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JOÃO GUIMARÃES ROSA – CORRESPONDÊNCIA COM SEU TRADUTOR

ITALIANO EDOARDO BIZZARRI. 2 ed. São Paulo: T. A. Queiroz: Instituto


Cultural Ítalo-Brasileiro, 1980.

1
ÍNDICE

Apresentação
(Paolo Angeleri)
IX

Nota dos editores


XIII

Nota de E.B.
1

Correspondência
3

Reproduções fac-similares
133

Índice de nomes
141

Índice das cartas


145

2
APRESENTAÇÃO

Aproximei-me do mundo brasileiro através das traduções de Edoardo Bizzarri, e não


acredito ser o único italiano que possa afirmar uma coisa análoga.
Traduzir: habitualmente, e não apenas na mentalidade corrente do leigo não-
especialista, a arte de traduzir é considerada uma atividade menor, quase técnica pura, em
que o aspecto artístico ou criativo pode estar ausente ou distante. Bem ao contrário, porém,
traduzir é criar – ou transcritar, como diria Haroldo de Campos.
Já estamos longe do dilema croceano que colocava em termos alternativos a beleza
infiel ou a feiúra fiel como as únicas características possíveis de uma tradução não-
mediante. Estamos certos, ao contrário, dessa possibilidade de mediação das línguas e das
culturas, pelo que a transferência se torna módulo de leitura de poetas ou de escritores
através das várias re-criações daquele determinado poeta ou escritor que é justamente o
tradutor. Bizzarri possuía esse dom de releitura e de revisitação em outras línguas, quer por
hábito mental, quer por sensibilidade e amor, quer ainda por uma longa convivência com a
realidade brasileira.
Não afirmo nada de novo ao insistir na exemplaridade de suas traduções: já afirmada
e reafirmada por críticos de primeira plana, tornou-se quase um lugar-comum.
Léo Gilson Ribeiro – o conhecido crítico literário – ainda recentemente não hesitou
em servir-se da tradução de Guimarães Rosa feita por Bizzarri a fim de empostar um
penetrante discurso sobre essa arte tão atual.
Esta reedição da correspondência não é simples homenagem póstuma a um e a outro,
mas um precioso serviço ao homem de cultura, ao estudioso dos dois países – Itália e Brasil
– e ao leitor leigo que de alguma forma queira aproximar-se do mundo difícil, empenhado e
também – diria – rarefeito de um escritor brasileiro tão refinado.
Estamos diante de um documento de trabalho de extrema importância: a tradução não
é coisa que se improvise. E Bizzarri o demonstra no cuidado posto no trabalho, na procura
atenta dos significados, da espessura e dos valores mais incônditos da palavra. Contam-me
que – à parte a busca através desta correspondência do animus e da alma do escritor – havia
o tormento diuturno, atento a todas as facetas da sua expressão, uma interrogação inquieta
sobre valores de transferência das palavras. E o significado e o significante eram presenças
perturbadoras também na proposta veiculadora preocupada com não trair a mensagem.
Porque, no traduzir, aquilo que mais inquieta é exatamente a equivocidade do meio,
onde a mensagem se fraciona ambiguamente entre as duas propostas lingüísticas a serem
aproximadas e interpretadas. E mesmo que pudesse ser completa a veiculação, sempre,
entretanto, resultaria difícil a transposição em expressões poéticas válidas para a
transferência da mensagem ao receptor. Quidquid recipitur, recipitur per modum
recipientis, dizia São Tomás: e se tal, no entanto, sempre se verifica em toda transmissão,

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assume proporções ambíguas mais complexas quando o receptor tenha um modum diferente
por causa das estruturas lingüísticas.
Aqui está o ponto central, o nó do problema. Se, quem leva a mensagem, estiver
distante por forma mentis, porque de outra língua materna – e, portanto, de outra cultura, e
de imaginação, hábitos e vida espiritual diversos – o veículo já não é apenas módulo
expressivo do autor, mas diafragma transcriativo do co-autor, isto é, o tradutor. Bizzarri é,
tout court, em sua obra de intérprete, legítimo co-autor.
Não tive a ventura de conhecê-lo: ficou-me somente a tarefa nada fácil de continuar
suas funções. Difícil herança de uma presença de três décadas nesta São Paulo, que, diria,
cresceu juntamente com Bizzarri e explodiu em todo o seu fermento de vida cultural, e
industrial, e econômica – numa palavra, humana – justamente nos anos centrais da vida
desse taciturno e talvez também esquivo italiano. Crescimento simultâneo que obviamente
é apenas coincidência de vida, encontro que, embora fortuito, é providencial dado o
enriquecimento de um e de outro. E os sinais permanecem: permanece a presença cultural
italiana, com a marca inconfundível de suas pegadas, permanecem as obras e este
monumento à arte da tradução, que é também empenho, solicitação à comunicação.
Este é o aspecto em que gosto de insistir: Bizzarri, para além do discurso profissional
que o convidava a ligar as culturas dos dois países, para além de todo orgulho nacionalista,
transformou-se em símbolo de desejo de contacto entre povos diversos, testemunho da
possibilidade de se entenderem superando todo diafragma lingüístico.
Por isso, pareceu-me que um ato significativo de quem teve a ventura de sucedê-lo
pudesse justamente ser este novo oferecimento ao público da correspondência, enquanto
demonstração efetiva das modalidades concretas de comunicação: se for verdadeiro que a
tarefa autêntica da cultura é, no fundo, somente a vivificadora e contínua proposta de
comunhão ecumênica.

Nota biográfica – Edoardo Bizzarri, literato e historiador italiano nascido em Roma, em


1910, foi de 1948 a 1975, quando faleceu, adido cultural do Consulado Geral da Itália e
diretor do Instituto Italiano di Cultura de São Paulo. Estudioso do Renascimento, escreveu
inteligentes biografias de Machiavelli, Guicciardini e Lorenzo, o Magnífico.
Sua posição ideal – vivamente expressa no ensaio Machiavelli antimachiavellico –
está ligada ao método historiográfico e ao racionalismo humanístico. A reconstrução da
personalidade de Machiavelli dá-se com base no “conceito humanístico do homem como
livre criatura da própria vontade”.
Mas, sua obra de estudioso encontra a confirmação nos trabalhos de tradução do
português: em particular, sua fama está vinculada ao empenho como tradutor de Guimarães
Rosa.

Bibliografia – Ensaios: Machiavelli antimachiavellico (Florença, 1940); L’italiano


Francesco Guicciardini (Florença, 1942); Il Magnífico Lorenzo (Milão, 1950). Traduções:
Cecília Meireles, Poemas italianos (São Paulo, 1968); Graciliano Ramos, Terra bruciata
(Milão, 1961); J. Guimarães Rosa, Il duelo (Milão, 1963); Corpo di ballo (Milão, 1964);
Grande sertão: veredas (Milão, 1970).

PAOLO ANGELERI

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NOTA DOS EDITORES

Mantendo, nesta edição, a preocupação de observar rigorosamente os textos originais


da correspondência de Guimarães Rosa, diligentemente conseguida por Edoardo Bizzarri
em edição restrita publicada em 1972, pelo Instituto Cultural Ítalo-Brasileiro, limitamo-nos
aqui a atualizar a ortografia de todas as cartas reunidas neste volume quanto aos sinais
diacríticos e corrigir os pouquíssimos senões tipográficos que escaparam aos extremos
cuidados do co-autor e organizador deste singular e valioso trabalho.

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Todas as cartas de Guimarães Rosa ao seu tradutor italiano – excetuando-se uma de
Gênova e um bilhete sem data – foram escritas a máquina pelo Autor, com freqüentes
insertos a mão, e com uma série de curiosas peculiaridades gráficas: espaço duplo depois
do ponto, espaço antes dos dois pontos, ponto e vírgula, pontos de exclamação e
interrogação, e, para dar destaque, uso da fita vermelha, letras espaçadas, vários tipos de
sublinha, emprego de todas maiúsculas. Nos limites consentidos pela composição
tipográfica, procurou-se obedecer a estas peculiaridades, das quais o leitor poderá ter
melhor idéia examinando os originais reproduzidos em clichê. Em itálico, entre asteriscos,
foram indicados os insertos a mão.
O texto das cartas de Guimarães Rosa foi reproduzido fiel e integralmente; até em
seus pequenos erros de italiano. Só dois óbvios deslizes datilográficos foram emendados.
Quanto às cartas do tradutor, achou-se demais exigir do leitor a paciência e a
tolerância do Guimarães Rosa, e portanto – com vistas à sua mera função de contracanto e
acompanhamento – pareceu não arbitrário passá-las através de um mínimo indispensável de
revisão ortográfica.
Toda referência ao texto de Corpo de baile é relativa à 1ª edição.

E.B.

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Guimarães Rosa e seu tradutor italiano encontraram-se uma única vez, numa noite
de 1957, ao entrar no elevador do prédio n.º 51 da rua General Jardim, em São Paulo,
ambos com destino ao 3º andar.
Guimarães Rosa tinha vindo a São Paulo e dirigia-se ao 3º andar daquele prédio a
fim de receber o Prêmio Carmen Dolores Barbosa; o futuro tradutor nem de longe podia
imaginar, naquela época, que um dia seria chamado a traduzir Guimarães Rosa – ele se
encontrava lá simplesmente porque era membro do júri que tinha atribuído o prêmio.
Trocou umas palavras convencionais, durante a rápida subida; entregou o Autor aos
admiradores e colecionadores de autógrafos que se aglomeravam na sala, e discretamente
passou para a sacada (chamada também de Butantã, desde os dias em que Oswald de
Andrade, Homero Silveira, Osmar Pimentel e o dito futuro tradutor tinham feito dela
costumeiro ponto de irreverentes bate-papos, pontilhados de alegre e inocente veneno
literário).
Guimarães Rosa – muito Itamaraty naquela circunstância festiva e às voltas com
tantas caras novas – é natural não guardasse lembrança do miudíssimo episódio, que, é
óbvio, ficou gravado na memória do futuro tradutor, e é aqui lembrado só para
devidamente frisar que a “estória” da amizade de Guimarães Rosa para com seu tradutor
italiano é uma história exclusivamente epistolar. Seu prólogo tem que ser procurado numa
breve troca de cartas relativas à autorização de traduzir um conto.
No início de 1959, atendendo à solicitação do periódico Il Progresso Ítalo-
Brasiliano, que tinha começado a sair em São Paulo sob a responsabilidade do Prof. Ítalo
Bettarello, E.B.escreveu a Guimarães Rosa pedindo autorização para traduzir o conto
“Duelo”, do volume Sagarana. A autorização veio numa amável cartinha, que não foi
possível, localizar. O conto saiu nos números VI e VII do dito periódico, e alguns
exemplares foram devidamente enviados ao Autor.

Rio, 5 de outubro de 1959.

Meu caro Professor Edoardo Bizzarri,

Perdoe-me a grande demora desta: mas que foi por causa de doença, e de uma estada
fora do Rio. Aqui estou, porém, festiva e sinceramente, para lhe agradecer a forte alegria
que me deu, com o envio dos números do “Progresso Ítalo-Brasileiro” com o nosso
“Duelo”. A tradução – de coração o digo – entusiasmou-me, achei-a admirável. Nem sei,
nem pensei que fosse possível um trabalho assim. Nada do texto original se evaporou, nada
foi omitido, tudo ficou preservado... e prestigiado! E a Nota de apresentação, generosa e
séria, comoveu-me. Gratíssimo, por tudo.
Com o grato e melhor abraço amigo
do seu
Guimarães Rosa.

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Passaram-se três anos. Em outubro de 1962 E.B. recebeu, inesperadamente, um
exemplar de Primeiras Estórias, com a dedicatória: “A EDOARDO BIZZARRI, com o
grato apreço e a viva simpatia do Guimarães Rosa. – Rio, Setembro, 62”.

São Paulo, 18 de outubro de 1962.

Meu caro Guimarães Rosa,

Recebi suas Primeiras Estórias e fico-lhe profundamente grato pela carinhosa


lembrança, que muito me honra. Estou saboreando o livro, devagarinho, uma estória cada
dia, ou dois.
A minha tradução de “Duelo” entreguei há tempo ao Prof. Jannini; devia entrar num
volume a ser publicado, aos cuidados do Jannini, pela editora Nuova Accademia, de Milão.
Talvez esteja já no prelo; mas não tive mais notícias. A mesma editora publicou a minha
tradução de Vidas secas, que tenho o prazer de enviar-lhe em separado.
Enfim, aqui vai um pedido que pode parecer um tanto esquisito, sobretudo por parte
de um velho “crociano”. Gostaria, tão apenas meus compromissos me dêem um pouco de
folga, de escrever um ensaio de interpretação crítica sobre toda a sua obra até hoje
publicada. É evidente que cada obra de arte é uma realidade autônoma, válida por si mesma
e independente de qualquer biografismo; mas, para quem queira reconstruir um itinerário
poético, tornam-se úteis, às vezes, também dados de natureza extra-artística. Ficar-lhe-ia
portanto muito grato por qualquer informação achasse interessante fornecer-me; e,
particularmente, me seria de grande auxílio conhecer a data de composição dos vários
contos, novelas e romances.
Renovando meus agradecimentos, aqui vão as expressões mais cordiais de minha
simpatia e admiração.
E.B.

II

Rio, 21 de novembro de 1962.

Meu caro Edoardo Bizzarri,

Claro que não podia deixar de enviar-lhe o “amarelinho” (o “PRIMEIRAS


ESTÓRIAS”). Sempre volto a admirar, profundamente grato, sua pasmosa tradução do
“Duelo” – que parece mesmo “não existir”, de tão incrível. Traduzir para o italiano, sei que
é das proezas mais difíceis, é idioma que “aceita pouco”, conforme li, não me lembro onde
nem de quem. E, mesmo assim, a façanha se fez !
Mas sua carta está aqui, alegrando-me uma porção de vezes. Para começar, agradeço-

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lhe, vivamente, a generosa lembrança de mandar-me o “VIDAS SECAS”. Foi uma notável
e importante surpresa. Talvez por se tratar de publicação parcelada, só de 2 noveletas num
volume – e também porque aquela editora era para mim desconhecida, sem o abalizado
vulto de uma Mondadori, o ardoroso éclat de Feltrinelli, a fama de Garzanti, Einaudi,
Bompiani, etc. – eu tinha feito o contrato com a “Nuova Accademia” um pouco por fazer,
deixando-me levar, sem verdade de interesse nem ponta de influência. Mas, agora, visto,
pegado, sopesado, o belo exemplar da coleção “narratori sudamericani” acendeu-me e
atiçou-me, com todas as fornalhas.
Achei-o uma jóia, uma delícia; dá gosto, mesmo. Já fico a imaginar o nosso, como
sairá. Apenas, lamento, sinceramente, que não seja sua a “PRESENTAZIONE” ; porque a
do “VIDAS SECAS” é um admirável estudo crítico, em profundidade, de fazer alta inveja.
Tudo, aliás, magnífico : a “AVVERTENZA E GLOSSARIO” ; e, last but not least, a
tradução, nem podia deixar de ser.
Quem sabe a “Nuova Accademia”, depois (e, naturalmente, caso o volume com os 2
contos do “SAGARANA” tenha sorte com o público da Península), poderia querer publicar
mais uns dois livros : um, por exemplo, com “O Burrinho Pedrês” e “Conversa de Bois” ;
outro com “A Volta do Marido Pródigo”, “Corpo Fechado” e “São Marcos” ? E, neste
caso, minha completa alegria seria que a tradução e apresentação de todos lhe coubesse.
Acha, falando francamente, que aquelas outras estórias valeriam a pena ? E, se sim, não
gostaria de atirar-se a elas ?
Pensei nisso, também, porque assinei contrato com a Feltrinelli, para o “CORPO DE
BAILE”, assegurando-lhes a prioridade de opção para minhas obras futuras, e à “Nuova
Accademia” só pude prometer, extra-contrato, “uma certa prioridade” – segundo lugar na
fila, portanto. Mas o “SAGARANA” ficou fora, posso eventualmente, entregá-lo todo à
“Nuova Accademia”, se ela tiver algum interesse. (O “GRANDE SERTÃO : VEREDAS”
está sendo examinado por Mondadori). Enfim, tudo isto é entusiasmo, resultado da
admiração que me despertam, até hoje, todos os trabalhos seus.
Assim, pode imaginar como já estou pedindo a Deus que lhe permita, e mesmo o
instigue, constranja, force, obrigue a levar a cabo o ensaio de interpretação crítica sobre
toda a minha obra. Já o sonho ! – e não por simples vaidade, creia. Mas a gente está sempre
precisando de coisas sérias, assim, como confirmação e para ajuda.
Grato, gratíssimo. Por tudo, e tanto.
E, com profundo apreço, o cordial abraço, amigo
do Guimarães Rosa.

São Paulo, 3 de dezembro de 1962.

Meu caro Guimarães Rosa,

A sua carta, tão amável, me deu muita alegria; mas também me deixou com um
vaidoso complexo de culpa.
Tinha decidido encerrar definitivamente minhas experiências de tradutor. Traduzir é
praticar um exercício de estilo, uma pesquisa de interpretação; é, afinal, um ato de amor,
pois trata-se de se transferir por inteiro numa outra personalidade. Tendo feito tudo isso

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com autores como Melville, Henry James, Faulkner, Graciliano Ramos e Guimarães Rosa,
confesso que me dava por satisfeito. Além do mais, há tantos trabalhos meus, e velhos
compromissos, que venho protelando de um ano para o outro. E – helás – a idade das lícitas
protelações já se foi.
Tudo certo. Mas aqui chegou a sua carta, acordando a amizade e a vaidade, e, com
elas, vaidosas preocupações. Será que Grande sertão: veredas, ou outra obra de Guimarães
Rosa, vai cair nas mãos de um tradutor inexperiente, que a estrague mais do que é
inevitável, ao vertê-la para o italiano? E na luta entre meus velhos problemas e o que se me
afigura como dever de amigo, encontro-me numa aflição tremenda. Da qual posso sair só
abrindo o coração à sugestão da amizade e deixando, com a sabedoria da terra, a decisão
final ao acaso. Autorizo portanto o ilustre Amigo – sempre que o achar oportuno e
conveniente – a indicar aos editores italianos meu nome como eventual tradutor
(Mondadori, aliás, editou o meu livro Il Magnífico Lorenzo e as minhas traduções de
Faulkner e Huxley).
Resolvido assim o meu problema de consciência, passamos aos contos de Sagarana;
daqueles mencionados em sua carta, os que mais aprecio são “O burrinho pedrês”, “Corpo
fechado” e “A volta do marido pródigo”. O diabo com as edições da “Nuova Accademia”,
tão gostosas como apresentação, é que são pessimamente lançadas. Em todo caso, vamos
esperar que saia o primeiro volume; quem sabe se, entretanto, eu consiga levar a cabo o
ensaio sobre Guimarães Rosa? Suas palavras amigas me animam a satisfazer mais este
compromisso que há tempo tomei comigo mesmo.
Grato pelas suas carinhosas e amáveis expressões, esperando a oportunidade de uma
boa conversa no Rio ou em São Paulo, aqui vão, com o mais profundo apreço, meus
melhores votos e um cordial abraço
E.B.

III

Rio, 25 de janeiro de 1963.

Meu caro Bizzarri,

Sério, sincero : sua carta me alegrou, fora de conta. Você me promete o que nem me
parecia crível. Agora, se a coisa pega – e por que não haveria de pegar ? – sei que as
traduções italianas de meus livros poderão ser, de longe, as muito melhores, as
“melhoríssimas” ! Então, lhe estou grato, agradecido vivamente, por tudo, pelo futuro
Ensaio também ; sua boa vontade desperta em mim uma ganância, digo, uma avidez
desmedida... (Se só agora compareço, com esta, é porque estive um tempo ausente do Rio).
Vou escrever à Feltrinelli (“Corpo de Baile”) ; com calma, vou escrever à Mondadori
(“Grande Sertão : Veredas” – ?). Fiquemos, porém, desde já, unidos, combinados,
inseparados.
Até outra. Vê-lo, qualquer dia, aqui ou aí em São Paulo, será para mim um grande
acontecimento.
E, agora, o grato, amigo, forte abraço
do
Guimarães Rosa.

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A.S. – Vai cópia de minha carta à Feltrinelli.
CONDECORAÇÃO aumentou minha alegria ! Abraços.

IV

Rio, 1 de março de 1963.

Meu caro BIZZARRI,

Este é um bilhete, bem rápido, para deixar Você avisado, pois as coisas estão
começando a se mexer. Como disse a Você, na minha última carta, escrevi à Feltrinelli e à
Mondadori ; queria jogar a rede para todos os lados. Agora, Feltrinelli reage, escrevendo-
me o Sr. Valério Riva, e enviando-me cópia da carta que mandou a Você, de 20.II.63.
(Achei um pouco pafúncia a idéia de, no seu caso, pedir amostra de uma dezena de páginas.
Mas pode ser uso geral deles, disso Você julgará melhor do que eu). Agora, espero a
resposta de Mondadori, naturalmente mais demorada, pois eles ainda estavam com a opção
do livro, apenas. Acho, porém, que toparão, pois o “THE DEVIL TO PAY IN THE
BACKLANDS” (“Grande Sertão : Veredas”) acaba de sair, bonitão, em Nova York, e de lá
já recebi dos representantes da Rizzoli Editore na Quinta Avenida, grande telegrama
pedindo opção também; só pude responder ao telegrama (com resposta paga) que
“unfortunately” eles, * digo, os direitos, * não estavam mais livres.
Agora, o importante : não sei porque, só por palpite, estou pensando que o melhor é
Você não responder imediatamente à Feltrinelli, mas esperar um pouco, até que Mondadori
se manifeste. Que é que Você acha ? Se Você puder ficar com os dois, melhor ! Se não,
porém, estou sentindo que talvez preferiria Você com o “Grande Sertão : Veredas”, coisa
maior e mais retumbante. Naturalmente, o que Você pensar e preferir, está ótimo. Isto aqui
são apenas bolhas e borbulhas de minha emoção e afobamento, entusiasmadíssimo de ver
que as coisas vêm vindo para Você ser o meu tradutor na Itália ! No íntimo, rezo para Você
ser um ciclope, e pegar os dois livros, logo, um em cada mão.
Abraço enorme, amigo : do seu
Guimarães Rosa

São Paulo, 7 de março de 1963.

Meu caro Guimarães Rosa,

Recebi na semana passada a carta do Feltrinelli. Não gostei. Sujeitinho besta, aquele
Sr. Riva. Velho professor que eu sou, tinha a obrigação pedagógica de chamar a atenção
dele. E como malcriação de editor raramente é mera coincidência, achei também
conveniente pôr os meus pontinhos nos is; sem fechar – é claro – a porta a futuros
entendimentos. O que fiz na carta de que anexo cópia.
Agora, de posse da carta do ilustre Amigo (que me compensou em excesso do leve

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aborrecimento), vejo ainda mais confirmado meu palpite a respeito da ambigüidade da
prosa do Sr. Riva. Obrigação pedagógica à parte, acho que andei certo respondendo como
respondi. (Na Itália não costuma-se pedir tests aos tradutores, a não ser os novatíssimos;
nunca mos pediram; pedi-los, depois da carta que Você mandou, é até desaforo). Em todo
caso, veremos em que dá. Certo é que, de qualquer forma, ganhamos tempo, à espera que
Mondadori acorde. Pois – não há dúvida – Grande sertão: veredas tem que ser o alvo
principal. Mas obrigação é obrigação; e se o Feltrinelli topar, aqui estou: disposto a deixar
tudo de lado, e entrar no Corpo de baile, sem prejuízo da aceitação da proposta Mondadori,
quando vier. Ganhei complexo de ciclope? Deus sabe. Eu sei que ciclópicas são apenas a
minha admiração para o Guimarães Rosa e a vontade de que seja devidamente apreciado na
Itália.
A condecoração é “estória” velha *. Saiu ainda na época de JK, por iniciativa do
amigo Pascoal Carlos Magno. Aliás, era ele que devia fazer a entrega. Mas Você sabe como
é o nosso Pascoal. Passaram-se os meses e agora já os anos... Agora precisa – na opinião de
todos os amigos – proceder à entrega oficial. Devo dizer que nada me alegraria tanto quanto
receber o Cruzeiro das mãos do maior escritor brasileiro de hoje? Mas quem sou eu para
ambicionar e pedir tanto? Pensei na coisa, sonhei com ela, voltei a pensar com maior calma,
releguei tudo na esfera dos sonhos. Mas o homem é bicho danado. Entrei em outras
cogitações. Afinal de contas, aqui em São Paulo, todo mundo está com saudades enormes
de Guimarães Rosa. Será que ele aceitaria um convite do Instituto para uma conferência, ou
palestra, ou seminário, ou conversação, ou bate-papo informal sobre qualquer assunto de
seu agrado? Ou simplesmente para participar de uma manifestação de homenagem? O
Instituto sentir-se-ia feliz e honradíssimo, patrocinando a iniciativa, e ganharia a gratidão de
a toda gente culta paulistana.
Aqui vai, portanto, o convite para o Amigo vir passar alguns dias em São Paulo,
hóspede do Instituto. Eventualmente, depois da festa grande em homenagem a Guimarães
Rosa – quero dizer um ou dois dias depois – poderíamos fazer uma festinha para a entrega
da condecoração ao Bizzarri. Mas este é pormenor secundário. O que importa é a presença
do Amigo em São Paulo. A época ideal seria maio ou início de junho.
Peço perdão pelo meu português, afobadíssimo, e pelo atrevimento do sonho,
confiando, como sempre, na amizade do Amigo.
Um grande cordial abraço do admirador
E.B.

* Como G.R. descobriu a coisa, é mistério.

São Paulo, 20 de março de 1963.

Meu caro Guimarães Rosa,

Feltrinelli escreveu. Penitenciou-se. E me pede para traduzir Corpo de Baile. Mas

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também quer o livro todo até o 31 de dezembro próximo; prazo, para mim, problemático e
pelo qual não posso comprometer-me; pois, o período em que poderei trabalhar mesmo,
duro e fundo, é justamente de dezembro a março.
Escrevo portanto ao Feltrinelli, aceitando, sempre que a data de entrega seja adiada
aos 31 de março de 1964. Claro que procurarei terminar antes. Mas a gente precisa de uma
margem de segurança.
Por hoje é só. Desculpe a afobação e aceite o abraço do amigo
E.B.

Rio, 5 de abril de 1963.

Meu caro Bizzarri

Perdoe-me o inominável atraso. É que os assuntos eram e são muito vivos, e eu andei
fora, e doente, e agarrado por ganchos de muitas coisas, que me agrediam, simultâneas,
sovertendo com minha fraqueza e pouquinha capacidade. Em seguida, o agravamento da
doença do grande amigo João Neves da Fontoura. A morte dele. A forçada (por “obrigação
de nobreza”) candidatura à Academia. Houve de tudo. Mas aqui estou. Agora, a quantidade
de assuntos é que me tumultua um pouco.
Primeiro. Chegou o nosso livro, o “IL DUELLO”, que, penso, Você terá recebido
também. Achei a tradução do Prof. Jannini bastante boa (Você julgará melhor e orientará a
respeito este seu amigo, apenas ínfimo leitor de Dante), e a “Presentazione” muito
simpática. Mas, o que me d e s l u m b r o u, deixando-me tonto de admiração, foi o seu “Il
Duello”! – além e não obstante tudo o que dessa tradução eu já havia achado, admirado,
declarado e propalado. Creia, meu caro Bizzarri, chega a constranger-me ter de louvá-lo,
assim, direta e superlativamente ; mas, como poderia eu ficar calado ? Lido, agora, em
livro, limpo e definitivo, seu texto me parece simplesmente mágico. As palavras ficam tão
belas, que fico ansioso por estudar mais o italiano, a fim de segui-las até ao lontano. Quanta
escolha, quanta vida, quanta sutileza, quanta energia. Com a mesma mão com que Você dá
pouso a um beija-flor ou acaricia uma borboleta, também pode demolir um búfalo com um
murro. Depois, e mais que tudo, eu sinto que há uma correspondência íntima, um tom
anímico de família, um parentesco entre nós dois : eu “continuo”, no texto seu italiano, e,
não duvide, em muitas passagens me sinto superado, ultrapassado. O ritmo, a dinâmica, os
timbres. Bem, não sei dizer mais. Alegro-me. Assusto-me, quando penso que Você poderia
não ter podido aceitar a incumbência de traduzir o “CORPO DE BAILE”. E não tenho
dúvida : suas traduções de G. Rosa hão de ser, longe, as melhoríssimas, batendo todas,
sejam as para quaisquer idiomas. (A não ser que se ache algum outro Bizzarri escondido
por aí, na Dinamarca ou na Bulgária, o que seria repetição de milagre, normalmente
impossível). Por tudo, graças a Deus. E que Deus lhe pague.
Segundo. Adorei sua carta ao sr. Riva, perfeita da primeira à última palavra,
impecável. E exultei com a volta dele, manso e acordado. A respeito do prazo, Você precisa
saber que escrevi a eles sugerindo que publiquem o livro em três volumes, seriados ou
independentes, como estão fazendo, por sugestão minha, as Éditions du Seuil, na França, e
a Livros do Brasil Ltda., em Lisboa; e como vai fazer também o Verlag Kiepenheuer &

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Witsch, na Alemanha. mas eles hão de concordar com sua contraproposta, mais que justa.
Terceiro. E isto deixei por último, de propósito, pela viva importância que me merece
o assunto. (E, por incrível que pareça, acredite que, por motivos nenhuns ou menos que
mínimos, passei duas semanas procurando saber se o Cerimonial (a Divisão do) não
desaprovaria a solução, antes dando-lhe cobertura, já que eu teria de agir e falar em nome
do Ministro de Estado. Somente procrastinações e indecisões, agora felizmente vencidas). É
o assunto, nosso, da entrega oficial da insígnia e do diploma. Claro que a alegria minha será
real e enorme, de poder fazer isso. Temos apenas de estudar, isto é, de acertar bem a data.
Há uma coisa me preocupando, no momento : é muito provável que me chegue, por estes
dias, um convite para participar de uma reunião literária, em Paris ; também é provável que
tenha de ir ; e a data não sei : só me avisaram, meio vagamente, que seria "por volta de
maio". Tenho de desenevoar isso.
A outra coisa é que a minha demora teria de ser curta, mesmo porque, depois que
fiquei com a pressão arterial alta, deixei de ir aí a São Paulo, da qual gosto muito mas onde
não consigo dormir direito. Também, Você, sabe, uma festa grande de homenagem me
constrange, um bocado. Assim, a gente não poderia fazer tudo numa reunião conjunta? A
FESTA seria a de entrega, solene e sincera. Depois, mais discretamente, com o cunho mais
de atividade do, ou para o, INSTITUTO, eu faria uma palestra, mais simples, "em família"
de estudiosos, o que justificaria o convite. Que acha Você? Conversemos franca e
afetuosamente. Mas, desde já, mande-me uma folha com tudo o que há a seu respeito,
curriculum, títulos, serviços, fé-de-ofício. Sou tão retraído e ignorador, que nem sei se Você
é quem é o Diretor aí, e eu tenho escrito só "Professor". Enfim, o que é raro e importante, é
que você é EDOARDO BIZZARRI.
Grande, forte abraço
do Guimarães Rosa

São Paulo, 23 de abril de 1963

Meu caro Guimarães Rosa,

Semana Santa ajudando, o Correio conseguiu entregar-me sua carta só no dia 16. Li a
carta, afobado; rejubilei; xinguei o Correio nacional pela protelação de tanta alegria; voltei,
afobadíssimo, a ler a carta. E não posso não agradecer ao Amigo as palavras a respeito
daquela minha tradução: me deixam - é verdade - um pouco encabulado e muitíssimo
preocupado diante de novas traduções; mas, sinceramente, são o maior prêmio que poderia
desejar para o meu esforço.
Sobre o problema "tradução", e a existência dum "discorso universale", interior,
fundamento de todo possível idioma (o que torna possível o ato de traduzir), gostaria de
conversar um bocado. Mas os assuntos imediatos estão mesmo tumultuando. Vamos,
portanto, na ordem:
Primeiro: Até que enfim saiu a edição da Nuova Accademia. Ainda não recebi o livro; aliás,
nem sabia do título, nem tenho, há muito tempo, notícias de Jannini e da editora. Não faz
mal. O que espero é que o Jannini se mexa um pouco para acordar os sonolentos e
distraídos cronistas literários da imprensa peninsular, pois a editora é, no que diz respeito
ao lançamento, um tanto preguiçosa. Indo à Itália, no fim de junho próximo, procurarei

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fazer o máximo para sacudir o meio; mas estaremos lá no verão, época de praias e de
camping.
Segundo: Feltrinelli não deu sinal de vida. O que me deixa bastante perplexo; pois eu tinha
aceito todas as condições dele, só pedindo um adiamento de três meses no prazo último da
entrega; adiamento que, em consideração da extensão da obra e da parcelada remessa das
traduções, não vejo como poderia transtornar os planos da editora. Será que a carta não
chegou? A hipótese me deixa aflito. Em todo caso, não recebendo notícias, daqui a alguns
dias enviarei cópia da carta, estranhando o silêncio.
Terceiro: O assunto - "Festa", "Condecoração" etc - seria mesmo para deixar constrangido,
não fosse o amável convite do Amigo para a conversa franca e afetuosa. Estudei o problema
com a diretoria local (o nosso é Instituto misto, quer dizer, é sociedade civil brasileira, e
portanto tem uma diretoria local, e funciona também como "Instituto Italiano di Cultura", e
portanto tem ao mesmo tempo um diretor italiano - o seu amigo - que é o adido cultural da
Itália em São Paulo). Aqui vai portanto a proposta do Instituto, que é submetida a Você para
aprovação, sugestões, emendas, contraproposta etc.:
1) na sede do Instituto, a palestra, "em família de estudiosos", como Você deseja. A
sala não comporta mais de cem pessoas; e poderíamos limitar o ingresso só aos convidados,
embora a política do Instituto seja a das portas abertas.
2) quanto à "Festa", o Instituto desejaria promover um banquete por motivo do
aparecimento da primeira tradução italiana de Guimarães Rosa, o que forneceria o ensejo
de uma homenagem conjunta ao escritor e ao tradutor. No fim do banquete, um dos
membros da diretoria (presumivelmente Antonio Candido) faria uma rápida saudação,
depois falaria Você e haveria a entrega do Cruzeiro, e por último as inevitáveis palavras do
condecorado. Tudo muito simples, em tom de reunião entre velhos amigos. Mas a solução
do banquete pareceu necessária, quer para dar à reunião o devido realce, quer para dar a
todo mundo a oportunidade de congratular-se com os festejados.
As duas manifestações - se for mesmo necessário - poderiam até realizar-se no
mesmo dia: palestra às 18 horas, e banquete às 20, 30; mas seria cansativo e puxado
demais. Se não for muito transtorno para Você ficar em São Paulo ao menos dois dias, seria
bom fazer a palestra no primeiro e o banquete no segundo, ou vice-versa, como Você achar
melhor.
Quanto à data, a época desejável para nós, por muitas circunstâncias, seria de 10 a 22
de junho; pois, no dia 26 embarco para a Itália, de onde voltarei nos primeiros dias de
agosto. Caso Você não possa, adiaremos tudo para o mês de setembro.
Você concordando nas linhas gerais, comunique-me logo a fim que o Instituto
providencie o convite formal de sua visita (o qual é, naturalmente, extensivo à sua esposa) e
possamos desde já cuidar de todos os pormenores. Você - é claro - será hóspede do
Instituto, indicando o hotel em que gostaria de ficar; o convite do Instituto inclui, por praxe,
a cobertura de todos os gastos de viagem.
Aguardo ansioso a sua resposta, na esperança que, dentro de pouco tempo, possamos
nos ver pessoalmente para o grande abraço que lhe estou devendo

E.B.

P.S. - O curriculum seguirá daqui a poucos dias.

