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Revista de

Filosofia Modern a
e Contemporânea

Brasília, v. 6, n. 1, jan./jul. 2018


A Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea é uma publicação semestral
do Departamento de Filosofia (FIL) e do Programa de Pós-graduação em
Filosofia (PPGFIL) da Universidade de Brasília (UnB)
The Journal of Modern and Contemporary Philosophy is a semiannual
publication of the Department of Philosophy and the Graduate Program in
Philosophy of the University of Brasília (UnB)

Brasília, volume 6, número 1, 1º semestre de 2018


ISSN 2317-9570 (publicação eletrônica)
http://periodicos.unb.br/index.php/fmc/index
Equipe Editorial Alvaro Luiz Montenegro Valls (UNISINOS, Brasil)
César Augusto Battisti (UNIOESTE, Brasil)
Daniel Omar Perez (UNICAMP, Brasil)
Editor Elisabete M. J. de Sousa (Universidade de Lisboa,
Alexandre Hahn Portugal)
(hahn.alexandre@gmail.com) João Vergílio Gallerani Cuter (USP, Brasil)
Joãosinho Beckenkamp (UFMG, Brasil)
Editores Associados Jon Stewart (Universidade de Copenhagen, Dinamarca)
Priscila Rossinetti Rufinoni Maria das Graças de Souza (USP, Brasil)
Márcio Gimenes de Paula Oswaldo Giacoia Junior (UNICAMP, Brasil)
Rodrigo Freire Zeljko Loparic (UNICAMP, Brasil)

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Lorrayne Colares Isabella Holanda
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Sérgio Gomes e Silva Capa
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Agnaldo Cuoco Portugal de Santa Cruz, Argentina - Patrimônio Mundial da
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Phillipe Lacour Diretor: Mário Diniz Araújo Neto
Vice-diretor: Perci Coelho Souza
Departamento de Filosofia
Conselho Científico Chefe: Erick Calheiros de Lima
Adriana Veríssimo Serrão (Universidade de Lisboa, Vice-chefe: Alexandre Costa-Leite
Portugal) Programa de Pós-graduação em Filosofia
Alessandro Pinzani (UFSC, Brasil) Coordenadora: Maria Cecília Pedreira de Almeida

Contato Indexação
Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea CiteFactor, CLASE, Diadorim, DOAJ, DRJI, Latin-
Universidade de Brasília dex, Sumários, Periódicos, PhilBrasil, Phipapers,
Departamento de Filosofia SHERPA/RoMEO
Programa de Pós-Graduação em Filosofia
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70910-900 – Brasília – Distrito Federal – Brasil
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Sumário
i. Páginas Iniciais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1

ii. Editorial . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 5

iii. Dossiê: ”O Homem e seus Mundos” . . . . . . . . . . . . . . . . . . 9

Uma Mente Embebida em Cultura


Paulo Abrantes . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 9

Filosofia, Ciências Cognitivas y Sentido Común: El Caso de la Se-


gunda Persona de la Atribución Mental
Diana I. Perez . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 49

Abrantes, o Naturalismo e o Teı́smo


Agnaldo Portugal . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 73

O Que nos Faz Humanos? Bases Empı́ricas e Evolutivas das Prin-


cipais Transições da Linhagem Hominı́nia
Pedro da Glória . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 105

Mutações no Estilo de Pensamento: Ludwik Fleck e o Modelo


Biológico na Historiografia da Ciência
Mauro L. Condé . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 155

Por que o pluralismo interessa à epistemologia?


Valter Alnis Bezerra . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 187

Sistemas de Herança: As Múltiplas Dimensões da Evolução


Rosana Tidon . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 209

Una Biologı́a, muchas Biologı́as: ¿estamos frente a un proceso de


fragmentación en la Biologı́a?
Leo Bloise e Guillermo Folguera . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 221

Breve História da Inércia-I: o problema do movimento de Aristóteles


a Copérnico
Samuel Simon e Evaldo Rezende . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 241

Pierre Duhem: Um Filósofo do Senso Comum


Fábio Rodrigo Leite . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 267

iv. Artigos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 305

Comprender lo femenino desde la propuesta filosófica de Friedrich


Schleiermacher
Catalina Elena Dobre . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 305
Heidegger e a Modernidade: Sobre a ideia heideggeriana de Con-
sumação da Metafı́sica
Eberth Santos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 323

Psicologia Fenomenológica da Imaginação em Sartre: A Eidética


da Imagem
Gustavo Fujiwara . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 343

Reconciliação com História: Foucault do estruturalismo ao pós-


estru-turalismo
Leonardo Masaro . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 379
Editorial

Depois de três décadas de contribuição ao res de universidades do Brasil e do exte-


ensino, à pesquisa, à orientação e à coor- rior participaram do Colóquio, com apre-
denação de grupos de pesquisa, particu- sentações de suas pesquisas. Os debates
larmente em Filosofia da Biologia, nosso que se seguiram às palestras também não
colega Paulo Abrantes aposentou-se do poderiam ter sido mais proveitosos.
cargo de professor titular da Universidade Os trabalhos resultantes do Colóquio,
de Brasília, no Departamento de Filoso- que compõem essa edição da Revista de Fi-
fia e no Instituto de Biologia. Pesquisa- losofia Moderna e Contemporânea, são parte
dor amplamente reconhecido em sua área do que foi apresentado no auditório do
de trabalho, bolsista de produtividade do Instituto de Biologia e na Biblioteca Cen-
CNPq, nível I, a aposentaria do professor tral da UnB, naqueles dias do agradá-
Abrantes não poderia ficar indiferente aos vel inverno brasiliense. Os temas refle-
que tiveram e têm o privilégio de traba- tiram as áreas que o professor Abrantes
lhar com ele. Assim, com o apoio do De- tem estudado nessas três décadas de ati-
partamento de Filosofia, do Programa de vidade científica e foram bem represen-
Pós-Graduação em Filosofia (PPG-FIL), do tativos de suas pesquisas. Os títulos das
Projeto Douta Ignorância e do Instituto de palestras e mesas-redondas foram os se-
Biologia, foi organizado um colóquio em guintes: As relações entre História da Ci-
sua homenagem, e coube a nós a grata ta- ência e Filosofia da Ciência; Por que o plu-
refa de organizá-lo. Convidamos colegas ralismo interessa à epistemologia?; Estru-
que trabalham nas áreas de pesquisa do turas linguísticas, paradigmas e holismo;
professor Abrantes – História e Filosofia Uma definição integradora do conceito de
da Ciência, Filosofa da Biologia e Filoso- informação: aproximações deaconianas;
fia da Mente – para apresentarem traba- Una Biología, muchas Biologías: ¿estamos
lhos nesses temas. Dessa maneira, entre frente a un proceso de fragmentación en
os dias 28 e 30 de junho de 2017 ocor- la Biología?; Sistemas de herança: as múl-
reu o Colóquio O Homem e seus Mundos – tiplas dimensões da Evolução; A trajetó-
Perspectivas filosóficas e científicas: Encon- ria evolutiva humana contada pelos fós-
tro em torno do Percurso Acadêmico do Pro- seis; Mutações no estilo de pensamento:
fessor Paulo C. Abrantes. Quinze professo- Ludwik Fleck e o modelo biológico na his-

5
EDITORIAL

toriografia da ciência; Filosofia, Biologia e quece enormemente com o diálogo com as


Ciências Sociais; Causação na biologia e ciências. Para se responder a questão an-
na psicologia; La atribución mental y la tropológica, por exemplo, (o que é o ho-
segunda persona; La epistemología evo- mem? – a quarta pergunta central da filo-
lucionista y el debate sobre el realismo; sofia para Kant e à qual Abrantes se dedi-
Paulo C. Abrantes e Alvin Plantinga em cou mais nos últimos anos), não há como
torno do naturalismo: pelo menos dois deixar de lado o que dizem as ciências
modos de fazer filosofia da ciência. Após o empíricas sobre as origens da espécie hu-
Colóquio, alguns autores alteraram os tí- mana e a relação entre natureza e cultura.
tulos ou fizeram acréscimos, como pode E essa é uma atitude assumida de forma
ser visto nos artigos a seguir, mas sempre central pela filosofia moderna e contem-
dentro da temática original. porânea; não nos esqueçamos que Descar-
O leitor dos artigos deste número cer- tes era matemático, que o título da princi-
tamente encontrará textos de altíssimo in- pal obra de Isaac Newton (um marco fun-
teresse para a filosofia atual. É possível, damental da ciência moderna) se chamava
porém, que alguns desses trabalhos sejam Princípios Matemáticos da Filosofia Natural,
considerados pouco filosóficos por alguns que Kant era geógrafo e astrônomo e que
pesquisadores mais acostumados com a Marx deu importantes contribuições a ci-
ênfase costumeiramente dada à história ências como Economia ou História. As-
da filosofia no universo acadêmico brasi- sim, além de trazer artigos que têm va-
leiro. O estranhamento maior vai se dar lor por si mesmos, o presente volume pre-
provavelmente na leitura de textos de au- tende fazer pensar sobre a filosofia em
tores originalmente da Biologia. A Filo- nosso tempo e seu diálogo imprescindível
sofia da Ciência, da qual a Filosofia da com as ciências.
Biologia é uma subárea, se dedica a re- Agradecemos a todos que participa-
fletir sobre os fundamentos conceituais e ram do Colóquio e ao professor Alexan-
metodológicos das ciências empíricas mo- dre Hahn, editor da Revista de Filoso-
dernas; e, principalmente desde os tra- fia Moderna e Contemporânea, pela publi-
balhos de Thomas Kuhn nos anos 1960, cação dos resultados do evento e, prin-
ela é tida pela maioria dos seus especi- cipalmente, ao professor Paulo Abran-
alistas como indissociável da História da tes pela oportunidade que nos deu de
Ciência. Alguns dos trabalhos aqui que compartilhá-los.
mais fogem ao padrão de história da fi-
losofia que temos no Brasil se dedicam a Samuel Simon
esses temas e problemas em história e fi-
losofia das ciências modernas. O pressu- Agnaldo Cuoco Portugal
posto por trás dessa ligação estreita entre
a reflexão filosófica e o conhecimento ci- Organizadores do Dossiê O Homem e seus
entífico é o de que o estudo das grandes Mundos – Perspectivas Filosóficas e
questões que sempre interessaram à filo- Científicas
sofia (o ser, o conhecer, o agir) se enri-
***

6 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.5, n.2, dez. 2017, p. 5-7
ISSN: 2317-9570
Além dos trabalhos que compõem o Dos- pretende dar conta de uma nova varia-
siê, o presente número também conta com ção eidética da consciência, a consciência
outras contribuições recebidas em fluxo imaginante, e de seu correlato, a imagem
contínuo. como modo específico que esta consciên-
(1) Catalina Elena Dobre, Profesora- cia possui para apreender uma presença a
Investigadora de la Universidad Anáhuac partir de uma ausência.
(México) e Investigadora del Sistema Na- (4) Reconciliação com a História:
cional de Investigadores (SIN) de CO- Foucault do estruturalismo ao pós-
NACYT, examina, em seu artigo Compren- estruturalismo, artigo de Leonardo Ma-
der lo femenino desde la propuesta filosófica saro, doutor em filosofia pela Universi-
de Friedrich Schleiermacher, o conceito de dade de São Paulo (USP), discute se a alcu-
“feminino” em Schleiermacher, buscando nha “pós-estruturalista” cabe a Foucault,
entender o valor da virtude feminina, ne- investigando se a noção foucaultiana de
cessária para se criar comunidade e cul- epistémê é tributária da noção de estru-
tura. Para tanto, analisa a intenção do tura. Para tanto, não apenas examina a
pensador ao escrever as Cartas Confiden- origem (em Saussure) e a transformação
ciais, e razão para considerar a virtude (por Lévi-Strauss) da noção de estrutura,
feminina um dos princípios fundamen- mas também a sua utilização por Foucault
tais da vida ética. em As Palavras e as Coisas, mostrando
(2) Em seu Heidegger e a modernidade: como este último transformou a ideia de
Sobre a ideia heideggeriana de “consumação estrutura, de sistema transcendental for-
da metafísica”, Eberth Santos, professor mado por oposições binárias (conforme
doutor da Universidade Federal de Cam- Saussure e Lévi-Strauss), em forma a pri-
pina Grande, busca delinear, baseado em ori “vazia”, sem pré-determinantes. Neste
Heidegger, os contornos daquilo ficou que sentido, argumenta que a fase seguinte da
conhecido como a Tarefa do Pensamento, obra do filósofo corresponde a uma tenta-
que coube à Filosofia desde sua gênese até tiva de re-inserir a dimensão histórica nos
o final do século XIX, e que foi interpre- estudos do saber.
tada pelo referido filósofo como momento Gostaríamos de aproveitar o ensejo
culminante da metafísica ocidental. para agradecer a todos os autores, por te-
(3) Gustavo Fujiwara, doutorando em rem honrado a nossa Revista com as suas
filosofia pela UNIFESP, investiga, no ar- produções, bem como aos membros do
tigo Psicologia Fenomenológica da Imagi- corpo editorial, avaliadores, editores e lei-
nação em Sartre: A Eidética da Imagem, a tores de provas, pela fundamental colabo-
crítica sartreana da teoria da imaginação, ração na confecção da presente edição.
tal como esboçada na obra A Imaginação.
Neste sentido, busca mostrar que Sartre Os Editores

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.5, n.2, dez. 2017, p. 5-7 7
ISSN: 2317-9570
Uma Mente Embebida na Cultura

[A Mind Embedded in Culture]

Paulo C. Abrantes*

Resumo: Este artigo investiga o papel que a cultura desempenha em


diferentes cenários para a evolução humana. A primeira parte expõe
os elementos básicos de uma explicação da capacidade da mente
humana para atingir ordens mais elevadas de intencionalidade, to-
mando como referência a tese da complexidade do ambiente social e a
hipótese da inteligência social. Explora-se as implicações dessas teses
para a questão de como evoluiu, no gênero Homo, uma modalidade de
aprendizagem social que possibilitou a acumulação cultural. A partir
desse pano de fundo, expõe-se como Richerson e Boyd explicam a
evolução da ultrassociabilidade humana pressupondo uma interação
entre herança cultural e herança genética e traça-se um paralelo
com a história natural que nos oferece Tomasello das origens da
cultura humana e do papel que desempenha na coordenação social.
A segunda parte do artigo é uma tentativa de explicitar, nesses e
em outros cenários, algumas imagens de natureza humana que são
pressupostas tacitamente. Para tanto, discute-se vários temas: a
ambivalência entre conflito e cooperação no tratamento da evolução
humana; a sempre renovada controvérsia entre adaptacionistas e
construtivistas; e a possibilidade de um vínculo mais estreito entre os
processos de desenvolvimento e de evolução. Ao final são esboçadas
algumas idéias, com um caráter programático, sobre como essas
imagens se articulam com outras: relativas à linguagem, como traço
distintivo da nossa espécie, e à arquitetura da mente humana.

Palavras-chave: cultura e evolução humana; evolução da cooperação;


teoria da dupla herança; intencionalidade coletiva; imagens de natu-
reza humana

* Professor titular aposentado do Departamento de Filosofia da Universidade de Brasília (UnB). E-mail: abran-
tes@unb.br

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.6, n.1, jul. 2018, p. 9-48 9
ISSN: 2317-9570
PAULO C. ABRANTES

Abstract: This paper deals with the role culture plays in different
scenarios for human evolution. The first part presents the basic
elements of an explanation for the capacity of the human mind to
reach higher orders of intentionality, taking on board the thesis of
the complexity of the social environment and the social intelligence
hypothesis. The implications of those thesis for the question of how
evolved, in the Homo genus, a modality of social learning that made
possible cultural accumulation are explored. Given this background,
the way Richerson e Boyd explain the evolution of human ultrasoci-
ality, pressuposing an interaction between cultural inheritance and
genetic inheritance, is exposed, and comparisons are made with how
Tomasello depicts the origins of human culture and the role it plays
in social coordination in his natural history. The second part of the
paper attempts to make explicit in those scenarios and others some
images of human nature that are tacitly presupposed. To accomplish
this, various themata are adressed: the ambivalence between conflict
and cooperation in dealing with human evolution; the controversy
between adaptationists and constructivists, which is still going on;
the possibility of a tighter link between developmental and evolutio-
nary processes. At the end, some tentative and programatic ideas are
deployed, concerning how those images are articulated with others:
related to language, as a distinctive trait of our species, and to the
architecture of the human mind.

Keywords: culture and human evolution; evolution of cooperation;


dual inheritance theory; culture and colective intentionality; images
of human nature.

Neste artigo pretendo discutir a tido particular de cultura, que es-


tese de que o mundo da cultura é pecificarei adiante, muitas espécies
o mundo por excelência de uma es- além do sapiens têm cultura. Mas
pécie particular, o Homo sapiens, e nenhuma acumula cultura como
que várias características dessa es- faz esta última, que vive em um
pécie, em particular as psicológi- mundo construído por sucessivas
cas, evoluíram nesse mundo. gerações, e veremos que isso tem
Essa investigação passa necessa- implicações profundas.
riamente pela questão de qual tipo Muitos seres vivos, de diferentes
de mente é capaz de assimilar e espécies, têm mentes de diferentes
transmitir cultura com a eficiência tipos (são ‘animais’, em atenção à
que humanos o fazem. Em um sen- etimologia do termo1 ). É preciso,

1 Um animal tem anima, que é a tradução usual para psyché, do grego. A referência ao De Anima de Aristóteles é
inescapável neste contexto. O grande filósofo grego distingue quatro tipos de alma: nutritiva, locomotora, sensitiva
e intelectiva. O homem seria o único animal a tê-las todas.

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UMA MENTE EMBEBIDA NA CULTURA

contudo, identificar o que é espe-que mentes de diferentes tipos evo-


cífico à mente humana e como isso luíram para lidar com a variabili-
engendrou uma dinâmica cultural dade e imprevisibilidade do meio
que, por sua vez, distanciou pro- ambiente, seja no espaço, seja no
gressivamente as mentes dos nos- tempo. Quanto mais variável e im-
sos ancestrais hominínios das men-previsível, mais complexo é o am-
tes de animais em outras linha- biente para um dado sistema cog-
gens, como a linhagem que se bi- nitivo (ou mente).
furcou na dos chimpanzés (Pan tro- Ambientes com certos graus de
glodytes) e dos bonobos (Pan panis-
complexidade, nesse sentido do
cus), com a qual a linhagem ho- termo, exerceram pressão seletiva
minínea compartilhou um ances- que favoreceu a evolução de tipos
tral comum há aproximadamente 7 de mentes capazes de plasticidade
Maa.2 comportamental, como é o caso
Os cenários que apresentarei a dos sistemas intencionais (Abran-
tes, 2006). Esses sistemas são ca-
seguir são especulativos, pois tra-
tam de eventos que ocorreram há pazes de representar o mundo ex-
centenas de milhares de anos, de terno e, além disso, as suas re-
que não temos evidências empí- presentações estão dissociadas de
ricas diretas (processos mentais eum comportamento particular, po-
comportamentos não deixam fós- dendo ser exploradas, portanto, de
modo "promíscuo"(Hurley, 2003,
seis!). As evidências indiretas que
dispomos são insuficientes para p.1). Isto significa que os conteú-
dos de certos estados mentais po-
excluir cenários alternativos. Tanto
mais importante é a tarefa filo- dem ser apropriados por vários ou-
tros, de diferentes tipos, em situa-
sófica de explicitar e confrotar as
imagens de natureza humana que ções as mais diversas. O compor-
estão implicadas em cada um des- tamento desses sistemas cognitivos
tes.3 torna-se, assim, mais flexível e me-
nos automático, aumentando a sua
aptidão (sucesso reprodutivo) em
A complexidade do ambiente so-
lidar com a complexidade dos am-
cial
bientes físico, biológico e, sobre-
A tese da complexidade ambien- tudo, social.
tal (Godfrey-Smith, 1998) dispõe O meio ambiente social humano

2 Maa = milhão de anos atrás.


3 Para a noção de ‘imagem’ ver Abrantes, 2016. Não pretendo aqui me debruçar sobre os aspectos propriamente
epistemológicos (as imagens de ciência) que participam dessa empreitada, o que fiz em outros lugares (Abrantes,
2011c, 2012). Remeto às considerações de Perez, neste volume, que aborda esses aspectos.

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PAULO C. ABRANTES

é muito complexo dada a imprevi- outros indivíduos do seu grupo


sibilidade do comportamento dos social como agentes e atribuir-
indivíduos que o integram (afinal, lhes estados mentais para expli-
são sistemas intencionais!), o que car e prever o seu comportamento
pode ter gerado uma corrida arma- é também uma condição para po-
mentista (arms race) que resultou der manipular as suas mentes e,
em mentes capazes de ordens mais portanto, para enganar, dissimular
elevadas de intencionalidade e do- etc., daí se falar de uma “inteli-
tadas de uma genuína inteligência gência maquiavélica”.6 A necessi-
social (Humphrey, 1988). Essa “in- dade de melhor detectar desertores
teligência” está associada a men- e egoístas teria sido a pressão sele-
tes capazes de interpretar o com- tiva mais importante na evolução
portamento de outros indivíduos, da capacidade humana para a lei-
atribuindo-lhes estados mentais de tura de mentes (Byrne & Whiten,
diferentes tipos (emoções, crenças, 1988).
desejos, intenções, etc.).4 Uma mente capaz de ordens ele-
Uma explicação para essa es- vadas de intencionalidade muito
calada metarrepresentacional seria provavelmente é específica do sapi-
a seguinte: sistemas intencionais ens, e é preciso tratar das pressões
têm um comportamento mais plás- seletivas que expliquem, de modo
tico comparados a tipos mais sim- detalhado e plausível, a evolução
ples de sistemas cognitivos. Um ascendente das capacidades meta-
ambiente social no qual existem representacionais (Sperber, 2000).
tais agentes é, portanto, mais com- Dunbar (2000) estabeleceu uma
plexo, o que gera pressões para que correlação entre tamanho relativo
evoluam capacidades de “leitura do neocórtex e tamanho dos gru-
de mentes” (mind reading).5 Tomar pos sociais em várias linhagens,

4 A intencionalidade de primeira ordem corresponde à capacidade para representar aspectos de um mundo real
ou imaginário. Trata-se de ‘intencionalidade’ no sentido de Brentano. Intencionalidades superiores à de primeira
ordem correspondem a capacidades metarrepresentacionais. A representação de uma representação apresenta uma
intencionalidade de segunda ordem. O estado mental ‘crer que fulana não deseja que sicrano saiba que irão a uma
festa hoje’ apresenta uma intencionalidade de terceira ordem, etc.
5 Essa explicação evolucionista pressupõe a chamada ‘hipótese da inteligência social’ evocada acima. Há quem
a rejeite e defenda, em vez disso, que os hábitos de interpretação têm uma ontogenia mas não uma filogenia (Sud-
dendorf, 2011, p. 121-24). Em outros termos, essa explicação alternativa propõe que as habilidades para lidar com
o meio social são aprendidas ao longo do desenvolvimento dos indivíduos, normalmente com a ajuda de outros
indivíduos experientes, sobretudo dos pais. Pode-se combinar processos ontogenéticos e filogenéticos, o que me
parece uma perspectiva promissora para se compreender a origem de uma inteligência social que suponha mind
reading. Trato dessa possibilidade adiante. Por outro lado, é também defensável que a inteligência social, em muitas
espécies, apóie-se exclusivamente numa leitura fina do comportamento de outros indivíduos (behavior reading), o
que tem custos menores, em termos de processamento cognitivo, do que a leitura de mentes.
6 A idéia de inteligência social é mais abrangente pois contempla não somente um ambiente no qual as relações
são conflituosas (requerendo uma inteligência propriamente “maquiavélica”) mas também um ambiente em que
predominem interações cooperativas entre os indivíduos de um grupo. Ver Hurford, 2014, p. 48.

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UMA MENTE EMBEBIDA NA CULTURA

que serviu de base para a sua “hi- cognitivos para se navegar com su-
pótese do cérebro social”.7 A capa- cesso nesses ambientes? Uma res-
cidade para atingir ordens cada vez posta comum a essa questão refere-
mais elevadas de intencionalidade se a uma capacidade para a ‘teoria
acompanharia, segundo essa hipó- da mente’ (ToM), expressão que se
tese, o aumento na complexidade cristalizou a partir de pesquisas em
do ambiente social medida por esse primatologia para aferir se chim-
parâmetro (Gamble et al. 2014, p. panzés, os nossos primos filogene-
146). ticamente mais próximos, possuem
tal capacidade.8 Houve várias mu-
Leitura de mentes e a psicologia danças no posicionamento dos es-
de senso comum pecialistas a esse respeito. De toda
forma, a capacidade para a leitura
Outras espécies animais, sobre- de mentes no gênero Homo segura-
tudo os grandes símios- cujas li- mente deita raízes em capacidades
nhagens compartilham ancestrais menos sofisticadas para a ToM.9
comuns recentes com a linhagem A leitura de mentes pode servir-
hominínia-, vivem em ambientes se de um esquema conceitual como
sociais bastante complexos, hierar- o da psicologia de senso comum
quizados, onde imperam conflitos, (PS). O fato é que usamos a PS não
muitas vezes envolvendo coalizões somente para descrever o que se
(Boehm, 1999). Quais os requisitos

7 Da-Glória, neste volume, elenca esta entre outras explicações para a encefalização. No contexto do presente
artigo, não vejo diferença relevante entre a hipótese de Dunbar e a hipótese da inteligência social mencionada an-
teriormente, a menos que se queira tomar partido com respeito ao problema mente-cérebro e defender que isso
tem implicações para as discussões em pauta.
8 A expressão ’teoria da mente’, bastante equívoca, aparece pela primeira vez na literatura, ao meu conheci-
mento, num artigo publicado em 1978 por Premack e Woodruff. Essa expressão induz o leitor, equivocadamente,
a supor um procedimento particular - o de aplicar uma teoria - para a atribuição de estados mentais a outros (su-
postos) agentes (Abrantes, 2014a). Não há, contudo, um compromisso dessa expressão com este ou qualquer outro
mecanismo particular para fazer tais atribuições (e há vários propostos na literatura; Diana Perez os elenca neste
volume). É comum também se usar, para se referir a essa capacidade, a expressão ’leitura de mentes’ (mind rea-
ding), que se distingue de uma simples capacidade para ’ler comportamentos’ (behavior reading), distinção que fiz
na nota 5. Uma outra possibilidade seria designar a leitura de mentes como envolvendo estados mentais com uma
intencionalidade de segunda ordem ou, ainda, como uma capacidade para a metarrepresentação. Dennett, por sua
vez, refere-se a ela como a capacidade para interpretar, no caso, comportamentos.
9 Podemos distinguir, por exemplo, a capacidade para ‘ler’ estados mentais com conteúdo (e.g. crenças) e a ca-
pacidade para sentir empatia, ler emoções de um outro indivíduo como dor, medo, pesar, etc. Há evidências de
que babuínos (macacos do velho mundo do gênero Papio com os quais compartilhamos um ancestral comum há 30
Maa) são sensíveis às intenções e motivações de um outro indivíduo, possivelmente por leitura de comportamento,
mas não são capazes de sentir empatia, o que requer a atribuição de estados mentais (Cheney & Seyfarth, 2007, p.
159, 191-8). Essa condição certamente mudou nos milhões de anos seguintes de evolução dos ancestrais comuns
que compartilhamos com os grandes símios, mas as evidências a respeito da capacidade destes últimos para atri-
buir estados mentais de diferentes tipos são de difícil interpretação. O título do livro de Cheney & Seyfarth é uma
alusão sugestiva à frase que Darwin escreveu no seu Notebook M em 1838, dois anos após ter retornado da viagem
no Beagle, quando estava trabalhando intensamente no desenvolvimento da sua teoria (Abrantes, 2016): "Origin
of man now proved._Metaphysic must flourish._He who understands baboon would do more towards metaphysics
than Locke".

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passa em nossas mentes mas tam- que mostrem ter razão no futuro,
bém para imputar estados mentais, acredito que a PS continuará cum-
sempre conjecturalmente é claro, prindo bem o seu papel na in-
a outros seres humanos.10 Na terpretação do comportamento dos
verdade, fazemos isso de forma nossos coespecíficos no meio social
tão automática e compulsiva que e, portanto, é virtualmente ineli-
não restringimos tais imputações minável dada sua relativa simplici-
a seres da nossa espécie (vistos, dade e poder preditor.
nessa medida, como agentes), mas O artigo de Diana Perez neste
também a outros animais (sobre- volume me dispensa de tratar
tudo os de nossa estimação!); aque- dos pressupostos metafilosóficos
les ainda mais liberais, o fazem do meu posicionamento a favor da
mesmo com respeito a objetos ina- relevância da PS; tampouco preci-
nimados, incluindo os artefatos sarei entrar em detalhes a respeito
que construímos!11 da discussão sobre os mecanismos
Pode-se questionar em que me- subjacentes à leitura de mentes.12
dida a psicologia de senso comum Posso concentrar-me aqui em dis-
(PS) é um bom instrumento concei- correr sobre a nossa capacidade
tual para descrever mentes. Para para galgar ordens elevadas de in-
Dennett (1998), a PS seria, propria- tencionalidade, o que possibilitou
mente, uma arte [craft] cuja função a criação de um mundo cultural e,
precípua é a interpretação do com- por um processo complexo de coe-
portamento humano em nosso co- volução, deu origem a uma “mente
tidiano e não a descrição da mente, embebida na cultura”.
uma tarefa de outra ordem, cientí- Mesmo que aceitemos o eli-
fica (Godfrey-Smith, 2003, p. 267). minativismo com respeito à PS
Os eliminativistas defendem, por enquanto um marco psicológico-
sua vez, a proeminência das des- conceitual para descrever men-
crições neurofisiológicas. Mesmo tes, ainda assim os nossos hábi-

10 A PS pode ser usada de dois modos distintos (Abrantes, 2011a): (i) como um esquema conceitual para des-
crever mentes (como tendo, grosso modo, uma arquitetura crença-desejo); (ii) para dar suporte à interpretação,
explicação e previsão do comportamento de outros (supostos) agentes, imputando-lhes estados mentais.
11 O animismo e o panpsiquismo são manifestações dessa aplicação da PS fora do seu âmbito apropriado, em
que outros animais, e mesmo objetos físicos, são também considerados agentes. Com a Revolução Científica do séc.
XVII houve uma gradativa contenção desse uso indiscriminado, en outrance (Descola, 2005, p. 33-5), da PS: só co-
específicos são tomados como agentes. Surge uma tendência a se separar as esferas do mental, da vida, e do físico,
uma história com muitas reviravoltas (Abrantes, 2016). Essa separação justifica-se, já que o mundo físico é menos
complexo do que o mundo social. Portanto, é desnecessário, excessivo, usar a “postura intencional” para explicar
sistemas físicos, quando podemos usar a “postura de projeto” ou a “postura física” (Dennett, 1991, 1995). Agentes
no meio social, pela natureza opaca do seu comportamento (Abrantes, 2006), exigem um sistema mais poderoso de
previsão e de explicação: a leitura de mentes.
12 Tratei desses temas em outros artigos: Abrantes (2010, 2011a, 2013b).

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tos de interpretação, nessas ba- prestarmos à biologia o conceito de


ses, podem ter desempenhado um ‘fenótipo’- como o conjunto de tra-
papel importante na evolução do ços (ou características) apresenta-
tipo humano de mente (mesmo dos pelo indivíduo (organismo ou
que esta possa ser mais adequada- agente)-, podemos em certos ca-
mente descrita por meio de uma ci- sos incluir no fenótipo os traços
ência cognitiva futura que não te- culturais ao lado de outros tipos
nha qualquer dívida com a PS). de traços: anatômicos, fisiológicos,
Defendo portanto, ao lado de etc. O que é distintivo de um
outros pesquisadores, que a leitura traço cultural (como, por exem-
de mentes é parte relevante da ex- plo, o de usar instrumentos líticos
plicação de como teria evoluído a como os machados de mão, falar
mente do sapiens, e não se limita a uma determinada língua ou adotar
ajudar cada um de nós na navega- uma religião) é o fato de que em
ção social ordinária.13 Quando sur- sua ontogenia a aprendizagem so-
giram mentes capazes de ler outras cial faz-se presente.15 Há diversas
mentes surgiu uma nova pressão modalidades de aprendizagem so-
seletiva no sentido de que evoluís- cial (Abrantes & Almeida, 2011, p.
sem mentes mais sofisticadas, con- 263) mas aqui me interessa sobre-
figurando a corrida armamentista maneira a imitação fidedigna, que
a que me referi anteriormente.14 é condição necessária para que a
cultura possa ser herdada e acu-
A cultura como um novo sistema mulada.
de herança Um grau moderado de variabili-
dade no ambiente físico pode ter
Há dezenas de definições de favorecido a evolução da apren-
cultura e a opção por uma de- dizagem social, já que esta pos-
las depende dos objetivos perse- sibilita uma economia dos custos
guidos por um programa de pes- e riscos associados à aprendiza-
quisa (Abrantes, 2014b). Se em-

13 Ver, em especial, Godfrey-Smith (2002, 2003, 2004, 2005).


14 Há também toda uma literatura sobre o desenvolvimento das capacidades para a ToM. Com base no chamado
’teste de falsa crença’, sabemos que antes de 3 ou 4 anos crianças não são capazes de atribuir a outros indivíduos
estados mentais com conteúdo, como crenças (ver Perez, neste volume). Muito se escreve ainda sobre como essas
evidências sobre a ontogenia da ToM em humanos relacionam-se com hipóteses sobre a sua filogenia (por exem-
plo, Mithen, 2002). A relação entre o autismo e deficiências relacionadas à capacidade para a leitura de mentes é
também muito estudada (Suddendorf, 2013, p. 168).
15 Pode-se defender que há traços culturais de grupos, como adotar uma certa forma de organização política, ou
um sistema jurídico. Estou me restringindo, nessas linhas, ao caso mais ortodoxo de que somente indivíduos têm
fenótipos culturais. Ver, porém, a discussão mais adiante sobre seleção no nível de grupo.
16 Comportamentos inatos são favorecidos por ambientes muito estáveis. A aprendizagem individual é favore-
cida, no extremo oposto, por ambientes muito instáveis. Modelos matemáticos mostram que em condições inter-
mediárias de variabilidade ambiental a aprendizagem social por imitação é a melhor estratégia adaptativa. Para

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gem individual.16 Ao que tudo que se prolongou por várias ge-


indica, a evolução da imitação fi- rações e em diferentes áreas (ma-
dedigna como modalidade especí- temática, computação, eletrônica,
fica de aprendizagem social requer, etc.). Nenhum indivíduo, por mais
além disso, pressões seletivas asso- brilhante que fosse, teria sido ca-
ciadas ao ambiente social.17 paz de inventar sozinho esse arte-
É importante distinguir a posse fato, mesmo que tivesse tido tempo
de cultura da sua acumulação. disponível para tanto ao longo da
Para que a cultura se acumule sua existência.19
é preciso que os traços culturais A cultura pode funcionar como
sejam transmitidos de indivíduo um sistema de herança somente
para indivíduo, e de geração para se há algum mecanismo que dê
geração, de modo fidedigno. Caso apoio ao que Tomasello chamou de
contrário, cada indivíduo teria que "efeito catraca"(1999, 2014). A ca-
servir-se de outra modalidade de pacidade para a aprendizagem so-
aprendizagem social e/ou apren- cial por imitação (ou aprendiza-
der por si só, individualmente, gem observacional) pode desempe-
como parece ser o caso em outras nhar esse papel. Muitos investiga-
espécies.18 dores defendem que a capacidade
Um produto da acumulação cul- para imputar estados mentais a ou-
tural como o computador, que tros - em particular, a de atribuir
estou usando para escrever este uma intenção ao outro quando se
texto, contou com a inventividade comporta de determinado modo - é
de vários indivíduos num esforço um requisito para que se possa imi-

detalhes a respeito, ver Abrantes & Almeida, 2011; Abrantes, 2011c; Neco & Richerson, 2014. Ver também Da-
Glória, neste volume. Laland (2017, p. 189-191) contesta esse cenário e aposta na estabilidade criada por nichos
construídos, o que configura uma imagem que contrasta com o adaptacionismo do cenário anterior, como discutirei
adiante.
17 Richerson & Boyd mostraram, com base em modelagem matemática, que há uma barreira (um vale adapta-
tivo) à evolução da imitação fidedigna pois esta tem um custo, contrariamente ao que se pode pensar, pois requer
uma capacidade psicológica especial para a leitura de mentes. Essa capacidade psicológica pode ter evoluído ori-
ginalmente para lidar com a complexidade do ambiente social (o que configura uma aplicação da hipótese da
inteligência social, já mencionada). Esse vale adaptativo teria sido transposto no gênero Homo por esta vantagem
adaptativa conferida pela leitura de mentes. Em seguida, como um efeito secundário, essa capacidade psicológica
pode ter sido recrutada para a aprendizagem observacional possibilitando, a partir daí, a acumulação cultural (Ri-
cherson & Boyd, 2005, 100, 138-9; Abrantes & Almeida, 2011, p. 264-270; Mithen, 2005, p. 311 nota 31; cf. Laland,
2017, p. 130, 150). Teríamos, no caso, uma exaptação da ToM, o que implicaria que não evoluiu para possibilitar a
acumulação cultural. Sobre a diferença entre exaptação e adaptação, ver Sepúlveda et al., 2011.
18 Encontramos cultura em várias espécies, desde que o termo ’cultura’ seja definido de modo adequado, mas a
acumulação cultural, ao que tudo indica, só ocorre de modo significativo em nossa espécie. Embora esta seja uma
posição muito debatida (Martínez-Contreras, 2011; Abrantes, 2014b, p. 16; Hodgson & Knudsen, 2010, p. 159),
continua sendo defendida na literatura e respaldada por pesquisas recentes sobre comportamento animal (Laland,
2017, p. 4-11, 97-8, 154).
19 Talvez caiba falar, nesse contexto, de ‘evolução cultural’ (tecnológica, no caso em tela), em um sentido análogo
ao de ‘evolução biológica’ (Abrantes, no prelo; cf. Laland, 2017, p. 166).

