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Trans/Form/Ação, São P aulo

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TRÊS TRADIÇÕES EXPLICATIVAS NA


LEI DA QUEDA DOS CORPOS

Carlos Arthur Ribeiro do NASCIMENTO *

RESUMO: O presente trabalho tenta mostrar como na justificação teórica do estudo do movimento
naturalmente acelerado nos Di scurso s, Galileu combinaria três posturas metodológicas não perfeitamente
coincidentes. Seriam elas: a demonstração ex hy pothesi da tradição astronômica, interpretada realistamente;
a demonstração necessária da tradição aristotélico-euclidiana; a demonstração t(pica das "ciências in ter­
mediárias ': Assim, mesmo a última obra de Galileu estaria longe de ser inequ(voca em matéria de metodo­
logia cient(fica.
UNITERMOS: Galileu; Di scurso s; movimento naturalmente acelerado; raciocfnio ex hypothesi; A ris­
tóteles; Euclides; ciências intermediárias; ótica.

Muito se tem discutido sobre as concep­ madas nestas diferentes tradições de 'pen­
ções científicas e metodológicas de Galileu. samento sem que se possa dizer que a sín­
Talvez boa parte dos desacordos provenha tese destas seja perfeita ou sem percalços.
de dois fatores. O primeiro seria a inten­
1. O raciocínio ex hypothesi - 1.0 tradição
ção de ler Galileu retrospectivamente, isto
é, a intenção de descobrir nele os germes Comecemos com uma citação, mai� ou
do que vai ser a ciência posteriormente. Di­ menos longa, dÇ>s Discursos:
to melhor: lê-lo a partir de um estágio pos­
terior da ciência. O segundo seria a preten­ "Os acidentes que cabem ao movimen­
são de atribuir a Galileu uma coerência ir­ to igual foram considerados no livro
refragável, seja dentro da mesma obra, se­ precedente. Resta tratar do movimento
ja ao longo de sua extensa produção inte­ acelerado.
lectual .
Em primeiro lugar convém inves­
Propomo-no neste trabalho, seguir um tigar e explicar a definição que lhe cai­
caminho inverso. Quer dizer, em primeiro ba exatamente enquanto se encontra na
lugar, ler Galileu prospectivamente, isto é, natureza. Pois, embora não haj a incon­
a partir do que ele podia conhecer, tentan­ veniente em imaginar arbitrariamente
do ele, eventualmente, ultrapassar o que po­ alguma espécie de movimento e exami­
dia conhecer. Além disso, lê-lo sem supor nar as propriedades que dela decorrem
que seja sempre coerente, mesmo na mes­ - assim, com efeito, procedem os que se
ma obra e na mesma passagem de tal obra. imaginam linhas helicoidais ou concói­
Parece-nos que esta postura consegue dar des resultantes de certos movimentos,
conta razoavelmente de certas dificuldades embora estes não se encontrem na na­
ou ambiguidades encontradas nos Discur­ tureza e, louvavelmente, demonstraram
sos. Com efeito, encontrar-se-iam aproxi- hipoteticamente as propriedades de tais

• Departamento de Filosofia - Faculdade de Comunicação e Filosofia - Po ntifícia Universidade Católica - 0 1 000 -


São Paulo - S P.

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NASC IMEN lD, C.A.R. do - Três t radições ex p l icativas na Lei da Queda do s Corpos. Trans/Form/Ação,
São Paulo, 6: 5-12, 1983.