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6

São Paulo, 29 de abril de 1963

Meu caro Guimarães Rosa,

Procurei o curriculum que Você afetuosamente solicitou: o curriculum mais ou menos


oficial, para fins burocráticos, onde os fatos da gente estão assentados, ordenadinhos, como
borboletas espetadas na vitrina de um gabinete de ciências naturais. Na confusão dos
papéis, não consegui encontrá-lo. Talvez seja melhor assim. Aqui vai, portanto, uma rápida
autobiografia, da qual o Amigo poderá extrair informações
essenciais...................................................................................................................................
...........................................................................................................................................

VI
[autógrafo, sem data, como apêndice a duas laudas em que os dados biográficos de E. B. tinham
sido elaborados em forma de ficha]

Meu caro Bizzarri,

Só este rápido bilhete, hoje, por ora ; estou atropelado, meio doente e ainda em
suspenso. Veja, porém, o que, con amore, extraí, de sua boa carta - (tirando, do brilho e
latejo orgânico da coisa viva, sofrida, autêntica, valiosa, uma ficha fria, espetada, seca,
muito aquém do preço e valor de tudo...) Agora, veja se se lembra de mais algumas coisas
e preencha, por favor, complete, vivifique. (Sem descabida modéstia ; nós sabemos que
Você é muito mais do que Você pensa que seja ; sabemos que Você vale muito mais,
muitíssimo do que se julga). E recambie-mo, com as modificações e os acréscimos. É
também para o arquivo da "Ordem do Cruzeiro do Sul", no Cerimonial do Itamaraty, pois
o nosso admirável Pascoal fez a coisa lá por cima, e não incluiu o curriculo, ou ele se
perdeu, e agora o pedem.
Com o invariável abraço amigo
do seu
Guimarães Rosa.

São Paulo, 20 de maio de 1963

Meu caro Guimarães Rosa,

Aqui vai a minha ficha para o Arquivo da Ordem do Cruzeiro do Sul, não sem
remorso por ter obrigado o Amigo à maçante função de arquivista (eu pensava que as
informações tivessem destino particular), e com o acréscimo de mais umas bobagenzinhas.
Espero que desta forma sirva, e não lhe dê mais trabalho.
O que me preocupa, agora, é a sua saúde. Faço votos de imediata e total recuperação.
Ao mesmo tempo, gostaria que a programada visita a São Paulo não fosse para Você

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motivo de transtorno ou preocupação; pois destina-se a ser festa grande para todos nós. Se,
por qualquer razão, não lhe for possível o período indicado (de 10 a 20 de junho), não se
aflija por isso. Adiaremos tudo para setembro, ou outubro, ou quando Você achar mais
conveniente. O importante é Você estar bem disposto e animado. E, secundariamente,
marcar a data com duas ou três semanas de antecedência, para exigências de oportuna
organização.
Por último, A NOTÍCIA: chegou anteontem o contrato do Feltrinelli, já assinado, e
hoje mesmo volta para a Itália, registrado aéreo. "Alea jacta est", guardadas as devidas
proporções. Só que o meu Rubicão não é um riachozinho, mais pedras do que água,
transponível sem se molhar os pés, como aquele que originou a metáfora: mas um
verdadeiro São Francisco, enorme, com águas profundas, as margens que se perdem no
horizonte; e nele vou entrar, diria Dante, "in piccioletta barca", ou melhor, diria o nosso
caipira, numa canoa furada. Que Deus me ajude. Basta; em todo caso, a nossa irmandade
está agora selada com novo elo, e a futura correspondência fadada a disquisições
semânticas e lexicais.
Com um grande abraço

E.B.

VII

Rio, 3 de junho de 1963

Meu caro Bizzarri,

Gratíssimo pela "Ficha", que agora está rica, vera e certa, como tinha de ser - se bem
que, o vivo e essencial de seu valor, de Você, o papel não fixa num sumário desses; eu é que
sei. Com ela em punho, já acertei, burocraticamente, o seu "Maço", no Cerimonial do
Itamaraty, na Secretaria da Ordem. E agora vão conceder-me, mediante moroso escrito, em
Memorandum despachado devidamente pelo Sr. Ministro de Estado, a autorização e i n c u
m b ê n c i a - que é para mim gratíssima satisfação e honroso privilégio - de ir levar-lhe e
entregar-lhe aí em São Paulo, com solene momento, o Diploma e as Insígnias.
Tudo tendo de ser mesmo, ohimè, em setembro ou outubro, como Você bondosa e
compreensivamente adianta. Mas, certo. Por enquanto, algumas causas "transversais"
andaram ou andam me atrapalhando. Houve a doce "ameaça" daquela reunião em Paris,
que até hoje me deixa em suspenso, bobamente, sem desatar nem atar, nem ao menos de si
dar sinal vivo. Houve e está havendo a minha candidatura à Academia Brasileira de Letras:
concorro tranqüilo, como único candidato e acolhido com muita simpatia, mas, mesmo por
isso, sinto-me mais obrigado a caprichar nas cordiais visitas, de praxe, uma por uma, aos
Acadêmicos. E, tudo isto, com a pressão alta, agravada um pouquinho, agora, com as
repentinas mudanças de temperatura, pois qualquer friozinho mexe comigo, apertando-me
as artérias, como vaso-constritor. Mas o espírito vibra alto, e a alegria é cultivada com toda
a força.
Mas ainda, agora, com a maravilhosa notícia ! Você não sabe como dei pulos de
contentamento, ao saber que o contrato chegou e foi assinado. Foi um peso que me largou o
pescoço. Se Você não me traduzisse, nada tinha graça. Deus é grande ! Exulto. Nem tenho
palavras para dizer a Você o que sinto.

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Continuemos em contacto. Em princípio, fim de setembro. Três semanas antes,
acertaremos os relógios.
Grande, grato abraço amigo
do seu
Guimarães Rosa.

São Paulo, 26 de junho de 1963

Meu caro Guimarães Rosa,

Estou de malas prontas, pois hoje mesmo embarco, de avião, para a Itália; ou melhor,
para Roma.
Na malinha de mão (é preciso dizê-lo?) vão o primeiro volume de Corpo de baile e o
Pequeno dicionário brasileiro da língua portuguesa. Também não é preciso dizer que ainda
não comecei a tradução. Vou começá-la em Roma. "Quod bonum, faustum, felixque sit",
como diziam meus ante-passados.
Um grande abraço e até a volta, em meados de agosto

E.B.

São Paulo, 18 de agosto de 1963

Meu caro Guimarães Rosa,

De volta de Roma - onde enfrentei um calor horroroso em companhia de Miguilim e


Manuelzão - aqui estou de novo, e encontro a notícia da triunfal eleição do Amigo para a
Academia. Um abração de felicitações.
Quanto à tradução, estou com inúmeros problemas; não vou dizer desanimado ou
arrependido, mas meio espantado, sim. Mas tudo isso fica para outra vez. Esta é só para
alegria acadêmica, missiva dos parabéns e do carinho de seu amigo romano, que volta a ser
paulistano

E.B.

10

São Paulo, 6 de outubro de 1963

Meu caro Guimarães Rosa,

Aqui vai a primeira relação de minhas ignorâncias e dúvidas, pelas quais peço o
auxílio e o conforto do Amigo. Vai nas folhas anexas, com conveniente espaço depois de

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cada pergunta; assim V. poderá responder aí mesmo, e mandar de volta as folhas com o
mínimo possível de trabalho e amolação.
Há – preciso dizê-lo – infinitos outros problemas, sobre os quais muito gostaria de
conversar. Mas como? Eis aqui alguns:
1. – Eu sugeriria – quanto às citações epigrafando a obra toda – a eliminação (não me
xingue) do Coco de festa do Chico Barbós, pois, fatalmente, na tradução em outra língua e
para o leitor estrangeiro (que tem ainda que ser introduzido no mundo do sertão) sua
aproximação com Plotino e Ruysbroeck perde todo o sabor, sentido e sugestão que pode
apresentar o texto original para o leitor brasileiro. No caso, porém, de V. achar necessária a
inclusão do Coco na edição italiana, peço maiores esclarecimentos a respeito dos versos 8 e
10;
2. – Gostaria de ter sua opinião e conselho a respeito dos nomes de localidades, pessoas e
dos apelidos. Estou deixando alguns na língua original, e traduzindo outros ou usando o
correspondente italiano, com critério exclusivamente pessoal, arbitrário e fônico. Como
resolveram o caso os tradutores em outros idiomas? Eu não vi, nem quero ver, outra
tradução;
3. – Enfim (não fique admirado, mas todo tradutor tem sua cisma), gostaria de ter a sua
definição de “vereda”; com quase certeza, não vou traduzir a palavra para o italiano, aliás,
procurarei introduzi-la na minha língua, como indicativa de uma realidade típica e
intransponível; mas, justamente por isso, preciso ter confirmada a imagem que me formei
daquela realidade.
Posso pedir urgência? O fato é que estou já revisando “Uma estória de amor”, “A
estória de Lélio e Lina”, e “O recado do morro”, e aprontando as relativas relações de
dúvidas, que vão seguir, uma por semana.
Obrigado e até breve, com o abraço amigo

E.B.

VIII

Rio, 11 de outubro de 1963

Meu caro Bizzarri,

Primeiro, a grande, alegre surpresa. Não sabia que já tivesse voltado. Sempre pensava
e aguardava, para qualquer momento, comunicação sua, para resolvermos, inclusive, sobre
data e etc. da minha ida aí (vamos retomar o assunto?). mas imaginava-o chegando cansado
e saudoso da Itália, espreguiçando-se ante mil acumuladas tarefas e desacostumado de
traduzir. E, de repente, V. comparece, em pleno afã, apresentando-me resultados
entusiasmadores, arrastando-me no magnífico ímpeto ! Fiquei feliz. Em tudo, constante, V.
é sempre o mesmo – tudo em que toca, toma valor. Sua carta, ela própria, e a lista com as
“dúvidas”, trazem, em cada linha, trazem, digo, a marca da inteligência sem cochilar e esse
jeito de agarrar as coisas com mão sutil e firme. Já me vejo, enfim, vantajosamente
traduzido. Sem piada, mas sincero : quem quiser realmente ler e entender G. Rosa, depois,
terá de ir às edições italianas.
Tanto é verdade o que sinto e digo, que duas preocupações me invadem, agora nesta
resposta. Primo : fico com pena de ter de entrar no jogo, ainda que apenas com primárias

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indicações, sem importância, porque quero guardar-me para o formidável prazer de comer o
“doce” pronto, isto é, de ver como prestigiará V. o “Corpo de Baile”, com sua manipulação
pessoal e poderosa. Segundo : de um modo menos egoísta, vejo que coisa terrível deve ser
traduzir o livro ! Tanto sertão, tanta diabrura, tanto engurgitamento. Tinha-me esquecido do
texto. O que deve aumentar a dor-de-cabeça do tradutor, é que: o concreto, é exótico e mal
conhecido ; e, o resto, que devia ser brando e compensador, são vaguezas intencionais,
personagens e autor querendo subir à poesia e à metafísica, juntas, ou, com uma e outra
como asas, ascender a incapturáveis planos místicos. Deus te defenda.
Enfim, aqui vão as respostas. Quero, porém, que V. tenha viva liberdade, naturalmente.
Espero que o que V. vai fazer seja mais uma colaboração que uma simples tradução.
Obrigado.
***
1. – Coco de festa do Chico Barbós. Perfeito, de acordo com a supressão, como
epígrafe geral. Será, porém, que poderíamos deslocá-lo, para epígrafe de “A estória de
Lélio e Lina”, ou para a “Dão Lalalão”? Mas, isso, verá V. depois, melhor. (A tradução dos
versos 8 e 10 vai mais adiante).
2. – NOMES PRÓPRIOS. – Exato. Assim também é que eu pensava : V. deixando
uns como estão, e traduzindo outros. Ou, mesmo, “inventando”. Quando entra seu “critério
exclusivamente pessoal, arbitrário e fônico”, fico alegre e tranqüilo. Nele é que eu,
sinceramente, confio. (O tradutor francês, de acordo comigo, está procedendo assim. Os
norte-americanos deixaram tudo na forma original, o que achei ruim). Haverá casos,
também, em que V. já viu que o bom, de mais vivo efeito, é a solução mista – conservar
uma parte e traduzir o resto :
Brasilino-Boca-de-Bagre Vereda-doFrango-d’Agua
Pindaíbas-de-Baixo-e-de-Cima Maria-Pretinha
Etc.
***
Assim, de momento, por exemplo, quer-me parecer que estes lucrariam, talvez, ficando no
original:
Jé Saluz Quússo (Vereda do) Saririnhém Siarlinda Terentém (Vereda do) o Grivo
Drelina Gadiada (vaca) Papaco-o-Paco (ou Papaco-il-Paco - ?)
Sinsã (vaca) (mas escrito Sinsan)
Sucuriju (mas com tradução do nome, no glossariozinho)
? – Mutum (idem, ibidem) – Pinima (id., ib.; é, em tupi, “onça pintada”)
* **
Outros teriam de traduzir-se: Pau-Roxo, Pingo-de-Ouro, Chica, Tomezinho, Rio-Negro
(touro), Tabuleiro-Branco, Adivinha (vaca). As vacas : Brindada, Trombeta, Sereia. Os
cães : Caráter, Catita, Soprado, Etc. etc.
***
Ou traduzadaptar-se : Gigão (cachorro), Floresto (cachorro), Tapira (vaca), Veluda
(vaca), Mascaranha (vaca), Tucaninha (vaca - : de tucano), Dobradiça (vaca).
Caso especial é o de Cuca (na verdade, poderia ser um sinônimo, raro e arcaico, de
“coruja”, que os meninos ignoravam. A estória cantada existe, no sertão, como a pus no
livro).
(Seu) Aristeu – deve ser dado na forma correspondente italiana, pois, como V. sabe,
Aristeo era uma das personificações de Apollo – como músico, protetor das colméias de

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abelhas e benfazejo curador de doenças.
(Seo) Deográcias – também em forma italiana (Deograzzie? Deogratias?) me parece
melhor.
(Seo e Seu, uso-os como tênue diferenciação. Seo, menos profunda corruptela de
Senhor, para gente de categoria social um pouquinho mais alta).
E o Patori? (Em Minas : é uma espécie de pequeno pato-bravo, ou marreco do mato).
Parece-me mais engraçado traduzir.
Mãitina, é que não sei bem. (Mãe Tina, aglutinado). Mãe, acrescenta-se aos nomes de
pretas velhas escravas, que tinham sido amas de filhos dos senhores.
Em Nhangã e Tipã, não terá escapado a V. que procurei camuflar um simbolismo: Anhangá,
o demônio ; Tupã ou Tupan, Deus ; dos índios tupi-guaranis.
***
VEREDA

Você sabe, desde grande parte de Minas Gerais (Oeste e sobretudo Noroeste),
aparecem os “campos gerais”, ou “gerais” – paisagem geográfica que se estende, pelo
Oeste da Bahia, e Goiás (onde a palavra vira feminina : as gerais), até ao Piauí e ao
Maranhão.
O que caracteriza esses GERAIS são as chapadas (planaltos, amplas elevações de
terreno, chatas, às vezes serras mais ou menos tabulares) e os chapadões (grandes imensas
chapadas, às vezes séries de chapadas). São de terra péssima, vários tipos sobrepostos de
arenito, infértil. (Brasília é uma típica chapada...) E tão poroso, que, quando bate chuva,
não se forma lama nem se vêem enxurradas, a água se infiltra, rápida, sem deixar vestígios,
nem se vê, logo depois, que choveu. A vegetação é a do cerrado : arvorezinhas tortas,
baixas, enfesadas (só persistem porque têm longuíssimas raízes verticais, pivotantes, que
mergulham a incríveis profundidades). E o capim, ali, é áspero, de péssima qualidade, que,
no reverdecer, no tempo-das-águas, cresce incrustado de areia, de partículas de sílica, como
se fosse vidro moído : e adoece por isso, perigosamente, o gado que o come. Árvores,
arbustos e má relva, são, nas chapadas, de um verde comum, feio, monótono.
Mas, por entre as chapadas, separando-as (ou, às vezes, mesmo no alto, em
depressões no meio das chapadas) há as veredas. São vales de chão argiloso ou turfo-
argiloso, onde aflora a água absorvida. Nas veredas, há sempre o buriti. De longe, a gente
avista os buritis, e já sabe : lá se encontra água. A vereda é um oásis. Em relação às
chapadas, elas são, as veredas, de belo verde-claro, aprazível, macio. O capim é verdinho-
claro, bom. As veredas são férteis. Cheias de animais, de pássaros.
As encostas que descem das chapadas para as veredas, são em geral muito úmidas,
pedregosas (de pedrinhas pequenas no molhado chão claro), porejando agüinhas : chamam-
se resfriados. O resfriado tem só uma grama rasteira, é nítida a mudança de aspecto da
chapada para o resfriado e do resfriado para a vereda. Em geral, as estradas, na região,
preferem ou precisam de ir, por motivos óbvios, contornando as chapadas, pelos resfriados,
de vereda em vereda. (Aí talvez, a etimologia da designação : vereda).
Há veredas grandes e pequenas, compridas ou largas. Veredas com uma lagoa ; com
um brejo ou pântano ; com pântanos de onde se formam e vão escoando e crescendo as
nascentes dos rios ; com brejo grande, sujo, emaranhado de matagal (marimbu); com
córrego, ribeirão ou riacho. (Por isso, também, em certas partes da região, passaram a
chamar também de veredas os ribeirões, riachos e córregos – para aumentar nossa
confusão. No começo do “Grande Sertão : Veredas”, Riobaldo explica).

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Em geral, os moradores dos “gerais” ocupam as veredas, onde podem plantar roça e
criar bois. São os veredeiros. Outros, moram mesmo no alto das chapadas, perto das
veredinhas ou veredas altas, que, como disse, também há, nas chapadas : estes são os
“geralistas” propriamente ditos (com relação aos veredeiros, isto é, em oposição aos
veredeiros). Mas o nome de geralista abrange, igualmente, a todos : os veredeiros e os
geralistas propriamente ditos. Quem mora nos gerais, seja em vereda ou chapada, é
geralista. Eu, por exemplo. Você, agora, também.
Nas veredas há às vezes grandes matas, comuns. Mas, o centro, o íntimo vivinho e colorido
da vereda, é sempre ornado de buritis, buritiranas, sassafrás e pindaíbas, à beira da água. As
veredas são sempre belas!
***
Bem, meu caro Bizzarri, escrevi isto tudo de um arranco, e estou esvaído, demolido.
Mas não queria retardar, nem um momento, a nossa retomada auspiciosa de contacto. Da
pressa, o desordenado desalinhavo, de tudo. Será que estou sendo útil à Você?
Retome a mão, faça a segunda jogada.
E, muito, acolha o grato, sempre
do muito seu
Guimarães Rosa.

P.S. - Já ia-me esquecendo do Coco do Chico. Eis :

Verso 8 - Suponho seja um desses meninos que guiam os cegos pedidores de


esmola, pelas estradas, e vão guardando, numa sacola ou capanga, o dinheirinho
arrecadado.
Verso 10 - A tampa do balaio, ou do cumbuco : recipiente de chifre, para rapé,
etc.
(Como Você vê, eu mesmo não sei. Ouvi esse coco, no sertão, e, justamente pela
poesia de sua estranha mixórdia, ele me impressionou vivamente. Não escaparão a V. os
requintes, absolutamente imprevistos : "o pé" da mulher, o "sapato" - toque anacreôntico.
Mas, principalmente, traduz ele, de modo cômico aparente, mas cheio de vitalidade, uma
ânsia de posse da totalidade, do absoluto, da simultaneidade e plenitude, eternas. O cantor,
ele mesmo, reconhece que os outros, os comuns e medíocres, o tomam por louco. Mas ele,
assim mesmo, persiste em querer tudo : o conteúdo e a própria caixa de Pandora - até sua
tampa ! - e seja ela o que for : balaio ou cumbuco...)

“CAMPO GERAL”

1. Título: "Campo Geral", pela semelhança com o italiano e a tradicional


ignorância geográfica dos europeus, não dá indicação geográfica nem sugestão
exótica. Poderia ser simplesmente "Miguilim", ou "Campos Gerais"? Outra
sugestão? Concordo. Ou, talvez, qualquer coisa mais bizarra, na linha de : MIGUILIM,
BIMBO ou MIGUILIM, GLI OCCHI? Quanto mais à vontade V. inventar, mais me alegrará.
2. p. 27 linha 10ª última: "será que, o tio Terês, ou outros ainda determinavam
d'ele poder mandar palavra alguma em casa?" consentiriam ainda os outros (vovó
Izidra, o Pai) que o tio Terês desse qualquer ordem? (Miguilim desconfia ou acha que o Tio
já está desmoralizado, sem mais nenhum prestígio ali).
3. p. 42 linha 22: "cuspia longe, em tris" (fininho e sibilado?) Isto mesmo : fazendo

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tsssí; molhada, esguichada, agudo-rumorosamente, FININHO E SIBILADO.
4. p. 43 linha 14: “tinha tirado por tino”: tinha deduzido, ou calculado, chegado a
uma idéia ou conclusão de raciocínio.
5. p. 44 linha 20: "Mais antes um que mal procede, mas que ensina pelo direito a
regra dos usos!": É preferível alguém que proceda mal, mas que ensina ou fala
defendendo (aconselhando) corretamente as boas normas tradicionais. (Aqui, Vovó Izidra
faz a apologia, ingênua, da hipocrisia convencional, convencionalista).
6. p. 47 linha 18: "argume" : a face polida da água (argentata-?), a lâmina líqüida
prateada.
7. p. 48 linha 3ª última: "estipava" (enchia?) (ardia?) : se amontoava, se adensava,
se ajuntava contra.
8. p. 49 linha 3: “à tanta”: fatalmente, a certo momento, lá pelas tantas.
9. p. 50 linha 5: "trilique" (trilo?): trilos seriados, os longos gritinhos, estalidos,
estalados, das alegres maitacas. Onomatopéia.
10. p. 50 linha 29: “deu descordo”: Desânimo súbito. Medo raciocinado.
11. p. 51 linha 11: "Ceu-de-Lalau" (inferno? mas quem é o Lalau?): Confesso que
a expressão existe; mas não sei de que Lalau ela vem. (cielo-dei-ladri -?) Como por lá tem a
interjeição - Babau! para indicar que alguma coisa levou a breca, mais ou menos como o -
Kaput! - alemão, pode ser que venha daí...
12. p. 53 linha 18: "frutinhas de birosca": São grandes sementes chatas, de uma
árvore (TENTEIRO ou acapurana, das leguminosas, cesalpíneas) com que os meninos
brincam e servem para tentos, nos jogos.
13. p. 54 linha 15: "encambixavam" (derrubavam pelo rabo?): É aquilo mesmo
que vem antes : pear, prendendo junto as duas pernas, pelas curvas das ditas, o bezerro (já
derrubado deitado no chão). SEDÉM : corda feita de crinas ou de pelos da cauda do boi.
(CURVA da perna: a parte onde ela se dobra).
14. p. 55 linha 10: "pé-de-flor" (tem outro nome?): Vago. Uma árvore, que existe
mesmo, mas cujo nome eles já ignoravam, assim como eu. Nesses casos, dizem somente:
pé de flor, pé de pau, etc.
15. p. 55 linha 23: "escogitava": Cogitava. Pensava com insistência. Refletia
seriamente.
16. p. 60 linha 16: "a rã rapa-cuia" (rapa-cuia está indicando o gritar
"raschiato" da rã?) Sim. Mas o nome vulgar da espécie é mesmo este : a rapacuia, ou a
rã rapa-cuia.
17. p. 64 linha 20: "ai-de-mim" (tem outro nome?) Não. Só me lembro vagamente
assim. É uma florzinha alegre, de folhagem também verde bonito, ornamental.
18. p. 65 linha 24: "pé de chocolateira" Afetuosamente depreciativo : pé pesado,
desajeitado para dançar. Comumente : pé com o calcanhar muito grande, saliente para trás,
como muitos negros têm.
19. p. 67 linha 6ª última: "inçoavam" Grassavam. Pululavam. Abundavam. Eram em
feroz quantidade.
20. p. 68 linha 27: "em de ouros!" pura verdade. Ou : tudo está ótimo ! (Nota
positiva, animadora)..., pelo melhor dos contrários !
21. p. 69 linha 5: "nem paz, nem pode" Miguilim nem teve paz nem pôde saber de
si, nem perguntar nada, nem teve tempo. (Mas tudo dado velozmente, assim atropelado,
para atender à simultaneidade, à verdade psicológica).
22. p. 69 linha 32: "em tempo" (houve um tempo em que, ou: tempestivamente?)

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Não te socorri NA HORA CERTA? Em tempo exato, na oportunidade.
23. p. 70 linha 27: “toda aprumada em sobres”: toda excitada e enérgica,
transfigurada em imponência imprevista, querendo ser dominadora.
24. p. 71 linha 3: "sangrando na cia" Com ferida ou sangradura no cilhadouro (na
ilharga).
25. p. 71 linha 13: "cor de terra de ivitinga" cor de oca ou ocre (terra amarela).
26. p. 75 linha 23: “o fogo drala bonito”: estalar e subir a chama, expandir-se com
aquele mágico, enrolado-desenrolado, turbilhonar vertical do fogo.
27. p. 76 linha 19: "inçame" (quantia grande?) bando grande, enxame, horda.
28. p. 76 linha 22: "olho de bago" como olho, como vivo grão, como fruta.
29. p. 77 linha 23: "resumia de nada" Não dava importância.
30. p. 77 linha 2ª última: “até queria que brilhos doessem”: (Ânsia de afã místico
de Miguilim, angústia religiosa em ação). No fervor, era como se quisesse ascender – à
experiência salvadora de BRILHOS (à “glória de Deus”); e que esses brilhos DOESSEM:
isto é, senti-los, em si, no próprio corpo, carne, para certeza de sua realidade,
suprarealidade. *Na evasão da reza, Miguilim queria era “transcender”*.
31. p. 79 linha 11: "bronho" escuro-e-ameaçador, torvo-assustante.
32. p. 82 linha 3: "tiçou" jogou, ou deixou cair repentino, largar com brusquidão ou
violência.
33. p. 82 linha 27: "cererê de mão em mão no chão" cererê: como uma dança,
confusa, entrecruzando-se movimentos (os macacos pulando e correndo, misturados, feitos
quadrúpedes)
34. p. 84 linha 21: "em branco morava" ficava alvo de névoa ou neblina (da chuva)
35. p. 90 linha 26: “cantava silêncio de cantigas”: Querendo dizer (poeticamente):
cantigas que impunham, que encerravam magia estranha como a que há no silêncio, na
solidão; experiência de Miguilim, indizível, que sei?
36. p. 91 linha 3: "inventava lélis, lelê da candonga" tecia intrigas e mexericos.
37. p. 93 linha 13: “tatarana-rata” (é outro nome da lagarta tatarana – do que
duvido – ou é outro bicho? Neste caso, tem outro nome? Que bicho é?): É a tatarana,
mesma, a lagarta-de-fogo, com pelos urticantes. Crêem uns que se trate de uma variedade
maior, de tatarana. (Em tupi: tatá, fogo; rana: que parece, semelhante a (como no inglês: ...
like).
38. p. 107 linha 11: "E sojigou Miguilim debaixo de sua tristeza" (o sujeito é
Miguilim?) Não. Miguilim foi que, quando se fechou a porta, teve que ficar subjugado,
submetido à sua enorme angústia.
39. p. 111 linha 2ª última: "Mão te tenha!" Fórmula arcaica de se apostrofarem
valentões e desordeiros : "(Que) (uma) (qualquer) mão te (con) tenha!"
40. p. 113 linha 6ª última: "a tutuca dos jenipapos" (tutuca é onomatopaico ou
existe como substantivo não registrado pelos dicionários?) Onomatopéia. Termo tupi.
Traduz o barulho característico : macio, polposo, cheio, do jenipapo maduro caindo e
esborrachando-se contra o chão.
41. p. 119 linha 2ª última: “poder um dia abençoar teus calcanhares e tua nuca”
(vê-lo morto?): Vê-lo partir, ir embora: sendo visto afastar-se, isto é: por detrás.
42. p. 121 linha 20: "carvão de barbatimão" (tem outro sentido além do literal?)
Autodepreciativo romântico, queixa de miséria. O arbusto barbatimão dá a pior lenha
possível, para se fazer fogo, queima muito mal, é indesejável. O cozinheiro (de boiadas)
pede que lhe tragam qualquer lenha - exceto a de barbatimão. Se a lenha é ruim assim, que

24
dirá então o carvão - o resíduo dessa lenha?...
43. p. 123 linha 20 e seg. qual é o sentido de "roxo" na fala do vaqueiro Saluz?
pensei fosse ruivo; outros me dizem que vale "mulato": É mulato, pardo-escuro, quase
preto.
44. p. 136 linha 13: "são-josés" (tem outro nome esta planta?) São ninfeáceas (?)
brancas, liliformes as flores. Chama-se também lírio de São José. Parece-me que é o
mesmo vegetal chamado baronesa (aparece nos livros de José Lins do Rego). Também
pode ser a gogóia ou a olímpia.

11

São Paulo, 17 de outubro de 1963.

Meu caro Guimarães Rosa,

Recebi ontem a sua de 11 do corrente. Obrigadíssimo. E aqui vai, sem delongas, a


segunda jogada. Confiava, progredindo na tradução, reduzir o número das “dúvidas”.
Parece que está acontecendo o contrário. A luta com o concreto, o exótico, o termo no seu
sentido material e na sua ligação etimológica, é, de fato, brava; mas preciso enfrentá-la, e
esmiuçar tudo, para depois tentar chegar à reconstrução da mensagem poética. Chegarei?
Deus sabe. Por enquanto, cem vezes por dia, me dá desacordo. Mas, que remédio? Tenho
que resumir as forças e ir para frente. Teimosia, talvez, de um tris-tris-tris-etc.-neto dos
construtores de aquedutos.
Perdoe a amolação, que, aliás, está apenas no início. Bem que teria gostado de
apresentar, já limpinho, arrumado e aprumado, o filhote para V., e xingo a mim mesmo,
minha “pedanteria” filológica européia. Mas estou na angústia da falta de tempo, para
sossegadas pesquisas. E depois de umas tentativas, achei que inquirir muito junto aos
nossos amigos escritores daqui podia resultar perigoso; ameaçava comprar inimigos para V.
e para mim, pois, quem não sabe responder, fica por contra. Único precioso e paciente
companheiro na lida é o meu velho amigo e colaborador Homero Silveira.
Deixo, desta vez, de lado os probleminhas de ordem geral. Ficam para a próxima
jogada.
Estou danado, mas danado mesmo, com o correio. De volta da Itália, nos meados de
agosto, escrevi uma cartinha a V. com abraços e felicitações pela eleição na Academia.
Extraviaram-se, evidentemente. Aqui voltam, portanto, atrasados, mas igualmente
carinhosos e sinceros. Quanto à nossa festinha, se V. não se importar e não houver
inconveniência, acharia melhor adiá-la para depois, terminada a tradução; neste período
penso que estou sertanejo demais para isso.
Abraços e até muito breve,
E.B.

IX

25
Rio, 28.X.63

Meu caro Bizzarri,

Aqui vai a segunda com prazer. O retardo foi porque andei não passando muito bem,
na semana passada; a hipertensão arterial, lábil, faz destas coisas. Vá mandando, sem
cerimônia, certo de que toda dúvida é fecunda. E de que, nós dois, juntos, seremos
fortíssimos, invencíveis. Você não é apenas um tradutor. Somos “sócios”, isto sim, e a
invenção e criação devem ser constantes. Com Você, não tenho medo de nada !
Também, sempre que tiver pronto um rol de perguntas, pode mandar, sem precisar de
esperar minha resposta ao anterior. Porque, às vezes, no meio de minha falta-de-tempo,
ocorrem benfazejos hiatos, ou mesmo momentos em que cresce o apetite de responder,
prurido didático, e consigo enfrentar então, de uma vez, qualquer “monte de mato”. Estou,
mesmo, gostando, deste jogo. (E é benéfico, contribuindo para um pouco de humildade.
Pois, agora é que vejo como certos leitores têm razão de irritar-se contra mim e invenctivar-
me...). Mande pilhas, cartapacci. Obrigado.
De fato, foi pena ter-se extraviado sua cartinha amiga, que me alegraria, e não pouco.
Mas, os parabéns e abraços, pela eleição acadêmica, estou agradecendo, agora, com
coração que retroage até agosto, e grata amizade que supera e abarca qualquer tempo.
Gratíssimo !
Quanto à “festinha”, já estou psicologicamente preparado, para quando Você achar
melhor. Basta aviso, dez ou 15 dias antes, e os detalhes se acertam, e a gente vai, com
alegria. Tudo sincero.
Veja, só. Remexendo em velhos papéis, encontrei, num recorte, seu retrato. Gostei. E:
como membro do júri que me deu o “Prêmio CARMEN DOLORES BARBOSA”, apenas...
Eu estava, então, sendo ignorante, burro, e ingrato. Mas a vida, em seu não-parar, vai
corrigindo, ensinando, acertando a gente, felizmente.
Bem, Bizzarri. Já aguardo a “terceira”, entusiasmado.
Com forte abraço
do
Guimarães Rosa.
P.S. – Refiz o questionário, só porque, ao tentar preencher, o seu, em dia em que não estava
bom, acabei por me “empastelar” nele, pondo coisas quase de todo ilegíveis.

“UMA ESTÓRIA DE AMOR”

Mariola – (p. 141, 9ª última) – A planta (Abrus precatorius, L.) tem também os nomes de
JEQUIRITI e OLHO-DE-POMBA. É uma leguminosa, das Papilionatas, trepadeira, cujas
sementes vermelhas e pretas servem para a confecção de trabalhos de arte. São sementes
bonitas, irregularmente ovóides, vermelhas com grande pinta preta, durinhas e lisas,
brilhantes. Menor que uma uva, maior que uma passa. Quase do formato de uma amêndoa,
mas de tamanho equivalente ao de uma avelã. Servem também para marcar pontos, em
jogos de baralho, daí se chamarem também “tentos”. Há outras, iguais, iguaizinhas a essas,
mas maiores, e fornecidas por árvores altas (também das leguminosas): as espécies de
Ormósia, em geral. Ormósia friburgensis, chamada OLHO-DE-CABRA ; Ormósia nítida,
chamada TENTO GRANDE ou OLHO-DE-BOI. Todas essas árvores são comumente

26
designadas TENTEIRO ou TENTO, PAU TENTO. Voltando à mariola : também se chama
carolina, ou tento carolina. É mais ou menos assim :
(Curiosa : o “tento” ou “tenteiro” aludido no “CAMPO GERAL” (V. verbete na “remessa”
anterior), se bem que também árvore leguminosa, é muito diferente. São chatas e pardo-
azeitonadas):
Xexe – (p. 148, 9ª última) – Ouvi , no sertão. Deve ser onomatopaico, mas com sentido
afetivo, carinhoso. Exíguo, sim. Ou, mais ou menos : estreito, gentil, garrido. Snelleto ?
Bilbo – (p. 149, 1. 17) – Do latim: bilbo, bílbere = fazer o ruído de água que se escapa de
uma vasilha, fazer gluglu: “bilbit amphora”, “acqua bilbit”. Achei lindo, e usei no sentido
de fazer o ruídozinho de gota d’água caindo em água.
Caça e coça (Cada um) – (p. 151, 1. 17) – Pode ser o que V. alvitra : “ninguém faz nada por
nada”, ou “Cada um mede os outros segundo seu metro”. Ou, também : Cada um pensa o
que quer. Cada um gosta de encontrar defeitos nos outros, de atribuir aos outros más
intenções. Melhor ainda: de tanto se meterem a observar os outros, acham sempre culpas e
defeitos no próximo.
Monte de mato – (p. 154. 1. 8ª última) – Matas grandes. Ou : matas penduradas no
declives, nas escarpas.
Palha de uma velhice (Na) – (p. 156, 1. 11) – FIGURADO : já somente na palha,
desaparecido já todo o grão.
Soão e suão – (p. 157, 1. 9) – Suão: = do sul; vento quente do sul. Soão: = oriente, vento
que sopra do leste e do nordeste.
Refiro... (p. 158, 1. 13) – : - Explico-me... Explico-me... (Mas mais vaga e evasivamente).
Minhamente – (p. 160, 1. 12) – : por minha parte; na minha (no caso: na sua, dele)
opinião.
No acerto escravo de todos – (p. 160, 1.20) - : na escravizadora (ou escravizante,
opressiva, oprimente) ordem coletiva (dos bois, que vão sendo conduzidos, à força, numa
boiada).
Às tantas – (p. 167, 1. 13ª última): “pouco a pouco”, sim. Mas, também: em dados
momentos, em determinados momentos, a certos instantes.
Suo de malícia – (p. 174, 1.17) - : irradiação de (requinte, astúcia, sutileza) de malícia...
Reflagidos – (p. 177, 1. 17): - queixas & explicações = choramingas.
Velhão no burro baio com uma bruaca assunga-a-roupa – (p. 185, 1. 7/8) –: um velho
(já decrépito e) de cabelos brancos, com uma vagabunda, sempre pronta a levantar a saia e
a se entregar a qualquer um.
Desdemente – (p. 187, 1. 9): por conseqüência; portanto.
Mel em branca – (p. 190, linha última) : Metátese, poética, do caipira, capiau, por : branca
no amarelo (no dourado) da luz do sol.
Os preparos – (p. 191, 9ª última) : Aqui : coisas de comer, assados, bolos, etc.
Moçambiques – (p. 192, 1. 13) : = grandes argolões de ouro, para brincos ou colares,
usados antigamente pelas negras escravas (ou ex-escravas).
Deusdavam (p. 192, 1. 5ª última) – Tocavam à larga, à vontade, com generoso entusiasmo.
Saramicujo... serenância – (p. 193, 1. 3/4) – Saramicujo = com atitudes e gestos afetados,
teatrais burlescos, fazendo rapapés, etc. (Um pouco bufão). *(mistura de ridículo e
sublime)*. Serenância = ar ou efeito hierático, sacerdotal, ou de dansarino de minueto, por
exemplo. Ou : atenção embevecida, religiosa.
No geme ema – (p. 193, 1. 17) –: até se fatigarem dolorosamente e se exaurirem, de tanto
excesso de entusiasmo. Ou : até dar pena nos espectadores.