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tar fidedignamente seu comporta- envolvendo indivíduos não apa-


mento (Blackmore, 2000; cf. La- rentados.
land, 2017, p. 187). Esta mo- Uma das peculiaridades da te-
dalidade de aprendizagem social oria da TDH é o modo como in-
teria evoluído somente no gênero corpora a cultura na evolução de
Homo.20 um equipamento psicológico que
Os articuladores da teoria da du- possibilitou a cooperação em larga
pla herança (TDH), como o nome escala. A ênfase que essa teoria
indica, defendem que a cultura dá à herança cultural coloca em
tornou-se um sistema de herança pauta, de um lado, diferentes ti-
a partir de um certo ponto da li- pos de aprendizagem, como dis-
nhagem hominínia, quando passou cuti acima e, de outro, a psicologia
a atuar em paralelo com o sistema social subjacente à ultrassociabili-
genético de herança, que está na dade humana.
base de toda forma de vida.21 No que diz respeito à aprendiza-
gem, vimos que a capacidade para
imitar de modo fidedigno estaria,
Uma história da psicologia social possivelmente, assentada na ToM.
humana Passou-se, também, a imitar não de
modo indiscriminado, mas envie-
A interação entre os sistemas de
sado. Vieses como o conformista -
herança genético e cultural pro-
uma tendência a imitar o compor-
duziu efeitos com enormes con-
tamento mais frequente no grupo -
sequências para a evolução hu-
e a seguir modelos - uma tendência
mana. Talvez o mais importante
a se imitar, preferencialmente, in-
diga respeito ao comportamento
divíduos que ocupam uma posição
cooperativo em grandes grupos,

20 Mesmo que se reconheça que outras espécies sejam capazes de imitar, há consenso que humanos o fazem numa
gama de situações e com uma fidelidade que não encontra paralelo em outros animais. Crianças imitam ações de
uma outra pessoa mesmo quando não são as mais eficientes para se atingir um objetivo, ou mesmo são supérfluas,
fenômeno conhecido como “superimitação” (Suddendorf, 2013, p. 168)! Chimpanzés não se deixam desviar pelo
que faz o demonstrador e escolhem os meios que julgam atingir mais diretamente o objetivo. Ver Krupenye et al.
(2016) e Dean et al. (2012) para resultados experimentais recentes a esse respeito.
21 Rosana Tidon, neste volume, desenvolve este ponto e menciona outros pesquisadores que estão trabalhando
numa versão estendida da teoria da evolução que admite a existência de outros sistemas de herança além do
genético.
22 A fidelidade e a estabilidade da transmissão cultural podem estar garantidas no nível da população (herdabi-
lidade cultural) mesmo que falhem entre indivíduos. A construção de nichos também garante essa herdabilidade.
No que diz respeito às pressões seletivas responsáveis pela evolução dos vieses psicológicos na transmissão cul-
tural, cada um deles requer um tratamento especial. É bastante intuitivo que o conformismo pode ser uma boa
estratégia em situações nas quais o indivíduo não consegue decidir sozinho a respeito do comportamento mais
adaptativo. Modelos matemáticos construídos por vários autores vão ao encontro dessa intuição, mostrando que
o viés conformista evolui por seleção natural nas mesmas condições ambientais em que a aprendizagem social é
favorecida, como abordei na nota 16 (Richerson & Boyd, 2005, p. 122; Richerson & Boyd, 2013; Henrich & Boyd,
1998; Abrantes & Almeida, 2011, p. 293, nota 30; Neco & Richerson, 2014; Hodgson & Knudsen, 2010, p. 140,

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destacada no grupo-, potencializa- Inclui-se ainda nessa psicologia


ram a transmissão cultural de uma social uma sensibilidade aguçada
geração para outra.22 a marcadores simbólicos, que con-
Além dos vieses na aprendiza- solidam a identidade cultural de
gem social que acabo de menci- cada grupo ao erguerem barreiras
onar, teriam evoluído, segundo a à migração entre eles (a linguagem
TDH, outros traços psicológicos, sendo especialmente eficaz nesse
incluindo propensões a seguir nor- tocante).25
mas e a punir egoístas e desertores.
A sanção moral é uma condição ne- Alguns marcos cronológicos
cessária, mas não suficiente, para a
evolução da cooperação: um esto- É muito arriscado fazer qualquer
que de emoções, como a culpa e a indicação a respeito de quando a
vergonha, evoluiu de modo a au- cultura começou a se acumular no
mentar o custo da deserção e tor- gênero Homo, a funcionar como
nar desnecessária a sanção na mai- um novo sistema de herança e a in-
oria dos casos. Richerson e Boyd teragir com o sistema genético de
incluem essas propensões e emo- herança.
ções no que denominam "instintos Há evidente estase na indústria
tribais".23 Estes diminuem o custo Olduvaiense (2 a 1,5 Maa) - pos-
em seguir normas de cooperação sivelmente associada ao H. habilis
e aumentam, concomitantemente, embora várias espécies hominínias
o custo da deserção. Como con- vivessem à mesma época na África
sequência, há um nivelamento na e são também candidatas. Um ou-
aptidão dos indivíduos dentro do tro longuíssimo período de inércia
grupo, diminuindo a força da sele- observa-se nos registros arqueoló-
ção no nível do indivíduo relativa- gicos da indústria que se segue, a
mente à força da seleção no nível Acheulense (1,7 a 0,25 Maa), asso-
do grupo.24 ciada inequivocamente ao H. ergas-

159-161). Entretanto, há também que se levar em conta a relevância das pressões seletivas do ambiente social para
que se possa vencer a barreira adaptativa para a evolução da imitação, como mencionei na nota 17. Temos aqui uma
combinação complexa de pressões dos ambientes físico e social. Laland enfatiza o papel do ensino na acumulação
cultural além daquele, mais óbvio e não desvinculado do anterior, da linguagem (2017, p. 157-58; 174). Mas isso
só desloca a questão para outras, igualmente complexas, ligadas à evolução do ensino e à evolução da linguagem,
como discuto ao final deste artigo.
23 Segundo a TDH, a evolução tratou de assimilar geneticamente comportamentos, diminuindo o custo envol-
vido no cálculo da estratégia mais adaptativa, além de reduzir o custo do erro na aprendizagem individual em
certas condições ambientais. Alguns traços psicológicos humanos seriam inatos, no sentido de fortemente canali-
zados pelos genes. Ao mesmo tempo, convém ressaltar que o meio ambiente sempre joga um papel na manifestação
dos traços fenotípicos sobretudo, mas não exclusivamente, naqueles que são comportamentais, o que é consensual
entre os defensores das várias abordagens aqui examinadas que tomam a biologia como marco teórico.
24 Richerson et al., 2003, p. 368; cf. Richerson et al., 2002.
25 Para detalhes, ver Abrantes & Almeida, 2011.

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ter.26 Esta foi a primeira espécie duas hipóteses (cognitiva e demo-


do gênero a sair da África, e con- gráfica), acrescida de outras, para
tinuou evoluindo na Ásia para o explicar a estase cultural nessas es-
Homo erectus (1,9 a 0,2 Maa). Esta pécies do gênero Homo.27 Laland
última, embora tenha sido a espé- defende, com base em experimen-
cie de maior sucesso evolutivo do tação com aprendizes contemporâ-
gênero Homo já que foi a mais lon- neos, que a estase da cultura de Ol-
geva, manteve-se produzindo fer- duvai foi devida a uma transmis-
ramentas mais simples, semelhan- são deficiente de habilidades com
tes às da indústria Olduvaiense, base exclusivamente na imitação e
por todo esse imenso período. na emulação, sem ensino ou al-
A estase cultural pode estar li- gum meio de comunicação eficaz
gada a limitações cognitivas. Uma na forma de uma proto-linguagem,
outra hipótese, que me parece mais por exemplo (2007, p. 204).
plausível, é que essa inércia deu-se A estase Acheulense termina há
por uma demografia muito baixa. 0,25 Maa, início do Paleolítico mé-
Se os grupos que produziram os dio, e passamos a ter uma mudança
artefatos dessas indústrias eram cultural sustentada, com maior di-
muito pequenos, a simples deriva versidade de artefatos e diferen-
cultural pode ter impedido a acu- ças regionais entre os vários gru-
mulação de cultura. Explico-me: pos de hominínios, o que sugere
inovações podem ter surgido (e.g. uma resposta à questão de quando
novas técnicas de fabricação de ar- a cultura passa a funcionar como
tefatos líticos) mas não terem sido um sistema de herança (Rosenberg,
transmitidas de um indivíduo para 2006 p. 215). A hipótese da deriva,
outro, ou de geração a geração, que defendi acima, sugere, con-
devido a contingências ligadas à tudo, que as evidências arqueoló-
fissão dos grupos de hominínios gicas podem não refletir os proces-
em resposta às condições ecológi- sos relevantes: o equipamento psi-
cas que prevaleciam à época (ver cológico necessário para que a cul-
Grove et al., 2012; Foley et al. tura se acumule ao longo das gera-
2001, 2009, 2011). Pode-se vis- ções pode ter evoluído muito antes
lumbrar uma combinação dessas disso, mas a deriva ter impedido

26 A datação é aproximativa e vem sendo modificada constantemente em função de novas descobertas. Há quem
distinga, como faço aqui, os fósseis de H. ergaster encontrados na África dos fósseis de H. erectus encontrados na
Ásia apesar das suas similaridades, mas não há consenso entre os especialistas. Da-Glória, neste volume, menciona
uma única espécie, o erectus, e não faz essa distinção filogenética e geográfica.
27 Os efeitos da deriva cultural em função de mudanças demográficas foram bem documentados em populações
que viviam na Tasmânia há milhares de anos antes de lá chegarem exploradores europeus no séc. XIX (Henrich,
2004; Richerson & Boyd, 2005, p. 138).

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que esse potencial se manifestasse usado o fogo, são evidências sufici-


no registro arqueológico. Efetiva- entes de que uma dinâmica já es-
mente, há 500 mil anos houve um tivesse ocorrendo no campo cultu-
grande surto no crescimento do cé- ral.29
rebro, o que pode indicar que já
se tivesse atingido ordens mais ele-
Cooperadores desde o início?
vadas de intencionalidade associ-
adas a uma leitura sofisticada de Um cenário que propõe Toma-
mentes, possibilitando a imitação sello complementa, a meu ver,
fidedigna. O ator em cena era o aquele oferecido pela TDH e o en-
H. heidelbergensis (∼700 a 200 mil riquece, sobretudo no que diz res-
aa) que foi o ancestral comum do peito à evolução da psicologia hu-
H. neanderthalensis (∼400 a 40 mil mana e sobre como está cravada no
aa) e do H. sapiens. A nossa espé- mundo cultural. A cultura sempre
cie teria surgido há, pelo menos, desempenhou um papel central
200 mil aa, pelas evidências atu- nesse cenário que vem traçando
almente disponíveis.28 Uma outra para o desenvolvimento e a evo-
hipótese, compatível com a ante- lução humanas desde, pelo menos,
rior, é que esse pico na encefaliza- o seu livro de 1999, mas ele pró-
ção tenha estado associado a pres- prio reconhece que em seu livro
sões seletivas para uma melhor co- mais recente, de 2014, implementa
municação através de uma proto- mudanças significativas no pano
linguagem, mesmo que somente de fundo. A ênfase não é mais co-
gestual (Mithen, 2005, p. 159). locada na cultura como um “pro-
Laland defende uma posição cesso de transmissão” mas como
menos restritiva do que a minha e um “processo de coordenação so-
recua a acumulação cultural para cial” (Tomasello, 2014, p. x).
o início da cultura Acheuliense, a A “história natural” que ele nos
despeito da longa estase que se se- oferece coloca o foco, sobrema-
guiu. Ele considera que a primeira neira, na psicologia subjacente à
saída da África pelo ergaster, que já “coordenação social” (Tomasello,
teria caçado de modo sistemático e 2014, p. 4). Essa história te-

28 A datação para o surgimento do H. sapiens tem sido cada vez mais recuada e não me espantaria se alguma
evidência nova mostrar, de modo cabal, que a nossa espécie esteve perambulando pela África há mais tempo que
isso. Há também muito debate sobre a quantidade de espécies do gênero Homo e seu relacionamento taxonômico;
mudanças na sua nomenclatura e na filogenia têm sido frequentes para acomodar as novas evidências, sobretudo
as que afluem em enorme quantidade da genética.
29 Laland (2017, p. 10, 185-89, 200, 204-5). Hurford (2014, p. 5, 15, 82, 91) sugere uma posição mais próxima à
que defendo. Da-Glória, neste volume, apresenta evidências do uso de símbolos, provavelmente com função social,
em espécies hominínias vivendo há 500 mil anos, o que reforça a minha hipótese, mais conservadora do que a de
Laland.

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ria se desenrolado em três eta- de inferências. Ele também pre-


pas, correspondendo a diferentes cisa monitorar suas representa-
formas de intencionalidade: in- ções, os objetivos que se coloca e
dividual (individual intentionality), como afetam seu comportamento.
conjunta (joint intentionality) e co- Tais cognições são muito sofistica-
letiva (collective intentionality).30 A das, mas Tomasello defende que os
cada uma dessas adaptações está grandes símios têm mentes desse
associada uma modalidade espe- tipo, o que permite que pensem
cífica de pensamento, envolvendo a dinâmica do mundo físico- com
representação, inferência e auto- a imprevisibilidade que apresen-
monitoramento. tava sobretudo no Plioceno e no
Os grandes símios já seriam ca- Pleistoceno-, e especialmente do
pazes, segundo Tomasello, de in- mundo social. Ele chega a afirmar
tencionalidade individual. A cog- que esses símios não somente são
nição associada possui várias das agentes intencionais como perce-
propriedades do que chamei an- bem os seus congêneres como tam-
teriormente um ‘sistema intenci- bém o sendo. Suas mentes funcio-
onal’ (embora Tomasello não use nam de modo eficiente em contex-
essa denominação), em especial a tos sociais marcados pela competi-
de possibilitar grande flexibilidade ção (Tomasello, 2014, p. 20; 2008,
comportamental na lida com os p. 177).
ambientes físico e social, quando Mudanças no ambiente criaram
comparada a sistemas cognitivos as condições para que evoluís-
mais simples (Abrantes, 2006). sem comportamentos cooperativos
Efetivamente, o grande símio tem simples, que pressupõem uma ca-
que ser capaz de representar suas pacidade para a intencionalidade
experiências e seus objetivos com conjunta. Eles foram precursores
um certo grau de abstração; fa- da cooperação ampla que se verifi-
zer simulações com essas represen- cou posteriormente em grupos de
tações em contextos distintos da- hominínios. O indivíduo passa a
quele que se apresenta em dado ser motivado a desenvolver ativi-
momento; e transformar essas re- dades com um outro indivíduo, e
presentações usando vários tipos é capaz de representar a perspec-

30 Quero frisar que essa noção de intencionalidade não é a mesma usada anteriormente no presente artigo, que
remete a Brentano, como indiquei na nota 4. Trata-se, em Tomasello, de ‘intenção’ no sentido de uma meta, de
colocar-se um objetivo, de fazer algo tendo em vista um fim, seja individualmente seja com outros indivíduos.
Entretanto, embora não mencione Brentano, a noção de intencionalidade deste último está implícita nas várias
modalidades de pensamento que discute Tomasello, que envolvem a capacidade para representar e para leitura de
mentes, como discutirei a seguir. Ver também a nota 33.

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tiva distinta deste último, embora sua atenção para um objetivo que
ambos persigam, supostamente, o supõe também persiga.
mesmo objetivo (a intenção con- Para Tomasello, a etapa inter-
junta de, por exemplo, carregar mediária da intencionalidade con-
uma tora de madeira, o que cada junta é importante pois evita um
um deles não conseguiria fazer iso- salto da intencionalidade indivi-
ladamente). Essa interdependên- dual para a coletiva, o que con-
cia requer atenção conjunta e co- trariaria o gradualismo tão pre-
ordenação entre os indivíduos, que zado por um tratamento evolutivo-
frequentemente assumem papéis darwinista. A próxima etapa nessa
diferentes na atividade (Tomasello, história evolutiva conjectural31 é,
2008, p. 170). portanto, a de uma intencionali-
A intencionalidade conjunta dade coletiva, caracterizada por um
pressupõe também automonitora- pensamento “objetivo-reflexivo-
mento da conduta em função de normativo”, visando a coordenação
como os outros a avaliam, o que social (Tomasello, ibid., p. 4).
constituiu um embrião de sensi- Esse pensamento é “objetivo”
bilidade às normas sociais, que se porque consegue trabalhar com
afirmará na etapa seguinte de uma diferentes perspectivas, suposta-
genuína intencionalidade coletiva. mente as de outros agentes que
Aquele tipo de intencionalidade lidam conjuntamente com um
está associado à comunicação ges- mesmo problema que importa a to-
tual, pré-linguística, como na pan- dos.32
tomima. Os gestos, além de terem Supõe-se, além disso, uma capa-
uma semântica, podem ser combi- cidade para fazer leitura de men-
nados numa sintaxe que antecipa- tes com uma estrutura recursiva,
ria a de uma linguagem convenci- em que se concatena os estados
onal. mentais atribuídos a outros agen-
Além de automonitoramento é tes com os do próprio agente: ‘eu
preciso simular a perspectiva do espero que ele saiba que eu não
outro visando o sucesso da opera- pretendo ajudá-lo a fazer isso, mas
ção conjunta como, por exemplo, que estou disposto a fazer aquilo
ao apontar para algo que um in- que ele também quer fazer’. 33 O
divíduo considere seja informação agente faz então inferências com
relevante para o outro, dirigindo base nas relações que estabelece

31 Tomasello assume plenamente o caráter especulativo da sua proposta (2014, p. 152).


32 Tomasello (2014, p. 120) associa essa objetividade, significativamente, à view from nowhere de T. Nagel.
33 Essa recursividade compreende as diversas ordens de intencionalidade (no sentido de Brentano) a que fiz
menção no início deste artigo.

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entre o que ocorre consigo e aquilo tencionalidade coletiva.


que simula das intenções e crenças Tomasello defende que o Homo
dos outros agentes (“inferências re- heidelbergensis já exercia a inten-
cursivas sociais”). cionalidade conjunta há 400 mil
Esse pensamento próprio do sa- anos (Tomasello, ibid. p. 36, 141).
piens é, além disso, “normativo” Ele caçava animais grandes com
porque o agente consegue avaliar armas, o que exigia trabalho co-
e regular o seu comportamento, ordenado. Eu também ofereci ar-
e os estados mentais que o afe- gumentos acima que sugerem que,
tam, levando em consideração as a essa altura, já se era capaz de
regras de conduta e convenções do acumular cultura (e consequente-
grupo a que pertence. Trata-se de mente que esta passara a funcionar
uma “coletivização” das capacida- como uma nova modalidade de he-
des associadas à intencionalidade rança).
conjunta, descritas anteriormente
(Tomasello, ibid. p. 93).
A cultura no cenário de Tomasello
A evolução do pensamento e da
comunicação, desde o nosso ances- Esse psicólogo admite que ou-
tral comum com os chimpanzés até tras espécies, em especial os
o surgimento do gênero Homo (em grande símios, são capazes de
torno de 2Maa), deu-se por mu- aprendizagem social e têm, por-
danças ecológicas que exigiram co- tanto, cultura (que compreende
operação, o que implicou, por sua comportamentos típicos de um
vez, "novas formas de comunica- grupo que se mantêm por muitas
ção cooperativa"(Tomasello, 2014, gerações). Mas Tomasello a distin-
p. 36). gue da “cultura humana” (Ibid., p.
A principal pressão ecológica 82). Esta última promove a colabo-
nos primórdios do gênero Homo, ração, enquanto que a cultura dos
que teria desencadeado aquela grandes símios é eminentemente
evolução, consistiu na proliferação “exploradora” (exploitive). A etapa
dos macacos terrestres, que passa- da intencionalidade comum, de
ram a competir com nossos ances- práticas de cooperação envolvendo
trais por frutas e vegetais diversos. duplas de indivíduos foi, segundo
Eles foram forçados, então, a ocu- Tomasello, uma pré-condição para
par novos nichos ecológicos, ini- que se passasse da aprendizagem
cialmente como carniceiros (meat social, que já ocorria no ancestral
scavengers), o que requeria capaci- comum da nossa linhagem e a dos
dade para a intencionalidade con- chimpanzés, para uma “aprendi-
junta e, posteriormente, para a in- zagem cultural”, que ele entende
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como a tradução mesma da coo- fundo comum é, de toda forma,


peração que se dava nos primei- que a competição entre grupos
ros grupos de sapiens (ibid., p. 82, exige que cada um tenha homo-
128). Ele defende que certas mo- geneidade interna e seja bem de-
dalidades de coordenação entre in- limitado por seus respectivos tra-
divíduos na linhagem hominínia ços culturais, que funcionam como
precederam, evolutivamente, o pa- marcadores simbólicos.
pel que a cultura passou a desem- Ressaltei que em Tomasello a co-
penhar nesses grupos (Tomasello, operação nas atividades de forra-
2009, p. 93-5). geamento (tanto na caça quanto
A cultura passou a ser a “base na coleta) na fase inicial da evo-
comum” convencional de nor- lução no gênero Homo, alicerça-
mas, instituições e linguagem, das na intencionalidade conjunta,
um “mundo público” em que se antecedeu a emergência de uma
apóia uma cooperação mais am- forma de cultura especificamente
pla e que fornece identidade ao humana. Aquela fase preliminar
grupo (2014, 5, 85, 115 ). To- está ausente do cenário da TDH.
masello introduz essa cultura pro- Os proponentes desta teoria ten-
priamente humana em sua histó- dem a ver a cooperação ampla en-
ria natural quando os grupos cres- tre os membros do grupo como
cem e, num ambiente de conflito consequência da acumulação cul-
com outros grupos, tornam-se uma tural, que só ocorre significativa-
grande unidade cooperativa gui- mente a partir de um certo ponto
ada por uma “mente de grupo” da evolução no gênero Homo, como
(group-mindedness). Percebe-se, discuti antes. Mas a cooperação
claramente, uma convergência en- já deveria ocorrer muito antes, em
tre o cenário esboçado por Toma- menor escala: embora seja admis-
sello nessa etapa e aquele da TDH, sível que se possa aprender ob-
a despeito das diferenças de termi- servando o comportamento de al-
nologia. O viés conformista desta guém que seja um egoísta, certa-
última é traduzida, em Tomasello, mente essa aprendizagem é muito
pelo que denomina “normas de mais efetiva se o outro indivíduo
conformidade” (2009, p. 93-5). Há colaborar de alguma forma com
que se reconhecer, contudo, que es- aquele que quer imitá-lo, e desse
tas normas têm uma objetividade modo a cultura se acumularia com
para o grupo, enquanto os vieses mais facilidade. Não vejo incom-
da TDH são psicológicos (embora patibilidade entre os dois cenários
compatilhados por todos os indiví- mas uma diferença de ênfase: To-
duos e, portanto, universais). O masello coloca em evidência que a

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cooperação estava presente desde o nários. Chama a minha atenção,


início, embora restrita a poucos in- nesse tocante, a ambivalência en-
divíduos. Pode-se inferir que ele tre conflito e cooperação no modo
dá mais importância do que Ri- como os biólogos, antropólogos e
cherson e Boyd a pressões seletivas psicólogos evolutivos abordam a
ocorrendo no nível do indivíduo, evolução do comportamento hu-
como fator relevante na evolução mano, o que sugere que diferentes
da cooperação. Volto a isso mais a imagens estão implícitas nas suas
frente. apostas explicativas.35 Vou expli-
Por outro lado, Tomasello tam- citar nesta e nas seções seguintes
bém atribui um papel significativo alguns desses pressupostos, de ca-
ao conflito entre grupos na evolu- ráter mais filosófico, que se encon-
ção de um novo conjunto de capa- tram em camadas mais profundas,
cidades cognitivas e de uma nova menos visíveis, dos vários cenários
modalidade de comunicação, so- aqui investigados.
bretudo em períodos mais recentes A despeito da grande atenção
da evolução humana.34 A seleção que, desde cedo, Darwin concedeu
no nível do grupo teve, portanto, ao altruísmo (que estaria por trás
um papel central nesse processo da existência das castas neutras
em ambos cenários. Para tanto, nos insetos sociais, por exemplo),
fatores demográficos (maiores po- ele considerou indispensável a luta
pulações) e o conflito entre grupos pela existência (struggle for life)
foram responsáveis pelas pressões para que se dê o processo de se-
que levaram a que o sapiens gal- leção natural.36 Por isso, manteve-
gasse a terceira etapa na sua evolu- se associada ao darwinismo a ima-
ção cognitiva: a de uma intencio- gem de uma natureza "vermelha
nalidade coletiva. em dentes e garras"(red in tooth and
claw).
Haveria como superar essa am-
Conflito e cooperação
bivalência ou ela é inerente ao pro-
Enquanto filósofo, interesso- cesso de seleção natural e, por-
me pelas imagens de natureza hu- tanto, a qualquer abordagem bio-
mana assumidas, por vezes taci- lógica do comportamento? O al-
tamente, pelos pesquisadores que truísmo e, de modo mais geral, o
construíram esses diferentes ce- comportamento cooperativo é efe-

34 Tomasello 2014, p. 93, 121; 2009, p. 86-7, 93-5; 2009, p. 99; 2008, p. 213-14.
35 As imagens de ciência subjacentes não estão sendo tratadas aqui, como deixei claro na nota 3.
36 Entretanto, as formulações recentes da seleção natural tendem a ser mais abstratas e não explicitam essa
condição (Godfrey-Smith, 2009, p. 17-20).

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tivamente difícil de ser compre- 2004, p. 157-8).


endido num quadro de referên-
cia evolutivo. Para tanto, Darwin Podemos identificar aí uma ima-
sugeriu que a seleção atue tam- gem de natureza que supõe que
bém no nível da “família” (Darwin, os comportamentos pró-sociais ge-
2003, p. 243). Ao debruçar-se so- ram um benefício para o grupo,
bre o caso humano na sua obra de mesmo que diminuam a apti-
1871, ele apela para a moral que, dão dos indivíduos no interior do
ao promover comportamentos pró- grupo. O apelo ao “bem do grupo”,
sociais, dá ao grupo mais chances de modo a explicar o altruísmo em
de sobreviver e crescer na competi- termos biológicos, tornou-se co-
ção com outros grupos que tenham mum desde a proposta original de
menos indivíduos altruístas: Darwin, mas passou a ser dura-
mente criticado por alguns biólo-
Não pode ser esquecido que, gos muito influentes na segunda
embora um alto padrão de metade do séc. XX, o que fez prati-
moralidade confira pouca camente desaparecer essa imagem.
ou nenhuma vantagem para Ela foi substituída por uma na qual
cada homem individual- a seleção só pode atuar em níveis
mente ou para suas crian- inferiores ao do grupo: seja o do
ças em relação aos outros indivíduo, seja o do gene (Bernal
membros da tribo, um acrés- & Abrantes, no prelo). A partir
cimo no número de pessoas de então, os biólogos evolucionis-
capacitadas e um avanço no tas tenderam a enfatizar as pro-
padrão de moralidade certa- pensões humanas para o conflito,
mente dará impensa vanta- que compartilharíamos com outros
gem a uma tribo em relação animais. A idéia de uma inteligên-
a outra. Uma tribo que ti- cia maquiavélica pressupõe, clara-
vesse muitos membros que, mente, um cenário de conflito en-
possuindo em alto grau o es- tre os indivíduos, como assinalei
pírito do patriotismo, da fi- antes.
delidade e da obediência, co- Surpreendentemente, observou-
ragem e simpatia, estivessem se nos últimos anos uma tendência
sempre prontos para ajudar- oposta: a cooperação passou a ser
se mutuamente e sacrificar- tomada como modelo para explicar
se pelo bem comum, seria vi- as diversas transições em individu-
toriosa sobre a maioria das alidade que ocorreram desde o sur-
outras tribos; e isso seria gimento da vida na Terra, a exem-
a seleção natural (Darwin, plo da emergência dos organismos
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multicelulares que pressupõe a co- tas áreas da biologia e das ciên-


laboração e a divisão de traba- cias sociais (nestas últimas, esta
lho entre as suas células (Queller, posição é mais comumente conhe-
1997; Abrantes, 2013a, 2014c). A cida como ‘individualismo meto-
própria célula eucariota pode ser dológico’). Nas discussões sobre os
descrita como envolvendo a cola- fundamentos da biologia essa pers-
boração entre organelas que, antes, pectiva é conhecida como ‘funcio-
viviam autonomamente. nalismo individual’, que se contra-
Entretanto, essa tendência a pri- põe ao ‘funcionalismo de grupo’.
vilegiar a cooperação não elimina Nesta última posição, grupos são
o conflito, simplesmente o desloca considerados reais de um ponto
para um outro nível da hierarquia de vista ontológico e não simples-
biológica. Por exemplo, no caso mente um mero somatório de in-
da transição para os organismos divíduos (Sober & Wilson, 2003, p.
multicelulares, o conflito deixa, em 10-11, 159; Wilson & Sober, 1994;
larga medida, de ocorrer entre as Hodgson & Knudsen, p. 155, 164).
células para se dar entre os pró-
prios organismos. No caso hu-
Evolução do igualitarismo
mano, vimos exemplos disso nos
cenários propostos por Richerson, A cooperação esteve associada
Boyd e Tomasello: a seleção natu- a uma estrutura social mais igua-
ral atua em pelo menos dois níveis litária em grupos de hominínios
simultaneamente: do indivíduo e do Pleistoceno, que também nesse
do grupo.37 tocante se distanciaram gradual-
No contexto da discussão so- mente das estruturas hierárquicas
bre como diferentes imagens de típicas dos grandes símios onde
natureza humana influenciaram o um ou poucos indivíduos monopo-
modo de se pensar o comporta- lizam os recursos, sejam estes ali-
mento pró-social em termos evo- mentos ou parceiros sexuais. Vá-
lutivos, é importante ressaltar que rias pressões seletivas, tanto do
muitos dos defensores da relevân- ambiente físico quanto do social e
cia da seleção de grupo percebem cultural, combinaram-se para pro-
a sua proposta como estando em duzir essa evolução (Plazas & Ro-
oposição a uma perspectiva indi- sas, 2014). Quero destacar so-
vidualista que campeia em mui- mente uma delas, que está mais

37 Os mecanismos selecionistas clássicos adotados para explicar o altruísmo tendem a selecionar egoístas. Mesmo
a seleção de parentesco e o altruísmo recíproco podem ser considerados mecanismos que pressupõem uma natu-
reza egoísta (a preservação dos meus genes em gerações futuras), e somente explicam a cooperação em grupos de
indivíduos aparentados geneticamente. Ver Bernal & Abrantes, no prelo.

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diretamente ligada aos temas que sem o uso de dispositivos com esse
abordo neste artigo: a formação de fim, o que só se deu em períodos
coalizões envolvendo um grande mais recentes-, certamente contri-
número de indivíduos. buiu para dissuadir os grandalhões
Chimpanzés formam coalizões dominadores, reduzindo a sua ap-
para se confrontarem ao macho tidão em comparação com os in-
alfa, mas poucos indivíduos as in- divíduos mais fracos e/ou menos
tegram, pois a formação de coali- agressivos. A partir de um certo
zões maiores é muito exigente do momento, essas pressões iguali-
ponto de vista psicológico. Em tárias passaram a ser consubs-
contraste, Boehm (1999, 2006) de- tanciadas em normas aceitas pelo
fende que se instalou em grupos grupo, que cuidava para que fos-
de hominínios uma “hierarquia in- sem seguidas fazendo, eventual-
vertida” em que o líder do grupo mente, uso de sanções morais mais
passa a ser submetido aos ditames ou menos severas.38
da maioria dos seus membros, o Podemos até especular que esses
que criou as condições para a evo- grupos igualitários tenham pas-
lução de uma genuína “psicologia sado a funcionar, em várias situa-
igualitária”. Não me parece espú- ções, como verdadeiros indivíduos,
rio vincular esta tese de Boehm às no sentido biológico do termo
de Tomasello acerca da evolução (Abrantes, 2013a). Tomasello de-
da intencionalidade coletiva, bem fende uma versão psicológica dessa
como às teses da TDH sobre as fun- tese: os grupos igualitários passa-
ções do viés conformista e dos ins- ram a ter uma “mente de grupo”
tintos tribais, desde que se tenha (a ser “group minded”), o que exi-
presente que esses traços psicoló- gia “objetividade” da parte de cada
gicos provavelmente evoluíram em agente no tocante às normas e aos
diferentes momentos. Todos eles interesses do seu grupo como um
aumentam a intensidade da sele- todo, ofuscando em grande medida
ção que atua no nível do grupo, a sua perspectiva e os seus pró-
comparada à que atua em níveis in- prios interesses enquanto indiví-
feriores. duo (2014, p. 92-3, 153).
O arremesso de pedras e ou- Com a chegada do Holoceno
tros objetos por coalizões- mesmo há 12 mil anos instalou-se um

38 Cabe aqui uma referência às “normas de conformidade” de que nos fala Tomasello e que abordei acima. Não
tenho espaço para tratar aqui do tema correlato da evolução da moralidade, que certamente infletiu a trajetória da
evolução humana numa nova direção, como já sugerira Darwin. Isso vem sendo abordado pela incorporação mais
efetiva de conceitos emprestados à biologia contemporânea. Ver a esse respeito Rex & Abrantes, 2017; Almeida &
Abrantes, 2012.

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clima estável e o contexto da evo- las ciências sociais, têm que ser
lução humana mudou completa- acionados para compreendermos a
mente. A invenção da agricul- saga humana recente.39
tura possibilitou a vida sedentária As mudanças nesses últimos mi-
e grande crescimento populacio- lhares de anos se apoiaram, en-
nal, exigindo formas mais comple- tretanto, no equipamento psicoló-
xas de organização social, não mais gico que havia evoluído no Plio-
baseadas no igualitarismo mas na ceno e no Pleistoceno, num espaço
hierarquia e centralização do po- de tempo de, pelo menos, 2 mi-
der. O conflito entre grupos nôma- lhões de anos (se nos ativermos ao
des e sedentários provavelmente se que ocorreu a partir do surgimento
acirrou, já que nestes últimos os do gênero Homo). Elementos carac-
recursos se concentram espacial- terísticos da cultura humana, como
mente (Abrantes, 2014c). a religião e a própria ciência, por
A dinâmica cultural acelerou-se exemplo, teriam sido possibilita-
enormemente e tornou-se o fator dos por recrutaram diversas dessas
principal. A partir daí temos, como capacidades, como a de ler mentes
preferem alguns, História, no sen- e cooperar em grandes grupos (No-
tido mais usual do termo. Embora renzayan et al. 2013; Slingerland
a evolução biológica não tenha dei- et al., 2013).
xado de ocorrer, o seu passo é mui-
tíssimo mais lento que o da dinâ- Adaptacionismo e construtivismo
mica cultural. Além disso, trans-
correu desde então um intervalo de O adaptacionismo é uma tese a
tempo muito curto para que a evo- respeito do poder da seleção natu-
lução com base na herança genética ral: a maioria dos traços dos orga-
pudesse afetar significativamente nismos, sobretudo aqueles que são
traços complexos, como os psicoló- complexos, deve ser explicada pelo
gicos e comportamentais. A evolu- processo de seleção natural à ex-
ção biológica já não mais respon- clusão de outros como, por exem-
deu pelas mudanças vertiginosas plo, a deriva (Sober, 2000, p. 124).
que conduziram ao espectro com- O adaptacionista comete o erro,
portamental observado nas socie- acusam os seus críticos, de pressu-
dades atuais. Outros instrumen- por que todas as características dos
tos conceituais, desenvolvidos pe- organismos são adaptações ótimas
ao ambiente em que vivem (o que

39 Isso não impede que se tente aplicar modelos importados da biologia evolutiva para se pensar a evolução cul-
tural, como indiquei na nota 19, e mesmo para explicar eventos em períodos muito recentes da história humana.
Ver, a esse respeito, Almeida (2016).

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Gould chamou, ironicamente, de a tais restrições, etc.


“paradigma panglossiano”) e que Um dos alvos das críticas de
possuiriam, por conseguinte, uma Lewontin e Gould foram as estorie-
função (por isso essa posição é tas (just-so stories) adaptacionistas,
também conhecida como ‘funcio- propostas para explicar toda sorte
nalista’). Nem todas as caracterís- de característica dos organismos,
ticas dos organismos são, na ver- tanto relativas à forma quanto à
dade, adaptações, desempenham função. A tese adaptacionista a
funções e tampouco são ótimas (Se- respeito do poder explicativo da
púlveda et al., 2011). seleção natural (à exclusão de ou-
As críticas de Gould e Lewon- tros mecanismos) não seria testá-
tin ao adaptacionismo, em seu in- vel; e as estorietas geradas nessas
fluente artigo de 1978, podem ser bases tampouco poderiam ser sub-
consideradas construtivistas em seu metidas à prova empírica (Sober,
caráter: os seres vivos não são pas- 2000, p. 124).
sivos, defendem eles, mas alteram Qual a incidência dessa contro-
o seu ambiente de modo funda- vérsia em filosofia da biologia para
mental, modulando dessa forma as a temática deste artigo?
pressões seletivas. O construti- Traços psicológicos e comporta-
vismo volta a colocar o organismo mentais são, seguramente, com-
no centro do processo: em vez da plexos e o adaptacionista defende
visão de um nicho a priori (ao in- que evoluíram por seleção natu-
vocar a metáfora, bastante comum, ral e não poderiam ser explicados
da chave-fechadura) haveria uma por outros processos. A própria
interação dinâmica entre os orga- cultura é considerada uma adapta-
nismos e seus ambientes. O adap- ção (Richerson & Boyd, 2005, cap.
tacionista, como interpretado usu- 4), bem como a ultrassociabilidade
almente, não leva em conta a cons- humana.
trução de nichos como força evolu- Em oposição a isso, o construti-
tiva. vista enfatizará que humanos são
No entanto, outros fatores são construtores de nicho por excelên-
(igualmente) relevantes na evo- cia e a cultura é uma componente
lução além da seleção natural: central desses nichos. A espécie
contingências históricas (que po- humana evoluiu pelas pressões se-
dem ser responsáveis pela deriva, letivas exercidas também pelo ni-
por exemplo), restrições biológicas cho cultural (pode-se dizer, alter-
(formas pre-existentes que são co- nativamente, que o sapiens ocupou
optadas para outros fins), a cana- esse nicho). Odling-Smee e colabo-
lização no desenvolvimento devido radores (2003, p. 14, 245) defen-

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dem que ao lado de uma herança 2017, p. 167-68, 188).


genética e de uma herança cultural O fato de que os bebês nas-
existe também uma "herança eco- cem cada vez mais prematuros- de-
lógica", que lega às gerações futu- vido a mudanças anatômicas na
ras os ambientes construídos pelas pelve em consequência da pos-
que as antecederam (Abrantes & tura ereta e ao concomitante cresci-
Almeida, 2011, p. 287-90). Os in- mento do cérebro-, se comparados
divíduos humanos se desenvolvem aos recém-nascidos de outras espé-
nesses nichos construídos e grande cies, requer mais cuidado parental
parte das suas características psi- e por mais tempo permitindo, por
cológicas e comportamentais (que sua vez, um período mais longo de
são o foco deste artigo) expressam- aprendizagem social. Isso abriu es-
se na ontogênese. Cada geração paço para uma diversidade de tra-
participa, de modo crucial, da for- jetórias ontogenéticas e maior fle-
mação das novas gerações, prepa- xibilidade comportamental (Perez,
rando o ambiente para que ela se neste volume; Mithen, 2005).
dê de forma adequada a um ambi- O cuidado parental destaca-se
ente particular, social e cultural (o na evolução da cooperação no gê-
que pode ser visto como um tipo de nero Homo, já que avós e adultos
canalização, por analogia com a ca- de outras famílias passam a cui-
nalização genética). dar das crianças, liberando as mães
Nesse contexto, o ensino adquire para a atividade de coleta de ali-
um significado especial. Em outras mentos, que são repartidos na co-
espécies, incluindo os grandes sí- letividade.40 Essas redes de colabo-
mios, ele é raríssimo. Grupos hu- ração (ao lado da caça cooperativa
manos, por sua vez, envolveram- envolvendo, sobretudo, homens)
se não somente com o ensino (ens- podem ter estado na base de uni-
killment) de habilidades complexas dades de cooperação mais amplas
demais para serem aprendidas por dentro do grupo (Tomasello, 2014,
adultos inexperientes mas, sobre- p. 133; 2009, p. 83-6). Este psicó-
tudo, com o ensino de crianças, de logo, indo ao encontro de outros ci-
modo a criar um ambiente propício entistas e filósofos construtivistas,
ao seu desenvolvimento (Laland, não considera as “adaptações bio-

40 A longevidade das mulheres após a menopausa é um enigma de uma perspectiva evolucionista. Se o cuidado
dos netos aumentar as chances de que estes sobrevivam, esse enigma se dissolve com base na aptidão inclusiva (os
genes que são compartilhados entre avós e netos têm maior probabilidade de se propagar). O cuidado coletivo com
as crianças, mesmo por parte daqueles que não são familiares, pode ser explicado por aumentar a disponibilidade
de alimentos para o grupo como um todo (caso as mães e os pais, liberados para a caça e a coleta, se dispuserem
a compartilhá-los, é claro), além de contribuir para a transmissão da cultura do grupo para esses novatos. Ver
Suddendorf, 2011, p. 228-9.