linhas - no entanto, visto que se encon­ a razão suficiente para provar que o
tra na natureza uma certa espécie de movimento do céu é sempre de veloci­
aceleração dos graves que caem, deci· dade uniforme. De outro modo, damos,
dimos refletir sobre as propriedades não a razão que lhe prove suficiente­
destes na suposição de que a definição mente o fundamento, mas a explicati­
que daremos de nosso movimento ace­ va da congruência desse fundamento j á
lerado venha a concordar com a essên­ estabelecido, c o m os efeitos dele resul­
cia dos movimentos naturalmente ace­ tantes. Assim, na astronomia estabele­
lerados. O que confiamos ter, enfim, ce-se a razão dos excêntricos e dos epi­
conseguido depois de repetidos esfor­ ciclos pelo fato de que , admitindo es­
ços mentais, baseados principalmente se fundamento, podem-se salvar as apa­
na seguinte razão : que as propriedades rências sensíveis a respeito dos movi­
sucessivamente demonstradas por nós mentos celestes, sem ser contudo essa
aparecem como correspondentes ao que razão suficientemente probante; pois,
os experimentos naturais apresentam talvez admitida outra suposição, as re­
aos sentindos e congruentes com is­ feridas aparências se pudessem salvar"
to" (1 1 , Y.8 , p. 1 97; 21, p. 145-146). (1 , I� parte, q. 32, a. I?, ad 2m)*.
Convenhamos em denominar segunda Como o próprio Tomás de Aquino in-
parte desta passagem a que se inicia com dica no texto que acabamos de citar, o ra­
as palavras "no entanto, visto que se encon­ ciocínio ex hypothesi não é uma prova em
tra na natureza .. :' até o final da citação. Ela sentido absoluto. Ele estabelece apenas a
contém uma afirmação que nos traz ime­ congruência entre as conseqüências (empi­
diatamente ao pensamento o método cor­ ricamente verificadas) e o fundamento su­
rente da hipótese-dedução-experimento. posto. Não o caráter absoluto deste último.
Com efeito, Galileu diz que supõe que sua Talvez com outras suposições se pudesse'es­
definição do movimento acelerado concor­ tabelecer também as mesmas conclusões.
da com a essência dos movimentos natu­ Quer dizer, Tomás de Aquino da do racio­
ralmente acelerados pelo fato de que "as cínio ex hypothesi, como era de costume,
propriedades sucessivamente demonstradas uma interpretação operacional ou instru­
por nós aparecem como correspondentes ao mentalista. Os excêntricos e epiciclos não
que os experimentos naturais apresentam correspondem a nada na realidade. São
aos sentidos e congruentes com isto". apenas artifícios ou regras que nos permi­
tem relacionar dados de observação.
Sem dúvida, Galileu conhecia um aver­
são antiga e medieval desta forma de racio­ É aqui que incidiria uma profunda dis­
cínio que era denominada de modo geral cordância de Galileu. Este se recusa a dar
raciocínio ex hypothesi. Era ela corrente em dos excêntricos e epiciclos ou, de maneira
astronomia e foi sintetizada por Geminos mais geral, das hypotheses uma interpreta­
(séc. I a.c.), sendo este reproduzido por ção meramente operacional ou instrumen­
Simplício (527-565) e, através deste último, tai. O raciocínio ex hypothesi é capaz de re­
passou à idade média. Tomás de Aquino, velar a estrutura real do mundo. Eis uma
por exemplo, numa passagem frequente­ passagem típica desta interpretação galilea­
mente citada, resume esta longa tradição: na:
"É preciso ainda prestar atenção que,
"De duplo modo podemos dar a razão em se tratando da mobilidade ou do re­
de uma coisa. De um modo, para lhe pouso da terra e do sol, encontramos­
provar suficientemente o fundamento; nos diante de um dilema de proposições
assim, nas ciêllcias da natureza damos contraditórias, das quais uma é neces-

• Utilizamos a tradução de A. C orreia (7) ligeiramente modi ficada. O texto de Simplício acha-se reproduzido por P. Du­

hem (8, p. 9- 1 1 ) .