27
Leitoa piau – (p. 193, 1. 22) : porquinha, de uma raça de porcos pequenos, redondinhos,
retacos.
Sobre rebaixado – (p. 194, 1.14): apesar de humilhado; não obstante o quererem debicar
ou humilhá-lo.
Roscofe – (p. 194, 1. 23) – Da pior qualidade. (De uma marca de relógios, suíços,
antigamente muito difundida, no interior do país, por serem os mais baratos, mas que não
prestavam: “Roscoff”). (Curioso: esses ordinaríssimos relógios penetraram também na
Rússia, naquela época, e por lá deixaram também o adjetivo: roscoff – no sentido de de
péssima qualidade; li isto, num conto russo, moderno!).
Januária (ou Jenuária) (p.199, 1.20) – A melhor e mais famosa cachaça, de Minas Gerais
e, provavelmente, do Brasil. Fabricada na cidade de Januária, porto no rio de São
Francisco.
Sipituba – (p. 199, 1.6ª última) – Ouvi, assim, de um cantador de lundu, que não soube
explicar-me o sentido. Pensei que fosse apenas nome próprio, alcunha. Outro sertanejo,
porém, disse ser : SIPITUBA = fazedor de canoas primitivas, pelo processo de queimar o
tronco de uma árvore, para escavá-lo. E: SOLAVANCO = trabalhador braçal, reles, que
desempenha serviços brutos e violentos. (Não sei se ele se referia somente e
particularmente ao pai e ao avô cantador. DE QUALQUER MODO, porém, acho lindo e
apropriado adotarmos o sentido assim explicado).
Se apavoinham – (p. 204, 1. 10ª última) – “Apavonam-se”, sim. Mas incluída a idéia de
diminutivo.
Catafractos – (p. 204, 1. 10ª última) – Aqui, a “maluqueira” foi minha.! Misturei um dado
onomatopaico: a galinha-d’angola vive a gritar: - Tou fraca! Tou frac’!... – com um
significado tirado do latim: Cataphractus = encouraçado de ferro, vestido de armadura...; *
por causa do aspecto da ave*.
Beijadeira – (p. 207, 1.3ª última) – Cachaça. (Carinhosamente chamada assim, pelos
“beijos” que o bebedor lhe prodigaliza).
Palhaços no palhiço – (p. 207, 1. 2ªúltima) – São os grandes garrafões de cachaça, muito
usados no interior, que vêm acondicionados em forros de palha de cereais. Daí : o garrafão
= palhaço ; o envoltório = palhiço.
Abocabaque – (p. 214, 1.4) – Corruptela de ab hoc et ab hac. Clássica e antigamente, tinha
curso a expressão: “Falar ab hoc e ab hac” : = : falar disto e daquilo ; ou : falar a torto e a
direito.
Estadonho – (p. 216, 1. 12ª última) – Sem-jeito, constrangido, não à vontade, mas por isso
mesmo afetando ares de autoridade ou importância.
Coco por fora da casca (Não era homem que tivesse o) – (p. 217, 1. 9): Não era pessoa
leviana, de se entregar a ilusões; ou: não era homem fraco, de aceitar facilmente
consolações.
A sanfona sombraçava, as violas no redobre – (p. 217, 1. 16) –: A sanfona era vivamente
manejada a braços, sobraçada. REDOBRE : = ênfase, aumento de intensidade, redobrar de
ação.
Expedia – (p. 217, 1. 6ª última) – : tirava de si, arrancava ou expedia de si (a música) ;
executava (a música) com autêntica personalidade.
A feio – (p. 219, 1.9) – Leia-se : Assim, feio é o berro do gado, na estrada, etc.
Sobre assim – (p. 225, 1. 5) – : do mesmo modo.
Cavalo de fábrica – (p. 231, 1. 17) – : Cavalo profissional de vaqueiro, treinado para os
trabalhos de campo com o gado, adestrado na luta com os bovinos selvagens.

28
Teve mudo, deu mundo – (p. 231, 1. 6ª última) – : teve mundo: = correu (a notícia) o
mundo; deu mundo: = e se repercutiu, repetiu, por toda a parte.
Redondeiro – (p. 232, 1.1) = : castanho, malhado de nódoas mais ou menos arredondadas,
imitando o ondeado do chamalote; castanho malhado-irisado.
Lhalvo – (p. 232, 1. 13) – : de olhos cercados de malhas brancas. Ou, também: que ao
erguer a cabeça, põe os olhos em alvo. (Dicionarizado como OLHALVO)
Lionanco – (p. 232, 1.9ª última) : = que tem uma anca mais alta que a outra (Cavalo). (O
mesmo que lonanco).
Desbenziam – (p. 233, 1. 3ª última): se endemoninhavam, tornavam-se indóceis.
Mancebo à-parte vivente – (p. 235, 1. 6): diferente de todos, solitário.
Os pássaros se dando sertão, cuspe no céu desasados – (p. 236, ls. 15/16 últimas) – : se
dando sertão = fugindo para longe, debandando; cuspe no céu = aos jactos bandos, como
cuspidos; desasados = a toda a velocidade de asas, ligeiro de até perderem as asas...
Albuquerques papagaios – (p. 236, 1. 10ª última) – Ouvi assim, mas não pude saber o que
era. Há uma sugestão de firmeza e força, na palavra, e no tom com que o contador a
proferia. Talvez se prenda à importância de uma família e estirpe, dos Albuquerques,
sertanejos, gente valente e brava.
Ães estralaçada e bufúrdio, a supra boiama se alçava – (p. 237, 1. 6ª última) :
Ães = quase interjeição: dando idéia de continuidade, imensa quantidade, agitação
ininterrupta. (O narrador parece usá-la, como expletivo, e para ligar o movimento da frase à
anterior).
Estralaçada = grande ruído e desordem. (Mais especialmente: quando os bois correm
dentro do mato, rompendo arbustos e galhos).
Bufúrdio = cavalhada, galopada, tropel e confusão, MAS, COM CONOTAÇÃO DE
“LUTA”. (Curioso: a palavra é usadíssima, no sertão; mas é palavra latina, encontrada
(bufurdius ou bufurdium, não me lembro bem) nos dicionários latinos, com o sentido de:
combate singular entre chefes...)
A SUPRA BOIAMA = a boiada acima dita.
SE ALÇAVA = fugia para o mato; fugir, tornando-se selvagem.
Gurguéias – (p. 238, 1. 13ª última) = covas nas serras, lugares (grotas, anfractos) de difícil
acesso. Gargantas.
Loriana – (p. 239, 1. 8) = Vertigem. Ou : vertigem, com alguma alucinação. Tonteira,
assombrada.
Sarajava – (p. 241, 1. 15ª. Última) – Aqui, meu caro Bizzarri, eu confesso que começo a
sofrer com Você. Esta última, é a terrível! (“Virus em cauda”...) V. sabe, eu escutei, mesmo,
no sertão, essa prodigiosa estória, contada mesmo pelo velho Camilo. (Naturalmente,
alterei coisas). Assim, por exemplo, V. terá notado que todo aquele grande parágrafo da p.
241, (linhas 8 a 30), representa a entrada no “eterno”, na féerie da eternidade. E visão
supraterrena. (O tema do “riachinho”, por exemplo, é recuperado, em transcendência). Mas,
o verbo sarajava, eu o ouvi, e o contador não soube explicar-me o que é. Verbo só em aa,
belíssimo! Irradiava, como que transfigurado – ? O francês traduziu: “gagnait une
splendeur peu commune”...
[acrescentado a mão, na margem] É uma coisa misteriosa, que não podemos racionalizar.
É o “Thabor” do Boi? Sua teophania? (Traduzir + ou – como: irradiava luminoso em
rajas?)

12

29
São Paulo, 30 de outubro de 1963.

Meu caro Guimarães Rosa,

Aqui estou, antecipando-me na terceira jogada, para preencher o oco da vagarice do


correio. Desta vez: as dúvidas e perplexidades concernentes “A estória de Lélio e Lina”;
assim, vamos completando o primeiro volume.
O Coco do Chico é de fato bem gostoso; mas daqui a dizer que possa ser traduzido...
Em todo caso, tentei transpô-lo para o italiano. E aqui vai a minha tentativa: procurei dar o
ritmo, a rima, o gosto das aproximações inesperadas, o sentido geral e jocoso do absurdo
anseio humano, fugindo forçosamente de uma tradução ao pé da letra. Acha que pode
servir? Inclusive a rápida explicação que o acompanharia, em substituição à sua? Sem
receios. V. concordando, penso que ficaria bem como epígrafe da estória de Lélio, pois
Lélio também quer das coisas o miúdo e o inteiro, demais.
Por hoje é só. Estou afobadíssimo, às voltas com “Dão-Lalalão”, e meio desanimado:
mas é mais por causa do meu pobre italiano que de seu exuberante português. Desculpe a
amolação e aceite o abraço amigo de
E.B.

Rio, 6 de novembro de 1963.

Meu caro Bizzarri,

Foi ótimo Você, como o português da anedota, entre a 1ª e 2ª, ter mandado a 3ª...
Enquanto isto, a minha, envergonhada de retardada, deve ter-se cruzado com ela, espero.
Mande, sempre. Mande muito, sem hesitar. Já estou gostando do jogo, embora às vezes me
pareça acusador exame-de-consciência, para penitência de antigos pecados.
A tradução do COCO saiu fabulosa, formidável, estupenda, incrível. (Chega a
espantar-me e comover-me, ver como V. é severo consigo mesmo). Não sei, mas V., para
mim, cresce a cada momento. Parodio a Bayer:... “Se é Bizzarri – é bom!” Você é um
mistério. V., em tudo, me permite o puro prazer de a d m i r a r. Não há linha, nem
coisinha, de sua lavra, que não me dê o “frêmito”. Tenho recebido, já editadas ou ainda
datilografadas, peças de tradutores meus, em francês, italiano, inglês, norte-americano,
alemão, “austríaco”, espanhol e “uruguaio/argentino” (platenho); tudo bom, em geral, mas
sem transmitir-me essa imediata sensação de invulnerabilidade e plenitude, de façanha
acabada e perfeita, ida ao limite – que o que V. escreve me traz. E, como isto que digo não é
euforia egocêntrica minha, nem lisonja barata, mas constatação sincera, fico pensando. Que
predisposição é esta? Alguma espécie de correspondência anímica, ou de igual
cumprimento-de-ondas de sensibilidades ? Sinto-me com vocação para ser... seu discípulo.
E, ainda bem que V. não é líder partidário, a captar adeptos. Assim, pois, o Coco está
aprovadíssimo, a “rápida explicação” inclusive. Obrigado.
Não se assuste com Does-Lalões, e jamais desanime. Você é muito maior do que sabe
ou pensa que é. Juro. Tenho medo de pensar que V. pudesse não existir.
Também estou escrevendo à pressa, num galope, para recuperar os atrasos.

30
*Abraço, * forte, grato, amigo*
do
Guimarães Rosa.

P.S. – Ajunto algumas “espontâneas”, que talvez possam ser úteis :


P. 249, 1. 11 última – dobro: dobro é o saco ou trouxa em que os vaqueiros trazem
suas roupas e objetos de uso pessoal, quando viajam.
P. 250, 1. 20 - fraldo: fraldiqueiro (cão de colo, cachorro de estimação, de mulher).
[acrescentado a mão, na margem]
P. 255, ls. 19 e 20 – maço: manha de arrumar agilmente as cartas do baralho (o que
dá as cartas), para levar vantagem no jogo.

“A ESTÓRIA DE LÉLIO E LINA”

p. 249 linha 11ª última: “laço estaço”: laço imponente, laço respeitável *laço grosso*
p. 249 linha 10ª última: “hampa” O pau (cabo, haste) da vara-de-topar, e, portanto, a
própria vara. (Cf. francês hampe). Na tradução, como o termo está aqui no texto
redundante, pleonástico, pode ser simplesmente omitido.
p. 250 linha 14: “guégue” Aqui : finório, manhoso. Melhor : que parece bobo, ou se finge
de bobo, mas é na realidade muito esperto, velhaco.
p. 251 linha 2: “pé-duro de terra branca” pé-duro (ou CURRALEIRO) é o gado sem
raça, do sertão, descendente ainda dos bovinos que os portugueses trouxeram, hoje em dia
mais ou menos degenerado, já quase se extinguindo, expulso pelo zebu.
terra-branca: caatinga, terras ruins (secas) da caatinga.
p. 254 linha 3ª última: “bragado rapaz” Bragado: - sério-cômico, de ar imponentemente
ou petulantemente simplório ; aspecto de menino-grande.
p. 255 linha 20: “Aruê” Exclamação interjectiva, exprimindo aqui admiração irônica.
p. 255 linha 22: “barrabás”: figura negativa; pessoa inexpressiva ou ruim, que só serve
como referência, oposta a outra, que vale.
p. 261. linha 4: “labasco” aparvalhado ; envergonhado (acanhado), sem desembaraço,
encolhido, tolhido.

p. 266 linha 17: “Cheirava a breu”: dava idéia de coisa demoníaca.


p. 269 linha 8ª última: “sirripiando”: oscilando no ar, com algum ruído.
p. 270 linha 5: “furro” (onomatopaico?): onomatopaico: f’ URRO.
p. 271 linha 11: “muçuca”: o mesmo que MUCICA: puxão com que os vaqueiros, vindo a
galope, a cavalo, perseguindo uma rês, no emparelhar-se com ela seguram-na pela cauda
(pela “vassoura”), e conseguem derrubá-la.
(ENGARUPAR: emparelhar-se com a garupa da rês).
p. 271 linha 14: “berimbou” berimbou (seus chifres) : vibrou no ar.
p. 271 linha 3ª última: “ganhar um lombo”: ganhar um descanso, uma pausa ou momento
de repouso.
p. 273 linha 14: “altipada”: de pernas compridas e corpo alto; elegante; de presença altiva,
altaneira.
p. 275 linha 10ª última: “garroteiro”: Criador e negociante de bezerros. Homem que viaja
vendendo e comprando novilhos.
p. 281 linha 18: “cobu” (COBU: espécie de biscoito de fubá, de formato mais ou menos de

31
cilindro achatado). Aqui, alcunha dos naturais de Gouveias (lugarejo de Minas). MELHOR
OMITIR NA TRADUÇÃO.
p. 282 linha 17: “canzil”: Pequeno aparelho, rudimental, de madeira, de manejo manual,
para “fiar cabelos de boi” para fazer o sedenho ou sedém (corda de pelos de bovino. Em
geral, da vassoura da cauda). (V. também página 255, ls. 14/16)
p. 284 linha 15ª última: “panturro” : malicioso-jocoso ; “gozador”
p. 290 linha 5: “buru”: o vulto branco da chuva avançando ; névoa rumorosa.
p. 293 linha 10ª última: “polaco”: espécie de campainha que se pendura no pescoço ou no
chifre da rês malandra, fugidiça ou ladrona, para que os vaqueiros a encontrem, quando se
esconde no mato. (O CINCERRO é menor, de formato de sininho, de ferro fundido, dá som
claro e fino. O POLACO é maior, de formato achatado, de folha de Flandres, dá som seco,
mais baixo).
p. 294 linha 15ª última: “camocim”: Grande pote de barro cozido, onde se guarda água de
beber ou para os trabalhos da cozinha. *(Termo tupi)*
p. 296 linha 16: “uma tana!”: Xingamento, exclamação interjectiva (mais feia e mais forte
que “Uma ova!”: exprime repulsa, protesto, contradita violenta.
p. 297 linha 4ª última: “escopava” (ficava desapontado?) ficava desapontado, ficava
frustrado, malogrado ; via que se iludira ; ficava “na mão”; verificava que levara logro.
p. 309 linha 6ª última : “estorvado” : impedido de expandir-se
p. 316 linha 10ª última: “de ragagem”: de terrível rasgar-se de arrebatado romper (-se)
p. 338 linha 6ª última: “sudarte” (sudário?) (Não)... de modo súbito (?) * (Esqueci-me do
que era...)*
p. 341 linha 10: “xixe” (está por xixo?) xixo (seco), chocho.
p. 344 linha 10ª última: “muxo de musgo” redundância? Ou : murcho de musgo?... sem
líquen nem musgo.
p. 345 linha 11: “A xis, sururo se reteve” Melhor traduzir por: com ar de mistério e
confidência (?)
p. 345 linha 9ª última: “afe” ufa! Enfim,
p. 346 linha 13ª última: “À mossa, más mercês”: Ferido mais fundo, enfim não se
contendo, gritou: ─ Basta!
p. 350 linha 17ª última: “uma balança na fieira” fieira = fiel (da balança) uma balança no
equilíbrio perfeito, exato
p. 354 linha 1: “a babarara” Exclamação interjectiva de desabafo e desafio.
p. 355 linha 18: “o lão”: o tom (de viola ou outro instrumento), o lá do diapasão, o toque
suave (som)
p. 357 linha 12: “lavada e transvista” : íntegra (séria) e transparente
p. 364 linha 6: “teteté”(onomatopaico?) onomatopaico
p. 378 linha 3: “praças de ira, barbaz”: despejante e barbarífico ; dando largas à raiva,
numa barbaridade.
p. 383 linha 11: “varvasco” (tem outro nome?) VERBASCO, BARBASCO, CALÇÃO-
DE-VELHO, CALÇA-DE-VELHA. (Planta da família das Loganiáceas : Buddleia (ou
Buddlea) brasiliensis. Jacq.) (Vejo que há, em italiano VERBASCO, e, talvez ainda mais
expressivo: TASSOBARBASSO). As espécies européias (pelo menos o Verbascum thapsus
e o Verbascum thapsoides) são encontradas em Minas, como subespontâneas.

13

32
São Paulo, 7 de novembro de 1963.

Meu caro Guimarães Rosa:

Coragem! Quarto e quinto rol de “dúvidas” (e as outras? as desapercebidas, as


desinterpretadas, os enganos? Deus nos acuda, nem quero pensar) vão de uma vez, num
arranco, confiando no seu entusiasmo e embalo didático. Gosto que não desgoste do jogo;
pois suas elucidações têm, para mim, grande valor de orientação poética, ainda mais que
lexical.
Agora vou entrar na tradução de “Cara-de-bronze”. Ainda não enfrentei, firme, o
problema, mas duvido que as relações de nomes de plantas e bichos, e de gritos dos
vaqueiros, possa ter tradução cabível em outra língua. O que é que V. acha? O glossário se
está tornando verdadeiro monte-de-mato. Que fazer? Estou soropitando. Diabos de
problemas. Vou deixar tudo para depois de terminada a tradução bruta, na hora da revisão
final e limpeza.
Até breve: os vaqueiros do Urubuquaquá estão me esperando; gente brava e
complicada. Um abração
E.B.
P.S. – Nas “dúvidas” procurei deixar espaços mais convidativos. Estou abusando?

XI

Rio, 18 de novembro de 1963.

Meu caro Bizzarri,

Só para encaminhar a remessa, com prazer, com o máximo de velocidade.


A carta, vai amanhã, se Deus quiser, com os itens completados.
Depois, irá, também, uma “propedêutica”, ou safa-onças, mambembe, a respeito dos
problemas do “Cara-de-Bronze”.
Mas o *abraço* é permanente e vale.
Guimarães Rosa

“O RECADO DO MORRO”

p. 389 linha 19ª última: “fios de estadal” : = círio, grande vela (termo muito arcaico)
p. 391 linha 15: “o orobó de um nhambu”: Orobó: = traseiro, nádega, ânus, UROPÍGIO.
Nhambu: = (inambu) Ave galinácea dos Tinamídeos. Gracioso, pequeno, sem cauda, vive
quase sempre em terra, só voando, raro, vôo rasteiro. (“o orobó de um nhambu” ; notar a
aliteração, além da sonoridade cômica).
p. 395 linha 16ª última: “os escalvados... dos “alegres” e “campinas”: escalvados (ou
descalvados) = trechos de chão nu, de terra ruim, péssima, via de regra neles predominando
a laterita, completamente estéril, nos altos dos morros. “alegres” ou “campinas” =
(designação local, sertaneja) são os altos, claros, dos morros, plenamente expostos à luz do
sol e batidos pelos ventos. Freqüentemente, são “escalvados”.
p. 397 linha 10: “grimo” : de uma feiúra sério-cômica, parecendo com as figuras dos

33
velhos livros de estórias ; feio careteante ; de rosto engelhado, rugoso. (Cf. em italiano :
grimoso = Vecchio grinzoso). Em inglês: grim = carrancudo, severo, feio, horrendo,
sombrio, etc. Em alemão: grimm = furioso, sanhoso. Em dinamarquês: grimme = feio. Em
português : grima = raiva, ódio; grimaça = careta. Eu quis captar o quid, universal, desse
radical.
p. 397 linha 2ª última: “loxias” = deve ser (?) sabedorias complicadas, sentenças pedantes.
(Há um sabor pretensamente erudito, no termo que o caipira usou. Note como ele dá ar de
grego, lembra... logia ou doxia, ou loxodrômica, etc).
p. 401 linha 6ª última: “nem conjo, nem conja” (conjugado?): De cônjuge = nem marido,
nem mulher (Burlesca diferenciação, em gêneros, de um termo erudito).
p. 405 linha 5: “despés”: sem pés, sem parar um instante com os pés no chão. Ápode /
levitante.
p. 406 linha 16: “por este e este cotovelo!” (meramente esclamativo? tem relação com a
“banana”?) : Tem. Mas mais branda. (Interjectiva, que é proferida acompanhada de gesto
de bater com a palma de cada mão no cotovelo oposto, sucessivamente).
p. 406 linha 12ª última: “ir de forasta”: Sair viajando, por demorado tempo. (Às vezes :
sair viajando e aceitando de fazer pequenos trabalhos, pelo caminho, aqui e ali, para poder
custear a viagem).
p. 407 linha 8: “superlim” (no alto da gameleira?) Sim, vigora, também, a conotação :
SUPER. Mas : superlim = (superlindo?) muito gentil, encantador. (Valeu, no texto, pela
rima, ritmo, aliteração. E pelo agudo, insistido, da vogal i). (Tudo deve ser cacho de
acordes. Como no xadrez : a jogada boa deve ter mais de uma finalidade ou causa).
p. 412 linha 6ª última: “na grava da areia”: no grosso da areia, nos pequenos cascalhos da
areia (Cf. francês gravier).
p. 413 linha 14ª última: “quadradão” (qual a extensão aproximativa?) = quadra-de-
sesmaria (V. “Pequeno Dicionário” de A.B. de Hollanda). Talvez, porém, o melhor seja
deixar indeterminado: um grande trecho de pastagens.
p. 416 linha 17: “suspirava como um baco”: baco = rumor de boca. Como quando se
fecha de um golpe a boca muito aberta. Como quando se dá estalido com a boca.
p. 416 linha 20: “apichicado”: nervoso e impaciente, atormentado, apressado e, por isso
enervado.
p. 425 linha 9: “barbadinho” (espumoso?): espumoso (IMAGEM). em barba de desfiada
espuma... / abrindo-se em barbas de desfiada espuma...
p. 427 linha 17-19: “goro... (até) regonguz” (onde poderia encontrar dados que
caracterizem estas imaginações populares?): *(Vai a explicação em carta).*
p. 429 linha 1: “joão” (qual das muitas plantas “joão” etc.?): Impreciso, indeterminado.
(Usado pelo pitoresco do nome). Mas pode bem ser o mentastro (Ageratum conysoides,
L.): Composta erbácea e rústica. Espécie pilosa e aromática.
p. 429 linha 9: “mujo”: murcho (?). *Grande valor, de som e de aspecto, sinto nesta
palavra. (Associação com caramujo, sujo, mujik, mugido?...)*
p. 432 linha última: “bozorje”: de marca ou qualidade vagabunda, inferior. (Resposta dada
por modéstia ou prudência).
p. 434 linha 9ª última: “não entro em frojoca” = não entro em barulho (baderna, farra,
desordem, festa balburdiada, confusão, negócio que acaba mal).
p. 437 linha 6: “entregue aos máscaras” = abandonada, largada a quem quiser dela se
aproveitar. (Diz-se, por causa dos mascarados da Folia-de-Reis, que no fim de seus dias de
viagem de festa, rituais, acabam em desordens, bebedeira, bagunça, etc).

34
p. 440 linha 16 etc. (há jeito de encontrar uma boa descrição da congada?): É festa que
varia bastante, de lugar para lugar. Organizada pelos pretos, que a representam com sincera
devoção e jubilante fanatismo. Os ranchos são independentes. Alguns denotam a origem
das antigas estirpes de escravos: moçambiqueiros (Moçambique), congos (Congo). Há um
rei e uma rainha da Festa, brancos, em geral meninos, de boas famílias. Mas, os realmente
respeitados e cridos, são um negro e uma negra: o Rei Congo e a Rainha Conga.
p. 441 linha 2: “guararape”: (do tupi: wara = tambor, e pe = em). “Guararapes, na língua
do Gentio, é o mesmo que estrondo, ou estrépito, que causão os instrumentos de golpe,
como sino, tambor, atabale & tantos outros & o rumor que fazem as águas pellas roturas e
concavidades delle montes (refere-se aos Montes Guararapes, em Pernambuco, local de
importante batalha contra os Holandeses) lhes deu o nome de Guararapes”. (Fr. Rafael de
Jesus, no “Castrioto lusitano”).
p. 443 linha 9ª última: “lubrina” : chuva miúda, névoa, chuvisco (NEBLINA).
p. 450 linha 19: “estripipipou”: apressou mais o passo, andou ainda em maior (e mais
cômica!) velocidade. (Notar a aliteração, o aspecto e o tom, cômicos, quase
onomatopaicos).
p. 452 linha 15: “Ave de aprazível”: Ave (Maria!) de tão belo e agradável ! de se aplaudir
por ser tão aprazível. (“aquilo geava” = dava uma (mágica) delicada sensação de fria
brancura).
p. 455 linha 18: “corujo vismau”: Existe bisnau ou pássaro bisnau, significando
“velhaco”, homem finório e astucioso. Mas a expressão, o termo, veio do latim : bis malus.
Daí, o meu vismau – como “restituição etimológica”. Mas usado, principalmente, pela
expressiva carga de estranheza e mistério, por causa da sonoridade e do aspecto, e, não
menos, por ser palavra nova, desconhecida, inventada, intrigando o leitor e mexendo com
seu subconsciente.
p. 458 linha 10: “bendengo” (é il bendenguê): Deve ser o mesmo bendenguê,
dicionarizado, ou uma variante dele. Mas, nos sertão dos Gerais, diz-se bendengo.
p. 458 linha 21: “reco-reco”: Instrumento musical rústico, pequenino, feito de um bambu
ou taquara, anelada de sulcos, e que se toca raspando nele uma vareta. Chama-se também:
QUEREQUEXÊ, ou CARACAXÁ.
p. 459 linha 16: “gruxo” (onomatopaico?): grito (onomatopaico).
p. 460 linha 5: “bronho” (depreciativo) : onanista
10ª última: “sobre sem sim, e andando, ele se sentia, estava grave” = Mesmo
sem que os outros o aplaudissem (ou concordassem com ele), e continuando a caminhar, ele
se sentia à vontade, solto, dono de si, independente.
p. 463 linha 1: “moronava” (é de mor? ou de mourão? ou donde?): de d e s m o r o n a
r. (Desmoronar : derrubar, demolir, abater). (Desmoronar-se: cair, desabar). Daí: moronar =
o contrário de desmoronar-se = avultar, crescer em tamanho, sobrepujar, *agigantar-se de
repente*
p. 390 linha 8ª última: “cabelos-do-rei” (tem outro nome?) = BARBA-DE-VELHO
(Tillandsia usneoides, L.)

“DÃO-LALALÃO”

p. 468 linha 14: “suasso”: espadeirada, cutilada, golpe, o revolutear, movimento violento
p. 468 linha 4ª última: “bate-caixa” (tem outro nome? como é a planta?): É um dos
arbustos mais comuns nos cerrados de Minas, chamado assim porque o menor vento, dando

35
em suas folhas, soa com tom que imita um bater de pequeno tambor. Consultei entretanto,
agora, 6 livros de Botânica, e dele não pude encontrar a mínima menção...
p. 472 linha 4: “casca-boa” (tem outro nome? como é a planta?): (inidentificável)
p. 473 linha 15: “caroba-do-brejo” (em que se diferencia da caroba-do-campo?): Uma
considerada mais forte que a outra, como depurativo (anti-sifilítico).
p. 476 linha 7: “cipó-de-sempre” (tem outro nome?): (inidentificado)
p. 478 linha 10ª última: “molmol” (é o moli?): Era um tipo de fazenda de seda, bonita
(meio achamalotada?), comum. Usei também pela beleza física da palavra.
p. 478 linha 9ª última: “os presentes, ah, por demais, eram de se ter todo o valor”: Os
presentes, sim, podia estar contente com eles (= de os ter podido trazer). (O tradutor francês
usou : “Et les cadeaux ! Eux surtout ont de la valeur!”
p. 480 linha 12: “orelhadas” = “Orelhadas”, ou “com porteiras fechadas”: é quando se
vende ou compra uma propriedade, com todos os animais incluídos: bois, vacas, cavalos,
porcos. É : comprar com o recheio todo, *sem que o vendedor tenha direito de retirar
nenhum animal de lá.*
p. 480 linha 16ª última: “por avar” (Melhor suprimir). Ou : desconhecidas ocultas em
todos os seus recantos.
p. 483 linha 15ª última: “arriboso” (recém-chegado?) = o boi que fugiu do meio da
boiada, e regressou, dissimulada e assustadamente, ao lugar de onde tinha sido levado.
p. 485 linha 10: “verga-tesa” (é o mesmo que verga-verga?): SIM (!) É uma planta de
cerrado, de folhas estreitinhas, miudinhas, verde-escuras, quase pretas. (Será a mesma
verga-de-ouro (Solidago brasiliensis)? – das Compositas? Mas não tenho nenhuma certeza).
p. 486 linha 8: “cassinga”: planta afrodisíaca, que não consegui identificar.
p. 486 linha 9ª última: “a mão velha na rédea”: a mão experimentada, apta.
p. 486 linha 5ª última: “meloso” (é genérico, ou indica um gênero específico de capim?):
É a gramínea mais amável e mais importante talvez, das nossas. (MELOSO. CAPIM
MELOSO. GORDURA. CAPIM-GORDURA. CATINGUEIRO. CAMPIM-MELADO). É
o Melinis minutiflora. Suas folhas são todas cobertas de pelos glutinosos (ou oleosos), que
exalam um cheiro muito aromático. Tem o branco e o roxo. Por aí, mesmo, em qualquer
barranco de estrada, Você poderá conhecê-lo pessoalmente. É um amor.
p. 487 linha 8: “azedim” (tem outro nome?): azedim = não consegui identificar a planta...
*que deve ser de haste esguia, elegante, fina.*
p. 490 linha 16ª última: “se sentindo sem lombo, trotava num trabejo incômodo” :
Sentindo-se leve e alegre, trotava um trote desagradável (para o cavalheiro, naturalmente,
porém).
p. 493 linha 14: “movia com rabo forte”: batia a cauda, com vigor, com força.
p. 494 linha 4ª última: “firo” (é o jogo?): o ferir (o agudo de)
p. 504 linha 4: “nicla de serrinha” (gostaria de conhecer a origem da expressão): nicla
= níquel (as moedas, “níqueis”, de 400 réis, 200 réis e tostão = todas eram de orla lisa.
Serrinha = é a garfilha, o serrilhado, denteado, na orla ou periferia das moedas de prata, de
dois mil-réis ou mil-réis. Daí : nicla de serrinha.
p. 508 linha 13: “vespuço” (beiçudo?): membrudo (viril) de brutal virilidade
p. 509 linha 18ª última: “baldança”: saborear preguiçoso. Cf. DANTE, Inf.: “d’ogni
baldanza, e dicea ne’ sospiri”: E, o Comentador: “baldanza = espressione serena e franca,
segno di animo tranquillo e sereno”.
p. 509 linha 16ª última: “cidrilho” (é o mesmo que cidrilha? Cidrão?): Cidrilha. (Lippsia
licioides, Stend.). Verbenácea. Arboreta, ramosa e ornamental. Folhas lanceoladas, flores

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em espigas erectas; flexíveis, abundantes, alvas e muito aromáticas. Melífera.
p. 517 linha 12: “taca e não rende”: ataca e não avança, se agita e não progride. (Porque,
nas novelas de rádio, multiplicam-se os capítulos, em todos eles havendo muito grito, choro
e falatório, mas o fio da narração não se adianta).
p. 522 linha 14ª última: "Moça-branca" (o sentido geral é evidente, mas há alguma
razão específica que justifica a expressão?): Não. Apenas, petulância, jovial e
desabusada, de rapaz namorador. (Moça-branca é também um dos sinônimos "carinhosos"
da cachaça).
p. 524 linha 15: "querenciando em chão mexido": O boi, quando embravece e fica feroz,
contra os vaqueiros que querem tocá-lo, se aquerencia (ou querencia): isto é, teima de ficar,
num lugar, de preferência em terra mais mole, terra de formigueiro, etc., e ali fica
escarvando (mexendo, remexendo) o chão, com a pata, repetidamente, desafiando os
homens.
p. 540 linha 20ª última: "tantamente" (somente?) : tão plenamente; em tal plenitude
absoluta ; Ela - tão tão tão ela mesma ! (arroubo)
p. 540 linha 7ª última: "cabriol": *(Vai a explicação, à parte, em carta)*
p. 546 linha 2ª última: "mareava-o mal num dramar": mareava-o = tonteava-o, enjoava-
o (doentemente); dramar = (de drama)
p. 549 linha 12: "suspo" (suspeitoso?): numa suspensão (de espírito) atordoado
p. 550 linha 13: "pixote" (qual é a origem, e o sentido específico?) : inexperiente, fraco,
incapaz. (É, precisamente, o que se grita xingando ou vaiando um jogador de futebol que
"não dá no couro"... É o "canja", o "fracote"). (Devia ser, em rigor, pechote, pois, segundo o
Caldas Aulete, vem de "pecha").
p. 550 linha 14ª última: "arreito" (é de arreitar?): Sim. Sexualmente excitado, cum
mentulam erectam
p. 551 linha 19ª última: "bronzes!" (gostaria de ter um sinônimo, para encontrar
melhor uma exclamação italiana correspondente): - "Bronzes!": porque o metal (ou liga)
é duro (nas antigas estórias para crianças, e na tradição do sertão, o bronze é considerado
como a coisa mais dura, forte, resistente, muito mais que o ferro) e sonoro, barulhento.
Além disso tudo, e talvez principalmente, porque a palavra, em si, é fortíssima : com o
grupo consonantal BR e o ON nasal e mugidor...
p. 552 linha 1: "chapéu com nove letras - dezenove, nove, tapatrava": *(Vai a
explicação à parte, em carta)*

XII

Rio, 19 de novembro de 1963.