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lógicas” associadas à intencionali- evolução, já estava sinalizando esse


dade coletiva como “simplesmente novo caminho.
inatas”, mas entende que emer- Há propostas para se explicar a
gem ao longo do desenvolvimento ultrassociabilidade humana dimi-
num ambiente preparado com esse nuindo a centralidade que tem a
fim. Aprendizes (tipicamente cri- seleção de grupo na TDH e dando
anças) desenvolvem as habilidades mais ênfase aos processos ontoge-
para objetividade, reflexividade e néticos e de construção (cultural)
normatividade nas suas interações de nicho. A cooperação no forra-
com outros indivíduos experientes geamento, com divisão de traba-
do seu grupo, em meio a uma cul- lho entre mulheres e homens, bem
tura acumulada por várias gera- como o cuidado parental comparti-
ções, com seu conjunto de normas, lhado podem ter aumentado a ap-
convenções e instituições. A comu- tidão dos indivíduos desde muito
nicação através da linguagem sim- cedo no gênero Homo.41
bólica seria também imprescindí- As novas gerações herdam ni-
vel para maior efetividade da in- chos construídos e se beneficiam
tencionalidade coletiva (2014, p. do envolvimento ativo das gera-
146-8). ções mais velhas no ensino das
Se nos afastarmos do adapta- competências relevantes para se vi-
cionismo e do funcionalismo que ver neles. O compartilhamento de
estão implícitos tanto na aborda- informações importantes para a so-
gem que aponta para a seleção no brevivência, o envolvimento em es-
nível mais baixo possível (o do tratégias coletivas de defesa contra
gene) quanto na que prega que a predadores na savana, a constru-
seleção atua em múltiplos níveis- ção coletiva de abrigos também se
o que leva a se buscar adapta- incluem nessas práticas cooperati-
ções/funções em cada um deles- vas.
indo em vez disso na direção do Certas motivações e caracterís-
construtivismo-, abrem-se as por- ticas emocionais, como maior to-
tas para outras explicações possí- lerância com respeito aos apren-
veis dos comportamentos coopera- dizes, especialmente crianças e jo-
tivos, sobretudo no caso humano. vens, devem ter emergido nesse
Ao sugerir acima uma maior apro- processo envolvendo múltiplos fa-
ximação entre desenvolvimento e tores num entrelaçamento com-

41 Indiquei acima que Tomasello, em contraste com os articuladores da teoria da dupla herança, inclina-se mais
para essa posição. O adaptacionista pode replicar levantando a possibilidade de ter havido seleção sexual por parte
das mulheres, que escolhiam homens mais dispostos a colaborar na criação das crianças e na sua alimentação. Isso
teria contribuído, inclusive, para uma diminuição do dimorfismo sexual (Plazas & Rosas, 2014, p. 282-84).

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plexo entre evolução e desenvolvi- mento’, que tem mobilizado mui-


mento. tos esforços atualmente, tanto de
Essa ênfase nas pressões seleti- biólogos quanto de filósofos (ver
vas que atuam sobre o indivíduo Bloise & Folguera, neste volume).
pode ser interpretada como um re- Antropólogos como Ingold tam-
torno ao individualismo metodoló- bém entraram em cena, radicali-
gico, mas a centralidade da cons- zando essa visão: ‘genes’ e ‘cultura’
trução de nichos na história natu- existiriam somente nos “olhos dos
ral que nos contam indica que se investigadores”: o processo real se-
trata de uma posição que se loca- ria o de um “vir a ser biossocial”
liza entre os extremos do indivi- em um “campo de relações” (In-
dualismo e do ‘coletivismo’- se me gold, 2013, p. 12; Ingold, 2000, p.
permitem o termo para não cair no 385; Fuentes, 2013, p. 48). O cons-
cipoal semântico de outros como trutivismo de Ingold revela-se em
‘holismo’.42 sua defesa da posição, já exposta
Também pode-se pressupor que acima, de que o desenvolvimento
no clima extremamente adverso do de um indivíduo desde a sua infân-
Pleistoceno os grupos frequente- cia acontece em um ambiente que
mente precisavam cooperar entre é preparado pelas gerações anteri-
eles, pois as dificuldades momen- ores (Ingold, 2001, p. 139; 2013;
tâneas de um deles seriam mitiga- Fuentes, 2013, 2016).
das pela ajuda de um outro que Para a teoria dos sistemas de
estivesse em melhor situação na- desenvolvimento (Griffths & Gray,
quele momento; e, claro, essa situ- 1988) a evolução é a replicação
ação sempre podia inverter-se e ge- diferencial de ciclos de um pro-
rava a expectativa de reciprocidade cesso de desenvolvimento e não, sim-
(Sterelny, 2012). plesmente, a reprodução diferen-
cial de organismos- vistos como ex-
pressões fenotípicas de genótipos,
Desenvolvimento e evolução como na teoria evolutiva que re-
sultou da grande síntese com a ge-
A visão construtivista favorece,
nética. A proposta é não sepa-
portanto, uma aproximação en-
rar o organismo do ambiente (fí-
tre desenvolvimento (ontogenia)
sico, biológico, social e, nos casos
e evolução (filogenia), abordagem
pertinentes, cultural) e tampouco
conhecida como ‘evo-devo’ ou ‘bi-
privilegiar algum recurso do sis-
ologia evolutiva do desenvolvi-

42 Sterelny defende, entretanto, que o conflito entre grupos e a seleção de grupo passam a ser inescapáveis para
explicar o que ocorre no Holoceno, como detalho em Abrantes, 2014c, p. 299-301.

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tema como, por exemplo, o gene ria biológica dos humanos, englo-
(Oyama, 1966, 2000; cf. Bloise & bando todas essas histórias parci-
Folguera, neste volume). Na li- ais (Oyama, 1996, p. 357). Eviden-
nha dos defensores da teoria dos temente, a biologia a que se refere
sistemas de desenvolvimento, In- não é somente a evolutiva mas in-
gold (1994, p. 8) argumenta que clui também a biologia do desen-
as capacidades atribuídas aos in- volvimento e, provavelmente, ou-
divíduos são, na verdade, propri- tras áreas da biologia e de ciências
edades dos sistemas de desenvol- afins (ver Bloise & Folguera, neste
vimento, contrapondo-se aos que volume).
pressupõem, por exemplo, a exis-
tência de uma capacidade humana
Linguagem e evolução humana
para a cultura com uma base gené-
tica, como é o caso dos proponen- Abri este artigo defendendo a
tes da TDH. importância de se identificar a es-
Especialmente no caso humano, pecificidade da mente humana e
genes e culturas participam dos de explicá-la. É comum invocar-se
processos integrados de desenvol- imediatamente a linguagem- com
vimento e evolução, gerando carac- as características com que hoje
terísticas espécie-específicas, in- se apresenta (caráter simbólico e
clusive no plano psicológico. As es- convencional, sintaxe, recursivi-
truturas sociais, por exemplo, en- dade, generatividade, composici-
quanto "elementos da cultura", são onalidade, etc.), em comparação
requeridas para a “replicação es- com as formas de comunicação que
tável de características psicológi- observamos em outras espécies-,
cas humanas evoluídas” (Griffiths como sendo o grande divisor de
& Gray, 1998, p. 141; cf. Laland, águas na evolução humana. A ima-
2017, p. 190, 194). gem de que a linguagem é o traço
Uma implicação dessa aborda- distintivo da espécie humana deita
gem é que a história passa a ser raízes não somente no senso co-
vista como uma continuação da mum mas também numa tradição
evolução (Ingold, 2013, p. 9). filosófica e científica que remonta,
Oyama, indo nessa direção, vis- pelo menos, a Descartes (lembre-
lumbra um contínuo entre a his- mos que para ele o fato dos animais
tória evolutiva (filogenia), a his- não passarem no teste da lingua-
tória dos historiadores e a his- gem provaria que não pensam).
tória de desenvolvimento de um O tema da evolução da lingua-
indivíduo (ontogenia). Teríamos, gem é extremamente complexo e
na sua visão, uma única histó- suscita muita controvérsia- eu não
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poderia sequer dar aqui os pri- a própria linguagem! Por exem-


meiros passos para abordá-lo ca- plo, muitos pesquisadores defen-
balmente.43 Gostaria somente de dem, de modo convincente, que
marcar posição a respeito de um a comunicação através da lingua-
ponto: embora seja indubitável gem pressupõe a capacidade para
que a forma humana de se co- leitura de mentes e precisaríamos,
municar através da linguagem não em primeiro lugar, explicar a emer-
tem paralelo em outras espécies, é gência desta última e de capacida-
um equívoco colocá-la cedo demais des relacionadas, como tentei su-
em cena na trajetória evolutiva da cintamente nas seções anteriores.44
mente humana. Além de não Outra questão: a modalidade
oferecer uma explicação aceitável de inteligência requerida para li-
da singularidade dessa trajetória, dar com a complexidade dos am-
essa atitude impede que o pró- bientes sociais pressupõe a lingua-
prio tema da evolução dessa moda- gem ou evoluiu de forma inde-
lidade de comunicação, com seus pendente? Há vários cenários que
pré-requisitos psicológicos, anatô- podem ser explorados. Em um
micos etc., seja abordado (Toma- deles, a ToM seria um requisito
sello, 2008, p. 59). tanto para uma inteligência social
Sem dúvida, a partir do mo- quanto para o exercício de uma
mento em que humanos tiveram forma de comunicação sofisticada
linguagem com as propriedades (supondo-se que aumentam a apti-
acima elencadas, isso impulsionou dão dos indivíduos nesses ambien-
enormemente a dinâmica cultu- tes). Pode-se vislumbrar, também,
ral; mas não podemos nos fur- cenários de coevolução entre essas
tar a tratar dos períodos iniciais capacidades.
dessa evolução nos quais, segundo Tomasello argumenta que novas
os registros arqueológicos disponí- modalidades de cooperação esta-
veis, a cultura mudava mais lenta- vam associadas a novas formas de
mente ou mesmo apresentava es- comunicação: primeiramente ha-
tase, como ressaltei anteriormente. via a “comunicação colaborativa”
No entanto, esses primevos acon- pré-linguística através de gestos
tecimentos podem ter sido cruciais naturais e pantomima; mais tarde,
para se compreender como surgiu evoluiu uma linguagem convenci-

43 Ver Pievani, 2014; Saraiva, 2014; Hurford, 2014; Tomasello, 2008. Da-Glória, neste volume, oferece evidências
anatômicas e genéticas relevantes para balisar a evolução da linguagem.
44 Seyfarth & Cheney, 2013, p. 68-70; Malle, 2002; Tomasello, 2014, p. 127; Sperber, 2000, p. 121; Dennett, 1995,
p. 378-380. Para a relação entre leitura e comunicação linguística no desenvolvimento infantil, ver Tomasello, 2000,
p. 110-103, 174-182.

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onal a partir daquela forma de co- cas como recursividade, por exem-
municação (2008, p. 219-20). plo. A explosão cultural do Paleo-
O cenário de Mithen para a evo- lítico superior, há somente 50 mil
lução da linguagem, a que faz re- anos atrás, pode ser um indicador
ferência Diana Perez neste volume, de que a evolução da linguagem ti-
centra-se nas implicações evoluti- vesse atingido um novo patamar,
vas da postura ereta, que fez com embora o processo tenha, prova-
que os hominínios nascessem cada velmente, sido gradual e começado
vez mais cedo, alargando o período muito antes.45
de cuidado parental e, portanto, Portanto, não devemos apelar
de maior interação entre as crian- para a linguagem cedo demais para
ças e seus genitores. A postura explicar a trajetória particular, e
ereta não somente teve implicações extraordinária, que a evolução to-
para a rigidez e posicionamento mou no gênero Homo. A acumu-
da laringe como teria aumentado lação cultural é uma melhor can-
a necessidade de maior controle didata para explicar a origem dos
sensório-motor; esse cérebro mais nossos traços espécie-específicos e
complexo pode ser exaptado para não precisava, em suas etapas ini-
outras funções ligadas à socializa- ciais, de uma linguagem como a
ção, à musicalidade e formas mais nossa atual para que pudesse ocor-
sofisticadas de comunicação pré- rer. Inverter essa ordem causal se-
linguística (Mithen, 2005, p. 146- ria “colocar o carro na frente dos
58). bois”, um dito popular para um
A linguagem verbal com as ca- erro igualmente popular.46
racterísticas atuais é, muito pro- Cenários com um caráter mais
vavelmente, um produto relativa- construtivista também podem ser
mente recente da evolução do H. explorados. Laland defende, por
sapiens. Pode até ser que se te- exemplo, que a acumulação cul-
nham passado dezenas de milha- tural e o ensino geraram as pres-
res de anos desde o surgimento sões seletivas para o surgimento
desta espécie para que a lingua- de uma linguagem cada vez mais
gem tivesse adquirido característi- sofisticada. Por sua vez, a lin-

45 Para McBrearty e Brooks, num artigo que teve grande impacto, o “equipamento cognitivo” que possibilitou
esse esplendor cultural já estava presente há, pelo menos, 250 mil anos, ou seja, antes mesmo do surgimento da
nossa espécie. Fatores de várias ordens, inclusive demográficos, impediram que a cultura tivesse se manifestado an-
tes de modo tão magnífico, ao menos com base nas evidências que dispomos hoje (2000, p. 458, 531-2). Vimos que
Mithen, em oposição a isso, defende a tese do desencapsulamento da mente humana para explicar o que foi, para
ele, uma mudança abrupta na evolução do sapiens. Em um livro mais recente, continua defendendo essa posição
no que diz respeito à evolução da linguagem (Mithen, 2005, p. 257-259). Cf. Rosenberg, 2006, p. 220.
46 Cf. Dediu et al. 2013; Hurford, 2014, p. 39.

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guagem, por retroalimentação, au- maneiras às imagens discutidas até


mentou a fidelidade na transmis- aqui, correrei uma vez mais o risco
são de cultura, acelerou a sua dinâ- de simplificar brutalmente.
mica, melhorou a eficiência do en- Cenários para a evolução hu-
sino e diminuiu os seus custos. Te- mana pressupõem imagens de
ríamos uma coevolução complexa mente. Os psicólogos evolucionis-
entre esses processos e as capaci- tas, por exemplo, rejeitam a ima-
dades cognitivas que lhes dão su- gem de uma mente que resolve
porte, incluindo a teoria da mente problemas os mais diversos com
(Laland, 2017, p. 167-68; 184, 194- um dispositivo genérico (imagem
97). que atribuem às ciências sociais) e
Laland vê, portanto, a evolução a substituem pela imagem de uma
de formas mais sofisticadas de co- mente dividida em módulos, cada
municação como tributárias da ne- um especializado numa tarefa re-
cessidade de se transmitir, através levante no ambiente ancestral em
do ensino, formas culturais com- que, supostamente, evoluiu o sa-
plexas que resultaram de acumu- piens (Waizbort & Porto, 2011).
lação ao longo de gerações. Ini- Tanto Sperber quanto Mithen ado-
cialmente, crianças eram ensina- tam, com modificações menores,
das desse modo no âmbito fami- essa imagem. O primeiro defende,
liar e depois indivíduos em um cír- inclusive, a existência de um mó-
culo cada vez mais amplo dentro dulo para a metarrepresentação
do grupo cultural (2017, p. 185- e Mithen o acompanha nesse to-
192). Nesse cenário, foi a acumula- cante (2002, p. 309). Como vi-
ção cultural que exerceu a pressão mos, este último supõe que, em
seletiva crucial para que o ensino certo momento, os módulos men-
evoluísse; este último, por sua vez, tais que eram inicialmente encap-
exigiu uma forma de comunicação sulados passaram a trocar informa-
mais eficiente e acurada através da ção dando margem a uma grande
linguagem. fluidez cognitiva. Ele usa essa hi-
pótese, como vimos, para explicar
a explosão cultural que ocorreu no
Imagens de mente
Paleolítico superior (Ibid., p. 249),
Para concluir, vou tratar de e que nos rendeu as fabulosas pin-
forma rápida de um outro conjunto turas rupestres de Chauvet e Las-
de imagens que, por si só, exigi- caux, para ficarmos com as realiza-
riam artigos exclusivamente dedi- ções desses sapiens (Cro-Magnons)
cados a elas. Mas como são incon- que mais nos impressionam. Te-
tornáveis, pois associadas de várias nho reservas a respeito dessa ima-

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gem modular de mente e faço as died), situada e estendida (no sen-


minhas críticas em outro lugar.47 tido de envolver o ambiente em seu
Richerson e Boyd evitam, cau- funcionamento cognitivo).49
telosamente, ingressar nessa seara Na concepção de uma mente es-
mais filosófica, embora simpati- tendida, a cultura e nichos cons-
zem com alguns aspectos do mo- truídos desempenham papéis cen-
dularismo da psicologia evolucio- trais não só na economia cognitiva
nista proposta pela escola de Sta. de um agente particular mas tam-
Bárbara. Eles não podem, contudo, bém na evolução de agentes de um
admitir uma implicação dessa ima- certo tipo. A cultura que compõe o
gem de mente: de que a cultura é ambiente de um grupo social cum-
informação contida nos vários mó- pre funções não só no desenvolvi-
dulos mentais e meramente evo- mento dos agentes mas também na
cada pelo ambiente e não transmi- evolução das populações que inte-
tida de indivíduo para indivíduo. gram!
Aceitar isso seria colocar por terra Acredito que a abordagem de
o pilar central da TDH: de que a Tomasello dá sustentação a essa
cultura funciona como um sistema imagem de uma mente estendida,
de herança (2005, p. 5; 44-5)! In- mas ele não explicita isso, ao meu
dubitavelmente, é muito menor o conhecimento, nos seus trabalhos,
papel que desempenha a cultura embora em vários momentos cor-
na evolução humana segundo o ce- teje a idéia de uma ‘mente de
nário daquela versão da psicologia grupo’ (group-mindedness; we-ness)
evolucionista.48 associada à intencionalidade con-
Gostaria de apontar simples- junta (Tomasello, 2014, p. 5, 80-1,
mente, já que não há espaço aqui 88, 93, 152).
para desenvolver essa tese, que
uma abordagem construtivista da Conclusão
evolução de uma “mente embebida
na cultura”, que dê ao desenvolvi- Espero ter devidamente quali-
mento um papel crucial nesse pro- ficado em que sentido o mundo
cesso, pode reforçar a imagem de da cultura é um mundo especi-
uma mente corporificada (embo- ficamente humano, não somente
no sentido de moldar cada um de

47 Abrantes, 2006; Abrantes & Almeida, 2011, p. 283-4.


48 Evidentemente, a escola de Sta. Bárbara não detém o monopólio sobre a expressão ‘psicologia evolucionista’,
que se refere a qualquer teoria que trate da evolução da mente (Dunbar & Barrett, 2009), a despeito de ser a versão
mais conhecida e popular, sobretudo no Brasil.
49 Referências importantes incluem: Clark, 2008, esp. p. 76 et seq.; Gamble et al., 2014, p. 106-7; Audisio, 2017;
cf. Shapiro, 2010.

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nós no curto tempo ontogenético gerar algum conhecimento a esse


da nossa existência- que se de- respeito, para além da estupefa-
senrola nos nichos construídos no ção e do maravilhamento de que
tempo histórico de nações e ci- nos falou, alguma vez, Aristóteles.
vilizações, uma tese bastante evi- Para tanto, partimos de imagens
dente e consensual-, mas que a de natureza humana enraizadas na
condição humana foi moldada pela nossa experiência ordinária, ainda
cultura no tempo histórico pro- que incertas e pouco nítidas, e por
fundo da filogenia do Homo sapiens vezes conseguimos melhor precisá-
e de outras espécies hominíneas las e, eventualmente, revê-las ge-
com as quais compartilhamos an- rando conhecimento comum e co-
cestrais comuns, perpassando de- nhecimento científico, que se nu-
zenas de milhares de gerações. trem mutualmente.
De modo menos ortodoxo, pode- Para quem me acompanhou até
se dizer que a evolução da es- aqui, peço licença para introdu-
pécie humana desenrola-se num zir, nesses últimos parágrafos, uma
único tempo histórico, que engloba nota mais pessoal. Dei o título
o desenvolvimento de cada um de “O homem e seus mundos: pers-
nós e a dinâmica das populações, pectivas filosóficas e científicas”
numa sinergia permanente envol- ao Colóquio em minha homena-
vendo processos que vão dos genes gem que foi feito na UnB em ju-
aos grupos passando pelos indiví- nho de 2017 e que resultou na pu-
duos, e que se retroalimentam. Es- blicação deste número da Revista
ses processos embricados ocorrem de Filosofia Moderna e Contemporâ-
em vários níveis ontológicos si- nea. Na abertura do evento rela-
multaneamente, que distinguimos tei que a escolha que havia feito
para poder compreendê-los com a desse título fora motivada, origi-
finitude das nossas mentes (que nalmente, pela distinção entre um
são produtos desses mesmos pro- ‘mundo interno’ (da mente; da ex-
cessos!), e para os submeter aos periência, etc.) e um ‘mundo ex-
procedimentos analíticos da filoso- terno’ (físico/biológico, social, cul-
fia e das ciências, na esperança de tural/simbólico, etc.) e pela intui-

50 O conceito de ‘mundo’ é amplamente usado em Filosofia. Uma pequena lista é sugestiva: mundo material,
mundo das idéias, mundo sensível, mundo inteligível, mundo da experiência, três mundos (Popper), mundo sub-
jetivo, mundo objetivo, mundo da vida, visão de mundo, mundos possíveis, a interpretação de muitos-mundos da
MQ, etc. Nas pesquisas preliminares que fiz, não encontrei, contudo, um tratamento aprofundado e geral desse
conceito e, certamente, ele foi menos explorado do que outros correlatos, como o de ‘natureza’, por exemplo. O
meu colega Róbson Ramos dos Reis, da UFSM, em comunicação pessoal, advertiu-me, contudo, que o conceito de
‘mundo’ é central na fenomenologia de Husserl (Lebenswelt) e também em Heidegger. Pensando em um título para
o evento, o que me veio à mente foi o título de uma coletânea que folheei quando fazia pesquisas no Centro de

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ção de que alguns aspectos desses nett, por exemplo, fala do ambi-
mundos fossem exclusiva ou carac- ente interno das criaturas popperi-
teristicamente humanos.50 anas e das gregorianas, por exem-
O mundo externo é extrema- plo (1995, p. 374-79).
mente diversificado, pois inclui Que animais têm, além de
não somente o mundo físico mas um mundo externo, também um
também o biológico (outros orga- mundo interno? Não pretendo ar-
nismos). Em muitos animais, além riscar uma resposta para esta ques-
disso, o mundo social é de imensa tão difícil, mas acredito que não
relevância para o seu desenvolvi- possamos tratar o mundo interno
mento e também para a sua ap- daqueles animais que o têm, e o
tidão, tendo portanto implicações seu mundo externo como indepen-
evolutivas. Esses vários mundos, dentes. Nem todas as característi-
ou dimensões do mundo desses or- cas do ambiente são percebidas por
ganismos apresentam, além disso, um dado organismo ou relevantes
diferentes graus de complexidade, para ele. Além disso, os organis-
no sentido que dei ao termo neste mos modificam o seu ambiente em
artigo. diferentes graus, com implicações
tanto para o seu desenvolvimento
Em biologia usa-se o conceito de quanto para a dinâmica da popu-
‘ambiente’. O conceito de mundo lação a que pertencem. De toda
é mais geral e tem a vantagem forma, a fronteira entre o mundo
de abarcar tanto o que é interno interno e o mundo externo é mó-
quanto o que é externo a um dado vel. A teoria dos sistemas de de-
animal, o que o conceito de ambi- senvolvimento tende, inclusive, a
ente não admite, pelo menos como dissolvê-la, como vimos, e também
empregado usualmente pelos bió- a imagem de uma mente estendida.
logos. É bem verdade que alguns Os biólogos também usam o con-
filósofos se apropriaram desse con- ceito de ‘nicho’ para explicitar es-
ceito e estenderam o seu uso. Den-

Filosofia da Ciência da Universidade de Pittsburgh nos idos dos anos 1980 e que, desde então, ficou submerso nas
profundezas do meu inconsciente: Cosmos of Science: Philosophical Problems of the Internal and External Worlds,
1998. Trata-se de uma coleção de ensaios organizada por John Earman e John Norton em homenagem ao filósofo
da ciência Adolph Grunbaum, pessoas com quem tive contato bastante próximo à época. Talvez o título dessa co-
letânea tenha me chamado a atenção por sugerir não só a existência de uma pluralidade de mundos, mas sobretudo
por implicar que se esse ‘Cosmos’ é da ciência então é um produto humano, e não algo completamente depurado
dos elementos subjetivos de uma perspectiva humana. Argumento que essa subjetividade, entretanto, não é ab-
soluta na medida em que se trata da perspectiva de uma espécie, de uma população, e não a de um indivíduo
particular.
51 Brandon (1995, p. 47-9) distingue três conceitos de ambiente em biologia: externo, ecológico e seletivo (cf. Ste-
relny & Griffiths, 1999, p. 269-272). Nas discussões que faço nesta Conclusão, o conceito de ambiente seletivo é o
mais central. O ambiente de desenvolvimento é aquele envolvido na ontogenia dos organismos e Brandon defende
que deve ser incorporado ao ambiente seletivo (Brandon, ibid., p. 52).

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sas diversas correlações entre o que ção de Umwelt proposta por von
é interno e o que é externo a um Uexküll também se situa nessas
dado organismo.51 O conceito de cercanias conceituais. Gibson pre-
‘nicho’ tem uma rica história e cor- tende, com o conceito de affor-
responde, grosso modo, aos ambi- dance, superar a dicotomia sub-
entes ecológico e seletivo de um or- jetivo/objetivo. Eu acrescentaria
ganismo. A construção de nichos que uma abordagem evolucionista
é um processo que tem importân- e desenvolvimental também tende
cia central em vários dos cenários a dissolver a dicotomia entre o
para a evolução humana que dis- que é particular a um indivíduo
cuti neste artigo. e o que é universal em uma es-
Bem depois de ter escrito os pa- pécie. O mundo da cultura não
rágrafos acima dei-me conta, nas é somente o mundo em que cada
discussões que tivemos no grupo um de nós vive, ou o mundo de
de pesquisa ‘Mente, Linguagem e um grupo (como os mundos cul-
Evolução’ (MELE), que J. J. Gibb- turais que pesquisam os antropó-
son (1979) já havia criado um logos) mas é também, e sobretudo,
termo, ‘affordance’, para capturar um mundo da espécie Homo sapi-
essas idéias.52 Esse termo vem ens, e mais uma vez remeto ao tí-
sendo empregado nas mais diver- tulo deste ensaio: ‘Uma mente em-
sas áreas, inclusive para se pensar bebida na cultura’.
a evolução do comportamento.53 É Este artigo já está suficiente-
difícil ser original em nossos dias... mente longo e não caberia desen-
Gibson aproxima, inclusive o volver essas idéias aqui. Isso ficará
conceito de ‘affordance’ do con- para uma outra oportunidade.
ceito de ‘nicho ecológico’. A no-

52 Poderíamos tentar traduzir ‘affordance’ por ‘oportunidade’, que é oferecida pelo meio ambiente para um orga-
nismo de certo tipo; ou o que está à disposição dele e que pode ser aproveitado e explorado por ele no ambiente.
53 Nesse sentido, o artigo de Withagen & van Wermeskerken (2010) é bastante instrutivo.

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Filosofia, Ciencias Cognitivas y Sentido Común: El Caso
de la Segunda Persona de la Atribución Mental
[Filosofia, Ciências Cognitivas e Senso Comum: O Caso da Segunda
Pessoa da Atribuição Mental]

Diana I. Pérez*
Resumen: En este trabajo hago un ejercicio filosófico de aplicación
de una visión naturalista de la filosofía analizando desde esta pers-
pectiva la discusión acerca de la naturaleza de la psicología folk,
y mostrando la superioridad de la perspectiva de segunda persona
para dar cuenta de este fenómeno. Para ello presentaré la perspectiva
naturalista que adopto, luego presentaré brevemente las perspectivas
clásicas cartesianas (la teoría de la teoría y la teoría de la simulación)
para, finalmente, presentar la perspectiva de segunda persona mos-
trando cómo se puede dar cuenta de las continuidades ontogenéticas
y filogenéticas que subyacen al desarrollo de la psicología folk,
incorporando en esta explicación tanto elementos filosóficos como
científicos.
Palabras Clave: psicología folk, naturalismo, Paulo Abrantes, segun-
da persona

Resumo: Neste trabalho, faço um exercício filosófico de aplicação de


uma visão naturalista da filosofía, analisando dessa perspectiva a dis-
cussão sobre a natureza da psicologia popular e mostrando a superio-
ridade da perspectiva da segunda pessoa para explicar esse fenômeno.
Para isso, apresentarei a perspectiva naturalista que adoto e, em se-
guida, apresentarei brevemente as perspectivas cartesianas clássicas
(a teoria da teoria e a teoria da simulação), para, finalmente, apre-
sentar a perspectiva da segunda pessoa, mostrando como podem ser
explicadas as continuidades ontogenéticas e filogenéticas, que subja-
zem ao desenvolvimento da psicologia popular, incorporando nesta
explicação elementos filosóficos e científicos.
Palavras-chave: psicologia popular, naturalismo, Paulo Abrantes, se-
gunda pessoa

Un parte importante de nuestra vi- cial. Las interacciones entre hu-


da humana transcurre con nues- manos tienen características dife-
tros semejantes, en contexto so- rentes a las que tienen nuestras

* Profesora Asociada. Departamento de Filosofía. Facultad de Filosofía y Letras. Universidad de Buenos Aires
Investigadora Principal IIF-SADAF-CONICET. E-mail: dperez@filo.uba.ar

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.6, n.1, jul. 2018, p. 49-72 49
ISSN: 2317-9570
DIANA I. PÉREZ

interacciones con el mundo físi- teóricos de la teoría y teóricos de


co. Nuestra comprensión del mun- la simulación desarrollada durante
do humano supone sumergirnos la última parte del siglo XX. Estas
en las profundidades de la mente teorías presuponían el marco cog-
humana, en los pensamientos, ex- nitivista ortodoxo, cartesiano, que
periencias y emociones que senti- ha sido fuertemente cuestionado
mos y que reconocemos en los de- en los últimos años. Es por eso
más. Para poder navegar exitosa- que, en tercer lugar, presentaré una
mente en estas aguas hacemos uso manera alternativa, postcognitivis-
de ciertas habilidades propiamente ta de dar cuenta de estas habili-
humanas, algunos las denominan dades, denominada perspectiva de
habilidades de lectura de mentes segunda persona de la atribución
(Baron-Cohen 1995), otros habili- mental. Mostraré cómo es que es-
dades de interpretación (Abrantes ta propuesta resulta una forma ge-
2010, siguiendo a Godffrey-Smith), nuina de dar cuenta de la naturale-
otros psicología folk (Churchland za de estas habilidades de interpre-
1981, Fodor 1987, Pérez 2013) o tación con una ventaja notable so-
psicología de sentido común (Ra- bre las propuestas clásicas: permi-
bossi 2000); usaré indistintamente te dar cuenta de una manera más
estas expresiones en lo que sigue. adecuada de las continuidades on-
En tanto forman parte de nues- togenéticas y filogenéticas, es decir
tro bagaje cognitivo, estas habili- permite dar cuenta de una manera
dades han sido estudiadas por las más apropiada de la cuestión acer-
ciencias cognitivas, y en tanto par- ca de la adquisición de estas habi-
te de nuestro sentido común han lidades.
sido también objeto de reflexión fi-
losófica. Es por ello que estructura-
1. Filosofía, Ciencias (Cognitivas)
ré este trabajo de la siguiente ma-
y Sentido Común.
nera. En la primera parte, propon-
dré un marco filosófico naturalis- La relación entre ciencia y filo-
ta para el estudio de la mente hu- sofía ha sido fluctuante a lo lar-
mana en general, y de estas habi- go de la historia. Hasta hace unos
lidades en particular. En la segun- 200 años, la mayoría de los gran-
da parte haré una breve revisión de des filósofos eran, al mismo tiem-
las propuestas surgidas tanto en el po, los más importantes científicos
ámbito de la filosofía como de las de su época: pensemos en Aristó-
ciencias cognitivas para dar cuen- teles que no sólo nos legó la Me-
ta de estas habilidades, centrán- tafísica, sino además tratados de
dome en la polémica clásica entre ciencia, como la Física, De anima
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ISSN: 2317-9570
FILOSOFIA, CIENCIAS COGNITIVAS Y SENTIDO COMÚN

o De motu animalium. Incluso Pla- ciencia y la filosofía a principios


tón nos legó interesantes reflexio- del siglo XIX. Uno de ellos es la
nes de ciencia política en las Le- progresiva y exponencial especiali-
yes y en la República, así como re- zación en las ciencias que llevó a
flexiones acerca del psicología hu- un crecimiento tal de los conoci-
mana en el Fedro. Lo mismo ocu- mientos científicos que hacen hoy
rrió en la edad moderna: Descartes, imposible albergar en una sola ca-
además de las Meditaciones Metafí- beza toda la información relevante
sicas, de sus reflexiones filosóficas para dominar enciclopédicamente
sobre el método científico!, y de sus todas las ciencias. Pero el segundo
aportes matemáticos a la geometría hecho es más interesante filosófi-
analítica, escribió una Óptica, así ca e históricamente y está sutil y
como el Tratado del hombre y el Tra- brillantemente relatado en Rabos-
tado de las pasiones, en donde ex- si 2008 (Caps 1 y 2). Se trata del
puso sus conocimientos de anato- proceso de institucionalización de
mía, fisiología y psicología, funda- la filosofía, iniciado a finales del si-
dos en hallazgos empíricos.1 Locke glo XVIII con la separación de la
nos ofreció el tratado de ciencia po- Facultad de Filosofía de la de Teo-
lítica fundacional del estado repu- logía en la Alemania de Kant, y que
blicano moderno tal como lo con- culminó con el establecimiento de
cebimos hasta hoy en su Ensayo del un “canon filosófico” entre cuyos
Gobierno Civil, y Hume una Histo- preceptos centrales está la separa-
ria de Gran Bretaña. Leibniz, por su ción de la ciencia y la filosofía, pre-
parte es uno de los padres del aná- cepto claramente encarnado en la
lisis matemático. A esto hay que siguiente cita: “La filosofía no es
agregar el hecho de que los hom- una de las ciencias naturales (la pa-
bres como Newton, que hoy que- labra ‘filosofía’ debe significar algo
dan fuera de la historia de la filo- que esté sobre o bajo, pero no jun-
sofía y se etiquetan como “científi- to a las ciencias naturales)” (Witt-
cos” fueron también filósofos, y no genstein, Tractatus, 4.111).
sólo porque como Newton, hayan Fue Quine en 1965 con su “na-
estado a cargo de una cátedra de turalización de la epistemología”
“filosofía natural” sino además por quien atrajo nuevamente la aten-
sus elucubraciones “metafísicas”.2 ción filosófica a la idea de que cien-
Hay, sin embargo, dos hechos cia y filosofía podrían formar parte
que llevaron a la separación de la del mismo “bote”, el bote de Neu-

1 Véase Aguilar 2010.


2 Es sabido que Newton realizó prácticas esotéricas, ocultismo, magia y alquimia.

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.6, n.1, jul. 2018, p. 49-72 51
ISSN: 2317-9570
DIANA I. PÉREZ

rath, compartiendo el mismo des- vertical, como proponía Wittgens-


tino en su navegación por las in- tein):5 en mi opinión hay que pen-
quietas aguas de la experiencia. De sar a la filosofía y a la ciencia co-
acuerdo con mi lectura de su natu- mo contribuyendo conjuntamente
ralismo aplicado a la relación en- al aumento del conocimiento de es-
tre la filosofía de la mente y las te peculiar objeto de estudio que
ciencias de la mente,3 incluyendo es la mente humana.6 Por supues-
las ciencias cognitivas pero no só- to, esta empresa interdisciplinaria
lo ellas (Pérez 1999 y 2002), el sa- no carece de dificultades: entre las
ber científico y la reflexión filosó- más evidentes están la dificultad
fica forman parte del mismo bo- para acuñar un lenguaje común
te, ya que comparten su inquietud para poder “pensar juntos” los pro-
cognoscitiva por un mismo domi- blemas, actividad para la que los fi-
nio de objetos: las mentes huma- lósofos están especialmente entre-
nas y porque hay un continuo en- nados, y la cuestión institucional
tre los métodos filosóficos y cientí- de la separación de ámbitos aca-
ficos que se hace patente tanto en démicos que a veces hacen difícil
el hecho de que hay métodos com- la comunicación. Tal como sostiene
partidos, por ejemplo experimen- Abrantes 2010, al defender la te-
tos mentales, como en el hecho de sis del compatibilismo, una de las
que la aclaración conceptual es in- tareas de la filosofía es “coordinar
dispensable para el avance de la in- puntos de vista científicos y de sen-
vestigación empírica.4 tido común (acerca del mundo y
Así, en mi opinión, la filosofía de de nosotros)” (Abrantes, 2010, p.
la mente y las ciencias que estu- 336). Comparto este punto de vista
dian la mente humana se encuen- metafilosófico con Paulo Abrantes.
tran en una relación horizontal (no La filosofía y la ciencia cogniti-

3 Incluyo entre estas ciencias a los varios paradigmas psicológicos diferentes existentes en la actualidad (psi-
cología cognitiva, psicología evolucionista, psicología social, psicoanálisis, psicología conductista, psicología
sistémica, psicología gestáltica, etc.), así como a otros saberes como antropología, etología, sociología, ciencias de la
computación, inteligencia artificial y, por supuesto a las ciencias cognitivas como emprendimiento interdisciplinar
que incluye la filosofía.
4 Hay mucho ejemplos de cuestiones desarrolladas gracias a estos vasos comunicantes entre filosofía y ciencia:
un caso paradigmático es el del “test de falsa creencia”, diseñado por psicólogos (Wimmer y Perner, Baron-Cohen)
a partir de un comentario que un filósofo (Dennett) hace de un trabajo de dos etólogos (Premack y Woodruff).
Véase Balmaceda 2016 para una historia de este test.
5 Es por esta razón que prefiero etiquetar a mis propias reflexiones filosóficas como formando parte de la filo-
sofía de la mente, y no de la filosofía de la psicología: en tanto filósofa, mi objeto de estudio es la mente humana,
no las disciplinas científicas que estudian la mente humana (aunque ellas también contribuyen al conocimiento de
la mente humana, por lo que no puedo estar ajena a sus teorías).
6 No estoy sosteniendo que la ciencia y la filosofía sean las únicas actividades que nos permiten conocer mejor
las mentes humanas: la literatura y en general el arte, también son un camino posible, pero defender esta idea
excede los límites de este trabajo.