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NASCIMENro, C.A.R. do - Três t radições explicat ivas na Lei da Queda do s Corpos. Trans/Form/Ação,
São Paulo, 6: 5-12, 1983.

sariamente verdadeira e que não pode­ dadeira, como se dá que tenha querido
mos de maneira nenhuma chegar a di­ ou podido satisfazer de novo às mesmas
zer que, talvez, nem um nem outro ca­ exigências como uma hipótese errônea
so se dê. Se, pois, a imobilidade da terra e estúpida? " *
e o movimento do sol são verdadeiros
defacto e a proposição contrária absur­ Cremos que é nesta perspectiva que se­
da, como sustentar razoavelmente que ria preciso compreender o texto inicialmen­
a proposição errônea concorda melhor te citado dos Discursos. Por que Galileu
com as aparências perceptíveis, quan­ não se contenta com um tratado meramente
to ao movimento e à disposição das es­ geométrico à moda dos gregos? * * Por que
trelas, que a posição verdadeira? Quem quer ele ir além da geometria e falar de fí­
não sabe que, na natureza, todas as ver­ sica? Falar de "uma certa espécie de acele­
dades tomadas em conj unto formam ração dos graves que caem" que "se encon­
um todo harmonioso ao passo que uma tra na natureza" ? Porque acredita que o ra­
dissonância estrondosa se manifesta en- ciocínio ex hypothesipode revelar a estru­
- tre as hipóteses falsas e os efeitos ver­ tura do real e não se reduz a um simples
dadeiros? Veríamos, assim, concordar, artifício de cálculo.
em todos os pontos, a mobilidade da
A primeira tradição explicativa presente
terra e a imobilidade do sol com a dis­
no trecho que inicia o estudo do movimento
posição de todos os corpos do mundo
uniformente acelerado na terceira j o rnada
e com todas as observações feitas de
dos Discursosnos revelaria então uma in­
maneira mais precisa por nós mesmos
terpretação realista do raciocínio ex hypo­
e·nossos predecessores e, tal posição se­
ria falsa? A imobilidade da terra e o thesi por parte de Galileu * * *.
movimento do sol, tidos como verda­ 2. A tradição aristotélico-euclidiana
deiros, não concordariam, pois, em ca­
Ao final da exposição citada no inIcio
so n.e nhum com as outras verdades? Se
deste trabalho, Galileu parece assaltado por
pudessemos dizer que nem uma nem
certas dúvidas. Pelo menos crê necessário
outra destas opiniões é verdadeira, po­
acrescentar outra j ustificativa à preceden­
deria acontecer, sem dúvida, que uma
te. Eis o texto :
fosse mais conveniente do que a outra
para dar conta das aparências. Mas, "Finalmente, na investigação dos m o ­
que venhamos a afirmar. que, destas vimentos naturalmente acelerados, c o ­
duas posições, das quais uma é neces­ mo q u e n o s conduziu pela m ã o a ad­
sariamente verdadeira e a outra falsa, vertência do costume e do instituto da
esta última corresponde melhor aos própria natureza em todas as suas de­
efeitos naturais, eis aí o que verdadei­ mais obras, no exercício das quais cos­
ramente ultrapassa minha imaginação. tuma usar dos meios mais próximos,
Acrescento, pois, e respondo: já que mais simples e mais fáceis. Penso, com
Copérnico reconhece ter satisfeito ple­ efeito, que não há ninguém que creia
namente às exigências dos astrônomos que o nado e o vôo pode ser executado
com a hipótese comum, tida como ver- de modo mais simples e fácil do que

• Este trecho é tirado de um texto publicado por A. Favaro ( 1 1 , V. 5 , p. 35 1 - 363) sob o título Considerações sobre a opinião

copernicana. Citamos de acordo com a t radução francesa de M. Claveli n ( 5 , p. 1 40). Para o que se refere mais especificamente
aos excêntricos e epiciclos, ver M. Clavelin ( 5 , p. 142) .
•• A menção das linhas helicoidais é uma alusão ao Tratado das espirais de Arquimedes .

