011), Fontenelle (2007) e por Sampaio (2013).
É por meio do consumo que as pessoas expressam seus pensamentos, seus
ideais e sua ética. O consumo consciente é uma nova cultura do consumo
forjada para este público (FONTENELLE, 2007, 2010), que assume a res-
ponsabilidade pelos crimes organizacionais, sob a noção de que se não hou-
vesse consumo não haveria oferta de produtos oriundos de práticas crimino-
sas. Quanto mais visibilidade as práticas das organizações, sejam elas boas
289
práticas ou nefastas, mais os consumidores poderão se posicionar e fazer es-
colhas racionais, de acordo com seus ideais.
Por derradeiro, pode-se afirmar que a história do trabalho no Brasil não
se iniciou com a industrialização ou com a CLT, mas sim com o trabalho es-
cravo, que persistiu como atividade legal por mais de três séculos, iniciado
com a exploração de mão de obra indígena e consolidado com o tráfico ne-
greiro e exploração do trabalho dos africanos (ROCHA; GÓIS, 2011).
A luta pela sobrevivência de um lado pelo trabalhador e a visão de um
lucro exorbitante pelos empregadores facilita a mitigação de custos, a viola-
bilidade dos direitos e a perpetuação do trabalho escravo.
A dinâmica do processo gira em torno do capital e poder enraizado no
Estado Brasileiro, seja no aspecto comportamental, político, psicológico, re-
gional, dentre outros.
CONCLUSÃO:
290
Somado a isso há uma cultura do medo que é instaurada para evitar de-
núncias sobre a existência nos locais de trabalho escravo. Para combater a
prática da escravidão contemporânea é preciso denunciar. Através das de-
núncias, o Ministério Público, o Ministério do Trabalho e a Polícia Federali-
niciam um processo de investigações e de fiscalizações.
Apesar de todos os esforços resta constatada a existência em pelo século
XXI de trabalho escravo contemporâneo em nosso território nacional.
Portanto, é difícil acreditar que exista uma realidade de tamanha cruel-
dade e covardia tão perto de nós. Trata-se da exploração de pessoas realiza-
da por grifes de renome e de solidez econômica, das quais provavelmente já
adquirimos produtos. É uma escravidão impune, pois não está visível aos
olhos da sociedade.
A melhor solução para combater esse crime talvez esteja em nossas
mãos: o poder do consumidor. Quando compramos, estamos depositando
nosso voto de confiança na empresa e na forma como aquela mercadoria foi
produzida. É preciso fortalecer essa consciência e repugnar grifes que exer-
cem trabalhos análogos à escravidão.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
291
MIRAGLIA, Lívia Mendes Moreira.Trabalho escravo contemporâneo: conceitua-
ção à luz do princípio da dignidade da pessoa humana,2008. Dissertação
(Mestrado), Programa de Pós-graduação em Direito, Pontifícia Universidade
Católica de Minas Gerais, Belo Horizonte.
MIRAGLIA, Livia Mendes Moreira. Trabalho Escravo Contemporâneo — concei-
tuação à luz do princípio da dignidade da pessoa humana. 2ª ed. São Paulo:
Ltr. 2015.
SANTOS, Ronaldo Lima dos. A escravidão por dívida nas relações de trabalho no
Brasil contemporâneo. Revista do Ministério Público do Trabalho, ano 13, n.
26, set. 2003.
SENTO-SÉ, Jairo Lins de Albuquerque. Trabalho escravo no Brasil. São Paulo:
Ed. LTR, 2001.
VARELLA, Alex. Saber Juridico e Direito à Diferença no Brasil: questões de teoria
e método de uma perspectiva comparada. In:________ KANT DE LIMA, Ro-
berto e LUPETTI, Bárbara. “O desafio de realizar pesquisa empírica no Direi-
to: uma contribuição antropológica”. paper apresentado no 7ª encontro da
ABCP – Associação Brasileirade Ciência Política. 04 a 07 de agosto de 2010.
Recife/Pernambuco.
292
(Há) ética na delação premiada (?)
A delação premiada ganhou fama nos últimos tempos por conta dos pro-
cessos que envolvem políticos e empresários famosos. Atualmente, é muito
difícil assistir a algum telejornal, independentemente da emissora que o vei-
cule, sem ver o tema abordado. O noticiário impresso também trata do as-
293
sunto diariamente. Nas universidades, quando o tema é referido em sala de
aula, não faltam interesse e indagações por partes dos alunos, muitos deles
com opinião formada à luz do que é veiculado pela imprensa.
O que se pretende neste artigo é abordar a forma como os diversos dou-
trinadores que tratam da delação premiada enxergam a ética do referido ins-
tituto. Não custa lembrar que, considerando os dispositivos atualmente em
vigor no ordenamento jurídico brasileiro, a delação premiada é tratada na
Lei 8072/90, na Lei 9080/95 (que a inseriu na Lei 7492/86 e na Lei
8137/90), na Lei 9269/96 (que a disciplinou no CP), na Lei 9807/99, na Lei
11343/06, na Lei 12529/11, na Lei 12683/12 (que a inseriu na Lei
9613/98) e na Lei 12850/13.
É diante desse panorama que a doutrina brasileira trata do aspecto ético
da delação premiada, ora criticando de forma veemente a opção feita pelo
legislador, ora enxergando em tal instituto a única saída para o esclarecimen-
to de crimes cuja prática se mostra de acentuada complexidade.
Nesse aspecto, analisando aspectos positivos e negativos da delação pre-
miada, Guilherme de Souza Nucci registra um rol de aspectos que consti-
tuem interessante ponto de partida para análise ética que se pretende fazer.
294
Estado já está barganhando com o autor da infração penal, como se pode cons-
tatar pela transação, prevista na Lei 9.099/1995. A delação premiada é, apenas,
outro nível de transação; g) o benefício instituído por lei para que um criminoso
delate o esquema no qual está inserido, bem como os cúmplices, pode servir de
incentivo ao arrependimento sincero, com forte tendência à regeneração inte-
rior, um dos fundamentos da própria aplicação da pena; h) a falsa delação, em-
bora possa existir, deve ser severamente punida; i) a ética é juízo de valor variá-
vel, conforme a época e os bens em conflito, razão pela qual não pode ser em-
pecilho para a delação premiada, cujo fim é combater, em primeiro plano, a
criminalidade organizada.1
Por outro lado não se pode cogitar de atribuir ao prêmio pela colaboração pro-
cessual a dignidade ou extensão de princípio geral: a relação de tendencial con-
traposição entre os valores em jogo exige que o instrumento esteja limitado a
um especifico campo de manifestação delituosa no qual o interesse do eficien-
tismo na resposta estatal esteja em desequilíbrio, malsucedido pela ineficiência
dos meios tradicionais ante o fenômeno a enfrentar.2
De seu lado, após fazer análise sobre aspectos éticos em sua obra, preo-
cupando-se em abordar, em tópicos específicos, “a ética e o Direito”, “a éti-
ca e a moral” e “a utopia de uma ética universal e o Direito”, Eduardo Luiz
Santos Cabette e Marcius Tadeu Maciel Nahur posicionam-se, de forma cla-
ra, afirmando inexistir qualquer mácula ética na delação premiada.
295
No mesmo sentido, de maneira enfática, Eugênio Pacelli explicita o seu
ponto de vista favorável à aceitação ética do instituto da delação premiada.
Ocorre que o delator sabe que, descoberta a traição, fatalmente será executado
pelos comparsas ou, se preso, pelos companheiros de cela, que não suportam
traidores. E a norma não é pedagógica: ela ensina que trair traz benefícios.7
296
Em excelente obra, Cleber Masson e Vinícius Marçal posicionam-se de
maneira favorável à delação premiada, antes de destacar a opinião de diver-
sos autores que abordam o tema.
297
De seu lado, o alemão Winfried Hassemer apresentou crítica contun-
dente à delação premiada, a ponto de afirmar que a sua aplicação seria capaz
de arruinar o processo penal.
A longo prazo deve-se temer que o acordo arruíne o processo e, com isso, tam-
bém aqueles princípios e regras que garantem a proteção dos participantes. O
futuro do acordo no processo penal está aberto. Deve-se esperar que os tradi-
cionais princípios do Direito Processual Penal possam fazer valer novamente de
modo vigoroso na práxis o seu poder de convicção em face dos interesses na
economia e eficiência.11
Por sua vez, o também alemão Rudolf Von Ihering, ao contrário do seu
compatriota, externou a sua opinião favorável ao instituto da delação pre-
miada, ressaltando a sua utilidade prática.
Um dia, os juristas vão ocupar-se do direito premial. E farão isso quando, pres-
sionados pelas necessidades práticas, conseguirem introduzir a matéria premial
dentro do direito, isto é, fora da mera faculdade e do arbítrio. Delimitando-o
com regras precisas, nem tanto no interesse do aspirante ao prêmio, mas, sobre-
tudo, no interesse superior da coletividade.12
Por sua vez, Marcos Paulo Dutra Santos, em excelente obra na qual
aborda a delação premiada, esclarece que o delator atenta contra a legislação
em vigor e, ao mesmo tempo, atenta contra os seus comparsas.
298
Aliás, o atuar do delator revela-se o mais repugnante de todos, pois, além de ter
atentado contra a ordem jurídica e, por conseguinte, contra a sociedade, consi-
derado o crime perpetrado, volta-se contra os próprios comparsas, protagoni-
zando dupla traição: primeiramente, trai o pacto social que, enquanto cidadão,
também assinou; em seguida, trai os corréus, violando o pacto criminoso que
firmaram. E é justamente “premiado” com a menor punição.14
299
entre criminosos, porque são menos fatais a uma nação os delitos de coragem
que os de vilania: porque o primeiro não é frequente, já que só espera uma força
benéfica e motriz que o faça conspirar contra o bem público, enquanto que a
segunda é mais comum e contagiosa, e sempre concentra mais em si mesma.
Além disso, o tribunal mostra a própria incerteza, a fraqueza da lei, que implora
a ajuda de quem a infringe.17
De seu lado, Nicolao Dino demonstra toda a sua convicção quanto à uti-
lidade do instituto da delação premiada.
Stephen Trott, por sua vez, apresenta uma visão simples e realista a res-
peito da delação premiada, na exata medida em que reconhece a sua impres-
cindibilidade, nos seguintes termos.
A sociedade não pode dar-se ao luxo de jogar fora a prova produzida pelos de-
caídos, ciumentos e dissidentes daqueles que vivem da violação da lei.19
17 BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. Tradução de J. Cretella Jr. e Agnes
Cretella. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 128/129.
18 DINO, Nicolao. A colaboração premiada na improbidade administrativa: possibili-
dade e repercussão probatória. In: SALGADO, Daniel de Resende; QUEIROZ, Ronal-
do Pinheiro de (Org.) A prova do enfrentamento à macrocriminalidade. Salvador: Jus-
podium, 2015, p. 444
19 TROTT, Stephen. O uso de um criminoso como testemunha: um problema espe-
cial. Tradução: Sergio Fernando Moro. Revista CEJ. Centro de Estudos Judiciários do
Conselho da Justiça Federal. V. 11, n. 37, abr/jun. 2007, p. 74.
20 MORO, Sergio Fernando. Considerações sobre a Operação Mani Pulite. Revista
300
Também Fausto Martin De Sanctis, em sua obra que aborda o estudo do
crime organizado, se posiciona de maneira favorável à delação premiada, ex-
cluindo qualquer crítica à sua eticidade.
301
Apesar de se tratar de uma modalidade de traição institucionalizada, trata-se de
instituto de capital importância no combate à criminalidade, porquanto se
presta ao rompimento do silêncio mafioso (omertà), além de beneficiar o acu-
sado colaborador. De mais a mais, falar-se em ética de criminosos é algo extre-
mamente contraditório, sobretudo se considerarmos que tais grupos, à margem
da sociedade, não só tem valores próprios, como também desenvolvem suas
próprias leis.24
A corrupção envolve quem paga e quem recebe. Se eles se calarem, não vamos
descobrir, jamais.26
302
Referências bibliográficas
AZEVEDO, David Teixeira de. Colaboração premiada num Direito ético. Revista
dos Tribunais. Vol. 771/2000.
BARBACETTO, Gianni; GOMEZ, Peter; TRAVAGLIO, Marco. Operação Mãos
Limpas. Porto Alegre, CDG, 2016.
BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. Tradução de J. Cretella Jr. e Agnes
Cretella. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010.
BEDÊ JUNIOR, Américo; SENNA, Gustavo. Princípios do processo penal: entre
o garantismo e a efetividade da sanção. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2009.
BITENCOURT, Cezar Roberto; BUSATO, Paulo César. Comentários à lei de or-
ganização criminosa. São Paulo: Saraiva, 2014.
CABETTE, Eduardo Luiz Santos; NAHUR, Marcius Tadeu Maciel. Criminalidade
organizada & globalização desorganizada. Rio de Janeiro: Freitas Bastos,
2014.
COSTA, Leonardo Dantas. Delação premiada: a atuação do Estado e a relevância
da voluntariedade do colaborador com a justiça. Curitiba: Juruá, 2017.
DE SANCTIS, Fausto Martin. Crime organizado e lavagem de dinheiro: destina-
ção de bens apreendidos, delação premiada e responsabilidade social. São
Paulo: Saraiva, 2015.
DINO, Nicolao. A colaboração premiada na improbidade administrativa: possibi-
lidade e repercussão probatória. In: SALGADO, Daniel de Resende; QUEI-
ROZ, Ronaldo Pinheiro de (Org.) A prova do enfrentamento à macrocrimina-
lidade. Salvador: Juspodium, 2015.
FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. São Paulo, Revista
dos Tribunais, 2010.
FILIPPETTO, Rogério; ROCHA, Luísa Carolina Vasconcelos Chagas. Colabora-
ção premiada: contornos segundo o sistema acusatório. Belo Horizonte: D’-
Plácido, 2017.
FONSECA, Cibele Benevides Guedes da. Colaboração premiada. Belo Horizonte:
Del Rey, 2017.
GONÇALVES, Victor Eduardo Rios; BALTAZAR JUNIOR, José Paulo. Legisla-
ção penal especial. São Paulo: Saraiva, 2015.
GRECO FILHO, Vicente. Comentários à Lei de Organização Criminosa: Lei n°
12.850/13. São Paulo: Saraiva, 2014.
GUIDI, José Alexandre Marson, Delação premiada: no combate ao crime organi-
zado. São Paulo: Lemos & Cruz, 2006.
HASSEMER, Winfried. Introdução aos fundamentos do Direito Penal. Porto Ale-
gre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 2005.
IHERING, Rudolf Von. A luta pelo Direito. Rio de Janeiro: Forense, 2004.
JESUS, Damásio Evangelista de. O prêmio à delação nos crimes hediondos. Bole-
tim IBCCRIM, n° 5. São Paulo: IBCCRIM, 1993.
LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de Processo Penal. Salvador: Juspodivm,
2014.
MASSON, Cleber; MARÇAL, Vinícius. Crime organizado. São Paulo: Método,
2016.
303
MAYOR, Pedro Juan. Concépcion criminológica de la criminalidade organizada
contemporânea. Revista Brasileira de Ciências Criminais, ano 7, n° 25, janeiro-
março, 1999.
MENDRONI, Marcelo Batlouni. Comentários à Lei de Combate ao Crime Orga-
nizado. São Paulo: Atlas, 2015.
MOREIRA, Rômulo de Andrade. A mais nova previsão de delação premiada no di-
reito brasileiro. Disponível em: www.ambitojurídico.com.br. Acesso em 12
mar. 2016.
MORO, Sergio Fernando. Considerações sobre a Operação Mani Pulite. Revista
CEJ. Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal. Brasília, n.
26, jul/set 2004.
MOSSIN, Heráclito Antônio; MOSSIN, Júlio César. Delação premiada: aspectos
jurídicos. São Paulo: JHMizuno, 2016.
NUCCI, Guilherme de Souza. Organização Criminosa. Rio de Janeiro: Forense,
2015.
PACELLI, Eugênio. Atualização do Curso de Processo Penal. Comentários ao
CPP. Lei 12.850/13. Disponível em www.eugenciopacelli.com.br, acesso em
16.08.2013.
PEREIRA, Frederico Valdez. Delação premiada: legitimidade e procedimento.
Curitiba: Juruá, 2016.
SANTOS, Marcos Paulo Dutra. Colaboração (delação) premiada. Bahia: JusPo-
divm, 2016.
SILVA, Eduardo Araújo da. Organizações Criminosas: aspectos penais e proces-
suais da Lei n° 12.850/13. São Paulo: Atlas, 2015.
SILVA JÚNIOR, Walter Nunes da. Curso de direito processual penal: teoria
(constitucional) do processo penal. Natal: OWL Editora Jurídica, 2015.
SIMAS JUNIOR, Carlos Rogério. O instituto da delação premiada. Biguaçu: edi-
ção do autor, 2016.
SZNICK, Valdir. Crime organizado: comentários. São Paulo: Livraria e Editora
Universitária de Direito, 1997.
TROTT, Stephen. O uso de um criminoso como testemunha: um problema espe-
cial. Tradução: Sergio Fernando Moro. Revista CEJ. Centro de Estudos Judi-
ciários do Conselho da Justiça Federal. V. 11, n. 37, abr/jun. 2007.
ZAFFARONI, Eugênio Raul. Crime organizado: uma categoria frustrada. Discur-
sos sediciosos: crime, direito e sociedade. Rio de Janeiro: Revan, 1996, v. 1.
304
O processo administrativo tributário como
meio facilitador do acesso à justiça e exercício
da ampla defesa diante das decisões do
Conselho de Contribuintes da Prefeitura
da Cidade do Rio de Janeiro
305
INTRODUÇÃO
306
nistração pública, estão vinculados à estrutura hierárquica do órgão a que es-
tão subordinados, diversamente de quando são julgadores, que estão vincu-
lados apenas às provas, e não ao dever de obediência.
Verdade material – a administração não pode exigir determinada afir-
mação sobre um fato; só se considera provado, se através de outros meios for
possível chegar à certeza de que aquele fato ocorreu mesmo.
Oficialidade – cabe à autoridade competente zelar pelo impulso célere
do processo, bem como por sua conclusão. Quando o processo administrati-
vo não depender de provocação do sujeito passivo a própria administração
pública deve promover de ofício a instauração do processo.
Diversas doutrinas ainda trazem mais alguns princípios específicos que
acreditamos importantes para este trabalho, quais sejam:
Legalidade objetiva – que visa a realçar a impessoalidade da atuação do
agente, com adstrição à norma jurídica que disciplina e instrumentaliza, com
a finalidade de aplicar a lei e o Direito.
Informalidade – bastam as formalidades essenciais à obtenção de certeza
jurídica e à segurança processual, ficando, portanto, dispensadas as formali-
dades excessivas, como o objeto principal da nossa discussão: desnecessida-
de da capacidade postulatória do advogado.
Princípio inquisitivo – que decorre da prevalência da verdade material e
permite que, no âmbito do processo administrativo tributário, o julgador
possa demandar diligências adicionais com intuito de produção de provas a
fim de determinar fatos relevantes.
Revisibilidade – que é a faculdade da administração pública revisar seus
próprios atos. Nesse sentido, o art. 145, I e II, do CTN2 permite que o lan-
çamento regularmente notificado ao sujeito passivo seja alterado em virtude
da impugnação por parte deste ou pelo recurso de ofício, os quais (impugna-
ção e recurso) ocorrem no âmbito do processo administrativo tributário.
Vale lembrar que existem princípios gerais não menos importantes e
que se aplicam ao processo administrativo tributário, assim como em qual-
quer área do direito processual como, por exemplo, o princípio da igualda-
de, cuja aplicação pode ser observada no princípio do formalismo moderado,
na medida em que propicia a qualquer pessoa, mesmo com conhecimentos
limitados, ter seus atos recebidos pela Administração Pública.O princípio
ora em tela dispensa formas rígidas para o processo, principalmente para os
atos a cargo do particular, devendo a norma que o regula exigir apenas as for-
malidades necessárias à certeza e licitude do procedimento. Assim, este
princípio torna o processo administrativo de acesso mais fácil para o contri-
buinte, não exigindo as formalidades do processo judicial, de forma que em
307
qualquer campo de atuação do direito existe a necessária obediência a esse
postulado inseparável da existência da Justiça e do Estado de Direito.
Outro princípio não menos importante também é o da legalidade, o qual
garante que somente por norma representativa da vontade do povo se pode
criar deveres e sanções por seu descumprimento.
E, para o nosso estudo, vale a citação do dispositivo constitucional pre-
visto no art. 5º, LV, da Constituição Federal de 1988, que estabelece a legi-
timidade ao processo administrativo tributário contencioso, o qual assegura
ao sujeito passivo o contraditório e ampla defesa: “aos litigantes, em proces-
so judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o con-
traditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”. Tais ga-
rantias são existentes tanto no âmbito do processo administrativo tributário
quanto no processo judicial tributário, e estão ligadas ao princípio do devido
processo legal.
O contencioso administrativo se inicia a partir da notificação do sujeito
passivo do lançamento tributário, onde o mesmo tem as opções de pagar ou
impugná-lo com interposição de recurso administrativo, passando o crédito
a ter sua exigibilidade suspensa, nos termos do art. 151, III do CTN3.
Questão muito importante é a redação da Súmula Vinculante 21 STF a
qual afirma que “é inconstitucional a exigência de depósito ou arrolamento
prévios de dinheiro ou bens para a admissibilidade de Recurso Administra-
tivo”.
Ao final do processo administrativo, depois de seguido todo o rito pre-
visto na legislação tributária do ente tributante, a decisão administrativa
pode ser favorável ou desfavorável ao sujeito passivo. No deferimento favo-
rável, ocorrerá a extinção total ou parcial do crédito tributário, com base no
art. 156, IX, do CTN4. Por outro lado, sendo a decisão desfavorável, o cré-
dito volta a ser exigível, e no caso de inadimplência, a fazenda pública pode
realizar os atos cabíveis, como inscrever o crédito tributário em dívida ativa
para gerar a certidão de dívida ativa, que constitui título executivo extraju-
dicial com vistas a viabilizar o ajuizamento da ação de execução fiscal para a
cobrança judicial do crédito tributário.