Meu caro Bizzarri,

Continuando. Como prometi a Você, aqui vão as respostas que não cabiam nos
simpáticos alvéolos de Procusto, que Você boamente fornece para me aliviar o trabalho.
(Mas que, em verdade, menos que trabalho, é um prazer). Ei-las. Acho que estávamos no
DÃO-LALALÃO :

I - Pág. 546, 1. 7ª última : cabriol : como ou com o saltitar de cabrito... Veja a Bíblia, a
Vulgata : "Capilli tui sicut greges caprarum"... (CANTICUM CANTICORUM Salomonis,

37
IV : 1)
***
Diluídas, aliás, nas páginas 537/540, perpassa uma espécie de paráfrase do Cântico
dos Cânticos":
Pág. 537, ls. 18/19 : "Quam pulchri sunt gressus tuis in calceamentis, filia principis !"
(C.C.= 7: 1);
Pág. 539, ls. 21/23: "... ideo adolescentulae dilexerunt te Trahe me : post te curremus
in odorem unguentorum tuorum. Introduxit me rex in cellaria sua". (C.C.1: 2, 1.: 3);
Pág. 539, ls. 10/9 últimas: "memores uberum tuorum super vinum". (C.C. 1: 3);
Pág. 540, ls. 1/2: "ne vagari incipians post greges sodalium tuorum". (C.C. - 1: 6);
Pág. 540, ls. 8/1 últimas: "Ecce tu pulcra es amica mea, ecce tu pulcra es, oculi tui
colombarum". (C.C. - 1: 14); "... saliens in montibus, transiens colles", et. etc.
Pág. 540, ls. 9/10 últimas: "Lectulus noster flóridus". (C.C. 1: 15);
Pág. 540, ls. 22/23: (Cf. "nigra sum, sed formosa...) Melhor ainda, o da capo no C.C.,
cap. 4 : ..."qui ascenderunt de monte Galaad" ("no chapadão, nas chapadas...). "Dentes tuis
sicut greges tonsarum. Sicut vitta coccinea, labia tua"...
***
II -
Pág. 552, 1.1 : chapéu com nove letras - dezenove, nove - tapatrava...: Aqui - pleno
delírio do autor, ao que hoje me parece... - creio que Você terá que omitir a maluqueira. Em
todo caso: no sertão, onde, como Você está sentindo e vendo, a magia é inseparável de
todos os aspectos da vida, os valentões costumam às vezes trazer letras, cabalísticas
escritas, digo, gravadas, no chapéu-de-couro, ou em papeizinhos enfiados no respectivo
forro ; para virtudes várias, proteção perante o destino.
No caso do Soropita : o "dezenove, nove" é alusão, "apocalíptica", a trecho do próprio
APOCALIPSE:
APOC., 19: 12: "habens nonen scriptum, quod nemo novit nisi ipse".
APOC., 19: 9: "Et dixit mihi : Scribe".
***
Aliás, outras impregnações do Apocalipse:
Pág. 552, ls. 5/21: "et ipse reget eas in verga ferrea" - (APOC. XIX: 15);
"Et vidi unum Angelum stantem in sole, et chamavit voce magne".
(Apoc. XIX: 17)
Etc., etc.
O "cavalo branco" ("Apouco" = Apocalipse)...
E a "besta" do Preto...
***
Pág. 552, linhas 7/9: "Et exercitus qui sunt in coelo sequebantur eum in equis albis,
vestiti byssino albo, et mundo". (Apoc. XIX: 14). Etc., etc.
Pág. 553 ls. 7 a 13: "Et aprehendit draconem, serpentem antiquum, qui est diabolus et
satanas, et ligavit eum per annos mille...etc". (Apoc. XX: 2 e 3)
Pág. 553, ls. 12/13: "et omnes aves saturatae sunt carnibus eorum". (Apoc. XIX: 21)
***
tapatrava = palavra misteriosa, espécie de ABRACADABRA mágica, a respeito da qual
nem mesmo o nosso Soropita quererá explicar nada.
Pág. 530, ls. 17/7: Também "projeção" do Apocalipse.
--------------------------------

38
AGORA, um pouco de DANTE.
Pág. 550, l.5/8: o Inferno infundibuliforme. "Em forma de funil". : (Cf. Inferno, Canto V,
1-2).
Pág. 550, ls. 6/8: "cignesi con la coda tante volte". (INF. V, 11-12).
Pág. 550, ls. 8/9: "mi ripigneva là dove'l sol tace". (INF. I, 54-55).
Pág. 550, ls. 11/3 últimas: Tudo impregnação de Dante, do infernal dantesco.
Pág. 550, ls. 3/4 últimas: "...a riveder le stelle". (Soropita saindo do seu inferno,
subjectivo).
Pág. 550, ls. 9/10: ("se destornava, tresvoltava): ... di qua, di là, di giù, di su li mena". (V.
43). É o Inferno dos Lussuriosi, Canto V.
Pág. 550, ls. 10/11: Inf. V, 28. 29.
Pág. 550, ls. 2 e 1 últimas: "Ora era onde 'l salir non volea storpio". (PURG., XXV, 1).
A frase "Os vinte-e-cinco!" é uma lúcida indicação do referido lugar de "LA DIVINA
COMMEDIA". Soropita entra agora no PURGATÓRIO. (Tudo Dante). Por exemplo, Pág.
551, ls. 4/5: "Ieu sui Arnaut, que plor e vau cantan". (PURG. XXVI, 142).
-----------------------------------
Agora, voltemos ao que ia me esquecendo de, do "O RECADO DO MORRO":
(Desculpe-me, estou à toda pressa, a fita da máquina se destrambelhou, mas não
quero parar, não posso) - :

III - Pág. 440, 1.16 etc. (há jeito de encontrar uma boa descrição da congada?)
Continuando.
... Depois da missa, na porta da igreja, várias pessoas, que fizeram "promessa" disso,
"tomam a coroa", isto é, levam-na à cabeça, num pequeno giro processional, no adro, a
coroa da Nossa Senhora do Rosário. (Pág. 449, 1.15).
IV - Pág. 427, ls. 17/19: "goro... (até) regonguz". (Onde poderia encontrar dados que
caracterizam estas imaginações populares?)
Só, talvez, em Rabelais, nas narrações de sabaths, de bruxarias medievais, sugestões nas
catedrais góticas, nas górgulas e carantonhas.
Não são, não se trata, no texto, de imaginações exatamente populares. Mas de
propositais semicontrafações destas, para figurar o que, na imaginação de um espectador
sensível, é sugerido pelos vultos que o vento parece formar com a poeira calcárea,
estranhissimamente, naquele desolado lugar.
Digamos:
o gorgonio ? o ippogrifo ? o Grifagno ?
o Bafomet ? a arqui-harpia ?
Outras matrizes, que a mitologia pode fornecer.
***

Continuando. Para não ficarem de-todo arbitrárias as representações imaginadas ou


"entrevistas" naquele revolutear fantomático de poeira espectral - e devendo tratar-se de
espectador rude, roceiro inculto, - alguns elementos básicos, estes sim, foram utilizados : à
moda ou ad instar de "cavalo-de-enxerto", de planta rústica que serve para receber os
enxertos exóticos. Por exemplo :
O nhã-ã = anhangá (o diabo dos índios tupis e guaranis, dado em forma de propósito
deturpada, reduzida a "fórmula"). Além disso, visando a uma possível e ampliada
ressonância universal, isto é, atendendo ao que já disse a V., a respeito de acorde, cacho,

39
multiplicidade de conotações, empastamento semântico, há N g a a, o adversário do Criador
(do mundo e do homem), conforme um mito espalhado na Sibéria, sobretudo entre os
Tártaros do Sul. N g a a é "a morte personificada". Além disso, em NHÃ-Ã (nhã-ã, nhan-
an) reluz o "esqueleto", o substrato de nenhum, ninguém, etc. = isto é, o nada, a negação =
o mal, o Diabo.
O goro = o que se frustrou, o "ser informe", incompleto, larva ou lêmure (duende,
trasgo, avejão) = visão de fantasma, homem agigantado e feio).
O onho = o medonho resumido em seu sufixo, só por si já horrível. O-que-não-se-sabe-
ainda-o-que-é.
O saponho = O sapo-meio-humano e gigantesco, megabatráquio. Arquidemônio
reptante. O cão-de-cloaca.
O osgo = Leviatã, Sáurio, crocodilão, dragão. Il dracobuffo ? (Não, não é buffo, o que eu
queria dizer, era "sapo" em italiano, agora no momento me esqueci como é...)
O Zambezão = Inventei. Porque podia ser um "monstro africano". (De Zambeze, o rio,
de nome sugestivo).
O quibungo-branco = Este, existe. Isto é, existe o QUIBUNGO. Monstro, devorador de
meninos, das lendas africanas, trazidas pelos escravos. Deve ser entidade da mitologia
bantu. É o quibongo-gerê ou tibum-tererê, das estórias, muito contadas no interior.
O morcegaz = Homem-morcego ?
E, assim, por diante.
Deus, e Você, que me perdoem...
***
Agora, ainda quanto a "O Recado do Morro", gostaria de apontar a Você um certo
aspecto planetário ou de correspondências astrológicas, que valeria a pena ser
acentuadamente preservado, talvez. Ocorre nos nomes próprios, assinalamento onomástico-
toponímico :
As fazendas visitadas na excursão: Os companheiros de Pedro Orosio:
1 - Jove.............................................. (JÚPITER) ................o Jovelino
2 - dona Vininha.................................(VÊNUS)....................o Veneriano
3 - Nhô Hermes.................................(MERCÚRIO)..............o Zé Azougue
4 - Nhá Selena...................................(LUA)...........................o João Lualino
5 - Marciano......................................(MARTE)......................o Martinho
6 - Apolinário....................................(SOL)............................. o Hélio Dias (Nemes)
***
Voltando ao "Dão-Lalalão", isto é, aos curtos trechos em que assinalei as "alusões"
dantescas, apocalípticas e cânticos-dos-canticáveis. (ALIÁS, é apenas nessa novela ("Dão
Lalalão") que o autor recorreu a isso). Como Você vê, foi intencional tentativa de evocação,
daqueles clássicos textos formidáveis, verdadeiros acumuladores ou baterias, quanto aos
temas eternos. Uma espécie do que é a inserção de uma frase temática da "Marselhesa"
naquela sinfonia de Beethoven, ou da glosa do versículo de São João (Evangelho) no
"Crime e Castigo" de Dostoievski. Com a diferença que, no nosso caso, ainda que tosca e
ingenuamente, o efeito visado era o de inoculação, impregnação (ou simples ressonância)
subconsciente, subliminal. Seriam espécie de sub-para-citações (?!?) : isto é, só células
temáticas, gotas da essência, esparzidas aqui e ali, como tempero, as "fórmulas" ultra-
sucintas. (Um pouco à maneira do processo de modificações do tema - que ocorre, na
música, nas fugas ?) E para funcionar, apenas, em passagens de ligação, como coloração do
pano-de-fundo. Você me entende. Para a tradução, não tem rigor de importância. Apenas,

40
como exemplo. O cabriol.
Se eu fosse traduzir, primeiro, talvez, reduziria, neste caso, mentalmente, a: Os
cabelos, como cabritinhos pretos. Daí, tudo se simplifica. (Noutros casos, talvez, o
processo inverso, sintético, concentrando numa só palavra a expressão longa).
Mas, no ferver do assunto, estou-me alongando demais, sem precisão, e Você já tem
trabalho demais com o diabo do livro, que, como Você vê, também foi um pouco
febrilmente tentado arrancar de dois caos : um externo, o sertão primitivo e mágico ; o
outro, eu, o seu Guimarães Rosa, mesmo, que abraça Você, grata e afetuosamente

Guimarães Rosa.

14

São Paulo, 21 de novembro de 1963

Meu caro Guimarães Rosa,

Recebi, em devido tempo, os esclarecimentos relativos ao 3º rol de "dúvidas", e a sua


carta, bondosa em excesso. Me deixou até perturbado. Obrigado por tudo; mas deixe de
lado, por favor, as apreciações elogiosas sobre o tradutor Bizzarri: me dão complexo de
culpa, pensando no que resultará da tradução de Corpo de Baile. Os Beneditos Nunes * não
me amedrontam; o que, desde já, me entristece, é o fato de certamente decepcionar o
Amigo.
Mais um arranco, e aqui vão as perguntinhas ligadas à "Cara-de-bronze"; quando
possível, não sendo amolação demais, gostaria de esclarecimentos na base etimológica:
orientam melhor para traduzir interpretando. "Cara-de-bronze" põe, também, outro
problema: enorme. O que é que vamos fazer com as notas? Com perdão de nosso amigo
Pedro Xisto, eu deixaria só - eventualmente - as notas das páginas 610 e 617. Digo -
eventualmente - pois, com toda sinceridade, eu não sei se não seria melhor, para os leitores
italianos, a total eliminação das notas; as referências e as curiosas aproximações me parece
que percam sabor, uma vez que o texto não seja mais na linguagem dos vaqueiros, e doutro
lado, receio que enfraqueçam o alegorismo da estória, acentuando a intencionalidade. Este
é o meu palpite, de velho, cínico europeu; enquanto tal, pode ser completamente errado. E,
em todo caso, V. manda.
Agora, vou deixar V. descansar um pouco. Estou entrando na tradução de "Buriti",
que é mesmo compridão (nem tenho aqui Januária para beijar, nem buriti para contemplar),
e os ossos do ofício, muitos e chatos (Consulado, Instituto e outras besteiras), infelizmente
me deixam pouco tempo e pouquíssimo sossego.
Um grande abraço

E.B.
N.B. - Estava terminando esta, quando me trouxeram sua carta de 18. Viva! Espero a
"propedêutica", para depois bancar o muito sabido? ou mando esta carta, denunciando
minha ignorância? Opto pela sinceridade, e confio na compreensão do Amigo.
---------------------------------------------------
(*) A referência foi motivada pelo fato que, justamente naqueles dias, tinha saído no Suplemento Literário de
O Estado de São Paulo um artigo de Benedito Nunes sobre a tradução francesa de Corpo de Baile. Só e

41
exclusivamente por esta coincidência cronológica, e sem nenhuma intenção ou implicação de outra natureza,
ocorreu aqui o nome de Benedito Nunes: apenas para indicar coletivamente os críticos literários que poderiam
dedicar uma eventual análise à tradução italiana.

XIII

Rio, 25.XI.63

Meu caro Bizzarri,

Venho, conforme disse, com esta mole conversa a respeito do "Cara-de-bronze".


Desnecessária, decerto ; pois, o que houver de interesse na estória, Você já terá sentido e
captado, e capturado, melhor do que eu. Mas, como sempre pode ocorrer alguma coisinha
indiretamente explicativa, ou catalisadora, não convém que eu deixe de carregar pedrinhas
de ajuda. Talvez, também, será porque estou levando a gosto o papel de pífio informante. E,
pois.
***
Primeiro, precisarei de tagarelar também um pouco sobre o livro, as outras novelas.
Quero afirmar a Você que, quando escrevi, não foi partindo de pressupostos
intelectualizantes, nem cumprindo nenhum planejamento cerebrino' cerebral deliberado. Ao
contrário, tudo, ou quase tudo, foi efervescência de caos, trabalho quase "mediúmnico" e
elaboração subconsciente. Depois, então, do livro pronto e publicado, vim achando nele
muita coisa ; às vezes, coisas que se haviam urdido por si mesmas, muito milagrosamente.
Muita coisa dele, livro, e muita coisa de mim mesmo. Os críticos e analistas descobriram
outras, com as quais tive de concordar. Algumas delas é que vou expor aqui a Você - ainda
que sem esperança de lhe mostrar nada de novo.
Sem imodéstia, porque tudo isto de modo muito reles, apenas, posso dizer a Você o
que Você já sabe : que sou profundamente, essencialmente religioso, ainda que fora do
rótulo estricto e das fileiras de qualquer confissão ou seita ; antes, talvez, como o Riobaldo
do "G.S. :V.", pertença eu a todas. E especulativo, demais. Daí, todas as minhas, constantes,
preocupações religiosas, metafísicas, embeberem os meus livros. Talvez meio-
existencialista-cristão (alguns me classificam assim), meio neoplatônico (outros me
carimbam disto), e sempre impregnado de hinduísmo (conforme terceiros). Os livros são
como eu sou.
E eu mesmo fiquei espantado de ver, a posteriori, como as novelas, umas mais, outras
menos, desenvolvem temas que poderiam filiar-se, de algum modo, aos "Diálogos",
remotamente, ou às "Eneadas", ou ter nos velhos textos hindus qualquer raizinha de partida.
Daí, as epígrafes de Plotino e Ruysbroeck.
Por outro lado, o sertão é de suma autenticidade, total. Quando eu escrevi o livro, eu
vinha de lá, dominado pela vida e paisagem sertanejas. Por isto mesmo, acho, hoje, que há
nele certo exagero na massa da documentação.
Ora, Você já notou, decerto, que, como eu, os meus livros, em essência, são
"antiintelectuais" - defendem o altíssimo primado da intuição, da revelação, da inspiração,
sobre o bruxolear presunçoso da inteligência reflexiva, da razão, a megera cartesiana.
Quero ficar com o Tao, com os Vedas e Upanixades, com os Evangelistas e São Paulo, com
Platão, com Plotino, com Bergson, com Berdiaeff - com Cristo, principalmente. Por isto
mesmo, como apreço de essência e acentuação, assim gostaria de considerá-los : a) cenário

42
e realidade sertaneja : 1 ponto; b) *enredo : 2 pontos*; c) poesia : 3 pontos; d) valor
metafísico-religioso : 4 pontos. Naturalmente, isto é subjetivo, traduz só a apreciação do
autor, e do que o autor gostaria, hoje, que o livro fosse. Mas, em arte, não vale a intenção.
Dei toda esta volta, só para reafirmar a Você que os livros, o "Corpo de Baile"
principalmente, foram escritos, penso eu, neste espírito.
***
A primeira estória, tenho a impressão, contém, em germes, os motivos e temas de
todas as outras, de algum modo. Por isso é que lhe dei o título de "Campo Geral" -
explorando uma ambigüidade fecunda. Como lugar, ou cenário, jamais se diz um campo
geral ou o campo geral, este campo geral ; no singular, a expressão não existe. Só no plural
: "os gerais", "os campos gerais". Usando, então, o singular, eu desviei o sentido para o
simbólico : o de plano geral (do livro).
***
No "Índice" do fim do livro, ajuntei sob o título de "Parábase", 3 das estórias. Cada
uma delas, com efeito, se ocupa, em si, com uma expressão de arte (Como escreveu Paulo
Rónai, no livro "ENCONTROS COM O BRASIL" : "A linha simbólica é predominante nos
"contos", onde o enredo, propriamente dito serve antes de acompanhamento") :
"Uma Estória de Amor" - : trata das "estórias", sua origem, seu poder. Os contos
folclóricos como encerrando verdades sob forma de parábolas ou símbolos, e realmente
contendo uma "revelação". O papel, quase sacerdotal, dos contadores de estórias.
(Miguilim já era um deles... Dona Rosalina, também. Dona Rosalina, de certo modo,
incorpora em si, ao mesmo tempo, os lados positivos de Miguilim e do Dito. Lélio é
Miguilim - mas apenas sua parte sofredora e angustiada, aspirando ao equilíbrio superior ;
falta-lhe a parte criadora de Miguilim. Tudo isto, mais ou menos...) A formidável carga de
estímulo normativo capaz de desencadear-se de uma contada estória, marca o final da
novela e confere-lhe o verdadeiro sentido.
"O Recado do Morro" é a estória de uma canção a formar-se. Uma "revelação",
captada, não pelo interessado e destinatário, mas por um marginal da razão, e veiculada e
aumentada por outros seres não-reflexivos, não escravos ainda do intelecto : um menino,
dois fracos de mente, dois alucinados - e, enfim, por um ARTISTA ; que, na síntese
artística, plasma-a em CANÇÃO, do mesmo modo perfazendo, plena, a revelação inicial.
(Veja Paulo Rónai: "Em "O Recado do Morro", testemunha-se a gênese de uma
canção que se cristaliza imperceptível e acessoriamente no decorrer de uma expedição
científica. Brotada de um germe caído no perturbado espírito de um louco, alimentada e
desenvolvida pela colaboração ocasional de outros lunáticos, acaba nas mãos de um bardo
popular que lhe dá forma e sentido. A viagem da comitiva e o nascimento da canção
operam-se simultaneamente, e a conclusão desta prefigura o fim trágico daquela. Um
recado infralógico da atmosfera e da paisagem transmuda-se em verso através da
cooperação de uma seqüela de anormais, de senso embotado mas de sentidos apurados".
NOTA : Ao dizer "de sentidos apurados", Paulo Rónai, agnóstico, deixa de fora,
naturalmente, qualquer possibilidade do elemento sobrenatural).
E a canção, o "recado", opera, afinal, funciona. Mas, Pedro Orósio - que sempre, de
todas as vezes, estivera presente, mas surdo e sem compreensão, nos momentos em que
cada elo se ligava, só consegue perceber e receber a revelação (ou profecia, ou aviso),
quando sob a forma de obra de arte. E, mesmo, só quando ele próprio se entusiasma (V.
etimologia : en-theos...) pela canção, e canta-a.
"Cara-de-Bronze", enfim. Vejamos, ainda, Paulo Rónai: "... e à natureza da missão

43
confiada a um vaqueiro escolhido com cuidado, o qual volta à fazenda depois de
prolongada ausência. De suas respostas às perguntas dos camaradas se depreende que a sua
missão, cujo sentido ele intui sem poder defini-lo, consistiu em trazer ao moribundo
paralítico uma multidão de observações aparentemente desconexas e frívolas de seu antigo
mundo, elementos que lhe permitem reconstruir para o seu próprio uso a realidade íntima
do passado, uma visão poética de seu universo. O material reunido pelo emissário é de uma
riqueza disparatada e barroca, transborda do texto da história e se espalha por uma série de
notas... etc".
***
De fato. Assim como "Uma Estória de Amor" tratava das estórias (ficção) e "O
Recado do Morro" trata de uma canção a fazer-se, "Cara-de-Bronze" se refere à POESIA.
Veja Você, já nas páginas 573, 588, 589, 590, o que há, nos ditos dos vaqueiros, são
tentativas de definição da poesia, desde vários aspectos. Nas páginas 590 e 591, exemplos
de realização poética. (Na página 620, há um oculto desabafo lúdico, pessoal e particular
brincadeira do autor, só mesmo para seu uso, mas que mostra a Você, não resisto : "Aí, Zé,
ôpa!", intraduzível evidentemente : lido de trás para diante = apô éZ ía, : a Poesia...)
RESUMO : O "Cara-de-Bronze" era do Maranhão (os campos-gerais, paisagem e
formação geográfica típica, vão de Minas Gerais até lá, ininterrompidamente). Mocinho,
fugira de lá, pensando que tivesse matado o pai (pág. 619), etc. Veio, fixou-se, concentrou-
se na ambição e no trabalho, ficou fazendeiro, poderoso e rico. Triste, fechado, exilado,
imobilizado pela paralisia (que é a exteriorização de uma como que "paralisia da alma"),
parece misterioso, e é ; porém, seu coração, na última velhice, estalava. Então, sem se
explicar, examinou seus vaqueiros - para ver qual teria mais viva e "apreensora"
sensibilidade para captar a poesia das paisagens e lugares. E mandou-o à sua terra, para,
depois, poder ouvir, dele, trazidas por ele, por esse especialíssimo intermediário, todas as
belezas e poesias de lá. O Cara-de-Bronze, pois, mandou o Grivo... buscar poesia. Que tal?
***
Daí, Você verá a razão para aquelas árvores arroladas em notas de pé-de-página.
Todas as que se enumeram, são rigorosamente da região ; mas enumeram-se apenas as que
"contêm poesia" em seus nomes : seja pelo significado, absurdo, estranho, pela
antropomorfização, etc., seja pelo picante, poetizante, do termo tupi, etc. ("Linguagem é
poesia fossilizada (ou petrificada?)" - Ruskin).
Há mais. À página 600, Você encontrará uma verdadeira "estórinha", em miniatura,
dada só através de nomes exatos de arbustos. ("A damiana, a angélica... (até)... a gritadeira-
do-campo"). Conta o parágrafo 10 períodos. O 1º é a apresentação de uma moça, no campo.
O 2º é a vinda de um rapaz, um vaqueiro. O 3º é o rapaz cumprimentando a moça. O 4º é a
atitude da moça; e (o bilo-bilo) o rapaz tentando acariciá-la. O 5º é óbvio. Assim o 6º. E o
7º (mão boba...) e o 8º (o rapaz "apertando" a mocinha). Quanto ao 9º : "são gonçalo" é
sinônimo do membro viril... O 10º : a reação da moça, alarmada, brava, aos gritos.
Você conhece, aí, o poeta Pedro Xisto, concretista, companheiro dos irmãos Haroldo
e Augusto de Campos? Ele escreveu formidável série de artigos, descobrindo tudo isto, e
mais, sob o título "À busca da Poesia". O trabalho, com outros, ótimos, dos irmãos de-
Campos, vai ser republicado, em folheto, aí, breve.
***
Bem, meu caro Bizzarri, por hoje, já exagerei. Encerro. Apenas dizendo ainda a Você
que o nome MOIMEICHEGO é outra brincadeira : é : moi, me, ich, ego (representa "eu", o
autor...) Bobaginhas.

44
*
Agora, nem vou reler o que ficou escrito. Você me perdoará, a mixórdia. Quis ser útil,
e nem sei se não estou sendo "encombrant", entupidor... Principalmente, não quis ser
presunçoso, vaidoso, boboque. Se fui, foi sem querer.
Mas, sério é o afetuoso abraço amigo
do seu
Guimarães Rosa.
[acrescentado a mão]
P.S. - Mas, não é que ia me esquecendo do principal? Pois, o mais importante é dizer
a Você que, no "Cara-de-Bronze", por tantos motivos, é onde Você pode ter mais liberdade.
Para acentuar mais, o que achar necessário. Para omitir o que, numa tradução, venha a se
mostrar inútil excrescência. Para deixar de lado o que for intraduzível, ou resumir,
depurar, concentrar.
Obrigado!
G.R.

15

São Paulo, 30 de novembro de 1963

Meu caro Guimarães Rosa,

Tinha que acontecer. E aconteceu, mesmo. Já estava galopando no "Buriti",


animadíssimo e prestes a cantar, com o tio Ariosto, "Or, se mi mostra la mia carta il vero,
non è lontano a discoprirsi il porto", quando, de repente, esbarrei, empaquei. Foi na pág.
694. Passei um dia de profundo descordo, inerte. Voltei à carga, no dia seguinte, esperando
reestabelecer a sintonia. Nada feito. Para não parar definitivamente, o único jeito foi deixar
de lado a diaba da página; o que fiz, retomando meu caminho na 695; e pedir socorro, para
pegar a morma; o que faço; mais uma vez aproveitando da bondade e paciência do Amigo.
Infelizmente, o habitual sistema à "Procusto" não adianta muito, neste caso, pois
inúmeras são as minhas ignorâncias. Achei, portanto, mais rápido e conveniente transcrever
o trecho que derrotou todos os meus brios de tradutor, sublinhando com traço inteiriço o
que não entendo de todo, e, com traço alternado o que entendo muito duvidosamente. O que
não está sublinhado é só presumido entendimento. Veja V. o que se pode fazer. E não receie
ser didático, até demais. Sobretudo, precisaria ser bem esclarecido a respeito de palavras
que têm base exclusivamente onomatopaica e fônica, e daquelas que têm sentido definido,
embora não dicionarizadas.
Desculpe a chatice do mais amolante dos seus tradutores, que é também o mais
miguilim e atento de seus leitores. Acontece que eu acho todo o trecho (que aliás começa na
pág. 692 e termina na 695) de grande validade poética; e não me conformo com os rótulos
de ermetismo, surrealismo, ou até concretismo e outros ismos, com que outros leitores
poderiam ficar satisfeitos. Os ismos passam, e a poesia resta. Aquele trecho, para mim, é
uma espécie de sinfonia da noite no mato (com todas as espontâneas implicações de
simbolismo emotivo que noite e selva acarretam, e a dimensão única fornecida pela
peculiar perspectiva narrativa - a pessoa do Chefe Zequiel). Mas crasso é meu ouvido de
homem da cidade. Você pode ajudar-me a captar a sinfonia inteirinha, para que eu possa,
em parte, transmiti-la aos degenerados descendentes do pai Dante?

45
Um abração

E.B.

16

São Paulo, 3 de dezembro de 1963

Meu caro Guimarães Rosa,

Estava para despachar a carta anexa - a carta do descordo - quando recebi a sua de 25
de novembro. Como já está havendo notável cruzamento de missivas, achei oportuno
suspender o envio, até acrescentar - o que só hoje consigo fazer - umas palavrinhas de
agradecimento, apologia e desculpa.
Para o devido agradecimento, meu pobre português mal dá, aliás falha por completo.
V. entende e perdoa. De fato, suas últimas cartas, junto com muita alegria, me dão uma
espécie de complexo de culpa: eu continuo, surdoso, com perguntinhas miúdas, róis de
dúvidas, recenseamento de minhas ignorâncias, enquanto V., com fraternal sinceridade e
carinho e tamanha paciência, toca em assuntos bem interessantes e elevados. Assuntos
sobre os quais tanto eu gostaria de falar e escrever. Mas agora não posso; tenho que seguir o
meu roteiro de trabalho (que não me deixa sossego: tantas páginas por dia; cada dia, no
calendário, um numerinho ao lado, 723 - 728 - 733 e assim por diante, até 822): feito
Miguilim que corre através do mato, com o tabuleirinho do almoço, e gostaria tanto de
parar, ver árvores, e flores, e pássaros, mas não pode, não tem tempo, tem obrigação a
cumprir. E tenho também que obedecer ao meu sistema de trabalho, que é custoso - a
exploração miúda do texto -, para do texto extrair a poesia, e, depois todas as outras
possíveis implicações.
V. compreenda, perdoe e continue contando-me tudo que achar interessante. Não vai
ser monólogo, não. A primeira fase do trabalho vai chegando ao fim; a conversa - da poesia
- vai-se aproximando. E será conversa gostosa, - quem sabe? - até mesmo conversa direta,
oral, lá no Rio; eu confiando levar V. a passeio na sua obra por trilhos esquecidos ou
ignorados pelos outros críticos. Como vê, não sou afinal tão modesto, quanto V. podia
pensar. Mas sou bastante conhecedor das letras para prevenir V. que a vocação natural, ou
sina, do crítico literário é - historicamente comprovado - o desacerto, o "misunderstanding".
O que não deixa de ser bom e humano, sempre que não se esqueça a humildade socrática.
Em antecipação, só uma perguntinha, meio maldosa: alguém, que V. saiba, falou em Vico a
respeito de "O recado do morro"?
O abraço grato de

E.B.

XIV

Rio, 4 de dezembro de 1963

Meu caro Bizzarri,

46
Eis, atendidas, as "dúvidas" do "CARA-DE-BRONZE". Mande mais.
Nada de sentimentos de culpa. Você jamais me decepcionará. Porém, para melhor
tranqüilizá-lo, digo a verdade a Você. Eu, quando escrevo um livro, vou fazendo como se o
estivesse "traduzindo", de algum alto original, existente alhures, no mundo astral ou no
"plano das idéias", dos arquétipos, por exemplo. Nunca sei se estou acertando ou falhando,
nessa "tradução". Assim, quando me "re"-traduzem para outro idioma, nunca sei, também,
em casos de divergência, se não foi o Tradutor quem, de fato, acertou, restabelecendo a
verdade do "original ideal", que eu desvirtuara... No seu caso, então, de uma tradução
Bizzarri, tudo já está previamente, antecipadamente bem. Só não quero, isto sim, é ler sua
tradução antes de publicada. Não quero estragar o meu prazer de tomar contacto com ela já
pronta, vestida e ornada...
Por exemplo : concordo, inteiramente com Você, a respeito de eliminarmos as notas
de pé-de-página. PRINCIPALMENTE, acho que devem ser eliminadas as das páginas 610,
617 e 618 ! O que você diz, a respeito, eu já tinha pensado, ou, pelo menos, começado a
pensar. Também, penso que será ótimo eliminarmos as das páginas 559, 560, 593. As sobre
árvores e plantas, e animais (598, 599, 600, 601, 602, 604, 605), deixo inteiramente à sua
decisão - sobre se devem ser omitidas, em todo ou em parte. Apenas a da página 613 é que
poderia ser conservada ; mas, mesmo assim, se Você achar vantagem. A orientação válida é
mesmo aquela - de só pensarmos nos eventuais leitores italianos. Não se prenda estreito ao
original. Voe por cima, e adapte, quando e como bem lhe parecer. De qualquer modo,
quando enviar o cartapaccio à Feltrinelli, Você está autorizado a afirmar que o Autor
aprovou a tradução. Jogo em Você, no escuro. O que, aliás, não está bem. Não se trata de
jogo, não há risco, nem estou no escuro a seu respeito.
Forte abraço
do
Guimarães Rosa.

"CARA-DE-BRONZE"

p. 555 (não numerada): "alvíssaras de alforria" (o que é, exatamente?):


Literalmente: alvíssaras = (prêmio que se dá a quem anuncia) boa nova, notícia boa.
alforria = libertação (de escravo). (NOTA - Como V. já notou decerto : a sextilha se refere à
POESIA).
p. 555 as Cantigas do Sertão existem, ou são invenção? Invenção minha.
p. 557 linha 2ª última: "crancavão... de rechã: Corruptela, local, de carcavão (de
cárcava = fosso profundo para defender uma praça ; do arabe karkab) - despenhadeiro.
Rechã = chapada. (É um daqueles barrancos; a pique, que delimitam uma das faces de uma
chapada tabular, nos gerais).
p. 559 linha 8ª última: "de enlôo" (de enleio?): Sim. De embaraçar-se (prender-se)
no barro, atolando-se.
p. 559 linha 6ª última: "labeia" (lambeia?) = ser escorregadio, ser resvaladio,
escorregadiço, escorregar.
p. 559 linha 3ª última: "trusos": Impetuosos, esbarrantes. (Trudo, is, trusum, trudere;
Truso, as, are). empurrar com força.
p. 560 linha 5: "juca" (é usado para indicar a rês, ou é sinônimo do diabo?): (Ao
boi). Xingamento, personificação pejorativa. Parece-me, também, que Você foi quem
acertou: tem que ver com o diabo, como sinônimo.