• • • Esta afirmação concorda com as grandes linhas da análise de K. Popper (23) e de W.A. Wal l ace (26). Não pretendemos

discutir O detalhe das propostas de Popper e Wallace. Digamos, no entanto, que Popper parece primeiramente i nteressado
em expor o seu próprio pensamento. Galileu comparece apenas como ilustração. Por outro l ado, concordamos plenamente
com Wallace, cujo trabal ho é de intenção predominantemente hi stórica, no que se refere ao caráter necessário e realista da
ciência galileana. Não diríamos o mesmo no que diz respeito à hipótese de que Galileu utilizaria um raciocínio ex-suppositione
distinto do ex hypothesi. Ver também de W.A. Wallace (27) e (28).

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N ASCIM E N TO, C.A . R. do - Três t radições ex p l ic at iv as na Lei da Queda do s Corpos. Trans/Form/Ação,
São Paulo, 6: 5-12, 1983.

aquele mesmo que é usado, por instin­ sica) do movimento uniformemente acele­
to natural, pelos peixes e pelas aves. rado como se dando "pela razão mais sim­
ples e mais óbvia a todos". Neste caso à
Então, pois, quando me dou con­ definição do movimento uniformeme � te
ta de que uma pedra, que cai de uma acelerado não seria confirmada retroduti­
altura a partir do repouso, adquire su­ vamente pela congruência das proprieda­
cessivamente novos incrementos de ve­ des deduzidas com as experimentadas. Ela
lo �idade, por que não crerei que tais é um princípio primeiro evidente por si
aditamentos se dão pela .razão mais mesmo, sendo esta evidência o sustentácu­
simpl lo de todo o arcabouço de propriedades
.
exammarmos atentamente isto, não en­ deduzidas.
contraremos aditamento ou incremen­
to mais simples do que o que acrescen­ É claro, podemos relembrar as dificul­
ta sempre do mesmo modo. O que en­
dades encontradas pelo próprio Galileu. A
tendemos facilmente examinando a afi­
definição do movimento uniformemente
nidade máxima do tempo e do movi­
acelerado apresentada nos Discursos é re­
mento, pois, assim como a igualdade e sultado de um longo debate intelectual. Ele,
uniformidade do movimento se define
aliás, o diz: "o que confiamos ter, enfim
e concebe-se pelas igualdades dos tem­
conse �uido ,depois de repetidos esforços
pos e dos espaços - denominamos en-· mentais .. : '. E sabido como, de início, Gali­
tão, assim, um movimento igual, quan­ leu definiu erroneamente o movimento uni­
do espaços iguais são completados em
formemente acelerado supondo que os au­
tempos iguais - igualmente podemos
mentos de velocidade se davam em função
perceber os incrementos de celeridade do espaço e não do tempo (15 ). Portanto,
como feitos simplesmente através das a definição do movimento uniformemente
igualdades das partes do tempo, con­
acelerado não seria "dada pela razão mais
cebendo na nossa mente que um movi­
simples e mais óbvia a todos".
mento é uniformemente e do mesmo
modo acelerado quando, em quaisquer
tempos iguais, lhe são acrescentados
aditamentos iguais de celeridade. . . . E, A distinção escolástica entre princípios
assim, não parece de modo nenhum di­ evidentes por si mesmos para todos e prin­
sonante da reta razão se consideramos cípi �s evidentes por si mesmos pará os en­
que a intensificação da velocidade se dá tendidos (1 , I� parte, q. 2�, a. I? ) poderia
segundo a extensão do tempo. Daí a salvar a afirmação galileana. A "razão mais
definição do movimento do qual ire� os simples e mais óbvia a todos" deveria ser
tratar pode ser considerada a seguinte: c <;>mpreendida com uma qualificação, quer
denomino movimento igualmente ou dizer: a todos os entendidos. Esta distinção
apresenta um certo paralelo com a distin­
unif?rmemente acelerado aquele que,
partmdo do repouso, acrescenta a si, ção aristotélica entre axiomas e teses e tal
cla �si �icação dos primeiros princípios, por
durante tempos iguais, momentos
iguais de celeridade". (1 1 , V. 8 . p. Anstoteles, talvez nos aj ude a compreen­
1 97-198; 2 1 , p. 1 46). der a pretensão de Galileu no trecho dos
Discursos que estamos analisando.