De acordo com a redação do art. 145, I e II do CTN5, a impugnação, seja
voluntária interposta pelo sujeito ativo ou o recurso de ofício apresentado
308
pela fazenda pública, pode acarretar a alteração do lançamento que já foi re-
gularmente notificado ao sujeito passivo.
As decisões proferidas por órgãos administrativos não possuem caráter
definitivo para o contribuinte, não afastando o acesso ao Poder Judiciário,
com base no princípio da inafastabilidade da jurisdição, consignado no art.
5º, XXXV, da CF/886; tendo em vista que no nosso ordenamento jurídico
não existe “coisa julgada administrativa”, sendo este caráter exclusivo das
decisões judiciais transitadas em julgado.
Ao contribuinte é assegurado o direito de, a qualquer tempo, desistir da
via administrativa antes mesmo da decisão definitiva, seja para quitar o cré-
dito tributário, seja para ingressar judicialmente. Tal opção implica a renún-
cia da lide instaurada no âmbito administrativo, que, no caso específico do
Município do Rio de Janeiro, está fundamentada no art. 109, §1º do Decre-
to 14.602/1996, que trata dos procedimentos e processos administrativos
tributários7.
309
for de seu interesse, pode complementar o pedido com a expertise de pro-
fissionais técnicos para auxiliar na defesa.
A pesquisa para avaliar a importância da presença do advogado nos pro-
cessos administrativos tem por objetivo verificar se, logo após o contribuinte
ser autuado pelo Fisco e estando bem assessorado na elaboração de sua de-
fesa, há possibilidade concreta de se encerrar o litígio, evitando-se assim um
contencioso que certamente consumiria mais em tempo e dinheiro.Outro
aspecto que corrobora o aumento do exercício à ampla defesa é o valor con-
troverso, muitas vezes tão baixo que não caberia autuar um processo judicial
por conta das custas e honorários, possivelmente mais elevados que o pró-
prio objeto do litígio.
Existem diversas normas que regulam o processo administrativo tributá-
rio e elas se encontram nas legislações federal, estadual e municipal, às quais
qualquer pessoa pode ter acesso. No entanto, por ser a maioria dessas nor-
mas de difícil interpretação, os profissionais do setor possuem maior capaci-
dade de usá-las da forma apropriada.
Em muitos casos, lançamentos e autos de infração estão baseados em
normas administrativas como, por exemplo, portarias e instruções, tornan-
do difícil a pesquisa sobre a origem e a possível ilegalidade dessas normas ao
contribuinte que não está acostumado com o assunto e nem possui a exper-
tise necessária para entender as leis.
O professor e advogado tributarista Raul Haidar8, faz menção a várias re-
gras a serem observadas na defesa ou impugnação na esfera administrativa,
como adiante se demonstra.
Forma – deve a defesa ser apresentada na forma adequada e em lingua-
gem apropriada. Será muito útil se os parágrafos forem curtos, sem frases
imensas que dificultem o entendimento e a clareza do texto. Também será
bom que os parágrafos sejam numerados, facilitando-se eventuais citações
no futuro, quando se tornarem necessárias eventuais citações ou pesquisas.
Objetividade – a defesa deve ser objetiva. Em primeiro lugar citam-se
minuciosamente os fatos. Prejudica a clareza quem já no início entra no mé-
rito. Isso deve ficar para a fase seguinte.
Respeito – a primeira obrigação do contribuinte é tratar o agente do Fis-
co com respeito. Ainda que ele tenha sido grosseiro em sua atuação, nenhum
proveito trará ao contribuinte tratá-lo com a mesma grosseria. Não se pode
esquecer que o julgador na instância administrativa quase sempre é um fis-
cal. O tratamento ruim será recebido como se dirigido a todos os servidores
públicos.
310
Documentos – os que forem juntados à defesa não exigem reconheci-
mento de firma ou autenticação. Essa é a regra do artigo 988 do Decreto nº
3000/99 (RIR)9. As repartições costumam exigir reconhecimento de firma
na procuração. Por outro lado, é indispensável que sejam juntados todos os
documentos que tenham sido mencionados ou úteis à defesa. Nesse caso,
esses devem ser especificados na parte final da defesa.
Perícia – na defesa pode ser pedida a realização de perícia contábil ou ser
juntado laudo pericial extrajudicial, que ajuda muito no esclarecimento de
dúvidas tributárias. Tais perícias só podem ser feitas por contador.
Multas confiscatórias – ainda que na fase administrativa não se reconhe-
ça que as multas não são confiscatórias porque previstas em lei, deve o con-
tribuinte sempre invocar tal princípio, tendo em vista que pode acontecer
este reconhecimento em processo judicial.
Em 21 de setembro de 2007 foi publicada no Diário da Justiça da União
a Súmula nº 343, que afirmava ser indispensávela presença do advogado
para a realização da justiça, tendo em vista a observância das garantias cons-
titucionais do Contraditório e Ampla Defesa, in verbis: “É obrigatória a pre-
sença de advogado em todas as fases do processo administrativo disciplinar”.
Portanto, os defensores dessa tese afirmam que muito embora a presen-
ça de um advogado seja dispensável no processo administrativo, as normas
aplicadas ao processo administrativo tributário são de complexidade extre-
ma, o que acaba prejudicando o próprio contribuinte, sendo assim necessá-
ria a defesa técnica em benefício daquele que não está acostumado com tan-
tas normas, o que prejudica sua defesa perante os órgãos administrativos.
O processo tributário administrativo é uma importante ferramenta que,
se bem articulada às defesas e recursos interpostos pelo contribuinte, pode
conduzir à extinção do crédito tributário, sem necessidade do Poder Judi-
ciário, quando há justiça e equidade nos meios de defesa.
311
Contribuintes, com composição paritária entre representantes da fazenda
pública e dos contribuintes.
O surgimento dos Conselhos10 remonta a 1831, com a criação do pri-
meiro órgão centralizador de julgamento em última instância de processos
administrativos da fazenda pública. A partir do Decreto nº 16.580, de 4 de
setembro de 1924, foi positivada a possibilidade de criação de um Conselho
de Contribuintes em cada Estado e no Distrito Federal, sendo que o único a
entrar em funcionamento até o final de 1929 foi o federal do Rio de Janeiro,
então distrito federal. Com o decorrer dos anos foram criados outros, e hoje
temos vários federais, estaduais e municipais. Como o foco do presente tra-
balho é o Conselho do Município do Rio de Janeiro, não foi pesquisada a
quantidade nem em quais localidades da federação existe algum. Um exem-
plo que enfatiza a grande importância dos conselhos administrativos para a
sociedade é o escândalo do mensalão relacionado ao Conselho de Contri-
buintes Federal, que atinge diretamente o erário público, a ética e tantos ou-
tros bens coletivos.
Em razão do princípio da inafastabilidade da jurisdição, com fulcro no
art. 5º, inciso XXXV, da Constituição Federal11, via de regra, as decisões
proferidas no âmbito do processo administrativo, inclusive o fiscal, são sus-
cetíveis de apreciação pelo Poder Judiciário.
O Conselho de Contribuintes é o órgão colegiado de composição paritá-
ria responsável pela decisão de conflitos instaurados entre contribuintes e o
Fisco em relação ao crédito tributário. Segundo o Regimento Interno do
Conselho de Contribuintes do Município do Rio de Janeiro, o seu objetivo
é garantir ao contribuinte julgamento em segunda instância dos processos
administrativos fiscais que versem sobre tributos e contribuições, adminis-
trados pela Secretaria Municipal da Fazenda, com independência, imparcia-
lidade, celeridade e eficiência, colaborando para o aperfeiçoamento da legis-
lação tributária. É o Conselho de Contribuintes que, promovendo a revisão
de todo o lançamento tributário efetuado pelo Fisco, decidirá pela existên-
cia ou não do crédito tributário, conforme dispõe o art. 1º do Regimento In-
terno.
312
rios e de ofício contra decisões finais proferidas pela primeira instância em pro-
cessos administrativos tributários de natureza contenciosa, bem como os pe-
didos de reconsideração apresentados contra suas próprias decisões não unâni-
mes.
313
em primeira instância pela Coordenadoria de Revisão e Julgamento Tributá-
rios da SMF, referentes a processos administrativo-tributários de natureza
contenciosa.
O Conselho do Rio de Janeiro foi criado através do Decreto-Lei nº 6, de
15 de março de 1975, e recepcionado no Código Tributário Municipal de
14/12/1984 através da Lei nº 691.
Antes que o recurso voluntário do contribuinte à decisão da CRJ seja
apreciado pelo Conselho de Contribuinte é necessário que a fazenda pública
analise os argumentos apresentados, para o pleno exercício do contraditório.
Para tanto, o recurso é rebatido por um Representante da Fazenda, com for-
mação diversa, mas exigida reconhecida experiência em legislação tributá-
ria. Seus pareceres trazem um relatório de todo o caso concreto, para depois
apresentar a fundamentação com referência à doutrina jurídica e apontando
jurisprudência, o que dá mais robustez aos seus textos, que são chamados de
Promoção da Fazenda, com sua conclusão e a sugestão de voto. Por vezes, a
conclusão do seu parecer é a favor do contribuinte, tendo em vista que a sua
atribuição principal é de zelar pela aplicação correta da legislação tributária,
consoante o art. 14 do Regimento Interno13, e nem sempre foi o órgão fa-
zendário de primeira instância quem acertou; mas na grande maioria das ve-
zes, a sugestão de voto do representante da fazenda é a favor do fisco.
A experiência comprovada do representante da fazenda que irá analisar
o recurso à decisão da CRJ já é motivo suficiente para que o mesmo seja pro-
duzido com maior riqueza de informações e cuidado na sua elaboração.
Cabe apontar que, além da utilização de informações técnicas (matérias de
fato), tais como projetos de arquitetura para questionamento de lançamen-
tos, ofertas de imóveis para discutir valor venal e outros aplicados ao tipo de
fato gerador que está sendo impugnado, existem ainda questões puramente
jurídicas, tais como decadência, prescrição, preclusão e outros institutos dos
quais dificilmente o cidadão comum ou profissional de outra área de atuação
possua conhecimento suficiente para lançar mão e evitar que se percam seus
direitos. É fato também que a internet permite acesso a vasto material à dis-
posição de todos para contribuir na confecção da impugnação, mas é o pro-
fissional de direito que tem o conhecimento para escolher a melhor funda-
mentação, doutrina e jurisprudência para fazer uma tese de defesa competi-
tiva e com chances reais de êxito.
A dinâmica dos processos em condições de prosseguimento é a sua dis-
tribuiçãopara o Conselheiro Relator, que irá analisar todo o material juntado
pelas partes e se deparar, normalmente, com um recurso não fundamentado
apresentado pelo contribuinte e a réplica fundamentada feita pelo repre-
314
sentante da fazenda, o que o levará, em grande parte das vezes, a concordar
com a promoção apresentada.
Deve-se pontuar, que o Conselheiro Relator analisa todas as provas jun-
tadas aos autos e os argumentos apresentados pelas partes, podendo tam-
bém solicitar diligências ou pareceres técnicos para dirimir dúvidas, pesqui-
sar outras fontes, para ficar convencido e decidir com base nos fatos e na lei.
Cabendo esclarecer que os outros Conselheiros poderão agir de forma simi-
lar no julgamento, quando o mesmo é suspenso e transferido para outra
data, para os esclarecimentos cabíveis. A todos é garantido o princípio do li-
vre convencimento motivado.
Toda sessão do Conselho produz um Acórdão redigido pelo Conselheiro
Relator, onde estarão consignados o relatório, a conclusão da Representação
da Fazenda, o próprio voto e a decisão que se traduz no acórdão propriamen-
te dito.
No dia em que o processo entra em pauta, o julgamento se faz num ce-
nário similar ao de um tribunal judicial de segunda instância, tanto no aspec-
to físico quanto nos procedimentos. As sessões, embora similares às de tri-
bunais judiciais, são revestidas de menor formalidade e mais acessíveis ao ci-
dadão comum, onde é garantido o seu direito de defender oralmente a sua
tese, sendo a ele facilitado, inclusive, interceder nos debates entre os conse-
lheiros e o representante do fisco, para esclarecer seu ponto de vista.
Nesses momentos de defesa oral e permissão para manifestar-se durante
a discussão da matéria, acontece que, muitas vezes pela solenidade tácita
imposta pelo ambiente, expertise dos envolvidos e característica da sessão,
o cidadão comum acaba por sentir-se intimidado, e perde uma boa chance
de apresentar melhor seus argumentos. Este é outro momento em que um
profissional do direito pode contribuir bastante com apoio e conhecimento.
Depois de debatido o assunto, a questão é colocada em votação. As de-
cisões unânimes encerram a instância administrativa. Quando não, temos
duas hipóteses: resultado por maioria, quando caberá recurso especial ao Se-
cretário Municipal de Fazenda, na condição de chefe da estrutura adminis-
trativa à que a matéria está subordinada, ou porvoto de desempate, isto é, na
apuração do resultado dá empate entre os representantes do contribuinte e
do fisco. Dentro do prazo de 30 dias, a decisão fica sub judice, aguardando
algum pedido de reconsideração, e posterior, a decisão final.
Considerações Finais
315
com as controvérsias, o que permite que se discutam, inclusive, questões
que envolvam valores de pouca monta; é um processo menos oneroso, por
conta da própria gratuidade para interposição de impugnação, e por não ser
obrigatória a contratação de profissional técnico nem de advogado.
A eficiência do processo administrativo com igualdade de posiciona-
mentos das duas partes traduzir-se-ia em um excelente instrumento para
desafogar o Judiciário na medida em que o contribuinte teria exercido ple-
namente seu direito de defesa, e a decisão, independente se a favor ou con-
tra, estaria mais próxima da verdade, afastando seu interesse em continuar
com a lide, por se convencer do resultado.
Nesse sentido, restou demonstrado que a expertise do profissional do
Direito é um forte aliado para aumentar as chances de êxito nas controvér-
sias e, principalmente, chegar a um resultado mais justo, com as seguintes
contribuições: (1) Conhecimento para usar todo material disponível na le-
gislação federal, estadual e municipal, inclusive as normas administrativas
de forma apropriada, e para escolher a melhor argumentação para fazer uma
tese de defesa com chances reais de êxito; (2) Orientar o contribuinte na
escolha dos profissionais técnicos necessários (arquitetos, contadores etc.);
(3) Ser profissional com experiência em legislação tributária, com melhores
condições para apresentar argumentação compatível com a experiência do
Representante da Fazenda; (4) Conhecimento de questões puramente jurí-
dicas, tais como decadência, prescrição, preclusão e outros institutos para
lançar mão dos mesmos; (5) Dar apoio presencial na sustentação oral e dis-
cussão na sessão de julgamento; (6) Avaliar novos argumentos para apresen-
tação de pedido de reconsideração, para o caso de improvimento por voto
de desempate; (7) Analisar todo o contraditório em caso de improvimento,
para identificar se a questão foi exaurida, e caso contrário, avaliar as chances
de êxito pela via judicial; (8) Preparar o processo administrativo para ser
usado como prova na esfera judicial.
Portanto, cabe ao profissional do direito oferecer o seu conhecimento
jurídico em condições compatíveis com os requisitos e complexidade de
cada uma das duas esferas. Deve-se, no entanto, garantir que as impugna-
ções administrativas continuem sem a obrigatoriedade de capacidade postu-
latória do advogado para manterem-se como instrumento acessível à popu-
lação.
Referências
316
BRASIL. Rio de Janeiro (Município). Decreto nº 14.602, de 29 de fevereiro de
1996: regulamenta o procedimento e o processo administrativo – tributário
(PAT). Disponível em: https://www.legisweb.com.br/legislacao/?id=
178507. Acesso em: 20 ago 2017.
BRASIL. Rio de Janeiro (Município). Legislação tributária municipal. Disponível
em: “http://www2.rio.rj.gov.br/smf/fcet/legislacao.asp”. Acesso em: 20 ago
2017.
BRASIL. Rio de Janeiro (Município). Lei ordinária nº 691, de 24 de dezembro de
1984. Aprova o Código Tributário do Município do Rio de Janeiro e dá outras
providências (CTM). Disponível em: https://leismunicipais.com.br/a/rj/r/rio-
de-janeiro/lei-ordinaria/1984/69/691/lei-ordinaria-n-691-1984-aprova-o-co
digo-tributario-do-municipio-do-rio-de-janeiro-e-da-outras-providencias.
Acesso em: 20 ago 2017.
BRASIL. Rio de Janeiro (Município). Resolução SMF nº 2.694, de 29 setembro de
2011 que aprova o Regimento Interno do Conselho de Contribuintes do Mu-
nicípio do Rio de Janeiro. Disponível em: http://www.rio.rj.gov.br/docu-
ments/91253/3e689cc1-2bc5-4304-99d9-49255c32d965 . Acesso em
11/11/2017.
CONSELHO EDITORIAL: “DENISE. VERA LUCIA. SANDRO. et al. (2003)”.
Revista Tributária Municipal. Conselho de Contribuintes do Município do
Rio de Janeiro nº 1. 1. ed. Rio de Janeiro: Na Daugraf Gráfica e Editora. 2003.
CONSELHO EDITORIAL: “DENISE. VERA LUCIA. SANDRO. et al. (2003)”.
Revista Tributária Municipal. Conselho de Contribuintes do Município do
Rio de Janeiro nº 2. 2. ed. Rio de Janeiro. [s.n.], 2006.
HAIDAR, Raul. Matéria: Defesa do contribuinte nos autos de infração do Fisco.
2014. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2014-jul-21/justica-tributa-
ria-defesa-contribuinte-autos-infracao. Acesso em 29/09/2017.
MACHADO SEGUNDO, Hugo de Brito. Processo tributário 8. ed. 2015.
MONTEIRO, Eduardo Martins Neiva, CAMPOS, Hélio Silvio Ourem. Conselho
Administrativo de Recursos Fiscais – CARF. Portal Âmbito Jurídico. Dispo-
nível em http://ambitojuridico.com.br/site/index.php?artigo_id=
10510&n_link=revista_artigos_leitura. Acesso em 25/11/2017.
RIBAS, Lidia Maria Lopes Rodrigues. Processo Administrativo Tributário. Editora
Malheiros. 2008. p. 54-55.
317
Direito ao lazer e dano existencial: reflexos
nos direitos da personalidade do trabalhador
319
personality of the worker, always based on the principle of the dignity of the
human person, with support in the Federal Constitution and thus guaran-
tee, in a labor perspective, the inviolability of the right to honor, privacy,
identity and the subjective and existential essence of the worker. The right
to leisure is also present in the constitution, disposed as a fundamental so-
cial right, which makes it unavailable and inherent to the worker. Thus, the
question was also raised that, through the customary practice of the exten-
sive work days – the lived reality of many Brazilian workers – the injury to
the right to leisure arises from the need to indemnify the victim through in-
demnity for existential damage, compensating – o for the offense to the so-
cial right, as well as the negative reflexes to its personality and its existential
essence. Faced with the important essentiality of such a right that is rou-
tinely harmed, this article has brought a new trend in the labor courts,
which refers to the characterization of existential damage when absent from
the right to leisure – the main focus of this work –, attributing to the causa-
tive employer of the damage to the obligation to indemnify the offended
worker; also addressing doctrines and works that discuss this relatively new
legal issue, which is of Italian origin and imported into the Brazilian courts.
Introdução
320
controverso, já que um trabalhador disposto e prestativo não é o trabalhador
esgotado, exausto e desprovido do seu tempo para lazer. Como veremos
adiante, tal realidade causa reflexos negativos diretamente nos direitos da
personalidade do trabalhador,bem como ao seu projeto de vida e ao seu de-
selvolvimento pessoal.
Neste sentido, através do método dialético dedutivo, a expectativa do
presente trabalho de pesquisa visa identificar a prática indispensável e irre-
nunciável do direito ao lazer, como forma de garantir e proteger os direitos
fundamentais da personalidade do trabalhador, principal tese a ser trabalha-
da, bem como respeitar o princípio da dignidade da pessoa humana, tutela-
dos mediante indenização por dano existencial, analisando o cabimento em
atribuir responsabilidade ao empregador causador do dano.
321
livre iniciativa,pretendendo em meios a outros princípios, a busca pelo ple-
no emprego, bem como a redução das desigualdades regionais e sociais3.
A magnitude com a qual a constituição zela pelo valor do trabalho digno
resta evidenciada no corpo de seu texto, nos artigos 7º ao 11º, os quais dis-
põem sobre os direitos de todos os trabalhadores, tais como a duração do
trabalho não superior oito horas diárias e quarenta e quatro semanais, sendo
possível a compensação de horários e a redução da jornada, mediante acordo
ou convenção coletiva de trabalho; o repouso semanal remunerado, sendo
preferencialmente aos domingos, e o gozo de férias anuais remuneradas, re-
forçando nitidamente preceitos que visem à melhoria de sua condição exist-
encial.
À vista disso, é possível corroborar o entendimento de que a lei magna,
através de dispositivos que possuem aplicabilidade imediata, e que limitam
a quantidade de trabalho bem como asseguram ao trabalhador o acesso ple-
no ao seu tempo livre, intenta aproteger os direitos da personalidade do tra-
balhador.
Os direitos da personalidade são indisponíveis e fundamentais, pois são
aqueles que protegem a dignidade da pessoa humana, permitindo ao ser o
seu autodesenvolvimento como pessoa humana no mundo. (OLIVEIRA;
BELMONTE, 2015).
A dignidade da pessoa humana é o núcleo representativo dos direitos
fundamentais, que tem como principal essência a tutela e proteção da pes-
soa humana. (OLIVEIRA; BELMONTE, 2015).