47
p. 560 linha 16: "moçoçoca" = tropel, tropeada, ruído ou tumulto de patas, estrépito.
(É termo indígena, tupi).
p. 560 linha 19: "mopoame" = desordem, motim, amotinamento (termo tupi).
p. 565 linha 14: "com seus pássaros" (em seu melhor? com toda a alma?): Sim.
Exato.
p. 566 linha 1: "fala, pelas campinas em flores" (fala, a não acabar?): Fala longo e
poético ("floreado"), com ornatos e imagens ; fala longa e brilhantemente (como quem está
meio bêbado...)
p. 566 linha 11ª última: "lélis" (legal, certo?): lélis: = invenção, afirmação falsa.
("Prega na parede !" = se diz a quem está "pregando" uma mentira. É expressão comum no
interior, à base do trocadilho).
p. 570 linha 6ª última: "tapuirana" (é malha? ou que tipo de tecido é?): De malha
de fibras (de palmeiras, etc.). Rústica e comum no sertão. (De "tapuia", índios mais
broncos).
p. 570 linha última: "quinculinculim" (onomatopaico do barulho das moedas?):
Sim !
p. 573 linha 2: "remondiolas": artes (traquinadas, travessuras ; MALUQUICES ;
macaquices).
p. 574 linha 8ª última: "zambezonho": sorumbático, teimoso, funesto-tristonho
(Origem africana).
p. 578 linha 14ª última: "eslôxo" (onomatopaico?): Sim. (O espoco das patas
entrando e saindo no barro)
p. 584 linha 3ª última: "neme" (fio?): Sim.
p. 586 linha 6ª última: "Dererê": Uma dessas "muletas" de iniciar quadras. (Como :
tra-la-lá ou la-ra-la-rá)
p. 587 linha 10ª última: "querembaua" (carimbaua: sujeito forte): Sim !
p. 590 linha 11ª última: "qual que sabia, aprendeu" (soube aprender?): Aprendeu,
como se já soubesse. (Como se já tivesse sabido antes de aprender).
p. 593 linha 11: "se quis, fez" = quis, e fez. = soube converter seu desejo em ação.
p. 601 linha 8: "daridare" (dardejar?): Onomatopéia, mas servindo-se do nome tupi
: daridare = a cigarra. (acari = também assim chamavam os tupis a cigarra). (Normalmente,
em tupi, sendo "araci" - a manhã).
p. 609 linha 2: "estarvo" (starvation?): Sim !
p. 609 linha 4ª última: "harmamaxa" (vem do grego? liteira coberta para
transporte de senhoras): Sim !
p. 611 linha 6: "sossegante": De aspecto repousante, Ou : Para repouso da vista da
gente.
p. 614 linha 7ª última: "um canto de rompante": Um cantar (ou canção) vivo, vivaz,
impetuoso.
NOTA "extra" :
Pág. 611, ls. 7/6 últimas: Corrigir, no original : Em vez de "e os dois pés", pôr: "e o
um-pé". (O Saci tem só uma perna, e um só pé).

XV

48
Rio, 10. XII. 63

Meu caro Bizzarri,

"Io non posso ritrar di tutti a pieno,


peró che sì mi caccia il lungo tema,
che molte volte al fatto il dir vien meno".
(Inf. IV, 145-147)
"Aquele trecho, para mim, é uma espécie de sinfonia da noite no mato, (com todas as
espontâneas implicações de simbolismo emotivo que noite e selva acarretam, e a dimensão
lírica fornecida pela peculiar perspectiva narrativa - a pessoa do Chefe Zequiel).
(BIZZARRI, Carta de 30.XI.63)
"Papè Satàn, papè Satàn aleppe!"
(Inf. VII, 1)
Tudo ótimo. Coraggio ! Você é que é um homem temível ' terrível - graças a Deus. E
o Chefe Zequiel, um pobre-de-Cristo, semi-enlouquecida sua ignorância. Vamos ver se o
deciframos, um pouco, ao longo de alguma de suas possíveis "variantes", e até onde. O
melhor, creio, sempre é a gente partir o difícil em reles pedacinhos.
1) "O úù, o ùú, ENCHEMENCHE, aventesmas"...: úù, úù = onomatopéias;
enchemenche = (enche-m(e)-enche? enche-m(exe) ?) é algo que o Chefe quer mas não
consegue traduzir dos hiper-rumores da Noite. aventesmas = (avantesmas) fantasmas.
Tentativa de tradução para a linguagem lógico-reflexiva: - Esses (sons de) húûh-úhhú, de
imenso mexer-se-e-encher-se-me... são ossos-sons, de extintos fantasmas... (Perdoe-me,
carreguei na mão. Mas é que é perigoso tentar sondar essas anfractuosidades infralógicas,
hipersensoriais, elas contagiam-nos, e "estou com a cachorra", a invenção é um demônio
sempre presente...)
2) "O vento úa, morrentemente, avuve, é uma oada - ele igreja às árvores": úa
= onomatopéia; avuve = onomatopéia (do vento); oada = onomatopéia: de (panc)ada,
(z)oada; pode provir também de ôa ! (= a voz com que o carreiro manda parar os bois do
carro-de-bois); igreja = Para o Chefe, o que dá mais idéia de respeito sério e pânico, de
suspensão cósmica, coitado ; de misterioso silêncio e grave ambiente. (Cf. sacer = na sua
ambigüidade ou ambivalência de ao mesmo tempo "venerável" e "execrável") é uma igreja.
Daí, o verbo "igrejar". Trad. : O ventoventovento hhh-úiva, feito para morrer morrendo,
venta-voa-úiva, e - de só o fim-de-pancada, pára, então dentro do silêncio as árvores todas
estão dentro da igreja...
3) "A noite é cheia de imundícies". (Literal. Sem problema).
4) "A coruja desfecha os olhos". (Idem. Apenas, notar a superposição semântica :
DESFECHAR = abrir. DESFECHAR = vibrar ; descarregar (arma de fogo) exprimir com
violência. (Adoro isto. No só e simples abrir de olhos, a coruja já está atacando !).
5) "Agadanha com possança". = Agarra (a coruja) com todo o poder.
6) "E õe e rõe, ucrú, de ío a úo, virge-minha, tiritim : eh bicho não tem
gibeira"...: õe = (onom.) se refere às unhas e bico da coruja; rõe = (onomatopéia ; de roer)
se ref. também à coruja; ucrú = (") refere-se ao rasgar (cruel) da carne (crua) da vítima; ío =
(onom.) corresponde aos gemidos-guinchos da vítima; úo = (") idem. E também ao rumor
geral, dos dois, a coruja batendo e a vítima se debatendo; virge-minha = (Minha Virgem-
Maria!) é exclamação do próprio Chefe, horrorizado com aquilo tudo; tiritim = (onom.)

49
(indica coisa rápida e limpamente feita, pronta, realizada) E já é o próprio Chefe, em sua
instabilidade de primitivo, se entusiasmando com o poderoso, isto é, com o agressor, se
identificando com ele, com a coruja, e deliciando-se com a presteza da cena; eh, bicho não
tem (al) gibeira = a coruja comeu tudo, não dispõe de bolsos para neles guardar comida
para mais tarde...
7) "Avougo" = Outra onomatopéia, esquisita, do Chefe. Quase tudo o que ele
pensa ou diz, "non è un discorso, ma uno sfogo subitaneo"... (Terá a ver com ave, com
agouro, com regougo ?)
8) "Ou oãooão, e psiuzinho". (Onomatopéias : de eco ; de chamar alguém,
assoviadinhamente).
9) "Assim : tisque, tisque"... (Onom.)
10) "Ponta de luar, pecador". (Literal. Mas "Pecador" se refere a ele, Chefe, e
aos demais viventes, que avistam a lua crescente em começo).
11) "O urutau, em veludo". O urutau (ave : mãe-da-lua, dos Caprimulgídeos,
Nyctibius grandis), em veludo (porque voa macio, como a coruja, sem nenhum rumor).
12) "Í-ééé... I-éé... leu"... (Onomatopéias)
13) "Treita do crespo de outro bicho, de unhar e roer, no escalavro". = O
arrastar-se }tortuoso

}eriçado
}
de outro bicho,
A astúcia }
revolto
que crava (dentes e unhas) e desgasta (no já roído e mordido (na madeira, no
oco de árvore, tronco)
14) "No triz-e-tris, a MINGUÁVEL"... = No partir-se do fio de um perigo -
circu-surge aquela, a que diminui de tamanho... (Já é a MÔRMA)
15) "E uma pessoa alejada, que estão fazendo". = (Provavelmente, A Môrma, é
um ser formado por exalações anímicas ou projeções das pessoas que dormem. E forma-se
larvar, como embrião demoníaco, defeituosa... (Lembra-se de Maria Behú, principalmente.
Da aversão que o Chefe não pode deixar de sentir por ela, apesar de ser a mais bondosa
para com ele. Mas a Behú tem seus recalques. Quando Maria Behú morre, mais tarde, terá
sido só por acaso que na mesma ocasião o Chefe se viu curado ?)
16) "Dou medida de três tantos !" = (Mas ela cresce, a Môrma, de repente, já
fica três vezes maior...)
17) "Só o sururo"... = (Onom. do vento que mata, entrecortado de silêncios, mas
suavemente, não violento como o úuu ou o avuve).
18) "Chuagem" = onom. de água corrente, o rio; o cru = a coisa crua (a Môrma);
a renho = atacante, vesânica.
19) "Forma bichos que não existem" = (Sujeito : a Môrma, ou a Noite).
20) "De usos, - as criaturas estão fazendo corujos". = Normalmente, as pessoas
que dormem estão dando origem a seres hostis da noite.
21) "Dessôro d' água, caras mortas". = Os rostos, como de mortos, ressumam
uma água, (lívida).
22) "Quereréu... Ompõe omponho" = (Simples complicadas onomatopéias do
Chefe).

50
23) "No que é... (até)... uivoso". = (Literal)
24) "Avoagem" = som de mínimos, imperceptíveis vôos.
25) "cupins" = térmitas
26) "Para outros, a noite é viajável" = Para as outras pessoas, a noite é
passageira, transitável, a gente a percorre. (Enquanto que, para ele, Chefe, a noite é fixa e
terrível, aprisionando-o).
27) ..."meus menos". = ... que já os perdi. (No interior, mesmo para pessoas
adultas e idosas, o pai e mão são muito reais e válidos símbolos de proteção contra o
destino mau).
28) "É a môrma, ...(até)... de idéia" = (Literal). A môrma, melhor : Môrma = ser
ou entidade monstruosa que o delírio do Chefe inventou ? Mas há: = "figura
apavorante de mulher velha, espectro, máscara assustadora, etc". Não sei como foi que eu a
vim trazer para o sertão...
29) "...o cuchusmo" = (cochicho + chusma ?) Onom. (Um coro de cochichos,
uma multidão estranha a sussurrar ? Coisa entre cochicho, suspiro e soluço).
30) "Malmodo me quer" = Me quer, para me fazer mal; me vem = vem contra
mim; psipassa = esvoaça sutilmente, perpassa (como se um fino vento) em volta (do
moinho onde ele Chefe dorme...)
31) "Izicre" = onom; "o iziquizinho" = (do besouro que surge de seu buraco no
chão)
32) "Divulgo" = (no interior de Minas) : conheço, ou reconheço. "Reconheço os
bichos".
33) "catete" = caititu (Pecari tajassu) uma das nossas espécies de porco-do-mato.
34) Tem horas que o próprio medo da gente se transforma em fadiga, o medo
mesmo cansa de amedrontar-nos, a gente pode penetrá-lo ("cavável"), explorá-lo,
objetivamente, analisá-lo.
35) "uixe, ixinxe" = onomatopéias (referem-se aos bichos cujo rumor imita, de
propósito, o ruído da água do rego). Mimetismo sonoro.
***
Valeu?
Depois, responderei às duas cartas, de esplêndido miolo.
Agora, só o fraternal abraço, melhor,
do seu
Guimarães Rosa.

17

São Paulo, 16 de dezembro de 1963

Meu caro Guimarães Rosa,

Recebi suas cartas de 4 e 10 de dezembro. Obrigado, mais uma vez. A sua paciência é
bíblica, e imensa a sua bondade. Como perdoar-me pelo tempo que lhe vou tirando?
Mais um minuto, em todo caso, vou lhe roubar. Preciso dar-lhe a grande notícia: num
arranco danado, ontem terminei a tradução de Corpo de baile. É só a tradução tosca, grossa,
suja ainda; tenho que afiná-la, utilizando-me de seus esclarecimentos, e resolver inúmeros
probleminhas e problemões de toda ordem, e por último pôr tudo a limpo. Caminhada dura,

51
ainda. Mas a primeira etapa foi vencida. E estou feliz e meio atordoado.
É só, por enquanto. Nos próximos dias, irá a relação das "dúvidas" relativas a
"Buriti".
Um grande e fraternal abraço

E.B.
P.S. - Gostei, na primeira carta, do "extra" de pág 611; já tinha cortado a perninha
excedente do Saci. E gostei, na segunda, de ver o diabo do Bizzarri crucificado e achatado
entre os versos de Dante. Bem feito.

18

São Paulo, 19 de dezembro de 1963

Meu caro Guimarães Rosa,

Estamos no fim da "Procustíada"; aqui, a última relação de minhas ignorâncias. As


miúdas. Das grandes, que são inúmeras e fazem róis e recenseamentos, terei que defender-
me sozinho (conforme obrigação e justiça), na procura da interpretação, não mais de
palavras, mas do que o poeta "transmuz da pedra das palavras". Vou começar amanhã,
recolhendo-me em quase clausura, até os primeiros de março, para aprontar o definitivo
texto italiano. Será que entretanto, vez em quando, me chegará, com "extras", a palavra
animadora do Amigo?
Obrigado, mais uma vez, por tudo. Meus fraternais votos de bom, ótimo Natal, e de
um feliz 1964, isento também das caceteações de tradutores enfadonhos.
Um abração

E.B.

XVI

Rio, 19 de dezembro de 1963

Meu caro Bizzarri,

Esta é para muito dizer-lhe meus votos, fortes, vivos, de lindo Natal e um 1964
positivo, só com alegrias e prêmios ! - para Você e a Família. De coração.
Mas, suas cartas, de 30.XI e 3.XII, estavam notáveis, gostei delas. Suas "dúvidas" me
animam, Você se afirma e confirma mesmo nos "descordos". As explicações que enviei,
sobre o trecho delirante do Chefe Zequiel, serviram ?
Não se preocupe com as diferenças momentâneas de tom dos nobres interlocutores,
no nosso diálogo atual. Você está arfando, aí, na dura tarefa, e, quando eu venho com
divagação de assuntos de espuma, é de propósito, para abanar e refrescar, como o
assistente vem ao ring fazer com o boxeur combatente, entre dois rounds. Tudo ótimo.
Não. Ninguém falou em Vico. E alegrou-me essa promissora menção, de futuros
rastreamentos seus, viqueanos. Porque Vico é um gênio, acho, é enorme. Você deve estar
certo. Obrigado.

52
E com o *abraço* amigo
do
Guimarães Rosa

P.S. - Num dos "procustos" (creio que no do "Dão-Lalalão") creio lembrar-me que
havia o verbete CASSINGA, o qual ficou impreenchido. Mas, agora, no "Dicionário das
Plantas Úteis do Brasil", de M. Pio Corrêa, encontro estes dados:
CASSINGA CHEIROSA - (Laetia suaveolens Bth. ; Cassinga suaveolens Griseb. ;
Samyda petiolaris Spr.) Das Flacourtiáceas. Arbusto. Flores brancas, de aroma suavíssimo,
idêntico ao da laranja.

XVII

Rio, 1964, 2 de janeiro.

Meu caro Bizzarri,

Com o Ano Novo, novos votos, forte sentir, volta aqui a Você a derradeira procusta.
Alegria foi saber que já está vitoriosamente aprontada a "brutta copia" da tradução imensa.
O resto vai ser melhor e belo. Continuarei junto, decerto. Soprarei, sempre.
Agora, por exemplo, achei alguma coisa que Você já havia perguntado :
CIDRILHA (Acho que foi para o "Dão-Lalalão" ?) - É a Lippia stoechadifolia, ou
Verbena staoechadifolia, ou Phyla st., ou Zapania st. Arbusto estrigoso. Das Verbenáceas.
BARBATIMÃO - Stryphnodendron adstringens ou Stryphonodendron barbatimão,
Mart.
PAU-TERRA - Qualea grandiflora ou Qualea cordata.
***
Mas, enfim, não creio que esses nomes de plantas e árvores, à guisa de
documentação, sejam importantes. Andemos antes para o reino do transcendente, do
poético, do vago. Vou preparar carta, que espero o ajude.
Hoje, só mais o *abraço*, invariável,
do
seu
Guimarães Rosa.

"BURITI"

p. 640 linha 9: "cujice" : intrujice, invenções, enredo, mexericos.


p. 653 linha 22: "capim-chato e bengo" (são duas qualidades de capim? têm
nomes dicionarizados?): Bengo = é o mesmo capim-angola (Panicum maximum, Jacq.)
capim rico, ótimo, estrangeiro de origem (africano), é o mesmo capim-de-Guiné. O capim
chato é o mais vagabundo, nativo, que em geral os animais pouco prezam. São os opostos,
em qualidade. (Será o Echinolena inflexa ?) Pode, melhor, substituí-lo pelo capim flexa
(Tritachya leiostachia, Nees).
p. 654 linha 14: "são jacarés e grandes cobras que se estranham" = se ocultam ; se
dissimulam ; esquivam-se da gente.
p. 657 linha 3ª última: "às arras": de sobrevalor, notoriamente magníficos.

53
p. 662 linha 18: "tagoaiba" (é taguariba? argila ruim?): É (em tupi) : fantasma,
aparição sobrenatural, assombração.
p. 663 linha 15: "ruguagem" (é de ruga? o enrugar-se?): rugir + aguagem. rumor
das águas enrugadas (arrugadas)
p. 667 linha 4ª última: "pau-doce" (qual dos muitos? tem outro nome? alguns
dados): Deve ser um dos da Família das Voquisiáceas (Vochysiaceae). Árvore comum nos
cerrados de Minas Gerais. Achei ! É a Vochysia tucanorum. Também a: Vochysia cuneata
p. 668 linha 1: "pau santo" (qual dos muitos? etc.): Deve ser das Gutíferas
(Guttiferae). Kielmeyera coriacea, provavelmente. Árvore comum nos cerrados mineiros.
Sim. É a Kielmeyera coriacea.
p. 669 linha 18: "aques!" = interjeição de surpresa depreciativa.
p. 671 linha 18ª última: "cambaúba" (é a cambaúva? que tipo de gramínea é?): É
uma espécie de bambuzinho, em tufos muito altos, cerrados. (Sim).
p. 674 linhas 1 a 4: "marmelada-de-cachorro" (tem outro nome?etc.): Odoxa
lanceolata. Ou : Amajona guianensis ? - Rubiácea arbórea, madeira de lei; "almesca" (ou :
árvore-de-incenso, breu-branco, almecegueira, almêcega, almecêga-verdadeira) é uma das
Burseráceas (Protium icicariba, Marc.). Árvore importante, por causa de sua valiosa resina.
Madeira de lei; "gonçalo" (é o gonçalo-alves?): É sim. (Astronium fraxinifolium, Schot.)
Árvore copada e alta. Resinífera; "folha-miuda": árvore simpática e importante do sertão,
mas que não tem outro nome meu conhecido. Também não sei se será a mesma Psychotria
sessilis, das Rubiáceas, de que encontro menção. Tenho dúvida; "olandim-do-brejo" (é o
mesmo que olandim?): Talvez uma variação ; é o mais provável. (digo : uma variedade.
(OLANDIM = guanandi, pau-azeite, pau de Santa Maria). golandim. Calophyllum
brasiliensis, Camb.
p. 675 linha 3: "encadeando espintrias" (refere-se à lascívia de movimento dos
caracóis?): Você sabe, a maior parte das espécies de caracóis são hermafroditas. Assim, ao
acaso, um copula outro, mas chega um terceiro e copula o segundo, e mais um quarto,
etc.etc., formando às vezes longos encadeamentos de machos-fêmea a um tempo.
p. 688 linha 16ª última: "arroz-de-passarim" (genérico, ou tem outro nome
dicionarizado?): Ambas as coisas. Diz-se, genericamente. Mas há, também, espécies
batizadas assim. Tudo varia, porém, de lugar para lugar, e haverá mais de uma espécie com
o apelido.
p. 689 linha 17: "arroz, a montaval": a montaval = (a monte e a vale) : isto é, a
montante e a jusante (do rio). Cf. o francês : en amont e en aval.
p. 693 linha 17: "mangueiras fechadas" (com flores ainda não desabrochadas, o
quê?) = de copas densas, escuras, cerradas, tramadas espessamente.
p. 700 linha 15ª última: a segunda mulher do Irvino é morena white, ou morena
colored, ou é bom que não se saiba claramente? mais para morena clara. Talvez porém
melhor deixar em suspenso.
p. 717 linha 14: "visargo": Antes de tudo : não é uma palavra estranha, forte,
mágica, cheia de dinâmica de mistério ? Pode ser feiticeiro ou dono de arcanos ou
ultralúcido ou tantas coisas mais. Tem de vis e de Argos. Tem de bis e de agro (acer,
acerbo). (Sou tentado a sugerir : um gato bizzarri...
p. 720 linha 7: "tirolira" (tem outro nome?): Não que eu saiba. Mas Você não acha
tirolira um nome que é a própria poesia?
p. 729 linha 14ª última: "quiritavam": Gritavam (os gaviões). Você sabe que a
romana origem etimológica de Quirites é uma palavra peninsular, antiga, que significava

54
"gavião".
p. 731 linha 3ª última: "vovoengo" : avoengo (atávico, herdado dos antepassados).
p. 742 linha 14 ª última: "barbas-de-árvore" (é genérico, ou se refere a
determinada planta?): Confesso que não sei bem, exatamente. São filamentos, secos,
cheirosos, verde-claros, de parasita ou epífitas.
p. 746 linha 7ª última: "brejeira" (é um tipo especial de cantiga?): Não sei bem.
Parece-me mais genérico : cantiga alegre, brincalhona, humoresca. Também : paródia de
canção séria.
p. 754 linha 9: "torce e apaz": provoca e acalma; excita e tranqüiliza; complica e
simplifica; tanto tem de ação quanto de sossego.
p. 756 linha 3ª última: "quá de grota": quá = abrigo de bicho ou de ave do campo,
morada individual. (quara = abrigo ou morada coletivo)
p. 756 última: "pirassununga" (outro nome?) = ronco ou rumorejo de peixes;
"peixe-preto" (outro nome?): Ignoro; "mandi-roncador" é o mesmo que
mandichorão? Sim.
p. 759 linha 4ª última: "fão" (é do inglês fan = leque?): Talvez. Pode ser, com
vantagem. Mas dizem a fão com o sentido de : com alegria.
p. 764 linha 4ª e 3ª última: "só-de-mim ou carolininha-criz ou olhinhos" (tem
outro nome dicionarizado?): Não. (Graças a Deus)
p. 772 linha 7ª última: "erva-do-diabo" (tem outro nome?): Talvez, provavelmente,
é a caa-pomonga (também chamada caataia, folhas-de-louco, jasmim-azul-e-louco),
trepadeira das Plumbagináceas = Plumbago scandes, Lin.
p. 776 linha 12ª última: há por acaso um engano, Miguel em vez de Irvino, ou é
mesmo de Miguel que Lalinha, de repente, vai falar ao iô Liodoro? Você acertou. Bravo
! É IRVINO, sim. (Engano palmar, que já vou corrigir, para a próxima edição do livro).
Obrigado.
p. 783 linha 20: "olímpia" (tem outro nome?) = lírio-do-brejo (é um nenufar, das
Ninfeácias, Nymphaeaceae), gólfão-branco, lírio-d'água.
p. 783 linha 21: "gogóia" (é o mesmo que gogó de guariba?): É o mesmo que
baronesa. Pontederiácea erbácea hidrófila. Flutuante. Ou umas ninfeáceas, também.
Eichhornia crassips (rainha-do-lago, gólfão, jijoga, água-pé, guapé, uapé).
p. 794 linha 2: "sob pâinas": (imagem) suavissimamente, muito tenue-docemente.
p. 795 linha 10ª última: "raízes-de-cheiro" (é genérico, ou se refere a determinada
planta?): genérico (várias espécies)
p. 806 linha 9ª última: "tontas vozes" (é assim mesmo, assimilando tontas e
tantas, ou é erro de revisão?): Sim (!). É o empastamento semântico de "tantas" e
"tontas".
p. 818 linha 7ª última: "que nem em travavalha" = como se para refrear-se com
esforço, ganhando tempo para poder se conter, contemporizar lutadamente consigo,
travando-se-que-travando-se, se cunctactorizando.
p. 820 linha 11: "Impagem" = jactância, fanfarrice, gabolice, sabe-tudismo.
p. 820 linha última: "todo ele se dá cartas" = se sacode para todos os lados (como
um jogador distribui as cartas do baralho).

XVIII

55
Rio, 3 de janeiro de 1964

Meu caro Bizzarri,

Bom dia. Venho aqui com conversa. Os assuntos, que são um só e vários, divido-os,
para poupar sua boa atenção - de recluso entaipado imerso na operação grande. Alegro-me
de prever que Você vai ser assim uma espécie de magno-mago-alquimista vitorioso ; ou
algo madame-Curie : capaz de produzir coisa radioativa, extraída de um entulho de
toneladas de minério. Escute.
***
Sairá, agora, no decurso de 1964, uma nova edição do "CORPO DE BAILE" - a 3ª.. A
novidade é que ele vai ficar sendo em 3 volumes. Três livros, autônomos. A idéia já me
viera, há tempos. Comecei por "vendê-la" aos editores na França e em Portugal, que se
convenceram depressa das vantagens, e concordaram. E, por fim, consegui, facilmente,
aliás, que o José Olympio também a esposasse. De Fato, o "Corpo de Baile" vinha sendo
prejudicado pelo "gigantismo" físico. A 1ª edição, em 2 volumes, unidos, pesava, já.
Arranjamos então a 2ª num volume só, mas que teve de ser de tipo minúsculo demais,
composição cerrada. E o preço caro, além de não ficar o livro convidativo. Agora, pois, ele
se tri-faz. Assim :
"MANUELZÃO E MIGUILIM" - (com "Campo Geral" e "Uma Estória de Amor"), a
sair em abril. (As duas novelas mantêm seus respectivos títulos, o título do livro apanhando
e ajuntando apenas os personagens principais de uma e outra).
"NO URUBÚQUÁQUÁ, NO PINHÉM" - (com "O Recado do Morro", "Cara-de-
Bronze" e "A Estória de Lélio e Lina"), a sair em junho. (Como Você vê, a ordem primitiva
das novelas foi alterada).
"NOITES DO SERTÃO" - (com "Dão-Lalalão" e "Buriti"), a sair em agosto.
Se bem que os livros se ofereçam como independentes mantém-se, de certo modo, a
unidade entre eles, mediante as seguintes manhas : 1) o título ab-original, "Corpo de Baile",
é dado, entre parêntese, em letra discreta, no frontispício interno (mesmo porque garante e
permite a menção de "3ª edição", coisa que muito importa ; 2) a capa (a mesma da 2ª
edição) será igual para os 3 volumes, variando apenas as cores (grená-arroxeado ou
bordeaux, para um ; azul para outro ; encarnado ou escarlate para o 3º) ; na relação das
obras ("DO AUTOR"), explica-se que : "A partir da 3ª edição, desdobra-se em 3 livros
autônomos :" e segue-se a indicação dos mesmos.
Em conseqüência, distribuir-se-ão também, pelos três, as epígrafes de Plotino e
Ruysbroeck : cada um fica com uma, de cada ; isto é, o "Noites do Sertão" pegará 2 de
Plotino. (Porque eram 4). Esta é outra maneira de preservar a unidade. O livro ficará sendo
em três livros distintos e um só verdadeiro... Que tal? Que acha Você, de tudo ? (Mas, não
responda, agora. Esta e outras cartas minhas não são para Você responder. Você está bem
ocupado, não tem tempo para o bla-bla-blá de correspondência).
***
Alterações no texto original.
Andei, por causa dessa nova edição, relendo o livro, e vi que precisava mexer nele ;
em coisinhas miudinhas, sem importância, só. Mas achei bom Você saber.
Assim:
1) ("Campo Geral") À página 118, linha 16. Onde se lê: "parecia um homenzinho

56
sério e fatigado", passa a ser : "queria parecer o homenzinho sério por fatigado".
2) ("Dão-Lalalão") À página 476, 1.23. Em vez de... "o gelo", ficará "um gelo".
3) À página 486, linha 4 última, depois de "...afa que", acrescentar-se-á: "...esses
perfumes sucessivos indicam que"...
4) À página 487, linha 1, acrescentar, entre "seus" e "riscos",: "simples". (Fica : ..."só
em seus simples riscos de existível).
***
Esclarecimentos "extra".
1) Pág. 488, 1.19 : escortação = (latim) scortatio.
2) Pág. 493, 1. 7 : légua "de cochicho". No interior, as medidas itinerárias são dadas
com vaguezas destas : "légua das pequenas", "légüinha", "légua das grandes", etc. "Légua
de cochicho" = tão pequena, no dizer deles, que, daqui para lá, a gente pode até escutar uma
conversa cochichada...
3) Pág. 493, 1.3 últ. O "mutemute" = (latim) mutmut (indeclinável) ligeiro murmúrio.
***
O Coco de festa do Chico Barbós.
Na partilha, resolvi deslocar o Coco para o 3º livro ("Noites do Sertão"), servindo
como epígrafe privativa para a novela "Dão-Lalalão". Foi idéia sugerida, indiretamente,
por Você. Lembra-se de nossa troca de conversa sobre ele ? Veja como o grande tradutor
começa por influir no autor. Obrigado.
E, já que estava por conta do Coco, fui meditar mais, reler nossas cartas. Escute, bem.
Primo : sua tradução, do dito, é simplesmente formidável, represtigiou a coisa. (Digo-
o "no duro", ferozmente rigoroso, fora de toda camaradagem, simpatia intelectual,
"diplomacia" ou qualquer etcétera. Ficou uma beleza).
Segundo. Quanto à "rápida explicação que o acompanharia", entretanto, acho que
devemos reabrir suavemente a questão. Foi o que me pareceu, depois da "meditação".
De fato, já que Você vai colocar, como concordamos, o Coco como epígrafe da "Dão-
Lalalão" * ele passará: 1) a ficar bem distanciado do Plotino e Ruysbroeck, cuja
proximidade lhe faria perder o sabor ; 2) a estar já no meio do livro, estando já o leitor bem
introduzido no mundo do sertão.
Agoira, a explicação que Você deu ("Libera traduzione di un testo popolare
autentico, trascritto dall'Autore, e ritmato sulla musica di una danza afro-brasiliana, il
Coco"), tão boa em si, pode servir, e bem, como nota-de-pé-de-página, ou no "Elucidário".
Ao passo que, simplesmente sotoposta ao Coco, quebra o encantamento mágico, a que
visamos, e traz o acento para o aspecto "documentário" do livro - que é apenas
subsidiaríssimo, acessório, mais um "mal necessário", mas jamais devendo predominar
sobre o poético, o mágico, o humor e a transcendência metafísica.
(*) - *Isto é, de "A Estória de Lélio e Lina".*
Todos estes últimos elementos, que chamo de, no livro, positivos, veja que
comparecem na "explicação" original. Assim : o "barroco" mistifório de nomes do Chico -
denotando nossa absoluta incapacidade em embarcar num só aspecto a personalidade de
uma pessoa interessante ; e a concêntrica, insistida indicação do lugar onde ele se fez ouvir.
Confesso que acho humour nisso, e "abertura" para o misteriozinho que é a vida (conforme
o "Corpo de Baile", pelo menos).
Resta o problema de fazer passar esse quid para frasco italiano, sem que partícula
nenhuma do tênue tal cheiro se perca. Isto, Você sabe magistralmente fazer, e mesmo
"melhorantemente", como deu forte exemplo na própria tradução, revalorizadora, do Coco.

57
Mas, sem pretender "ensinar padre-nosso ao Vigário", vou dando aqui algumas sugestões,
mínimas, meras e reles, despretensiosas. Só para ver se posso ajudar um pouquinho a Você,
que sofre no momento o peso bruto do livro todo. Assim, não repare.
E eis. Penso que, na "explicação", Você, como em todas as demais partes do livro,
aliás, deve de preferência tomar liberdades, sem se submeter com exatíssimo rigor ao
corpo, às palavras do texto original. Por exemplo :
(Coco ou Canzone di festa, de un detto Chico Barbós, detto anche "il Chico
Suona-Rabeca", "Chico Se-Scalza-Precatas", "Chico del Nord", "Chico-il-Moro", "Chico-
della-Signora-Rita", - etc. etc. ..................................................................)
Qualquer coisa assim. As palavras em preto, ou sublinhadas com tracinhos, mostram
minha ignorância do italiano ; assim como não sei qual o bom diminutivo italiano de
Francesco). O importante é enriquecer a coisa com "humor", menos importando a estrita
equivalência. (Adoro, eu, por exemplo, o engraçado de certos sobrenomes italianos,
principalmente sicilianos (Mangiapane, Bruscaloppi, Spadacapa, Sparafucile,
Scaramanzia, Occhiazzurri, Mangiabene, Spadafora, Passacantando, etc.), e, por isto
mesmo, tenho um catálogo telefônico (lista telefônica) de Palermo, que consegui arranjar
com um colega, Cônsul do Brasil lá. É uma delícia. Na parte dos locativos, idem. Você
sabe, por exemplo, que a SIRGA existe, mesmo ; mas escolhi-a também pela beleza que
achei no nome, pouco comumente usado (sirga = corda com que se puxa embarcação, ao
longo da margem). Já, na própria estória "UMA ESTÓRIA DE AMOR", troquei-o pelo de
SAMARRA, que ainda me pareceu mais sugestivo. Você, na explicação do "Coco", pode
fazer o mesmo. Enfim. Agora, depois disso, a outra "explicação", como já disse, podia
figurar como nota (esclarecendo o que é um "coco"), como pé-de-página, ou no
"Elucidário". Assim, acho que pegávamos o optimum.
(URGENTE - Re-releio sua carta de 30/X, e vejo, o que antes me escapara : que Você
sugere, também, tomar o coco para epígrafe de "A Estória de Lélio e Lina". De fato. Como
sempre, Você vê bem e melhor. Concordo. Adoto. Viva Bizzarri, evviva !
***
Naturalmente, alguns riscos teremos de correr, com o público europeu - talvez hoje
excessivamente materialista, racionalista, político, positivo, intelectualizante ou
plebeizante, * afastado do puro mágico, perdida sempre mais a sensibilidade e
receptividade para o "beatífico". (Falo, decerto, de riscos para o Autor ; não os quero, de
modo nenhum para o TRADUTOR meu mais próximo e amigo. Nem mesmo para a
Editora. Você me compreende). Na França, porém, o saldo tem sido nitidamente a favor.
Gostam, mesmo os racionalistas, da "atmosphère de rêve", camuflada e protegida (digo eu)
pela coberta do pitoresco sertanejo. Inimigos, e irritados, et pour cause, meus livros sempre
terão de ter (basta ver o que mesmo aqui no Brasil acontece). Digo dos que se sentem,
acaso, subconscientemente perturbados, incomodados ; não me refiro ao direito de
gostarem ou não, natural e legítimo, tanto mais com relação a livros tão pouco harmoniosos
e cheios de ingenuidades e defeitos. (A respeito do "beatífico", acudia-me o que escreveu
T.S.Elliot sobre a "Divina Comédia", o que Você, dantólogo insigne, conhecerá).
Bem, meu caro Bizzarri, minha tagarelice já se deu largas. Agora, sinto-me até
acanhado, sem querer reler esta minha carta. Só queria ver se podia ser útil a Você. Hem ?
Por exemplo, não sei se Você gosta, às vezes, de beber, um pouco. Pelo retrato seu, que vi,
parece-me que não. Parece-me que Você é mais para o lado dos sóbrios, a não ser talvez un
pò di vino, ou um stregha. Se não, diria que talvez valesse a pena, agora, no acabar a "bella
copia", encher bicchiere e experimentar a companhia do Sileno. Não é que eu faça isso.