Partamos de uma passagem dos Segun­


.
anstotel �co �e l!chd\a pa de que a ciência par­ dos Analíticos (2, Liv. I , 10, 76a3 1 -77a4)*.
te de p nnClplOS eVidentes por si mesmos. Esta pode ser esquematizada da seguinte
Daí procurar apresentar sua definição (fí- maneira:

• A ser comparada com uma outra (2, Liv. I , 2, 7 2a 1 4-24).

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N ASClME N ro. C . A . R . do - Três t radições explicat ivas na Lei da Qu eda do s Co rpo s . Trans/Form/Ação.
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São Paulo, 6: 5-12, 1983.

e claro do Sr. Sagredo do que na, para


axiomas mim obscura, demonstração do Autor;
de tal maneira que fico bem convenci­
primeiros hipóteses do de que a coisa deve suceder deste
princípios modo, uma vez posta e aceita a defini­
teses postulados ção do movimento uniformemente ace­
lerado. Mas que esta sej a a aceleração
definições * da qual se serve a natureza no mo �i­
mento dos seus graves cadentes, eu aIn­
Evidentemente, Galileu não pretende que da estou duvidoso; e por isso, para mi­
sua definição do movimento uniformemen­ nha compreensão e de outros semelhan­
te acelerado sej a um axioma, pois estes são tes a mim, parece-me que teria sido
princípios comuns a todos os setores do sa­ oportuno apresentar neste lugar algu­
ber. Ela deve, pois, entrar no grupo das te­ ma experiência daquelas que se disse
ses, que são princípios próprios a uma de­ que há muitas e que em diversos casos
terminada ciência. Não pode ser tomada . concordam com as conclusões demons­
como um postulado, pois estes sã ? I?.?stos tradas.
ou afirmados sem ou contra a opInmo de
outrem. Restam as hipóteses e as definições.
As primeiras afirma
. Salviati. Vós, como verdadeiro cientis­
e as segundas uma slgmflcaçao. Ora, Gah­
ta fazeis um pedido muito razóavel; e
leu está na passagem em questão dos Dis­
' as� im se costuma e convém nas ciências
cursos, afirmando uma significação (a do
que aplicam às conclusões naturais as
movimento uniformemente acelerado). Te­
demonstrações matemáticas como se vê
mos, pois, uma definição. Mas Galile � a
. com os óticos, os astrônomos, os me­
pretende "real", isto é, trata-se da defl �l­
cânicos, os acústicos e outros quais con­
ção de algo que existe na natureza e t,Iao
firmam com experiências sensíveis os
apenas da definição de um mero conteudo
seus princípios que são os fundamen­
de pensamento, da explicação do significa­
tos de toda a estrutura subsequente. Por
do de um termo (definição nominal). Se
isso não desej o que nos pareça supér­
aceitarmos a interpretação de S. Mansion
flu � se com excessiva delonga discor­
de que Aristóteles acaba reduzindo os prin­ ramos sobre este primeiro e máximo
cípios próprios às definições reais ( 1 8 , . p.
fundamento, sobre o qual se apoia a
149-159 e p. 202-21 2) * *, teremos talvez atIn­
imensa máquina de infinitas conclusões
gido uma compreensão melhor do que Oa­
das quais somente uma pequena parte
lileu quereria dizer.
foi colocada neste livro pelo Autor, o
3. Tradição das ciências intermediárias qual terá feito bastante para abrir a en­
trada e a porta que estava até agora fe­
Esta terceira tradição aparece j ustamen­
chada aos intelectos especulativos. A
te na famosa passagem dos Discursos �n­
respeito, portanto, das experiências, o
de se· relata a experiência com o plano In­
Autor não descurou de fazê-las; e, pa­
clinado, que confirmaria experimentalmen­
ra assegurar-se de que a aceleraçã <? dos
te a lei dos quadrados dos tempos. Trans­
graves que caem naturalmente vana na
crevamos o trecho que nos interessa
proporção supra-mencionada, muitas
diretamente:
vezes me encontrei eu, na sua compa­
" Simplício. Eu verdadeiramen �e tíve nhia a fazer prova disto, da maneira se­
mais satisfação neste discurso simples guinte"(lI, Vol . 8 , p. 2 1 2) .