Em que pese tais direitos possuam respaldo constitucional, face à evolu-
ção tecnológica da sociedade capitalista atual que prega a cultura da máxima
produção, surgem diariamente consequências que acabam por lesar tais di-
reitos dos trabalhadores, como por exemplo, a prática constante de jornadas
maçantes e excessivas de trabalho que os privam de ter o devido tempo li-
vre, seja para descanso, desenvolvimento pessoal, promoção social ou lazer.
Oliveira e Belmonte, em suas palavras, descrevem:
[...] Contudo, com o dinamismo social provocado por uma evolução vulcânica
das tecnologias e do desenvolvimento econômico gerado pelo modelo de pro-
3 O artigo 170 da Constituição Federal de 1988 esboça em seu caput e incisos seus
princípios e fundamentos na seguinte ordem disposta: “Art.170. A ordem econômica,
fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a
todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes
princípios: I – soberania nacional; II – propriedade privada; III – função social da pro-
priedade; IV – livre concorrência; V – defesa do consumidor; VI – defesa do meio am-
biente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos
produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação; (Redação dada pela
Emenda Constitucional nº 42, de 19.12.2003) VII – redução das desigualdades regio-
nais e sociais; VIII – busca do pleno emprego; IX – tratamento favorecido para as em-
presas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e
administração no País”. (BRASIL, 1988).
322
dução capitalista, surgem diversas situações não tipificadas nos ordenamentos
jurídicos que ofendem diretamente a dignidade da pessoa humana, fato que,
por vezes, provoca uma omissão social na tutela dos direitos decorrentes da
personalidade [...]. (OLIVEIRA; BELMONTE, 2015, p. 16).
323
São recorrentes os casos onde se encontra o esgotamento profissional
pelas jornadas de trabalho maçantes e excessivas, que são advindas da cultu-
ra capitalista e do desenvolvimento tecnológico em que a sociedade está in-
serida, onde o trabalhador esgota-se física e mentalmente em grande parte
da sua quota diária, privando-o de seu tempo livre para o aprimoramento
pessoal e lazer. Entretanto, paradoxalmente, é pertinente considerar que,
com o desenvolvimento tecnológico aumenta-se a produção e diminui-se o
trabalho, aumentando consequentemente, em tese, o tempo disponível para
o devido lazer.
É a linha de pensamento de Calvet, que em suas palavras:
324
tempo de trabalho, impedindo que o mesmo desfrute de uma vida digna,
privando-o de seu convívio social, familiar, atividades que o tragam prazer e
aprimoramento pessoal, impossibilitando-o de concretizar o seu projeto de
vida. O trabalho, vale ressaltar, tem essência social e não existencial, e a au-
sência ao direito ao lazer acarreta aos trabalhadores diversas consequências
existenciais negativas, bem como doenças físicas e psíquicas. (SILVA; WO-
LOWSKI, 2015)
Ao zelar sempre pela proteção da dignidade humana do trabalhador, ca-
racteriza-se a necessidade de se compensar, através de devida indenização, a
ausência do direito ao lazer decorrente de casos de excesso de trabalho e jor-
nadas laborais excessivamente extensivas. (SILVA; WOLOWSKI, 2015)
325
3.1. Dano moral e dano existencial
326
pelo autor, que laborou por cerca de 2 anos e três meses cumprindo jornada de
12,5 horas diárias de trabalho, além de dois domingos por mês e feriados, com
jornada de 10,5 horas de trabalho, gozando sempre de apenas 35 minutos para
descanso e alimentação, e sem gozo de férias neste período. Indenização por
danos morais devida, na modalidade de danos existenciais.
(TRT-4 – RO: 00011817420125040003 RS, Relator: MARCELO JOSÉ FER-
LIN D AMBRÓSIO, Data de Julgamento: 05/06/2014, 3ª Vara do Trabalho de
Porto Alegre)
[...] diz respeito ao conjunto de relações interpessoais, nos mais diversos am-
bientes e contextos, que permite ao ser humano estabelecer a sua história vi-
vencial e se desenvolver de forma ampla e saudável, ao comungar com seus
pares a experiência humana, compartilhando pensamentos, sentimentos, emo-
ções, hábitos, reflexões, aspirações, atividades e afinidades [...] (FROTA,
2011, p. 252)
327
quais sejam os familiares; os religiosos; os educacionais, os políticos; os eco-
nômicos e os sociais, que, reunidos, influenciam diretamente na formação
psique e existencial do ser humano, bem como nas suas escolhas pessoais,
dando sentido à sua razão existencial. (FROTA; BIÃO, 2010)
Ao sofrer restrição à realização do seu projeto de vida, através do cum-
primento de jornadas excessivas impostas ao indivíduo; do impedimento de
usufruir do seu tempo livre e lazer; bem como de efetivar o seu desenvolvi-
mento existencial,surge o chamado dano ao projeto de vida, vertente do
dano existencial.
Neste seguimento, corroboram Frota e Bião com tal entendimento:
328
3.3. Aplicabilidade do dano existencial na justiça do trabalho brasileira e a
responsabilização do causador de indenizar o ofendido
329
borava em jornadas extenuantes e reiteradas, não se tratando apenas de so-
brelabor permitido em lei, mas sim em ato reiterado e imposto pelo empre-
gador que lesa os direitos fundamentais da trabalhadora.
No mesmo sentido, o Tribunal Regional do Trabalho da 4ª região julgou:
CONCLUSÃO
330
buída ao ofensor causador do dano a obrigação de reparar, eis que é forma
efetiva de garantir e proteger os direitos fundamentais da personalidade do
trabalhador, repeitando assim, uma das principais bases do direito do traba-
lho no Brasil, que é o princípio da proteção à dignidade da pessoa humana.
REFERÊNCIAS
331
FROTA, Hidemberg Alves da. Noções fundamentais sobre o dano existencial. Ar-
tigo científico. Revista Latinoamericana de Derechos Humanos. Vol. 22 (2):
245, julio-diciembre, 2011.
OLIVEIRA, José Sebastião de. BELMONTE, Danilo Zanco. A tutela dos direitos
da personalidade em face do princípio da dignidade da pessoa humana. Arti-
go científico apresentado ao Grupo do Trabalho intitulado Direito Civil Con-
temporâneo I do XXIV Congresso Nacional do CONPEDI, realizado em Santa
Catarina. Santa Catarina, 2015.
PEREIRA, Marcela Andresa Semeghini. Direito ao Lazer: Construção Crítica do
Trabalho Humano Valorado Segundo a (Des)Ordem Econômica Constitucio-
nal. Dissertação de Mestrado apresentada ao programa de Mestrado da Uni-
versidade UNIMAR de Marília. Marília, 2015.
SILVA, Leda Maria Messias da. WOLOWSKI, Matheus Ribeiro de Oliveira. O as-
sédio moral por excesso de trabalho e suas consequências. Artigo científico
apresentado ao Grupo do Trabalho intitulado Direito do Trabalho e Meio Am-
biente do Trabalho do XXIV Congresso Nacional do CONPEDI, realizado em
Belo Horizonte. Belo Horizonte, 2015.
SOUZA, Patrícia Borba de. O Direito Fundamental ao Lazer dos Trabalhadores:
Uma discussão teórica. Dissertação de Mestrado apresentada ao programa
de Mestrado da Universidade Metodista de Piracicaba. Piracicaba, 2013.
332
A Saúde em Juízo
Introdução
Talvez o melhor título para este artigo seja “A saúde sem juízo”. Diante
do caos construído ao longo de algumas décadas, com o sucateamento da
rede pública de saúde, o aviltamento dos serviços médico-hospitalares gra-
tuitos e a proliferação de negócios, lícitos e ilícitos, que aproveitam este la-
mentável estado de coisas (como os planos privados de saúde e a corrupção
político-administrativa, dentre muitos exemplos), as dramáticas demandas
na área de saúde, em seus mais variados tipos (transplantes, fornecimentos
de remédios, tratamentos experimentais, internações urgentes, prestações
de home care, alterações de lugar nas filas internas dos hospitais, realizações
de exames, entre uma infinidade de outras hipóteses), buscaram a tutela ju-
risdicional como forma de proteção efetiva.
333
Nesse cenário, o Poder Judiciário foi transformado em instância assis-
tencialista, gerando-se uma enxurrada de ações judiciais, todas tendo por
base o preceito constitucional do art. 196, segundo o qual a saúde é direito
de todos e dever do Estado, redação genérica e programática, que a jurispru-
dência transformou em fonte de direitos individuais subjetivos, oponíveis às
três esferas governamentais, independentemente das restrições orçamentá-
rias e das normas que estruturaram o Sistema Único de Saúde (SUS), como
a Lei 8.080/1990, verbi gratia.
O direito universal à saúde (incluindo fornecimento de remédios, trata-
mentos médicos, exames pormenorizados, internações hospitalares, acom-
panhamentos especializados etc.) é muito mais amplo que os estreitos limi-
tes do controle judicial, exigindo políticas públicas de qualidade, voltadas
para a sua necessária efetivação, com o respectivo aumento de recursos or-
çamentários para as elevadas despesas do custeio da rede pública de saúde
(SUS).
334
na ANVISA. Não comprovação de grave lesão à ordem, à economia, à saúde e à
segurança públicas. Possibilidade de ocorrência de dano inverso. Agravo regi-
mental a que se nega provimento. [STF, Tribunal Pleno, STA 175 AgR / CE,
Rel. Min. GILMAR MENDES, DJe 30/04/2010]
335
ISTENCIAL. HOME CARE. 1. Trata-se de apelação interposta contra senten-
ça que, em ação ordinária, condenou os demandados a garantirem ao deman-
dante sua inclusão no programa de Atenção Domiciliar (Portaria GM/MS
963/2013), a ser efetuada pelo Município do Rio de Janeiro, assegurando ao
paciente o fornecimento de alimentação enteral, complementos alimentares e lei-
te em pó, sendo o Estado do Rio de Janeiro incumbido do fornecimento de cama
hospitalar, cadeira de banho e cadeira de rodas, conforme programa já existen-
te. 2. Não se conhece do agravo retido quando a parte não reitera o pedido de
apreciação na apelação ou nas contrarrazões (art. 523, §1º, CPC). 3. Não viola
o princípio da separação de poderes a decisão judicial que, para tornar efetivo o
direito fundamental à saúde, busca cumprir exatamente as medidas adminis-
trativas já implementadas pelo poder público, com o devido respeito aos princí-
pios constitucionais estabelecidos. (A tutela judicial do direito público à saúde
no Brasil. Direito, Estado e Sociedade. Vol. 41, 2012. p. 189. Disponível em:
“http://ssrn.com/abstract=2250121”). Precedente: STF, 1ª Turma, ARE
894.085-SP, Rel. Min. ROBERTO BARROSO, DJe. 17.02.2016. 4. Não se
mostram legítimas as alegações sobre violação à isonomia como impeditivas do
direito fundamental à saúde, uma vez que cabe ao Estado-Administrador, após
efetivamente reconhecido um direito subjetivo perante o Judiciário, como efeito
indireto da decisão, verificar a conveniência e oportunidade de estendê-lo aos
demais cidadãos nas mesmas condições do litigante originário, (O princípio da
isonomia na tutela judicial individual e coletiva, e em outros meios de solução
de conflitos, junto ao SUS e aos planos privados de saúde. p. 225. Disponível em:
“http://bit.ly/1T1r38T”). Precedente: TRF2, 5ª Turma Especializada, AI
00140210320114020000, E-DJF2R 28.3.2012. 5. A “reserva do possível”
(unter dem Vorbehalt des Möglichen), segundo um precedente do Tribunal
Constitucional Federal alemão (BVerfGE 33, 303), diz respeito a direitos de
beneficiar-se de prestações do Estado já existentes, dos denominados direitos
fundamentais derivados (grundrechtliche Verbürgung der Teilhabe), como, por
exemplo, os de participar de vagas existentes em universidades, e que se pode
razoavelmente exigir da sociedade, ou seja, dentro dos recursos orçamentários.
Isso não se confunde com os direitos fundamentais originários, que obrigam o
legislador a criar prestações ainda não existentes. Nesse contexto, a falta de
orçamento público não obsta a exigibilidade judicial do núcleo essencial dos di-
reitos fundamentais. Contudo, tratando-se de prestações de saúde vinculadas à
lei (direitos fundamentais derivados), a reserva do possível deve ser observada,
nos limites do orçamento, mas, neste caso, compete à Administração comprovar
– e não apenas alegar – que o orçamento não comporta a satisfação da pretensão
do demandante [...] (TRF2, 5ª Turma Especializada, AI
00140210320114020000, E-DJF2R 28.3.2012). 6. A medida de tratamento
domiciliar concedida está inserida na órbita do mínimo existencial, por já haver
regulamentação em sede infraconstitucional (Lei nº 8.080/90 e Portaria
GM/MS nº 963/2013), mostrando que o referido programa possui previsão or-
çamentária própria. 7. Apelação e remessa necessária não providas. Agravo re-
tido não conhecido. [TRF-2ª Região, 5ª Turma Especializada, Apelação Cível
0000519-20.2011.4.02.5101, Rel. Desembargador Federal RICARDO PER-
LINGEIRO, e-DJF2R 05/07/2016]
336
Da Falta de Isonomia
337
PEDIDO DE REALIZAÇÃO DE CONSULTA E PROCEDIMENTO CIRUR-
GICO. VOTO NO SENTIDO DE SER RESPEITADA A FILA DE ESPERA
RESPEITANTO ASSIM ORGANIZAÇÃO ADMINISTRATIVA DO INTO.
RECURSO CONHECIDO E PARCIALMENTE PROVIDO. [TRF-2ª Região,
1ª Turma Recursal dos Juizados Especiais Federais, Recurso Inominado
0141518-57.2017.4.02.5151/01, Rel. Juíza Federal LILEA PIRES DE ME-
DEIROS, Julgamento em 14/12/2017]
338
MEDICAMENTOS. CONTROVÉRSIA ACERCA DA OBRIGATORIEDA-
DE E FORNECIMENTO DE MEDICAMENTOS NÃO INCORPORADOS
AO PROGRAMA DE MEDICAMENTOS EXCEPCIONAIS DO SUS. 1. De-
limitação da controvérsia: obrigatoriedade de fornecimento, pelo Estado, de me-
dicamentos não contemplados na Portaria n. 2.982/2009 do Ministério da Saú-
de (Programa de Medicamentos Excepcionais) . 2. Recurso especial afetado ao
rito do art. 1.036 e seguintes do CPC/2015 (art. 256-I do RISTJ, incluído pela
Emenda Regimental 24, de 28/09/2016). [STJ, ProAfR no REsp 1.657.156/RJ,
Rel. MINISTRO BENEDITO GONÇALVES, Publ. 03/05/2017]
Conclusões
339
tório ou depósito judicial), criando novos problemas no tocante à prestação
de contas destes valores, que são recursos públicos.
O direito à saúde precisa ser efetivado sem a necessidade da tutela juris-
dicional, nunca sendo excessivo recordar que a omissão dos governantes em
melhorar as condições mínimas da rede pública de saúde, perpetuando o
quadro caótico atual, pode caracterizar improbidade administrativa e diver-
sos outros ilícitos, inclusive penais, desrespeitando a própria dignidade da
pessoa humana, um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito,
como reconhecido expressamente pelo art. 1º, inciso III, da Constituição
Federal.
340
O direito à justa memória para a preservação
da dignidade humana: um novo
direito fundamental
341
that did not actually happen, which leads to a false memory and The reality
of the past causing suffering to countless families of political disappeared.
1 – INTRODUÇÃO:
342
A identidade do indivíduo é colocada como elemento fundamental para
o encontro de sua própria história e do equilíbrio social, o que justifica a con-
cretização da igualdade e consequentemente da compreensão dos Direitos
Humanos, no caso da relevância da preservação da memória.
Todos os dispositivos repressivos, dos mais sutis aos mais invasivos, tinham
como objetivo principal internalizar normas, valores e condutas que fizessem
de cada indivíduo um aliado do regime, defensor e propagador da “nova or-
dem”. As campanhas desenvolvimentistas e as propagandas políticas ideológi-
cas e ufanistas, por exemplo, foram importantes estratégias adotadas (Ribeiro,
1987). Nesse contexto, as práticas repressivas atacaram diretamente os “comu-
nistas”, os “subversivos” e os “extremistas”, sendo que o restante da sociedade
não ficou ileso a outras práticas rígidas de controle adotadas, tais como a dela-
ção e a vigilância, que atingiam não apenas o corpo, mas a moral e a dignidade
de qualquer pessoa vinculada diretamente aos opositores do regime, principal-
mente aos militantes políticos.
343
histórico caracterizou-se pela constante rivalidade entre Estados Unidos e
União Soviética, dois países que saíram fortalecidos ao término da Segunda
Guerra.
Os Estados Unidos, em especial, estabeleceram-se como líderes de um chama-
do “bloco capitalista”, constituído de países que adotaram esse sistema econô-
mico. Em contrapartida, a União Soviética liderava um bloco de países ditos
socialistas. Cada uma dessas potências considerava-se defensora desses siste-
mas econômicos, respectivamente.
Assim, a rivalidade entre os dois países permaneceu muito mais no campo da
batalha ideológica que do confronto direto, exceto em alguns países do chama-
do “Terceiro Mundo”, que sofreram com intervenções em seus territórios,
como aconteceu na Coréia (1950-53) e no Vietnã (1965-75).
344
mnemônico egoísta, sem relevar a consciência coletiva. A memória e a ima-
ginação estão interligadas no interior do ser humano. Ao despertar a memó-
ria, imediatamente é despertada a imaginação, quando é permitida a reme-
moração ao ser humano. Se não há a possibilidade de imaginar os fatos ver-
dadeiros de sua história, ao ser humano é impossível preservar sua memória.
Os fatos históricos que não são verdadeiramente reproduzidos não for-
mam a “memória”, se delimitam à imaginação. Quando uma história não é
contada como realmente aconteceu, a mente humana não possui memória e
sim imaginação, ou seja, idealiza a situação de acordo com a sua reprodução
mental daquilo que foi relatado, por isso é importante a preservação dos fa-
tos históricos como verdadeiramente aconteceram para preservação de sua
história.
Ricoeur (2007) afirma ainda que a análise do tempo e a análise da me-
mória se sobrepõem. Explica que a análise da memória refere-se à conexão
entre memória e imaginação, vinculada à alma sensível:
345
Os povos sem memória desaparecem. Não há povo sem memória, porque a
memória não nos leva a ficar apenas no passado: nos ajuda a iluminar o presen-
te. A construir a vida. De uma forma ou de outra, quer a gente queira, quer não
o passado está sempre presente. E o presente propriamente dito é fruto de um
determinado passado. Portanto, quando se fala em resgatar a memória, não se
está apenas querendo remexer o passado, mas analisar, perguntar: por quê? Por
que aconteceram essas coisas?
A memória das coisas terríveis não deve jamais ser relegada a um canto do sótão
ou do porão, onde se possa cobrir de poeira e esquecimento. Pelo contrário,
deve ser deixada sempre à vista de todos, para que as coisas terríveis, relembra-
das, não tornem a acontecer.
346
tos coletivos, que incluem o direito de solidariedade, cuja proteção cabe ao
Estado em face do conjunto dos indivíduos, baseado na fraternidade (MAR-
MELSTEIN, 2008).
Nasce o direito fundamental à “justa memória” em harmonia com os
três principais pilares dos direitos fundamentais: liberdade, igualdade e fra-
ternidade. Trata-se de um direito individual, coletivo e social, com a garan-
tia de dignidade, embora insuficiente para amenizar a dor das vítimas sobre-
viventes e das famílias daqueles que não sobreviveram ou desapareceram
durante a ditadura na América Latina.
Segundo Paul Ricoeur (2007), os fatos reais não verdadeiramente co-
nhecidos pelo indivíduo induzem a uma “opinião falsa”, uma associação do
pensamento à determinada situação que realmente não aconteceu. Leva a
uma falsa memória e afasta a realidade do passado.
O fim do período ditatorial na América Latina induz o imediato desinte-
resse das autoridades em restabelecer o passado, porém, a sociedade perce-
be a necessidade de destruir uma realidade adulterada em favor da preser-
vação das memórias e, aos poucos, cada país inicia o resgate de sua história.
A sociedade começa a transformar o inconformismo com o injusto e a
opressão em força positiva, partindo do caráter negativo do inconformismo
para tentar buscar soluções positivas. A natureza negativa do inconformismo
diante das circunstâncias, neste caso, arbitrárias e violentas causadas pela di-
tadura militar é fundamental para impulsionar a indagação e obtenção da
preservação da história e, consequentemente, de sua memória.
A preocupação de Paul Ricoeur (2007) fundamenta-se na disseminação
de dados fáticos enganosos, com o objetivo de escamotear a verdade, levan-
do o povo ao erro ao dissimular sua história e memória produzida pelo es-
quecimento dos eventos históricos
Citando o exemplo do Chile, onde ocorreram barbaridades jamais prati-
cadas na história do país, inicia-se a busca da verdade através de “Comissões
da Verdade”, em 1990, sob a iniciativa do Presidente Patricio Aylwin. (NE-
POMUCENO, 2015)
Nepomuceno (2015, p. 98) descreve a perseverança do povo chileno:
São espaços de encontro, que nos falam de um pacto para não esquecer. E hoje,
no Chile, graças à perseverança de quem não se rendeu na busca da verdade, da
justiça e da memória, a maioria dos chilenos reconhece que no país foram vio-
lados os direitos humanos e rejeita o que aconteceu.
347
bém promove o resgate dos fatos reais para preservação de sua história e me-
mória com a construção do Museu da Memória e Direitos Humanos, inau-
gurado em 2010, cujo objetivo vale ser citado:
5 – CONCLUSÃO
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
348
FRANCISCO, Wagner De Cerqueira E. O Brasil na Guerra fria. Disponível em
“http://brasilescola.uol.com.br/geografia/o-brasil-na-guerra-fria.htm”. Acesso
em 30 de abril de 2016.