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va (que es la disciplina científica de actitud filosófica a adoptar respec-


la que me ocuparé en lo que sigue) to del sentido común era la de la
van de la mano para comprender mera descripción. De esta manera,
los fenómenos psicológicos en ge- el filósofo debería contentarse con
neral, por lo que las consideraré so- explicitar (elucidar) los conceptos
lidarias también para comprender y concepciones que conforman este
el fenómeno psicológico del que entramado, presupuesto pero nun-
me ocuparé en el resto del traba- ca explicitado en nuestra vida coti-
jo: nuestras habilidades para com- diana, de convicciones y creencias
prender las mentes humanas, ha- que nos permiten vivir la vida hu-
bilidades que poseemos todos los mana que vivimos, pero sin preten-
seres humanos y que desplegamos der cambiar nada (Una vez más re-
en nuestra vida cotidiana. Pero este suenan las palabras de Wittgens-
tema nos agrega un elemento adi- tein, esta vez en la Investigaciones
cional: nuestro “sentido común” es Filosóficas: “La filosofía no puede
decir el conjunto de creencias, sa- interferir en modo alguno con el
beres y convicciones que subyacen uso del lenguaje; puede a la pos-
a nuestra navegación por el mun- tre sólo describirlo. Pues no puede
do, tanto físico como social. Y es- tampoco fundamentarlo. Deja to-
te sentido común ha sido también do como está” (#124) “La filosofía
objeto de reflexión filosófica desde expone meramente todo y no ex-
hace mucho tiempo (explícitamen- plica ni deduce nada” (#126)) Es-
te Descartes y Pascal en la moder- ta idea parte del presupuesto erró-
nidad, y gran parte de la filosofía neo de que el sentido común es
analítica “del lenguaje ordinario”). inamovible, que no cambia ni se
Un asunto será especialmente transforma, que (tal vez) se trate de
relevante en este trabajo: la relacio- un conjunto de sesgos propios de
nada con la actitud que el filósofo nuestra biología, tallados en nues-
debe adoptar respecto del sentido tra mente como consecuencia de
común. Strawson (1959) distinguió nuestra historia evolutiva. Pero el
entre lo que denominó una meta- sentido común no es inamovible.
física descriptiva y una metafísi- Cambia. Se transforma. El sentido
ca revisionista y se ubicó a sí mis- común de las diversas comunida-
mo entre los cultivadores de la pri- des humanas sobre la tierra con-
mera. Muchos filósofos del senti- tiene convicciones y presupuestos
do común (especialmente muchos acerca del mundo y de nosotros
de los filósofos del lenguaje ordina- mismos, muy diversas. Siempre se
rio del siglo XX: Moore, Strawson, puede buscar un nivel de abstrac-
Ryle, Rabossi) consideraron que la ción lo suficientemente alto como

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para encontrar coincidencias, pero es decir estas habilidades que ex-


esto nos deja con un conjunto casi hibimos en nuestras interacciones
vacío de “verdades” de sentido co- intersubjetivas humanas que nos
mún, un conjunto de afirmaciones permiten entender a nuestros in-
formales, vacías de contenido.7 terlocutores como seres con men-
El sentido común cambia. Y te. Muchos de los estudios tan-
cambia tanto como consecuen- to filosóficos como psicológicos de
cia del aumento del conocimien- estas habilidades han presupues-
to científico (un ejemplo interesan- to que el sentido común psicoló-
te es el del concepto de sentido gico entiende a las mentes a la
común “raza”, que recientemente manera cartesiana (nótese que és-
busca ser excluido del ámbito cien- ta ya es una manera filosófica de
tífico8 ), como por la acción críti- describir el sentido común!); esto
ca de la filosofía (pensemos en los es, como algo interno, accesible só-
cambios históricos producidos por lo inferencialmente a partir de lo
el pensamiento de Marx que ex- que podemos realmente observar:
plícitamente buscó transformar el la conducta pública. A explicitar
mundo con su filosofía). La acti- los compromisos y versiones de es-
tud crítica de la filosofía es un ta propuesta está dirigido el pró-
motor del cambio conceptual aun ximo apartado. Sin embargo, esta
en nuestras más básicas convic- manera de entender el sentido co-
ciones de sentido común. Así, mi mún como cartesiano ha sido cues-
propuesta (ya anticipada en Pérez tionado, entre otros el propio Witt-
1999) es que el bote de Neurath de- genstein (y por muchos otros filó-
be contener a la ciencia, a la filoso- sofos y psicólogos en el siglo XX)
fía y al sentido común, en crítica y al poner en duda que la compren-
dinámica interacción. sión cartesiana de la mente real-
Lo que queda de este trabajo mente refleje los modos cotidianos
puede leerse como un ejercicio de de entendernos los unos a los otros.
esta convicción metafilosófica. Me En una primera persona del plu-
voy a ocupar de una porción del ral en la que me incluyo, Witt-
sentido común, el sentido común genstein sostuvo “Nosotros recon-
psicológico, es decir, el conjunto ducimos las palabras de su empleo
de creencias, convicciones, concep- metafísico a su empleo cotidiano”
tos y concepciones que subyacen (IF, #116), mostrando que las afir-
a nuestras interacciones sociales, maciones cartesianas acerca de la

7 Véanse Rabossi 1979, 2000, 2008a y Pérez 2013 para un intercambio de opiniones sobre este tema.
8 Cf. Yudell et. al 2016.

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mente y de la duda acerca de la a la subjetividad, a los pensamien-


existencia del mundo externo pre- tos en primera persona; por otro
sentada por el genio maligno no lado, el conocimiento de las otras
son más que “chichones” del en- mentes, siempre indirecto, siempre
tendimiento al sobrepasar los lími- mediado por inferencias produci-
tes del lenguaje. Esta crítica Witt- das a partir de la observación de la
gensteiniana a la comprensión car- conducta pública, un conocimien-
tesiana del sentido común psicoló- to objetivo, de tercera persona.
gico nos invita a repensar las for- Tradicionalmente, la discusión
mas en las que debemos compren- acerca de la naturaleza de la psico-
der nuestras habilidades de inter- logía folk reflejó esta dualidad en-
pretación. A esta revisión está des- tre primera y tercera persona pro-
tinado el último apartado de es- pia del pensamiento cartesiano, al
te trabajo, en el que expondré los incluir dos propuestas en pugna:
lineamientos básicos de la “pers- la de los teóricos de la teoría (TT)
pectiva de segunda persona de la y la de los teóricos de la simula-
atribución mental” de inspiración ción (TS) (véanse Davies y Stone
Wittgensteiniana. 1995a, 1995b, Carruthers y Smith
1996). La comprensión de la psico-
2. La polémica TT/TS logía folk se concentró en la atri-
La filosofía de la mente domi- bución de creencias y por lo tan-
nante en la segunda mitad del si- to en las condiciones de posesión
glo XX, el funcionalismo, así co- del concepto de creencia, entendi-
mo la ciencia cognitiva ortodo- da como una actitud proposicio-
xa, de acuerdo con la cual nues- nal, es decir como un estado psi-
tras capacidades cognitivas deben cológico en el que un individuo
ser descriptas en términos de pro- está en una cierta relación (acti-
cedimientos computacionales des- tud) con un cierto contenido men-
encarnados que operan sobre re- tal (una proposición) vehiculizado
presentaciones simbólicas internas por una representación mental ins-
son, sin duda, formas actualizadas tanciada en nuestro cerebro. Todos
de la visión moderna de la mente los demás conceptos psicológicos
expuesta de forma paradigmática que forman parte de nuestra pis-
en las Meditaciones Metafísicas de cología folk, tales como deseos, in-
Descartes. De acuerdo con esta vi- tenciones e incluso emociones de-
sión, hay dos caminos de acceso a bían acomodarse a esta estructu-
las mentes: por un lado, la intros- ra, dado que la posesión de cual-
pección como vía directa, indubi- quiera de ellos presupone la ma-
table, de acceso a la propia mente, nipulación de representaciones in-

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ternas almacenadas en nuestra me- teorías más complejas, incluyendo


moria, de acuerdo con el cogniti- las más sofisticadas que los huma-
vismo clásico. El experimento di- nos han alcanzado: las teorías cien-
señado para establecer la presencia tíficas. De acuerdo con estos psi-
del concepto de creencia –y de las cólogos (Gopnik y Meltzoff 1997)
capacidades propias de una “men- hay un conjunto inicial de teorías
te representacional”- en los niños para diferentes dominios (psicolo-
fue el famoso “test de falsa creen- gía, física, biología, aritmética) que
cia”.9 De acuerdo con los resulta- cambian a medida que los niños
dos recogidos en los primeros usos adquieren experiencia del mundo.
de este test, los niños típicamen- Cuando los niños son capaces de
te logran resolver la tarea de falsa pasar el test de falsa creencia po-
creencia entre los cuatro y los cin- demos afirmar que han adquirido
co años de edad, usando el concep- la sofisticada teoría de la mente,
to de creencia (en particular la idea o psicología de deseos y creencias,
de que alguien posee una creen- que comparten todos los seres hu-
cia errónea) para predecir acciones manos adultos típicos, es decir, ha
humanas, concepto que no mane- adquirido una teoría de la men-
jan antes de dicha edad. La pre- te representacional (Perner 1994).
gunta es cómo es que los niños lo- Los estadios anteriores identifica-
gran poseer esta habilidad concep- dos por los psicólogos del desarro-
tual a esta edad, y cómo los esta- llo no son más que teorías más sim-
dios anteriores de desarrollo posi- ples que serán corregidas por la ex-
bilitan este pasaje. Diferentes me- periencia. Dado que la teoría ini-
canismos fueron propuestos para cial es la misma en todos los huma-
dar esta explicación. nos (porque está determinada bio-
La primera opción es la provis- lógicamente), los mecanismos de
ta por la teoría de la teoría. La formación y cambio de teorías son
idea central es que los seres huma- los mismos para todos (por la mis-
nos poseemos (desde nuestro naci- ma razón) y el mundo que experi-
miento) mecanismos de formación mentamos es el mismo para todos,
de teorías que pueden ser apli- todos los niños adquieren la misma
cados a diferentes dominios, es- teoría a aproximadamente la mis-
to es mecanismos de propósito ge- ma edad.
neral que producen cambios teó- Los filósofos que suscriben la
ricos desde teorías más simples a idea de que la psicología folk es

9 Véase Balmaceda 2016 para una revisión de la historia de este test hasta nuestros días, y su relación con los
estudios acerca de la psicología folk.

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una teoría más como otras (por la teoría, lo mismo ocurre con los
ejemplo Lewis 1972 y Churchland conceptos psicológicos.10
1981) agregan dos ideas que, has- La segunda propuesta clásica es
ta donde sé, también son implíci- la teoría de la simulación. Esta teo-
tamente aceptadas por los psicó- ría está basada en la idea de que
logos. Primero, que la psicología la psicología folk no es un conjun-
folk es una teoría de la mente en to de generalizaciones que aplica-
el sentido de que los conceptos psi- mos al caso particular cuya men-
cológicos son considerados los tér- te queremos entender, sino que el
minos inobservables/teóricos de la mecanismo básico supone “poner-
teoría, en tanto que las conductas se en el lugar del otro”, como sos-
son la “base empírica” correspon- tuvieron los comprensivistas des-
diente al ámbito de lo observable. de los inicios del siglo XX. Hay va-
Así, en tanto teoría, la psicología rias versiones muy diferentes de la
folk postula una serie de entidades teoría de la simulación,11 me cen-
inobservables que sirven primaria- traré en la versión de A. Goldman
mente para predecir la conducta de (1989, 1992, 1993, 2009) por ser
los demás, estando constituida por la más ampliamente conocida, y la
una serie de conceptos de tercera que atiende más directamente a los
persona que se aplican sólo deri- supuestos de las ciencias cogniti-
vativamente a la primera persona; vas clásicas. La teoría de la simu-
en este sentido el caso de la auto- lación sostiene que el proceso de
atribución psicológica es cualitati- atribución mental depende de una
vamente similar (tal vez con algu- inferencia que hacemos a partir del
na diferencia de grado) al de la ter- caso de primera persona al de ter-
cera persona (Gopnik 1993). En se- cera, y que los conceptos usados en
gundo lugar, el significado de los la descripción del caso de primera
conceptos psicológicos se agota en persona pueden ser aplicados me-
el conjunto de conexiones teóricas diante un mecanismo de proyec-
en las que está inmerso. Así como ción al caso de la tercera. Gold-
los términos teóricos de una dis- man 1993 es muy claro acerca del
ciplina científica adquieren su sig- proceso de formación de concep-
nificado por el rol que juegan en tos psicológicos: el punto de par-

10 La teoría de la teoría también tiene una formulación modularista ( Leslie 1987, 1994, 1999 y Fodor 1992)
en la que se postulan mecanismos computacionales específicos de dominio para este ámbito cognitivo. Las dos
versiones de la teoría de la teoría comparten el supuesto de que hay conceptos psicológicos desde el comienzo, la
diferencia es cuáles son estos conceptos: para los modularistas los mismos que para los adultos, para los que creen
en mecanismos generales serán otros, aquellos en los que está formulada la teoría inicial.
11 Véase Pérez (2013, Capítulo 4) para un análisis detallado de las diversas versiones de la teoría de la simulación.

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tida es la introspección de un es- las mentes ajenas a un momento en


tado cualitativo que es etiquetado el que pueden hacerlo. En efecto,
en este acto introspectivo, etique- parece tan milagroso que los niños
ta que posteriormente se extiende espontáneamente formen la misma
a los otros (las terceras personas) teoría de la mente, en todas las cul-
bajo el supuesto de que tienen una turas y a la misma edad, como re-
vida cualitativa y psicológica simi- sulta milagroso que en algún mo-
lar a la nuestra. Así las adscripcio- mento del desarrollo los niños se
nes de estados mentales ocurren- den cuenta de que pueden proyec-
tes de primera persona son previos tar sus propios estados mentales en
a cualquier otra atribución psicoló- los demás. Es importante notar que
gica.12 la dificultad que enfrentan tanto
Además de las críticas generales las teorías que sólo atienden a la
al cognitivismo clásico y a la vi- tercera persona (la TT) como las
sión cartesiana de la mente, la teo- que sólo atienden a la primera (la
ría de la teoría y la teoría de la si- TS) es conceptual. Nadie explicitó
mulación tienen serios problemas el problema mejor que Davidson:
específicos. La teoría de la teoría
desprecia la primera persona sos-
“La dificultad para describir
teniendo que no merece especial
la emergencia de los fenó-
atención en la medida en que se
menos mentales es un pro-
trata de un caso más entre otros.
blema conceptual: es la difi-
La teoría de la simulación consi-
cultad para describir los es-
dera irrelevante el aspecto teórico
tadios más tempranos en la
de los conceptos psicológicos, las
maduración de la razón, los
condiciones de posesión de tercera
estadios que preceden a la si-
persona, esto es el rol que cada par-
tuación en la cual concep-
ticular conceptos psicológico tiene
tos como intención, creencia
en la red de los conceptos psicoló-
y deseo tienen una aplicación
gicos que constituye la psicología
clara. Tanto en la evolución
folk adulta humana típica. Además
del pensamiento en la his-
en ambos casos parece difícil ex-
toria de la humanidad, co-
plicar cómo es que los niños pa-
mo en la evolución del pen-
san de un momento en sus vidas en
samiento de cada individuo,
el que no son capaces de usar con-
hay un estadio en el cual
ceptos mentales para comprender
no hay pensamiento seguido

12 La explicación de los conceptos psicológicos propuesta por Goldman es exactamente el tipo de propuesta cues-
tionada por los filósofos anticartesianos de mediados del siglo XX (Wittgenstein 1953, Sellars 1963, Ryle 1949).

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de otro en el cual hay pen- serie bastante abrumadora de evi-


samiento. Describir la emer- dencia empírica proveniente tanto
gencia del pensamiento sería de la psicología del desarrollo co-
describir el proceso que lle- mo de la primatología.
va del primero al segundo de La situación más básica en la que
estos estadios. [...] Agradez- se produce este tipo de atribucio-
co no estar en el campo de nes psicológicas es aquella en la
la psicología del desarrollo.” que dos individuos interactúan, tal
(Davidson, 2001, pp. 127-8) como lo hacen un bebé y su figu-
ra de crianza durante el primer año
La perspectiva de segunda perso- de vida del bebé. En estas interac-
na, en cambio, tomando un pun- ciones:
to de partida diferente, es decir,
el punto de vista de la interacción
(1) Hay una interacción directa, ca-
díadica entre tu-y-yo, puede dar
ra a cara.
cuenta de una manera más flui-
da de la adquisición de las habi-
(2) Los aspectos expresivos del
lidades de interpretación. A desa-
cuerpo son vistos directamente co-
rrollar esquemáticamente esta idea
mo significativos (no interpretados
me dedicaré en lo que queda del
ni inferidos; no hay "mera contem-
trabajo.
plación del rostro del otro y con-
jeturas teóricasWittgenstein 1967,
3. La perspectiva de segunda per-
#225). Son, por tanto, estados cons-
sona de la atribución mental.
titutivamente corporales, es decir
La “perspectiva de segunda per- "las configuraciones corporales son
sona” fue introducida por Gomi- también mentales"(Gomila 2002,
la 2002 y Scotto 2002. La inspira- p. 134).
ción de esta propuesta, tal como yo
la entiendo y desarrollo en Pérez (3) Hay reciprocidad: cada uno
2013, es el segundo Wittgenstein, atribuye estados psicológicos al
aunque ni Gomila ni Scotto se cen- otro y en el mismo acto hay modi-
tran en la naturaleza de los concep- ficación de los propios contenidos
tos psicológicos (que era el objetivo mentales.
que tenía en mente el vienés) sino
en una serie de elementos precon- (4) El ejemplo paradigmático don-
ceptuales o no conceptuales invo- de se pone en juego esta perspecti-
lucrados en los modos de atribuir- va no son las actitudes proposicio-
nos los unos a los otros estados psi- nales sino las emociones (aunque
cológicos, conjuntamente con una no es el único caso). Por ello, los
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dos sujetos deben ser capaces de


tener emociones para involucrarse (7) No requiere del lenguaje.
en una relación de este tipo. Sin Una de las ideas centrales de
embargo, a diferencia de la teoría la perspectiva de segunda perso-
de la simulación y la clásica “em- na es que las atribuciones mentales
patía”, la emoción en cada sujeto que se realizan en estos intercam-
no necesariamente debe ser la mis- bios de segunda persona son más
ma que la del otro, lo importante básicos ontogenética, filogenética
es que haya reacción emocional: el y conceptualmente que las atri-
otro sufre, yo siento compasión, el buciones psicológicas que se rea-
otro ama a un imposible yo sufro lizan inferencialmente, sea a tra-
por él, etc. vés de inferencias de tercera per-
sona, apelando a generalizaciones,
(5) No supone una actividad "me- o de primera persona, proyectando
ta", no hay un estado mental acerca nuestros pensamientos en los de-
del estado mental del otro, sino un más. Ahora bien, en qué consisten
estado mental causado por el esta- exactamente estas atribuciones de
do del otro y así sucesivamente. segunda persona?
Para responder a esta pregun-
(6) No parece haber necesariamen- ta es necesario, en primer lugar,
te un mundo objetivo compartido, rechazar la idea de que toda atri-
más que un triángulo la situación bución de estados mentales deba
paradigmática es la de una díada. valerse de la creencia como para-
Sin embargo, dado el hecho de que digma.14 Es decir, debemos revi-
algunas emociones son intencio- sar la idea de que para entender
nales, el mundo entra a través de las mentes de los demás debemos
nuestras emociones: a esto llama ser capaces de entender qué creen-
Gomila el carácter triádico de la cias posee el individuo cuya men-
perspectiva de segunda persona y te estamos comprendiendo. Es cla-
es lo que permite trazar el puente ro, en efecto, que un bebé en in-
con la comunicación lingüística y teracción con su figura de crianza
con los triángulos davidsonianos.13 durante el primer año de vida no

13 La díada corresponde a la ïntersubjetividad primaria" y el triángulo a la ïntersubjetividad secundaria” de


Trevarthen y Hubley 1978, Trevarthen 1979.
14 Atribuir un estado mental es aplicar un concepto a un caso particular, es decir es un tipo de categorización;
así, un sujeto A será capaz de atribuir miedo a los demás cuando posea el concepto miedo. Tener miedo no es
suficiente para tener el concepto miedo, se requiere además tener una idea de lo que ocurre cuando se tiene miedo
e identificar casos de miedo tanto en uno mismo como en los demás. De la misma manera tener creencias no es
suficiente para tener el concepto de creencia o, dicho a la inversa, tener el concepto de creencia no es necesario
para tener creencias (contra Davidson 1982), pero es necesario tener el concepto de creencia para poder atribuir
creencias a uno mismo y a los demás. Pero para atribuir miedo, no es necesario tener el concepto de creencia.

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está atribuyendo creencias al adul- manera:


to, aunque, sin duda, parte de la
mente del adulto le resulta trans- 1. toma complementos no-
parente: es por esto que su forma proposicionales
de interacción con los demás se- 2. crea contextos transparentes
res humanos no tiene los mismos 3. es hecha verdadera por relacio-
patrones que su interacción con nes perceptuales directas entre los
los objetos físicos. Ante la sonri- perceptores y los particulares,
sa del adulto el bebé sonríe, ante
ciertos tonos de voz llora, etc. Así, en cambio, el ver epistémico se ca-
el primer paso para explicitar el racteriza por que:
tipo de atribución psicológica pro-
pio de las interacciones de segunda 1’. toma complementos proposicio-
persona será mostrar que hay una nales
gran variedad de estados y proce- 2’. crea contextos opacos
sos psicológicos y una gran varie- 3’. es hecho verdadero por relacio-
dad de conceptos psicológicos que nes epistémicas basadas percep-
usamos para hacer referencia a es- tualmente entre perceptores y pro-
tos estados. Hay una marcada hete- posiciones.16
rogeneidad entre estos conceptos,
tal como sostiene Wittgenstein en Para Dretske, la distinción de-
su plan para el tratamiento de los pende de considerar que los prime-
conceptos psicológicos (Wittgens- ros son estados representacionales
tein 1967, #472); y no son todos no-conceptuales en tanto los se-
reducibles a un único tipo; es decir gundo sí son conceptuales. El “ver
no todos los conceptos psicológicos simple” no puede ser redescripto
tienen el mismo comportamiento en términos del “ver epistémico”
gramatical.15 (ni viceversa), ya que en el primer
Es especialmente importan- caso no hay la distinción trazada
te para nuestros propósitos re- entre la referencia y el modo de
cordar una distinción propues- presentación de la referencia que
ta por Dretske entre el "ver sim- el segundo requiere. Todo ver sim-
ple"(simple seeing) y el "ver episté- ple es exclusivamente referencial.
mico"(epistemic seeing). El ver sim- El ver epistémico, por su parte, de-
ple es caracterizado de la siguiente pende de las capacidades concep-

15 Para un detalle esta variedad puede consultarse Pérez 2013 cap. 2 y Pérez y Gomila 2017.
16 El ejemplo de Dretske 1995 apela a la diferencia en los estados psicológicos de un bebé y su madre, cuando
miran la misma cosa en el mundo, a la mascota ladrando, en este caso la mamá ve que su caniche está ladrando,
pero seguramente no diríamos que el bebé ve un caniche, ni algo de su posesión.

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tuales del sujeto: a mayor rique- témico, de tardía adquisición en la


za conceptual más complejos se- ontogénesis, en tanto que los con-
rán los contenidos proposicionales ceptos de emociones básicas cuan-
constitutivos del ver. Volveré sobre do no involucran un contenido
esto en breve. proposicional y los conceptos de
Esta distinción puede trasladar- sensaciones corporales son casos
se a otros estados intencionales transparentes, simples. Así, es po-
más allá de “ver”, en particular sible tener miedo, y atribuir miedo
creo que puede trazarse para las con un contenido objetual, sin po-
intenciones y a algunos estados seer el concepto de creencia, y por
emocionales (específicamente, las lo tanto sin ser capaz de atribuir
emociones básicas) y así recono- creencias a los demás. Pero clara-
cer la existencia de diversos tipos mente esto no ocurre con las creen-
de estados mentales transparentes, cias, dado que tener una creencia
incluso algunos dirigidos a obje- es aceptar como verdadero un cier-
tos. En efecto, puede ocurrir que to contenido proposicional, conte-
alguien tenga miedo a las arañas nido que por lo tanto debe estar es-
no importa cómo se las describa, tructurado predicativamente y que
mientras que hay otros casos en los se encuentra en relaciones lógicas
que las emociones se dirigen a es- con los contenidos proposicionales
tados de cosas complejos y resul- de otras actitudes proposicionales
tan opacas (por ejemplo, si tengo del sujeto; no hay una dualidad en
miedo de que suba la inflación). el concepto de creencia paralela a
En casos como el primero, el sujeto la de “ver”.
no tiene por qué estar consideran- Pero, a pesar de que no es ne-
do ninguna proposición relativa a cesario ser hablante de un len-
las arañas, puede no tener creencia guaje para atribuir algunos tipos
alguna acerca de ellas, puede que de estados mentales –los simples,
ni siquiera logre distinguir correc- transparentes-, la posesión de un
tamente a las arañas de las cuca- lenguaje cambia nuestras capaci-
rachas. Por el contrario, en el se- dades de atribución mental. En
gundo caso, el estado emocional efecto, hay dos modos en los que
depende de una serie de creencias la maestría en el uso del lenguaje
que el sujeto posee, como que el público transforman nuestras ha-
aumento de la inflación disminuye bilidades de interpretación, por-
el poder adquisitivo de mi salario, que hay dos maneras en las que
que la inflación conlleva más nive- esta maestría cambia nuestras ha-
les de pobreza, etc. bilidades conceptuales en general.
El concepto de creencia es epis- Por un lado, la maestría de un len-

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guaje público nos ayuda a adquirir dos. Si bien esta información está
ciertas habilidades sintácticas, por disponible a cualquier observador
ejemplo la capacidad para enten- externo, hay un sentido en el que
der la predicación y la subordina- la información producida por los
ción (las cláusulas que-). Estas ca- individuos en sus interacciones es
pacidades sintácticas están involu- relevante sólo para quien participa
cradas en las condiciones de pose- de la interacción, en la medida en
sión de algunos conceptos psicoló- que esta información está produ-
gicos, específicamente en las con- cida por la interacción, por cuanto
diciones de posesión de las actitu- los individuos en interacción pro-
des proposicionales. Por otro lado, vocan en el otro las conductas ex-
la adquisición léxica de un lengua- presivas que permiten este tipo de
je natural particular nos induce a atribuciones en la interacción. Así,
entender nuestra experiencia de un la interacción misma es un modo
cierto modo, y la diferencia léxi- de obtener información contingen-
ca entre diferentes lenguajes puede te a la propia acción; esto es la atri-
generar diferencias en las maneras bución psicológica de segunda per-
en las que categorizamos nuestros sona es dinámica y recíproca.
estados psicológicos.17 Ahora bien, a diferencia de otras
Ahora bien, dado que la atribu- teorías postcognitivas de la cogni-
ción mental puede ocurrir en con- ción social,18 la perspectiva de se-
textos en los que la palabra no es- gunda persona sostiene que si só-
tá presente, de qué conductas no lo disponemos de esta información
lingüísticas depende la atribución corporal tenemos un acceso par-
psicológica? Tal como se señaló cial a la mente de quien está inter-
arriba, las atribuciones de segun- actuando con nosotros. En efecto,
da persona dependen de la expre- la información mencionada en el
sión de S, de la expresión facial, de párrafo anterior nos autoriza a la
sus movimientos, sus miradas, del atribución de cierto tipo particu-
timbre de voz. Se trata de informa- lar de estados mentales, aquellos
ción no conceptualizada por los in- en los que no está involucrada la
dividuos en interacción, pero que forma peculiar de presentación del
resulta indispensable en el proceso mundo para ese individuo, esto es
de categorización de las mentes del aquellos estados que no involucran
otro en la interacción por medio de una conceptualización determina-
los conceptos psicológicos adquiri- da del objeto intencional del estado

17 Este tema está desarrollado en Pérez y Gomila 2017


18 Para una explicitación de estas diferencias véase Gomila y Pérez 2017.

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mental atribuido, ni tienen conte- atribuir estados con un contenido


nido proposicional. Así intencio- objetual (de re), por ejemplo que S
nes dirigidas a objetos del entorno tiene miedo de eso, o que S quiere
(por ej. la intención de agarrar al- eso (y en este caso el indéxico es la
go), emociones básicas (miedo a la única herramienta disponible pa-
araña que está en el entorno com- ra identificar el objeto intencional
partido), y sensaciones corporales del estado mental, ya que el estado
(dolor) son el tipo paradigmático mental en este caso está dirigido
de atribuciones de segunda perso- al objeto en el mundo, no importa
na. Como señalé más arriba, a me- cómo se lo describa). Más adelan-
dida que se adquieren capacidades te, cuando además de lo anterior el
lingüísticas se complejizan los con- individuo tiene disponibles las he-
tenidos atribuibles, por lo que una rramientas conceptuales mínimas
misma actitud psicológica admite indispensables para categorizar los
grados crecientes de complejidad objetos de este mundo compartido,
del contenido atribuido: pensemos aparece la posibilidad de atribuir
en la diferencia entre la atribución estados mentales con un conteni-
a S de la intención de agarrar eso, do objetual bajo un determinado
la intención de agarrar un juguete, modo de presentación; en este ca-
la intención de agarrar mi juguete so es posible atribuirle a S miedo
favorito, la intención de agarrar el a la araña; y en este paso es donde
juguete que ayer me regalaron, etc. aparece recién un primer posible
Las diferencias significativas en desacoplamiento entre el conteni-
lo que hace al desarrollo de estas do del estado mental atribuido y
capacidades cada vez más comple- el mundo efectivo: lo que está pre-
jas de atribución psicológica po- sente en el entorno de A y S en este
drían resumirse de la siguiente ma- caso puede no ser una araña, sino
nera. En primer lugar, se adquieren una araña de juguete o una som-
las habilidades que posibilitan la bra. El paso siguiente en la com-
atribución de estados mentales sin plejización del contenido atribuido
contenido, como por ejemplo estar se registra simultáneamente con la
triste o sentir dolor. En segundo aparición del juego funcional, en
lugar, una vez adquirida la capa- estos casos hay evidencia de que
cidad de triangular (lo que los be- el niño es capaz de realizar atri-
bés son capaces de hacer hacia los buciones psicológicas de estados
9 meses de vida, véase Trevarthen mentales con contenido proposi-
y Hubley 1978), se vuelve posible cional mínimo, es decir, es capaz

19 El ejemplo paradigmático de “juego funcional” es aquel en el que el niño juega a tomar la leche con una taza

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de captar el contraste entre hay X además tomamos en cuenta todos


/no hay X.19 Finalmente, con el jue- los elementos corporales expresi-
go de ficción aparece la capacidad vos, como la actitud corporal de
de atribuir estados con contenido nuestro interlocutor, sus expresio-
proposicional con la estructura S nes faciales, la dirección de su mi-
es P (o sea con la estructura pre- rada, su timbre de voz, etc. Y cuan-
dicativa que el lenguaje nos brin- do, ya adultos, interactuamos con
da). Se trata de casos como el fa- bebés prelingüísticos o con mas-
moso juego de que la banana es un cotas también atendemos a todos
teléfono (Leslie 1987). Pero como estos complejos elementos al reali-
puede verse, hay una historia in- zar atribuciones psicológicas.
teresante que contar antes de que Lo explicitado hasta aquí puede
este tipo de juego aparezca, hacia considerarse una reconstrucción
los 18-24 meses.20 racional/conceptual del desarrollo
Nótese que en todos estos casos ontogenético de estas habilidades
estamos hablando de atribuciones de interpretación. Esta reconstruc-
psicológicas realizadas en la inter- ción nos permite entender cómo
acción, atribuciones que paulatina- pueden trazarse las continuidades
mente requieren de más recursos conceptuales y ontogenéticas entre
cognitivos. Una vez que adquiri- las primitivas interacciones de se-
mos el lenguaje, las atribuciones gunda persona en las que no está
que realizamos en nuestras inter- en juego el concepto de creencia,
acciones con otros humanos po- hasta interacciones posteriores en
seen toda la complejidad mencio- las que este concepto está en juego,
nada, pero no por ello dejan de además de toda la variedad de es-
ser relevantes todos los indicios tados psicológicos que en nuestra
no conceptuales mencionados al vida cotidiana somos capaces de
comenzar el parágrafo. En efecto, individualizar. Sin embargo, esta
si bien las interacciones entre hu- reconstrucción presupone que hay
manos adultos suelen involucrar una asimetría básica en el inicio,
intercambios lingüísticos, no son una asimetría entre el bebé que no
sólo las emisiones lingüísticas las posee concepto psicológico alguno
evidencias de las que disponemos y un adulto que sí los posee y que
para realizar las atribuciones psi- es usuario de un lenguaje público
cológicas que hacemos, sino que con el cual, en general, también le

vacía, lo que los niños hacen en la primera mitad del segundo año de vida. En este caso sus capacidades percepti-
vas le indican que no hay nada en la taza, pero el niño atribuye la intención (ficcional/en el contexto del juego) de
tomar la leche a su figura de crianza.
20 En este parrafo resumí muy brevemente las ideas desarrolladas con detalle en Pérez y Español 2014.

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habla al bebé, incorporándolo de la existencia de un sistema lingüís-


esta manera a un mundo de inter- tico. La progresiva aparición de un
acciones sociales ya establecido, en lenguaje compartido a la vez que
el que los conceptos mentales ya hace posible la comunicación acer-
están en juego. Pero esta asimetría ca del mundo externo podría ha-
no está presente en una reconstruc- ber hecho posible la comunicación
ción de la filogénesis de estas habi- acerca de las mentes.
lidades, por lo que esta reconstruc- La cuestión de la filogénesis de
ción debería realizarse de alguna las habilidades de interpretación
manera alternativa. En particular es un asunto complejo, sin duda ser
resulta apremiante establecer si las arqueólogo cognitivo es más difícil
habilidades de interpretación son que ser psicólogo del desarrollo. La
anteriores en la historia evolutiva evidencia disponible para realizar
de nuestra especie a la capacidad una reconstrucción filogenética del
lingüística, o viceversa. La situa- desarrollo de las habilidades cog-
ción es compleja: dado lo dicho nitivas incluye restos fósiles, da-
más arriba, las capacidades lin- tos contemporáneos provenientes
güísticas parecen ser anteriores a la de culturas más similares por sus
habilidad de atribuir estados men- condiciones de vida a las posibles
tales como las creencias, estructu- culturas de nuestros antepasados,
radas predicativamente, pero a su datos provenientes de la etología
vez la habilidad para atribuir in- cognitiva, que nos muestren la pre-
tenciones comunicativas a los de- sencia de diversas habilidades cog-
más parece previa a la posibilidad nitivas en especies que comparten
de tener intercambios comunica- antepasados comunes con nosotros
tivos lingüísticos. La perspectiva e incluso datos acerca de la histo-
de segunda persona parece darnos ria del clima en la Tierra en ese
una pista para resolver esta apa- pasado que tratamos de conocer.21
rente paradoja: las interacciones Dado lo limitado de los datos dis-
más primitivas, sin lenguaje, en ponibles, esta tarea no puede sino
las que hay una comprensión par- ser altamente especulativa y por lo
cial de ciertos tipos específicos de tanto dependiente de las precon-
estados mentales (emociones bási- cepciones relativas a la naturaleza
cas, sensaciones, intenciones diri- humana del investigador. Esto es
gidas a objetos) resulta posible sin evidente si atendemos a diversas

21 Algunos autores destacan que las grandes variaciones climáticas producidas en el período que va entre 70.000
y 10.000 AC (“la era del hielo”), es una de las presiones selectivas que permitieron seleccionar cerebros más
plásticos. (Mithen 2005)

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teorías en este dominio. En efecto, y la cohesión social (como sostiene


algunos autores sostienen que las Dissanayake), otras que resaltan el
facultades cognitivas de “lectura rol de la selección sexual, poniendo
de mentes” se desarrollaron para en el foco la idea de señal costosa,
solucionar problemas de enfrenta- como en el caso de la cola del pavo
mientos entre congéneres, consi- real, necesaria para la competencia
derando al hombre como el lobo entre machos con el fin de aumen-
del hombre (Hobbes); así, algunas tar la eficacia reproductiva (como
teorías contemporáneas destacan sostuvo Miller).22
la capacidad de engañar, la así lla- En mi opinión uno de los hechos
mada “inteligencia maquiavélica", más notables de la historia homí-
como el origen de nuestras habili- nida es, sin duda, la bipedestación,
dades mentalistas (Cosmides 1989, y este hecho apunta a la necesidad
Byrne y Withen 1989). Para otros, de cooperar más que a la de com-
por el contrario, este desarrollo es- petir. La competencia, en realidad,
tá relacionado con actividades de está presente en todas las especies
cooperación, considerando a nues- animales, por lo que no me pare-
tro antepasado como un "buen sal- ce muy interesante para dar cuenta
vaje"(Rousseau), tal es el caso de de lo que nos distingue de otras
aquellas teorías que destacan la ne- especies. Por otra parte, para la de-
cesidad de cooperación como mo- tección de engañadores basta con
tro fundamental de los cambios en poder predecir las acciones de los
nuestra especie (Tomasello et. al otros, esto es entender las accio-
2005, Mithen 2005). Algo similar nes como intencionales, pero no re-
ocurre con las explicaciones evolu- sulta necesario hipotetizar estados
cionistas de las capacidades cog- mentales internos en los demás.23
nitivas relacionadas con el arte; En cambio, la bipedestación tiene
tal como recuerda Chaterjee 2014 consecuencias directas sobre la ne-
hay explicaciones en pugna: algu- cesidad de cooperación, y para que
nas basadas en la idea de que cier- sea exitosa la acción conjunta se
tas experiencias estéticas, sobre to- vuelve necesario comprender los
do relacionadas con la música, son estados mentales ajenos y comuni-
fundamentales para la cooperación carnos.24

22 Chaterjee 2014, pp. 166-168, desarrolla este punto. Nótese que los investigadores son guiados no sólo por
prejuicios acera de la naturaleza humana, sino además por prejuicios de género. No me parece una casualidad que
para dar cuenta del origen evolutivo del arte sea una mujer quien se basa en la amorosidad de las interacciones
adulto-bebé y un varón quien apela a la competencia entre machos por las hembras.
23 Este punto es resaltado especialmente por J. C. Gómez.
24 El capítulo 10 de Mithen 2005 está destinado a explorar en detalle las consecuencias de la bipedestación,
imposibles de resumir en estas pocas páginas.

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Según señalan los registros fó- diferencia de aquellos que no sean


siles de los que disponemos, ha- capaces de interacciones sociales
ce más de cuatro millones de años exitosas, que no logren atraer la
aparecen los primeros homíni- atención de sus progenitores. Asi-
dos. Como señala Mithen 2005, la mismo, la capacidad del bebé y del
bipedestación produce un efecto deambulador de reconocer la ex-
que resultará trascendental para presión de felicidad o el miedo en
el desarrollo de las capacidades de el rostro de la madre también será
mentalización homínida: al estre- central para la preservación de la
charse las caderas como efecto de especie. Nótese que este es exac-
la posición erguida, los bebes na- tamente el tipo de interacciones
cen prematuros y por lo tanto una caracterizadas por perspectiva de
parte del desarrollo fetal se hace segunda persona, en las que, como
fuera del vientre materno, su desa- dijimos, el lenguaje puede no jugar
rrollo se realiza en un medio so- ningún papel.
cial, cultural: las interacciones con Sin embargo, lo que parece dis-
otros forman parte del proceso de tinguir a los homo sapiens de otras
maduración del individuo de la es- especies es la posibilidad de emitir
pecie, que nace más plástico, me- sonidos articulados en el contexto
nos premoldeado. Por ello, el bebé de estos triángulos donde hay ob-
humano necesita de cuidados es- jetivos e intenciones compartidas.
peciales de los progenitores.25 Un Mithen 2005 sugiere que las men-
bebé humano es más dependiente tes hominidas no-sapiens tenían
y por más tiempo de sus congéne- un lenguaje hmmmmm, (holístico,
res. Esto produce un doble efecto manipulador, multimodal, músical
que presiona sobre el proceso de y mimético26 ) y que sólo el homo
selección natural: por un lado, los sapiens pudo pasar a un lengua-
adultos humanos que estén más je composicional, recursivo y es-
dispuestos a atender a los bebés tructurado como el nuestro. Según
tendrán mayor éxito reproductivo Mithen 2005 este cambio ocurrió
que aquellos que los abandonen a gracias a un mecanismo (propio de
su suerte, por otro lado los bebés nuestra especie y sólo de ella) de
que estén inclinados a interactuar identificación de partes sonoras re-
con los adultos llegarán a adultos y petibles que permite segmentar el
lograrán, a su vez, reproducirse, a lenguaje holista.27 De acuerdo con

25 En realidad debería decir “el bebé primate". Véase Gómez 2007.


26 Según Mithen 2005 p. 243: "mímesis" es "la capacidad de producir actos representativos, deliberados y con-
cientes, de carácter intencionado, pero no lingüístico"
27 Hay simulación computacional de este proceso (mencionado en Mithen 2005, p.371 y siguientes).

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esta hipótesis la función básica del nida tipo C defendidos por Abran-
lenguaje que estaba presente en su tes 2006, donde se destaca el rol
origen no sería transmitir informa- de la cultura en la construcción
ción sino manipular al otro. Es in- de nichos epistémicos que facilitan
teresante destacar que la función el aprendizaje de habilidades in-
de la teoría de la mente misma, terpretativas (i.e. habilidades para
según algunos autores es también realizar atribuciones mentales más
básicamente pragmática, es decir, y más complejas).
orientada a guiar nuestra interac-
ción con nuestros congéneres en
el mundo, no teórica ni contem- 4. Conclusión
plativa (Rivière 1997/2003). Y el
lenguaje hmmmmm sería además En el último aparatado he mos-
"holístico": unidades discretas con trado esquemáticamente cómo la
un cierto significado imposible de perspectiva de segunda persona
descomponer en partes más sim- puede dar cuenta del surgimien-
ples. Seguramente, entonces, las to de nuestras capacidades pa-
primera atribuciones de conteni- ra comprendernos los unos a los
do mental habrán sido indefecti- otros, contando una historia plau-
blemente holísticas, y sólo más tar- sible tanto desde el punto de vista
de, una vez adquirido el lenguaje conceptual, como desde los puntos
composicional y recursivo, los con- de vista ontogenético y filogené-
tenidos habrán podido ser descom- tico, logrando compatibilizar ha-
ponibles en partes más elementa- llazgos empíricos con elucidacio-
les (conceptos) y recombinables, lo nes conceptuales. Así, he realiza-
que parece coincidir con la hipóte- do un ejercicio dentro del marco
sis ontogenética de la perspectiva de la propuesta metafilosófica na-
de segunda persona desarrollada turalista que nos invita a pensar los
arriba. Esta hipótesis desarrollada problemas a filósofos y científicos
por Mithen resulta perfectamente de la mano, siguiendo la propuesta
compatible y complementaria con compatibilista propuesta por Paulo
los escenarios de evolución homí- Abrantes.