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Não fiz. Mas, como Você já viu, o nosso "Corpo de Baile" tem no espírito e no bojo
qualquer coisa de dionisíaco (contido), de porre amplo, de enfática "desmesura".
E, até outra, acompanho daqui seu esforço, com gratidão, com apreço, com fraternal
afeto.
Que vão no *abraço* amigo
do seu
Guimarães Rosa.
_____________________________

(*) = Naturalmente, tudo isso menos árido, menos grave, oh, do que sucede com o grosso do público nosso,
na essência ainda mais terra-a-terra; porque o europeu se salva pela inteligência trabalhada, sofrida, e a
cultura, tradicional...

19

São Paulo, 15 de janeiro de 1964

Meu caro Guimarães Rosa,

Recebi suas cartas - de 2 de janeiro, com o último rol, e de 3 de janeiro. Esta, aliás,
chegou justinha no dia 13, meu aniversário, e foi um ótimo presente. Agora, porém, tenho
que quebrar a minha muito elástica clausura. Será que chegam a tempo duas assinalações
relativas ao primeiro volume? Aqui vão:
1. - pág. 74 (da primeira edição): entre os quatro paqueiros de trela aparece, pela
primeira e única vez, um Leal em lugar do Soprado (penso que é engano).
2. - o João Polvilho, de pág. 195 a pág. 211, vira seu Joaquim Polvilho (penso que
deve ser a mesma pessoa).
Quanto ao famoso Coco, acho que V. tem todo o direito de xingar-me. Xingue à
vontade, e desabafe. Xingou? Bom, então posso falar: na revisão decidi voltar a colocar o
Coco como epígrafe geral do livro. E sabe por quê? (Xingue de novo). Para equilibrar um
pouco, com a colorida intuição popular, Plotino e Ruysbroeck, que deixados sozinhos, lá na
frente, como égua madrinha, ameaçam dar ao leitor desprevenido e palpiteiro (a maioria
dos leitores pertence à imensa legião dos palpiteiros, e a quase totalidade dos críticos
literários) uma idéia totalmente errada da natureza poética das estórias. Posso, para a edição
italiana, respeitar a ordem da primeira edição original? É claro que, nesta nova perspectiva,
aceito em cheio sua sugestão, quanto à nota explicativa.
E agora - mas rápido, a clausura me espera (só Miguilim e Manuelzão estão "in
bella", e Lélio, como V. sabe, é impaciente) - outro motivo de xingação. Mas amizade é
lealdade; e, leal, o decepamento de Corpo de baile me deixa bastante perplexo; não menos,
o critério de agrupamento nos três volumes. Mas não se importe com isso, Bizzarri costuma
errar muito, e, aliás, não se acerta sem errar. Vamos experimentar em que dá. Afinal, V. tem
todo tempo para dar outra organização nas sucessivas edições. Há uma velha lenda romana,
a respeito do sepulcro do herói virgiliano Palante. Penso que V. a conheça; mas, em todo
caso, aqui vai, depressa e desenfeitada. Passam os séculos, e do sepulcro se perde toda
notícia. Roma torna-se capital do Império, Roma cessa de ser capital do Império, decai, o
Palatino volta a ser lugar de pastores. E um dia, dois pastores, removendo uma laje,
descobrem uma gruta: na gruta arde uma tocha iluminando o corpo intato de um guerreiro

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coberto de armas obsoletas. Tudo aí fala de antigüidade remota. O que mais intriga os
pastores é a tocha ardendo. Então, um dos pastores pega a tocha e procura apagá-la. A
sacode no vento. Nada. A esfrega no chão. Nada. A mergulha na água de um riachinho.
Nada. A tocha continua ardendo. Então, volta a colocá-la na cabeceira do herói. E
novamente fecha a gruta com a laje. Na gruta, que até hoje não foi localizada, a tocha ainda
arde. Não é uma lenda bonita, que fala da vitalidade do mito e da poesia? Portanto, não
fique aflito se o seu amigo não está muito entusiasmado com o plano da terceira edição. Eu
sei que qualquer coisa os editores possam fazer com Corpo de baile, a tocha daquela poesia
continuará intata, e a obra acabará para se assentar, quase que espontaneamente, na ordem
interior de sua verdade poética. Que, talvez, nem seja aquela da primeira edição. Será, por
acaso, aquela que pensa seu terrível-temível tradutor e amigo?
Basta. Falei mesmo demais. Volto a Lélio e a Lina. Desculpe qualquer coisa, como
diz o caipira paulista. E receba o abraço fraternal de

E.B.

P.S. - Não estava esquecendo a última surpresa desta carta? Na medida dos seus 54 anos de
boa saúde, o seu amigo Bizzarri tem todos os bons vícios tradicionais, aqueles que, segundo
o ditado italiano, reduzem o homem em "cenere" - "Bacco, tabacco e Venere". Não fique
desapontado. Bizzarri bebe. Aliás, sem ser beberrão, gosta muito de beber. Gosta de toda
bebida alcoólica, autêntica: da boa cachaça brasileira ao whisky escocês, da vodka russa ao
champagne francês. Só não gosta de bebidas ruins e imitações. Gostaria muito de
experimentar a famosa "januária", que aqui em São Paulo não se encontra, ou, ao menos,
não consegui encontrar. Por conseguinte, ou talvez, quem sabe, em homenagem aos meus
princípios universalistas, meu principal animador nesta luta de tradutor - depois de suas
cartas, foi mesmo o whisky, scotch.

XIX

Rio, 20 de janeiro de 1964

Meu caro Bizzarri,

Alegria. Só mesmo Você era homem para sair de uma clausura e corvéia empreitada
dessas, para mandar-me carta tão boa, gostosa e, como sempre, fortemente inteligente. Se
me animou ? Demais... - como costumam responder os de nossos campos-gerais, veredeiros
ou chapadeiros. Para fazer carta assim, Você deve estar soprando guerra, dando faíscas,
tinindo nos cascos. Sei que Miguilim e Manuelzão já estão devidamente salvos, para o
entendimento mundial. * * * * (estas estrelinhas são de exultação e aplauso).
*
Mas, sabe o que andei fazendo ? Em vez de, como devia, estudar um pouco as
primeiras novelas do livro, a ver se poderia servir Você com quaisquer "extras", fui foi reler
pela não-sei-que vez "Il Duello" : que, Você sabe, foi o primeiro texto meu traduzido,
tradução que deu origem, digo, que fez explodir minha admiração, cada vez mais
aumentada, reconfirmada, exata. Pois, olhe, desta vez, ainda gostei mais. Lei è il vero
diavolo ! Acompanhei tudo, exultei com suas soluções, sutis, sempre ótimas, com a força
sustentada das frases, com o vocabulário (!!!), com a riqueza, com as aliterações (!), com a

60
arguta lucidez seletiva - que faz com que Você, em hora e de modo acertadíssimo, sabe
escolher se põe o nome indígena da árvore ou opta pelo genérico (!!!); por tudo, enfim.
Acho a sua tradução do "Duelo" simplesmente milagrosa. É a única tradução em que nem
um tico ou átomo do original se perde, nem por "evaporação" obrigatória, mas, antes, se
prestigia e se reforça. Você é o homem capaz de traduzir qualquer poesia. Deus é grande.
*
Recebi uma carta da Editora - por sinal, a primeira que é assinada pelo próprio
Feltrinelli, pois até aqui só me correspondi com a Sra. Xenia Schereschewski ou com
Valerio Riva. Veja :
"Egregio Sgnore,
è da molto che non Le scrivo, assorbito nel lavoro quotidiano della Casa Editrice. Ma
ciò non significa affatto però che i miei collaboratori ed io ci siamo scordati di Lei o del
Suo romanzo.
Al contrario. La traduzione non è ancora finita ma già ne abbiamo visto e consultato
alcuni capitoli. È ottima. Credo che avevamo ragione di penare tanto per ricercare un
traduttore non solo capace ma che riuscisse veramente a rendere efficacemente il Suo testo.
E credo che siamo veramente riusciti ad ottenere quello che cercavamo e desideravamo.
La pubblicazione del Suo romanzo, anche se ha dovuto essere rinviata per il ritardo
nella consegna della traduzione, avverrà nel '64 e contiamo di appoggiarlo in modo
particolare con tutti i mezzi a disposizione per farne un successo".
Não é? E então?
*
Eles estavam sempre querendo o "Grande Sertão : Veredas", escreviam-me insistindo
a esse respeito. Faz muito tempo, eu já estava desembaraçado da Mondadori (que só queria
se fosse "toda a obra"), e deixei de atender a outras editoras, várias (Bompiani, Einaudi,
etc.) - porque preferia ficar mesmo com a Feltrinelli... mas deixando o assunto "debaixo do
balaio"... et pour cause... Mas, agora que Você acabou o "Corpo de Baile", respondi ao
homem entregando-lhe o "Grande Sertão : Veredas"... desde que BIZZARRI o traduza. Fiz
mal ?
*
Outra vez, tenho de agradecer a Você a correção de erros, incrustados no texto desde
a 1ª edição. De fato : o "Leal" entrou por "Soprado" (que é o certo), pág. 74 ; e o Polvilho
deve ser sempre Joaquim (se puder, corrija a pág. 195 ; se não, não fal mal - ponha o nome
que ficar mais adequado em italiano. Obrigado.
*
A respeito do "Coco" : ótimo. (E até que não xingo). Gostei.
*
Quanto à nova edição do "Corpo de Baile", Você deve de estar certo. Também, não é,
como Você - lindamente com o Palante, diz - não é definitiva. Talvez, mesmo, venha a ser
peculiaridade curiosa do livro a façanha de sair cada edição de um jeito. Só mais esta
aventura, dele, captando novos leitores. Aliás, o título de "Corpo de Baile" persiste. O livro
continua.
Agora, para a edição italiana, tudo fica, a este respeito, a ser decidido entre Você
(meu autorizado Representante, com ampla e firme procuração) e a Feltrinelli. Na
Alemanha, creio que eles vão fazer em dois volumes, como a nossa 1ª edição.
[Acrescentado a mão] Da minha confiança - absoluta - Você não se livrará, jamais.
*

61
A ordem das estórias, para a edição italiana, Você também é quem, por mim,
escolherá. Qual? "...Será, por acaso, aquela que pensa o seu terrível-temível tradutor e
amigo?" - Você diz, numa frase que relampejou ante meus olhos, como algo de
extremamente importante e prometedor. Pois, digo : é justamente ESSA, a ordem que não
sei ainda qual é, mas que me agradaria - e aqui voto por ela ! (Naturalmente, sei que Você
deixará o "Campo Geral" como primeira da fila, abrindo o livro).
O deslocamento que se deu, para a 3ª edição brasileira, foi "provisoriamente"
necessário. No caso da "Cara-de-Bronze" passar antes de "A Estória de Lélio e Lina",
houve, talvez, um disturbiozinho cronológico : mas, quem-sabe, mesmo, ele não venha a
ficar interessante ? De qualquer modo, a edição é também um pouquinho "experimental".
*
Já está à venda a nova edição (3ª) do "Grande Sertão : Veredas". Mas não recebi ainda
os "meus" exemplares. Só por isto é que Você ainda não recebeu o SEU. Acho que ficou
bonita. Não houve nenhuma modificação no texto.
*
Não sei se já disse a Você que a tradução para o alemão do "Grande Sertão : Veredas"
acaba de ficar pronta, já me telegrafaram a boa notícia. O livro deve sair na Alemanha ainda
este ano.
Pronta, também, a tradução francesa do "Grande Sertão : Veredas". Também espero
que possa sair em Paris ainda em 1964.
*
Bizzarri, as notas (tantas vezes tolas, podendo parecer indiscretas ou presunçosas,
incompletas no sentido, pernósticas, etc.) que vão indo daqui, são só para Você,
confidenciais, para seu uso. Mas, para qualquer uso, "transformador", que possam ter para
Você.
Quando terminar - e já está terminando... - esta nossa viagem companheira, este
dialogar de cartas, a que tão bem me acostumei, a gente vai ter saudades e sentir falta. Que
iremos fazer ? Você já imaginou, Você, esvaziado, de repente, deste pesado e forçoso
trepidar de tarefa, sem ter, diante, este tipo de dificuldades para brilhantemente vencer ?
Bizzarri, que é que, depois, Você, Você vai fazer ?
*
A januária já estaria aí com Você, como um dia estará, só ainda não sei quando, não
fosse o cuidado que a gente tem de ter na obtenção da melhor, genuína e supra, capaz de
não desmerecer uma fama grande e justa, nestes tempos de falsificação e comercialização
indisciplinada e gananciosa. (A gente põe num copo, com pedaços de gelo, fica para mim
muito melhor que o uísque). Beberemos à saúde de tudo, de Diadorim, Otacília, Riobaldo.
Até outra, com forte abraço
do seu
Guimarães Rosa.
[acrescentado a mão]
P.S. - Será também um pouquinho de covardia... ou é mesmo só confiança e admiração,
como acho, - o que vejo que estou, no mais íntimo, desejando : que o livro, em italiano,
tenha um tanto mais de Bizzarri e um tanto menos de Guimarães Rosa !?

20

62
São Paulo, 1 de fevereiro de 1964

Meu caro Guimarães Rosa,

Recebi, no dia 27 sua carta de 20 de janeiro (esta chatice businessrana torna-se


necessária por causa dos imprevisíveis do correio).
Nesta vida, graças a Deus, além dos grandes, há também os pequeninos mistérios,
engraçados. Caso Feltrinelli. Nem uma página da tradução de Corpo de baile ainda saiu de
minhas mãos (a não ser o bendito "Coco", que só mandei para V.). Que diabo foi que
Feltrinelli, seus consultores leram? Mentirinha de editor. Ou será que meus poderes são tão
fortes que já conseguiram transmitir mediunicamente trechos da tradução para o
subconsciente editorial?
Bom, o primeiro volume já está todo em ordem. Mas ainda não o despacho. Não só -
como sertanejo que me tornei - espero a oportunidade de um portador de confiança, mas
também estou ainda com algumas dúvidas. Pode até ser que eu não agüente, e acrescente a
esta carta mais uma pequena procustiada. Mas, em todo caso, há o problema geral da
apresentação. Independente do contrato com Feltrinelli (pelo qual me comprometi a
traduzir a obra como está) e agradecendo a sua confiança em considerar-me seu "autorizado
representante" junto ao editor italiano, eu acho oportuno manter a ordem original. A
"minha" ordem, afinal, é apenas mera sugestão do itinerário crítico, e poderá surgir só na
devida sede, isto é no ensaio que um dia vou escrever sobre V. (e Deus sabe, até aquele dia,
quantas vezes vai mudar). Tudo, portanto, vai acompanhar fielmente (ao menos nas minhas
intenções) a edição original. Só duas mínimas, mas importantes modificações, V.
permitindo: o título da primeira novela transformado simplesmente em "Miguilim"; e o
"Coco" (ah, volubilidade do Bizzarri) na epígrafe geral do livro, com embaixo
simplesmente a "rápida explicação" e não a tradução da gostosa nota original. Por
escrúpulo, fiz a nota como V. sugere. Fui ler, como abrindo o volume pela primeira vez:
Plotino, Ruysbroeck, Coco e nota. Não gostei. Quero dizer: a nota, com o seu humor e tudo,
funcionaria, a meu ver, se o "Coco" fosse, como tinha inicialmente programado, epígrafe da
terceira novela, já no corpo da obra, o leitor já conhecendo o Chico, e outras coisas do
sertão. Mas lá, no átrio da obra (que ainda é mata virgem para o leitor), precedida por
Plotino e Ruysbroeck, me parece que não: me parece que a simples, quase fria, indicação
documentária contribua de forma interessante a reforçar o humor do texto do "Coco",
realçando o valor de contraste-analogia com as citações filosóficas. Aqui vai anexo, para
que V. possa comparar e escolher, o "Coco" (ligeiramente modificado num verso) com a
nota, como eu não gosto. Comparando e decidindo, não esqueça a colocação e a função do
"Coco" como epígrafe geral, e com tais vizinhos. Desculpe; velho professor é mesmo bicho
chato.
Agora, aqui vai um pedido. Me comove seu permanente entusiasmo, me envaidecem
suas apreciações, agradeço o carinhoso intuito de me animar, mas, por favor: que tal a gente
não falar mais em "Il duello"? Esquecê-lo? Ameaça de dar-me complexos. Confesso que no
momento, me dá até raiva. Pois, aquela tradução foi feita gostosamente, com calma, quase
brincando; e Corpo de baile, ao contrário, me obriga, há sete meses, a viver no preceito da
afobação. Você, com a sua filosofia moral da não pressa e da alegria, deve entender meu
sofrimento e minha angústia. A mais, sempre fico desgostoso com a simples idéia de
comparações. Aquele era riachinho montano, nenhum milagre que suas águas

63
permanecessem limpas e claras, borbulhadas de luz; este aqui é um bruto de um rio
amazônico, cheio de tudo. Tamanho e densidade têm suas exigências. Você já imaginou um
São Francisco feito de água mineral Caxambu? Que horror! (Mas, afinal, pode ser que a
raiva que me dá "Il duello" tenha um pouco de sentimento de culpa e antecipado carecer de
desculpa; o homem é bicho danado; melhor não esmiuçar o assunto).
Sua carta levanta mais dois assuntos. Um é rápido, claro, evidente, por si
silenciosamente assentado desde o começo: o caráter todo confidencial do nosso diálogo. O
outro assunto é enorme. Só nomeá-lo, me assusta. Vamos deixá-lo para depois?
Estava esquecendo mais uma coisa, importante e urgente. Com a tradução, devo
mandar ao Feltrinelli - segundo o contrato - os dizeres da parte interna da capa, ou orelha,
ou como se chame; há algo que V. gostaria que fosse mencionado? Se sim, me diga (sempre
superconfidencial). De fato, eu conheço bastante - "I suppose" - do Guimarães Rosa
escritor; nada ou quase, da história do escritor. Também, V. concordando, eu penso propor
ao editor: 1) um rapidíssimo prefácio: nada de ensaio crítico, apenas duas ou três
pagininhas de orientação à leitura, uma espécie de introdução prática à geografia poética de
Guimarães Rosa; 2) um "glossário". Aqui o problema se revelou complicadíssimo; fiz um
levantamento das palavras não traduzíveis (daqui a minha insistência a respeito de nomes
de plantas não dicionarizadas); passou de 350 fichas, outros tantos verbetes. "Glossário" tão
graúdo, numa obra de ficção, me parece pouco viável, até talvez inconveniente. Penso
portanto reduzi-lo a algumas palavras temáticas, que exigem ampla explicação, e aos
termos que não tenham já no texto elementos essenciais para uma identificação genérica. O
que acha?
Por hoje é só. Vou entrar na luta do segundo volume. Um abraço fraternal.

E.B.

XX

Rio, 7 de fevereiro de 1964

Meu caro Bizzarri,

Recebi, ontem, ao fim da tarde, a sua, do dia 1º, e me alegrei com as vivas notícias.
Obrigado. Mas tenho de responder depressa, por causa dos procustos, assim este bilhete vai
fraco e rápido. E, pois:
"chifres agamelados" (p. 273, 1.9 última) : o "boi gamela", ou com "chifres
gamela", ou "agamelados" - é o que tem os chifres grandes, ou pelo menos de bom
tamanho, e se arqueando cada um deles para a frente, em plano horizontal, com as
respectivas pontas quase se tocando, ou, pelo menos, apontando uma para a outra. O
resultado dessa conformação dos cornos é que eles parecem formar um desenho redondo,
qua, ao capiau, lembra uma gamela ou uma bacia.(Mas, se Você puser ou deixar
"incrociati", dá no mesmo, e eu acho bonito, ótimo).
"Gombê" (o Placidino) - Não tem referência específica. Mas, mais ou menos
conscientemente, ao escolher-lhe o apelido, devo ter atendido ao quid de frouxo, mole,
cômico, simplório, que há nesse nome de GOMBÊ - talvez por associá-lo mesmo ao
"gombô" ou "quingombô" (quiabo), e a um brinquedo de meninos: o "Maria Gombê"
(brinquedo de "esconder", em que a gente, antes, diz ao "pegador": - "Maria Gombê, Maria

64
Gombê, fecha seus olhos, que eu vou me esconder!...); mas, mesmo "em si", o nome não
tem carga burlesca ?
"barra" - "barra" é mesmo a simples junção de dois cursos d'água : ou quando um
rio ou córrego ou riacho recebe um afluente, ou quando um desses entra num lago, ou no
mar, ou quando há confluência de dois rios, etc. O lugar se chama "a barra". O rio que cai
no outro : "faz barra" nesse outro. O barra-a-barra é quando um entra noutro pouquinho
antes deste último desembocar num terceiro (diz-se, também : três-barras, e "Três-Barras"
é usadíssimo como topônimo, TRÊS BARRAS era a fazenda de meu bisavô Francisco de
Assis Guimarães, fazendão imenso, vetusto, antiga sede de sesmaria, hoje dividida em
umas 30 fazendas, ohimé, alheias...); também se diz três-rios. Tá?
***
Agora, o "quebra-coco" (i.e., uma dança boba, sertaneja). O nosso COCO, já até
agora tão bem sucedido. Porque a tradução ficou magnífica, acho, e a mudança de "gallina"
por "pollanca" *e etc.,* não o desmereceu. Mas confesso que gostei muito, também, da
nota vera. Agora, partamos o assunto em pedacinho, para a gente poder atinar melhor com a
solução :
1) - O que eu acho é que, só com a "rápida explicação", dá-se uma espécie de ruptura,
um "deslocamento", na apresentação, na entrada do livro. Porque a explicação é do
tradutor, funcionando à moda ou guisa de uma nota de pé-de-página.
2) - Assim, pensei uma sugestão conciliatória, em duas modalidades :
a) Você põe a "nota traduzida", e com uma chamada ou estrelinha, conduzindo a uma
nota de pé-de-página, que será a "rápida explicação" ;
b) ou Você põe a "rápida explicação", mas com a chamada ou estrelinha, e a nota de
pé-de-página será a "nota traduzida".
3) - Também, podemos voltar à idéia de pôr o COCO epigrafando a 3ª novela.
4) - Como a sua grandeza é feita também muito dessa meticulosidade escrupulosa (de
homem de sensibilidade extraordinária, e, não menos, desconfiado como um mineiro do
Oeste de Minas, mais desconfiado, ainda, que um sertanejo do Norte de Minas, dos
campos-gerais...) talvez Você passasse a apreciar mais sua tradução se lhe aplicasse alguns
"ornatos" gráficos. Por exemplo : pôr CANZONE DI FESTA assim em versais ou
versaletes ; pôr, alternadamente, as alcunhas em grifo e em normal (entrariam em grifo
Ciccio Strazia-Violino... Ciccio del Nord... Ciccio della Rita) e idem para as designações de
lugar ; ...frazione del-l'Alzaia... Valle dell'Alzaia).
5) - Se bem que, como "estrangeiro", sem saber direito o italiano, sem ter para tanto
olho ou ouvido bem viventes, digo que me deliciei com ela. Adorei a sutileza feliz de
"Strazia-Violino" e "Strascina-Cioce", por exemplo. Se Você permitir, sugeriria apenas
mudar-se "-Violino" para "-Viola", a bem do ritmo (o italiano não tem pejorativo para
"violino", como o nosso sinônimo, arcaico ou arcaizante, e roceiro, rústico, "rabeca"?).
Valeria, mesmo, mudar-se o instrumento : "Strazia-Corno" ou "Suona-Corno", por
exemplo. (Um provérbio italiano, que acho formidavelmente delicioso é : Per un
contadino, tanto fa suonare un corno, come un violino...) Também, não sei porque, me
agarrei ao cômico de "Ciccio della Signora Rita". Enfim, porém, Você é quem pode julgar,
é claro, por dez mil motivos, óbvios.
ATENÇÃO ! : Neste instante, acabei de mostrar nosso COCO a uma meia-italianinha,
brasileiro-genovesa, que se deliciou com sua leitura. Ela - Heleninha Tuccimei, neta do
Ministro Bayão - "adorou" também a NOTA traduzida, achou gostosíssima.
***

65
Claro que acho bom Você mandar à Feltrinelli o livro na ordem da edição original.
Apenas, não tenho idéia de como eles vão preferir lançar o livro, etc. Nem sei se na Itália
preferem editorialmente livros grossos (Alemanha) ou finos (França) ; e, mesmo isso, varia
com a época ou fase, e, naturalmente, com o conteúdo e apreço do livro. Mas, estes, são
problemas deles. Tudo o que Você diz está certo.
***
O título "MIGUILIM", para "Campo Geral", não é mau, e sei que Você já "campeou"
muito, a este respeito. Você, também aqui, é que pode julgar, do ponto-de-sentir do leitor
italiano. Se o nome agrada, por si. Se o título da primeira novela, de livro tão grosso,
cifrando-se num nome, apenas, não "restringe" o interesse, dando idéia de histórias "muito
separadas" uma das outras. Concordarei, com Você, sem arrependimentos.
***
Sobre os dizeres da "orelha" da capa, gratíssimo a Você, pelo que me pergunta. Mas,
não sei, acho que Você, hoje em dia, sabe melhor do que eu mesmo o que eu poderia achar
para nela figurar.
O "rapidíssimo prefácio" - notável idéia.
***
Acerca da excessiva massa de nomes de árvores e plantas, eu também já pensara
nisso. Glossário enorme, desses, sufocaria tudo. (A não ser que, depois e fora do Glossário,
lá no fim, em letrinhas miúdas, viesse esse apêndice botânico, só para satisfação e
curiosidade de alguns, e funcionando como atestador da rigorosa "acurácia" do Tradutor e
do Editor). (Assunto, pois, a ser conversado entre ambos, se for o caso). Assim, a idéia do
"Glossário" "reduzido a algumas palavras temáticas, que exigem ampla explicação, etc". - é
a que me parece acertada e imodificável. Aprovadíssima, pois.
***
Desconfiadíssimo, Você reage se encolhendo, aos meus aplausos e entusiasmo. Mas,
que vou poder fazer ? Nunca pense que concordo por concordar, por pragmatismo, por
"passar por cima" de certos aspectos e assuntos, ou por filosofia minha (da cordialidade
universal), ou por diplomacia reles, etc. Não. Tudo peso e levo em conta, nesta nossa
violenta e dialogada aventura, digo, façanha. Mas... E então!?
***
Sobre outras coisas, não falo. Não posso. Non audietur... non loquor... Mas, pelo jeito,
sei que não é preciso. Meu grande aliado, pro ou contra Bizzarri, é BIZZARRI, mesmo.
Deixemos o capim crescer...
*
Com o melhor e sempre abraço
do
Guimarães Rosa.

21

São Paulo, 17 de fevereiro de 1964

"E poi l'affetto l'intelletto lega"


Dante, Paraíso, XIII, v. 120
Meu caro, grande e paciente Amigo,

66
Apareceu um providencial portador, e assim lá se foram as primeiras 525 laudas, isto
é as primeiras cinco novelas de Corpo de baile. A afobação serviu também para resolver o
quebra-coco do "Coco", ameaçando de se tornar verdadeira peteca. Resolvi o caso
consoante o seu desejo: que é justo, honesto, legal etc. tenha toda prioridade. Teria gostado,
imenso, convencer-me que essa é a solução ideal; e Deus queira mesmo que seja. Mas,
honestamente, não consegui, embora não querendo ser "discordioso". Peço perdão. Mas
acabei achando graça na estória: cada um firme na sua opinião, mas carecendo, para total
felicidade própria, obter a aprovação do outro. Afinal de contas - magia do sertão ou feitiço
do dito coco - cada um de nós queria, como o Ciccio della Signora Rita, o pé e o sapato. O
que raramente é possível. E o meu diabinho - malicioso, talvez, mas nunca maldosamente -
me soprou a explicação, que vai na epígrafe desta carta, com as palavras do Pai Dante.
Agora, um assunto urgentíssimo. Fui - nem sei bem porque - relendo o contrato com
o Feltrinelli e descobri que estou comprometido a fornecer ao editor "un cenno
biobibliografico sull'autore ed uno critico-pubblicitario sull'opera tradotta; ciascuna di tali
note dovrà occupare circa due pagine dattiloscritte". Agora, eu posso resolver sozinho, é
claro, as duas laudas da nota critico-pubblicitaria, mas para preencher duas laudas de bio-
bibliografia completa preciso mesmo (agora é a minha vez!) da sua "ficha", com todos os
possíveis dados: data e lugar de nascimento, estudos, atividade profissional, ingresso na
carreira, etc., e também a bibliografia completa, com todas as traduções já publicadas ou
em via de serem publicadas. Me permito pedir urgência, pois - Deus ajudando - aos
primeiros de março tudo deveria estar em ordem para o despacho definitivo.
Um grande abraço

E.B.

XXI

Rio, 25 de fevereiro de 1964

Meu caro Bizzarri,

Sua carta é uma delícia, de verve e de espírito alto. Merecia resposta direta ; mas, ai-
de, Você falou em "urgentíssimo", e eu, que já trabuquei a manhã toda para poder fornecer
a bagagem informativa, tenho agora de disparar, de jato, este torto bilhete, para não perder
o correio e não aumentar o atraso. Mas, fique ele entre "parênteses", falaremos mais,
depois.
E veja se a coisada serve. Corri, demais, não pude caprichar em resumir os dados, ou
escoimá-los. Já tinha pronta a cópia de um "Curriculum vitae", só depois foi que a achei,
assim ajunto-a, também, ainda que redundantemente. Deus que nos ajude.
Ri, bem, do COCO, do Chico e de nós dois. Espero que Você tenha mandado as duas
notas, uma em pé-de-página. Foi ? Assim, ambos teremos sido atendidos. Alegria e
harmonia.
Agora, uma pergunta. Você lê alemão ? Se sim, diga-me, que mandarei emprestada
para Você ler uma vasta carta, que recebi de meu tradutor alemão, Curt Meyer-Clason, que
nela explica, interessantissimamente, as "coordenadas" que meditou, achou e seguiu, para
traduzir o livro. Tá ? Responda-me, homem. Obrigado.

67
Vôo. Corro. Precipito-me. Até logo.
Maior, grande, grato, festivo, muito amigo,
é o abraço
do seu
Guimarães Rosa.

BOBAGENS BIOGRÁFICAS

JOÃO GUIMARÃES ROSA, de duas famílias tradicionais mineiras, de fazendeiros


de gado, nasceu, a 27 de junho de 1908, em Cordisburgo, pequena localidade do centro-
norte do Estado de Minas Gerais. (Em 1908, Cordisburgo era um arraial, aldeazinha. Em
1940, foi feito cidade, como "município de turismo" - porque lá se situa a célebre Gruta do
Maquiné, grande e maravilhosa caverna calcárea, da qual Lund (Peter Wilhem, o naturalista
dinamarquês) disse não ter visto "nada tão belo, nos domínios da arte e da natureza").
Fez o curso secundário em Belo Horizonte, onde depois estudou medicina, formando-
se em 1930. (Em 1930, esteve, como voluntário, ao lado das forças revolucionárias).
De 1931 a 1933, foi "médico da roça", clinicando em outro arraial do interno,
Itaguara (hoje, cidade), na zona Oeste de Minas Gerais.
Em 1932, durante a revolução, serviu incorporado às tropas de Minas Gerais.
Em 1933, aprovado em concurso para médico da Brigada estadual, foi incorporado,
no posto de Capitão, ao 9º Batalhão de Infantaria, em Barbacena.
Em 1934, prestou concurso para a carreira diplomática. Aprovado em 2º lugar, foi
nomeado Cônsul de 3ª classe. (O gosto de estudar línguas, e a ânsia de viajar mundo,
levaram-no a deixar a medicina).
Em 1934 (julho) a 1938 (abril), serviu no Ministério das Relações Exteriores, no Rio
de Janeiro.
Em 1938, foi removido para o Consulado-Geral de Hamburgo (Alemanha), como
Cônsul-Adjunto. Naquele posto, permaneceu até 1942.
Em 1942, foi removido para a Embaixada do Brasil em Bogotá (Colômbia), como
Segundo-Secretário.
De 1944 a 1948, no Ministério das Relações Exteriores. (Chefe do Gabinete do
Ministro do Exterior, em 1946. Também em 1946, fez parte da Delegação do Brasil à
Conferência da Paz, em Paris. Em 1948, foi o Secretário Geral da Delegação do Brasil à IX
Conferência Interamericana, em Bogotá).
Em 1948, removido para a Embaixada do Brasil em Paris, como Primeiro-Secretário,
promovido logo em seguida a Conselheiro de Embaixada. Representou o Brasil em
Assembléias e Conferências da UNESCO.
Voltou em 1951 para o Ministério das Relações Exteriores, para de novo chefiar o
Gabinete do Ministro. Promovido a Ministro de 2ª classe, em 1951. Promovido a Ministro
de Primeira Classe (Embaixador), em 1958.
Atualmente, é, no Itamaraty, o chefe do Serviço de Demarcação de Fronteiras.
_________________________

Gosta de línguas (lê, mais ou menos, o português, francês, italiano, espanhol, inglês,
alemão; só com dicionário: russo, sueco, holandês), da Itália, de Dante, de pássaros, de
"aranciata San Pellegrino, stracotto alla Fiorentina (no "La Sostanza" ou "Troia", trattoria),
vinho rosso, conhaque, de Edoardo Bizzarri.

68
[Acrescentado a mão] Isto, aqui, é tudo brincadeira, heim !?*

22

São Paulo, 12 de março de 1964

Meu caro Guimarães Rosa,

Perdoe o atraso epistolar, mas estou mesmo de ressaca. Não é ressaca de farra, hélas,
nem de bebedeira. Para tanto, para a festinha celebradora, fico esperando a anunciada
januária. É só ressaca de sertão e de cansaço, ressaca de tão prolongado viver fora de mim,
procurando entender, procurando transmitir, sempre olhando o calendário como se olha o
relógio. Estou de fato arriado e preciso recuperar fôlego; não dou para conversa. Mas devo
cumprir, ao menos, obrigações noticiosas. E aqui estou, por isso; que V. não pense que seu
amigo se perdeu num sertão sem veredas.
Recebi o curriculum. Obrigado. Aliás, chegou no mesmo dia em que punha a palavra
fim na 776.ma lauda da versão definitiva. O pacote já foi para a Itália. Nestes dias, o
Feltrinelli estará de posse do texto completo.
Recebi Sagarana e Grande sertão: veredas, e me babei todo com as dedicatórias *.
Aqui vai só o registro que os livros chegaram, e um simples e sincero e meio envergonhado
"obrigado". Ainda não dou para os devidos agradecimentos, e tanto menos para desafios de
qualquer espécie. Protelamos.
Enfim, através da cortesia e da tradução oral de Flusser, tomei conhecimento da
compridíssima e muito alemã-nazirana carta do tradutor alemão. Fica feio, não acha?, fazer
apreciações sobre colegas. Mas uma coisa não posso silenciar: mais uma vez fiquei
sinceramente admirado com a sua bondade e carinhosa indulgência para com os seus
tradutores. Também nisso, V. é único.
Há muita coisa que preciso falar-lhe, mas com bastante vagar e sossego. Tenha
paciência. Entretanto, aqui vai um impresso dos cursos do Instituto: entre vários deslizes
topográficos V. poderá ver que já se tornou assunto de seminários de especialistas (?) em
São Paulo.
O grande fraternal abraço do amigo

E.B.

À maneira de colofão, entra aqui um verso do violeiro João Fulano, também


apelidado Gian dei Tali:
Dereré - per gli aspri campi
il limone è tutto in fiore.
Sprango a forza ogni finestra:
- Resta quieto! - dico al cuore...
______________________

(*) Seguiam três folhas, contendo a "Bibliografia", "Edições no Estrangeiro", "Edições em preparo, no
estrangeiro", "Livros em opção, no estrangeiro", e a cópia do outro "Curriculum vitae", com a anotação, a
mão, "(Acho-o muito calhorda)".
(*) A de Sagarana: "Ao meu amigo EDOARDO BIZZARRI - admirável homem e espírito, imenso

69
"Miguilim", o Tradutor maior, - com o grande, grato, perene abraço do Guimarães Rosa. - Rio, 1964". A de
Grande sertão: veredas: "Para EDOARDO BIZZARRI - enfrentador magistral de quaisquer montanhas,
atravessador de desertos, "rasos", "lisos", brejais e caatingas - estas 571 páginas, como um desafio afetuoso.
Mas, mais, o abraço e a grata amizade do Guimarães Rosa. Rio, 1966".