GIANORDOLI-NASCIMENTO. VELOSO, Ingrid faria. CORRÊA, Flávia Gote-
lip. SILVA, Sara Angélica Teixeira da Cruz. CRUZ, Jaiza Pollyana Dias. OLI-
VEIRA. COSTA, Flaviane da. A construção da memória histórica da ditadura
militar brasileira: contribuição das narrativas de familiares de presos políticos.
Psicologia e Saber Social, 1(1), 103-119, 2012.
MARVILLA, Miguel. Ditaduras não são eternas. Espírito Santo: Flor e Cultura,
2005.
MUSEU DA MEMORIA. Disponível em “http://ww3.museodelamemoria.cl/so-
bre-el-museo”. Pesquisado em 30/04/2016.
MARMELSTEIN, George. Curso de direitos fundamentais. São Paulo: Atlas, 2008.
NEPOMUCENO, Eric. A memória de todos nós. Rio de Janeiro: Record, 2015.
RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. São Paulo: UNICAMP,
2007.
349
O sistema proporcional e o déficit de
cidadania no Brasil
351
Introdução:
352
ticos, uma realidade eleitoral distorcida. Com efeito, será possível concluir
ao final que o voto proporcional, por suas peculiaridades, afasta a relação en-
tre eleitores e eleitos e impede, em nossa visão, o adequado desenvolvimen-
to do sistema democrático no Estado brasileiro.
353
Diante desse quadro é que surgirá em meados do século XIX o sistema
proporcional, cujo fundamento é permitir que determinadas parcelas da so-
ciedadepossam se fazer representar no processo das escolhas políticas de de-
terminado Estado funcionando como instrumento contramajoritário, espe-
cialmente em caso de tiranias.
Em que pese ter feição “popular”, por opor o direito de minorias em de-
trimento da maioria, o sistema proporcional foi defendido inicialmente por
liberais que, receosos com a ampliação do direito ao voto, temiam que a clas-
se educada não tivesse mais relevância na participação política. Nesse senti-
do esclarece CINTRA (2000, p.13):
Temiam eles que, com a extensão do direito de voto a amplas parcelas da po-
pulação, já em curso, as minorias educadas fossem definitivamente banidas da
representação política caso permanecesse em vigor o sistema majoritário. De-
pois, o reclamo do sistema proporcional foi assumido pelos socialistas. Nume-
rosas reformas se sucederam entre o final do século XIX e o começo do XX, a
fim de implantá-lo. Mas não foi uma evolução simples, que se possa resumir
dizendo que a esquerda era proporcionalista e a direita majoritarista. Na verda-
de, a grande luta da esquerda era pela ampliação do direito do voto, eliminan-
do-se restrições censitárias, de alfabetização e os votos ponderados.
O segundo remédio contra a tirania da maioria consiste, para Mill, numa mu-
dança do sistema eleitoral, isto é, na passagem do sistema majoritário – pelo
qual todo colégio tem o direito de conduzir apenas um candidato e dos candi-
datos em disputa aquele que recebe a maioria dos votos (não importa se em um
ou dois turnos) vence e os demais perdem – para o sistema proporcional (que
Mill acolhe seguindo a formulação de Thomas Hare, 1806-1891), que assegura
uma adequada representação também às minorias, em proporção aos votos re-
cebidos ou num único colégio nacional ou num colégio amplo o suficiente para
permitir a eleição de vários representantes. Ao apresentar as vantagens e as
qualidades positivas do novo sistema, Mill sublinha o freio que a maioria encon-
traria na presença de uma minoria aguerrida capaz de impedir a maioria de abu-
sar do próprio poder e, portanto, a democracia de degenerar.
Walter Costa Porto (apud BASSETTO 2016, p.25) informa que o siste-
ma proporcional foi discutido formalmente pela primeira vez no Brasil em
1893 por força de projeto do Deputado Assis Brasil, posteriormente não
aprovadono Congresso Nacional. Após outras tentativas frustradas, a ideia
acabou sendo efetivada no primeiro Código Eleitoral Brasileiro, o Decreto
21.076 de 1932, promulgado por Getúlio Vargas.
Para além dos sistemas majoritário e proporcional vistos acima, existem
experiências europeias que permitem a combinação de ambos dentro ou não
354
de distritos eleitorais previamente delineados, o que, por suas especificida-
des, características e peculiaridades nos afastaria do escopo do presente ar-
tigo que tem como base o direito brasileiro e sua aplicação prática. Passe-
mos, assim, a análise histórica dos sistemas eleitorais no Brasil.
355
foi possível a instituição de uma nova legislação eleitoral, o Código Eleitoral
de 1932, que, após a criação do Tribunal Superior Eleitoral e dos Tribunais
Regionais Eleitorais possibilitou o voto feminino e implantou o voto secreto.
Todo esse avanço, porém, durou muito pouco na medida em que, com a
instituição do Estado Novo, a participação política foisignificativamente res-
tringida, sendo relevante indicar, por seu caráter simbólico, que o regime
então constituído jamais efetivou o plebiscito que deliberaria sobre a própria
Carta de 1937, conforme originariamente estabelecido no artigo 187 do re-
ferido diploma constitucional.
Após a Segunda Guerra Mundial, a pressão pela volta da democracia
permitiu a reorganização partidária e convocação de novas eleições que cul-
minou, em dezembro de 1945, com a eleição do general Dutra com a maio-
ria dos votos.
Somente com a Constituição de 1946 foi instituído efetivamente o sis-
tema proporcional no Brasil, consequência direta da multiplicação do núme-
ro de partidos políticos que foram criados com o fim do Estado Novo. Como
bem indicado por BALEEIRO (2012 p.15), essa reprodução de partidos en-
fraqueceu tanto o governo como as oposições existentes, valendo destacar,
nesse sentido, a falta de sua apropriação para a prática brasileira conforme
esclareceu à época ARINOS (p.137):
356
verdadeiras finalidades, que são as de encarnar autêntica e legitimidade as reais
correntes de opinião, embasadas em princípios ideológico-partidários. (CU-
NHA, 1973 apud RAMAYANA, 2015 p. 162)
357
permanência da supremacia da vontade da camada mais abastada, excluindo
a parcela da população já constantemente excluída econômica e socialmente
dos direitos em geral.
Conforme dito anteriormente, a consequência desse desligamento das
funções originais do sistema proporcional, a saber, dar voz a todas as cama-
das da população, gerou uma ausência do sentimento de representação por
parte da população brasileira, certo de que, dentre os diversos denominado-
res possíveis, a própria constituição da “cidadania brasiliense” parece ser um
dos mais importantes para a consolidação da realidade nacional em que vive-
mos.
Em uma realidade cujos direitos foram tipicamente outorgados e não
conquistados, é tarefa difícil desvencilhar os vícios que macularam nossa ci-
dadania, razão pela qual, o voto, expressão máxima de cidadania, não serve
para corroborar ou legitimar o governo, mas perpetuar um sistema falho e
antagônico criado pelo próprio ordenamento jurídico brasileiro.
Comecemos destrinchando o conceito de cidadania, o que nos iluminará
o suficiente para a compreensão desta afirmação. Para CARVALHO (2008)
a cidadania é constituída basicamente de direitos civis, direitos sociais e di-
reitos políticos. A falta de um deles é o bastante para que o cidadão se torne
“incompleto”. Temos como expressão dos direitos civis os direitos funda-
mentais à vida, como à liberdade e à propriedade; como expressões dos di-
reitos sociais o direito à educação e ao trabalho, ecomo exemplo dos direitos
políticos o direito ao voto.
Em um país relativamente novo, tivemos períodos muito longos de pou-
co ou nulo progresso da cidadania, certo de que, sem adentrar muito no mé-
rito da questão, não se pode deixar de ressaltar que o Brasil foi uma colônia
de exploração e não de povoamento como em outros lugares da américa la-
tina, e, apesar de haver unidade territorial, linguística e cultural, nossa eco-
nomia era basicamente monocultora e latifundiária, gerando pouco “espírito
cívico”, o que fez com que à época da independência não houvesse cidadãos
brasileiros, sequer uma pátria. (CARVALHO 2008 p.18)
Contribui para o pouco espírito cívico o fato de que os direitos no Brasil
foram conquistados de maneira pacífica, com poucas lutas, diferentemente
da América Espanhola e dos países do Velho Continente. A nossa própria
independência se deu de maneira negociada, com a finalidade de atender
aos interesses ingleses e portugueses em primazia aos nossos próprios direi-
tos.
Diferente é o caso da Inglaterra do século XIX. MARSHALL (1967 p.
63), esclarece que a forma pela qual os direitos sociais, civis e políticos se
desenvolveram em solo inglês obedece muito mais a uma ordem cronológica
do que lógica propriamente dita. Segundo o referido autor,os direitos civis
foram constituídos ao longo do século XVIII enquanto que a predominância
dos direitos políticos ocorreu no século XIX. Com a devida obtenção desses
direitos, passou-se em seguida a observar com maior ênfase os direitos so-
ciais, sendo estes o grande assunto do século XX.
358
Os direitos civis representaram a conquista do Habeas Corpus, da abo-
lição da censura de imprensa e o direito de trabalhar,de modo que, no final-
do século XVIII, quando houve a ambição dos direitos políticos, já havia
uma sólida fundaçãoem relação a tais direitos.
Quando os direitos civis assumiram esse caráter geral, passando a per-
tencer ao conjunto da sociedade como um todo, é possível observar a forma-
ção dos direitos políticos como instrumento de equilíbrio e a homogeneiza-
çãodos diversos grupos sociais então existentes.Com tais avanços, a legisla-
ção eleitoral da época, que pode ser considerada subproduto direto dos di-
reitos civis, expandiu-se e continuou restrita: o número de eleitores aumen-
tou, mas permaneceu ínfimo frente a população total. Vale ressaltar que a
partir do século XX, com a adoção do sufrágio universal, os direitos políticos
perderam essa característica secundária e passaram a ser tratados autonoma-
mente.
Movida pela industrialização, os trabalhadores foram expostos a toda
sorte de tratamentos desumanos. A burguesia, grande controladora do siste-
ma capitalista, tinha como único objetivo a maximização dos lucros, e para
chegar a esse resultado, se valia da máxima exploração do trabalhador.
Importante lembrar que segundo Marshall (1967 p.88) os direitos so-
ciais compreendiam um mínimo que não fazia parte do conceito de cidada-
nia com a finalidade de “diminuir o ônus da pobreza sem alterar o padrão de
desigualdade”, padrão este do qual logicamente a pobreza decorria.
Isso gerou uma revolução não só no campo trabalhista, mas também no
campo eleitoral. No final da década de 1830, surgiu na Inglaterra um movi-
mento denominado de cartista, cujos objetivos centrais eram reivindicações
políticas. Esse movimento almejava uma reforma parlamentar que garantis-
se uma representação mais equilibrada nas eleições distritais; a abolição do
censo eleitoral exigido dos candidatos ao parlamento; o sufrágio universal
masculino para os maiores de 21 anos; mandatos parlamentares anuais; voto
secreto; pagamento de salário aos parlamentares, além da reforma dos dis-
tritos eleitorais.
Com tais reivindicações, buscava-se chegar a uma democratização do
parlamento, facilitando o acesso a ele. O Parlamento Inglês não aceitou a
proposta e diversos líderes cartistas foram presos. Uma nova proposta foi
feita pelo movimento e mais uma vez o Poder Legislativo Inglês se mostrou
pouco propenso a mudanças. Apesar desses ditos fracassos, o Partido Liberal
percebeu que havia a necessidade de conceder alguns direitos aos trabalha-
dores, e uma série de direitos sociaise políticos foram aprovados.
Percebe-se que a construção do cidadão europeu, no caso em estudo o
inglês a partir da ótica de MARSHALL, se deu através de uma série de even-
tos onde a conquista de um direito foi elemento condutor e anterior à con-
quista dos outros. Depois que os ingleses conquistaram seus direitos civis,
foram em busca dos direitos políticos e esperaram por um longo tempo para
obter os direitos sociais.
359
Não há aqui a ingenuidade de pensar que uma cidadania somente será
“genuína” caso obedeça especificamente a essa ordem de obtenção de direi-
tos, até porque não se pode esperar que a população esteja sempre à frente
do regime democrático. Todavia, no Brasil, além de não haver nitidamente
uma obediência a essa ordem temporal, para além dos governantes, mas a
carga de gerir o sistema democrático é conferidaao Estado e isso gerou aqui-
lo que é chamado, por que não, de “cidadãos dóceis”, cujos direitos foram
obtidos sem grandes tensões sociais e não conquistados.
A participação política de nossa sociedade sempre foi tímida, tanto que,
no episódio da Proclamação da República, Aristides Lobo disse a célebre fra-
se: “E o povo assistiu bestializado à proclamação da República”.
Segundo o autor José Murilo de Carvalho (2008 p.67),
360
decorria da tradição e herança histórica, sustentando-se por si mesma, sen-
do, portanto superior à constituinte bem como ao restante da sociedade bra-
sileira. (2010 p.213)
A Assembleia Constituinte sofreu inúmeras crises, a primeira delas a
partir da ideia defendida pelos democratas da cláusula do juramento prévio,
segundo a qual o imperador não era um imperador qualquer, mas um “Im-
perador Constitucional”, tendo seus poderes limitados pela Constituição. E,
como tal, deveria jurar a constituição antes mesmo que ela fosse elaborada
Em um discurso feito aos deputados, D. Pedro deixou clara a missão a
qual estavam vinculados, que era de criar uma Constituição que colocasse
barreiras ao despotismo, que pregasse a união, tranquilidade e inde-
pendência do Império, e uma constituição digna do Brasil e do Imperador
(GOMES, 2010 p.216).
Em razão das diversas dissidências sobre qual deveria ser a posição do
Imperador na organização político-institucional brasileira, a Assembleia foi
dissolvida e D. Pedro I outorgou a primeira Constituição brasileira em 25 de
março de 1824, cujo texto, avançado em termos de direitos civis e sociais,
aliada a baixíssima (para não dizer nula) representação da vontade brasileira,
contribuiu para um espírito cívico “dócil”, que aceitou a imposição desses
direitos sem reclamar a falta de tantos outros, como os políticos por exem-
plo.
Outro grande exemplo é período da Ditadura Militar, momento em que
uma série de leis foram aprovadas sem que, contudo, a população pudesse
demonstrar seu descontentamento.Com a ampliação da participação políti-
ca anterior a 1964, houve uma resistência que culminou na imposição de
mais um regime ditatorial em que os direitos civis e políticos foram limita-
dos pela violência(CARVALHO 2008 p.157).
Podemos dividir o período ditatorial no Brasil em três grandes fases. A
primeira compreenderia os anos de 1964 a 1968, caracterizando-se por um
período de intensa atividade repressiva seguida de sinais de abrandamento.A
segunda fase engloba os anos de 1968 e 1974, e teria sido a mais brutal, prin-
cipalmente no que se refere à restrição dos direitos políticos e civis. Nessa
etapa da Ditadura Militar, houve intensa repressão política, apesar das taxas
de crescimento econômico. Esse período no Brasil foi configurado por essas
diversas formas de “maquiar” a supressão de direitos fundamentais.
A terceira fase pode ser considerada como fase de transição para o perío-
do democrático. Concebida a partir de 1974 com a posse do general Geisel,
esse período arrastou-se até 1985, e ficou marcado pela retomada dos mili-
tares liberais ao poder, onde houve uma tentativa de liberalizar o sistema, a
despeito da forte oposição dos órgãos de repressão. Vale destacar que a opo-
sição, a partir desse momento, começou a dispor de maior participação po-
lítica.
Os instrumentos utilizados pelo governo, para encarnar a repressão fo-
ram os atos institucionais. O primeiro deles, o AI nº 1, foi responsável pela
cassação dos direitos políticos no período de dez anos de boa parte dos líde-
361
res políticos e sindicais, bem como de intelectuais e militares. Instituído em
nove de abril de 1964, regulou também as aposentadorias forçadas de fun-
cionários públicos (civis e militares) e o fechamento de órgãos ligados ao
movimento operário.
O AI nº 2, datado de outubro de 1965 aboliu a eleição direta para presi-
dente da República, desmanchou partidos políticos criados após 1945, e es-
tabeleceu o bipartidarismo (CARVALHO 2008 p. 161). Os poderes do pre-
sidente “fermentaram”, podendo, inclusive, destituir o parlamento, intervir
nos estados e decretar estado de sítio.
Em 1968 surge o mais grave destes atos: o AI nº 5. Como o Congresso
foi fechado, o então presidente Costa e Silva passou a governar de forma di-
tatorial. Reiniciaram-se as cassações de mandatos, suspenderam-se os direi-
tos políticos de deputados e vereadores, e houve demissões sem justa causa
de funcionários públicos.
No comando do general Médici, tivemos o maior dos retrocessos coma
volta da pena de morte. E detalhe, a pena de morte era por fuzilamento.
Essa pena não era mais imposta sequer no período imperial. Em 1970 tive-
mos a inserção da censura prévia em jornais, livros e demais meios de comu-
nicação. A censura à imprensa aboliu a liberdade de opinião; não havia liber-
dade de reunião (CARVALHO 2008 p. 163).
Uma discussão feito por CARVALHO em seu livro “Cidadania no Bra-
sil”, dentre as várias existentes, chama a atenção: durante os governos mili-
tares houve um acréscimo do número de eleitores. Em1960 cerca de 12,5
milhões de pessoas votaram nas eleições presidenciais. Em 1986 esse núme-
ro passou para 65, 6 milhões. Mas o que significaria votar, para esses cida-
dãos, sendo que outros inúmeros direitos lhes eram extirpados? O ato de vo-
tar poderia, nessas circunstâncias, ser considerado pleno exercício de um di-
reito político?
Durante todo esse período de censura aos direitos civis e políticos, os
governos buscaram, como forma de contraprestação, aumentar os direitos
sociais. Esse paternalismo gerou aumento em direitos trabalhistas, por
exemplo, mas, em contrapartida, colocou a população a sombra de sua pró-
pria cidadania,pois não mais detentora de todos os direitos, apenas de parte
deles.
O saldo da cidadania brasileira é então de uma cidadania parcial, nunca
exercida plenamente. Nos governos militares, houve ampliação dos direitos
sociais, principalmente previdenciários, mas não dos políticos. No período
democrático houve avanço dos direitos políticos, mas suspensão ou ligeiro
progresso dos direitos sociais que não resultaram em avanços dos direitos ci-
vis.
Isso nos leva a refletir sobre a maneira como se desenrolou a cidadania,
e se, de fato, alguma vez a exercemos. Como esclareceuma vez mais CAR-
VALHO (2008 p. 12), a construção da cidadania tem a ver com a relação
com o Estado e com a nação, de modo que as pessoas só se tornam cidadãs
362
no momento em que se tornam parte de uma nação e de um Estado, gerando
lealdade e identificação de uma unidade.
Ora, não há maior prerrogativa que gere identidade e lealdade com uma
nação do que o direito ao voto. Sabe-se, inclusive, que no Brasil, assim como
em grande parte dos Estados ocidentais, o voto tomou a dimensão e o status
de representante da cidadania, ou seja, uma personificaçãodos direitos e de-
veres de cidadão. Logo,exercê-lo de maneira dúbia nos torna, com efeito,
“cidadãos incompletos”, retirando um dos pilares primordiais de sua exis-
tência.
De fato, a despeito da Constituição de 1988 ter eliminado grandes obs-
táculos aos direitos políticos através da universalidade de voto, permanece-
mos em uma realidade eleitoral distorcida em que o voto proporcional, por
suas peculiaridades, afasta os eleitores de seus eleitos e impede, em nossa
visão, o adequado desenvolvimento do sistema democrático no Brasil.
Considerações finais:
363
modo que o restante foi eleito a partir das idiossincrasias que a aplicação do
sistema eleitoral gera na prática.
Isso leva ao sentimento por parte do povo brasileiro de que não está sen-
do devidamente representado por tais políticos,não só pelo comportamento
dos mesmos, mas por saber que o candidato escolhido, ainda que tenha um
bom número de votos, pode não ser eleito por não ser estar inserido em um
partido de relevância eleitoral.
Desta feita, acredita-se que o Brasil necessita de uma reforma eleitoral,
alterando dispositivos que permitem aos partidos, bem como às coligações,
arquitetar a escolha de nossos representantes, de modo que a escolha caiba
tão somente, para melhor ou para pior, aos cidadãos brasileiros.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALMEIDA, Roberto Moreira de. Curso de direito eleitoral. 6ª Ed. revista, amplia-
da e atualizada Salvador: Podivm, 2012.
BALEEIRO, Aliomar; Lima Sobrinho, Barbosa. Constituições Brasileiras. Vol. 5 –
3ª ed. – Brasília: Senado Federal Subsecretaria de Edições Técnicas, 2012.
BALZA, Guilherme. Campanhas eleitorais vão custar até três Copas do Mundo.
São Paulo, 02 de agosto de 2014. Disponível em: https://eleicoes.uol. com. br/
2014/ noticias/2014/08/02/r-74-bilhoes-campanhas-eleitorais-vao-custar-
ate-tres-copas-do-mundo.htm Acesso em 05 de março de 2017.
BARBOSA, Leonardo Augusto de Andrade. História constitucional brasileira: mu-
dança constitucional, autoritarismo e democracia no Brasil pós-1964. Brasília:
Câmara dos Deputados, Edições Câmara, 2016.
BILENKY, Thais. Forças Armadas lideram confiança da população: Congresso
tem descrédito. Folha de São Paulo, São Paulo, 24 de junho de 2017. Disponí-
vel em: http://www1.folha.uol.com.br/poder/2017/06/1895770-forcas-ar-
madas-lideram-confianca-da-populacao-congresso-tem-descredito.shtml.
BONAVIDES, Paulo. Ciência política. 10. ed., São Paulo: Malheiros, 1994.
BRAMATTI, Daniel e Burgarelli, Rodrigo. Saiba quem foi eleito na ‘carona’ de Ti-
ririca e Russomanno. O Estado de S. Paulo. São Paulo, 08 de outubro de 2014.