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Abrantes, o Naturalismo e o Teísmo
[Abrantes, Naturalism and Theism]

Agnaldo Portugal*

Resumo: Este artigo pretende apresentar e discutir as principais teses


de Paulo Abrantes acerca do naturalismo, um dos temas que ele mais
desenvolveu em sua trajetória acadêmica. Percorrendo a maior parte de
seus textos mais importantes sobre o assunto, o texto se debruça sobre a
exposição que Abrantes faz sobre o naturalismo na epistemologia e filosofia
da ciência, de um lado, e na filosofia da mente e metafísica, por outro lado.
Seu trabalho mostra a grande diversidade de abordagens encontradas sob o
título de "naturalista"nessas áreas da pesquisa filosófica. Abrantes aponta
para uma distinção básica entre naturalismo metafísico e naturalismo
metodológico. Embora aponte para a possibilidade de um naturalismo
metodologicamente neutro, ele parece estar mais inclinado a admitir
que mesmo o naturalismo metodológico tem de assumir compromissos
ontológicos. Em vista do contraste com a metafísica teísta, que ajuda
a entender melhor o que unifica os diferentes tipos de naturalismo, o
artigo avalia os argumentos em favor do naturalismo metafísico mínimo
admitido por Abrantes e propõe que, tanto para se entender o naturalismo
em filosofia quanto em ciências naturais, a versão metodológica neutra é a
mais recomendada.
Palavras-chave: Paulo Abrantes; naturalismo; teísmo; filosofia da mente;
epistemologia.
Abstract: This article intends to expound and discuss Paulo Abrantes’
main theses about naturalism, one of the subjects he has dealt with most
extensively in his academic career. Taking into account his most important
works on the matter, this text analyses Abrantes’ exposition of naturalism
in epistemology and philosophy of science, as well as in philosophy of
mind and metaphysics. He shows the great diversity of proposals under
the label of “naturalist” in those areas of philosophical enquiry. Abrantes
points out to a basic distinction between metaphysical and methodological
naturalism. Although he indicates the possibility of a methodologically
neutral naturalism, he seems to be more inclined to admit that even the
methodological version of it has to assume some ontological commitments.
In view of the contrast with theistic metaphysics, which helps to unders-
tand better what unifies the different varieties of naturalism, the article
evaluates the arguments in favor of the minimal ontological naturalism
admitted by Abrantes. As a result, it proposes that, in order to better
understand naturalism both in philosophy and in natural sciences, the
neutral methodological version is the most recommended.
Keywords: Paulo Abrantes; naturalism; theism; philosophy of mind;
epistemology.

* Professor do Departamento de Filosofia da Universidade de Brasília (UnB). E-mail: agnaldocp@unb.br

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Introdução e certamente uma das mais pre-


Um dos temas mais constantes sentes na concepção das pessoas
da contribuição filosófica de Paulo alheias ao meio filosófico profissio-
Abrantes ao longo de sua carreira nal, embora aparentemente pouco
acadêmica foi o naturalismo. Sua popular nos ambientes acadêmi-
proposta foi antes de tudo escla- cos atuais. Segundo o teísmo,
recer os diversos sentidos que esse a natureza é resultado da cria-
conceito tem no debate atual em ção de um Deus pessoal incorpó-
epistemologia, filosofia da ciên- reo que é onipotente, onisciente,
cia, filosofia da mente e metafí- onipresente, eterno e infinitamente
sica. Apesar do caráter predomi- bom. A realidade física, segundo
nantemente expositivo e classifica- o teísmo, é mantida pela ação de
tório de sua abordagem, é possí- Deus, sendo ela, portanto, depen-
vel discernir com relativa clareza dente deste que seria a realidade
suas próprias posições e argumen- primeira.
tos acerca desse tema, decorrentes Veremos que são diferentes as
do esforço de toda uma vida de possibilidades de compatibilização
pesquisa voltada para aproximar a com o teísmo se considerarmos a
reflexão filosófica da investigação versão metafísica e a metodoló-
em ciências naturais. Neste artigo, gica do naturalismo. O texto pre-
pretendo apresentar aquelas que tende avaliar essas possibilidades
me parecem ser as principais teses de compatibilização levando em
de Abrantes acerca do naturalismo, conta não apenas a filosofia da ci-
percorrendo seus textos mais im- ência e a filosofia da mente, mas
portantes sobre o assunto e divi- também a filosofia da religião e, es-
dindo aquelas ideias em dois gru- pecialmente, a história da ciência,
pos: o naturalismo como tese em outra área na qual Abrantes deu
filosofia da mente e metafísica, e o uma valiosa contribuição intelec-
naturalismo como método em epis- tual.
temologia e filosofia da ciência.
A essa apresentação se segue Abrantes e os Naturalismos
uma avaliação dessas ideias em
vista de uma tese metafísica que Em “Naturalizando a Epistemo-
não é especificamente objeto de logia” (1994), Abrantes pretende
discussão obra de Abrantes, mas descrever as diferentes propostas
que não está de todo ausente: o dentro da abordagem naturalista
teísmo. Trata-se de uma das te- em epistemologia e filosofia da ci-
orias metafísicas mais duradouras ência. O modo pelo qual isso é
da história da filosofia ocidental feito é principalmente pelo con-
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traste entre o naturalismo e a “filo- por completo pelos ataques céticos


sofia ortodoxa” nessas duas áreas, à possibilidade de conhecimento.
ou seja, aquela que pensa a filo- Em vista do sucesso das ciências
sofia como uma atividade eminen- naturais, faz mais sentido se per-
temente a priori. Apesar da di- guntar quais são suas caracterís-
versidade de propostas, o natura- ticas e como seus resultados po-
lismo em epistemologia pode ser dem ajudar a melhorar ainda mais
caracterizado como a tese de que nossa capacidade de compreensão
essa área da filosofia “está com- do mundo: “o progresso do pro-
prometida de modo necessário e grama naturalista está essencial-
inexpurgável com questões empíri- mente ligado ao progresso cientí-
cas”. As teses epistemológicas tam- fico: para o naturalismo, a Epis-
bém devem se submeter aos mes- temologia e as Ciências partici-
mos limites do método científico, pam, na verdade, de um único pro-
distinguindo-se da ciência apenas grama” (Abrantes, 1994, p. 210).
por seu grau de generalidade e abs- Segundo Abrantes, a epistemo-
tração (Abrantes, 1994, p. 171). logia naturalista se vale de diferen-
Para o naturalismo epistemológico, tes estratégias, envolvendo méto-
questões sobre como devemos co- dos diferentes utilizados pelas ci-
nhecer e como de fato conhece- ências. Basicamente haveria abor-
mos não são independentes e se- dagens tais como as dos estudos de
paradas, mas fortemente conecta- neurociência e as analogias com a
das. No jargão de filosofia da ci- inteligência artificial acerca da re-
ência, pode ser dito que o natu- lação entre hardware e software,
ralismo não distingue questões do chamadas de bottom-up. Por ou-
contexto de justificação das ques- tro lado, há também aquelas que
tões do contexto de descoberta. se valem de modelos e idealiza-
Outro ponto de unidade no na- ções, frequentemente encontradas
turalismo epistemológico é o res- na Física e na Química, denomi-
gate do projeto clássico de aper- nadas top-down pelos naturalistas.
feiçoamento da cognição humana, “Bottom” e “top” parecem ser de-
mas que abandona o fundacio- finidos em termos materialistas: o
nismo infalibilista de Descartes e que é material (o cérebro, o hard-
Locke. O conhecimento é visto ware) é bottom (embaixo, no fun-
como falível, podendo se modifi- damento), e o que é construção
car à medida que muda o saber ci- teórica é top (no alto). Abran-
entífico (Abrantes, 1994, p. 174). tes expressa uma preferência plu-
Por outro lado, o naturalismo dá ralista dentro do campo naturalista
menos ênfase ou se desinteressa ao considerar que “a Epistemolo-

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gia e a Filosofia da Ciência ganha- tem compromissos ontológi-


rão certamente, para além de qual- cos, desde que sejam compa-
quer ortodoxia, em considerar as tíveis com as melhores teo-
abordagens top-down e bottom-up rias científicas contemporâ-
como complementares, e não como neas ou mesmo derivados.
antagônicas” (Abrantes, 1994, p. Eu considero, por exemplo,
196). que é inescapável, para um
Pouco menos de dez anos de- homem contemporâneo (oci-
pois, Abrantes publica com Hilan dental, educado, etc.) ad-
Bensusan um texto que revela bem mitir elementos de uma ima-
mais de suas ideias próprias, uma gem de natureza apoiada no
vez que já pressupõe a exposição conhecimento científico dis-
anterior dos tipos de naturalismo1 . ponível. Um deles é que as
Em “Conhecimento, ciência e na- mentes surgiram a partir de
tureza: cartas sobre o naturalismo” processos puramente físicos.
(doravante referido como Cartas), Colocando em outros termos,
os dois professores da Universi- as mentes são, na história do
dade de Brasília debatem sobre o universo, coisas bastante tar-
naturalismo epistemológico e em dias (como a vida, por si-
filosofia da ciência. No entanto, nal). (Abrantes & Bensusan,
como ficará claro na exposição a se- 2003, p. 293)
guir, a discussão acaba inevitavel-
mente tocando também em temas Em notas na mesma página,
metafísicos. Dado o foco deste ar- Abrantes admite que o natura-
tigo, vou me concentrar nas teses lismo é cientificista em alguma
apresentadas por Abrantes. medida e que a tese sobre o cará-
Logo na Missiva P1 Abrantes co- ter tardio das mentes pressupõe
necta naturalismo epistemológico um tipo forte de realismo cientí-
e ontológico. Embora admita que fico. Em outras palavras, o natu-
talvez seja um equívoco pensar que ralismo ontológico que é pano de
o naturalista deva ter compromis- fundo do naturalismo epistemo-
sos ontológicos particulares, ele lógico toma as ciências empíricas
afirma: como exprimindo uma forma de
conhecimento mais bem justificada
De minha parte, eu tendo a acerca da realidade. É interessante
concordar com Kornblith e também a menção ao “homem con-
sustentar que o naturalista temporâneo” como aquele que fun-

1 Feita também em Abrantes 1998.

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damenta sua visão de mundo na ci- naturalismo não é parte do con-


ência. junto das teses científicas. Vere-
Dessas ideias acima, Abrantes mos que essa é uma crítica que será
conclui que, uma vez que as men- feita também por filósofos teístas
tes são um produto tardio na na- em suas análises acerca do natura-
tureza, o espaço de razões – o con- lismo.
texto no qual as ideias são justi- Abrantes considera quimérico
ficadas – teve também um surgi- um projeto que tente falar de uma
mento tardio. Contar a história segunda natureza, que incluísse
desse surgimento, bem como de um espaço de razões ao lado de um
sua articulação com o espaço de espaço de leis naturais, tal como
leis e causas, segundo ele, “não propõe John McDowell. Pergunta
pode pressupor a existência de um ele a esse respeito: “Que recursos
espaço de razões antes que este te- especiais disporia a filosofia, quais
nha surgido (embora qualquer his- as suas credenciais para pretender,
tória que contemos deverá ser ra- ainda hoje, articular uma concep-
cionalmente legitimada – afinal, ção de natureza ignorando ou colo-
as hipóteses e teorias científicas cando de lado os métodos e os co-
são expressões de um conjunto de nhecimentos científicos aceitos (a
crenças justificadas e, esperamos, respeito da natureza, do homem e
verdadeiras).” (Abrantes & Ben- da sociedade)?” (Abrantes & Ben-
susan, 2003, p. 293). O que está susan, 2003, p. 304). E defende
entre parêntesis na última citação que os métodos da filosofia não são
mostra o quanto são problemáticas essencialmente distintos dos das
as noções de justificação e raciona- ciências, mas sim contínuos. Ou
lidade em uma concepção natura- seja, recursos como análise de con-
lista. Uma coisa é a realidade fí- ceitos e argumentos, explicitação
sica a partir da qual surgiram seres de pressupostos e consequências,
racionais, outra é a racionalidade e imaginação especulativa não são
que se exige na justificação de teo- especificamente filosóficos, pois
rias acerca dessa realidade física e também são utilizados por cientis-
sua história – é esse o “espaço de tas.
razões” que Bensusan reivindica Segundo Abrantes,
como necessário para a discussão
filosófica e que o naturalismo não Uma história da “emergên-
tem como fundamentar nas leis na- cia” de um espaço de ra-
turais. Afinal, as teorias – científi- zões só satisfará ao natura-
cas ou filosóficas – não são parte lista se ela estabelecer uma
da realidade física, assim como o gradação contínua – sem in-
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troduzir saltos ou apelos so- metodologia. Em todo caso, se-


brenaturalistas (o que Den- gundo ele, a ontologia naturalista
nett chamou de skyhooks) – depende da imagem de natureza
entre as propriedades típicas formulada pelas ciências naturais
da linguagem e do espaço de e a tese naturalista é que
razões (e seu enraizamento
nos processos e proprieda-
des mentais) e propriedades É a investigação científica
mais “primitivas” (no sen- que nos leva a modificar
tido evolucionista), cada vez nossas imagens de natureza,
mais próximas das proprie- os filósofos tendo pouco ou
dades e processos fundamen- nada a contribuir nesse sen-
tais (físicos, computacionais, tido, sobretudo aqueles que
etc.) (Abrantes & Bensusan, se mantêm isolados do tra-
2003, p. 314) balho científico e que acre-
ditam possuir métodos pró-
prios e distintos dos méto-
O que se observa aqui é a tese de dos utilizados nas ciências,
que a epistemologia deve adotar arvorando-se a ditar algo a
um procedimento parecido com o priori a respeito do que deve
das ciências naturais ou das ciên- ser a natureza (Abrantes &
cias da computação na sua tenta- Bensusan, 2003, p. 327).
tiva de explicar o conhecimento. A
menção negativa ao sobrenatura-
lismo e a ideia de uma gradação Ou seja, embora as técnicas de
contínua a partir de propriedades abordagem da filosofia e das ciên-
mínimas ou primitivas do ponto cias empíricas sejam comuns ou ao
de vista físico fazem parte de um menos contínuas, estas últimas de-
mesmo argumento em favor do na- vem ter prioridade na constituição
turalismo ontológico. de nossa “imagem de natureza”,
Para Abrantes, a discussão nas um conceito importante na filoso-
Cartas acabou se orientando de- fia da ciência de Abrantes, especi-
mais para questões de ontologia, almente ao tratar da história das
pois foi esse o viés dado ao debate ciências naturais e que explorare-
inicialmente por Bensusan. Abran- mos mais adiante.
tes entende, porém, que não se Apesar de voltar ao tom mais
deve limitar a discussão do pro- expositivo que o argumentativo
grama naturalista a questões de o observado nas Cartas, Abrantes
ontologia, pois há naturalistas que apresenta vários elementos novos
se limitam a defender posições em de sua defesa do naturalismo em
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epistemologia no texto “El pro- da Psicologia Cognitiva, na qual


grama de una epistemología evolu- o padrão explicativo darwinista se
cionista”, publicado em espanhol, traduz na ideia, entre outras, de
fruto de trabalho com o filósofo co- que a aprendizagem é um pro-
lombiano Alejandro Rosas, um de cesso no qual os padrões de com-
seus vários colaboradores interna- portamento exibidos por um in-
cionais. Aqui Abrantes apresenta divíduo se tornam gradualmente
um das propostas naturalistas mais mais adaptados às condições de
importantes em teoria do conheci- seu meio. A noção de gradação é
mento: o programa evolucionista. fundamental, como já vimos ante-
A proposta desse programa é usar riormente. Com base nessa ideia,
a abordagem do darwinismo em temos a explicação de Dennett da
Biologia como modelo para a expli- aprendizagem como a interação de
cação filosófica do conhecimento. dois processos independentes: ge-
Segundo ele, uma das característi- rar e testar. Essa geração, “para não
cas mais marcantes dessa aborda- se cair em petição de princípio”,
gem é não se apelar para nenhum segundo Abrantes, deve atuar de
tipo de providencialismo, ou seja, modo “arbitrário”, “fortuito”, “ale-
não se fazer nenhum recurso a uma atório”, sem conhecimento prévio,
“intervenção milagrosa de uma in- injustificado, não intencional. A
teligência desenhadora” (Abrantes, ideia é que cheguemos a geradores
2007, p. 121-2). que são meros autômatos, o que
Além disso, a epistemologia evo- denotaria uma simplicidade onto-
lucionista pretende seguir o darwi- lógica suficiente que justifique to-
nismo ao evitar cometer petição de mar a tese como ponto de partida
princípio, que consiste em assumir sem petição de princípio. O que
aquilo que se pretende explicar. esses geradores produzem é posto
Segundo Abrantes, uma variante à prova por um processo separado
dessa falácia seria pressupor na do de geração (Abrantes, 2007, p.
explicação um sistema com igual 130).
ou maior complexidade adaptativa O argumento da simplicidade
que o que vai ser explicado. Outra ontológica em favor do natura-
variante seria a de invocar algum lismo fora apresentando antes por
conhecimento prévio cuja origem Abrantes nas Cartas em resposta
não seja elucidada para explicar as a Bensusan: “A minha posição é
adaptações biológicas (Abrantes, que ampliar a ontologia, como pre-
2007, p. 126). Esse argumento em tendem McDowell, Sellars e você,
favor dessa abordagem epistemo- deve ser um último recurso. A
lógica é ilustrado com o exemplo simplicidade ontológica parece-me

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um valor fundamental e rendeu sentidos e a validade das informa-


frutos no passado” (Abrantes & ções que eles transmitem, mas não
Bensusan, 2003, p. 313). Temos explicam por que há essas proprie-
aqui, mais uma vez, a importância dades. Diferentemente desses dois,
de determinado critério na história porém, o selecionismo não pres-
da ciência como argumento para supõe o que tem de ser explicado,
sua adoção em metafísica. Quanto nem toma o conhecimento como
menos entidades forem postula- algo gerado de fora para dentro
das, melhor: é a preferência pe- em um único processo. O seleci-
las “paisagens desérticas”, famosa- onismo propõe dois processos: o
mente expressa por Quine (1948), agente emite variações cognitivas e
outro importante autor naturalista. o meio ambiente as seleciona. As-
A epistemologia darwinista ou sim, teorias seriam adaptadas ao
selecionista tem como dois princi- serem selecionadas pelo ambiente
pais concorrentes o que Abrantes e por “adaptadas” quer dizer algo
chama de explicações “providen- como “confirmadas” e “verdadei-
cialistas” e “instrucionistas”. O ras” (Abrantes, 2007, p. 139). Em-
exemplo de explicação providen- bora esse não seja o sentido comum
cialista não é o teísmo e a dou- de “verdade”, é o comumente ado-
trina da imago Dei (a ideia de que tado pelas epistemologias selecio-
os seres humanos foram criados à nistas, dada a centralidade desse
imagem de Deus e, por isso, têm a conceito no darwinismo e a simpli-
possibilidade de conhecer), mas a cidade de se evitarem discussões
teoria platônica da anamese, des- metafísicas sobre o que é essen-
crita no Mênon. Segundo ele, “En cial à realidade e que corresponde-
el providencialismo, simplemente ria à verdade. Em nota de rodapé
se postula que el agente (o sistema nesta mesma página, Abrantes es-
cognitivo) tiene conocimiento, que clarece que uma variante é “cega”
tiene creencias que son verdaderas no sentido de que, quando é emi-
y que son justificadas”2 (Abrantes, tida, nada garante que seja adap-
2007, p. 136). O instrucionismo, tativa para o sistema, pois não há
por sua vez, é criticado por assu- uma intenção que a guie. E tam-
mir a confiabilidade dos órgãos dos bém admite que adaptação não ga-

2 É difícil entender por que essa crítica se aplicaria à teoria platônica da reminiscência. Esta não postula que o
agente tenha conhecimento, mas que ele pode tê-lo se lembrar-se da verdade com a qual um dia já teve contato.
Dentro dessa teoria, posso perfeitamente ter crenças falsas frequentemente por minha incapacidade de me recor-
dar da verdade a que minha alma um dia já teve acesso quando ainda não estava ligada a um corpo. Assim, posso
ser altamente desprovido de conhecimento dentro dessa teoria. Mas ela explica como passamos dessa ignorância
para o conhecimento – se seguirmos um método eficiente de recordação, que nos livre da ignorância gerada pela
deficiência da percepção sensorial – e não se trata de algo que esteja fora do alcance do indivíduo.

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rante a verdade. (Abrantes, 2007, que o caráter local de toda adap-


p. 139, n. 27) E como toda adap- tação parece implicar uma posi-
tação é relativa a um ambiente em ção não realista em epistemologia.
um determinado tempo, todo co- Dessa maneira fica comprometida
nhecimento será considerado falí- a ideia de verdade ou mesmo de
vel pela abordagem selecionista. sua aproximação, que foi tão culti-
Um dos exemplos de aborda- vada na história da epistemologia.
gem selecionista em epistemolo- (Abrantes, 2007, p. 171). Isso pode
gia é a de Daniel Dennett, um au- ser uma razão para rejeitar um pro-
tor particularmente influente nas grama ou para modificar intuições
ideias de Abrantes em epistemolo- arraigadas, promovendo uma mu-
gia e filosofia da mente. Desta vez, dança nos próprios objetivos da te-
Dennett defende essa epistemolo- oria do conhecimento. Para ele, es-
gia por usar um conceito bottom- ses problemas do programa podem
up ao invés de top-down. Isso por- indicar um sinal de vitalidade, ao
que as abordagens top-down falam invés de um defeito incontornável.
de “ganchos pendurados no céu” Como vimos, o tema do natu-
(skyhooks) que influem no processo ralismo em epistemologia acabou
de seleção natural, mas que não trazendo questões metafísicas li-
se sabe de onde vêm. Dennett se gadas a uma concepção de mundo
ocupa principalmente da seleção que se pretende derivada do co-
de teorias, mas é possível distin- nhecimento científico. Essa mesma
guir outro programa na epistemo- vinculação se manifesta nos textos
logia evolucionista além deste, ou de Abrantes acerca da abordagem
seja, o que fala de seleção dos me- naturalista em filosofia da mente.
canismos ou aparatos cognitivos. Isso certamente não é de se estra-
Nessa linha talvez mais próxima nhar, uma vez que a discussão so-
dos estudos darwinistas originais, bre a natureza da mente é uma das
a questão não é sobre o que per- principais áreas da ontologia atu-
mite considerar uma teoria verda- almente. Abrantes se dedicou in-
deira, mas acerca dos meios pelos tensamente à pesquisa nesse tema,
quais são geradas essas crenças e sendo também um dos principais
o que nos permitiria confiar nelas: divulgadores no Brasil dos debates
porque os aparatos corresponden- mais importantes nessa área.
tes foram selecionados pelo meio Por conta desse trabalho de di-
ambiente (Abrantes, 2007, p. 154) vulgação e esclarecimento, ele pu-
Abrantes aponta como uma crí- blica “Naturalismo em filosofia
tica feita ao programa evolucio- da mente” em 2004. Para variar,
nista em epistemologia a tese de há várias posições diferentes que

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se identificam como naturalistas tal como propriedade. Para Abran-


nesse campo. De um lado, há as tes, além de não ser uma posição
concepções fisicalistas, que Abran- unívoca, o fisicalismo não redutivo
tes distingue entre redutivas e não tem grandes dificuldades para se
redutivas. Ambas rejeitam o dua- afirmar como uma posição natu-
lismo de substância de tipo cartesi- ralista consistente em filosofia da
ano (e isso seria devido às “evidên- mente (Abrantes, 2004a, p. 20).
cias empíricas de que não há cova- Mais complicado ainda é o du-
riância entre o mental e o físico”) alismo de David Chalmers, que
e defendem uma dependência do rejeita o fisicalismo, mas ainda
mental em relação ao físico. Além se pretende naturalista porque se
disso, como outro argumento em pretende compatível com o qua-
seu favor, o fisicalismo defende o dro traçado pela ciência contem-
fechamento causal do mundo, ou porânea e sem invocar as “forças
seja, que eventos físicos são cau- obscurantismo”. Abrantes observa
sados apenas por eventos físicos, que há uma ampliação do conceito
uma vez que esse é um princípio de natureza nessa proposta e uma
básico do método científico. Isso consequente ambiguidade na no-
implica rejeitar a noção de “cau- ção de naturalismo. Além disso,
sação descendente” do mental em normalmente os que adotam posi-
relação ao físico e a existência de ções contrárias ao fisicalismo aca-
seres mentais sem um substrato fí- bam também adotando métodos
sico. diferentes dos científicos em filoso-
Por outro lado, o fisicalismo não fia da mente. Em outras palavras,
redutivo afirma a dependência do a oposição ao naturalismo ontoló-
mental em relação ao físico sem gico é também uma oposição ao na-
que isso implique uma redução do turalismo metodológico nessa área
primeiro ao segundo. Essa ver- da filosofia (Abrantes, 2004a, p.
são não redutiva se apresenta em 28). Abrantes critica também teses
várias formas, como as de Searle antinaturalistas como a de McGinn
(1997) e Davidson (1991). Uma (1999), segundo as quais há limites
das formas de fisicalismo não re- não acessíveis à nossa compreen-
dutivo é a que afirma uma relação são da relação entre mente e corpo.
de superveniência entre mente e Para ele, não há como saber se es-
corpo, ou seja, de que um evento ses limites são insuperáveis ou se
mental sempre acompanha ou so- são dificuldades que exigem mais
brevém a um evento físico, pre- esforço de investigação ou mudan-
servando o físico como substân- ças conceituais radicais: “Posições
cia única e considerando o men- misteristas (...) parecem-me obs-

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curantistas, por nos fazerem pa- “imagens de natureza” que


rar prematuramente, se é que al- não podiam ser submetidas
gum pressuposto epistemológico diretamente ao crivo da ex-
ou ontológico deva nos fazer pa- periência. Tais “imagens” –
rar...” (Abrantes, 2004a, p. 31). que eventualmente são suge-
No mesmo ano de “Naturalismo ridas pela Metafísica filosó-
em filosofia da mente”, Abrantes fica ou originam-se de outras
publicava o texto “Metafísica e ci- fontes – funcionam como on-
ência: o caso da filosofia da mente” tologias, em geral assistemá-
(2004b), que contém várias ideias ticas e tácitas, fixando os
do anterior, mas parece dar mais constituintes que são consi-
ênfase ao naturalismo metodoló- derados últimos ou essenci-
gico, ao invés do ontológico, ape- ais da realidade, suas mo-
sar do texto se propor a tratar es- dalidades de interação, bem
pecificamente da relação entre me- como os processos fndamen-
tafísica e ciência. Antes de entrar tais dos quais participam.
propriamente no caso da filosofia Essas imagens de natureza
da mente, o trabalho faz um breve fornecem a matéria prima
histórico do modo como aquilo que para modelos e metáforas,
era tido como metafísica era rejei- que são geratizes e elementos
tado por correntes filosóficas que constitutivos das teorias ci-
viam as ciências empíricas com entíficas. As imagens de na-
um papel central na construção de tureza influenciam, por ou-
nossa compreensão da realidade. tro lado, as decisões a res-
No início do século XX, era o empi- peito da aceitabilidade de
rismo lógico que defendia essa po- explicações e o desenvolvi-
sição. Contra os empiristas lógicos, mento de métodos conside-
Popper defendeu um papel posi- rados adequados à investi-
tivo para as crenças metafísicas na gação, restringindo e orien-
história da ciência. Abrantes con- tando a atividade científica
corda com essa tese e afirma: (Abrantes, 2004b, p. 216)

A história da ciência for- Trata-se de uma ideia tão impor-


nece, de fato, evidências tante em sua concepção acerca do
de que, em qualquer pe- assunto, que ela aparece, com ter-
ríodo, os cientistas admiti- mos bastante parecidos em obras
ram, consciente ou inconsci- publicadas por volta de uma dé-
entemente, explícita ou im- cada depois (Abrantes 2013, p. 130
plicitamente, determinadas e Abrantes 2014, p. 9) e que
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já estava também presente na pri- Ciências. Ou seja, o naturalismo


meira edição de Imagens de Na- pressuporia, nessa leitura, um mo-
tureza, Imagens de Ciência (2014), nismo metodológico e não um mo-
publicada em 1988. Trata-se de nismo ontológico (como o fisica-
um rico intercâmbio entre a ativi- lismo)” (Abrantes, 2004b, p. 221).
dade científica e vários outros mo- O monismo metodológico é uma
dos de gerar concepções sobre o tese bem mais modesta que o on-
mundo e o próprio conhecimento tológico, mas ele ainda traz para
(as “imagens”), que influenciam e a filosofia da mente a questão de
são influenciadas pelos resultados saber se haveria espaço para uma
da pesquisa científica. É nesse de- pesquisa nessa área da metafísica
bate que pode ser inserida a pro- contemporânea que seja relativa-
posta naturalista para a epistemo- mente independente das ciências
logia que, como já vimos, rejeita naturais e, em vista disso, como fi-
o status a priori tradicionalmente caria a interação entre metafísica
dado a essa disciplina, advogando e ciência nesse campo da filosofia.
uma continuidade entre a episte- De um lado, no âmbito naturalista,
mologia e as ciências naturais. há os que propõem um reducio-
Mas no programa metodológico nismo do mental ao físico – tese
naturalista há também quem pro- que já vimos sob o título de “re-
ponha uma naturalização da me- ducionismo fisicalista”. Os pres-
tafísica. O já mencionado H. supostos dessa tese são aceitáveis
Kornblith, por exemplo, propõe para a maioria dos naturalistas: 1)
uma metafísica naturalista que não há propriedades mentais a não
tem como tarefa extrair da ciência ser como instâncias de proprieda-
contemporânea implicações meta- des físicas; 2) o mundo físico é
físicas de modo que não deixe es- causalmente fechado; 3) um estado
paço para outras vias de elaboração físico não pode ser causado por
dessas concepções gerais acerca do mais de um tipo de estado (físico
mundo. Apesar dessa proposta e mental, por exemplo), além da
dentro do naturalismo, Abrantes tese de que só existe o que tem po-
conclui em outro sentido: “Pode-se der causal. O reducionismo fisi-
sustentar, entretanto, que o natu- calista tem, porém, consequências
ralismo é ontologicamente neutro, drásticas: além de implicações sé-
comprometendo-se somente com rias para a epistemologia e a ética,
uma particular metodologia, a das não haveria bases para a Psicologia

3 Na introdução que fez à tradução do famoso artigo de Thomas Nagel (What’s like to be a bat?), Abrantes (2005)
aponta outros limites do reducionismo fisicalista em filosofia da mente, especialmente a dificuldade de se explicar

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como ciência teórica, dada a rejei- ou mesmo a existência de métodos


ção de causação mental3 (Abrantes, filosóficos independentes dos cien-
2004b, p. 225). tíficos já havia sido feita em outros
Por outro lado, a metafísica na- textos de Abrantes, tal a importân-
turalista se vê como continuidade cia dessa tese para o naturalismo.
do trabalho científico, apenas com Conforme já vimos, o naturalismo
um grau mais elevado de abstra- metodológico entende haver uma
ção. Um problema para essa me- continuidade entre a filosofia e as
tafísica é a diversidade de compre- ciências naturais em termos de mé-
ensão entre os metafísicos natura- todos empregados, pois métodos
listas acerca de quais são os objetos especulativos ocorrem também nas
da especulação metafísica em vista ciências empíricas e métodos em-
da pesquisa científica. Segundo píricos podem ser usados na pes-
Abrantes, isso mostra uma relativa quisa filosófica. Por outro lado,
autonomia dessa metafísica em re- ele parece reconhecer que, ape-
lação às ciências naturais, mas não sar da possibilidade de converter
a ponto de usar “as velhas cate- teses metafísicas em regras meto-
gorias aristotélicas ou tomistas!” dológicas, isso não elimina a ne-
(Abrantes, 2004b, p. 227). Essa cessidade de adotar compromissos
afirmação remete a uma nota na metafísicos por parte dos filóso-
qual Abrantes esclarece sua rejei- fos naturalistas (Abrantes, 2004b,
ção a esse tipo de trabalho. Ao p. 231). Um exemplo particular-
comentar a tese (Artigas & San- mente importante da história da
guineti, 1984) de que a filosofia ciência mostra a vinculação forte
da natureza se distingue das ciên- entre metodologia e conhecimento
cias experimentais porque estas fa- substantivo: o surgimento da nova
lam das causas próximas dos even- imagem mecanicista de natureza,
tos naturais, enquanto a filosofia que se consolidou a partir do sé-
trata das causas primeiras, Abran- culo XVII. Ao eliminar as causas fi-
tes pergunta: “O que este autor nais e a distinção entre causa in-
não aborda é a questão da legitimi- terna e externa, o mecanicismo foi
dade dessa última investigação: de um requisito para a importância
que métodos a ‘Filosofia da Natu- dada à experimentação no novo
reza’ lançaria mão para descobrir método científico (Abrantes, 2013,
(ou postular) tais ‘causas primei- p. 138).
ras’?” (Abrantes, 2004b, p. 239). A referência à história da ciên-
A pergunta sobre a legitimidade cia é muito importante nas ideias

a consciência considerando-se as restrições da metafísica fisicalista.

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de Abrantes acerca do naturalismo providencialista, pois estas co-


metodológico e seus pressupostos metem petição de princípio e
ontológicos. Ela terá um papel im- complexificam a ontologia, o
portante na análise que será feita que é algo a ser evitado, como
a seguir, levando-se em conta não mostram a história da ciência e
apenas a bibliografia em filosofia da filosofia;
da mente, epistemologia e filoso-
6. O naturalismo ontológico res-
fia da mente, mas também algo de
tringe a realidade ao que pode
um tema que não se fez claramente
ser estudado cientificamente;
presente em seu trabalho, mas que
o rondou de algum modo: a filoso- 7. A natureza não é guiada por
fia da religião. uma mente incorpórea inten-
cional, pois esse é um pressu-
Naturalismo, ciências naturais e posto científico adotado na Bi-
teísmo ologia e porque não se obser-
vam mentes independentes de
Em vista do exposto acima, po- cérebros;
demos resumir do seguinte modo
as teses acerca do naturalismo ex- 8. Em vista dos problemas ge-
postas por Abrantes: rados pelo fisicalismo redu-
tivo em filosofia da mente, é
1. A filosofia atual deve levar em possível que uma boa alterna-
conta em suas teorias conheci- tiva seja a de se pensar que o
mentos empíricos das ciências; naturalismo é ontologicamente
2. A filosofia não dispõe de méto- neutro.
dos especiais, que se distingam Vou comentar essas teses le-
essencialmente dos científicos; vando em conta algumas relações
3. Os filósofos podem contribuir internas entre as ideias apresenta-
pouco ou nada com nossas das, o debate em filosofia da re-
imagens de natureza; ligião e elementos da história do
pensamento filosófico e científico.
4. A aplicação de um método ti-
O uso de conhecimento cientí-
picamente científico como o de
fico em questões filosóficas não é
Darwin na Biologia pode ser
nenhuma novidade na filosofia. É o
trazida para a epistemologia e
que fazem, por exemplo, Tomás de
a metafísica;
Aquino, no século XIII, nas cinco
5. Além disso, o naturalismo vias para a existência de Deus e
epistemológico darwinista vai William Paley, no início do século
rejeitar explicações de tipo XIX, no seu argumento teleológico
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ABRANTES, O NATURALISMO E O TEÍSMO

em favor do teísmo, com respeito a filosofia vá ter esses mesmos re-


ao respectivo conhecimento cientí- sultados? Não há várias atividades
fico de suas épocas. Nesse sentido, diferentes acontecendo no empre-
ambos os autores eram naturalistas endimento chamado “ciências na-
do ponto de vista metodológico. A turais”? Para essas atividades to-
diferença é que o que eles conside- das haveria só um método? E essas
ravam ciência em seu tempo já não atividades todas podem ser reali-
é mais reconhecido como tal nos zadas na filosofia? Por uma razão
dias de hoje. Ocorre, porém, que empírica (a constatação histórica,
esse é um problema permanente no caso), a resposta mais correta
na metodologia naturalista. Mais para essas questões é negativa. A
do que um problema, trata-se an- filosofia não tem os mesmos resul-
tes de um desafio para a filosofia, tados da tecnociência, porque seu
o de se colocar em sintonia com o trabalho é de outra natureza. As
conhecimento científico que se atu- ciências são um conjunto de ativi-
aliza sempre. dades de observação, elaboração e
Outra coisa, porém, é dizer que execução de experimentos, desen-
os únicos métodos que se justifi- volvimento e calibração de equipa-
cam são os das ciências empíri- mentos, cálculo, modelagem ma-
cas. Trata-se de uma tese que não temática, entre outras4 . Esse con-
tem como ser testada empirica- junto é certamente bem diferente
mente, que não é científica nesse do que se tem em filosofia e isso
sentido. Como se vai justificar ci- que se tem em filosofia se deve ao
entificamente o método científico? fato de que é também diferente o
Essa justificação é normalmente que se faz nela em relação ao que
feita com base em critérios a priori se faz em ciências empíricas.
acerca daquilo que é desejável no Dizer que os métodos emprega-
conhecimento, o que é tipicamente dos na Filosofia são também em-
uma questão filosófica e não cien- pregados nas ciências empíricas
tífica. Ao defender o uso de mé- tampouco parece argumento para
todos científicos em filosofia e não dizer que a filosofia não tem um
aceitar outros, o naturalismo usa método próprio que a distingue.
o sucesso empiricamente consta- A Filosofia dispõe dos bons e ve-
tável das ciências na previsão, en- lhos recursos de análise conceitual
tendimento e controle do mundo e especulação racional, que devem
natural. Mas pode-se esperar que respeitar critérios como consistên-

4 Para uma descrição da multiplicidade de atividades desenvolvidas no que chamamos de ciências empíricas e
uma defesa da relativa autonomia técnica e metodológica dessas diferentes atividades, ver Hacking (1983).