XXII

Rio, 7 de abril de 1964

Meu caro Bizzarri,

Desde sua carta, última, amiga, boa, data de 12 de março, muita coisa houve, além do
nacional movimentão. Andei doente, inclusive, e ando "perrengue", tirei dentes ; e ando
num trabalho durado. Agora, é a Mrs. de Onís, a traduzir ao inglês, para a Knopf, o
"Sagarana", quem me manda "procustos" - só para que eu não sofra demasiadas saudades
dos seus, dos nossos. Mas são saudades extrafortes, daquele dialogar fecundo e estimulante.
Acho que sou até capaz de empreender a tradução de algum livro italiano, por exemplo o
"Il Magnifico Lorenzo", para poder precisar de recorrer a Você.
Mas, sério, comoveu-me receber e ver o impresso dos Cursos do Instituto, com Vocês
guimarãesroseando, Você e Homero. Abraço-os. Ufano-me, entusiasmo-me, minha
humildade acaba levando-se à rasa e indo águas abaixo.
Mas, mesmo por isto, agüente, agora, a sua. A chegada de suas 776 páginas do
traduzido C. de B. à casa Feltrinelli, fez lá um reboliço. Nem tinham recebido ainda o
volume do "Grande sertão : Veredas", para opção, e foram mandando-me um telegrama,
querendo contrato. Em seguida, recebi carta, manuscrita, cordialíssima, do Egregio Signore
Enrico Filippini, que, pelo que vejo, é chefão lá, e que me diz :
"Le scrivo per dirle che in questi giorni ho ricevuto la traduzione di Corpo de Baile. La
traduzione è bellissima. Io non avevo ancora letto il suo libro, ora ne sono entusiasta. Ho
visto che avevamo in opzione Grande Sertão: Veredas, e oggi ha dato ordine di acquistare i
diritti. Spero che questa notizia possa farle piacere. Mi scusi se non le scrivo nella sua
lingua: farei troppi errori. Etc".
E, enquanto isto, no dia 3, quando maiores eram aqui a atmosfera militar e o
entusiasmo patriótico, chegou-me outro telegrama deles, insistindo : querem mesmo
contratar o "Grande Sertão : Veredas".
Já respondi, a telegrama e carta. Disse : "O fato de haver gostado do livro me
entusiasma, ao mesmo tempo que vejo confirmada minha opinião sobre o valor do
Professor Dr. Edoardo Bizzarri, admirável Tradutor". Etc. Grazie mile.
Agora, importante : 3 pícolas garrafinhas da januária devem ir para São Paulo, à sua
procura. Veja se gosta. Encomendei a um amigo meu, que veio de Montes Claros, de
automóvel, elas chegaram bem. Penso que gelada é sempre mais gostosa. É um pouco do
Sertão, em todo o caso.
E, meu caro e colossal Bizzarri, forte, grande, é o abraço
do seu
Guimarães Rosa.

[acrescentado a mão]

70
P.S. - O "Grande Sertão : Veredas" sairá ainda este ano na França, com o título de
"Diadorim". E, também este ano, na Alemanha, com o título de (!): "GRANDE SERTAO".
(Sem til).

XXIII

Rio de Janeiro, 8 de abril de 1964

Meu caro Bizzarri,

Ontem, escrevi a outra carta. Já era tarde. Deixei para pôr a carta hoje no correio. Ao
descer para o almoço, me esqueci de pegá-la comigo. Foi bom. Porque poupo selo... Porque
estou recebendo, agorinha, outra carta do Sig. Enrico Filippini, datada de 1 de abril. Veja :
"Chissà se ha ricevuto una mia piccola lettera di qualche settimana fa in cui le dicevo
di aver ricevuto la traduzione di "Corpo de Baile", fatta dal Prof. Bizzarri, e che ero
entusiasta sia del libro (che è già in macchina) che della traduzione? Nel frattempo ho
ricevuto dalla Olympio Editora Grande Sertão : Veredas. Ho detto alla nostra ottima
Gabriele Seelhorst di telegrafarle che desideravamo pubblicare anche questo libro. Spero
che il telegramma sia arrivato e che nessuna difficoltà si opponga alla firma del contratto.
Siamo impazienti di far conoscere al pubblico italiano la sua magnifica opera, e le dirò
anche che in questi giorni qui in Italia si parla molto di lei : i lettori vogliono conoscere i
suoi romanzi. Sono convinto che, appena avvenuta la pubblicazione, il consenso sarà
unanime. La presente lettera è determinata soltanto dal fatto che è nato in me il timore che
lei non abbia ricevuto la mia precedente, e inoltre che ci siano delle difficoltà per il
contratto su Grande Sertão". Etc.
E então, Bizzarri, meu caro ? Está vendo, agora, como eu sempre estive certo, no crer
e saber e afirmar que :
BIZZARRI é o maior ?!...
Fraternal abraço
do seu
Guimarães Rosa.

23

São Paulo, 2 de abril de 1964

Meu caro Guimarães Rosa,

Os acessórios da tradução também se foram para a Itália. Minhas temerárias andanças


pelo sertão chegaram ao fim. É o momento da conversinha fraternal - balanço, exame de
consciência, confissão - antes que a fogueira se apague.
Primeiro: com toda sinceridade, peço-lhe desculpas. A tradução - acho - saiu,
comparativamente, boa. Duvido que outro tradutor teria enfrentado a tarefa com maior
dedicação, esforço, estudo, vontade de acertar. Mas aqui vem o diabo. Duvido, também, e
muito, que a tradução tenha saído como eu almejava, como eu queria mesmo que fosse.
Excesso de ambição? Certo, presumi de minhas forças quando, num impulso de amizade e

71
otimismo, aceitei os prazos do editor. Agora, Você e Miguilim e eu sabemos que nada é
pesado demais, "se a gente puder ir devagarinho como precisa, e ninguém não gritar com a
gente para ir depressa demais". Mas aí estavam os prazos editoriais, o calendário gritando
constantemente comigo; minha luta principal se tornou a luta contra o tempo: a falta de
tempo, a falta de sossego. Claro que, de tudo isso, eu mesmo sou o único culpado: devia
saber, prever, calcular certo, exigir as condições necessárias. O que adianta, agora,
penitenciar-se? A afobação me deixou atordoado e cheio de perplexidades: o que não é do
meu feitio, e me perturba muito. Sobretudo, me deixou insatisfeito, descontente, até com
sentimento de culpa. O amigo perdoará, se não consegui dar-lhe tudo o que eu desejava.
Segundo: é justamente por esse sentimento de culpa (certo ou errado que seja), por
esse ressábio amargoso de dúvidas e incertezas depois de oito meses de correria angustiada
e de trabalho insano, que não estou em condições de pensar em outras façanhas sertanejas.
Independente do cansaço físico, do esgotamento nervoso, e da atrapalhação em que se
encontram todos os meus afazeres, o que mais pesa é que eu preciso reencontrar a certeza
de poder fazer algo que realmente, plenamente, me satisfaça, para que eu possa entrar em
novo perigoso empreendimento.
Terceiro, e last but not least: preciso protestar ao Amigo toda a minha gratidão - não
só pela colaboração cordial e paciente, pela palavra sempre animadora e carinhosa, com
que me acompanhou nestes meses, mas também pelos momentos de alta poesia que o
estudo atento de seu livro me proporcionou. Presente raro, que abria no chapadão
angustiado da labuta diária claras, luminosas veredas, e nelas fui entrando, esquecendo o
tempo e descobrindo novas dimensões do ser. Como retribuir tão precioso presente? Como
agradecer?
Com esta interrogação, se apaga sem resposta a conversa do vaqueiro amador que
abandona o campeio. Conversa besta, talvez, custosa, atrapalhada e confusa. Mas eu
precisava fazê-la, para sair sossegado deste sertão. Sei que Você entenderá, e não estranhará
nem mesmo o meu pedido final:
- Tomo a bênção, Mestre Guima.

E.B.

XXIV

Rio, 27 de abril de 1964

Meu caro Bizzarri,

Sua carta (2.IV), tão grande, tão bela, deixa-me em silêncio, tocou-me fundo. Que
mais vou dizer? Só que aquele nosso vivo contacto de espírito, a forte correspondência de
trabalho, fica para mim, em si, uma aquisição, de não me esquecer. Terei, sempre, e em
tudo, de agradecer a Você. A bênção foi recíproca.
E, agora, este fato, notável, curioso, auspicioso. Na data de 14 de abril corrente, dia
de São Tibúrcio, às 13 hs. 5', o correio aqui (Agência Itamaraty) me entregou um envelope
seu, com o rótulo de ENTREGA RÁPIDA. Abri... e li: "De volta de Roma - onde enfrentei
um calor horroroso em companhia de Miguilim e Manuelzão"... etc. Assustado, olhei então
a datação, em cima: "São Paulo, 18 de agosto de 1963!"... Pois era a sua, aquela, a que eu
não tinha recebido mas de que Você me falara. Na qual Você fala dos espantos e problemas

72
iniciais na tradução. E me traz parabéns pela eleição para a Academia. Enfim. O mundo é
longo e exato. Gratíssimo, pelas felicitações, meu caro Bizzarri. E não culpemos o correio ;
porque ele está conosco, na nossa linha. Assim:
"Agora, Você e Miguilim e eu sabemos que nada é pesado demais, "se a gente puder
ir devagarinho como precisa, e ninguém não gritar com a gente para ir depressa demais".
BIZZARRI.
Frase que não fecha para a gente a janelinha da esperança.
E, por falar : no dia 20, assinei o contrato do "GRANDE SERTÃO : VEREDAS" com
a Feltrinelli. Deixei aquele povo todo - Riobaldo, Diadorim, Nhorinhá, Zé Bebelo, Otacília
- desamparados no ermo do Liso do Sussuarão.
Este ano, teremos em França o "Diadorim" e na Alemanha o "GRANDE SERTAO"
(sem til).
Você, fica em meu coração.
Forte, alegre, invariável, o abraço amigo
do
Guimarães Rosa.

P.S. - "IL TEMPO", de Roma, em 27.XI.56, publicou destacada e longa


correspondência, de São Paulo, de ADRIANO GREGO (sabe Você quem é?), sobre o
"Grande Sertão : Veredas", sob o título : "La Scoperta di un capolavoro letterario che solo i
Brasiliani potranno leggere". Entre muita coisa bonita e elogiosa, dizia, por exemplo:
"Orbene, chi scrive ha l'impressione che i critici brasiliani l'abbiano azzeccata e che si
possa veramente festeggiare la nascita di un'opera narrativa potente e rivoluzionara :
qualche cosa como l' Ulysses di Joyce". (...) "... una lingua bizarra, disarticolata, a volte
sincopata ; a volte sonora, di uma efficacia sconcertante"... (...) "Purtroppo questo libro non
sarà mai tradotto in nessuna lingua straniera, nemmeno in quelle di uguale ceppo latino".
(...) "I lettori italiani dovranno dunque crederci sulla parola, perché questo capolavoro non
potranno leggerlo mai". (...) "Il Guimarães Rosa è medico e pare si voglia dedicare, adesso,
alla carriera diplomatica. Ha una faccia chiusa e contegnosa. Quando lo vedi, lo
scambieresti per un notaio di provincia".
Mandei o recorte ao Enrico Filippini, i.e., à Feltrinelli.

G.R.

24

São Paulo, 27 de abril de 1964

Meu caro Guimarães Rosa,

Viva! A januária chegou. Ótima. Me lembra o sertão pelo qual tanto andei, ao longo
de suas trilhas. E, sobretudo, me lembra o Amigo; o que a torna muito mais preciosa e
apreciável. Vou bebê-la com muita parcimônia. Em ocorrências especiais. Obrigado.
Agora, vamos aos negócios. Aliás, antes dos negócios, um pedido. Você recebeu
minha carta de 2 de abril? Eu recebi as suas de 7 e de 8, sem nenhuma menção daquela. O
que me deixa aflito. Será que, com as perturbações políticas e postais deste abril, se
extraviou? Era uma carta importante, melhor, necessária, ao menos para mim.

73
Os negócios. Amanhã vamos iniciar os seminários sobre Guimarães Rosa. Programei
cinco seminários, segundo a ordem que V. encontrará no material impresso que aqui vai
anexo. O 5º e último seminário será no dia 26 de maio. Que tal ressuscitar em parte a nossa
velha idéia, e V. aparecer aqui, convidado do Instituto, e presenciar o encerramento? Os
tempos e os espíritos não andam muito propícios para grandes festas e banquetes; e nem V.
nem eu, acho, gostamos muito destas cerimônias. Penso que, eventualmente, a entrega da já
vetusta condecoração poderá ser feita mesmo no encerramento dos seminários. E em lugar
de um banquete em homenagem, com adesões até de gente cacete, poderíamos fazer um
jantarzinho entre poucos amigos. Que tal? Desta forma, V. também fica mais à vontade na
eventualidade de um imprevisto de última hora. Combinado? Tudo poderia ser resolvido
em dois dias, 26 e 27. Mas melhor ainda se V. decidir ficar mais tempo, e descobrir que o
clima de S. Paulo é ótimo.
Sei que em Milão estão imprimindo o livro, depressa. Sei também outra coisa, que
penso se realizará nos próximos meses e será uma surpresa bem agradável para Você.
Portanto, não vou dizer nada. Digo só que este 1964 será na Europa o ano de Guimarães
Rosa.
Desculpe as atrapalhações datilográficas. Um grande abraço

E.B.

XXV

Rio, 13 de maio de 1964

Meu caro Bizzarri,

Também eu, estava mesmo pensando muito na nossa justa, simpática, inadiável, mas
demoradamente adiada "sessão" aí - grata a mim por tantos motivos, que são um só. Me
achava relapso e egoísta, de ficar tão apático e calado a respeito ; mas não esquecido. E ia
escrever a Você sobre a mesma - só que Você foi mais ligeiro do que eu.
Assim, li sua carta, e ergui, alto, o coração. Atrapalhado e atolado em porção de
coisas rasas, como vivo sempre, entrei imediatamente a me puxar para fora da inércia
básica e a desenredar-me, com gosto, a fim de me ver livre e pronto para os 26 e 27.
Consegui, primeiro, vencer a relutância, em mim cada dia mais forte, em comparecer a
momentos em que se trate de "João Guimarães Rosa", de berlinda (o belo e generoso
SEMINÁRIO). Procedi à necessária e adequada preparação psicológica. Apresso um
horrível tratamento de dentes, de modo a ter a boca razoavelmente consertada em tempo
oportuno. Acelero, também, a não menos hedionda arrumação da "Declaração" do Imposto
de Renda. Ultimei o nosso vasto Relatório anual do meu Serviço de Demarcação de
Fronteiras. Atropelo, vivazmente, o quanto posso, outras providências do serviço
burocrático. E tudo, com a melhor vontade de alegria e alegria de vontade.
Mas, veja, Bizzarri, parece até mandinga, caborje, coisa-feita. Olhe que demorei um
pouco a dar a Você a resposta, porque queria ter a certeza de tudo desanuviado e certo,
arrumado, positivo. E, já, agora, vêm as dificuldades. Que seriamente ameaçam, ainda,
desta vez, para o fim deste mês, o nosso projeto, tão bonito, tão simples, tão na harmoniosa
ordem dos bons sentimentos de afeto ; principalmente, como Você me explica, com um
aspecto desta vez mais discreto e "casalingo". Receio, mesmo, muito, que não haja jeito.

74
Você terá de acreditar em mim, que não posso explicar tudo já, por miúdo. Direi, só, que a
peia da situação se prende ao atual momento nacional, de reorganização, reexame, balanço,
retomada de passo, quanto a quase tudo, da parte do Governo, nos assuntos públicos. O fim
do mês, eu não terei a pequena disponibilidade desejada, temo. Dois, três ou 4 dias
(contando a viagem, que eu prefiro não-avião), só. Mas, ainda assim. Questão de quadra.
(Chefio um serviço de brilho nenhum, mas muito estendido e metido em coisas, com casos
na mesa. Temos duas Divisões da Comissão Brasileira Demarcadora de Limites, uma a
cargo de um General, outra de um Coronel. Temos assuntos graves, como, por exemplo, o
que Você deve ter visto dele menção, freqüente, nos jornais: o do Salto Grande das SETE
QUEDAS. E, principalmente, é o próprio Itamaraty, que, no momento, entra em fase de
aguda vigilância a acontecimentos possíveis). Pode ser que, naquela semana final do mês,
eu tenha de virar-me, aqui, para coisas e tantas. Pode ser, até, que não seja preciso nada,
tudo correndo na plácida calma de Deus, e eu arrependido de não ter tido mais corajosa
diligência, e ido, e abraçado Você, e conversado, "milhões", sobre pilhas e coisas,
vivamente guardadas para conversas. Porém, o que falta, é que, por enquanto, eu não possa
ter certeza, a paz de espírito, a sã e indispensável tranqüilidade, a ausência preventiva e boa
de desassossegos. E, então ? Dentro de quantos dias eu teria de dar aviso a Você, em
qualquer eventualidade ? Estou pessimista. Há pelo menos, no momento, 80% de
probabilidades contra. Meu coração, quase sozinho, é que ainda está a favor. De qualquer
maneira, escreva-me dando o número de telefone de sua residência aí, por si acaso.
Se não for possível, entretanto, como até agora me parece, quero, porém, que Você
saiba que, a nossa cerimoniazinha, forte e sincera, tem de ser feita, ainda este ano, ainda
nos meses próximos, se Você achar bem, fim de junho, julho, ou agosto. Confio em que. É
até uma vergonha que, nós dois, tão bons e honestos filhos-de-Deus, estejamos deixando
um assunto, tão vivo e nobre e nosso, "criar barbas" e formar depósito. De minha parte,
prometo, estarei, daqui por diante, sempre a lembrar o assunto a Você. Temos de focalizá-
lo, relembrá-lo, mastigá-lo e cozinhá-lo, a partir de agora, em cada carta, daí e de cá. Tá?
Vamos ver. Com amore.
Não sei se já disse a Você como me entusiasmou, e, principalmente me comoveu, a
iniciativa dos "Seminários". Tudo direto, grande, me pegando em cheio. Vocês são
enormes. Você, you. Direi mais ?
Que coisa, também, é aquela, que Você profetiza, ou prenuncia, para os próximos
meses, e "bem agradável" que será para mim ? Só mesmo se se refere à TRADUÇÃO
italiana do "Grande Sertão : Veredas" ??? !!! Setenta pulgas, por causa dita, se acham atrás
de minhas orelhas. Oh, Bizzarri.
Esperemos o que é que os próximos dias permitem, dizem, trazem.
Mas, enormemente, grato e em afeto, é o abraço
do seu
Guimarães Rosa.

25

São Paulo, 18 de maio de 1964

Meu caro Guimarães Rosa,

Nada de ficar aflito, para novo eventual adiamento da nossa sessão. Assim como eu

75
tinha programado a coisa, V. poderia até dar-me uma confirmação telefônica na véspera: o
meu telefone de casa é 51-4253. A confirmação é só para que eu possa informar ao menos
os seus e meus amigos, e salvar-me da acusação de ter guardado, escondida, só para mim, a
sua vinda. O que seria imperdoável egoísmo.
Mas, se houver dificuldades de qualquer espécie, ou atropelos, ou falta de serenidade,
repito, não fique aflito. A nossa reunião não atende a exigências de cerimonial, mas ao
prazer de uma demorada e serena conversa, sob o signo exclusivo da poesia. Um dia ou
outro, aqui ou no Rio, o momento próprio para tanto (sem interferência de dentista e de
semelhantes tristezas) terá que chegar. Tiraremos desforra.
Desculpe a afobação, mas preciso despachar esta com urgência, para que V. possa
recebê-la dentro da semana. Um grande abraço

E.B.

XXVI

Rio, 23.V.64

Meu caro Bizzarri,

Recebi sua carta, de 18 : e foi ela a única coisa boa e confortadora havida este mês.
Tão afetuosa compreensão em palavras tão sinceramente simples e simpáticas, era o de que
eu estava mesmo precisando. Por isto mesmo, estimulou-me. Dei novo balanço - em mim e
nos fatos, possibilidades, situação ambiente. Quis, quero. Senti-me até em estado de quase-
culposo. Tentei tentear. Mas, ai, a estrada, estradinha, era parecida mesmo com aquela do
Miguilim, indo para a roça do Pai. Vejo, já agora, que não posso. Mesmo com o plausível
dia-santo na 5ª feira, o que, em tempos normais e outros, ajudaria a um prolongamento
ameno da estada aí, com vivo proveito, com calma alegria. Agora, porém, não. A quadra
ficou proibitiva, péssima. Um dia, te conto.
Mas, obrigado. E fiquemos de "carreira atada". Como eu disse na outra carta. (Em
geral, a ocasião melhor é numa 5ª e 6ª feiras, em meio de mês. Dá mais jeito, mais folga).
Mas falaremos disto.
Agora, corro, também, por causa do correio. "Fazendo feio", meio desenxavido, ainda
atordoado a meio. Apenas, isto sim, com o melhor, grato, amigo abraço

do seu

Guimarães Rosa.

26

São Paulo, 22 de junho de 1964

Meu caro Guimarães Rosa,

Sua última carta chegou, pontual e exata, no dia do encerramento dos seminários; os
quais - entre nós - grande coisa não foram, mas engraçada sim: Vilem Flusser, Pedro Xisto

76
e eu, cada um puxando V. para o seu lado e falando, na mesma língua, linguagens
diferentes: uma conconversa danada que nos deixava, a todos, nervosos. Afinal, o que mais
agradou a assistência foram os trechos do "Recado do morro", que eu, com a proverbial
esperteza mediterrânea, mandei Olga Navarro ler.
Não escrevi, pensando, querendo mesmo, fazer-lhe uma surpresa: estar no Rio, para o
dia 27, e dar-lhe, no seu aniversário, o mais fraternal dos abraços. Infelizmente, todos os
meus programas se embaralharam; e minha ida não é, não será possível.
Assim, tenho que confiar meus votos e meu carinho às extravagâncias do correio.
Confio que as impertinências dentárias e outros pequenos aborrecimentos destes últimos
meses sejam já coisas do passado, longínquas, esquecidas; e lhe desejo, do fundo do
coração, tudo o que é de bom e lhe agrade: sobretudo aquele inteiro de serenidade, que V.
bem merece pela muita poesia e ternura que doou ao mundo, e de que V. precisa para
continuar doando.
Com este voto, vai o abraço fraternal e amigo

E.B.

27

São Paulo, 10 de novembro de 1964

Meu caro Guimarães Rosa,

Obrigado pela lembrança e a dedicatória *, sempre generosa e exuberante. Miguilim e


Manuelzão chegaram aqui, de braço dado, bem apertados no encaixe miúdo, franzinho. Me
deixaram perplexo. Quase que não os reconhecia, em tamanho tão pouco sertão, tão pouco
Guimarães Rosa. Deus queira que o editor esteja certo e a saída seja enorme. Afinal, como
dizia Maquiavel, "l'effetto scusa il fatto". Para a quarta edição, porém, vou sugerir um
volume único, bem grande: tipos grandes, grandes margens brancas, preço grande. Pois o
livro é grande, o sertão é grande, Guimarães Rosa é grande.
Assim - grande e caro - em único volume, me escrevem que vai sair, ainda neste mês,
Corpo de baile na Itália. Dizem que o volume é mesmo lindo. Estou certo que vai ser um
estouro. Ao que parece, estão tomando as melhores providências para um bom lançamento.
Mas V. já deve estar a par de tudo, voltando agora da Europa.
A quando um passeio a São Paulo? Vamos festejar o Guimarães Rosa italianizado?
Entretanto, o abraço augural do ex-tradutor e sempre amigo

E.B.
_____________________________

(*) E.B. tinha recebido o 1º volume da nova edição de Corpo de baile com a dedicatória: "A
EDOARDO BIZZARRI, com a admiração, a amizade, a gratidão do seu Guimarães Rosa. Rio, 1964.

XXVII

Rio, 16 de dezembro de 1964

77
Meu caro Bizzarri:

Faz três dias, que eu ainda não estava em poder de escrever a Você, porque o vibrar
era forte demais, eu me achando em ebulição, erupção, emoção - terremoto de alegria.
Arrivou o "CORPO DI BALLO". Possante, no aspecto físico, uma beleza. Li-o, todo,
devorado meticulosamente. Deslumbrado. Linha por linha, eu entrava, sem sair, em outro,
grato, mas alto êxtase. O que Você fez, supera tudo. Você conseguiu - a mim, que já
esperava o máximo ! - surpreender-me. Sua tradução é f a b u l o s a.
Não posso ainda explicar. Não tenho palavras. Havemos de, livro em punho, ilustrar
tudo, por entre exclamações de prazer e aplauso. Agora, ainda não posso. O volume está
aqui. Reabro-o, no momento, em qualquer página, qualquer parágrafo, qualquer frase - e
dou gritos de marinheiro descobridor de novas terras, de sertanejo na seca achador de
outras águas. Aleluia. No geral e em cada detalhe, Você foi imenso. Sou inteligente, porque
nunca me enganei, creio que o Anjo-da-Guarda me guiava. E chego a ter medo, para trás :
imagine, se não tivesse sido Você o tradutor... Basta dizer que, pelo menos duas das estórias
(a de Lélio e Lina e a do Cara-de-Bronze) me parecem agora, sim, verdadeiramente
escritas, levadas, fiel e muito, acima do original. Mas, o livro inteiro, apresenta-se-me em
outra luz, represtigiado. A "Décima do Boi Bonito" fez-me rir com lágrimas. Miguilim
visitou-me outra vez. O "Buriti" me pareceu coisa grande. Soropita ? - nem digo. Tanto "O
Aviso do Morro" e o "Manuelzão" parecem ter sido feitos para o italiano. Você é um
MONSTRO. Você entrou em todas as células do livro, arejando-o sem o amarrotar,
trazendo-lhe vida e "rugiada". (Que estupendo. Até a língua italiana, de que eu já tanto
gostava, abriu-se agora para mim em pétalas mais aos milhares, em dimensões novas, como
gruta de Aladino !) Depois, o tom, o vigor, a movimentação elástica, os ritmos, a energia
geral e sustentada - Você milagrosamente, atendeu a tudo : mas mais, mais para diante,
mais avante, mais à frente. Fico tonto.
Li, lince, sou leitor terrível ; tanto mais, neste caso. E não acho falhas. Num livro
enorme no tamanho, em suas lautas 743 páginas, só 3 mínimos pequeniníssimos enganos,
sem mica importância, desses que até o próprio autor, caso fosse traduzir o livro, poderia
cometer. Mesmo assim, motivados. Mesmo assim, com resultados válidos, talvez até mais-
embelezadores. Sobre a "mula" (pág. 83, última linha e 84, 1ª), que é, na região, qualquer
bloco, limpo, de quartzo, cristal-de-rocha, guardado para aplicação terapêutica em casos de
contusões ; palavra não dicionarizada ; e a própria construção da frase, com aquele
"branquinho" depois da vírgula, induzia ao engano ; além de que, relendo o trecho no
original, e considerando o "tom" e o modo do "Narrador", afirmo : Você só poderia ter
compreendido como compreendeu, também eu teria feito assim, batata !; e não estou
querendo isentar Você a todo custo, não, digo-o o duro de sincero ; e não ficou mal, até pelo
contrário. Depois, um "cachucha" (Pág. 158, linhas 16/17 de baixo, do original, 2ª edição) :
palavra não dicionarizada, ouvida na região, mas termo coloquial vago, raro, que eu mesmo
não sei se significa "petulante e cômica" (moça, mulher, menina) ou "boneca tosca", ou
"fruta enrugada" ou (mulher) "desfrutável, ridícula, simplória"; e que ficou
interessantíssimo, sugestivo, como Você pôs (tomando a palavra no sentido em que figura
nos dicionários : de "una danza spagnola") - adorei, acho que, em quaisquer novas edições,
devemos conservar assim, com o placet do autor, foi um engano feliz. E "ariri", não
dicionarizado, mas é a mesma coisa que "iriri", ou que "IRERÊ" (Dendrocygna viduata),
marreca-piadeira, chega-evira, marreca-viúva. Você traduziu por um lindo "i pappagalli

78
blu", e fica perfeito, porque há também os papagaios-azuis, e que também devastam os
milharais. (Ainda há que houve um erro, mas do original (2ª edição, pág. 145, linha 9) :
onde está "braças-e-meias", devia ser "braças-e-meia" - como indeterminado, vago, mágico,
algébrico (x braças + 1/2), contrastando com o lógico, real, estricto, de "a menor, de 3
metros", i.e., "de três metros a menor". Mas não tem a mínima importância.
A única coisa que, em havendo outra edição, talvez conviesse mudar, é no
GLOSSÁRIO, sobre "Mocotó" : que é, principalmente, a pata do bovino, sem o casco,
usada como alimento. Você nunca comeu mocotó a portuguesa ? Gostoso. E a geléia, doce,
de mocotó, coisa sublime, mas rara de se achar por aqui, difícil de se fazer boa, entram até
canela e vinho do Porto em sua confecção.
De onde se vê que não há Tradutor formidável e exato como Você, nem haverá
Tradução melhor que a sua. Fico tonto. Os versos, as quadras, meu Deus ! E o milhão de
soluções, sempre felizes, as sutis correspondências procuradas e achadas, os prodígios, de
mágico, sim, inacreditáveis. A dosagem exata, o nenhum desperdiçar, a corajosa ousadia
sempre que possível, mas aproveitando o extremo limite do possível, a sabedoria, a cultura,
o bom-gosto, a riqueza vocabular, a agudez, a eficácia. Sempre, a poderosa lucidez. A
inteligência. Você recria, reinsufla, remagnetiza, reimanta. Bem, depois, direi mais. Uma
coisa, porém, já é certa : hei de reler, sempre e sempre, este "CORPO DI BALLO". Para me
animar, reanimar, nos momentos de depressão. Para me sentir absolvido, aprovado e
premiado. Bizzarri, obrigado !
*Abraço,* imenso e votos de Feliz Natal, grande Ano Novo!
do seu
Guimarães Rosa.
... e continuarei.

P.S. - O finzinho de ano é sempre terrível. Este, porém, mais. Estou grudado aqui,
além do mais, porque a Mrs. de Onis, que teima, com o editor, em dar por pronta a tradução
do "SAGARANA" para o inglês até 31 de dezembro, tem de mandar-me ainda uma porção
de consultas - mas muitíssimo mais abundantes que os nossos saudosíssimos "procustos" -
e eu tenho de ficar aqui, "no toco", às ordens dela.
Mas, Bizzarri, reabro o livro. Não posso me desgrudar dele. Você me espanta e
espanta e espanta. Graças a Deus ! Esquecia-me de dizer : as adaptações dos nomes-
próprios, de pessoas e lugares, sempre magníficas ! E não é que Você conseguiu pespegar
até aquele lúdico e prosapioso "Adino : Ai, Se, op!" - !!! E : "Il bosco, vocetta ammansata,
aeiouava" - !!! Agora, compreendo o trabalho terrível que Você teve, naqueles ferozes
meses, compreendo sua exaustão e depressão, o cansaço de "sugado". Você deu tudo. Mas
conseguiu tudo. Venceu, como eu mesmo não pensava possível. (As noitadas do Chefe
Zequiel, soberbas, impecáveis, até MELHORADAS !) Mas, aqui fico. Senão, não paro. Até
a outra. Pois :
"Rosmarino in riva al rio
con la mano fece addio"...

28

São Paulo, 30 de dezembro de 1964

Meu caro Guimarães Rosa

79
Ganhei, com a sua carta, meu melhor presente de Natal. Você bem sabe: o campeio
temerário e frenético deixou-me não só "sugado", mas realmente insatisfeito, com a mágoa
de não ter correspondido à tarefa na medida que eu queria. Agora, o fato de V. estar
contente com a tradução, é consolo grande.
Ainda não vi o livro. Recebi só o "antipasto": a gostosa brochurinha de "Dão
Lalalão", com que o editor oportunamente procurou estimular o apetite dos críticos
peninsulares. Mas não tive o tempo (ou, talvez, a coragem?) de voltar a ler o meu
Guimarães Rosa italianizado. Agora V. - bondosamente assinalando alguns deslizes me
acorda para nova tarefa, urgente, pois estou certo que a segunda edição não vai demorar. Há
de se ter também erros de tipografia, ou melhor, equívocos do linotipista e do revisor:
abrindo, casualmente, a brochura, logo deparei com dois. Assim que chegar o livro, criarei
coragem e entrarei na revisão.
E agora um pedido. Sei que V. não gosta de conferências, palestras, discursos, etc. -
está certo, absolutamente certo. Mas, acontece que 1965 é o ano do VII centenário do
nascimento de nosso comum amigo Dante. Não quer fazer um sacrifício em homenagem a
ele? Eu cogito organizar aqui em São Paulo, sob o patrocínio do Instituto, não um curso
(que é coisa enfadonha), mas um ciclo de depoimentos por parte de grandes figuras das
letras e da cultura do Brasil: cada uma falando à vontade, fora de qualquer caráter
programático, sobre o seu Dante: depoimentos pessoais, confissões e confidências, nada de
palestras eruditas. Os depoimentos seriam recolhidos e publicados num "Caderno" do
Instituto, a sair no segundo semestre. O ciclo iria de fins de março a fins de maio ou
princípio de junho; nesse período, V. poderá escolher o dia que for mais conveniente,
possivelmente uma quinta-feira. Que tal? V. está disposto a aceitar? Espero muito que sim,
pois sem V. o ciclo ficaria mutilado, falho.
O Natal já passou. Aqui vão o abraço e os votos de felicidade para 1965

E.B.

XXVIII

Genova, 28 de janeiro de 1965. *

Bizzarri, caríssimo !

Sou eu mesmo, estou aqui para o Colóquio do COLUMBIANUM. Eu, a rigor, não
poderia vir, por muitos motivos; mas, insistiram, tremendamente, a Embaixada em Roma e
o Departamento Cultural do Itamaraty me pressionaram. E eu vim. Mas tudo só se decidiu
no ultíssimo momento, quase que só resolvi em cima da partida do avião, às carreiras. De
modo que não me foi possível passar uma palavrinha de aviso a Você, conforme queria e
devia. Perdoe-me! E estou aqui, pois; e não me arrependo. Gênova com pioggia e freddo e
vento, eu com pressão arterial alta, e tudo, até dor-de-barriga. Mas não me arrependo. Ao
contrário. Adoro sempre a Itália. E tudo está sendo útil. Passei um dia em Milano,
Feltrinelli me pegou no aeroporto, com fotógrafo, deu-me um belo almoço de homenagem,
em sua casa, com críticos, escritores, jornalistas. Depois, um não parar de entrevistas,
levaram-me à televisão, parecia um filme de Fellini. Aqui, conheci muita gente, italianos e
franceses, magníficos. Nosso "Corpo di Ballo" está fazendo sucesso de venda, e os artigos

80
começaram a aparecer, excelentes. Creio que vencemos - e Valerio Riva também o diz. Há
entusiasmo. Mas, o que me alegra, antes de tudo, meu caro Bizzarri, são os louvores, fortes,
exaltados, à sua portentosa, formidável tradução. Todos a elogiam, longamente. Giancarlo
Vigorelli, Puccini, o mestre UNGARETTI, e muitos outros, cujos nomes não guardo,
porque aqui tudo é alegre tumulto e brabíssima confusão. Fico comovido. Você deveria
estar aqui, para ouvir. "Agradecem" a beleza, a força, a exatidão, o colorido, a linguagem
alta e vera, a beleza extraordinária da sua tradução. Consideram-na "veramente
miracolosa". E eu exulto. Porque, desde o começo, do antes ao depois, jamais duvidei,
nunca tive um minuto de dúvida. Eu não. E estou feliz. Estou cada dia mais agradecido a
Você, Bizzarri, admirando-o mais e mais. Sinto-me o Miguilim, ante o seu ARISTEU. Há
muitíssimas passagens em que eu teria de dizer a Você o que Boris Pasternak escreveu ao
tcheco Hora, que lhe traduziu genialmente os poemas : "Come se non fosse mai stato
pubblicato ciò che Le è servito come originale, e io l'avessi portato dentro di me soltanto in
modo incerto, come una traduzione qualsiasi". Dizem que o livro não parece traduzido,
antes escrito diretamente em Italiano, tão colossalmente bom, objetivamente, seu escrito.
Você não imagina como a minha gratidão é grande. Ela cresce, sem esbarrar.
E grandes a admiração, o afeto e o abraço amigo
do seu
Guimarães Rosa.
___________________

(*) É esta a única carta inteiramente autógrafa, em papel timbrado do Hotel Savoia
Magestic, de Gênova.