Disponível em: http://politica.estadao.com.br/noticias/eleicoes,saiba-quem-
foi-eleito-na-carona-de-tiririca-e-russomanno,1573406
CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil: o longo caminho. 10ª ed. Rio
de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 2008.
CAVALCANTI, Themístocles Brandão; Brito, Luiz Navarro de; Baleeiro, Aliomar.
Constituições Brasileiras.Vol. 6- 3. ed. – Brasília: Senado Federal, Subsecre-
taria de Edições Técnicas, 2012.
FARIA NETO, Pedro Sabino de. Ciência política: enfoque integral avançado. São
Paulo: Atlas, 2011.
FRANCO, Afonso Arino de Melo. Estudos e discursos. São Paulo: Editora Comer-
cial, 1961.
GOMES, Laurentino. 1822:como um homem sábio, uma princesa triste e um esco-
cês louco por dinheiro ajudaram D. Pedro a criar o Brasil, um país que tinha
tudo pra dar errado.Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2010.
364
GUEDES, Maurício Pires. Comissão de verificação de poderes e a república ve-
lha. In: NUNES, Cláudia Ribeiro Pereira; MELLO, Cleyson de Moraes; SIL-
VA, Leonardo Rabelo de Matos (Orgs). Estudos em Homenagem a Arno Weh-
ling: História, direitos e filosofia. Juiz de Fora: Editar Editora Associada, 2017.
MARSHALL, T.H. Cidadania, classe social e status. Rio de Janeiro: Zahar Edito-
res, 1967.
MIRANDA, Jorge. Teoria do Estado e da Constituição. Rio De Janeiro: Forense,
2015.
MORAES FILHO, José Filomeno de e ROCHA, Rodrigo Couto Gondim. O voto,
democracia e reforma: um juízo acerca da proposta de abolição da repre-
sentação proporcional e adoção da representação distrital. Organização CON-
PEDI. Aracajú, 2015. Disponívelem: http://www.conpedi.org.br/publica-
coes/c178h0tg/2g6i4xpi/i11y9Or48b8vTb3i.pdf Acesso em 15 de maio de
2017.
RAMAYANA, Marcos. Direito Eleitoral. 14ª Ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2015.
SANTOS, Wanderley Guilherme dos. Cidadania e Justiça: a política social na or-
dem brasileira. Rio de Janeiro: Editora Campus LTDA, 1979.
TORRES, Damiana. Sistemas Eleitorais Brasileiros. Brasília, Junho/Julho 2014.
Disponível em: http://www.tse.jus.br/institucional/escola-judiciaria-eleito-
ral/revistas-da-eje/artigos/revista-eletronica-eje-n.-4-ano-4/sistemas-eleito
rais-brasileiros Acesso em 16 de Setembro de 2016.
365
Os contratos nas técnicas de
reprodução assistida
Abstract: The Republic Constitution of 1988, in its article 226 § 7º, rec-
ognize all citizens the right to independent family planning. In the human
reproduction field are significant the achievements allowed by the advance
of science, specially concerning the assisted reproduction techniques. The
dynamism that occurs these advances puts science mismatched with the
law, leaving various issues wanting answers from the legislative. In these
terms, its proposed examine the contractual species that surface in that re-
lation and the possible problems that can supervene during the application
of the assisted reproduction techniques, always proposing a humanized con-
stitutional interpretation because the object of such existential contracts.
367
de gestação por substituição. 2.4. Problemas suscitados pela aplicação das
técnicas. 3. Por uma interpretação contratual constitucional. 4. Conclusão.
Referências.
1. Introdução
1 Para Heloisa Helena Barboza, o exame do parágrafo 7º, do artigo 226, da Consti-
tuição Federal de 1988, “permite reconhecer a introdução em nosso sistema de deno-
minada ‘autonomia reprodutiva’, sendo assegurado o acesso às informações e meios para
sua efetivação, ao se atribuir ao Estado o dever de propiciar recursos educacionais e
científicos para o exercício desse direito, e ao se vedar qualquer forma coercitiva por
parte de instituições oficiais ou privadas”. (BARBOZA, Heloisa Helena. Reprodução
humana como direito fundamental. In: Carlos Alberto Menezes Direito; Antônio Au-
gusto Cançado Trindade; Antônio Celso Alves Pereira. (Org.). Novas Perspectivas do
Direito Internacional Contemporâneo. 1. ed., Rio de Janeiro: Renovar, 2008).
2 BARBOZA, Heloisa Helena. Proteção da autonomia reprodutiva dos transexuais.
In: Revista Estudos Feministas. Florianópolis, mai./ago., v. 20, n. 2, 2012, p. 552.
3 Utiliza-se a expressão “reprodução assistida” como gênero, que comporta diferen-
tes espécies, como a inseminação artificial e a fertilização in vitro.
4 LEWICKI, Bruno. O homem construtível: responsabilidade e reprodução assistida.
In: BARBOZA, Heloisa Helena; BARRETO, Vicente de Paulo (Orgs.). Temas de Biodi-
reito e Bioética. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 102.
5 Disponível em: “http://www.who.int/reproductivehealth/publications/monito-
ring/924156315x/en/”. Acesso em: 17 fev. 2018.
368
mais de 278 mil casais têm dificuldade para gerar um filho em algum mo-
mento de sua idade fértil.6
As técnicas de reprodução assistida vêm criar novas possibilidades para
que casais inférteis, casais homossexuais, famílias monoparentais e até pes-
soas já falecidas se reproduzam, seja através da inseminação artificial homó-
loga ou heteróloga, da criação de embriões humanos in vitro para sua poste-
rior implantação ou até que uma mulher tenha a gestação de filho que será
de outra.
Tais hipóteses demonstram a importância de regulamentação adequada
da matéria, de ampla repercussão jurídica, especialmente no que diz respei-
to às estruturas familiares profundamente abaladas em sua concepção origi-
nal.7 O dinamismo com que ocorrem tais avanços coloca a ciência em des-
compasso com o direito, o que deixa diversas questões de alta indagação ca-
rentes de respostas do legislativo.
Neste cenário, o Código Civil dedicou ao assunto apenas três incisos do
artigo 1.597,8 que tratam da presunção de paternidade dos filhos havidos do
casamento, gerando mais dúvidas que soluções. A Resolução do CFM
2.168/2017 é, no momento, a melhor regulamentação sobre o tema. A cada
dois anos, busca-se atualizar as disposições com base nas demandas sociais,
de modo que nesta última edição foram alteradas as disposições sobre os cri-
térios para a gestação de substituição, a redução do prazo para descarte de
embriões e o congelamento de material para uma gestação tardia, o que fa-
vorece, por exemplo, pacientes em tratamento oncológico.
Entretanto, a despeito do elogiável esforço do CFM para amenizar os
problemas causados pela ausência de regulamentação jurídica sobre o tema,
a Resolução 2.168/2017 é de cunho meramente deontológico, não possui
eficácia nem força normativa de lei.
Em consequência, a solução para os conflitos resultantes da utilização
destas técnicas é confiada ao judiciário, que nem sempre possui os instru-
mentos próprios para atender às peculiaridades deste campo científico.
369
Uma legislação formal contendo cláusulas gerais9 voltadas para esse tipo de
atividade, editada em paralelo e sem prejuízo de sua disciplina pelo CFM,
possivelmente seria benéfica a todos os interessados.
Diante deste panorama reformulado da reprodução humana, a socieda-
de almeja respostas para diversas questões relacionadas à reprodução assis-
tida, especialmente no tocante à responsabilidade civil médica.
Feitas essas considerações iniciais, passa-se à análise dos instrumentos
contratuais que permeiam as relações jurídicas na reprodução assistida e aos
possíveis problemas que podem advir da aplicação das técnicas, ante a falta
de regulamentação jurídica.
9 Para Stefano Rodotà, a normatização deste campo deve se dar através de cláusulas
gerais, pois uma legislação específica e detalhada restará rapidamente ultrapassada, em
razão da incessante dinâmica das inovações científicas e tecnológicas. Assim, a redesco-
berta dos princípios se concretiza uma interpretação constitucionalmente orientada,
que não pode ser relacionada somente à decisão do caso concreto, mas investe na re-
construção global do sistema. (RODOTÀ, Stefano. Il nuovo habeas corpus: la persona
constituzionalizzata e la sua autodeterminazione. In: ______; ZATTI, Paolo. Trattato di
biodiritto: âmbito e fonti del biodiritto. Milão: Giuffrè Editore, 2010. p. 169-230).
10 BARBOZA, Heloisa Helena. Reprodução assistida: questões em aberto. cit., p. 93.
11 Por exemplo, se é verificado que a técnica mais indicada para um casal é a fertiliza-
ção in vitro, com o uso de gametas de doadores, além do contrato de prestação de ser-
viços médicos que os pacientes farão com a clínica, existem contratos paralelos que a
370
são essenciais para o objetivo final da concepção e nascimento de uma crian-
ça e se encontram em relação de dependência recíproca, uma vez que se
frustrado o objeto de algum deles, o objetivo final também se frustrará. Ob-
serva-se, assim, a existência de contratos coligados na reprodução assistida,
ante a presença de conexão entre os contratos, que façam com que eles per-
sigam juntos uma função ulterior além da função específica de cada um.12
Ressalta-se, por fim, que a relação entre médico e paciente é reconheci-
da majoritariamente pela doutrina como uma relação de consumo,13 pois se
encontram presentes os três elementos essenciais: o consumidor que é o pa-
ciente; o fornecedor, que é o médico que prestará o serviço; e o serviço, que
é o ofício especializado objeto da obrigação médica.14 Porém, afirma-se que
a responsabilidade do médico é do tipo subjetiva, ou seja, exige-se a prova
da intenção de causar dano ou da conduta negligente, imprudente ou impe-
rita (em uma palavra, da culpa lato sensu do agente) para o surgimento do
dever de indenizar.15 Além de se tratar também de obrigação de meio.16
Não obstante, a despeito da responsabilidade civil subjetiva dos médi-
cos, a responsabilização das clínicas de reprodução humana assistida e dos
bancos de sêmen se dará de forma objetiva, aplicando-se analogicamente os
clínica fará com o banco de sêmen, para obter os gametas do doador, além da criopre-
servação dos embriões excedentários, o informe de consentimento para técnicas de fer-
tilização assistida e se necessário o uso de gestação por substituição, ainda o contrato
com a gestante.
12 KONDER, Carlos Nelson. Contratos conexos: grupos de contratos, redes contra-
tuais e contratos coligados. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 181. Para uma outra pers-
pectiva do tema, ver: MARINO, Francisco Paulo De Crescenzo. Contratos coligados no
direito brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2009.
13 MIRAGEM, Bruno. Responsabilidade civil médica no direito brasileiro. Revista de
Direito do Consumidor, vol. 63. São Paulo: Revista dos Tribunais, jul./2007; DANTAS,
Eduardo Vasconcelos dos Santos. Aplicação do Código do Direito do Consumidor no
exercício da medicina. In: FIGUEIREDO, Antônio Macena de; LANA, Roberto Lauro
(Coord.). Direito médico: implicações éticas e jurídicas na prática médica. Rio de Janei-
ro: Lumen Juris, 2009, p. 206 e ss.
14 FRANÇA, Loreanne Manuella de Castro; ESPOLADOR, Rita de Cássia Resquetti
Tarifa. Da inserção de cláusulas de não indenizar nos contratos relacionados à reprodu-
ção humana assistida. In: CONPEDI/UFF. (Org.). Biodireito. 1. ed., Florianópolis:
FUNJAB, 2012, v. 1, p. 326.
15 Art. 951 do Código Civil: “O disposto nos arts. 948, 949 e 950 aplica-se ainda no
caso de indenização devida por aquele que, no exercício de atividade profissional, por
negligência, imprudência ou imperícia, causar a morte do paciente, agravar-lhe o mal,
causar-lhe lesão, ou inabilitá-lo para o trabalho”.
16 Segundo Aguiar Júnior, “quando o profissional assume prestar um serviço ao qual
dedicaraì atenção, cuidado e diligência exigidos pelas circunstâncias, de acordo com o
seu título, com os recursos de que dispõe e com o desenvolvimento atual da ciência,
sem se comprometer com a obtenção de um certo resultado. O médico, normalmente,
assume uma obrigação de meios”. (AGUIAR JUìNIOR, Ruy Rosado de. Responsabili-
dade civil do meìdico. Revista dos Tribunais, Sao Paulo, v. 84, n. 718, ago. 1995. p. 34).
371
dispositivos referentes aos hospitais e casas de saúde, uma vez que a respon-
sabilidade da pessoa jurídica que fornece serviços médicos eì objetiva no âm-
bito do direito do consumidor.17 Porém, se o profissional apenas utiliza o
hospital para internar seus pacientes particulares, responde com exclusi-
vidade por seus erros, afastando assim responsabilidade do estabeleci-
mento.18
372
tituição de 1988 proíbe, no artigo 199, §4º, toda comercialização de órgãos,
tecidos e substâncias humanas.21
A clínica de reprodução assistida, portanto, funciona como intermediá-
ria e responsável pelo procedimento de inseminação e demais cuidados mé-
dicos, como o acompanhamento, realização de exames e tratamento ambu-
latorial do paciente. Enquanto o banco de sêmen fica responsável pela doa-
ção e verificação de qualidade dos gametas.22
Esta técnica teve seu marco inicial com o nascimento, em 1978 na Ingla-
terra, de Louise Brown. Diferentemente da inseminação artificial, não só o
sêmen é coletado como também o óvulo é coletado do ovário da paciente,
através do uso do hormônio foliculo estimulante (FSH) que estimula o cres-
cimento do maior número de óvulos possível. Assim, a fecundação é extra-
corpórea, onde os óvulos e espermatozoides são colocados em uma proveta
de laboratório, dando origem assim à denominação “bebê de proveta”. En-
tão, os óvulos fertilizados ou embriões resultantes são implantados no útero
da paciente para que ocorra a gestação.
Este método costuma ser utilizado quando a impossibilidade de concep-
ção decorre de problema de origem tubária, o qual impede o encontro do
óvulo e espermatozoide na tuba uterina e, após a fecundação, o deslocamen-
to do embrião para o útero para a fixação na parede endometrial.23
Em razão da taxa de sucesso deste procedimento ser baixa e seu alto cus-
to financeiro, normalmente são gerados diversos embriões de uma só vez,
sendo os não implantados congelados em nitrogénio líquido para serem uti-
lizados em uma nova tentativa no caso de fracasso da primeira.24 Desta pre-
zação de embriões jáì era vedada pelas Resoluções do Conselho Federal de Medicina,
que na última edição determina no item IV (1): “A doação não poderá ter caráter lucra-
tivo ou comercial.”
o
21 §4 A lei disporáì sobre as condições e os requisitos que facilitem a remoção de
órgãos, tecidos e substâncias humanas para fins de transplante, pesquisa e tratamento,
bem como a coleta, processamento e transfusão de sangue e seus derivados, sendo ve-
dado todo tipo de comercialização”.
22 Item III da Resolução 2.168/2017 do CFM: “As clínicas, centros ou serviços que
aplicam técnicas de RA são responsáveis pelo controle de doenças infectocontagiosas,
pela coleta, pelo manuseio, pela conservação, pela distribuição, pela transferência e
pelo descarte de material biológico humano dos pacientes das técnicas de RA”.
23 KONDER. Carlos Nelson. Elementos de uma interpretação constitucional dos
contratos de reprodução assistida. cit., p. 256.
24 Resolução 2.168/17, Item I (7): “Quanto ao número de embriões a serem transfe-
ridos, fazem-se as seguintes determinações de acordo com a idade: a) mulheres até 35
anos: até 2 embriões; b) mulheres entre 36 e 39 anos: até 3 embriões; c) mulheres com
373
servação criogênica destes embriões desenrolam-se diversas indagações, so-
bre a propriedade do material biológico e a natureza jurídica do embrião,
como se verá mais adiante.
374
A gratuidade do contrato tem outros efeitos jurídicos. No nosso ordena-
mento, não poderá a gestante ser considerada prestadora de serviços, assim,
não responderá por negligencia durante a gravidez, mas somente por dolo.29
Exatamente por este motivo, se proliferaram das clausulas contratuais que
explicitamente vedam à gestante fumar, consumir drogas ou bebidas alcoó-
licas e demais atividades que coloquem em risco a saúde do feto.30
Como já falado, a ausência de regulamentação mundial sobre o assunto
e a heterogenia existente entre os países, acaba por ocasionar uma migração
de casais interessados na técnica de “barriga de aluguel” em países onde as
normas sejam mais flexíveis. Entretanto, recentes casos de grande repercus-
são de abandono de bebês com doenças e deficiências acabaram por fechar
os portões de alguns países para estrangeiros se utilizarem dessa técnica.31
29 Art. 1.057, CC. “Nos contratos unilaterais, responde por simples culpa o contraen-
te, a quem o contrato aproveite, e, só por dolo, aquele que não favoreça”.
30 KONDER. Carlos Nelson. Elementos de uma interpretação constitucional dos
contratos de reprodução assistida. cit., p. 262.
31 Após abandono de bebê com Down pelos seus pais australianos, Tailândia proíbe a
contratação de barriga de aluguel por estrangeiros: http://www.bbc.com/portugue-
se/noticias/2015/02/150219_tailandia_barriga _ aluguel_ru.
32 LEWICKI, Bruno. O homem construtível: responsabilidade e reprodução assistida.
cit. p. 115.
375
perar a distinção entre obrigações de meio e de resultado.33 Observado o
cumprimento dos deveres médicos, não lhe devem ser imputados nem o in-
sucesso no tratamento, nem o erro de diagnostico da infertilidade.
Por outro lado, um assunto que sempre está em pauta é sobre o anoni-
mato do doador de gameta (sêmen e óvulo). A Resolução do CFM34 pres-
creve a preservação do anonimato como uma obrigação do estabelecimento
que explora a reprodução assistida – obrigação esta que pode ser excepcio-
nada em “situações especiais”, sendo fornecido os dados necessários apenas
para médicos, protegendo-se a identidade civil do doador. Portanto, haveria
a responsabilidade do médico que infringe o dever de sigilo, revelando os no-
mes das partes envolvidas.35 Vale ressaltar que neste aspecto, sua obrigação
é de resultado, pois não sofre, a princípio, influência de nenhuma circuns-
tancia exterior que pudesse justificar a quebra. Entretanto, tal manutenção
do sigilo é fruto de grande divergência doutrinária, onde de um lado se ques-
tiona o direito à identidade genética e autoconhecimento de sua origem.36
Outra hipótese que vem gerando muita polêmica diz respeito ao descar-
te ou à cessão não autorizada de embriões. Como já dito, quando se opta
pela fertilização in vitro, o número de embriões saudáveis obtidos in vitro,
aptos a serem implantados no útero, são superiores aos efetivamente trans-
feridos, para se evitar uma gravidez múltipla. Os restantes criopreservados
em tanques de nitrogênio (“congelados”), poderão ser utilizados pelo casal
posteriormente, tanto para obter o êxito que não foi possível na primeira
tentativa, como para gerar um novo bebe sem ter que se sujeitar novamente
àquelas etapas já ultrapassadas.
376
Nos contratos celebrados com os casais que as procuram, as clínicas nor-
malmente estabelecem que os embriões excedentes permanecerão em seu
poder e guarda, à disposição do casal para uma gestação futura (“ou outra
destinação que melhor atender aos interesses dos contratantes”). A ausência
de uma previsão legal que estabeleça um prazo para esta nova transferência,
somada ao desinteresse de muitos casais em procurar novamente as clínicas
(por motivos que vão desde a falta de estrutura emocional ou financeira para
atravessar um novo período de tentativas até a separação do casal, passando
pelo simples desejo de não ter mais filhos) acabou gerando uma “superpopu-
lação” de embriões, estocados nos centros de reprodução assistida, à espera
de uma destinação.37 Deste cenário surgem alguns problemas.
A primeira opção seria o congelamento “indefinido”, mas armazenar
embriões custa caro e muitas clínicas acabam se desfazendo do excedente.
Mas não é só o descarte que preocupa as instituições, pois a perda do mate-
rial genético pode ter consequências drásticas, especialmente nos casos em
que as amostras extraviadas ou inutilizadas representavam a última esperan-
ça do doador propagar seus genes, quando uma nova coleta é impossível.38
Além do descarte e da perda, sua cessão não autorizada representa outro
ponto apto a gerar pedidos de responsabilização na esfera cível. Também é
possível a troca, por engano, de embriões ou gametas entre casais que se tra-
tam na mesma clínica (uma nova versão de troca de bebes nos berçários das
maternidades).
Nesta hipótese, o descarte e a cessão de embriões ou gametas sem auto-
rização, ou a perda dos mesmos, não pode o profissional escudar-se por trás
da álea inerente à atividade médica com o intuito de afastar sua responsabi-
lidade. A obrigação referente ao depósito deste material é de resultado.39
Outra situação pode ocorrer quando da separação de casais que são res-
ponsáveis por embriões guardados em clínicas, e a mulher ou o homem te-
nham interesse em dar continuidade à gestação, mesmo sem estar na cons-
tância do casamento.40 Nestas hipóteses, a Resolução do CFM recomenda
que no momento da criopreservação o casal expresse sua vontade, por escri-
to, quanto ao destino que será dado aos embriões congelados em caso de di-
vórcio.41 Até se for o
377
O mesmo ocorre se um dos donos do material biológico venha a falecer.
Nessa discussão sobre a propriedade de material biológico (sêmen ou óvu-
los), há vários interesses em jogo, especialmente patrimoniais.42 A CFM jul-
ga que a intenção do doador (expressa por escrito, contudo) deva guiar o jul-
gamento em casos correlatos.
Os problemas mais nevrálgicos, ocorrem quando há questionamentos
sobre os bebês que nascem por meio de reprodução. Poderia responsabilizar
um médico pelo nascimento de uma criança com malformação ou proble-
mas de saúde, principalmente os de cunho hereditário?