• Para o estabelecimento deste quadro inspiramo-nos das indicações d e A . Correia (6). especificamente (6. p . 28). Ver
também Th. L. Heath ( 1 3, p. 1 1 7 - 1 24) .

• • Ver especialmente ( 1 8 , p. 206-2 1 2 ) . Conferir também ( 1 8 , p. 2 1 3- 2 1 7 e p. 254-274).

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NASC IMEN1D, C.A.R. do - Três tradições ex p l ic at ivas na Lei da Queda do s Corpos. Trans/Form/Ação,
São Paulo, 6: 5-12, 1983.

Salviati dá a definição técnica das ciências Manazir), livro IV, capo 1I1 descreve minu­
intermediárias - "ciências que aplicam às ciosamente a construção de um aparelho
conclusões naturais as demonstrações ma­ para testar a lei de reflexão* * * * *. Rogério
temáticas" - e enumera os exemplos mais Bacon colocará no De Multiplicatione Spe­
conhecidos*. É de ressaltar que coloque em cierum este tipo de experiência acima da de­
primeiro lugar na lista, a ótica. Com efei­ monstração (ratio) e da prova através do
to, talvez sej a neste setor que mais se pràti­ efeito, pois ela nos faz ver diretamente co­
cou o que ele diz: confirmar com experiên­ mo a natureza opera* * * * * *.
cias sensíveis os princípios que fundamen­
tam toda a estrutura subseqüente. Poderíamos e, até mesmo deveríamos
Alguns dados históricos podem apoiar continuar este percurso até a época de
este recurso sobretudo à ótica. Euclides es­ Galileu * * * * * * *. O que dissemos nos pare­
creveu uma Ótica que tem uma estrutura ce, no entanto, suficiente para apontar a
semelhante à dos Elementos. Começa ela corrente de pensamento em que Galileu se
por sete "definições" que são, de fato, pos­ situa na página dos Discursos citada ao iní­
tulados. Seguem-se 58 teoremas que dizem cio da terceira seção deste nosso trabalho.
respeito a questões elementares de perspec­
tiva. Aparentemente não há nenhum recur­ O curioso é que ficamos aqui diante de
so à experiência para fundamentar os uma alternativa.
postulados * *. No entanto, encontramos tal
recurso no prefácio da Revisão da Ótica de a) A lei dos quadrados dos tempos não é
Euclides feita por Theon de Alexandria (fim mais considerada como uma propriedade
do seco IV d.C.). Neste prefácio, Theon aduz do movimento uniformemente acelerado tal
certos dados de experiência para apoiar a como era apresentada no texto de abertura
primeira definição (postulada) da Otica de do estudo deste movimento na terceira j or­
Euclides tal como formulada por ele nada dos Discursos, tanto na perspectiva
Theon* * *. Algo de semelhante pode tam­ da demonstração ex hypothesi como na da
bém ser encontrado na Ótica de Ptolomeu tradição aristotélico-euclidiana. Encontra­
(séc. II d.C.). No início do livro I I I desta mos talvez ainda esta postura nas palavras
obra, Ptolomeu propõe três princípios bá­ de Simplício que aludiriam a este contex­
sicos para a ciência dos espelhos (catótri­ to. A lei dos quadrados dos tempos seria
ca) e procura fundamentá-los experimen­ agora, nas palavras de Salviati, o "primei­
talmente. Chega mesmo a utilizar um apa­ ro e máximo fundamento". b) O "primei­
relho para verificar a lei de reflexão (o ân­ ro e máximo fundamento" seria a defini­
gulo de incidência é igual ao ângulo de re­ ção do movimento uniformemente acelera­
flexão), o tcrceiro destes princípios* * * *. do. Mas então a experiência do plano in­
Alhazen (Ibn al-Haytham, 962-1038 d.C.) clinado não a verifica diretamente. Rever­
no seu Optice Thesaurus (Kitab al- temos à primeira tradição, isto é, à demons-

• Ver a respeito l. Gagné (lO) e nosso ensaio (19), especialmente ( 1 9, p. 36-47) .