29

São Paulo, 18 de fevereiro de 1965

Meu caro Guimarães Rosa,

Acho que nunca tradutor algum encontrou autor tão generoso e amigo como Você. E
tão carinhoso. Sua carta de Gênova - escrita no meio de tanta balbúrdia e "freddo" e
"pioggia" e "vento" - me deu uma imensa alegria.
Agora, penso que V. já deve estar de volta ao Rio, e já refeito da viagem. E portanto
me animo - pois preciso mesmo - a voltar à carga com o meu pedido. Não me xingue.
"Vagliami il lungo studio e il grande amore / che m'ha fatto cercar lo tuo volume". A citação
de Dante cai direitinho, pois justamente dele se trata. Eu preciso que Você venha a São
Paulo, no dia 25 de março, para abrir o nosso ciclo intitulado "O meu Dante". Como disse
em minha carta anterior (deve ter-lhe chegado nas atrapalhações de véspera de embarque),
o Instituto realizará de 25 de março a 10 de junho, todas as quintas-feiras, às 21 horas,
reuniões nas quais escritores e estudiosos falarão cada um sobre o seu Dante, isto é,
relatarão aspectos e episódios da própria convivência e do próprio colóquio com o Poeta.
Nada, portanto, de palestra erudita, que exige leituras, consultas, meditação, mas apenas
umas páginas autobiográficas, simples e autêntico depoimento pessoal. Os depoimentos
serão recolhidos e publicados em um "Caderno" do Instituto. Já aderiu muita "gente boa";
mas, sem a sua participação, sentir-me-ei realmente perdido; pior ainda, abandonado pelo
amigo. Em fins de março, a temperatura é ótima, em São Paulo. Qual melhor oportunidade

81
para a visita tantas vezes programada e adiada? E para tornar o Bizzarri seu eterno
devedor? Havendo motivos de força maior, poderá, é claro, marcar outra quinta-feira no
mês de abril. Mas, pelo amor de Deus e de Miguilim, aceite o convite do Instituto, confirme
a vinda e a data, e faça mesmo o possível para que seja o 25 de março.
Só há duas semanas recebi o "opus magnum". Fiz uma rápida revisão. Além dos
quatro equívocos por V. assinalados, corrigi mais duas ou três impropriedades, e achei um
bom número de erros, devidos ao tipógrafo e ao revisor italiano (alguns atrapalhando
bastante a leitura). Mando hoje mesmo a relação das emendas ao nosso Valerio Riva, para
aproveitamento na segunda edição, e aqui vai uma cópia para Você.
Desculpe a insistência, e aceite os votos e o abraço amigo de

E.B.

XXIX

Rio, 7 de março de 1965

Meu caro Bizzarri,

Desolo-me de ter demorado tanto esta resposta, à sua, estimadíssima, datada de 18 de


fevereiro. Pois, Você, meu caro Bizzarri, é para mim uma das pessoas mais importantes,
Você ocupa um dos primeiríssimos lugares, na minha gratidão, admiração, esperança e
amizade. Mas, por outro lado, Você não faz, não, não imagina, não pode fazer idéia do
estado em que tenho vivido, arrastado, premido, abafado, atormentado, sob o peso de
tamanhas coisas, que quase não agüento. Tudo isto, com pouca saúde, pressão alta, não
podendo cortar nas horas de sono, não podendo atropelar-me nem angustiar-me, me
contendo, me amparando a mim mesmo, segurando-me contra as sacudidelas. Assim foi
que regressei de Gênova : a viagem, se, quanto à parte literária, foi próspera e ótima,
esbandalhou-me bastante, no físico. O Embaixador em Roma, meu velho amigo, insistiu
para que eu ficasse em Roma pelo menos uma semana, preparou-me apartamento
magnífico de hóspede, na Embaixada, programou passeios e divertimentos úteis, mandou-
me buscar no aeroporto. E eu, que adoro Roma - e Roma estava primaveral e belíssima - só
pude ficar com ele menos que um dia. O Embaixador em Lisboa, antigo chefe meu,
muitíssimo amigo, telefonou e telegrafou e escreveu, para Gênova, convidando-me a passar
uma semana em Lisboa, como seu hóspede - e a convite de várias entidades culturais
portuguesas, e do meu editor, Souza-Pinto. Tive de recusar. Achava-me na "última lona". E,
pois bem, ao chegar aqui, fui "engolido" por uma montanha de tarefas. Entre elas, as
incessantes consultas (quase palavra por palavra) da minha amiga e tradutora do "Sagarana"
para o inglês. Ela é admirável pessoa, adorando meus livros; mas, ohimé, não é Bizzarri...
Tenho o trabalho no Itamaraty, de 10 da manhã às 7 da noite. E a correspondência com as
Editoras estrangeiras (assinei contrato com a editora Zora, de Zagreb, para a edição do
"Grande Sertão : Veredas", em sérbio-croata ; com a Albert Bonnier's de Stockholm, para a
sueca ; o tradutor espanhol me escreve ; e o alemão, querendo que eu leia as provas do
"Corpo de Baile" - tive de recusar-me, não posso) e vêm pessoas, querem autográfos,
querem ver-me, conversar bobagens literárias, e tudo. Fico abalado, combalido. A coisa é
dura, Bizzarri, é duríssima.
Ainda agora, estou vou-não-vou a Paris, onde se dá, nesta semana, o lançamento do

82
"Grande Sertão : Veredas", pela Albin Michel. A Embaixada de lá quer que eu vá, o
Departamento Cultural aqui me incita e intima de ir ; reluto. Mas, se se positivar o convite
do Departamento Cultural do Quais d'Orça, não poderei fugir, principalmente se eles
mandarem logo as passagens de ida-e-volta pela Air France, como ameaçam fazer. Ando
tonto. Tudo é bom, ótimo. Mas terrível.
Tudo para demonstrar a Você que não poderia ir aí a 25 deste, como meu coração
quereria e me parece mais que um dever. Como é que eu poderia recusar a Você qualquer
coisa, neste momento, e coisa tão sã e plausível, e simpática e honrosa? O que há, porém,
Bizzarri, é o diabo. (Desculpe-me botá-lo assim encostado a Você). Principalmente, por
outro motivo. Principalmente, por se tratar de coisa a ser depois publicada. A
responsabilidade é real. Eu não teria tempo ? mas tempo a gente estica, fabrica, arranja, faz.
Eu não teria cabeça. Soterrado, agora, debaixo de coisas tão diversas, como iria eu
improvisar sobre a grandiosa figura do Poeta ? É terrível.
Acresce, ainda, impedimento pior. Você sabe, entre as coisas que me atormentam,
está, vultosamente, o assunto da posse na Academia Brasileira de Letras. Fui eleito em
agosto de 1963, o fardão foi oferecido pelo Estado de Minas Gerais, já está pronto e pago, e
eu ainda não posso marcar a data. Nem pude pensar em começar o discurso. Não tenho
cabeça, nenhuma folga. A respeito, fala-se, inventam razões, especulações, criam teorias.
Amarram-me a cara, interpelam-me, fazem blagues, alguns realmente se ressentem. O pior,
porém, é que começo a me sentir culpado, ingrato. Porque o discurso será para retratar e
exaltar a pessoa do meu grande amigo e ex-chefe, João Neves da Fontoura, e sinto-me
urgente devedor do que estou deixando longamente de pagar, de cumprir. Com tudo isto,
imagine, se eu fosse agora a São Paulo, para falar em sessão dantesca ? Me linchavam,
moralmente. Não me perdoariam. E, será que eu me perdoava ? Perdoe-me Você, sim ?
Está Você vendo ? E, note, no meio de tudo isto, minha atividade própria literária está
bloqueada, e as coisas de dentro, querendo sair e fazer-se capítulos e livros, mais ainda
contribuem para aumentar minha angústia. Debato-me. Tenha Você pena de mim.
Deixe-me para uma das sessões finais, no fim do ano, no encerramento. Até lá, penso
poder ter-me livrado um pouco, melhorado, desoprimido. Terei tomado posse, ou, pelo
menos, marcado a data. E combinaremos a ida com o nosso antigo projeto, de
condecoração e entrega, com alegria. Isto, sim, será mais fácil, mais ameno, menos
esmagador. Você sabe, eu não improviso coisas escritas, sou lento, atormentado, sou o
antijornalista. Tenho, apenas, boa vontade. E preciso respirar ainda um pouco, ganhar pé,
sair do brejo. Sei que Você está comigo, me compreende. Tornarei a escrever.
Mas, creia. Tudo aqui é sinceridade. Estou triste. Sinto-me agora culpado perante
Você, o que é o fim - o "phym". Redimir-me-ei, entretanto. Não duvide.
Vão aqui uns recortes. Três. O do Porzio e o do Vigorelli, peço que Você mos restitua,
pois só tenho estes. (O do Porzio é do número da revista OGGI saída na semana de 22 de
fevereiro). O do Prof. Jannini, não precisa restituir, tenho outro.
Importante. Com o meu semi-pseudo-italiano, o Porzio não me entendeu bem. Assim,
de fato, há um engano na data da fotografia minha da "copertina", mas o ano certo é 1952
(e não 1956, nem 1959). Se Você escrever à Editora, rogo retificar. Também o farei.
Igualmente, quanto ao assunto da palavra "vereda", o que falamos foi só sobre a etimologia
da palavra, do latim. Sua explicação, no GLOSSÁRIO, está perfeita, a sua, de Você.
Desculpe-me.
IMPORTANTÍSSIMO. Continuo relendo o "CORPO DI BALLO". Continua a ser um
dos meus melhores consolos, que me levanta a coragem. Pois, de cada vez, gosto mais.

83
Maior gratidão ao meu Primeiro, ao meu Incomparável TRADUTOR. Você não sabe
quanto bem Você me fez e faz. Acabo canonizando-o.
***
Bem. Já está imensa, esta. Mas escreverei outras.
Obrigado, pela lista das Correzioni. Tudo exato, ótimo.
Maior o abraço, afetuoso, permanente,
do seu
Guimarães Rosa.

30

São Paulo, 13 de março de 1965

Meu caro Guimarães Rosa,

Graças a Deus, costumo ler o Correio da Manhã. Descobri, assim, que V. já está de
volta ao Rio, e anda almoçando com altas patentes. Isso é bom, às vezes, para o bem-estar
político, mas bastante perigoso para a saúde da alma. Tanto assim que V. acabou se
esquecendo dos amigos: não falo de mim (quem sou eu?), mas do outro, do maior, do
máximo, do Poeta - de Dante, enfim. (Ou será que V. não recebeu minhas cartas de 30 de
dezembro e de 18 de fevereiro?).
Brincadeiras à parte - o silêncio, depois da alegre balbúrdia mediterrânea, me diz que
V. deve estar cansado, talvez preocupado. E fico com remorso: o de ter eu acrescentado
mais uma às outras preocupações. E ao mesmo tempo me encontro numa pendulação
danada: de um lado, gostaria tanto de ter V. aqui, a falar sobre o "seu Dante" e prestigiar o
meu programa; de outro lado, não gosto, de forma alguma, de cacetear os amigos. Amigo é
só para dar alegria, não é? E então?
Então, aqui estou, para colocar o problema em termos de comum sossego. Se vir a
São Paulo e prestar seu depoimento sobre Dante deve custar-lhe transtorno e sacrifício
grande, prefiro mesmo renunciar à alegria imensa que me daria a sua vinda e a sua
colaboração. Mas se o sacrifício não for muito grande, venha. Marque uma quinta-feira
qualquer do mês de abril, e venha. Todo mundo aqui ficará feliz. De qualquer maneira,
escreva: dizendo "sim" e "quando", ou dizendo "não" - sem receio nenhum. Sempre achei
franqueza e compreensão prerrogativas da amizade. E uma e outra aqui vão com o abraço
amigo de

E.B.

P.S. - A carta que vai na folha nº 1 foi escrita sábado, dia 13, depois de muitas protelações; e
devia seguir no mesmo dia. Não foi, por falta de funcionário. E hoje, antes de despachá-la,
encontro no escritório a sua do dia 7 (que demorou bastante no caminho), com os recortes
(que devolvo já, apressadamente lidos, com medo de perdê-los - não sirvo para guardar
papéis -, e acrescento mais um, que me chegou casualmente às mãos).
A sua carta estava já, de antemão, respondida. Não precisava eu ser o TRADUTOR, para
saber o que se passava com Você. Está tudo certo. Fique sossegado e sem remorso nenhum.
Compreendo perfeitamente, embora triste: por Você, sobretudo - pois o vejo tão angustiado
e premido - , e um pouquinho também por mim, ou melhor, por Dante - pois o ciclo vai

84
terminar em junho, e o "Caderno" tem que sair dentro de um ano: e um e outro vão ficar
tremendamente desfalcados. Mas não quero que V. pense mais nisso. Esqueça
completamente o assunto. Afinal de contas, Dante, como V. sabe, é capaz de agüentar
qualquer contrariedade; e eu - que nada sou - me criei na sua escola, dura e serena.
O que importa, agora, é V. agüentar os repuxos da celebridade, as chatices das falenas e
todo o resto: não se deixar arrastar, e não esquecer que V. é, antes de mais nada, um
escritor, e ainda tem algumas palavras a dizer. O resto é ou acabará sendo silêncio.
O abraço sempre afetuoso e amigo de
E.B.

31

São Paulo, 15 de junho de 1965

Meu caro Guimarães Rosa,

Há tempo devia agradecer-lhe a remessa do segundo volume de Corpo de baile; e


agora do terceiro, sempre com carinhosas dedicatórias *. Mas nestas últimas semanas andei
atormentadíssimo. Culpa não só de Dante, mas especialmente de umas febres misteriosas e
mal-estares esquisitos, que complicaram bastante meus já atrapalhadíssimos dias. Parece
que já passaram.
Finalmente aqui vão, com os agradecimentos atrasados:
1 - os votos de felicidade para o seu aniversário: que lhe traga paz, e sossego, e
serenidade de trabalho;
2 - um artigo sobre Corpo de baile que V. talvez não tenha recebido. É o único
exemplar, mas pode guardá-lo, pois eu não presto para guardar papéis;
3 - uma lembrancinha à-toa, só para comprovar que não só de sertão e Dante vive o
seu amigo romano. *
No próximo dia 26, embarco para a Itália, na Alitalia. Ficarei em Roma - via Taro 25 -
desta vez sem Miguilim e Manuelzão, até fins de julho. Precisando de qualquer coisa, por lá
ou de lá, me escreva, sem receio.
O abraço afetuoso do velho e fiel admirador e amigo

E.B.
______________________________

(*) "No Urubuquàquá. No Pinhém - : "Para EDOARDO BIZZARRI, meu Amigo, meu tradutor, o máximo,
capaz de impossíveis - lembrança, homenagem, gratidão e afeto do Guimarães Rosa. Rio, 1965".
"Noites do Sertão" - : "Para o meu querido EDOARDO BIZZARRI, com o abraço maior, a constante
presença e lembrança, a gratidão maior que o sertão, do Guimarães Rosa. Rio, 1965".
(*) Trata-se do voluminho da Mirandolina, de Goldoni, na série do "Teatro Universal" da Editora Brasiliense.

32

São Paulo, 22 de junho de 1965

Meu caro Guimarães Rosa:

85
Mais uma. Esbarrei nela por acaso, num jornal cotidiano de Bolonha, que tem um
título engraçado de que V. deve gostar: "Il Resto del Carlino". A notinha não é grande coisa,
e não acrescenta nada às críticas já publicadas. Em todo caso, aqui vai para seu arquivo
(que deve ser monumental), com o abraço amigo de

E.B.

33

São Paulo, 24 de junho de 1966

Meu caro Guimarães Rosa:

Quanto tempo! Viver é não só negócio muito perigoso, como achava Riobaldo; é,
antes de mais nada, uma porcaria de atrapalhações, implicando continuamente com a gente.
E as poucas conversas gostosas acabam, assim, se perdendo. Que fazer? Imagino que V.
continue teimando em não vir a São Paulo. E pensar que, a partir de agosto, eu terei até um
teatro a teu dispor.
Em todo caso, aqui vão minhas lembranças, sempre fraternais, e os melhores votos de
felicidade para seu aniversário, e o grande abraço amigo de

E.B.

XXX

Rio, 21 de outubro de 1966

Meu caro, querido Bizzarri,

Você é : o invariável ; em tudo e por tudo. E, eu, quando ouso olhar para trás, para
estes próximos passados anos e meses, entro em pânico de remorso, remexo-me angustiado,
caio em escuros buracos de vergonha. Xingo-me de torpe, grosso, desatento e ingrato.
Fustigo-me. É uma tristeza. Há perdão?
Mas, Bizzarri, de meados de 65 para cá, houve tanta coisa, sobre mim, tanta carga !
Às vezes me desolo e reprovo, achando que sou o que os franceses dizem: une petite
nature. Tem horas, porém, que me consola pensar que até resisto bem, ao de fora e ao de
dentro - a ondas e enxurradas. Pois, você sabe que sou aqui o Chefe do Serviço de
Demarcação de Fronteiras ; e deve ter acompanhado nos jornais o palpitante caso de
divergência com o Paraguai, o assunto Sete-Quedas. Imagine, pois, o que comigo sucedeu,
de junho do ano passado, até julho deste. Foi uma absurda e terrível época, de trabalho sem
parar, de discussões, de reuniões, de responsabilidade. Várias vezes, tive de trabalhar aqui
no Itamaraty até as 5 horas da manhã... e comparecer no outro dia já as 9, para reuniões que
duravam o dia inteiro. Tudo isso, sob a circunstância de ser, entre os 80 milhões de
brasileiros, o que é pago para cuidar do assunto, debaixo do peso dele. E com a saúde -
como Você sabe. E com o visceral "medo de errar", a necessidade compulsiva de cuidar de
todos os detalhes, a lentidão meticulosa de mineiro da roça, de terra onde os galos cantam

86
de dia. Assim, fiquei fora e longe de tudo o mais, nem me lembrava que eu era Guimarães
Rosa, não respondi às cartas das editoras estrangeiras, perdi dinheiro, sacrifiquei
interessantes oportunidades, adoeci mais, soterrei-me. Aaaaaaaah.......
Ao amainar um pouco a situação, em maio/junho, respirei um pouco;
combalidíssimo, ajuntei meus cacos, fui procurar os médicos, fui benzer-me, tomei banhos
de imersão, de banheira, precisei até de ler, à pressa, um romance policial, comprei a
revistinha do Ellery Queen. Bem, e aí houve um intermezzo, agridoce.
Aconteceu que o P.E.N. de Nova York mandou-me convite telegráfico, pagas todas as
despesas, para eu comparecer ao seu Congresso. Aleguei, aqui, a impossibilidade de ir, por
causa do dito e safadíssimo Paraguai. Mas o Departamento Cultural fez pressões, disseram
que honra e vantagem eram para a cultura brasileira, etc. Relutei, até a véspera,
principalmente por causa da pressão arterial e outros distúrbios, a experiência da ida a
Gênova já me deixara assustado. Mas, como politicamente se deliberou que os assuntos
técnicos não se tratassem na reunião na Foz de Iguassu, a que deu a "Ata das Cataratas", e
que, portanto, até seria bom poder-se dizer que o Chefe do SDF estava tão longe ausente,
tive de tomar o avião e embarcar. De fato, adorei New York, dei-me bem com seu "fluido",
adotei-a. Também estive ligeiramente em Washington. MAS... como temia, a saúde não
suportou o vôo e etc. Tive até febre. Tive de desistir de aceitar o convite pago tudo por eles,
confortável e belo, de percorrer, em passeio, lugares bonitos - canyon do Colorado, Niagara
Falls, etc., e, principalmente, o que eu manifestara desejo de ter : ir ver os Peles-Vermelhas,
em suas reservas... Voltei, à pressa, cheio de dores físicas e morais.
E... aqui passei um mês de cama - é uma espécie de septicemia, de causa ignorada,
foco que ainda não se encontrou, deve ser vingança do diabo, que ataquei no "Grande
Sertão : Veredas". Agora, melhorado, entrei num tratamento que dizem que rejuvenesce
até : tomo sulfa (por sinal, uma sulfa italiana, pura) e vitaminas, indefinidamente. Agora,
me voltam as esperanças.
Programei novo modo de vida. Ascese, feroz. Comer pouco, não provar álcool. Não
ler jornais, nem livros, por ora. Escalonar os assuntos, metodicamente, taylorizadamente,
defender-me contra a angustiosidade de querer tudo bem feito, pôr coisas e casa e gavetas
em ordem, enfim. VOCÊ ENTRA NISSO, depois escrevo.
Agora, tendo escrito de jato, como quem lava a cara de envergonhado, vejo : COM
ESTA CARTA, despejei-lhe dose de chateação, nada mais. DE ACORDO COM AQUELA
DEFINIÇÃO : "Chato - é aquele a quem a gente pergunta Como vai ? - e ele responde
explicando...
Bizzarri, grande, grande abraço
do seu
Guim
arães Rosa.

XXXI

Rio, 25 de outubro de 1966

Meu caro Bizzarri,


(Continuação)

No programa de nova vida, miúda e exata, à Miguilim, como disse na anterior, Você

87
não foi esquecido. Pensei ; e se a gente consegue, primeiro, promovê-lo, na Ordem do
Cruzeiro, subindo-o um grau, mais que merecidamente ? Sempre se pode tentar, e então
ficaria tudo mais justo, e mais bonito.
E, assim, para começo de conversação reatada, pediria que Você logo me mandasse o
arrolado alinhamento de tudo o mais - tanta coisa - que Você e o I.C.I.B. fizeram, moveram
e idearam, a partir de 1961. Tá ? Sei que o caceteio e constranjo, com a pessoal
encomenda ; mas, gostarei bem de receber essa nobre matéria. (Sobre a tradução do
"CORPO DE BAILE", eu sei, e outras coisas, mas não todas bem, e, quanto mais
verdadeira e completa, a lista, melhor). Obrigado, meu caro Bizzarri.
Porque, no 1º semestre de 1967, impreterível e inadiavelmente, eu quero ir até aí,
empunhando a medalha e o diploma.
Até lá, ou, melhor, até outra, no intervalo, o
forte, melhor abraço
do seu
Guimarães Rosa.

34

São Paulo, 1 de novembro de 1966

Meu caro Guimarães Rosa,

Nonada. Autoxingamento? remorsos? de quê? e para quê? Imaginava - isto é, sabia


(pois, tal é a prerrogativa da amizade) - que Você andava num diabo de atrapalhações
(fardão inclusive). E eu sem poder fazer nada por Você: só acompanhá-lo, penalizado, de
longe, no meio de tantas angústias, e ainda com o peso das Sete-Quedas nas costas.
Acompanhei tudo, caladinho, um pio de cada aniversário, fazendo votos para que Você
ficasse livre de todo aborrecimento, e das chateações, as de fora e as de dentro (que também
incomodam bastante). Preocupado.
A carta de 21 de outubro, portanto, me deu grande alegria, com as boas notícias a
respeito da saúde (que é coisa fundamental) e seus propósitos de novo modo de viver. Até
envaideci ao saber que de alguma forma eu entrava nisso tudo.
Agora, a carta de 25 me pegou mesmo de surpresa. Vida miúda e exata, está certo:
mas para defender a sua serenidade, e seu trabalho de escritor. Acho que perder tempo atrás
de honrarias para mim, é miudeza demais. Mas não quero bancar o mal-agradecido: sua
lembrança e carinhosa intenção me comoveram. Aqui vão, portanto, em folha anexa, alguns
dados, com a exortação a não se preocupar muito com a coisa. Só se for para obrigar Você a
vir até São Paulo no ano próximo.
Nesse tempo todo, eu também tive minhas pequenas atrapalhações, entre as quais
duas hospitalizações com cirurgia, a montagem de uma sala inteirinha para música, teatro e
exposições (o Auditório Itália), e caceteações várias. Nem vejo, por enquanto, jeito algum
de entrar em novo modo de vida. Mas o meu dia também há de chegar; e então poderei
enfim escrever a minha sempre adiada, e bem revolucionária, interpretação de Guimarães
Rosa.
O abraço grande e sincero de

E.B.

88
35

São Paulo, 26 de dezembro de 1966

Meu caro Guimarães Rosa,

Em véspera de Natal, chegou-me - por carta de Valerio Riva - a proposta feltrinelliana


de traduzir Grande Sertão: Veredas. E eu que vivia sossegado, pensando que o caso já fosse
resolvido, e o volume prestes a sair! Mais ainda: o nosso Riva chega a perguntar-me
"dentro de quantos meses" posso entregar a tradução.
Mas vamos com calma. Chegou-me também a notícia de que a primeira edição de
Corpo di ballo esgotou, e já lançaram uma edição popular, utilizando as emendas que em
devido tempo assinalei.
Quanto à proposta, respondi com a carta de que anexo cópia. Peço perdão. Mas,
sinceramente, faltam-me tempo, fôlego, sossego e coragem para enfrentar tamanha
empreitada. Confio que Feltrinelli encontre, para Riobaldo, outra saída: melhor e mais
rápida.
Me lembrei, porém, de um velho projeto do Amigo; pensei que os italianos não
conhecem o burrinho pedrês, nem Lalino, nem Manuel Fulô; enfim... Bom, achei que podia
dar uma sugestão. Fiz mal?
Entretanto, com os melhores votos para 1967, o abraço amigo de

E.B.

XXXII

Rio, 7 de março de 1967

Meu caro Bizzarri,

A coisa vai indo. Apesar de ter tido de ir à Amazônia, a serviço, em janeiro, consegui
pôr mais ou menos em dia minha correspondência com as editoras estrangeiras e tradutores
- imagine, estava com atraso de mais de ano ! - e ainda uma porção de providências foram
tomadas, para limpar as gavetas e o espírito. Agora, não posso deixar de ir ao México,
convidado para tomar parte no II Congresso Latino-Americano de Escritores, viajo no dia
12. Mas volto antes do fim do mês... e recomeço a "Operação Liberação"...
Em todo o caso, e lutando minuto por minuto, não quero deixar mais tempo sem
resposta sua carta de 26 de dezembro (!). Conversar com Você, pelo menos, é um sincero
prazer.
Obrigado, pela notícia e pelo envio de cópia da sua resposta ao Valerio Riva. Quem,
melhor do que eu, compreenderia os motivos que Você expõe ? Bem gostaria, entretanto,
que eles insistissem, tomassem à carga, aceitando o prazo de dois anos. Antes dois anos
com Bizzarri que dois meses com qualquer outro... Vamos ver o que Deus resolve.
De qualquer modo, gostei também, muito, da outra metade da carta : a que se refere
ao nosso "Sagarana". Até agora, não recebi palavra do Riva, estou curioso de ver o que eles
aprontaram.

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Por tudo, saiba Você que a minha gratidão é viva, real e sempre aumentado o afeto.
Espero que agora esteja perfeitamente com saúde - eu não soubera nada daquelas
hospitalizações e cirurgia - : são meus fortes votos. Um como Você, precisava era ter a
saúde duplicada.
Até a volta, então, meu caro Bizzarri.
Com o forte, grato, abraço amigo
do
Guimarães Rosa.

36

São Paulo, 7 de agosto de 1967

Meu caro Guimarães Rosa,

Li, em Manchete, seu conto "Esses Lopes". Gostei muito. Mais ainda gostou do conto
minha esposa, Olga Navarro. Aliás, pensou que o conto poderia ser levado para o palco,
como peça curta com único personagem; e faria questão de interpretá-lo. Você autoriza?
Não basta. Estou pensando - há tempo - em um recital com peças, ou se Você preferir,
monólogos desse gênero: textos que reflitam aspectos autênticos da realidade brasileira,
vividos através do prisma duma personagem feminina. O recital seria apresentado
inicialmente aqui em São Paulo, no início da próxima temporada; e depois, italianizado por
mim, na Itália, quando lá iremos, ainda em 1968. Naturalmente, preciso de sua autorização
para a tradução.
Tutaméia ainda não chegou a São Paulo. Esses editores. Será que V. não tem outros
contos, feito monólogos, caracterizando histórias e personagens femininas? Que tal um
recital só de textos de Guimarães Rosa? Já me vejo com a Olga peregrinando o Brasil e a
Itália para levar aos inocentes a palavra do Amigo.
Feltrinelli não deu sinal de vida. Será que Riobaldo já está trilhando por veredas
italianas? Espero que sim, e com boa sorte e com a ajuda de Deus, que, como V. sabe, às
vezes ilumina até os tradutores. Agora - (afinal, sou também diretor de uma sala de
espetáculos dedicada a toda espécie de loucuras, o Auditório Itália) - sonho com o recital
autenticamente brasileiro, para futura alegria de meus patrícios na Península. Sonho
também com outra iniciativa que concerne ao Amigo; mas desta lhe falarei na próxima
carta.
Um grande abraço

E.B.

P.S. - Tutaméia chegou; apurei junto ao meu livreiro. O engano foi devido ao fato de não ter
visto o livro nas "lojas especializadas".

XXXIII

Rio, 27 de agosto de 1967

Meu caro Bizzarri,

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Sobre meu atraso, Você já sabe, e que o incessante turbilhão de coisas em que
freneticamente me debato faz de mim o sempre envergonhado adiador.
Mas, o que Você não sabe, é a alegria que me trouxe. Você gostou do "Esses Lopes".
E...
Saber que sua Senhora gostou tanto. E que ela é Olga Navarro. Que bom, são coisas
bonitas e certas do destino. Lembro-me, via-a, uma vez, em Belo Horizonte ; se não me
engano, quando lá esteve a Companhia de Amélia de Oliveira. OLGA NAVARRO - bela,
alta, elegante, com o máximo de "classe", artista plenamente, vendo-se que
inteligentíssima. Ah, Vocês bem que se mereciam. Deixem que primeiro eu lhes dê -
atrasado, sempre -, de coração, vivos parabéns.
E, claro, autorizo, entusiasmado, que ela leve o conto para o palco, autorizíssimo.
Com Vocês, sempre.
Outros contos que se prestem à adaptação, com personagem feminina, não sei, acho
que talvez apenas o "Sinhá Secada", do TUTAMÉIA também, quem sabe ? (Ou, com
esforço maior, quiçá o "Estoriinha". Ou também a "Estória nº 3" ? )
Você já recebeu o exemplar do livrinho, que autografei, faz mais de um mês ? Se não,
é que ele deve estar ainda com o Antônio Olavo Pereira, na "Livraria José Olympio
Editora", aí, na Rua dos Gusmões, 100. Telefone para lá, perguntando, prego. *
Também não tenho notícias de Feltrinelli, a não ser as jovialidades bolivianas que o
nosso respectivo Giangiácomo andou recentemente perpetrando. Mas nada sei do que agora
fazem ou não com o Riobaldo. Ah, Bizzarri, se Você tomasse coragem...
Mais logo escreverei outra.
Agora, peço-lhe dizer a Olga, cujas mãos beijo, minhas homenagens, com as mais
belas palavras.
Abrace, forte
o seu
Guimarães Rosa.
___________________________

(*) Lá estava o volume. Com a dedicatória: "A EDOARDO BIZZARRI, muito grato e afetuosamente,
com forte abraço do Guimarães Rosa. Rio, 1967".

37

São Paulo, 8 de outubro de 1967

Meu caro Guimarães Rosa,

Feltrinelli, aliás Valerio Riva, de repente acordou - depois de tanto silêncio - com a
carta de que junto uma cópia, para encurtar a história. Reabrindo, assim, toda a série de
problemas e alternativas que já me angustiaram, e pensava superados. É mesmo "o diabo na
rua"... ...
Basta. Ditei as minhas condições. Se Feltrinelli aceitar, acho que precisarei muito
falar com V., pois o problema, desta vez, não será simplesmente interpretar e traduzir, mas
reescrever em italiano. No momento, nem quero pensar no assunto.
Da carta do Riva sublinhei a parte que mais diretamente interessa a Você. Eu acho

91
ótima a idéia de um documentário sobre o Brasil, tendo V. como protagonista; e espero que
V. aceite. Claro, precisa saber todos os pormenores. É o que solicitei do Riva. Será que vai
demorar mais nove meses, antes de escrever de novo? Entretanto, aqui vai outra idéia,
minha, a respeito do Amigo:
Como V. sabe, no quadro das atividades do Instituto, estou também dirigindo, há um
ano, o Auditório Itália. No Auditório, isto é, no foyer do mesmo, costumamos realizar
também exposições. Agora, a idéia é o Auditório promover uma exposição convidando
pintores, desenhadores e gravadores a apresentar obras inspiradas numa ou outra página do
Amigo. A exposição terá o título "Brasil de Guimarães Rosa". Análoga exposição poderia
ser promovida entre fotógrafos. Uma vez realizada em São Paulo, a exposição seria levada
para a Itália e apresentada nas principais cidades, aos cuidados de Feltrinelli e da
Embaixada e consulados do Brasil. Poderá também viajar em outros países, onde há
traduções de Guimarães Rosa. As obras, algumas ao menos, poderão também servir para
uma edição ilustrada. Que acha? Preciso conhecer a sua opinião, para começar a estruturar
a iniciativa, que é bastante complexa.
Por hoje é só. Um grande abraço

E.B.

P.S. - Olga ficou encantada com a sua carta. E agradece. As outras estórias me parecem
menos funcionais, em sede teatral. Mas como é? O teatro nunca tentou V.? Será que não
tem vontade de experimentar?

XXXIV

Rio de Janeiro, 20 de outubro de 1967

Meu caro Bizzarri,

Logo com a sua última carta - portadora da notícia esplêndida e entusiasmadora - ia-
se-me pregando uma peça ! Imagine, ela estava, intacta, metida entre as folhas de um
número da "Revista de Filosofia", e só agora é que a abro. E fico feliz, exultante. Ah, que
tudo pegue bem, o Riva não seja trouxa, e Você torne a vestir a roupa de campeiro,
montado em cavalo malhado e saindo por essas chapadas e veredas sertanejas nossas. Deus
vos guie. Grato, grato é que eu estou.
Agora, quanto ao projeto do Riva ("il documentario"), nada, niente, nulla. Você, sim,
me compreende : que coisa mais anti-Guimarães Rosa. Como é que eu poderia ? Morria.
Bizzarri, meu caro, agora não escrevo mais, estou em luta com o discurso que terei de
proferir na Academia Brasileira de Letras, onde, enfim (depois de eleito há 4 anos e meio)
tomo posse, se Deus quiser, no dia 16 de novembro proximíssimo. Não haverá traje de rigor
nem convites impressos; mas, Você e Olga, meu coração convida. Espero, depois dessa
data, e no ano que vem, estar muito mais libertado, leve, disponível.
Aí, então...
Abrace, forte
o seu
com afeto, grato,
Guimarães Rosa.

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No dia 19 de novembro - trinta dias depois de ter escrito essa carta, e três dias
depois de ter tomado posse na Academia Brasileira de Letras, Guimarães Rosa morria,
vítima de enfarte. Quanto à tradução italiana de Grande sertão: veredas, depois de novo e
prolongado silêncio, a editora Feltrinelli voltou a procurar E.B. em fins de 1969. O
Grande sertão italiano saiu em novembro de 1970, três anos depois da morte de
Guimarães Rosa.

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