Quando se identifica na criança, ou mesmo ainda no feto, deficiência ou
patologia congênita de origem paterna, ou seja, proveniente do sêmen forne-
cido, que poderia ter sido prevenido por exame necessário que era de res-
ponsabilidade da clínica, ou mesmo quando for o médico de seu corpo de
funcionários, responderá a própria clinica objetivamente. Assim, considera-
se o vício não em produto, mas na obrigação médica de prestação de servi-
ços.43 Seria absurdo querer aplicar a teoria do vício oculto do produto e res-
ponsabilidade do fornecedor, ou o disposto sobre vício redibitório no Códi-
go Civil. Uma visão da criança como um produto que não deve apresentar
defeitos é coisificar a vida humana, com fortes tendências eugenistas.44
Assim, só devem ser imputados aos médicos os problemas de saúde que
decorram da não observância dos cuidados esperados. Assim, há de ser res-
ponsabilizado o profissional que não realizar uma seleção dos doadores de
sêmen.45 Neste caso, responderá mediante apuração de culpa, podendo
diante da hipossuficiencia técnica da paciente inverter o ónus da prova.46
Mais conturbado é decidir acerca da pré-seleção embrionária. Segundo
Bruno Lewicki,
A pessoa humana tem uma dignidade intrínseca que impede que ela seja julga-
da com base em suas peculiaridades, atribuindo-se maior ou menos valor a de-
terminado sexo, raça, altura ou cor dos olhos. O reconhecimento desta dignida-
de impõe ainda a sua não-instrumentalização, “significando dizer que este ja-
378
mais poderá ser considerado objeto de intervenções e experiências mas será
sempre sujeito de seu direito e de suas próprias escolhas”. A pessoa é um valor
em si mesma; não pode ser utilizada como meio de satisfação de aspirações dos
pais.47
379
cos morais.51 Por isso, deve ser previamente afastada qualquer análise redu-
tora à mera perspectiva patrimonialista, privilegiando-se uma interpretação
constitucional destes contratos.52
A vulnerabilidade inata a qualquer paciente se torna ainda mais aguda no
âmbito da reprodução assistida. Circunstancias agravantes como os efeitos
psicológicos da luta pela fertilidade e os altos custos destes tratamentos. A
soma de tais fatores confere ao casal que passa por estes tratamentos uma
“especial vulnerabilidade”. Por este motivo se sobressai de forma tão mar-
cante o núcleo de deveres extrapatrimoniais que os profissionais devem ob-
servar com relação aos seus pacientes.53
Pode se ressaltar alguns dos deveres que compõem o amplo quadro das
obrigações do médico na reprodução assistida: o dever de informação, co-
municando ao paciente os riscos do tratamento e as vantagens (no caso es-
pecifico da reprodução assistida, deve abranger ainda o fornecimento de es-
tatísticas); diligência no diagnóstico; a obtenção de consentimento; o dever
de tutelado melhor interesse do paciente.
Acrescente-se, ainda, que todos estes deveres, que se encontram pre-
sentes na relação médico-paciente e cuja violação poderá determinar a res-
ponsabilidade do profissional pelo dano causado, hão de ser interpretadas à
luz do princípio da boa-fé objetiva, princípio introduzido pelo Código de
Defesa do Consumidor e que se expressa não somente durante a execução
do contrato, mas também nas fases pré e pós-contratual.
4. Conclusão
380
esforço da doutrina e da jurisprudência no sentido de construir um sistema
de apoio, orientado pela tábua axiológica constitucional, enquanto a morosi-
dade do legislativo impede a promulgação de norma jurídica formal, trazen-
do segurança jurídica e, quem sabe, respostas às diversas questões em aberto
decorrente da utilização dessas novas técnicas.
Referências
AGUIAR JUìNIOR, Ruy Rosado de. Responsabilidade civil do meìdico. In: Revista
dos Tribunais, Sao Paulo, v. 84, n. 718, pp. 33-53, ago. 1995.
BARBOZA, Heloisa Helena. Reprodução assistida: questões em aberto. In: CAS-
SETTARI, Christiano (Coord.). 10 anos de vigência do Código Civil brasileiro
de 2002. Estudos em homenagem ao professor Carlos Alberto Dabus Maluf.
São Paulo: Saraiva, 2013, p. 92-110.
______. Bioética x biodireito: insuficiência dos conceitos jurídicos. In: BARBOZA,
Heloisa Helena; BARRETO, Vicente de Paulo (Orgs.). Temas de biodireito e
bioética. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 1-40.
______. Proteção da autonomia reprodutiva dos transexuais. In: Revista Estudos Fe-
ministas. Florianópolis, mai./ago., v. 20, n. 2, 2012.
CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA (Brasil). Resolução 2.168/2017. Dispo-
n í v e l e m : “ h t t p s : / / s i s t e m a s .cfm.org.br/normas/v i sual i zar/re sol u-
coes/BR/2017/2168”. Acesso: 04 fev. 18.
DANTAS, Eduardo Vasconcelos dos Santos. Aplicação do Código do Direito do
Consumidor no exercício da medicina. In: FIGUEIREDO, Antônio Macena
de; LANA, Roberto Lauro (Coord.). Direito médico: implicações éticas e jurí-
dicas na prática médica. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p. 206 e ss.
FRANÇA, Loreanne Manuella de Castro; ESPOLADOR, Rita de Cássia Resquetti
Tarifa. Da inserção de cláusulas de não indenizar nos contratos relacionados à
reprodução humana assistida. In: CONPEDI/UFF. (Org.). Biodireito. 1. ed.,
Florianópolis: FUNJAB, 2012, v. 1, p. 322-349.
GONÇALVES, Fernando David de Melo. Responsabilidade civil do médico e dos
bancos de sêmen na inseminação artificial. Revista Jurídica Consulex. Ano
XIII, n. 292, mar. 2009.
KONDER, Carlos Nelson. Contratos conexos: grupos de contratos, redes contra-
tuais e contratos coligados. Rio de Janeiro: Renovar, 2006.
______. Elementos de uma interpretação constitucional dos contratos de reprodu-
ção assistida. In: Revista Trimestral de Direito Civil – RTDC. Rio de Janeiro:
Padma, 2001. v.7., jul./set. 2011, p. 247-268.
LEWICKI, Bruno. O homem construtível: responsabilidade e reprodução assistida.
In: BARBOZA, Heloisa Helena; BARRETO, Vicente de Paulo (Orgs.). Temas
de Biodireito e Bioética. Rio de Janeiro: Renovar, 2001.
MIRAGEM, Bruno. Responsabilidade civil médica no direito brasileiro. Revista de
Direito do Consumidor, vol. 63. São Paulo: Revista dos Tribunais, jul./2007.
MORAES, Maria Celina Bodin de. Direito civil e constituição: tendências. In: Di-
reito, estado e sociedade, no 15, ago./dez. 1999, p. 110.
381
RODOTÀ, Stefano. Il nuovo habeas corpus: la persona constituzionalizzata e la sua
autodeterminazione. In: RODOTÀ, Stefano; ZATTI, Paolo. Trattato di biodi-
ritto: âmbito e fonti del biodiritto. Milão: Giuffrè Editore, 2010. p. 169-230.
______. Conflito positivo de maternidade e a utilização do útero de substituição.
In: CASABONA, Carlos María Romeo e QUEIROZ, Juliane Fernandes
(coord.). Biotecnologia e suas implicação ético-jurídicas. Belo Horizonte; Del
Rey, 2004.
______; KONDER, Carlos Nelson. Situações jurídicas dúplices: controvérsias na
nebulosa fronteira entre patrimonialidade e extrapatrimonialidade. In: TEPE-
DINO, Gustavo; FACHIN, Luiz Edson (Org.). Diálogos sobre direito civil. Rio
de Janeiro: Renovar, 2012, v. III, p. 3-24.
TEPEDINO, Gustavo. A responsabilidade médica na experiência brasileira con-
temporânea. In: ______. Temas de direito civil. T. 2. Rio de Janeiro: Renovar,
2006.
382
O princípio da imparcialidade como garantia
do Devido Processo Legal
Introdução
383
devido processo legal”, sendo pela primeira vez positivado na ordem jurídi-
co-constitucional brasileira. A origem do postulado remonta à Magna Carta
inglesa de 1215 no artigo 39,1) imposta pelos barões feudais ao Rei João
Sem Terra.
É curiosa a informação de que a redação original foi escrita em latim tor-
nando-se inacessível o seu conhecimento por todos.1 A famosa cláusula 39
afirmava que” Nenhum homem livre será detido ou preso, nem privado de
seus bens, banido ou exilado ou, de algum modo, prejudicado, nem agire-
mos ou mandaremos agir contra ele, senão mediante um juízo legal de seus
pares ou segundo a lei da terra.”2
Verifica-se, portanto a expressão Law of the land (lei da terra) e não a
consagrada due process of Law, essa somente utilizada em 1354. Destarte,
sempre se entendeu que as expressões eram sinônimas e, por fim, o due pro-
cess of law passou ao direito norte-americano, incorporado em sua Consti-
tuição, na 5ª (1791) e 14ª (1868) emendas3 sendo essas disposições pratica-
mente reproduzidas em nossa Constituição Brasileira.
Ressalte-se que, a análise de tal princípio será feita à luz do processo pe-
nal, funcionando como garantia de um processo penal democrático, efetivo
e justo. Assim, no seu aspecto processual significa dizer que o processo penal
deve resultar em oportunidades iguais às partes, com possibilidade de ampla
defesa, observância do contraditório, juiz natural, imparcial, presunção de
inocência, fundamentação das decisões. Enfim, é uma garantia do indivíduo,
um direito fundamental4. Segundo o Ilustre Professor Barbosa Moreira, esse
princípio funciona como norma de encerramento5, se por ventura os demais
princípios não forem suficientes para resguardar determinada garantia pro-
cessual não prevista de modo expresso na lei.
1 Beccaria, a seu tempo, já apontava com acerto o problema da obscuridade das leis
“se a interpretação da lei é um mal, a obscuridade, que a interpretação necessariamente
acarreta, é também um mal. E esse mal será maior se as leis forem escritas em língua
estrangeira”. De fato, o latim era uma língua estrangeira ao povo. Beccaria, Cesare. Dos
Delitos e das Penas. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997, p.28. Tradução de J. Cre-
tella Jr. E Agnes Cretella
2 COMPARATO, Fabio Konder. A Afirmação histórica dos direitos humanos. São
Paulo : Saraiva, 1999, p.70.
3 CARVALHO, Luis Gustavo Grandinetti Castanho de. Processo Penal e Constitui-
ção. Princípios Constitucionais do Processo Penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009,
p.140.
4 Um Estado de Direito é hoje um Estado de Direitos Fundamentais onde se reco-
nhece aos cidadãos a defesa de sua autonomia pessoal, invocando direitos políticos fun-
damentais contra as leis e outros atos do poder público. CANOTILHO, José Joaquim
Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 2ed. Coimbra (PT): Editora
Almedina, 1998, p.449.)
5 MOREIRA, Barbosa. Aspectos Processuais Civis na nova constituição. Revista da
Defensoria Pública, ano II, nº 4, mai/jun/jul/ago/ 2011, p.102.
384
Para isso, faz-se necessário uma rápida digressão sobre o direito de punir
do Estado e o processo penal como instrumento necessário para imposição
de pena, sempre com a seguinte premissa: se é correto afirmar que o direito
de punir pertence ao Estado torna-se imperiosa a observação das garantias
fixadas pela Lei Maior, evitando-se qualquer arbítrio estatal.
Quanto ao aspecto penal, a proteção dos bens não poderá ser de forma
aleatória. Serão tutelados apenas bens jurídicos fundamentais, em decorrên-
cia do caráter fragmentário8 do Direito Penal. Assim, o legislador ficará ads-
385
trito a tipificar somente as condutas mais graves que lesionem ou coloquem
em perigo os bens considerados mais importantes, limitando o poder puni-
tivo estatal.
O Ilustre Professor Luiz Regis Prado considera como bens suscetíveis de
proteção penal os direitos constitucionais do cidadão, os valores objetiva-
mente tutelados e outros que se insiram no contexto de garantia do Estado
Democrático de Direito. Afirma o autor que9 “a conceituação material do
bem jurídico deve implicar no reconhecimento de que o legislador eleva à
categoria de bem jurídico o que já na realidade social se apresenta como um
valor.”
O legislador ordinário em hipótese alguma irá dispor de uma liberdade
irrestrita. Existem balizas que devem ser asseguradas para que não se vulne-
re direitos humanos e os postulados de garantia. Nota-se que o que se pre-
tende é limitar o arbítrio estatal. Assim nasce o processo penal10. Ou seja,
violado o bem jurídico tutelado o Estado irá intervir sancionando o indivíduo
infrator aplicando-lhe uma pena, para cumprir sua função social de resta-
belecer o bem comum. E essa pena somente será aplicada mediante o pro-
cesso.
Inicialmente, torna-se importante lembrar que o processo deixa de ser
apenas um instrumento de concretização do direito material, mas sobretudo
um instrumento para garantia da realização da justiça e efetivação dos direi-
tos, que, segundo Jorge Miranda11, são aspectos basilares de um Estado De-
mocrático de Direito.
386
A essência do Direito Penal está na aplicação da pena e o processo penal
irá possibilitar tal aplicação, eis a sua instrumentalidade, meio para consecu-
ção de um fim. É impossível impor uma pena sem que exista um processo
judicial, isto porque o direito penal não possui realidade concreta fora do
processo, mesmo no caso de consentimento do acusado.12 Diferente, por-
tanto, do processo civil, sendo desnecessária a sua aplicação para que pre-
tensões possam ser satisfeitas no seu dia a dia.
Tucci13esclarece que não há como ser imposta a sanção penal prevista
em lei, de forma direita e imediata. A efetivação desta sanção reclama a
existência de um processo, confrontando o ius puniendi do Estado com o
ius libertatis do indivíduo.Ou seja, a concreta punição deve resultar de um
pronunciamento judicial em” processo timbrado pelo due process of Law.
Nesse contexto, não há como admitirmos um processo penal democrá-
tico sem a observância dos princípios constitucionais, tais como Devido Pro-
cesso Legal, Presunção de Inocência (Não Culpabilidade), Imparcialidade,
Ampla Defesa e Contraditório, Duração Razoável do Processo etc. O pro-
cesso penal deverá se aplicado à luz da Constituição14.
A ideia é a de que o Estado detém legitimamente o monopólio da força
para organizar a sociedade, retirando desta o exercício arbitrário pelas pró-
prias razões, salvo em casos excepcionais e, assim, o processo penal é con-
cebido como freio, limite ao exercício do poder de punir. O réu, a priori,
deve ser considerado inocente; cabe ao acusador, portanto, por meio de
provas que produzirá em processo público, convencer o juiz de que o réu
é culpado.
Desse modo, o processo penal é repaginado para, a partir do Princípio do
Devido Processo legal, assegurar a proteção dos direitos fundamentais da
12 Leciona Aury Lopes Júnior que “frente à violação de um bem juridicamente prote-
gido, não cabe outra atividade que não a invocação da devida tutela jurisdicional. Im-
põe-se a necessária utilização da estrutura preestabelecida pelo Estado – o processo
judicial – em que, mediante a atuação de um terceiro imparcial, cuja designação não
corresponde à vontade das partes e resulta da imposição da estrutura institucional, será
apurada a existência do delito e sancionado o autor. O processo, como instituição esta-
tal, é a única estrutura que se reconhece como legítima para a imposição da pena.”
Introdução Crítica ao Processo Penal (Fundamentos da Instrumentalidade Garantista).
Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2004, p. 3.
13 TUCCI, op., cit. p.32.
14 “Com efeito, esse processo democrático precisa garantir a isonomia, publicidade,
ampla defesa e contraditório, princípios fundamentais sem os quais a sua deslegitimida-
de aflora e macula a decisão. No decorrer do processo os direitos fundamentais serão
invocados e debatidos argumentativamente (discurso proposicional e não autoritário).
O processo é quem mediará, pelo discurso, a decisão, não mais solitária do juiz, mas
co-produzida democraticamente.” Rosa; Silveira Filho. Para um processo penal demo-
crático. Crítica à Metástase do Sistema de Controle Social. Rio de Janeiro: Lumen Juris,
2009, p. 86-87.
387
pessoa acusada. Sendo, verdadeiramente um processo justo. O grande desa-
fio contemporâneo é possibilitar o efetivo acesso à justiça, um processo jus-
to. No entanto, o que vem a ser um processo justo? Ou efetividade é sinôni-
mo de rapidez? E ainda, processo justo é sinônimo de decisão justa? Essas
reflexões serão analisadas no tópico a seguir.
15 TEOTÔNIO, Paulo José Freire.... et al. O Devido Processo Legal e seus novos
paradigmas.In: As novas fronteiras do direito processual. São Paulo: RCS Editora, 2007,
p. 503.
16 PINHO, Humberto Dalla Bernardina. Direito Processual Civil Contemporâneo
vol.1. São Paulo: Saraiva, 2012, p.51.
17 DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de direito processual civil I. São Pau-
lo: Malheiros, 2009, p.118.
388
Ocorre que conforme leciona o Professor Rogério José Bento Soares do
Nascimento18 é preciso ter a atenção”ao conceito de justo visto como uma
possibilidade de ponto de irradiação a partir do qual os compromissos do Es-
tado Democrático de Direito ganham sentido e substância.”
O processo justo se forma a partir da observância das garantias funda-
mentais do processo e essas são resultado da soma das garantias individuais
mais garantias estruturais.19 Cabe-nos ressaltar que a própria Constituição
da República em seu artigo 5º, inciso XXXV consagra expressamente o Prin-
cípio da Inafastabilidade do Poder Judiciário ou do Acesso à Justiça.
A leitura que se faz de tal princípio deve ser a mesma que acompanha
os avanços da sociedade, suas transformações e respectivos anseios. Não
nos interessa mais a simples possibilidade de ajuizar uma demanda que re-
sulte em uma sentença em um processo muitas vezes longo, dispendioso,
enfim sem qualquer compromisso com o real significado do acesso à jus-
tiça.20
Para alcançar esse desiderato, o Professor Paulo Cezar Pinheiro Carnei-
ro21 em brilhante obra, considerou fundamental a existência de certos prin-
cípios que informariam o real significado da expressão acesso à justiça: aces-
sibilidade, operosidade, utilidade e proporcionalidade.
A acessibilidade deve ser entendida como a existência de pessoas capa-
zes de estar em juízo, sem qualquer óbice de natureza financeira, efetivan-
do-se os direitos individuais e coletivos. Operosidade pressupõe a atuação
produtiva de todos os que participam da atividade judicial. Nesse aspecto,
de suma importância a figura do juiz. O ideal de jurisdição hoje não é mais
um modelo sentenciador que tão somente respeita a vontade da lei.
389
No modelo ideal de jurisdição de Mauro Capeletti22 o juiz, hoje, tem
que administrar a justiça em três etapas: conhecer bem o problema; elaborar
a sua solução para o problema; pensar no impacto da sua decisão.
Quanto à utilidade, essa significa que deve ser imprescindível que o ven-
cedor receba de forma proveitosa e rápida o seu direito, com menor sacrifí-
cio para o vencido.
No entanto, não podemos confundir conceitos jurídicos. Em relação à
celeridade, não é correta a afirmativa difundida por muitos (muitas vezes
pela imprensa) de que justiça rápida é sinônimo de processo efetivo, justo.23
Por fim, o aludido autor apresenta como quarto princípio a proporcionalida-
de levando a opção do julgador a escolha do interesse preponderante.
De qualquer sorte, o processo somente será justo se respeitar o devido
processo legal24. No Brasil, significa atender as garantias do acusado, para
que o mesmo seja processado pelo Estado por meio de um juiz natural, im-
parcial, com observância do contraditório participativo25, com decisões mo-
tivadas, com ampla defesa assegurada, por meio de um procedimento razoá-
vel de duração.
Importantíssimo, portanto, o estudo do processo penal. Em uma socie-
dade de massa, complexa como a atual, os meios de comunicação tentam ao
máximo afirmar que a criminalidade é o problema crucial da modernidade,
devendo ser controlada com penas mais severas, restringindo-se os direitos
dos acusados26 e, assim, ilude a sociedade com discursos repressores.
A violência sempre existiu e existe, é elemento intrínseco ao fato social.
O que devemos tentar é mantê-la dentro de um limite de suportabilidade.
390
Garantir ao acusado um processo penal democrático não é sinônimo de im-
punidade. Existe sim, a possibilidade de se punir garantindo. É perfeitamen-
te possível a existência de um processo penal com estrita observância do
Princípio do Devido Processo Legal.
27 ZAFFARONI afirma não existir jurisdição sem imparcialidade “não se trata de que
a jurisdição possa ou não ser imparcial e se não o for não cumpra eficazmente sua fun-
ção, mas que, sem imparcialidade, não há jurisdição.” Poder Judiciário: crise, acertos e
desacertos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. p.86.
28 OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de Processo Penal. 16. ed. São Paulo : Atlas,
2012. p. 291.
391
gador permitindo-se às partes o afastamento do magistrado. Para o autor os
casos de impedimento dizem respeito a fatos e/ou circunstâncias ligados ao
próprio processo submetido inicialmente à jurisdição do juiz. Já as hipóteses
de suspeição referem-se a situações de realidade externa ao processo levado
ao conhecimento do juiz. E por fim, as incompatibilidades previstas no arti-
go 112 do CPP compreendem as situações que não estejam arroladas nas hi-
póteses anteriores (suspeição e impedimento) que possam interferir na im-
parcialidade do julgador.
Não há como se falar em justiça sem garantir um julgamento imparcial.
E o Estado que detém o monopólio do direito de punir deve perseguir sem-
pre a imparcialidade, principalmente no campo do processo penal em que o
bem jurídico tutelado é a liberdade do indivíduo. Não se pode esquecer que
vivemos sob a égide de um Estado Democrático de Direito e o juiz tem uma
função essencial de garantidor dos direitos fundamentais.29
Considerações finais
392
raiz do problema não está na atividade probatória exercida pelo juiz. Como
se os juízes fossem perseguidores de inocentes, cruéis, inquisidores, queren-
do a qualquer custo “arranjar” provas para que possam enfim prolatar uma
sentença condenatória.