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cia lógica, coerência, simplicidade faz. As ciências podem bem usar


e inteligibilidade. O conhecimento recursos metodológicos emprega-
científico entra com parte dos con- dos na Filosofia, mas uma teoria
ceitos a ser analisados e que ser- não vai ser considerada científica
vem para analisar outros concei- se não for testável empiricamente e
tos, mas há outras fontes tão legí- isso não se exige de uma teoria filo-
timas quanto o conhecimento ci- sófica. Por outro lado, a atividade
entífico, como a própria história científica pressupõe conceitos e va-
da filosofia (que Abrantes emprega lores que não são dados pela pró-
amplamente) ou mesmo a história pria ciência, pois ela precisa deles
de outros elementos da cultura hu- para começar a funcionar. Que de-
mana, como a religião. Por que pois esses conceitos e valores vão
pensar que só os métodos em ci- sendo aperfeiçoados pelo próprio
ências naturais podem conferir ga- trabalho científico é apenas parte
nho cognitivo? A Matemática, que do diálogo entre Filosofia e ciên-
é pura análise conceitual, não é um cias naturais, tal como se dá en-
exemplo contrário a isso? A Fi- tre Matemática e ciências naturais,
losofia não consegue demonstrar mas não significa que a Filosofia
suas teses com a exatidão e neces- seja uma ciência natural, tal como
sidade da Matemática, nem dispõe não o é a Matemática. As ciências
do teste empírico para avaliar suas podem bem usar os métodos da fi-
teses, pois as próprias noções de losofia, mas ela não os discute, não
experiência e de teste podem ser reflete sobre eles, pois nesse caso
postas em discussão pela Filoso- o cientista está deixando de fazer
fia. Afirmar que há elementos na ciência.
atividade científica que estão pre- O exemplo da epistemologia se-
sentes na atividade filosófica não lecionista como modelo de traba-
é dizer que elas têm o mesmo mé- lho em filosofia naturalista indica
todo, ou que o modo de fazer fi- vários elementos. Em primeiro lu-
losofia deva ser o das ciências na- gar, do ponto de vista das pergun-
turais. Uma vez que estas surgi- tas que são feitas e do modo de
ram muito depois da Filosofia, não tentar respondê-las não há nada de
é de se estranhar que tenham ad- criticável, afinal, as questões filosó-
quirido elementos do modo desta ficas são tão difíceis e multifaceta-
trabalhar, mas isso não significa das que toda ajuda é bem-vinda. A
que elas sejam um substituto da Fi- epistemologia selecionista mostra
losofia, pois há coisas que esta faz vários aspectos do conhecimento
que as ciências não fazem e coisas que talvez outras abordagens não
que estas fazem que a Filosofia não sejam capaz de fazê-lo. No en-

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ABRANTES, O NATURALISMO E O TEÍSMO

tanto, os argumentos apresentados ocorrência de fumaça pela existên-


contra os outros dois tipos de epis- cia de fogo, não parece fazer sen-
temologia (providencialista e ins- tido avaliar explanans e explanan-
trucionista) parecem muito proble- dum comparativamente quanto à
máticos, ou seja, a de que cometem simplicidade. Por que razão o fogo
petição de princípio ou que recor- seria mais simples que a fumaça
rem a uma ontologia mais com- em termos explicativos ? Em todo
plexa, com um maior número de caso, não há no caso da explicação
entidades e propriedades que seria sobrenaturalista nenhuma petição
necessário postular. de princípio, pois a mente pressu-
Como vimos na seção anterior, posta para se explicar a existência
Abrantes fala de duas variantes de uma ordem fundamental que
da falácia de petição de princípio: vai dar em organismos com men-
pressupor na explicação um sis- tes não é ela mesma um organismo
tema com igual ou maior comple- físico. A segunda variante, que não
xidade adaptativa que o que vai ser aceita uma explicação que não seja
explicado e invocar algum conheci- explicada, tampouco parece ser um
mento prévio cuja origem não seja caso de petição de princípio. Além
elucidada para explicar as adap- disso, ela comete a falácia comple-
tações biológicas. Não me parece tista, pois o fato de x explicar y não
que nenhuma das duas variantes tem de pressupor que se tenha ex-
seja petição de princípio a rigor. A plicação para x, ou uma explicação
primeira de fato parece defeituosa, completa para toda a série de ex-
pois o explanans deve ser mais in- plicações. Se fosse assim, nada ou
teligível que o explanandum e um pelo menos muito pouca coisa seria
elemento característico da inteli- explicado. É suficiente dizer que o
gibilidade é a simplicidade. Note, que explica a fumaça naquela cir-
porém, que o princípio fala de “sis- cunstância é a presença de fogo,
tema com maior ou igual comple- e isso não requer que eu explique
xidade adaptativa”, o que se refere por que há fogo naquela situação.
a um organismo biológico. Isso não A ideia de evitar petição de prin-
inclui aquilo que não é biológico cípio no exemplo da explicação da
ou natural. Em outras palavras, aprendizagem com base em gera-
se a explicação não invoca um or- dores que são meros autômatos é
ganismo biológico, não há qual- a de evitar que o explanans seja in-
quer termo de comparação para tencional ou inteligente para se ex-
se avaliar a simplicidade relativa. plicar algo dotado de intenção e
Além disso, quando se explica – inteligência. Como se explica a in-
de modo inteiramente legítimo – a teligência e a intenção? Por algo

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que não é intencional nem inteli- aparato cognitivo humano. Con-


gente. Essa, sem dúvida, é uma tudo, a comparação não é entre a
maneira de se evitar a petição de teoria científica da evolução bio-
princípio. Mas há outras. O que lógica por seleção natural com o
se requer para evitar essa falácia teísmo, mas entre este e o natura-
é que a conclusão não esteja in- lismo e aqui chegamos a um ponto
cluída na premissa. Não há isso importante deste artigo, para o que
na explicação da inteligência hu- passo a utilizar uma bibliografia
mana como sendo imagem da inte- mais ligada à filosofia da religião.
ligência divina, sendo criada por O exemplo do método empre-
meio dos mecanismos materiais gado na epistemologia selecionista
da seleção natural, pois o que se como forma de naturalismo meto-
pressupõe na premissa (Deus e sua dológico mostra um elemento fre-
ação) não está conclusão – a inte- quentemente apontado pelo traba-
ligência humana. É claro que se lho de Abrantes: a vinculação entre
pode criticar essa explicação por o método naturalista e seus pressu-
outras razões – por exemplo, Deus postos ontológicos. O naturalismo
é mais complexo que o ser humano ontológico restringe a realidade ao
e, portanto, o explanans é menos que pode ser estudado cientifica-
simples que o explanandum –, mas mente. No entanto, como afirma
não se trata de um caso de peti- Michael Rea (2002), o naturalismo
ção de princípio. De fato, não há não pode ser formulado como uma
petição de princípio na explica- tese, pois cai em um dilema nesse
ção darwinista do conhecimento, caso:
mas isso não é o que a distingue
da explicação teísta. O que a dis- So those who want to for-
tingue é que ela se dá dentro dos mulate naturalism as a the-
limites do método científico, po- sis face a dilemma. On the
dendo ser testada empiricamente e one hand, if they formulate
é capaz de unificar várias áreas de it as a thesis that cannot be
pesquisa em ciências naturais (em- overturned by scientific in-
briologia, paleontologia, botânica, vestigation, then naturalism
zoologia), enquanto a explicação turns out to be precisely the
teísta seria apenas um princípio sort of thesis that natura-
metafísico de segunda ordem, que lists are unwilling to accept.
tem a ver com problemas como a In the worst cases such for-
existência mesma de um universo mulations are either vacu-
físico, o fato de que esse universo ous or self-defeating. On the
é cognoscível e a confiabilidade do other hand, if they formulate
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ABRANTES, O NATURALISMO E O TEÍSMO

it as a thesis that could be menos contemporaneamente, o na-


overturned by scientific in- turalismo pode ser definido como
vestigation, then (obviously um programa de pesquisa que re-
enough) naturalism stands jeita fontes de conhecimento que
at the mercy of science (Rea, não a pesquisa científica. Isso ex-
2002, 52-3). plica bem a profusão de entendi-
mentos de naturalismo expressa
Em outras palavras, ou o natu- no trabalho de Abrantes que, não
ralismo como tese metafísica não à toa, também usou a expressão
pode ser derrubado pela ciência “programa de pesquisa” para fa-
(e assim se torna anticientífico, o lar do naturalismo.
contrário do que ele pretende ser) Conforme indicado acima, po-
ou ele fica dependendo da ciên- rém, o naturalismo tem como um
cia e assim não tem como assumir de seus princípios metafísicos e
nenhuma tese substantiva sobre o metodológicos unificadores a ideia
que é a realidade, uma vez que a de não recorrer à experiência reli-
pesquisa científica pode vir a mu- giosa ou à teologia como fonte de
dar suas ideias a respeito. Isso vale informação sobre o que há e, por-
inclusive para o que é “sobrenatu- tanto, não aceitar a existência de
ral”. Por essa razão, Rea sugere que entidades como as que postula a
a melhor maneira de entender o metafísca teísta e, especialmente,
naturalismo é como um programa o próprio conceito de Deus como
de pesquisa, ou seja, um conjunto parte de uma explicação filosó-
de disposições acerca de como con- fica. Nem mesmo a rejeição do
duzir uma pesquisa (Rea, 2002, p. dualismo mente-corpo seria uma
67). Embora também nesse sentido marca clara do naturalismo, pois
o naturalismo fique à mercê da ci- há propostas nesse sentido que se
ência, podemos dizer que, dentro dizem naturalistas, como a de Le-
do que se vem constituindo como vine (2016). Os dualistas enten-
ciências naturais desde o século dem que a mente é um ingrediente
XVI, o programa de pesquisa na- básico do mundo e que não pode
turalista se distingue do sobrena- ser construído a partir do não men-
turalismo e ao intuicionismo, por tal, tal como também propõe Tho-
exemplo, pois rejeita tanto a ex- mas Nagel, autor do artigo para o
periência religiosa (e as tradições qual Abrantes escreveu uma intro-
de pensamento teológico que se dução (2005). Os teístas tendem a
formaram a partir dela) quanto a ser dualistas, mas nem todo dua-
intuição como fontes de informa- lista é teísta. Para o dualista natu-
ção. Assim, podemos dizer que, ao ralista, segundo Levine, a forte cor-

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relação entre estados físicos e esta- lhor do naturalismo estaria na pos-


dos mentais é um fato bruto na- sibilidade levantada por Abrantes
tural, devido a alguma lei psicofí- de um naturalismo metodológico
sica que ainda não foi devidamente neutro, usando a história da ciên-
enunciada. Não se trata de algo cia como um dos argumentos.
que possa ser explicado em termos A filosofia analítica da religião
de um nível mais básico de análise é um movimento filosófico rela-
(Levine, 2016, p. 217). O teísmo tivamente recente, tendo surgido
defende que há um nível mais bá- nos meios acadêmicos de língua in-
sico de explicação das leis naturais, glesa por volta dos anos 1950/60,
que seria o da ação intencional de como reação à tese do empirismo
Deus. Naturalistas e teístas dis- lógico de que a linguagem religi-
cordam nesse sentido fundamental osa não tem significado. Um dos
quanto à explicação do mental. Os expoentes desse movimento é o fi-
naturalistas param na natureza e lósofo norte-americano Alvin Plan-
os teístas, em Deus. Em outras pa- tinga, que deu também significati-
lavras, se há um modo mais claro vas contribuições em epistemolo-
e unificador de entender o natu- gia, lógica modal e filosofia da ló-
ralismo metafísico é em contraste gica. No capítulo final de um de
com o teísmo. seus livros de epistemologia (War-
Há vários problemas na hipó- rant and Proper Function – 1993),
tese metafísica teísta. Justificar a Plantinga apresenta a primeira ver-
crença na existência de Deus é um são do que ficou conhecido como o
deles, outro problema é argumen- argumento evolutivo contra o na-
tar por que é mais adequado pa- turalismo metafísico. Um longo
rar em Deus (e não na natureza fí- debate se seguiu até que ele apre-
sica) a cadeia explicativa sobre o sentasse aquela que parece ser a
que há. Uma vez que este artigo versão mais acabada em Where the
é sobre o naturalismo, não pre- Conflict Really Lies – Science Reli-
tendo falar sobre os problemas da gion and Naturalism (2011). É nesta
tese com a qual ele se contrasta, versão que me baseio na exposição
mas a breve lista acima parece ser que se segue.
suficiente para rejeitar a tese de Sua crítica se baseia, entre ou-
que a metafísica teísta seja uma tros aspectos, no que ele chama de
“resposta fácil”. No restante deste “dúvida de Darwin”, expressa por
texto pretendo apresentar um ar- este em uma carta:
gumento importante contra o na-
turalismo metafísico na filosofia da With me the horrid doubt
religião atual e defender que o me- always arises whether the
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ABRANTES, O NATURALISMO E O TEÍSMO

convictions of man’s mind, cing. The principle chore


which has been developed of nervous systems is to get
from the mind of the lower the body parts where they
animals, are of any value or should be in order that the
are all trustworthy. Would organism may survive... Im-
any one trust in the convic- provements in sensorimotor
tions of a monkey’s mind, control confer an evolutio-
if there are any convictions nary advantage: a fancier
in such a mind? (Charles style of representing is ad-
Darwin, 1887, pp. 315-16) vantageous so long as it is
geared to the organism’s way
O argumento de Plantinga contra of life and enhances the or-
o naturalismo se concentra nas fa- ganism’s chances of survival.
culdades mentais humanas e sua Truth, whatever that is, de-
confiabilidade quanto a produzir finitely takes the hindmost.
conhecimento. Essa confiabilidade (Patricia Churchland, 1987,
é pressuposta pelo próprio natu- p. 548).
ralismo como tese metafísica, pois
se nossa percepção e nossa capaci- Essa citação ilustra a explica-
dade de fazer inferências indutivas ção darwinista para o surgimento
e dedutivas não fossem confiáveis, e desenvolvimento do aparato
o próprio naturalismo como expli- cognitivo dos animais em geral,
cação teórica ficaria inviabilizado incluindo-se os seres humanos ob-
e a crença nela seria irracional. A viamente. Do ponto de vista es-
dúvida de Darwin expressa exata- tritamente biológico, nossas facul-
mente esta questão: se há apenas dades mentais se desenvolvem de
aquilo que as ciências naturais atu- modo que a espécie possa se adap-
ais dizem que existe, então por que tar ao meio na luta por sobrevi-
confiar que nossas faculdades nos ver e deixar descendentes. Nesse
dão conhecimento confiável? processo, o mais importante é atin-
A questão acima fica mais clara, gir esses fins práticos e não o obje-
se levarmos em conta outro texto tivo de conhecer a verdade que, “o
muito citado por Plantinga: que quer que seja, fica em último
plano”. Com base nessa interpreta-
Boiled down to essentials, ção da explicação darwinista para
a nervous system enables o funcionamento de nossos apara-
the organism to succeed in tos cognitivos, podemos dizer que
the four F’s: feeding, flee- estes podem até nos permitir obter
ting, fighting and reprodu- a verdade sobre o mundo, mas isso
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pode ser mero acaso, algo como um Essa primeira premissa é funda-
subproduto não proposital, pois mental no argumento de Plantinga
não há uma força intencional gui- e é importante considerar que ela
ando o processo evolutivo, afirma não se refere apenas à explicação
o naturalismo metafísico. E o pro- darwinista do surgimento e evolu-
blema está exatamente em poder ção do aparato cognitivo humano
ser mera casualidade o fato de que (E), mas à conjunção desta com
podemos conhecer a verdade por o naturalismo metafísico (N), que
meio de nosso aparato cognitivo. afirma que não há nada além do
Plantinga não nega que a adap- que as ciências naturais afirmam
tação vai ser mais provável se tiver- sobre o mundo, especialmente um
mos acesso à verdade sobre o meio Deus que age intencionalmente no
ambiente em um sentido corres- mundo por meio de processos a
pondentista e realista, mas a ques- serem descritos pelas ciências na-
tão não é essa. A questão é que o turais, tal como postulado pelo
naturalismo metafísico nos deixa teísmo. Plantinga não vê nada de
sem nenhuma razão para avaliar errado na explicação científica pro-
se é realmente provável que nossas posta por Darwin e depois comple-
faculdades cognitivas vão mesmo tada pela genética de Mendel (um
ser confiáveis em nos dar a ver- monge agostiniano) quanto à he-
dade como um dos resultados de reditariedade de características. O
sua vantagem adaptativa. Se te- problema para Plantinga está no
nho uma doença grave e creio que naturalismo metafísico não acres-
vou me curar, pois isso me dá mais centar nada à explicação darwi-
conforto, não me importando em nista, deixando-nos sem razão para
saber o que as informações cientí- confiar nos resultados do aparato
ficas disponíveis indiquem sobre o cognitivo.
meu caso, minha crença pode até Se isso é de fato assim, então a
ser verdadeira, mas isso será mera- confiabilidade de nossas faculda-
mente casual e, portanto, não estou des cognitivas fica sem respaldo.
sendo epistemologicamente racio- Se não podemos confiar em nossas
nal em aceitá-la. É por essa razão faculdades cognitivas, então não
que ele afirma que a probabilidade podemos pensar que qualquer teo-
de que nossas faculdades cogniti- ria que elas elaborem, incluindo o
vas sejam confiáveis (R) é baixa em darwinismo, seja verdadeira. Pior
vista da conjunção entre o natura- ainda, o naturalista não tem como
lismo e a teoria científica da evo- fundamentar nem sua crença de
lução (N&E), ou seja, P(R/N&E) é que o naturalismo metafísico é ver-
baixa (Plantinga, 2011, p. 317). dadeiro, tirando, por assim dizer, o

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ABRANTES, O NATURALISMO E O TEÍSMO

chão debaixo de seus próprios pés. tinga: o curso mais racional a ser
E isso, segundo Plantinga, torna tomado pelo naturalista metafísico
irremediavelmente irracional acei- é o de dúvida sistemática em re-
tar a conjunção da teoria cientí- lação ao resultado de seu próprio
fica darwinista da evolução com o trabalho (Crisp, 2016, p. 73). As-
naturalismo metafísico (Plantinga, sim, parece haver boas razões para
2011, p. 344-45). Plantinga de- deixarmos de lado o naturalismo
fende, então, que há um conflito metafísico e ficarmos só com o na-
profundo entre o naturalismo me- turalismo metodológico, no sen-
tafísico nesse sentido excludente e tido apontado por Abrantes de ser
as ciências naturais, apesar do pri- neutro em relação a qualquer pres-
meiro se pretender uma continua- suposto ontológico, inclusive um
ção destas. “fisicalismo mínimo” que excluísse
Como vimos, dizer que é óbvio a existência de Deus.
que crenças verdadeiras são prova- A questão da ligação entre o na-
velmente muito mais adaptativas turalismo metodológico e o meta-
que crenças falsas não é uma ob- físico aparece novamente no texto
jeção contra seu argumento, diz de Abrantes que mais explicita-
Plantinga (2011, p. 335 ss.). A mente trata da relação entre reli-
questão não é acerca da confiabi- gião e ciência, que está por trás da
lidade de nossas faculdades cog- relação entre as teorias filosóficas
nitivas em vista de como as coisas do teísmo e do naturalismo metafí-
são, mas de como seriam se fosse sico: “Criacionismo e Darwinismo
verdadeira a conjunção N&E. Em confrontam-se nos tribunais ... da
todo caso, Thomas Crisp propõe razão e do direito” (2006), escrito
uma versão enfraquecida do argu- em coautoria com Fábio Almeida.
mento de Plantinga para propor O artigo fala do problema judicial
que, embora o naturalismo e teo- nos Estados Unidos que foi gerado
ria evolutiva ainda possam servir em torno do ensino da evolução
para explicar a cognição humana por seleção natural darwinista nas-
em atividades práticas imediatas cido da contestação por parte de
da vida cotidiana, ele não conse- grupos fundamentalistas cristãos,
gue sustentar a confiabilidade do que reivindicavam que o criacio-
uso dessas faculdades para assun- nismo ou o design inteligente fosse
tos abstratos e distantes da utili- ensinado nas aulas de ciência. O
dade prática, como os que o natu- problema foi objeto de decisões
ralismo metafísico pretende lidar. nos tribunais, apoiadas em pare-
Desse modo, teríamos o mesmo ceres de filósofos da ciência acerca
resultado do argumento de Plan- da diferença entre o darwinismo

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e o criacionismo. Corretamente, & Almeida, 2006, p. 389)


Michael Ruse, importante filósofo
da biologia canadense, defendeu Além dessas questões meta-
que, enquanto o darwinismo é uma metodológicas, dois outros argu-
teoria científica, o criacionismo é mentos são apresentados contra a
uma doutrina de origem religiosa. saída de separar naturalismo me-
Ruse defende um naturalismo ape- todológico e metafísico: o apelo a
nas metodológico, neutro em ter- causas sobrenaturais tende a desis-
mos metafísicos. Para ele, é pos- timular a atividade científica e a re-
sível distinguir entre naturalismo jeição a petições de princípio, que
metodológico e naturalismo onto- está embutida na negação desse
lógico. O primeiro põe ênfase na apelo sobrenaturalista (Abrantes &
busca de compreensão dos fatos Almeida, 2006, p. 390). O que afir-
na ciência por meio de leis natu- mei acima acerca de uma suposta
rais, mas não nega a possibilidade petição de princípio em explica-
que haja alguma realidade além ções metafísicas sobrenaturalistas
daquela acessível ao estudo cien- me parece suficiente para rejeitar
tífico (Ruse, 2000, p. 99). o argumento da necessidade de se
Abrantes e Almeida discordam acrescentar o naturalismo metafí-
da posição de Ruse: sico ao metodológico. Além disso,
o fato de que questões de método
De toda forma, essa estraté- são realmente muito relacionadas
gia de se refugiar na meto- a questões metafísicas não significa
dologia não agrada aos rea- que o naturalismo metafísico seja a
listas científicos, que preten- melhor teoria filosófica para apoiar
dem tomar as teorias cien- a atividade em ciências naturais
tíficas como uma base para em termos últimos. Levar em conta
se construir uma imagem os resultados da ciência na filoso-
ampla de natureza. Além fia não quer dizer considerar ape-
disso, nós, autores deste ar- nas esses resultados, pois isso seria
tigo, acreditamos que uma restringir demais a atividade filo-
teoria sofisticada da racio- sófica, que pode e deve levar em
nalidade científica não deve conta pelo menos o que outros fi-
isolar as questões de método, lósofos afirmam – como exempli-
pois essas relacionam-se de fica a própria obra de Abrantes.
modo complexo com questões Além disso, por que a filosofia de-
axiológicas e com questões veria se submeter aos mesmos li-
substantivas (factuais, teóri- mites das ciências naturais se ela
cas e metafísicas). (Abrantes não é uma ciência natural? Por ou-
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tro lado, a vacuidade conceitual do pode ser explicado em termos de


naturalismo metafísico e o fato de leis naturais ou de modelos uni-
que ele não acrescenta nada à teo- ficadores, frequentemente formais
ria científica do darwinismo levam ou matemáticos. Por um lado,
a problemas para essa concepção essa compreensão do naturalismo
que são muito fortes. Isso, sem fa- metodológico não exclui o teísmo
lar das enormes dificuldades que como tese metafísica, pois levar
o naturalismo metafísico de tipo em conta os conhecimentos obti-
fisicalista (supondo que ele tenha dos nas ciências não implica ex-
algum conteúdo) tem para expli- cluir outras fontes de crença. Obvi-
car o fenômeno da consciência e os amente, como toda tese filosófica,
valores morais. o teísmo será submetido aos rigo-
Penso, portanto, que não são res da argumentação nessa área,
boas as razões para rejeitar a tese mas isso não é próprio apenas dele.
de um naturalismo metodológico Filósofos teístas como os já cita-
apenas, sem ligá-lo a um compo- dos Tomás de Aquino e William
nente metafísico excludente. Nesta Paley usaram o naturalismo meto-
parte final, proponho-me falar um dológico nesse sentido não exclu-
pouco mais sobre essa ideia e o que dente, assim como o fazem atual-
a credencia como a melhor opção mente Alvin Plantinga e Richard
em vista da contribuição de Abran- Swinburne, entre tantos outros. O
tes para a Filosofia. fato de defenderem o teísmo como
tese metafísica não os exclui da
Em Defesa do Naturalismo Meto- lista de pessoas bem informadas e
dológico Neutro atualizadas5 . O fato do teísmo ter
surgido bem antes das ciências na-
O naturalismo metodológico, tal turais modernas não o torna uma
como eu o entendo aqui, tem di- tese obsoleta e medieval. Talvez,
retivas diferentes para o trabalho como propõe Plantinga (2011), o
em Filosofia e em ciências naturais. contrário seja o mais provável fi-
No caso da Filosofia, é a proposta losoficamente: que o melhor fun-
de se levarem em conta os conhe- damento metafísico para as ciên-
cimentos obtidos nas ciências, mas cias naturais atuais seja o teísmo e
não apenas estes. No caso das ci- não o naturalismo metafísico, mas
ências, trata-se de desenvolver essa não precisamos entrar nesta ques-
atividade dentro dos limites do que

5 Esta famosa citação de Thomas Nagel vai até mais longe, falando não só do teísmo filosófico, mas da crença
religiosa que o inspira: “I want atheism to be true and am made uneasy by the fact that some of the most intelligent
and well-informed people I know are religious believers” (Nagel, 1997, pp. 130-1).

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tão aqui. Em outras palavras, o que eclesiástico contra a teoria da evo-


justificaria a rejeição da proposta lução darwinista, e muito menos
de Artigas & Sanguineti (1984), do que houve episódios lamentáveis
ponto de vista do naturalismo me- de intolerância religiosa contra ci-
todológico, não seria o fato de usar entistas e filósofos, como os casos
formas de argumentação ou teses de Giordano Bruno e Galileu. Es-
aristotélico-tomistas, mas, se esse tou falando apenas que o natura-
fosse o caso, de estar desatualizada lismo metodológico em ciência não
em relação ao conhecimento cien- exige a negação do teísmo, tendo
tífico atual acerca da natureza. em vista não só os enormes pro-
Por outro lado, o naturalismo blemas do naturalismo metafísico,
metodológico exige que se faça ci- mas também a própria história da
ência sobre a realidade física den- ciência.
tro dos limites do que pode ser ex- Historicamente, aliás, como nos
plicado em termos de leis naturais. lembra Hans Halvorson (2016) o
Isso também não exclui o teísmo naturalismo metodológico na ciên-
como tese metafísica de fundo, ou cia surgiu dentro de um contexto
seja, não há nada que impeça um teísta na revolução científica dos
cientista de ser teísta em termos séculos XVI e XVII. Os fundado-
metafísicos. Na verdade, há vá- res das ciências naturais modernas
rios importantes exemplos na his- eram teístas e queriam encontrar
tória de cientistas de primeira li- na natureza o plano do seu Cria-
nha que eram também teístas: Co- dor. É por isso que se concentra-
pérnico, Galileu, Kepler, Newton ram somente na natureza em suas
(ou seja, todos os grandes nomes pesquisas: porque a criação já era
da revolução científica moderna), suposta como pano de fundo, o
sem falar de Mendel, Faraday e Criador não precisava ser parte da
Maxwell. E mesmo Darwin, que teoria. Uma explicação científica
teria se declarado agnóstico por busca descrever fenômenos em ter-
motivos pessoais, não parecia ver mos de leis naturais. Um teísta
incompatibilidade entre a explica- deve ser um naturalista metodoló-
ção científica que ele propunha e gico porque ele propõe que Deus
a tese metafísica de origem reli- não está submetido às leis natu-
giosa do teísmo6 . Não nego que rais e que estas não são metafisica-
houve oposição de muitos no meio mente necessárias, ou seja, elas po-

6 A esse respeito, é eloquente a frase final do último parágrafo de A Origem das Espécies em sua segunda
edição: “I should infer from analogy that probably all the organic beings which have ever lived on this earth have
descended from some one primordial form, into which life was first breathed by the Creator” (Darwin, 1860, p.
428).

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ABRANTES, O NATURALISMO E O TEÍSMO

dem mudar, dependendo da von- dos pressupostos que seus princi-


tade divina e essa é mais uma razão pais cientistas levam em conta em
para se investigar empiricamente sua atividade, não há por que ex-
com rigor e atenção a natureza. Se cluir o teísmo. Mesmo que Deus
Deus não está conectado por meio não seja mencionado nas explica-
de leis naturais a outros fatores nas ções e modelos científicos, essa au-
explicações, então não há por que sência não é uma razão em favor do
mencioná-Lo em uma boa teoria ci- naturalismo metafísico, mas se ex-
entífica. E essa é uma razão para o plica a partir de dentro do próprio
teísta ser um naturalista metodoló- teísmo, como propõe Halvorson.
gico. Uma outra maneira de enten- As ciências naturais em sua histó-
der as ciências naturais é como ati- ria não levam em conta em suas
vidade que visa construir modelos imagens de natureza apenas os re-
matemáticos para representar seus sultados delas mesmas, mas tam-
objetos de estudo. Para o teísta, o bém de outras fontes, como bem
fato de que é possível representar mostra Abrantes (2014) e a concep-
a realidade física por meio de mo- ção metafísica teísta é uma dessas
delos matemáticos se deve a que o fontes. O fato de que, especial-
universo é criação de uma mente mente na França, a partir do século
incorpórea, ou seja, Deus o criou XVIII, vários cientistas importan-
segundo um plano e é por ser um tes adotaram o ateísmo não signi-
produto de uma mente inteligente fica que seja preciso ser ateu para
que o universo físico cabe em es- ser um bom cientista, nem tam-
truturas matemáticas. Por outro pouco um bom filósofo que leva a
lado, não cabe colocar Deus em um sério as ciências.
modelo matemático para o teísmo,
pois Ele está para além do que a
Conclusão
matemática pode representar. As-
sim, nessa concepção de ciência, Neste artigo foi feito um apa-
o teísta também tem uma razão nhado das principais teses de
para ser um naturalista metodoló- Abrantes acerca do naturalismo. A
gico: Deus não deve aparecer em característica mais importante des-
sua teorização e Ele oferece uma tas é a de dar valor, na atividade
razão para fazer modelos matemá- filosófica, ao conhecimento acerca
ticos do universo físico (Halvorson, do mundo obtido pelas ciências na-
2016, p. 142-44). turais. Em epistemologia e filosofia
Assim, se formos levar a sério da ciência, o naturalismo significa
a história da ciência na compreen- considerar o que dizem as disci-
são do que é o método científico e plinas acerca da cognição, como as
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neurociências, a Ciência da Com- mento filosófico-científico; 5) o fi-


putação e a Psicologia. Em filoso- sicalismo mínimo evita petição de
fia da mente e metafísica, o natu- princípio na explicação em episte-
ralismo implica considerar o que mologia e metafísica, ao não postu-
dizem as ciências naturais para se lar nas premissas uma mente que
pensar acerca dos constituintes úl- se quer explicar na conclusão; 6)
timos do mundo. A grande diversi- o fisicalismo é a melhor expres-
dade abrangida pela noção de na- são das ciências naturais, pois a
turalismo levou Abrantes a fazer a imagem de natureza que mais
um minucioso trabalho de classifi- bem se adéqua à história da ciên-
cação, que divide essa abordagem cia moderna, sendo a compreen-
em basicamente dois ramos: o me- são de mundo que se pode espe-
tafísico e o metodológico. rar de pessoas bem informadas no
Apesar de o naturalismo meto- mundo de hoje. Abrantes reco-
dológico ter menos compromissos nhece os limites do fisicalismo, es-
ontológicos que o metafísico, ele pecialmente em filosofia da mente,
não deixa de assumir teses acerca admite a possibilidade de um na-
do mundo, o que Abrantes cha- turalismo metodológico neutro em
mou de “fisicalismo mínimo”. Os termos metafísicos, mas não é claro
argumentos em favor desse fisica- em defendê-lo como a melhor op-
lismo mínimo seriam: 1) a filo- ção para a abordagem naturalista.
sofia não tem um método espe- O artigo propôs que a melhor
cial, ela deve seguir o das ciências opção para o naturalismo é a da
naturais, pois os filósofos lançam versão metodológica neutra em ter-
mão de teses empíricas e os cien- mos metafísicos. Além disso,
tistas usam argumentos a priori; a enorme diversidade do natura-
2) ao assumir um mesmo método lismo fica mais bem entendida no
que o das ciências naturais, a fi- contraste com o teísmo, a tese
losofia deveria assumir também as de que o mundo físico depende
restrições que se impõem às ciên- fundamentalmente de uma inte-
cias; 3) uma das restrições funda- ligência criadora incorpórea oni-
mentais ao trabalho científico é o potente e infinitamente boa, tal
“fechamento causal do mundo”, ou como se pode concluir como tese
seja, de que não se devem postular de fundo unificadora das grandes
elementos externos ao mundo fí- religiões monoteístas (judaísmo,
sico para que este seja explicado; 4) cristianismo e islamismo). Fo-
quanto menos teses ontológicas se ram apresentados argumentos con-
assumem, melhores os resultados, tra cada um dos pontos elencados
como mostra a história do pensa- acima em favor do fisicalismo mí-

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nimo. 1’) mesmo tendo elemen- fato das ciências naturais não in-
tos metodológicos comuns, filoso- cluírem Deus em suas explicações
fia e ciências naturais são áreas do não significa que este não possa es-
conhecimento claramente distintas tar no pano de fundo metafísico da
– o fato de que haja continuidade atividade científica. O fisicalismo
entre o dia e a noite não significa não tem problemas significativos
que não se possa distingui-los com apenas em filosofia da mente, mas
nitidez; 2’) o fato de que filosofia também em epistemologia (o pro-
e ciências naturais são diferentes blema da confiabilidade do aparato
implica em dizer que a primeira cognitivo) e em metafísica em ge-
não tem por que assumir todos os ral, pois tem de assumir o mundo
compromissos assumidos pela ati- físico como um fato bruto inex-
vidade científica; 3’) a filosofia não plicável. Sua simplicidade onto-
tem por que assumir o fechamento lógica, ao invés de ser uma vir-
causal do mundo como restrição tude, acaba limitando-o de forma
ao pensamento acerca da realidade a torná-lo altamente problemático.
em geral, o fisicalismo não é uma O naturalismo metodológico neu-
teoria científica, mas uma tese fi- tro preserva a evidente diferença
losófica e assim como o sucesso da entre filosofia e ciências naturais
ciência não tem como ser transfe- ao mesmo tempo que dá lugar re-
rido para a filosofia (qualquer que levante ao seu diálogo. Além disso,
seja ela), esta não precisa assumir faz justiça também à história da ci-
suas restrições metodológicas; 4’) a ência, que mostra um número alta-
história do pensamento filosófico- mente significativo de grandes ci-
científico mostra o quão complexa entistas (e de filósofos que levavam
é a noção de simplicidade e que a sério a ciência de seu tempo) que
esta está submetida ao poder expli- eram também teístas, tanto no pas-
cativo como critério epistêmico, ou sado quanto hoje.
seja, é preferível uma teoria mais Eu tive o privilégio de acom-
rica ontologicamente, mas que seja panhar o trabalho filosófico de
mais explicativa; 5’) não há peti- Abrantes desde o começo de sua
ção de princípio na tese teísta, pois carreira acadêmica, tendo sido seu
a mente que é postulada na expli- aluno ainda na graduação e depois
cação não depende de aparato fí- vindo a ser seu colega. Agradeço
sico, como a mente a ser explicada muito a ele o interesse que tenho
– talvez seja o inverso: o fisicalismo pela história e a filosofia da ciência,
postula a matéria física no expla- e a percepção do quanto essas áreas
nans para explicar o explanandum são importantes para a formação
em termos da mesma ideia; 6’) o de um filósofo hoje. Apesar de se-

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guir seu trabalho sempre de muito centivou seus alunos a pensar por
perto, lamento só agora ter tido si mesmos, como deve ser um bom
a oportunidade de ler seus textos filósofo, naturalista ou não.
com mais atenção. Ele sempre in-

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ISSN: 2317-9570
O Que nos Faz Humanos? Bases Empíricas e Evolutivas
das Principais Transições da Linhagem Hominínia

[What Makes us Human? Empirical and Evolutionary Bases of the


Main Transitions of Hominin Lineage]

Pedro Da-Glória*

Resumo: A evolução da linhagem humana é um assunto de alta re-


levância para o entendimento da morfologia e do comportamento de
humanos modernos. Todavia, no Brasil há pouca produção bibliográ-
fica sobre o assunto e uma carência na formação de alunos versados
sobre esse tópico. Em continuidade aos esforços feitos por pesqui-
sadores como Paulo Abrantes, este texto trabalha com as principais
transições na linhagem hominínia, do momento de seu aparecimento
há cerca de sete milhões de anos na África até o surgimento do Homo
sapiens há 200 mil anos. A evolução humana é organizada aqui em
três grandes transições. A primeira delas foi o surgimento da bipedia
e a diminuição dos caninos. A segunda foi o surgimento das ferra-
mentas de pedra, a expansão do cérebro e a diminuição dental. E, a
terceira transição foi o surgimento do pensamento simbólico. Esses
tópicos são abordados em uma perspectiva evolutiva, dando ênfase
para evidências empíricas atuais sobre o assunto. Por fim, a evolução
humana é um tópico relevante para se discutir o papel da biologia
e da cultura em nossa espécie, sendo que ambas foram atuantes no
processo evolutivo de formação da nossa espécie.
Palavras-chave: evolução humana; teoria da evolução biológica;
anatomia humana; adaptação biocultural; registro fóssil.

* Programa de Pós-Graduação em Antropologia, Universidade Federal do Pará. E-mail: da-gloria@ib.usp.br

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PEDRO DA-GLÓRIA

Abstract: The evolution of the human lineage is a highly relevant


subject for understanding the morphology and behavior of modern
humans. However, in Brazil there is little bibliographical production
on the subject and a lack of training of students about this topic. In
continuity with the efforts made by researchers like Paulo Abrantes,
this text deals with the main transitions in the hominin lineage,
from the moment of its appearance about seven million years ago
in Africa until the appearance of Homo sapiens 200 thousand years
ago. Human evolution is organized here in three great transitions.
The first one was the appearance of bipedal locomotion and the
diminution of canines. The second was the emergence of stone tools,
brain expansion and dental decrease. And, the third transition was
the emergence of symbolic thinking. These topics are addressed in
an evolutionary perspective, with emphasis on current empirical
evidence on the subject. Finally, human evolution is a relevant topic
to discuss the role of biology and culture in our species, both of which
were active in the evolutionary process of formation of our species.
Keywords: human evolution; theory of biological evolution; human
anatomy; biocultural adaptation; fossil record.