• • O texto grego da Ótica de Euclides, acompanhado de uma tradu ção latina, foi publicado por lL. Heiberg (14). H á
tradução francesa ( 9 ) e i nglesa ( 4 ) . A Ótica de Euclides foi conhecida no oaidente desde pelo menos o seco XlII. A h istórica
das traduções latinas é mais ou menos complicada. Ver a respeito W.R. Theisen (25) .
• • • Para O texto da Revisão de Theon, ver l. L. Hei berg ( 1 4 ) .

• • • • A Ótica de Ptolomeu foi traduzida para o latim por Eugênio de Palermo no séc. XII. Esta tradução foi publicada
por G. Govi ( 1 2) e, numa edição crítica por A. Lejeune ( 1 6) .

• • • • • O tratado de Alhazen foi traduzido para o latim no fi m do séc. XlI ou início do XlII. Esta tradução foi editada
f'or F. Risner, Basileia, 1 5 72. H á uma reimpressão da edição de Risner feita por D.c. Lindberg ( 1 7 ) .
• • • • • • O De Multiplicatione Specierum foi editado por l H . Bridges em apêndice à sua edição do Opus Majus ( 3) . Para
uma análise do De Multiplicatione, permitimo-nos remeter a nossa tese de doutorado (20), especialmente, no que toca ao
tópico aqui mencionado (20, p. 9 1 -99). Para uma informação geral sobre o De Multiplicatione ver nosso artigo (22) .
••••••• Para alguns dados rápidos acerca desta tradição após o séc. XIII, ver G. Sarton (24, O. 88-94).

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NASCIMENro, C.A.R. do - Três tradições explicativas na Lei da Queda dos Corpos. Trans/Form/Ação,
São Paulo, 6: 5-12", 1983.

tração ex hypothesi interpretada realista­ inequívocas. Sua última obra, os Discursos,


mente por Galileu. testemunharia as ambiguidades teóricas em
que Galileu esteve envolvido até o final de
Em conclusão podemos dizer que indu­ sua carreira científica.
bitavelmente Galileu se guiava por um ideal
científico que pretendia demonstrações ne­ AGRADECIMENTOS
cessárias que dissessem respeito às coisas Agradeço a Jézio Hernani Gutierre,
do mundo extramental em si mesmas. Ele João de Fernandes Teixeira, José Oscar
está longe do convencionalismo. Mas co­ de Almeida Marques, Marcos Barbosa
mo j ustificar em teoria tal postura? Eis aí de Oliveira e Maria Eunice Quilici Gon­
onde Galileu oferece mais matéria para am­ zales uma discussão prévia deste tra­
biguidades do que, para decisões claras e balho.

NASCIMENTO, C.A.R. do - Three explanatory traditions in the Law of Falling Bodies.Trans/Form/Ação


São Paulo, 6: 5-12, 1983.
ABSTRAC7: This paper tries to show how in the theoretical justification of the study of naturally
accelerated motion in the Discourses, Galileo would have combined thlt!e not perfectly identical methodo­
logical attitudes. Those attitudes would be: the ex-hypothesi demonstration from the astronomical tradi­
tion, realistically interpreted; the necessary demonstration from the Aristotelian and Euclidean lradition;
lhe typical demonstration of lhe "mixed sciences': Thus, even Galileo's last work would be far from une­
quivoc,al

KEY-WORDS: Galileo; Discourses; nalurally accelerated motion; ex hypothesi reasoning; Aristolle;


Euclid; mixed sciences; opt!cs.

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