A propósito, o Professor Rogério Bento31 ressalta que o monopólio do
interesse público não pertence ao Ministério Público, sendo o juiz também
defensor da ordem jurídica justa, do regime democrático e dos direitos in-
disponíveis. Acrescenta o autor que ao presidir e interferir na atividade de
instrução o juiz estará zelando pelo devido processo. Ao determinar a pro-
dução de prova para dirimir dúvida sobre ponto relevante já trazido no pro-
cesso pelas partes, o magistrado não contamina sua atuação, até porque ele
não estará dispensado de fundamentar sua decisão.
A Constituição da República consagra expressamente o Princípio da mo-
tivação das decisões judiciais na norma do artigo 93, inciso IX. Assim, as de-
cisões devem ser devidamente fundamentadas e o juiz atenderá ao princípio
do contraditório, dando ciência às partes da produção da prova, atendendo
por fim, ao princípio democrático e ao modelo acusatório.
Bibliografia
393
GRECO, Leonardo. Garantias Fundamentais do Processo: O Processo Justo. Dis-
ponível na internet: http://www. mundojuridico. adv. br. Acesso em 10 de
abril de 2012
KARAM, Maria Lucia. De crimes, penas e fantasias. Niterói: Editora LUAM, 1993
LOPES JR, Aury. Direito Processual Penal. São Paulo: Editora Saraiva, 2012.
________. Introdução Crítica ao Processo Penal (Fundamentos da Instrumentalida-
de Garantista). Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004.
________. A instrumentalidade garantista do processo penal.
MOREIRA, Barbosa. Temas de direito processual. Oitava Série.São Paulo: Saraiva,
2004.
NASCIMENTO, Rogério José Bento Soares do. Lealdade Processual: Elemento da
Garantia de Ampla Defesa em um Processo Penal Democrático. Ed. Lumen
Juris. 2011.
OLIVEIRA, Eugênio Pacelli. Curso de Processo Penal. Rio de Janeiro: Lumen Ju-
ris, 2011.
PINHO, Humberto Dalla Bernardina. Direito Processual Civil Contemporâneo
vol.1. São Paulo: Saraiva, 2012
PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro. São Paulo: Editora Revista
dos Tribunais, 2004.
ROSA, Alexandre Morais da; SILVEIRA FILHO, Sylvio Lourenço da. Para um
processo penal democrático. Crítica à Metástase do Sistema de Controle So-
cial. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009.
TEOTÔNIO, Paulo José Freire...[et al]. O Devido Processo Legal e seus novos pa-
radigmas. In: As novas fronteiras do direito processual. São Paulo : RCS Edi-
tora, 2007
ZAFFARONI, Eugenio Raul. Poder Judiciário: Crise, acertos e desacertos. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2000.
394
A cooperação dolosamente distinta e sua
aplicabilidade no delito de latrocínio
395
Concurso de Pessoas.
396
Art. 29 – Quem, de qualquer modo, concorre para o crime incide nas penas a
este cominadas, na medida de sua culpabilidade. (Redação dada pela Lei nº
7.209, de 11.7.1984)
Circunstâncias incomunicáveis
Casos de impunibilidade
397
com um elemento subjetivo em particular, do que se extrai a ideia de que a
tantos quantos forem os participantes do fato delituoso, a tantos quantos re-
sultarão os crimes incidentes, devendo cada agente envolvido responder por
um crime próprio, autônomo em relação aos demais.
A falha apontada para esta teoria se atém ao fato de que a conduta de
cada agente não é autônoma, mas converge com as demais para um resultado
único e comum, qual seja o crime pretendido.
É o caso do delito de furto de veículo praticado por três agentes em con-
curso. Na hipótese fática, um dos agentes posicionou-se numa esquina, de
modo a verificar eventual presença de transeuntes ou mesmo da polícia, o
segundo arrombou a porta do veículo com a utilização de uma chave micha,
ao passo que o terceiro incumbiu-se de efetuar uma ligação direta no auto-
móvel, vindo os três a empreender fuga no próprio veículo furtado.
No exemplo ilustrado, houve a prática de um único crime de furto qua-
lificado, e não de três delitos autônomos, o que seria, por sinal, incompreen-
sível diante da evidência de que apenas um carro foi levado pelo trio. A in-
tervenção de três agentes na execução do delito não desvirtua o caráter úni-
co do bem jurídico violado, o que nos leva a concluir que o resultado produ-
zido também é um só.
Já a teoria dualista (também chamada de dualística) sustenta que as con-
dutas penalmente relevantes, quando praticadas em concurso, acarretam
dois crimes: um em relação aos autores5, e outro em relação aos partícipes6.
No exemplo citado, o partícipe seria identificado como o agente que se
postou à espreita a fim de dar aos seus cúmplices a tranquilidade necessária
para os atos de execução do delito, ao passo que aos outros participantes
dar-se-ia o nome de autores (no caso, coautores), responsáveis pela conduta
nuclear do tipo.
A problemática persiste, porquanto o crime continua a ser único e refe-
rente a uma só “res furtiva”. A teoria dualista, embora acerte ao contrapor
as figuras do autor e do partícipe, não resolve a questão da unicidade do de-
lito.
Mesmo não sendo a teoria adotada no Brasil, percebe-se que o art. 29 do
CP contém laivos da teoria dualista, especialmente na parte final de seu “ca-
put” e no § 2º, que impõem a verificação do elemento subjetivo do crime
(dolo ou culpa) e do grau de censura da conduta em relação a cada um dos
agentes delitivos.
Por fim, a teoria monista (ou unitária), segundo a qual o crime, ainda
que praticado em colaboração por várias pessoas, é único. Todo aquele que
5 Definidos como os agentes que realizam o verbo do tipo penal, isto é, a atividade
principal ou a conduta típica propriamente dita.
6 Entendidos como os agentes que exercem uma atividade secundária (acessória) em
relação ao crime definido pelo tipo penal.
398
concorre para o crime, responde integralmente por ele, que é o resultado da
conduta de cada agente.
A teoria monista não estabelece distinção entre os atores da conduta ilí-
cita, como autor, partícipe, instigador, cúmplice etc. Todos são considera-
dos autores ou coautores do crime.
O Código Penal de 1890 previa a diferenciação genérica entre os parti-
cipantes do crime, conforme definição de seu art. 177, enquanto os arts. 18
e 21 continham a previsão específica para autores8 e cúmplices9, respectiva-
mente.
Já o legislador de 1940, abraçando a teoria da equivalência das condi-
ções10, inseriu no art. 25 que “quem, de qualquer modo, concorre para o cri-
me incide nas penas a este cominadas”. A conclusão é a de o ordenamento
jurídico abandonou a orientação anterior (que separava as figuras de autor e
cúmplice) para firmar o entendimento de que toda a pessoa que contribuiu
para a prática criminosa acaba sendo responsável pelo delito em sua totali-
dade.
Aplicando a chamada teoria extensiva, o texto original do Código de
1940 estabeleceu que todos os participantes do crime são autores dele, evi-
tando, assim, uma série de questões que poderiam ocorrer a partir das
definições de autor e partícipe.
A reforma de 1984 passou da teoria extensiva (trata a todos como auto-
res) para a teoria restritiva, voltando a estabelecer a distinção entre autor e
399
partícipe, conforme se deduz do item 25 da Exposição de Motivos nº
211/8311, apresentada pelo então ministro da justiça Ibrahim Abi-Ackel.
Zaffaroni e Pierangeli12 advertem que o texto do art. 29 do CP não pode
ser entendido como um nivelamento valorativo entre os agentes em concur-
so, de forma a considerá-los todos autores, mas que todos terão, em princí-
pio, a mesma pena estabelecida para o autor.
Isso significa que a teoria monista evoluiu ao longo do tempo, passando
de um sistema unitário clássico, que não distinguia autor de partícipe, para
um sistema diferenciador, segundo o qual autor e partícipe são responsabili-
zados de modos diversos13.
A doutrina apresenta tal evolução sob os títulos de exceção pluralística à
teoria monista14, teoria unitária temperada15, teoria monista temperada ou,
ainda, teoria monista matizada16. No Brasil, o art. 29 do Código Penal con-
firma a adoção da teoria monista sob a ótica do sistema diferenciador.
400
de que contribui para o resultado daquele crime, (d) identidade da infração
penal, ou seja, todos os agentes devem praticar (ou almejam praticar) a mes-
ma infração penal.
Uma vez configurada a hipótese de codelinquência, a priori todos os
agentes responderão pela mesma prática delitiva e estarão sujeitos à mesma
pena, independentemente da posição que ocupem (autores ou partícipes)
na realização do delito. No entanto, diversa será a situação quando existir
entre os agentes um rompimento na vinculação lógica que os motiva, e que
determina o cometimento de crime diverso do que fora inicialmente preco-
nizado entre os sujeitos.
Neste caso, um dos infratores crê participar da prática de determinado
delito, e assim almeja e se liga aos demais consorciados, contribuindo de ma-
neira relevante para o êxito da empreitada criminosa. Porém, durante a prá-
tica antijurídica, estando o delito ainda no percurso do “iter criminis”, há
uma cisão entre as vontades, e alguns dos agentes acabam por extrapolar a
“voluntas” que marcou a formação do concurso eventual de pessoas para,
num desvio subjetivo, praticarem delito de maior gravidade e que não en-
trou na esfera de conhecimento do outro infrator.
Nesta conjectura fática, ocorre uma alteração consciente do dolo entre
os agentes inicialmente em concurso, e que acaba cindindo o consórcio cri-
minoso no momento em que as condutas intelectualmente não previstas e
não desejadas antes da prática dos atos executórios acabam motivando os su-
jeitos desviados.
É nesta hipótese que ocorre a cooperação dolosamente distinta, tão cla-
ramente definida por Artur Gueiros e Carlos Japiassú17:
401
Analisada a questão por este viés, tem-se que o instituto da cooperação
dolosamente distinta é uma forma de mitigação da teoria unitária, permitin-
do que o partícipe receba uma justa resposta ao mal que visou ocasionar.
Deve ainda ser entendido que, se houver previsibilidade do resultado
mais grave, considerado o grau de inteligência e orientação do chamado “ho-
mem médio”, visto sob o ponto de vista do partícipe, a pena será aumentada
até metade, conforme a 2ª parte do
§ 2º do art. 29.
Não havendo tal previsibilidade, e observando-se na conduta dos agen-
tes uma divergência de vontades quanto à finalidade ilícita (o cometimento
da mesma infração penal), deixa-se de reconhecer a existência do concurso
de pessoas e afasta-se a aplicação da teoria monista frente a exceção plura-
lística contida no art. 29, § 2.º, do Código Penal brasileiro.
Deve-se também ter em conta que o consórcio delitivo pode ocorrer sob
diferentes formas, como na elaboração conjunta do plano criminoso (con-
cepção intelectual do delito), na prática de atos executórios, na indução, es-
tímulo ou prestação de auxílio a outrem. Da mesma maneira, várias também
são as possibilidades de ocorrência de desvios subjetivos de condutas, como
nas hipóteses de “mandato criminoso”18, participação19 e coautoria20.
402
Sobre a possibilidade de atenuação da teoria monista nos casos de coau-
toria, Rogério Greco corrobora o pensamento expressado por Delmanto na
nota nº 20:
sem ausentes; um deles, surpreendido pelo morador na cozinha, por sua exclusiva ini-
ciativa o mata com uma faca que ali se encontrava, enquanto o outro agente está no
andar superior. Pelo entendimento tradicional, ambos responderiam por latrocínio, na
medida de sua culpabilidade; já pela exegese aqui defendida, aquele responde por latro-
cínio, enquanto este, que sequer estava na cozinha e não podia prever e tampouco evitar
a conduta do outro, responde por furto qualificado pelo concurso de pessoas. Como se
pode verificar neste exemplo, durante o iter criminis, parte das condutas foi desejada e
praticada por ambos (entrada na casa para a subtração de bens móveis); já a morte do
morador, foi desejada e perpetrada unicamente por um deles, que alterou o seu dolo
durante a prática do outro crime, sendo que esse desfecho não podia ser imaginado pelo
outro”. DELMANTO, Celso et al. Código Penal Comentado, 9. ed., São Paulo: Saraiva,
2016, p. 254.
21 GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal: parte geral, 17. ed., Niterói: Impetus,
2015, p. 488.
403
Ocorre na situação ilustrada o delito de latrocínio, previsto no art. 157,
§ 3º, 2ª parte, do CP:
Art. 157 – Subtrair coisa móvel alheia, para si ou para outrem, mediante grave
ameaça ou violência a pessoa, ou depois de havê-la, por qualquer meio, reduzi-
do à impossibilidade de resistência:
[...]
404
que agrava especialmente a pena, só responde o agente que o houver causa-
do ao menos culposamente”) ou seria beneficiado pela aplicação da tese da
cooperação dolosamente distinta do art. 29, § 2º?
Neste caso, embora o crime de latrocínio admita a figura do preterdolo
a que alude o art. 19 do CP, temos que as circunstâncias fáticas revelam que
ocorreu uma substituição do dolo23 por parte de A, sendo o resultado mais
grave (morte da vítima) produto de sua intenção e vontade. Neste sentido,
mais adequada ao caso concreto a aplicação da regra da cooperação dolosa-
mente distinta.
Além da questão da substituição do dolo, dois outros motivos resolvem
esse conflito aparente de normas: (1) a aplicação do art. 29, § 2º, consiste na
regra mais favorável ao acusado, considerada a pena a que estará submeti-
do24, e (2) encerra a utilização do critério da especialidade da norma25,
como forma de resolução da aparente antinomia.
Por fim, vale o registro de que o crime preterdoloso ocorre por culpa
atribuída ao executor, diferentemente do caso em que o resultado mais gra-
ve tenha ocorrido pelo dolo do executor, em substituição ao dolo do partíci-
pe, restando a este, caso previsível o resultado mais grave, a regra da coope-
ração dolosamente distinta em substituição ao preterdolo. Daí ser mais justa
a regra do art. 27, § 2º, do CP ao caso concreto.
Conclusão.
23 Importa trazer a lição de Luiz Flávio Gomes quanto à substituição do dolo nos casos
de desvios subjetivos de conduta: “Cabe notar que o excesso do executor que atua dis-
tintamente revela o que se chama de substituição do dolo. Inicialmente o dolo está
dirigido a um resultado. O executor excessivo substitui o dolo (por conta própria) e o
orienta para outro resultado, mais grave”. GOMES; MOLINA, Op. cit., p. 511.
24 No caso de aplicação do art. 19 (crime preterdoloso), B responderia em concurso
de pessoas com A pelo crime de latrocínio, sujeitando-se à pena de 20 a 30 anos reclu-
são; aplicando-se a regra do art. 29, § 2º (cooperação dolosamente distinta), ele respon-
deria pelo crime de que quis participar (roubo duplamente majorado, em tese com pena
de 6 a 15 anos de reclusão), aumentando-se a pena da metade pela previsibilidade obje-
tiva do resultado, alcançando o “quantum” final de 8 a 22 anos de reclusão.
25 Não é difícil perceber que a norma do art. 19 do CP possui caráter geral em relação
às hipóteses de ocorrência de crimes preterdolosos, como o latrocínio retratado hipote-
ticamente neste trabalho, enquanto o desvio subjetivo de condutas (art. 29, § 2º, do
CP) constitui regra especial concernente ao concurso eventual de pessoas.
405
téria extremamente relevante ao debate acadêmico como meio de fomentar
a justa aplicação da lei penal.
Neste sentido, a cooperação dolosamente distinta como exceção à teoria
monista atende aos reclames de uma aplicação das normas penais consentâ-
nea aos ideais de justiça e equidade que marcam o cenário jurídico brasileiro
da atualidade.
Por fim, um singelo estudo de caso referente ao concurso eventual de
pessoas na prática do crime de roubo majorado que acaba descambando para
a ocorrência do delito de latrocínio ajuda a sedimentar o instituto do desvio
subjetivo de condutas e sua aplicabilidade sempre que houver uma cisão no
dolo dos agentes em concurso.
Bibliografia.
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal: parte geral, v. 1, 17. ed.,
São Paulo: Saraiva, 2012.
—–––––. Código Penal Comentado, 7. ed., São Paulo: Saraiva, 2012.
BRASIL. Decreto-lei 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Código Penal. Disponível
em: “http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del2848.htm”.
—–––––. Lei 7.209, de 11 de julho de 1984. Altera dispositivos do Decreto-lei
2.848, de 7 de dezembro de 1940 e dá outras providências. Código Penal. Dis-
ponível em: “http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del2848com-
pilado.htm”.
—–––––. Decreto-lei 847, de 11 de outubro de 1890. Código Penal de 1890. Dispo-
nível em: ”http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1851- 1899/D847.
htmimpressao.htm”.
—–––––. Exposição de Motivos nº 211, de 9 de maio de 1983. Disponível em:
“http://www2.camara.leg.br/legin/fed/declei/1940-1949/decreto-lei-2848
-7-dezembro- 1940-412868-exposicaodemotivos-148972-pe.html”.
DELMANTO, Celso et al. Código Penal Comentado, 9. ed., São Paulo: Saraiva,
2016.
GARCIA, Basileu. Instituições de Direito Penal, v. I, t. I, 7. ed., São Paulo: Saraiva,
2008.
GOMES, Luiz Flávio (coord.); MOLINA, Antonio García-Pablos de. Direito Penal:
parte geral, v. 2, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007.
GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal: parte geral, 17. ed., Niterói: Impetus,
2015.
GUEIROS, Artur de Brito; JAPIASSÚ, Carlos Eduardo Adriano. Curso de Direito
Penal: parte geral, v. 1, Rio de Janeiro: Elsevier Editora, 2012.
MESTIERI, João. Manual de Direito Penal: parte geral, v.1, Rio de Janeiro: Foren-
se, 1999.
NORONHA, Edgard Magalhães. Direito Penal, v. 1, 38. ed., São Paulo: Rideel,
2009.
PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro: parte geral, São Paulo: Re-
vista dos Tribunais, 1999.
ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Pe-
nal Brasileiro: parte geral, 4. ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.
406
Os direitos autorais analisados
sob a perspectiva da era digital: o
compartilhamento nas redes sociais
de obras fotográficas
Resumo: O presente artigo foca na vivência das redes sociais, que obti-
veram grande êxito na cultura digital, com destaque para as redes Facebook
e Instagram, e na possibilidade de amplo compartilhamento de propriedade
intelectual por meio das mesmas. Estuda-se como tal costume de comparti-
lhamento está conectado com a legislação de direitos autorais brasileira e o
modelo de licenças livres Creative Commons. Examina-secomo se dá a atua-
ção do direito autoral na legislação brasileira no ambiente da Internet atra-
vés das obras fotográficas em redes sociais, comentando sobre os direitos au-
torais, a propriedade intelectual e a formade lidar com esses direitos com a
utilização das licenças livres. O método utilizado foi a análise da Lei de Di-
reitos autorais (L. 9610/98), juntamente com os termos de uso das redes
sociais citadas,comparados com o costume de uso da Internet para compar-
tilhamento das obras artísticas e o claro descompasso da realidade com o
disposto na lei. Trata-se também do uso de licenças livres como forma de
equilibrar o uso habitual da Internet e o respeito ao ordenamento.
407
terms of use, compared with the habit of using the Internet to share artistic
works and the mismatch of reality and the law. It is also analyzed the use of
free licenses as an option to balance the habitual use of the Internet and the
respect for the Law.
Introdução
408
servar se as práticas atuais de compartilhamento de propriedades intelec-
tuais fotográficas violam a legislação de direito autoral brasileira, a Lei 9610
de 1998.
Para isso, examinaremos o instituto do Direito Autoral e o tratamento
que recebe pela legislação brasileira, verificaremos as implicações da revolu-
ção digital ocorrida através do advento da Internet, analisaremos também
como lidam as Redes Sociais Instagram e Facebook com as propriedades in-
telectuais inseridas nelas.
1. O Direito Autoralalegislaçãobrasileira
409
direitos morais do autor são aqueles que unem indissoluvelmente o criador
à obra criada. Emanam da sua personalidade e imprimem um estilo a ela.”
Já com relação aos direitos patrimoniais a autora ensina que:
410
ticas, ou a mera citação da autoria das obras, mais especificamente por conta
do desafio causado pela facilidade do compartilhamento.
As redes sociais foram uma das inovações dessa revolução. Esses sites,
ou aplicativos, trouxeram uma maior facilidade para a difusão de conteúdo,
o que foi percebido por muitos profissionais como uma boa forma de divul-
gação de seus trabalhos. Tais trabalhos, obras artísticas, estão na categoria de
propriedade intelectual que é protegida pelos direitos de autor.
Tendo como base o momento histórico-social no qual nos encontramos,
marcado pelas inovações tecnológicas, temos a questão das obras artísticas
protegidas pelos Direitos Autorais e a adequação desse ramo do Direito na
realidade atual permeada pelas transformações trazidas pela era digital. Tra-
ta sobre o tema em questão o jurista Ronaldo Lemos (2011, p. 21): “Vive-
mos, pois, tempos de grande efervescência criativa. A internet permite a to-
dos que se expressem em diversas mídias e plataformas, convertendo em au-
tor quem quer que esteja conectado à rede. Somos todos fotógrafos, escri-
tores, músicos, cineastas.”
O problema da adaptação do Direito Autoral continua a ser debatido
pelo autor:
411
fias na internet através dos Direitos Autorais visto que a obra intelectual
pode ser expressada através de qualquer meio, seja ele virtual ou não. No
momento em que a obra for exteriorizada haverá a atuação dos Direitos Au-
torais, sem necessidade de registros específicos dessa obra original.
Na Internet a aplicação dos Direitos Autorais se torna muito mais com-
plexa. Os autores nem sempre conseguem usufruir plenamente de seus di-
reitos patrimoniais relacionados à obra e também não conseguem ter amplo
controle sobre o uso e reprodução da propriedade intelectual. Seja no meio
virtual, ou fora dele, é observável que o tema não é amplamente conhecido.