Introdução negativamente na compreensão de


A origem e evolução das ca- importantes aspectos do compor-
racterísticas que nos distinguem tamento humano. Este texto visa
como seres humanos é uma ques- contribuir para a reflexão sobre o
tão extremamente relevante para tema da evolução humana, apre-
o entendimento das raízes bioló- sentando as bases empíricas e evo-
gicas e culturais do nosso com- lutivas dos principais traços que
portamento. Por outro lado, há nos distinguem como seres huma-
pouca produção bibliográfica so- nos.
bre o tema da evolução humana A escolha dos traços aqui elen-
no Brasil, principalmente no que cados não pretende de forma al-
tange às conexões entre morfologia guma esgotar os traços definido-
e comportamento humano. Exce- res da humanidade, mas sim re-
ções a esse panorama são os volu- flete discussões históricas sobre o
mes editados por Abrantes (2014a) tema, que frequentemente incluem
e Neves et al. (2015), que busca- essas características como funda-
ram reunir material sobre o tema mentais na transição para a huma-
em língua portuguesa. Ainda mais nidade. Seguindo discussões inici-
problemático é a ausência desse adas no trabalho de Darwin (1871)
tópico na formação da maioria e depois desenvolvidas ao longo do
dos alunos de graduação e pós- século XX (Tattersall, 2009), este
graduação no Brasil, o que reflete texto abordará as seguintes carac-
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O QUE NOS FAZ HUMANOS? BASES EMPÍRICAS E EVOLUTIVAS DAS PRINCIPAIS TRANSIÇÕES
DA LINHAGEM HOMINÍNIA

terísticas definidoras dos seres hu- Teoria da evolução e evolução hu-


manos: bipedia, diminuição dos mana
caninos, fabricação de ferramen-
tas, expansão do cérebro, dimi- A evolução biológica constitui a
nuição dental e pensamento sim- base teórica deste artigo. Embora
bólico. Além do aspecto histó- a teoria contemporânea de evolu-
rico, a escolha desses traços tam- ção tenha como o seu maior expo-
bém é devida à relativa facilidade ente o naturalista Charles Darwin,
com que eles podem ser reconhe- ela inclui um corpo teórico que
cidos no registro paleoantropoló- tem sido construído desde o século
gico, seja através dos fósseis ou da XVIII e que continua em transfor-
cultura material. Neste texto, es- mação. A teoria sintética de evo-
ses traços são organizados em três lução, por exemplo, foi formulada
grandes transições, que sintetizam entre as décadas de 1930 e 1950,
a compreensão recente da sequên- e teve um papel crucial na jun-
cia de eventos envolvidos em nossa ção das ideias de seleção natural de
trajetória evolutiva. Essa organiza- Darwin e dos princípios da gené-
ção não implica que a evolução hu- tica Mendeliana. A partir da teo-
mana ocorreu em três saltos discre- ria sintética da evolução considera-
tos, já que muitas dessas caracterís- se que evolução biológica é consti-
ticas surgiram ao longo de milhões tuída por quatro forças: mutação,
de anos em ritmos evolutivos dis- deriva genética, fluxo gênico e se-
tintos. Por outro lado, essa organi- leção natural (Ridley, 2004; Meyer
zação permite estruturar de forma e El-Hani, 2005). Ao longo do sé-
esquemática os principais momen- culo XX, as discussões em teoria
tos de transição na nossa linhagem. evolutiva abordaram controvérsias
Este artigo apresenta uma primeira sobre o adaptacionismo, os níveis
parte que define as bases teóricas de seleção natural, o ritmo da evo-
utilizadas, seguida de uma seção lução e a biologia do desenvolvi-
com conceitos básicos para a defi- mento, formando um corpo teó-
nição de nossa linhagem e a seguir rico complexo e robusto (Abran-
discute cada uma das três transi- tes, 2011). Recentemente, mode-
ções aqui propostas. Por fim, e los de evolução biológica que des-
não menos importante, este texto tacam múltiplas heranças têm ga-
presta uma homenagem à obra de nhado força, sendo que a herança
Paulo Abrantes, discutindo em sua biológica clássica é acompanhada
parte final algumas ideias levanta- da herança epigenética, compor-
das por ele à luz desse texto. tamental e simbólica (Jablonka e
Lamb, 2005).
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A evolução humana é apenas 1974). Esses aspectos são muito re-


um caso dentre a enorme diver- levantes para a evolução humana
sidade de histórias evolutivas dos na medida que nossa espécie não
organismos do planeta. Por ou- está no ápice de uma hierarquia e
tro lado, ela é um ótimo estudo seus traços não devem ser entendi-
de caso para o entendimento das dos como teleológicos, ou seja, com
relações gerais entre herança bi- uma finalidade ou um objetivo.
ológica e cultural, uma vez que A partir dessas considerações,
ambos os processos são atuantes este texto busca delinear os tra-
na nossa trajetória evolutiva (Da- ços que nos distinguem como li-
Gloria, 2009). Um outro motivo nhagem, enfatizando aspectos bio-
para a relevância da evolução hu- lógicos e culturais, e utilizando a
mana é o próprio entendimento teoria biológica de evolução como
do comportamento humano, que base teórica. Nesse ponto, o
é crucial para as ciências sociais texto aborda as evidências empíri-
e da saúde. Ao contrário do que cas recentes da evolução humana
é postulado por alguns pensado- ao mesmo tempo que as explica
res de que os seres humanos fun- usando o conceito de causas últi-
cionam por princípios especiais, a mas. Por esse conceito, procura-
teoria evolutiva tem mostrado que se a razão evolutiva para a exis-
todos os organismos vivos são co- tência de um determinado traço
nectados pela ancestralidade co- (Mayr, 1961). Além disso, embora
mum, aproximando os seres huma- reconhecido a diversidade de for-
nos do restante dos organismos vi- ças evolutivas atuantes para a ge-
vos. Esse ponto tem sido exten- ração do organismo biológico, este
samente desenvolvido desde o sé- texto enfatiza o conceito de seleção
culo XIX, quando Huxley (1863) e natural e adaptação biológica, pois
Darwin (1871) abordaram a cone- eles parecem ser os conceitos mais
xão dos humanos com outros ani- adequados para explicar a origem
mais, mostrando as semelhanças dos traços aqui discutidos.
e diferenças com outras espécies,
especialmente com primatas. Ao
Estabelecendo conceitos básicos:
contrário do que se postulava en-
tempo, espaço e classificação
tre os Darwinistas sociais do século
XIX, a teoria biológica de evolução O primeiro passo para um en-
não defende uma linearidade pro- tendimento sólido da evolução hu-
gressiva das espécies e não hierar- mana é a definição de conceitos bá-
quiza os organismos em termos de sicos de tempo, espaço e classifi-
complexidade biológica (Freeman, cação. A relação evolutiva pró-
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xima entre os grandes símios afri- mento completo do genoma de um


canos e os humanos têm sido obser- indivíduo inclui cerca de três bi-
vada tanto no nível comportamen- lhões de pares de bases, o que ga-
tal como anatômico desde o século rante uma enorme quantidade de
XIX (Huxley, 1863; Darwin, 1871). informação comparativa para tra-
No entanto, ao longo do século XX, çar linhas de parentesco biológico.
diversos autores defenderam que A partir da confirmação do grau
nosso parente vivo mais próximo de similaridade biológica entre os
poderia ser o gibão (Hylobates), o grandes símios e os humanos, é
orangotango (Pongo), o gorila (Go- possível trabalhar com uma ta-
rilla) ou o chimpanzé (Pan). A evi- xonômica biológica dessas espé-
dência conclusiva desse debate só cies, utilizando-se de uma classi-
veio com o advento das técnicas ficação baseada nos trabalhos de
de biologia molecular na segunda Carolus Linnaeus no século XVIII.
metade do século XX. O trabalho Seguindo Wood e Harrison (2011),
clássico de Wilson e Sarich (1969) hominínios são todos os indivíduos
apontou para a semelhança mole- da linhagem humana do momento
cular entre grandes símios africa- que viveu o último ancestral co-
nos e humanos, porém não foi con- mum com os chimpanzés (grupo
clusiva quanto a qual deles seria o este que inclui os bonobos), até os
nosso parente evolutivo mais pró- humanos modernos. Os hominí-
ximo. Nesse aspecto, o avanço téc- nios são classificados no nível de
nico na extração e sequenciamento tribo, que é o nível taxonômico
de DNA foi decisivo para a reso- entre família e gênero. A linha-
lução desse debate (Harris, 2015). gem dos chimpanzés, por sua vez,
Usando 14 fragmentos indepen- está classificada na tribo panini.
dentes de DNA, Ruvuolo (1997) Já a superfamília dos hominóides
confirmou que somos mais próxi- inclui humanos, chimpanzés, go-
mos dos chimpanzés, depois dos rilas, orangotangos e gibões e to-
gorilas e por fim dos orangotangos, das as suas linhagens fósseis. Essa
confirmando de maneira sólida a classificação é importante, pois re-
nossa conexão com os grandes sí- flete uma relação biológica pró-
mios africanos. Essa ordem de pa- xima com os chimpanzés, ou seja,
rentesco foi confirmada através de no nível de tribo, além de fornecer
sequências completas de alta co- uma denominação formal, que será
bertura do genoma de vários in- usada por todo esse artigo, para se
divíduos dessas espécies (Prado- referir a nossa linhagem, a dizer, a
Martinez et al., 2013). É impor- linhagem hominínia.
tante destacar que o sequencia- Uma vez definidas as linhagens

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hominínia e panínia, é preciso es- tempos de geração mais longos dos


tabelecer quando o ancestral co- grandes símios obtiveram datas en-
mum dessas duas linhagens viveu. tre 8 e 7 MAA para a separação en-
Os dados genéticos são novamente tre as linhagens (Langergraber et
decisivos na resolução dessa ques- al., 2012). Embora apresentando
tão, pois eles permitem, usando uma alta imprecisão, as análises
o genoma de espécies viventes, de coalescência são um importante
a obtenção do tempo de coales- guia para a identificação do mo-
cência dessas espécies, ou seja, mento de início da linhagem homi-
o momento que viveu o ances- nínia, que parece ter ocorrido entre
tral comum das espécies em ques- 8 e 4 MAA.
tão. Para o cálculo da coalescência A última questão básica a ser
é necessário estabelecer uma taxa respondida é onde ocorreu o sur-
de mutação, que pode ser obtida gimento da linhagem hominínia.
usando outros grupos de animais Com a definição dos grandes sí-
que possuem registro fóssil bem mios africanos (gorilas e chimpan-
estabelecido (Harris, 2015). Na zés) como os mais próximos bi-
prática, esses cálculos são bastante ologicamente dos humanos, a hi-
imprecisos, fornecendo um inter- pótese de surgimento da linhagem
valo de idade amplo, além de ta- hominínia na África ganha força.
xas de mutação bastante variáveis Outra evidência que aponta forte-
(Scally e Durbin, 2012). No caso mente para a África são os fós-
das linhagens panínia e hominí- seis classificados como hominínios.
nia, dados genéticos de múltiplos Entre 7 e 2 MAA, todos os fós-
estudos têm chegado a um tempo seis da nossa linhagem são en-
de coalescência entre 6 e 4 MAA contrados naquele continente, pa-
(milhões de anos atrás), além de recendo sugerir que o início da
sugerirem que populações ances- nossa linhagem realmente ocorreu
trais dessas linhagens trocaram ge- na África. No entanto, o regis-
nes por um período de cerca de 4 tro fóssil na África entre 13 e 7
milhões de anos antes de se sepa- MAA é muito pobre, consistindo
rarem completamente entre 6 e 4 apenas de poucos fragmentos fós-
MAA (Patterson et al., 2006). Es- seis de três gêneros: Nakalipithecus
sas datas, porém, contradizem pos- (Kunimatsu et al., 2016), Samburu-
síveis fósseis da linhagem hominí- pithecus (Ishida e Pickford, 1997), e
nia datados de antes de 6 MAA Chororapithecus (Suwa et al., 2007),
(ver abaixo), e nos levam a ver es- além de alguns fragmentos de den-
sas datas com algumas ressalvas. tes encontrados em Ngorora, Quê-
De fato, estimativas considerando nia (Pickford e Senut, 2005) e Ni-

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ger (Pickford et al., 2008). Esse É difícil imaginar como seria


registro fóssil tem aumentado nos a morfologia do ancestral comum
últimos 20 anos, mas ainda assim dos chimpanzés e humanos. Pode-
não é forte o suficiente para tra-se pensar nesse ancestral como
çar uma conexão entre os hominói- o intermediário dos dois grupos
des fósseis viventes antes e depois
viventes, ou, como usualmente
de 7 MAA. Essa escassez de fósseisocorre, imaginar o ancestral co-
na África é contrastada com uma mum como um organismo similar
abundância de fósseis na Eurásia, a um chimpanzé, uma vez que se
incluindo gêneros como Dryopithe- assume que os humanos se distan-
cus, Ouranopithecus e Ankarapithe-ciaram mais em relação à morfolo-
cus (Begun, 2016). Essa evidên- gia e ao comportamento dos gran-
cia fóssil tem levado alguns auto-des símios. Uma terceira possi-
res a postularem que a nossa linha-
bilidade é utilizar os fósseis que
gem é oriunda da Europa e só de- são seguramente posicionados em
pois migrou para a África (Begun nossa linhagem como base para a
et al., 2012). Fuss et al. (2017),interpretação do ancestral comum.
por exemplo, baseados em carac- White et al. (2015), por exem-
terísticas dentais de Graecopithecus
plo, baseando-se em fósseis homi-
datados de 7,2 MAA e encontra- nínios de 4,4 MAA, argumentaram
dos na Grécia e Bulgária, propõem que o ancestral comum dos ho-
que esse gênero apresenta traços de
minínios e panínios era diferente
anatomia dental de um ancestral de ambos os grupos vivos, pare-
dos hominínios, embora haja pou- cendo mais com macacos do Ve-
cos fragmentos fósseis desse gê- lho Mundo, que se locomovem de
nero. De fato, a questão do local forma quadrúpede sobre os ga-
de origem da nossa linhagem ainda lhos, com frequente postura pro-
está em aberto. Embora haja muito nograda. O uso dos fósseis para
mais fósseis de hominóides na Eu- inferir a característica do ances-
ropa do que na África entre 13 e 7tral comum é válida, porém quanto
MAA, é ainda razoável pensar na mais próximo se chega do ances-
África como o local de origem dos tral comum mais difícil é reconhe-
símios africanos, e que o registrocer se ele pertence à uma linhagem
fóssil africano ainda não tenha sido
específica. De fato, o debate sobre
devidamente explorado. a morfologia desse ancestral ainda
não está resolvida, e outros pesqui-
sadores acreditam que o ancestral
Primeira transição: bipedia e di- comum teve uma locomoção sus-
minuição dos caninos pensória e uma postura ortograda,

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assim como os grandes símios vi- moção, transformando esse espé-


ventes (Begun, 2016). cime no primeiro fóssil com evi-
Nesse ponto, a escavação de fós- dência de bipedia na nossa linha-
seis temporalmente e geografica- gem. Além disso, o fóssil apre-
mente próximos de onde se ima- senta traços dentais que são com-
gina que o ancestral comum vi- patíveis com características típicas
veu é fundamental para a eluci- de nossa linhagem, a dizer, um ca-
dação de sua morfologia. Nos úl- nino relativamente pequeno e den-
timos 20 anos, fósseis que datam tes com esmalte mais espesso que
entre 7 e 5 MAA foram descober- os de chimpanzés e gorilas. Em-
tos na África, dos quais se des- bora alguns pesquisadores ainda
tacam três espécies: Sahelantropus questionem a inclusão desse fóssil
tchadensis encontrada no Chade e na linhagem hominínia (Wolpoff et
datada entre 7 e 6 MAA (Brunet al., 2006), sugerindo que o indiví-
et al., 2002, 2005), Orrorin tuge- duo pudesse ser uma fêmea da li-
nensis encontrada no Quênia e da- nhagem do gorila, as evidências de
tada em 6 MAA (Senut et al., 2001) bipedia são um forte indício de que
e Ardipithecus kadabba encontrada esse espécime é o hominínio mais
na Etiópia e datada entre 5,8 e 5,2 antigo encontrado até o momento.
MAA (Haile-Selassie, 2001, Haile- Os fósseis associados ao O. tu-
Selassie et al., 2004). O S. tcha- genensis consistem de dentes, fa-
densis é representado por um crâ- langes, úmero e fêmur. A caracte-
nio bastante completo, com vo- rística anatômica que mais chama
lume craniano de 365 cm3 , similar a atenção é a porção proximal do
ao volume do crânio de um grande fêmur com características que in-
símio. Esse crânio apresenta um dicam bipedia, tais como o pes-
forame magno, que é a abertura na coço do fêmur longo e achatado, a
base do crânio que liga a medula presença do sulco para o músculo
espinhal com o cérebro, com posi- obturador externo (Pickford et al.,
ção anterior, o que foi confirmado 2002) e o padrão de espessura do
pelo uso de uma reconstrução vir- córtex do pescoço do fêmur (Ga-
tual que corrige distorções tafonô- lik et al., 2004). Outros pesqui-
micas (Zollinkofer et al., 2005). De sadores concluíram que essa mor-
fato, a posição anterior do forame fologia do fêmur proximal é inter-
magno no crânio de mamíferos é mediária entre os fósseis de ho-
um bom preditor de locomoção bí- minoides do Mioceno e os fósseis
pede (Russo e Kirk, 2017), uma vez de australopitecíneos, que são se-
que a posição do crânio é supe- guramente posicionados na linha-
rior ao corpo nesse tipo de loco- gem hominínia (Richmond e Jun-

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gers, 2008; Bleuze, 2012; Almecija Um achado mais recente é a


et al., 2013). Por outro lado, as fa- descoberta da espécie Ardipithe-
langes da mão são longas e curvas, cus ramidus. Esses fósseis tiveram
similares às falanges de grandes sí- um impacto muito significativo no
mios com locomoção suspensória, campo da evolução humana, já que
indicando que essa espécie ainda são caracterizados por dezenas de
mantinha um comportamento ar- indivíduos datados de 4,4 MAA,
bóreo. Já os caninos são de ta- incluindo um indivíduo bastante
manho intermediário, se asseme- completo do sexo feminino, que
lhando ao de fêmeas de chimpan- foi batizado de Ardi (White et al.,
zés, embora os dentes molares têm 2009). Com um material fóssil
esmalte espesso, como a maioria muito mais completo que os fósseis
dos dentes da nossa linhagem. mais antigos, foi possível observar
Os fósseis de Ar. kadabba diversos traços típicos de bipedia,
constituem-se de dentes, fragmen- tais como o forame magno mais an-
tos de clavícula, braço, mão e pé. terior (Suwa et al., 2009a) e a ana-
O que mais chamou atenção nes- tomia da bacia, do joelho e do tor-
ses fósseis foi uma quarta falange nozelo indicando uma postura bí-
proximal do pé bastante larga e ro- pede (Lovejoy et al., 2009a). Por
busta, encontrada em estratos de outro lado, a anatomia desse indi-
5,2 MAA, o que parece indicar o víduo não era a mesma da anato-
uso do pé para uma locomoção bí- mia bípede dos humanos moder-
pede (Haile-Selassie, 2001). Po- nos, pois eles apresentavam uma
rém, essa é uma evidência muito bacia com ísquio semelhante aos
frágil para comprovar com segu- de grandes símios, ou seja, anco-
rança a bipedia dessa espécie. As- rando uma musculatura posterior
sim como O. tugenensis, os den- da coxa forte e apropriada para tre-
tes caninos são intermediários en- par em árvores. Além disso, os bra-
tre humanos e chimpanzés, com ços são tão compridos quanto as
canino e primeiro pré-molar in- pernas, que é diferente de huma-
ferior fazendo parte de um com- nos modernos que possuem pernas
plexo afiador, que faz com que o relativamente mais longas. O de-
desgaste do canino seja lateral e dão do pé era opositor como em
não na ponta do dente como ocorre grandes símios e a capacidade cra-
em humanos (Haile-Selassie et al., niana ainda era pequena, seme-
2004). Por outro lado, os dentes lhante à de um chimpanzé. A ana-
molares têm esmalte espesso, que tomia da mão também era inter-
é um traço típico da linhagem ho- mediária entre humanos e chim-
minínia. panzés, apresentando metacarpos

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e falanges relativamente curtos e Menalla no Chade, onde foi en-


dedão da mão proporcionalmente contrado o S. tchadenseis, parece
mais longo, diferente dos chim- ter sido constituída por um mo-
panzés, porém com falanges da saico de áreas abertas, com pas-
mão curvas, se aproximando da tagens secas e úmidas, e por ha-
anatomia de um primata arbóreo bitats arborizados com presença
(Lovejoy et al., 2009b). Esse mo- de corpos de água (Le Fur et al.,
saico de características mostra que 2014). Já o O. tugenensis foi encon-
a anatomia bípede surgiu de forma trado na formação Lukeino, Quê-
gradual, e que indivíduos da es- nia, onde as reconstituições paleo-
pécie Ar. ramidus ainda apresen- ambientais indicaram também um
tavam uma locomoção que con- mosaico de áreas abertas e flores-
ciliava hábitos arbóreos e terres- tadas, próximas a fontes de água
tres. Quanto aos dentes, os mo- (Pickford e Senut, 2001; Bamford
lares apresentavam esmalte fino, et al. 2013; Roche et al., 2013). Re-
tal como em gorilas e chimpanzés, centemente, utilizando-se de mar-
mas, diferentes destes últimos, os cadores geoquímicos do solo, De-
caninos eram menores, sem dimor- ricquebourg et al. (2015) concluí-
fismo sexual, ou seja, machos e fê- ram que a região continha uma
meas tinham caninos de igual ta- densa área florestada ao redor de
manho, e com o complexo afiador um lago, enfatizando que o local
bem pouco desenvolvido (Suwa et era bastante úmido naquele pe-
al., 2009b). ríodo. Já os fósseis de Ar. rami-
Uma vez revisado a evidência dus foram encontrados em Aramis,
fóssil dos primeiros milhões de Etiópia, cuja reconstrução paleo-
anos de nossa linhagem, é cru- ambiental indicou um ambiente de
cial entender em que ambiente eles bosques e florestas (WoldeGabriel
viviam. A bipedia é entendida et al., 2009). Por outro lado, re-
aqui como uma forma de loco- construções ambientais utilizando-
moção que está associada a um se de marcadores moleculares do
conjunto de traços anatômicos que solo têm mostrado que a propor-
exercem uma função em determi- ção de árvores da África tem di-
nado ambiente (Lovejoy, 2005a,b, minuído desde 6 MAA (Cerling et
2007). A reconstituição do pale- al., 2011) e, especificamente, que
oambiente utiliza-se de múltiplas o Ar. ramidus viveu na verdade
evidências que incluem desde ma- em um ambiente de mosaico de
crorestos botânicos e faunísticos áreas abertas e fechadas próximo
até marcadores químicos e molecu- a fontes de água com mata ciliar
lares do solo. A região de Toros- (Gani e Gani, 2011). Em síntese,

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houve um melhoramento signifi- sugere uma melhor eficiência na


cativo das reconstruções ambien- bipedia, uma vez que ele indica
tais na África nas últimas décadas, a presença de arcos longitudinal
mostrando uma tendência ao res- e transversal no pé de australopi-
secamento a partir de 6 MAA. Por tecíneos (Ward et al., 2011). Re-
outro lado, ainda existe um debate construções de bacias de Australo-
sobre qual era o microambiente em pithecus africanus utilizando-se de
que viveram esses primeiros homi- tomografia computadorizada, con-
nínios, se mais aberto ou mais som- firmaram que os ossos do pélvis
breado. É bem possível que eles te- apresentavam uma morfologia ti-
nham circundado em áreas de mo- picamente bípede. Por outro lado,
saico de ambientes abertos e flores- essa anatomia também mostrou
tados próximos a corpos de água. um osso do íleo bastante largo, su-
O próximo grande grupo de fós- gerindo assim uma variação na me-
sseis são os australopitecíneos, que cânica de caminhada dessa espé-
incluem uma diversidade de for- cie em relação aos humanos mo-
mas pertencentes a três gêneros, dernos, que apresentam bacia mais
a dizer: Paranthropus, Australopi- estreita (Berges e Goularas, 2010;
tethecus e Kenyanthropus, e que vi- Claxton et al., 2016). A anato-
veram entre 4,2 MAA e 1,2 MAA. mia pós-craniana dos australopi-
No que diz respeito à bipedia, esse tecíneos também sugere algumas
período é marcado pela consoli- diferenças na mecânica de cami-
dação da anatomia bípede, muito nhada em relação aos humanos
próxima daquela que encontramos modernos. Os Australopithecus afa-
em humanos modernos. Uma mu- rensis, por exemplo, apresentavam
dança significativa que ocorreu nos tórax em formato de funil, os bra-
fósseis desse período foi relacio- ços relativamente mais longos em
nada à anatomia do pé, e pode relação às pernas e falanges da mão
ser confirmada pela preservação de curvas, indicando que eles ainda
pegadas na região de Laetoli, Tan- conciliavam uma locomoção arbó-
zânia, há 3,6 MAA. Essas pega- rea e terrestre (Kimbel e Delezene,
das mostram que o dedão do pé 2009). Mostrando a diversidade
dos australopitecíneos era paralelo de formas dos australopitecíneos,
ao restante dos dedos, funcionando DeSilva et al. (2013) estudaram a
então como uma alavanca para anatomia dos membros inferiores
um caminhar bípede mais eficiente do Australopithecus sediba, encon-
(Schmid, 2004). A anatomia de um trados no sul da África por volta
quarto metatarso do pé encontrado de 2 MAA, e concluíram que a pi-
em camadas de 3,2 MAA também sada deles era hiperpronada, com

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os pés sendo apoiados de fora para massa corpórea (Dingwall et al.,


dentro ao mesmo tempo que gira- 2013). Há também diversas evi-
vam a perna no momento da pas- dências anatômicas que indicam
sada. Essa mobilidade extra do tor- que o H. erectus foi selecionado
nozelo poderia ser uma forma de também para realizar corridas de
conciliar locomoção arbórea e ter- longa duração, tais como o tórax
restre, e que era diferente daquela em formato de barril e a morfolo-
adotada por outros australopitecí- gia do osso calcâneo do pé (Bram-
neos. No que concerne à denti- ble e Lieberman, 2004). Mudança
ção, os caninos de australopitecí- na anatomia dos ombros, tais como
neos eram marcados pelo tamanho posicionamento lateral da escápula
reduzido e pelo baixo dimorfismo e ombros mais largos, indica que os
sexual, traços estes que são manti- H. erectus já apresentavam condi-
dos por toda a linhagem hominínia ções de realizar arremessos de ob-
até os humanos modernos. O signi- jetos, o que pode ter favorecido ati-
ficado dessa característica será ex- vidades relacionadas à sobrevivên-
plorado mais à frente nesta seção. cia em ambientes abertos (Roach
A última etapa na transição para et al., 2013). De fato, acredita-se
uma morfologia bípede moderna que a locomoção bípede exclusiva
aconteceu com o surgimento da só ocorreu quando os hominínios
espécie Homo erectus há cerca de passaram a ocupar de maneira sig-
1,9 MAA na África. No que con- nificativa ambientes abertos de sa-
cerne ao esqueleto pós-craniano, vana.
essa espécie é marcada por apre- Após essa breve revisão sobre
sentar massa corpórea maior que a evidência fóssil e ambiental dos
os australopitecíneos, girando en- primeiros hominínios, é crucial en-
tre 48 a 63 kg e com altura mé- tender quais são as hipóteses evo-
dia de 1,7 m, além de ter pernas lutivas relacionadas à aquisição da
relativamente mais compridas que bipedia e à diminuição dos cani-
os braços, caixa torácica cilíndrica nos. No que concerne à bipedia, os
e falanges de mão retas, apresen- dados empíricos levantados aqui
tando uma anatomia correspon- nos levam a uma série de impli-
dente a uma locomoção exclusiva- cações. Primeiro, a transição de
mente terrestre. Pegadas preserva- uma locomoção arbórea para uma
das em Illeret, Quênia, e datadas locomoção exclusivamente terres-
em 1,5 MAA, confirmaram o an- tre foi gradual, iniciando-se no co-
dar bípede moderno dessa espécie, meço de nossa linhagem há 7 MAA
tanto no que diz respeito às passa- e completada somente com o sur-
das longas como também à maior gimento do H. erectus há cerca de

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DA LINHAGEM HOMINÍNIA

2 MAA. Segundo, houve um pro- 1996). Essas observações levaram


cesso gradual de diminuição de co- os pesquisadores a formularem a
bertura florestal na África a par- hipótese do forrageio arbóreo, que
tir de 6 MAA, com uma dimi- explica o início da bipedia como
nuição ainda maior depois de 2,5 uma adaptação postural, e não lo-
MAA, cuja significância provavel- comotora. Outros pesquisadores,
mente influiu no processo de aqui- ao observarem orangotangos em
sição da bipedia. Terceiro, as ambiente natural, constataram que
razões evolutivas últimas para a em certas ocasiões eles se locomo-
aquisição da bipedia podem ter va- vem de forma bípede sobre galhos
riado ao longo desses primeiros grossos de árvore, usando algumas
milhões de anos de nossa linha- vezes uma mão para segurar ga-
gem, permitindo que múltiplas for- lhos a fim de não perder o equilí-
ças seletivas tenham atuado nesse brio (Thorpe et al., 2007). Nesse
processo. De fato, ainda não te- caso, a bipedia seria uma forma
mos evidências empíricas definiti- de locomoção no alto das árvores.
vas para explicar evolutivamente Em ambos os casos, a origem da
o surgimento da bipedia, embora bipedia estaria relacionada a uma
haja muitas hipóteses candidatas. vida arbórea, inclusive podendo
Nos parágrafos abaixo irei discutir ter sido uma adaptação compor-
quatro conjuntos de hipóteses evo- tamental do ancestral comum dos
lutivas para explicar a bipedia. grandes símios e dos humanos, e
O primeiro conjunto de hipóte- que de alguma forma aumentou de
ses evolutivas para explicar a bi- importância em condições ecológi-
pedia se refere a uma transição cas específicas na linhagem homi-
postural e locomotora que ocorreu nínia. Um dos dados empíricos que
ainda em meio arbóreo. Esse con- sustentam essa hipótese é o uso de
junto de hipóteses está ligado à uma técnica de extração de isóto-
observação do comportamento dos pos estáveis de carbono do esmalte
grandes símios em ambiente natu- dentário de fósseis, detectando se
ral. Observações de chimpanzés o indivíduo se alimentou de fon-
em campo constataram que eles fi- tes de carbono de lugares sombre-
cam em posição ereta sobre galhos ados (plantas C3 típicas de matas e
mais grossos, e utilizam uma das bosques) ou de áreas abertas (plan-
mãos para coletar frutas (Stanford, tas C4 típicas de ambientes abertos
2006), sendo que em alguns locais de savana). Esses dados mostraram
foi observada também a coleta de que a base alimentar do Ar. rami-
frutos em arbustos baixos com os dus há 4,4 MAA ainda era muito
dois pés apoiados no chão (Hunt, dependente de ambientes sombre-

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ados, assim como ocorre em chim- formação de núcleos familiares nos


panzés (White et al., 2009). primeiros hominínios, que só co-
O segundo conjunto de hipóte- meçaram a alterar a sua história
ses para explicar bipedia está rela- de vida mais tardiamente com o
cionado à liberação das mãos para surgimento do gênero Homo (Da-
a realização de múltiplas tarefas. Gloria, 2014). Outra possibilidade
Carvalho et al. (2012) testaram é a liberação das mãos para car-
essa hipótese, e confirmaram que regar bebês, pois após a perda de
na presença de recursos raros e pelos nos hominínios, as crianças
de ocorrência imprevisível, chim- não poderiam ficar mais pendura-
panzés tendem a usar a locomo- das na mãe, como ocorre em chim-
ção bípede para transportar itens panzés (Amaral, 1996, 2013). A
alimentares ou ferramentas de pe- crítica a esse modelo é de que a
dra para locais protegidos. Den- perda de pelos parece ter ocor-
tro dessa mesma linha, Lovejoy rido somente há 2 MAA, quando
(1981, 2009) defende que a bipe- os hominínios começaram a viver
dia surgiu devido à interação de fa- de forma definitiva nas savanas
tores anatômicos, sociais e repro- de baixa altitude (Dávid-Barrett e
dutivos ligados à diminuição da Dunbar, 2016). Evidências gené-
agressividade entre machos (infe- ticas para a perda de pelos não
ridos a partir de caninos peque- são definitivas para esclarecer essa
nos e com baixo dimorfismo se- questão, pois fornecem datas para
xual; ver discussão mais abaixo), a fixação de genes da pele escura
ou seja, em um modelo social de em 1,2 MAA na nossa linhagem
formação de núcleos familiares es- (Rogers et al., 2004) e datas de
táveis. As mãos, então liberadas 4 a 3 MAA utilizando-se de estu-
pela bipedia, serviriam para car- dos de piolhos da região pubiana
regar comida em um contexto so- e da cabeça em humanos (Reed et
cial de formação de casais de longa al., 2007). Por fim, a liberação
duração, com aumento de cuidado das mãos para fazer instrumentos
parental e ovulação silenciosa das é também uma possibilidade lógica
fêmeas, fazendo com que os in- para explicar a bipedia. Porém,
divíduos trouxessem o alimento a evidência de ferramentas de pe-
para o seu núcleo familiar. A crí- dra no registro fóssil só ocorre a
tica a esse modelo é baseada na partir de 3,3 MAA (ver discussão
falta de evidências fósseis de mu- na próxima seção). Em síntese, as
danças do padrão de história de hipóteses que postulam que a bi-
vida (e.g., prolongamento do cres- pedia surgiu para a liberação das
cimento e desenvolvimento) e de mãos não apresentam ainda evi-

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dências sólidas para explicar o iní- cia da termodinâmica para a bipe-


cio dessa transição. Por outro lado, dia possa ter começado a atuar al-
em momentos mais tardios, o uso guns milhões de anos antes, uma
das mãos pode ter sido uma força vez que evidências de isótopos es-
evolutiva importante para o surgi- táveis de carbono de dentes de aus-
mento da bipedia exclusiva, assim tralopitecíneos, tais como os de Au.
como a encontramos em humanos Afarensis que apareceram há cerca
modernos. de 3,9 MAA, sugerem que eles se
O terceiro conjunto de hipóte- alimentavam de cerca de 50% de
ses está intimamente ligado à vida itens oriundos de locais abertos, ou
em ambientes abertos de savana, e seja, com sinal isotópico de plantas
é chamado de hipóteses termodi- C4 (Wynn et al., 2013; Sponheimer
nâmicas. Em ambientes abertos, et al., 2013). Essa transição para lo-
a bipedia diminui a exposição do cais abertos ocorrida a partir de 4
corpo ao sol e aumenta a exposi- MAA pode ter gerado uma pressão
ção ao vento, evitando superaque- seletiva em direção à bipedia mo-
cimento do corpo. Associada à bi- derna devido a fatores termodinâ-
pedia, a perda de pelos teria sur- micos. Por outro lado, essas mu-
gido nesse contexto junto com as danças parecem não poder ser usa-
glândulas sudoríparas, que ao pro- das para explicar os primeiros pas-
duzirem o suor, ajudariam na li- sos da transição para a bipedia há
beração de calor do corpo (Whee- 7 MAA.
ler, 1984, 1991, 1993). Ruxton e Por fim, o último conjunto de
Wilkinson (2011) mostram que a hipóteses para explicar a bipedia
corrida de longa duração só é pos- refere-se à questão energética. De-
sível em ambientes abertos, desde vido à anatomia e à mecânica da
que os hominínios sejam dotados locomoção, o caminhar bípede em
de locomoção exclusivamente bí- humanos economiza 75% de ener-
pede, ausência de pelos e presença gia em relação ao andar bípede ou
de glândulas sudoríparas. Esse pa- quadrúpede do chimpanzé. Por
cote de mudanças parece ter sido esse prisma, a bipedia teria sido
um fator seletivo importante na selecionada para economizar ener-
ocupação exclusiva de ambientes gia em indivíduos que realizassem
abertos de baixa altitude há 2 MAA longas caminhadas no solo (Sockol
(David-Barret e Dunbar, 2016), e et al., 2007; Pontzer et al., 2009,
está associado a mudanças anatô- 2014; O’Neil et al., 2015). Os auto-
micas que levaram ao surgimento res que defendem a hipótese ener-
da bipedia moderna em H. erec- gética acreditam que espécies com
tus. É possível que a importân- anatomia parcialmente bípede de-

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vem ter apresentado alguma eco- entes em conflitos intraespecíficos.


nomia de energia na locomoção em Por essa hipótese, a diminuição do
ambientes terrestres. O grande de- dimorfismo sexual e do tamanho
safio desse modelo é conseguir es- absolutos dos caninos está ligada
timar a magnitude da economia à diminuição da agressividade dos
de energia dessas espécies extintas, machos em nossa linhagem. Uma
tais como os Ar. ramidus, em situa- segunda hipótese para explicar a
ções de caminhadas de longas dis- diminuição do canino é relacio-
tâncias. nada à alimentação. Primeiro, al-
Junto com a bipedia, a outra ca- guns autores defendem que o ca-
racterística definidora dessa pri- nino desempenha uma função im-
meira transição na linhagem ho- portante na obtenção de alimentos,
minínia é a diminuição dos cani- e isso seria prejudicado pelo tama-
nos. A evidência fóssil indica que nho excessivo dos caninos (Green-
os caninos diminuíram desde o co- field, 1998). Segundo, o tamanho
meço da nossa linhagem, como ob- do canino demanda uma alta ca-
servado no espécime de S. tcha- pacidade de abertura da boca para
densis há 7 MAA. Porém, a infe- que o indivíduo possa usá-lo efeti-
rência de dimorfismo sexual dos vamente. A abertura da boca tam-
caninos só é possível com a pre- bém está ligada ao posicionamento
sença de muitos indivíduos de am- dos músculos da mastigação, pois
bos os sexos, e esse baixo dimor- quando eles estão mais anteriores
fismo só é confirmado a partir de na mandíbula, há maior força na
Ar. ramidus há 4,4 MAA. Há duas mastigação, ao mesmo tempo que
hipóteses principais para explicar há menor abertura da boca (Hay-
a diminuição dos caninos e seu lander, 2013). Seguindo esse racio-
baixo dimorfismo sexual. A pri- cínio, a seleção natural poderia fa-
meira delas é a correlação em pri- vorecer caninos menores em espé-
matas de dimorfismo sexual tanto cies que não conseguiriam ter uma
dos caninos como da massa corpó- grande abertura da boca, pois pre-
rea com grau de agressividade en- cisariam de maior força muscular
tre machos (Plavcan, 2012). Notem para a mastigação de alimentos du-
que os primatas raramente usam ros ou fibrosos.
seus caninos para caçar, usando- A evidência fóssil de Ar. ramidus
os na realidade para disputas en- é caracterizada pelo baixo dimor-
tre machos para o acesso às fê- fismo sexual tanto da massa cor-
meas ou para proteção de territó- pórea como dos caninos, fortale-
rios. Da mesma forma, machos cendo a hipótese de diminuição de
maiores tendem a ser mais efici- agressividade entre machos, e de

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maneira indireta podendo indicar Segunda transição: ferramentas,


uma diferença de organização so- expansão do cérebro e diminuição
cial dos primeiros hominínios em dental
relação aos símios africanos. Por
outro lado, fósseis de australopite- A segunda grande transição na
cíneos são caracterizados por cani- nossa linhagem é o aparecimento
nos pequenos e com baixo dimor- do gênero Homo. Essa classificação
fismo sexual, assim como os Ar. ra- taxonômica é um tanto quanto ar-
midus, porém eles apresentam alto bitrária, sendo historicamente re-
dimorfismo sexual de massa cor- lacionada à maneira que se define
pórea (Plavcan et al., 2005). Os nossos traços distintos como gê-
dados de massa corpórea e cani- nero. Um primeiro critério usado
nos apontam para direções dife- para a inclusão de uma espécie no
rentes em relação à agressividade gênero Homo é o tamanho do cé-
dos machos nesse grupo. Con- rebro. Arthur Keith estabeleceu o
tudo, há uma clara mudança de valor mínimo de 750 cm3 para o
dieta em australopitecíneos, com tamanho da caixa craniana de um
presença de esmalte dentário es- indivíduo do nosso gênero (Keith,
pesso e consumo de alimentos de 1948). Já Louis Leakey, ao no-
regiões abertas, o que representa mear um crânio de menos de 750
uma tendência para uma alimenta- cm3 como Homo habilis, substituiu
ção mais dura e fibrosa, ao contrá- o cérebro pelo uso de instrumentos
rio do que é observado em chim- como traço definidor de nosso gê-
panzés. Esses dados reforçam a nero (Leakey et al., 1964). Por fim,
hipótese de que a dieta pode ter uma terceira abordagem é a defi-
sido um fator importante na ma- nição de nosso gênero através da
nutenção de caninos pequenos en- morfologia dentária, que é carac-
tre australopitecíneos, mesmo que terizada, entre outros traços, por
a agressividade entre machos te- uma tendência à redução dental.
nha aumentado nesse período. Em Nessa linha de raciocínio, o fós-
síntese, as duas hipóteses levanta- sil mais antigo do gênero Homo é
das para explicar diminuição dos uma mandíbula fragmentada com
caninos em hominínios podem ter dentes encontrada na Etiópia e da-
agido em momentos diferentes da tada em 2,8 MAA (Villmoare et al.,
nossa linhagem, sendo que ambas 2015). Nessa seção, discutiremos
as forças ocasionaram diminuição o aparecimento desses três traços
dos caninos e de seu dimorfismo na nossa linhagem: ferramentas,
sexual desde o começo de nossa li- expansão do cérebro e diminuição
nhagem. dental.
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O uso de instrumentos não é lógico antigo.


de maneira alguma exclusividade A primeira indústria de pedra
de humanos. Os grandes símios encontrada no contexto da evolu-
utilizam-se de diversos tipos de ção humana foi denominada Lo-
instrumentos, sendo que os chim- mekianense, encontrada a oeste do
panzés são aqueles que apresen- lago Turkana no Quênia e datada
tam os instrumentos mais elabo- em 3,3 MAA. Ela é composta por
rados (Boesch et al., 2009). Em lascas relativamente grandes reti-
um levantamento do uso de ins- radas de seixos e blocos de pe-
trumentos em condições naturais dra (Harmand et al., 2015). Es-
e com o auxílio de estimativas ses primeiros instrumentos de pe-
genéticas de demografia, Haslam dra são bastante relevantes para
(2014) concluiu que o nosso an- a nossa discussão por dois moti-
cestral comum com os chimpan- vos. Primeiro, eles ocorrem mui-
zés usou galhos e folhas como tos milhões de anos depois do sur-
instrumentos, mas provavelmente gimento dos primeiros bípedes na
não fabricou instrumentos de pe- nossa linhagem. Segundo, eles
dra. Instrumentos de pedra usa- ocorrem antes da expansão do cé-
dos para quebrar coquinhos, por rebro e diminuição dental, que
exemplo, são restritos a um grupo ocorre mais de 1 milhão de anos
específico de chimpanzés do oeste depois. Esses achados, no entanto,
da África, e parecem ter surgido não implicam que o uso de instru-
recentemente de forma indepen- mentos não seja mais antigo que
dente dos instrumentos fabricados essa data, já que se pode ima-
pelos hominínios. Outros prima- ginar o uso de mãos livres para
tas, como os macacos pregos bra- fabricar instrumentos menos visí-
sileiros, lascam pedras (Proffitt et veis arqueologicamente. Por ou-
al., 2016), porém esses instrumen- tro lado, é seguro afirmar que o
tos ainda não foram encontrados gênero Homo não foi o primeiro
em depósitos mais antigos que 700 a usar instrumentos de pedra, e
anos antes do presente (Haslam et que australopitecíneos, com tama-
al., 2016). O que distingue nossa li- nho do cérebro e histórias de vida
nhagem de outros primatas é o uso similares aos chimpanzés, foram
consistente de rochas para a pro- os primeiros a fabricar indústrias
dução de instrumentos, que apre- de pedra reconhecíveis arqueolo-
sentam um padrão de modificação gicamente. A função desses pri-
caracterizado pelos pesquisadores meiros instrumentos ainda não foi
como uma indústria de pedra e são devidamente investigada, porém é
identificáveis em contexto arqueo- possível que ela tenha sido usada

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para múltiplos propósitos. Evi- Sua principal característica é a pre-


dência de marca de corte em um sença de um instrumento chamado
osso de fauna em Dikika, Etió- machado de mão. Esse instru-
pia, datado de 3,4 MAA, sugere mento tem o formato de gota e era
que os fabricantes dos instrumen- lascado de ambos os lados. A in-
tos poderiam ter usando as lascas dústria lítica seguinte é chamada
para cortar animais (McPherron et de Mousteriense e surgiu por volta
al., 2010). Contudo, como vere- de 300 mil anos. Seu grande di-
mos a seguir, o consumo signifi- ferencial foi o uso da técnica le-
cante de carne só apresenta evi- vallois. Ela consiste na prepara-
dências sólidas mais de um milhão ção de um núcleo através da reti-
de anos depois. Pode-se postular rada de lascas, normalmente resul-
que esses primeiros instrumentos tando em um núcleo com uma face
tiveram alguma importância para a plana e outra convexa. Essa téc-
vida dos australopitecíneos em am- nica permite maior quantidade e
bientes de mosaico de áreas abertas variedade de formas, que se ajus-
e sombreadas, e consequentemente tam de forma mais flexível à tarefa
para o início do consumo de ali- a ser executada (Schlanger, 1996).
mentos em áreas de savana aberta. Por fim, a indústria do paleolítico
Após esses primeiros achados, superior, surgida por volta de 60
a próxima indústria produzida na mil anos na África e 40 mil anos
nossa linhagem é a indústria Oldu- na Europa e Ásia, é caracterizada
vaiense, com sua primeira ocorrên- pela enorme flexibilização dos ti-
cia em Gona, Etiópia, há 2,6 MAA pos de instrumentos produzidos,
(Semaw et al., 1997). A indús- de acordo com tradições culturais
tria Olduvaiense é composta prin- próprias no tempo e no espaço. Há
cipalmente por talhadores (chop- abundância de instrumentos com-
pers) e lascas simples retiradas de postos, combinando ossos, con-
blocos de pedra ou seixos rolados, chas, marfim e rochas, tais como
com pouco retoque. A matéria projéteis, arpões, anzóis e agulhas.
prima desses instrumentos inclui A presença de lâminas e micro-
rochas vulcânicas, quartzo, quarti- líticos passou a ser mais comum,
zito, calcário e sílex (Toth e Schick, aumentando a parte cortante em
2009). A indústria lítica seguinte relação à quantidade de matéria
é conhecida como Acheulense, e prima utilizada. Além disso, mui-
apareceu pela primeira vez no leste tos dos instrumentos produzidos
da África há cerca de 1,75 milhão combinavam a funcionalidade com
de anos (Lepre et al., 2011; Beyene marcas simbólicas, tais como gra-
et al., 2013; Yravedra et al., 2017). vuras, desenhos e pinturas.