É possível encontrarmos museus com placas de advertências aos visitan-
tes para que não tirem fotos das obras ou nas redes sociais fotógrafos que
legendam suas postagens com a frase “todos os direitos reservados”. Isso, no
entanto, não seria necessário, visto que a Lei de Direitos Autorais exige au-
torização prévia e expressa do autor para o uso e compartilhamento de sua
obra, segundo o artigo 29 e os subsequentes incisos. Talvez o hábito dos au-
tores, de avisarem sobre a proteção que seu trabalho recebe, esteja ligado ao
fato de o tema ainda não estar totalmente claro para a sociedade e também
por haver uma distinção entre a regulação tida mais como teórica do que
possível de ser praticada.
Há o entendimento de que se determinada obra foi divulgada na rede
seu autor automaticamente concordou em ceder seus direitos patrimoniais,
inclusive morais, que não podem ser renunciados, ou como se todo o con-
teúdo encontrado na internet fosse de domínio público. Tal pensamento não
está de acordo com a legislação. Muitas vezes obras são copiadas e compar-
tilhadas sem a autorização e muitos menos sem a devida menção do autor,
direito assegurado pelo inciso II do artigo 24. Além disso as obras muitas ve-
zes são modificadas sem a permissão de seu autor.
Nas redes sociais já mencionadas há uma relação de prestação de servi-
ço. Esses sites disponibilizam termos de uso que ainda são confusos e dificil-
mente são lidos pelos usuários. Porém tanto o Instagram quanto o Facebook
promovem uma política de respeito aos Direitos autorais.
No regulamento do Instagram lemos:
Você declara e garante que: (i) o Conteúdo publicado por você no Serviço ou
através dele é de sua propriedade ou, então, você possui o direito de conceder
os direitos e licenças apresentados nesses Termos de Uso; (ii) a publicação e
uso do seu Conteúdo no Serviço ou através dele não viola, utiliza incorretamen-
te ou transgride os direitos de qualquer terceiro, incluindo, sem limitação, di-
reitos de privacidade, direitos de publicidade, direitos autorais, marca comer-
cial e/ou outros direitos de propriedade intelectual; (iii) você concorda em pa-
gar todos os royalties, taxas e qualquer outra soma de dinheiro devida em fun-
ção do Conteúdo que você publica no Serviço ou através dele; e (iv) você possui
o direito e capacidade legal de participar desses Termos de Uso em sua juris-
dição.
412
E ainda:
413
dar com grande dificuldade. Um dos grandes dilemas é a forma como é tra-
tado o compartilhamento na rede, seja de forma coletiva ou peer to peer
(p2p). Assim teremos que analisar o problema das barreiras impostas pelos
Direitos Autorais na atual sociedade digital de compartilhamento.
A Lei n. 9.610 de 1998 já sofre críticas por sua aplicação mesmo fora do
ambiente digital. Existem traços claros de obsolescência no texto da lei.
Uma das principais críticas é dirigida ao tratamento dado às cópias de obras
protegidas pelo Direito Autoral. A lei de proteção ao direito do autor ante-
rior, Lei n. 5.988 de 73, inciso II do artigo 49, autorizava a “a reprodução,
em um só exemplar, de qualquer obra, contando que não se destine à utili-
zação com intuito de lucro”; ou seja, era possível fazer a cópia de toda a obra
sem a autorização do autor (ADOLFO; ROCHA; MAISONNAVE, 2012).
Já a atual lei se apresenta ainda mais restrita ao dispor em seu polêmico
artigo 46, inciso II, que não há ofensa ao Direito Autoral se houver “a repro-
dução, em um só exemplar de pequenos trechos, para uso privado do copis-
ta, desde que feita por este, sem intuito de lucro”. A questão é mais perti-
nente para o caso de obras literárias, por exemplo, mas fica claraa divergên-
cia entre o costume atual e o que dispõe a legislação.
Numa realidade onde o meio virtual é amplamente utilizado para o com-
partilhamento de informações e conteúdo em geral, percebe-se que há um
descompasso entre a realidade e a lei de 98, pois as limitações ao Direito
Autoral expressas no artigo 46 dessa lei ainda não correspondem ao uso ha-
bitual da propriedade intelectual na internet.
É possível traçarmos outra observação importante sobre nossa legislação
de Direito Autoral: o rol fechado de possíveis usos, por terceiros, da pro-
priedade intelectual que não constituem ofensa ao direito do autor. Se com-
pararmos o instituto de Copyright utilizado no sistema jurídico estaduniden-
se, perceberemos a figura do fair use, ou então o uso proporcional da pro-
priedade intelectual, em que será analisada a questão caso a caso (Ibid.).
Ao delimitarmos especificamente quais as possíveis formas de usos, pa-
rece que engessamos a legislação e não contemplamos as reais formas de uti-
lização das obras protegidas por direito autoral por parte da sociedade. A ne-
cessidade de reavaliação da forma pela qual lidamos com os Direitos Auto-
rais surge exatamente por conta da grande diferença entre teoria jurídica e
realidade fática.
O problema entre a teoria jurídica, ou seja, os ordenamentos jurídicos
vigentes, e o uso prático da internet não é uma questão controversa apenas
no Brasil. Sobre o tema dispõe Benkler (2006, p. 385):
It is difficult to tell how much is really at stake, from the long-term perspecti-
ve, in all these legal battles. From one point of view, law would have to achieve
a great deal in order to replicate the twentieth-century model of industrial in-
formation economy in the new technical-social context. It would have to cur-
tail some of the most fundamental technical characteristics of computer net-
414
works and extinguish some of our most fundamental human motivations and
practices of sharing and cooperation.1
No entanto, é possível observar que a forma pela qual tem sido tratada a
questão não é a mais eficiente. Campanhas de conscientização sobre as ofen-
sas ao Direito Autoral demonstraram não surtir grandes efeitos, ainda mais
quando ocorre a comparação de um download ilegal de música com o furto,
por exemplo. Além disso, o tema também regido pelo Código Penal, ao tra-
tar de crimes contra a propriedade intelectual do artigo 184 ao artigo 186,
podendo ser discutido se seria realmente o caso de ultimaratio na qual se
insere a atuação do Direito Penal.
Há a insistência em adequar a forma pela qual a sociedade lida com a
propriedade intelectual, a prática social, a um rol fechado e nitidamente ul-
trapassado. Mais simples seria que solução jurídica se adaptasse à cibercul-
tura. Se o caminho de adequação não for pela reforma da legislação existe
uma outra alternativa, que parece bastante adequada: as licenças livres.
415
Ao perceberem que, muitas vezes é benéfico o compartilhamento de suas
obras pela internet, se, claro, respeitado seu direito inalienável de ter sua au-
toria citada, os artistas querem autorizar a reprodução de suas obras.
Porém, isso se torna impraticável se for de fato necessária, como prevê
a legislação, a autorização, uma por uma, da reprodução da obra fotográfica.
O foco da questão problemática na qual se encontra o direito do autor na
rede digital está no fato de que sua obra não pode ser reproduzida, copiada,
ou compartilhada sem a autorização prévia e expressa desse autor, segundo
o artigo 29 da Lei de Direitos Autorais de 1998.
Não é viável ao autor, e às redes sociais, aplicarem a repressão de toda e
qualquer forma de reprodução, cópia, compartilhamento que infrinja os di-
reitos autorais no ambiente virtual na forma regulada pela LDA, o que im-
põe a utilização de novos modelos de proteção à propriedade intelectual.
Para que esses direitos não fossem violados o autor deveria autorizar
cada reprodução e compartilhamento da propriedade intelectual individual-
mente. O modelo de “todos os direitos reservados” paulatinamente vem
sendo modificado através das Licenças Livres, como é o caso das Creative
Commons, que podem ser aplicadas nos casos em que os artistas, em questão
os fotógrafos, desejam permitir variados usos de suas obras.
Essas licenças livres são “licenças de uso padronizado, que especificam
quais usos podem ser feitos com determinada obra” (LEMOS et al., 2011,
p. 63). Essa seria uma boa forma de respeitar o artigo 29 da LDA pois have-
ria uma autorização expressa e geral do autor para determinados usos de sua
obra, de acordo com a abrangência dessa permissão, mantendo a obrigação
de se citar a autoria da obra (Ibid. p. 68). A licença Creative Commons é
uma forma de contrato feito entre o autor e a sociedade em geral. Tal licen-
ça de uso permitiria ao fotógrafo que autorizasse a qualquer interessado a
cópia de sua fotografia de forma pública e geral (BRANCO, 2014, p. 129).
Através das Creative Commons o autor pode adaptar os tipos de licenças
à permissão de uso que busca conceder aos interessados. Como exemplo,
pode o autor licenciar sua obra pela licença mais permissiva, a de Atribuição
que permite a cópia, distribuição e utilização da obra mesmo para fins co-
merciais, mantendo apenas a obrigatória citação da autoria, já que se trata de
um direito inalienável do autor e que estará presente em todos os tipos de
licenciamento. Pode o autor também condicionar o uso de sua obra para ge-
rar obras derivadas apenas se tais forem licenciadas pelo mesmo tipo de li-
cença (LEMOS et al., 2011, p.69-71). Assim, o fotógrafo poderá formar,
através dos diferentes componentes oferecidos pela Creative Commons, a
licença que atende ao uso que deseja permitir.
Importante salientar que o uso dessas licenças livres é feito exatamente
para equilibrar o respeito ao direito do autor e à legislação, bem como faci-
litar a autorização para a reprodução das obras artísticas, propriedades inte-
lectuais que são protegidas pelo Direito Autoral. No site das Creative Com-
mons é possível encontrar informações sobre a preocupação da licença em
416
respeitar o instituto de copyright, definindo-se como “legal tools that crea-
tors and other rights holders can use to offer certain usage rights to the public,
while reserving other rights”2.
Considerações Finais
Referências bibliográficas
ABRÃO, Eliane Yachouh et al. Direitos de Autor e Direitos Conexos. São Paulo:
Editora do Brasil, 2002. 229 p.
ADOLFO, Luiz Gonzaga Silva; ROCHA, Ieda; MAISONNAVE, Laura Luce. O
compartilhamento de obras científicas na internet. Estudos Avançados, São
Paulo, v. 26, n. 75, p.309-320, ago. 2012. FapUNIFESP (SciELO). http://dx.
doi.org/10.1590/s0103-40142012000200021. / (ADOLFO; ROCHA; MAI-
SONNAVE, 2012) / Adolfo, Rocha e Maisonnave (2012)
BENKLER, Yochai. The Wealthof Networks: How Social ProductionTransforms-
MarketsandFreedom. New Haven: Yale University Press, 2006. 527 p.
BRANCO, Sérgio. Afinal, o que é CreativeCommons? Observatório Itaú Cultural,
São Paulo, p. 118-135, jan. 2014.Disponível em: “http://d3nv1jy4u7zmsc.
2 Ferramentas legais que criadores e outros detentores de direitos podem usar para
oferecer certo uso de direitos para o público, enquanto reservam-se outros direitos.
(CREATIVE COMMONS, 2016, tradução nossa)
417
cloudfront.net/wp-content/uploads/2014/06/OBSERVATORIO16_0.pdf”.
Acesso em: 18 jun. 2017.
______. A lei autoral brasileira como elemento de restrição à eficácia do direito hu-
mano à educação. Sur. Revista Internacional de Direitos Humanos, São Pau-
lo, v. 4, n. 6, p.120-141, 2007. FapUNIFESP (SciELO). http://dx.doi.org/10.
1590/s1806-64452007000100007.
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil.
Brasília, DF. Disponível em: “http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constitui-
cao/constituicao.htm”. Acesso em: 14 ago. 2017.
______. Decreto-lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940, Código Penal. Disponível
em: “http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del2848.htm”. Aces-
so em: 14 ago. 2017.
______. Lei n° 9610, de 19 de fevereiro de 1998, Altera, atualiza e consolida a le-
gislação sobre direitos autorais e dá outras providências. Disponível em:
“http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9610.htm”. Acesso em: 14 ago.
2017
CREATIVE COMMONS. FrequentlyAskedQuestions. 2016. Disponível em:
“https://creativecommons.org/faq/#what-is-creative-commons-and-what-do
-you-do”. Acesso em: 14 ago. 2017.
FACEBOOK. Declaração de Direitos e Responsabilidades. 2015. Disponível em:
“https://www.facebook.com/legal/terms”. Acesso em: 17 ago. 2017.
FIGUEIREDO, Fábio Vieira. Direito de Autor: proteção e disposição extrapatri-
monial. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2016. 184 p.
INSTAGRAM. Termos de Uso. 2013. Disponível em: “https://help.instagram.
com/478745558852511”. Acesso em: 17 ago. 2017
LEMOS, Ronaldo et al. Direitos autorais em reforma. Rio de Janeiro: FGV Direito
Rio, 2011. 112 p.
MARINELI, Marcelo Romão. Privacidade e Redes Sociais Virtuais: Sob a égide da
Lei nº 12.965/2014 – Marco civil da internet. Rio de Janeiro: Lumen Juris,
2017. 277 p
MARTINS FILHO, Plínio. Direitos autorais na Internet. Ciência da Informação,
Brasília, v. 27, n. 2, p.183-188, 1998. FapUNIFESP (SciELO). http://dx.doi.
org/10.1590/s0100-19651998000200011.
PINHEIRO, Patricia Peck. Direito Digital. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2016. 781 p.
SILVEIRA, Newton. Propriedade Intelectual: propriedade industrial, direito de
autor, software, cultivares, nome empresarial, abuso de patentes. 5. ed. Barue-
ri: Manole, 2014. 406 p.
418
A função social das relações contratuais
ABSTRACT: This article deals with the study of the social function of
the contract and the contractual aspects of civil law. To do this, highlight
the historical development of the code of 1916 Beviláqua, that sought the
valuation of family, contract and property, being motivated by economic,
policy influence and a libertarian. In addition to the historical evolution of
the civil code of 1916, the progress of the principle of good-faith objective,
the difference of the freedom to contract for contractual freedom on the
autonomy of the will, the new civil code of 2002 and your importance in the
relations of the Brazilian civil law.
INTRODUÇÃO
419
princípio estabelece a obrigatoriedade de cumprir o que foi pactuado. Po-
rém, com o decorrer do tempo, surge uma nova valoração na transição do
Código Civil de 1916 para o diploma civilístico de 2002, qual seja: o princí-
pio da função social dos contratos, com vistas a proteger os mais fracos nas
relações contratuais.
1 AZEVEDO, Álvaro Villaça. O novo código civil brasileiro: tramitação, função so-
cial do contrato, boa-fé objetiva, teoria da imprevisão e em especial onerosidade ex-
cessiva. Cadernos de Direito, v. 4, n. 6, Piracicaba: Unimep, 2004, p. 13.
420
legais. Eis aí a filosofia do século XIX, que marcou a elaboração do tecido nor-
mativo consubstanciado no Código Civil”.2
1.1. FAMÍLIA
421
1.2. CONTRATO E PROPRIEDADE
2. A BOA-FÉ CONTRATUAL
4 FACHIN, Luiz Edson.Teoria crítica do direito civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2003.
p. 12-13.
422
Já por ‘boa-fé objetiva’ se quer significar, segundo a conotação que adveio da
interpretação conferida ao § 242 do Código Civil alemão, de larga força expan-
sionista em outros ordenamentos, e, bem assim, daquela que lhe é atribuída nos
países da common law, modelo de conduta social, arquétipo ou standard jurí-
dico, segundo o qual ‘cada pessoa deve ajustar sua própria conduta a esse arqué-
tipo, obrando como obraria um homem reto: com honestidade, lealdade, pro-
bidade’. Por este modelo objetivo de conduta levam-se em consideração os fa-
tores concretos do caso, tais como o status pessoal e cultural dos envolvidos,
não se admitindo uma aplicação mecânica do standard, de tipo meramente sub-
juntivo”.5
Dessa maneira, a boa-fé objetiva nas relações contratuais tem uma aná-
lise na conduta e nos efeitos que são atribuídos aos contratos, incidindo di-
retamente na conduta das partes manifestadas.
O art. 422 do Código Civil de 2002 declara que os contratantes, mesmo
na conclusão do contrato e em sua execução, têm o dever de agir em confor-
midade com aboa-fé. Carlos Roberto Gonçalves explica que: “Cabe ao juiz
estabelecer a conduta que deveria ter sido adotada pelo contratante, naque-
las circunstâncias, levando em conta ainda os usos e costumes. Estabelecido
esse modelo criado pelo juiz para a situação, cabe confrontá-lo com o com-
portamento efetivamente realizado”.7
423
res de informação ou esclarecimento. O dever da obrigação principal faz sur-
gir outras obrigações nas relações jurídicas e o não cumprimento desses de-
veres iria ferir a boa-fé objetiva.
[...] o conteúdo do contrato amplia-se, por força da boa-fé, para além das
obrigações estritamente contratuais. Ao lado das obrigações que não existiriam
fora do contrato, a boa-fé passou a incluir no contexto contratual o dever geral
de não causar dano, em todas as suas múltiplas especificações. Este campo de
atuação dos deveres instrumentais.8
424
Outra expressão da violação positiva do contrato, conhecida como
“cumprimento defeituoso”, não decorrerá somente do descumprimento da
prestação principal, mas da desobediência aos deveres anexos decorrentes
do princípio da boa-fé objetiva. O art. 422 do Código Civil de 2002 deter-
mina que os contratantes têm o dever de conservar, em todo o desenrolar da
relação pactuada, o princípio da boa-fé objetiva, ou seja, uma forma de ex-
tinguir possíveis condutas que violem a boa-fé objetiva até o fim dessa rela-
ção contratual.
3. A LIBERDADE CONTRATUAL
Qualquer leigo em Direito sabe que goza de uma liberdade natural para cele-
brar pactos com outras pessoas e que, uma vez alcançado o acordo, nasce para
cada uma das partes um compromisso de mútuo cumprimento, não só por res-
peito à palavra dada, mas também pela expectativa de que a outra parte cum-
prirá o trato e pela necessidade de gerar uma confiança no entorno para cele-
brar novos convênios. Por isso não cria estranheza aos acadêmicos que ocupam
os bancos dos Cursos de Direito aquele solene e categórico brocardo latino pac-
ta sunt servanda, tão sonoro e tão fácil de aprender; nem aquela sentença lapi-
dária de que “o contrato é lei entre as partes”, proclamada pelo Código Napo-
leão, hoje bicentenário; nem saber que os doutos pandectistas alemães, depois
de proclamar o princípio de autonomia davontade, colocaram-no como princí-
pio cardeal no frontispício do Direito privado.12
“No contrato de nossa época, a lei prende-se mais à contratação coletiva, visan-
do impedir que as cláusulas contratuais sejam injustas para uma das partes. As-
12 SILVA, Clóvis Veríssimo do Couto. A obrigação como processo. São Paulo: Bus-
hatsky, 1976. p. 26.
425
sim, a lei procurou dar aos mais fracos uma superioridade jurídica para compen-
sar a inferioridade econômica.
[...] Por esse prisma, realçando o conteúdo social do novo Código, seu art. 421
enuncia: “A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da fun-
ção social do contrato”. O controle judicial não se manifestará apenas no exame
das cláusulas contratuais, mas desde a raiz do negócio”.13
Com essas novas diretrizes, a Liberdade Contratual ganha uma nova va-
loração, são traçados princípios constitucionais para assegurar a utilidade so-
cial nas relações contratuais. A liberdade passa a ser limitada nos interesses
da coletividade. Sobre esse novo aspecto, explica o professor J. MIGUEL
LOBATO GÓMEZ:
CONCLUSÃO
13 VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil: teoria geral das obrigações e teoria geral
dos contratos. v. 2. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2003.p. 375-376
14 GÓMEZ, J. Miguel Lobato. Autonomia privada e liberdade contratual. Teresina:
Revista Jus Navigandi, 2015, n. 2397, 23jan.2010.
426
cia com a estrutura econômico-social. O princípio da função social do con-
trato, agrega uma proteção para as partes envolvidas e toda a sociedade, evi-
tando a ineficácia das relações que têm por conveniência ofender aos inte-
resses sociais, podendo produzir efeitos a terceiros.
Referências:
AZEVEDO, Álvaro Villaça. O novo código civil brasileiro: tramitação, função so-
cial do contrato, boa-fé objetiva, teoria da imprevisão e em especial onerosi-
dade excessiva. Cadernos de Direito, v. 4, n. 6, Piracicaba: Unimep, 2004.
BITTAR, Carlos Alberto. Direito de família. São Paulo: Forense Universitária,
2006.
CORDEIRO, António Manuel da Rocha e Menezes.Da boa-fé no direito ci-
vil.Coimbra: Almedina, 2007.
FACHIN, Luiz Edson.Teoria crítica do direito civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2003.
FIUZA, César. Direito civil: curso completo. 9. ed. Belo Horizonte: Del Rey,
2006.
GÓMEZ, J. Miguel Lobato. Autonomia privada e liberdade contratual. Teresina:
Revista Jus Navigandi, 2015, n. 2397, 23jan.2010.
GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro, v. III, 6. ed. São Paulo:
Saraiva, 2009.
______. Direito civil brasileiro.? v.3. Contratos e atos unilaterais,9.ed., São Paulo:
Saraiva, 2012.
MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado: sistema e tópica no pro-
cesso obrigacional. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000.
MELLO, Heloísa Carpena Vieira de. A boa-fé como parâmetro da abusividade no
direito contratual. In: TEPEDINO, Gustavo (Coord.). Problemas de direito
civil-constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2001.
NEGREIROS, Teresa. Teoria do contrato:novos paradigmas. 2. ed. Rio de Janei-
ro: Renovar, 2006.
SILVA, Clóvis Veríssimo do Couto. A obrigação como processo. São Paulo: Bus-
hatsky, 1976.
TEPEDINO, Gustavo. Temas de direito civil. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2001.
VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil: teoria geral das obrigações e teoria geral
dos contratos. v. 2. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2003.
427