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Shea (2017) propõe que antes O primeiro tipo é mais grácil com
de 1,7 MAA os hominínios, assim caixa craniana ao redor de 550
como outros primatas, eram usuá- cm3 , dentes pequenos e faces re-
rios ocasionais de ferramentas. En- lativamente gráceis em relação a
tre 1,7 e 0,3 MAA passamos a ser formas robustas de australopitecí-
usuários habituais de indústria lí- neos, sendo representado pelo crâ-
tica, e depois de 0,3 MAA pas- nio KNM-ER 1813. Já o outro
samos a ser usuários obrigatórios tipo é representado pelo crânio
de instrumentos. Nesse sentido, KNM-ER 1470 (Leakey, 1973), e
é impossível pensar humanos mo- apresenta tamanho craniano maior
dernos sem a presença de instru- (750 cm3 ), mas com face e den-
mentos. Todavia, esse alto grau tes mais robustos. Alguns classi-
de dependência dos instrumentos ficam esse tipo como Homo rudol-
em humanos modernos foi adqui- fensis ou Kenyanthropus rudolfen-
rido por um processo gradual, que sis. O aumento absoluto do cére-
ocorreu a partir das primeiras fer- bro é visto de forma definitiva com
ramentas de pedras há 3,3 MAA o surgimento do Homo erectus no
e continuou se modificando até o leste da África há 1,9 MAA (KNM-
presente, refletindo as mudanças ER 3733), apresentando caixa cra-
na capacidade cognitiva dos mem- niana de cerca de 850 cm3 (Lepre
bros da nossa linhagem. e Kant, 2015). De forma geral,
Outro aspecto crucial para essa os H. erectus tem crânios baixos e
segunda transição na nossa linha- longos, constrição pós-orbital, tó-
gem, e que está diretamente atre- rus supra-orbital, tórus nucal e for-
lado à definição do gênero Homo, é mato pentagonal do crânio visto da
a expansão do cérebro. O Homo ha- parte posterior. Essa espécie tem
bilis é a primeira espécie da nossa caixa craniana com média de 950
linhagem a apresentar evidência cm3 , apresentando molares rela-
de expansão cerebral. A evidên- tivamente pequenos em compara-
cia mais antiga dessa espécie vem ção com australopitecíneos (Right-
de fragmentos de maxila e dentes mire, 2004). É importante desta-
achados em estratos de 2,4 MAA car que há variabilidade nas me-
em Hadar, Etiópia (Kimbel et al., didas de capacidade craniana em
1996). Para muitos pesquisado- H. erectus, como pode ser visto
res a evidência fóssil dessa espé- no crânio de Illeret, Quênia, com
cie é consistente com duas espé- 690 cm3 e no crânio OH-9, Tan-
cies ou grupos morfológicos dis- zânia, com 1067 cm3 , ambos da-
tintos (Leakey et al., 2012; Anton tados de 1,5 MAA. Essa variação
et al., 2014; Spoor et al., 2015). sugere para alguns autores um di-

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morfismo sexual acentuado (Spoor Esse é o caso do Homo naledi, en-


et al., 2007), porém isso também contrado na África do Sul e datado
pode ser devido a variações regio- em cerca de 300 mil anos, apre-
nais da espécie. O Quociente de sentando volume craniano de 600
Encefalização (QE), que é uma ra- cm3 (Berger et al., 2015; Dirks et
zão entre massa do cérebro e massa al., 2017). Outro caso notável é
corpórea, não cresceu tanto em o do Homo floresienses, encontrado
Homo erectus, já que o aumento da na Ilha das Flores, Indonésia, da-
caixa craniana aconteceu concomi- tado entre 100 e 60 mil anos, e com
tante ao aumento da massa corpó- um volume craniano de 400 cm3
rea. O aumento significativo do QE (Brown et al., 2004; Sutikna et al.,
foi observado mais tardiamente na 2016). Uma das explicações para
morfologia do Homo heidelbergen- esse último achado é a diminui-
sis, que apareceu pela primeira vez ção do cérebro devido ao nanismo
em torno 600 mil anos na Europa, insular, que é uma forte pressão
representado pela mandíbula de seletiva para diminuição do tama-
Mauer, Alemanha (Wagner et al., nho de mamíferos devido à escas-
2010), e na África, representado sez de recursos e baixa competi-
pelo crânio de Bodo, Etiópia (Clark ção interespecífica em ilhas (Ai-
et al., 1994). A capacidade crani- ello, 2010). Essas exceções à ten-
ana expandiu para valores médios dência de expansão do cérebro na
de cerca de 1200 cm3 nessa espé- linhagem Homo mostram que há
cie. O Homo heidelbergensis pro- maior flexibilidade adaptativa na
vavelmente deu origem aos nean- nossa linhagem do que imagináva-
dertais na Europa e aos sapiens na mos antes. Além disso, a evolução
África, que apresentaram uma ex- da nossa linhagem não é uma tra-
pansão ainda maior da caixa crani- jetória linear, sendo caracterizada
ana para cerca de 1400 cm3 (Right- por diversidade de espécies e por
mire, 2004). Do surgimento do diversos episódios de extinção.
Homo habilis há 2,4 MAA até o sur- As razões evolutivas para a ex-
gimento do Homo sapiens há 200 pansão do cérebro na nossa linha-
mil anos, houve uma expansão da gem podem ser explicadas por três
caixa craniana de cerca de 400 cm3 grupos de hipóteses, que não são
para 1400 cm3 . Embora estejamos necessariamente excludentes. A
tratando aqui da expansão do vo- primeira explicação é relacionada a
lume craniano na nossa linhagem, uma mudança na qualidade do ali-
o gênero Homo também apresenta mento, e, portanto, na base energé-
exemplos de espécies com manu- tica alimentar no gênero Homo. O
tenção de um cérebro pequeno. cérebro é um órgão extremamente

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dispendioso em termos energéti- al., 2012), enquanto uma evidência


cos, consumindo de 20 a 25% de mais generalizada do uso do fogo
toda a energia em repouso do nosso só é documentada na Europa por
corpo. Sustentar energicamente volta de 400 mil anos atrás (Ro-
esse órgão demanda um balanço ebroeks e Villa, 2011). Em sín-
energético diferente do visto em tese, uma reestruturação energé-
outros primatas. Aiello e Whee- tica ocorreu no gênero Homo para
ler (1995) propuseram a hipótese lidar com o enorme aumento de
do tecido caro, sugerindo que o au- energia gerado pela expansão do
mento do tamanho do cérebro pre- cérebro, demandando uma dieta
cisou ser acompanhado pela dimi- energeticamente mais rica. Discu-
nuição do gasto energético em ou- tiremos aqui evidências empíricas
tros sistemas do corpo, no nosso que dão sustentação para uma mu-
caso o sistema digestório. É im- dança de qualidade de dieta asso-
portante destacar que essa explica- ciada com a expansão do cérebro
ção não é consenso entre os pesqui- A incorporação de uma quanti-
sadores, já que alguns deles mos- dade maior de tecido animal na di-
traram ausência de correlação en- eta humana é no momento a ex-
tre tamanho do cérebro e do in- plicação mais aceita para a me-
testino em mamíferos (Navarrete lhora da qualidade nutricional da
et al. 2011). De fato, o ta- nossa dieta por volta de 2 MAA.
manho do trato intestinal em hu- A análise de uma assembleia lítica
manos é significativamente menor de 63 artefatos escavados em Kan-
que em outros primatas, o que é jera South, Quênia, e datada em 2
coerente com uma dieta energica- MAA mostrou que 23 deles tive-
mente mais rica. Uma outra possi- ram marcas microscópicas de uso.
bilidade é que na verdade os Homo Em 70% desses instrumentos há
lidaram com esse aumento ener- marcas de uso para processamento
gético diminuindo a massa mus- de plantas, tais como órgãos de re-
cular e aumentando o tecido adi- serva de subsolo, madeiras e gra-
poso (Leonard et al., 2003). O míneas, ao passo que 30% delas
uso do fogo também seria um ele- apresentam marcas de uso em te-
mento importante para a melhora cido animal (Lemorini et al., 2014).
na qualidade nutricional da dieta Concentrações de ossos quebrados
(Wrangham, 2009). No entanto, com marcas de corte a partir de
a evidência mais segura de uso 2 MAA indicam clara participação
de fogo para hominínios é na ca- humana na acumulação e proces-
verna de Wonderwerck, África do samento desse material. Por outro
Sul, datada de 1 MAA (Berna et lado, é difícil imaginar que os pri-

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meiros Homo, sem uma tecnologia no acesso ao tecido animal, talvez


elaborada nem uma estrutura bio- através de uma carniçagem mais
lógica apropriada para a caça, pu- ativa, afugentando os animais logo
dessem obter carne em um ambi- depois que eles matavam suas pre-
ente repleto de animais preparados sas, mas antes que eles a consu-
para lidar com a predação. Ship- missem. Em uma assembleia fós-
man (1986) foi a primeira pesqui- sil de 1,84 MAA na Tanzânia (FLK
sadora a mostrar evidências de que Zinj) foi possível detectar sinais de
os primeiros Homo não eram caça- consumo primário de animais pe-
dores, mas sim carniceiros, ao mos- los humanos (Dominguez-Rodrigo
trar que havia marcas de dentes et al., 2014). De qualquer maneira,
de animais embaixo das marcas de seja pela carniçagem ou pela caça,
corte de instrumentos de pedra, ou as evidências arqueológicas se acu-
seja, os animais tiveram acesso pri- mulam no sentido de que a carne
mário às carcaças. Análises mais foi primordial para a expansão do
recentes têm mostrado que tanto cérebro dos primeiros Homo por
os animais como os humanos aces- volta de 2 MAA. Do ponto de vista
saram as mesmas carcaças, suge- nutricional, Cordain et al. (2001)
rindo um modelo de que os pri- ressaltaram a importância do con-
meiros a acessarem a carcaça fo- sumo de ácidos graxos, tais como
ram os felinos, depois os humanos o ácido docosahexaenóico (DHA) e
e por fim outros carniceiros, tais o ácido araquidônico (AA), para o
como as hienas (Pante et al., 2012). crescimento do cérebro, mostrando
Mais uma vez o conjunto fóssil de que eles são encontrados essencial-
Kanjera South, Quênia, datado em mente em tecidos animais.
2 MAA traz evidências importan- Outra linha de evidência empí-
tes sobre essa questão. A acumu- rica para o consumo de carne é
lação de fauna nesse sítio mostrou a morfologia e a composição quí-
que, por um lado, humanos trans- mica do esmalte dental dos primei-
portaram e consumiram primaria- ros Homo. A topografia dos den-
mente bovídeos de pequeno e mé- tes de H. habilis e H. erectus indi-
dio porte, ao passo que, por outro cam que as cúspides nessas espé-
lado, a grande quantidade de ca- cies são mais proeminentes com-
beças de bovídeos parece indicar paradas às de australopitecíneos,
uma procura por tecido cerebral sugerindo uma adaptação morfo-
através da carniçagem (Ferraro et lógica para a quebra de alimen-
al., 2013). Outros pesquisadores, tos elásticos e difíceis de quebrar
em contraste, defendem que os hu- (tough), tal como a carne (Ungar,
manos tiveram um papel primário 2004). Análises de elementos quí-

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micos encontrados no esmalte dos 2009).


dentes são também bons indica- O segundo conjunto de hipóte-
dores do consumo de carne. As ses para explicar a expansão do cé-
quantidades de bário, estrôncio e rebro é relacionado ao ambiente
cálcio do esmalte indicam que os social. Para os autores proponentes
primeiros Homo consumiam mais dessa hipótese, a qualidade da di-
carne que os australopitecíneos ro- eta é uma condição necessária, mas
bustos do sul da África (Balter et não suficiente para explicar expan-
al., 2012). são do cérebro. A real vantagem se-
Por fim, as hipóteses energéti- letiva para compensar o alto custo
cas para explicar o aumento do cé- energético do cérebro está ligada às
rebro estão associadas a uma im- vantagens cognitivas que o cérebro
portante evidência fóssil: a dimi- proporciona. A principal base em-
nuição dos dentes molares. Essa pírica dessas hipóteses é de que em
diminuição ocorre de forma mais primatas, principalmente os antro-
acentuada em Homo erectus, e de- poides, existe uma correlação en-
pois novamente no surgimento do tre o tamanho do neocórtex, que é
Homo sapiens. A diminuição do a área externa do cérebro respon-
dente representa uma economia de sável pela articulação e processa-
energia significativa, pois também mento dos dados, e o tamanho do
está associada à diminuição da es- grupo social, sendo que essa corre-
trutura facial, mandibular e mus- lação também pode ser observada,
cular (Ungar, 2012). Estudos ge- a grosso modo, com o volume total
néticos em humanos modernos cal- do cérebro. Essa correlação é ex-
cularam que a houve uma inativa- plicada pela importância da capa-
ção do gene da miosina (MYH16), cidade cognitiva para lidar com a
que é responsável pela constitui- complexidade social em primatas,
ção dos músculos da mastigação, que é constituída de relações entre
há cerca de 2,4 MAA, resultando indivíduos em circunstâncias de
em perda de potência mastigatória forrageio, dominância, reprodução
(Steadman et al., 2004). A expli- e proteção. Em humanos moder-
cação para essa diminuição é que nos, o tamanho do neocórtex pre-
o processamento do alimento pas- diz um tamanho de grupo de 150
sou a ser realizado antes da inges- pessoas, que fariam parte do cír-
tão, seja por quebra mecânica re- culo social de uma pessoa (Dunbar,
alizada por instrumentos (Zink e 1998, 2009). Evidências empíricas
Lieberman, 2016) ou por redução de mudanças de organização social
química e mudança de consistên- têm sido observadas em material
cia gerada pelo fogo (Wrangham, arqueológico antigo. Assembleias

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fósseis acumuladas há 2 MAA em ria de vida moderno só irá apare-


Olduvai, Tanzânia, indicam que os cer definitivamente com o surgi-
primeiros Homo procuravam abri- mento do Homo sapiens (ver pró-
gos em bosques próximos de fontes xima seção). Esses dados mostra-
de água, cercados por áreas aber- ram que uma mudança de orga-
tas, caracterizando a formação de nização social surgiu com o início
campos-base. Eles traziam carca- da expansão do cérebro na linha-
ças de animais e consumiam recur- gem Homo, aproximando-se gra-
sos vegetais e água nesses locais, dativamente do padrão atual con-
como uma área de refúgio (Magill forme o cérebro foi se expandindo
et al., 2015). É importante des- ao longo do Pleistoceno. Esse
tacar, no entanto, que a organiza- processo de mudança de organi-
ção social nesse primeiro momento zação social pode estar ligado a
era diferente da organização social uma estratégia adaptativa centrada
em humanos modernos. A análise na ocupação permanente de áreas
da distribuição do material nes- abertas de savana, em um estilo de
ses campos-base de 2 MAA mos- vida caçador-coletor, e em um au-
trou uma mancha única de ossos mento do tamanho dos grupos e do
e instrumentos, diferindo do ob- grau de cooperação entre os indiví-
servado em acampamentos de soci- duos do nosso gênero.
edades caçadoras-coletoras atuais, Por fim, um terceiro conjunto de
que apresentam múltiplas agre- hipóteses para explicar a expansão
gações, representando as famílias do cérebro está ligado à adapta-
nucleares (Dominguez-Rodrigo e ção ambiental. Reconstruções am-
Cobo-Sanchéz, 2017). Da mesma bientais têm mostrado que os últi-
forma, a história de vida dos pri- mos 6 MAA tem testemunhado um
meiros Homo ainda era mais se- ressecamento e esfriamento global,
melhante a dos grandes símios que na África gerou um aumento
do que a dos humanos moder- das áreas abertas de savana (Cer-
nos (Da-Gloria, 2014). Dentes ling et al., 2011). Uma hipótese es-
de espécimes de Java e do Lago pecialmente relevante aqui é a de
Turkana na África mostram que seleção natural pela variabilidade.
o primeiro molar ainda erupci- Essa hipótese é baseada em dados
onava cedo em H. erectus, indi- ambientais que mostram um au-
cando que eles tinham um cresci- mento da flutuação climática du-
mento e amadurecimento mais rá- rante o Pleistoceno, entre 2,6 MAA
pidos do que humanos modernos e 10 mil anos atrás. Uma das im-
(Dean et al., 2001). Um padrão plicações de viver em um ambi-
de organização social e de histó- ente altamente variável é a seleção

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natural para versatilidade adapta- ticas logo ficaram associadas na es-


tiva e plasticidade comportamen- tratégia adaptativa dos Homo erec-
tal (Potts, 2012). Além da evidên- tus. A partir desse momento, es-
cia ambiental, dados de microdes- ses três aspectos foram gradativa-
gaste dentário de Homo erectus dão mente evoluindo até chegar ao es-
suporte à hipótese de variabilidade tado atual em humanos modernos.
ambiental. O microdesgaste den-
tário é medido através de uma téc- Terceira transição: pensamento
nica que quantifica o relevo da su- simbólico e suas implicações
perfície oclusal do dente, permi- comportamentais
tindo inferências sobre a consistên- A terceira transição na nossa li-
cia e textura do alimento consu- nhagem é relacionada ao surgi-
mido. Como o microdesgaste re- mento do Homo sapiens há cerca
gistra as marcas no dente feitas de 200 mil anos. Evidências mor-
poucos dias antes da morte, a aná- fológicas dos primeiros sapiens são
lise de vários indivíduos pode for- baseadas no crânio do Omo I da
necer a variabilidade alimentar da Formação Kibish na Etiópia datado
espécie ao longo dos anos. Da- de 195 mil anos (McDougall et al.,
dos de microdesgaste de hominí- 2005) e do crânio de Herto, Etió-
nios indicam que o traço marcante pia, datado de 160 mil anos (White
da dieta de H. erectus é a variabili- et al., 2003). Fósseis de formas pre-
dade da textura dos alimentos con- cursoras de nossa espécie têm sido
sumidos, sugerindo uma alta adap- achadas na África, como é o caso
tabilidade a diferentes ambientes dos fósseis de Jebel Irhoud, Marro-
(Ungar et al., 2006). cos, datados de 315 mil anos (Hu-
Em síntese, a segunda grande blin et al., 2017). Os sapiens ana-
transição da linhagem hominínia tomicamente modernos são carac-
envolve o surgimento do gênero terizados por apresentarem fossas
Homo e a aquisição de um pa- caninas, arcada supraciliar pouco
cote adaptativo que inclui ferra- acentuada, queixo, face pouco pro-
mentas, caixa craniana expandida jetada, testa alta e calota globu-
e diminuição dental. Por outro losa, abertura nasal mais estreita
lado, essas aquisições não ocorre- e dentes molares pequenos e sim-
ram simultaneamente no registro ples. Já o pós-crânio, em relação
arqueológico. Ferramentas de pe- a formas arcaicas viventes naquele
dra surgiram primeiro, seguidas período, é caracterizado por qua-
do início da expansão do cérebro, dril e troncos estreitos, maior esta-
e, por fim, a diminuição dos den- tura, antebraço e tíbia mais lon-
tes, sendo que essas três caracterís- gos e ossos da mão mais gráceis
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(Schwartz e Tattersall, 2010). Em- Essas conchas perfuradas parecem


bora essa caracterização é sufici- ter tido uma distribuição por toda
ente para distinguir morfológica- a África e Oriente Médio nesse pe-
mente nossa espécie, o traço defi- ríodo, pois elas também foram en-
nidor de humanos modernos está contradas na Grotte des Pigeons,
relacionado ao comportamento de Morrocos, há 82 mil anos (Bou-
nossa espécie (Shea, 2011). A mai- zougarr et al., 2007) e em Israel há
oria dos pesquisadores em evolu- cerca de 100 mil anos (Vanhaeren
ção humana assume que esse traço et al., 2006). Minerais de múltiplas
comportamental distinto dos hu- cores trazidos de áreas distantes e
manos modernos é relacionado ao com marcas de queima foram en-
pensamento simbólico, isto é, à ca- contrados em sítios em Israel en-
pacidade de produção de redes de tre 100 e 135 mil anos (d’Errico et
símbolos, envolvendo graus eleva- al., 2010). Na África, a presença
dos de imaginação e abstração. de indicadores de comportamento
A maior dificuldade para de- humano moderno podem ser recu-
tectar pensamento simbólico em ados até 164 mil anos em Pinacle
nossa linhagem é a natureza da Point, África do Sul, com evidên-
evidência arqueológica necessária cia de uso de ocre, de exploração
para comprovar esse traço. Nesse de ambiente costeiro e de presença
aspecto, três indicadores de pen- de lâminas líticas (Marean et al.,
samento simbólico podem ser usa- 2007).
dos como evidência: adornos cor- Em relação à produção de arte,
porais, arte pré-histórica e rituais há evidências associadas com sa-
funerários. Em relação aos ador- piens tanto de pinturas rupestres
nos, aqueles mais associados ao como de arte em substrato portá-
simbolismo são os fragmentos de til. Em Howiesons Poort, África
ocre e as conchas perfuradas, que do Sul, há pinturas em ovos de
provavelmente foram usados para avestruz com conotação estética há
pintura corporal e ornamentação, 60 mil anos (Texier et al., 2010).
respectivamente. Na Caverna de Outro indicador de pensamento
Blombos, África do Sul, foi encon- abstrato são os desenhos geomé-
trado ocre dentro de um recipiente tricos, tais como aqueles grava-
feito de concha, datado em estra- dos em suporte de pedra na Ca-
tos de 100 mil anos (Henshilwood verna de Blombos há 75 mil anos
et al. 2011). Na mesma caverna (Henshilwood et al., 2009). Fica
há conchas perfuradas para produ- claro por essa revisão da evidência,
ção de adornos em estratos de 75 que sinais de comportamento sim-
mil anos (Vanhaeren et al., 2013). bólico apareceram na África após

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o surgimento do Homo sapiens há mentos de sapiens com elabora-


cerca de 200 mil anos (McBrearty dos acompanhamentos funerários.
e Brooks, 2000). Esse mesmo com- O exemplo mais emblemático é o
portamento é observado com bas- de Sungir, Russia, datado de 30
tante intensidade na Europa a par- mil anos (Nalawade-Chavan et al.,
tir de 40 mil anos, o que é tradi- 2014). Esse sítio inclui sepulta-
cionalmente chamado de revolu- mentos adultos e de crianças com
ção do paleolítico superior, e está extensivo acompanhamento fune-
associado à expansão dos sapiens rário, incluindo contas de marfim e
vindos da África por volta de 50 dentes de animais (Pettitt, 2010). A
mil anos. Por exemplo, figuras hu- presença universal de enterramen-
manas femininas feitas de marfim tos ritualizados em Homo sapiens
com seios avantajados e sem ca- parece indicar que a partir desse
beça, chamadas de vênus e com momento os indivíduos de nossa
clara conotação simbólica, foram espécie passaram a ser capazes de
achadas na Caverna de Hohle Fels, criar mundos imaginados que ul-
Alemanha, e datadas em 35 mil trapassam a realidade concreta, in-
anos (Conard, 2009). Já as pintu- cluindo seres sobrenaturais e re-
ras de Altamira e Altexerri B na alidades imaginadas após a morte,
Espanha e Chauvet na França tem como é observado extensamente na
idades entre 35 e 40 mil anos, logo mitologia religiosa de sociedades
na chegada dos sapiens na Europa tradicionais atuais.
(Pike et al., 2012). Já na Ásia, nas Nas últimas décadas, o enten-
cavernas de Sulawesi, Indonésia, dimento do pensamento simbó-
pinturas de mão e de animais fo- lico na nossa linhagem tem ga-
ram encontradas nas paredes com nhado um conjunto novo de evi-
datação de 40 mil anos (Aubert et dências empíricas advindas do es-
al., 2014), mostrando sinais da ex- tudo de sítios ocupados por Homo
pansão de uma espécie com um neanderthalensis. Essa espécie, ou
comportamento simbólico já esta- subespécie como alguns pesqui-
belecido. sadores preferem classificá-la, vi-
Quanto ao modo de depositar veu na Eurasia em altas latitudes,
os mortos, os sapiens são a única apresentando uma morfologia di-
espécie com claros sinais de ocor- ferente dos sapiens, com diver-
rência de rituais funerários. Em- sas adaptações para climas frios.
bora a evidência arqueológica seja Neandertais têm crânios longos e
bastante esparsa durante o Pleis- baixos, arcada supraciliar proje-
toceno, a partir de 40 mil anos tada, ausência de queixo, coque
há diversos exemplos de enterra- nucal, face medial proeminente

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com alargamento dos sinos e da melhos há cerca 50 mil anos (Zi-


abertura nasal, espaço retromolar, lhão et al., 2010). Ainda mais an-
dentes molares taurodontes e den- tigo, minerais vermelhos e amare-
tes anteriores relativamente gran- los em recipientes e conchas perfu-
des. O pós-crânio apresenta tórax radas e pintadas foram encontra-
em forma de barril, bacia e om- dos na Cueva de los Aviones, Es-
bros largos, tíbia e antebraço cur- panha, e datados de 115 a 120 mil
tos, ossos do corpo bastante robus- anos (Hoffman et al., 2018a). Além
tos e estatura mais baixa. Além do disso, contrário ao pensamento tra-
que historicamente se associa ao dicional que apenas sapiens utili-
comportamento neandertal, ligado zavam instrumentos polidos feitos
a uma estratégia de vida com alta de osso, um instrumento de osso
demanda física, esse grupo tam- polido chamado de lissoir foi en-
bém apresenta cérebros iguais ou contrado na França com data de 50
maiores que os dos sapiens, e como mil anos e foi possivelmente usado
veremos a seguir estão associados por neandertais para tratamento
a comportamentos antes restritos de couro (Soressi et al., 2013). No
aos sapiens. sítio La Quina, França, foram en-
Materiais arqueológicos de di- contrados três fragmentos de crâ-
versos sítios neandertais na Europa nio humanos datado em cerca de
apresentam evidências de marcas 50 mil anos e usados como instru-
de cortes nas extremidades de os- mentos por neandertais (Verna e
sos de corvos e aves de rapina para d’Errico, 2011). No que diz res-
a retirada de penas e garras, possi- peito ao pensamento abstrato, uma
velmente para serem usados como gravação na rocha com padrões ge-
adornos corporais (Finlayson et al., ométricos foi encontrada na Ca-
2012; Morin e Laroulandie, 2012). verna de Gorham, Espanha, com
Já na Caverna de Fumane, Itália, mais de 40 mil anos (Rodríguez-
foi encontrado uma concha mari- Vidal et al., 2014). Recentemente,
nha datada de cerca de 45 mil anos pinturas em três cavernas na Espa-
que foi transportada por quase 100 nha feitas com pigmento vermelho
km e banhada de ocre no seu exte- foram datadas em pelo menos 64,8
rior, possivelmente para uso como mil anos, mostrando pela primeira
adorno por neandertais (Peresani vez que neandertais também são
et al., 2013). Sítios de neandertais capazes desse tipo de manifesta-
na península ibérica apresentam ção (Hoffmann et al., 2018b). En-
evidência de conchas marinhas terramentos dos mortos também
perfuradas e pintadas com pig- foram feitos por neandertais, em-
mentos minerais amarelos e ver- bora haja pesquisadores que ainda

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contestem essa interpretação (Gar- geométricos abstratos foi atribuída


gett, 1999; Sandghate et al., 2011). ao Homo erectus de Java há 500 mil
Entre aqueles que defendem esses anos (Joordens et al., 2015). Ou-
enterramentos, o caso do esqueleto tro exemplo é a figura de Berekhat
de La Chapelle-aux-Saints, França, Ram, possivelmente um torso de
é usado como evidência do enterra- uma mulher feita em pedra en-
mento intencional em neandertais contrada em estratos de cerca de
(Rendu et al., 2014). De fato, há 230 mil anos em Israel (d’Errico
algumas dezenas de casos de en- e Nowell, 2000). Ainda mais an-
terramento de neandertais, porém tiga, a vênus de Tan-Tan, achada
é preciso destacar que essas de- no Marrocos em estratos de 400
posições não apresentam o elabo- mil anos, também pode ser uma
rado acompanhamento funerário possível figura humana trabalhada
observado em enterramentos sapi- (Bednarik, 2003). Em camadas de
ens depois de 40 mil anos. Em sín- 200 a 250 mil anos há evidência de
tese, as evidências de pensamento uso de ocre em um sítio arqueoló-
simbólico em neandertais cresce- gico na Holanda, advindo de he-
ram enormemente nas últimas dé- matita importada de fontes a qui-
cadas, a ponto de se assemelharem lómetros de distância (Robroecks
e para outros até ultrapassarem as et al., 2012) e em um sítio arque-
evidências disponível para sapi- ológico na Zâmbia, África, há 200
ens. Por esse raciocínio, não é sur- mil anos (Barham, 2002). Embora
preendente que sapiens e neander- esses objetos sejam bastante espar-
tais tenham hibridizado e deixado sos e não apresentem uma ligação
descendentes férteis, como mostra- inquestionável com o pensamento
ram estudos de DNA (Green et al., simbólico, é possível que a capa-
2010), atestando assim que a dife- cidade em articular redes de sím-
rença entre essas duas formas foi bolos tenha aparecido no ancestral
menor do que imaginávamos. comum de sapiens e neandertais
A evidência material do pen- há mais de 500 mil anos.
samento simbólico parece não ter A capacidade de articular redes
aparecido abruptamente nos sapi- de símbolos de forma a criar reali-
ens e nos neandertais. Embora es- dades abstratas tem diversas con-
cassos, existem evidências incipi- sequências comportamentais e faz
entes de pensamento simbólico em parte da maneira como caracteri-
espécies mais antigas de hominí- zamos os humanos modernos. Es-
nios. O uso de conchas de rio para sas redes de símbolos são essenci-
alimentação, fabricação de instru- ais para a existência de fenômenos
mentos e suporte para desenhos como a linguagem, a arte, a reli-

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gião e a cultura. A linguagem hu- cimento que é transferido social-


mana, por exemplo, é entendida mente, está ligada a mecanismos
por muitos como um traço crucial bioculturais complexos. O advento
para o surgimento e expansão do da cultura em H. sapiens possibi-
Homo sapiens. As evidências fí- litou a existência de uma herança
sicas desse traço, no entanto, são cultural independente da herança
muito escassas. No que tange à biológica, gerando maior acúmulo
capacidade física de produção de de conhecimento ambiental e so-
sons, neandertais e sapiens pare- cial, e maior flexibilidade adap-
cem ser igualmente capazes, já que tativa (Richerdson e Boyd, 2005).
ambos apresentam ossos do hioide O momento exato que essa he-
similares, que é o osso responsá- rança cultural atingiu a configu-
vel pelo ancoramento de múscu- ração atual ainda é assunto de
los da laringe (D’Anastasio et al., debate, mas é certo que está li-
2013). Já em uma abordagem ge- gada ao desenvolvimento do pen-
nética, a sequência do gene FOXP2, samento simbólico na nossa linha-
que é relacionado à fala em huma- gem. Outro elemento importante
nos modernos, é similar em nean- para o surgimento da cultura hu-
dertais e sapiens e até mesmo em mana moderna são mudanças na
espécies arcaicas como os deniso- história de vida, isto é, a quanti-
vanos (Krause et al., 2007). Por ou- dade de energia alocada em cada
tro lado, foi detectada uma varia- uma das fases de vida do orga-
ção em uma área reguladora desse nismo. Os traços característicos da
gene que só é encontrada em hu- história de vida de humanos mo-
manos modernos, embora não em dernos, tais como o longo período
todos (Maricic et al., 2013). Ainda de crescimento e desenvolvimento
não há um consenso sobre o mo- e o aumento da longevidade, pa-
mento exato que apareceu a lin- recem ter atingido o padrão atual
guagem humana moderna, e se ela só depois da última expansão sapi-
foi compartilhada com neander- ens pelo globo há 50 mil anos. Esse
tais. aspecto pode ter sido crucial para
Outra implicação do pensa- distinguir sapiens de neandertais,
mento simbólico é o desenvolvi- pois estes últimos ainda tinham
mento da cultura. Embora alguns um desenvolvimento mais acele-
biólogos identifiquem cultura em rado, o que pode ter prejudicado
animais, tais como em chimpan- a capacidade deles em transmitir
zés, o desenvolvimento da cultura e acumular conhecimento cultural
em humanos moderno, entendida (Da-Gloria, 2014).
aqui como acumulação de conhe- As hipóteses para explicar evo-

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lutivamente o desenvolvimento do tica exerceu uma forte pressão se-


pensamento simbólico na nossa li- letiva para a flexibilização compor-
nhagem podem ser divididas em tamental na nossa linhagem, re-
dois grupos. O primeiro deles se sultando no surgimento do pen-
refere às hipóteses intrínsecas, pre- samento simbólico e da herança
conizando que mutações biológicas cultural (Scholz et al. 2007, Potts,
afetando o cérebro de indivíduos 2012). Uma variante dessa hipó-
da nossa linhagem desencadearam tese ambiental se refere à mudança
as mudanças comportamentais en- no ambiente social da nossa linha-
contradas em humanos modernos. gem. Segundo Dunbar (2003), gru-
Um exemplo dessa abordagem é pos sociais maiores exerceram uma
a hipótese neural defendida por pressão sobre a cognição humana,
Richard Klein, propondo que por resultando no aparecimento da lin-
volta de 50 mil anos uma mudança guagem simbólica como um facili-
biológica surgida ao acaso trouxe tador da comunicação em contexto
enorme vantagem adaptativa para social. É importante enfatizar que
uma linhagem de Homo sapiens, ge- tanto as hipóteses intrínsecas como
rando mudança comportamental e as extrínsecas são complementa-
consequente expansão para fora da res, já que em mudanças adaptati-
África (Klein, 2008). Essa hipó- vas, tanto a alteração biológica ao
tese, porém, tem sido questionada acaso como a pressão seletiva am-
pela ausência de evidências da na- biental ocorrem simultaneamente.
tureza biológica dessa mudança
e pela abundância de evidências
Considerações finais
mostrando que o pensamento sim-
bólico apareceu de fato há pelo Este texto discutiu as principais
menos 200 mil anos. De qual- mudanças evolutivas na linhagem
quer forma, é bastante plausível hominínia, organizando essas tran-
que mudanças biológicas que alte- sições em três momentos, que cul-
raram nossa cognição tenham feito minaram no surgimento dos hu-
parte do desenvolvimento da capa- manos modernos. A primeira tran-
cidade de pensar simbolicamente sição se refere ao surgimento da
na nossa linhagem. O segundo bipedia e à diminuição dos cani-
conjunto de hipóteses é chamado nos, que ocorreram entre 7 e 2
de extrínsecas, e está ligado a mu- MAA. A segunda transição consis-
danças ambientais ocorridas nos tiu no surgimento das ferramen-
últimos 500 mil anos. Os defen- tas de pedra, na expansão do cé-
sores dessas ideias acreditam que rebro e na diminuição dos den-
o aumento da variabilidade climá- tes, que ocorreram entre 3,5 e 2
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MAA, e estão atreladas ao surgi- enciado mutuamente ao longo da


mento do gênero Homo. Por fim, a nossa evolução. Este artigo visa
terceira transição se refere ao sur- complementar essa discussão, for-
gimento do pensamento simbólico necendo bases empíricas e evolu-
há cerca de 200 mil anos e de suas tivas para reflexão sobre quando
implicações comportamentais, tais esses dois mecanismos de herança
como cultura, linguagem, arte e re- passaram a se influenciar mutua-
ligião. Essa sequência de even- mente. Tentativamente, é possível
tos evolutivos mostra a importân- propor que o fortalecimento da he-
cia de traçar a história particular rança cultural na nossa linhagem
de uma linhagem para entender a ocorreu com o surgimento do gê-
sua configuração biológica atual. nero Homo há cerca de 2,5 MAA,
No caso humano, essa trajetória é mas só atingiu seu estágio atual
ainda mais relevante, pois, durante com a expansão do Homo sapiens
o nosso processo de evolução, a he- para fora da África há 50 mil anos.
rança cultural foi se tornando mais Nesse sentido, a presença signi-
proeminente, chegando ao ponto ficativa de uma herança cultural
de influir ativamente no comporta- na nossa linhagem é relativamente
mento e na constituição biológica recente, embora seja resultado de
de nossa linhagem. um longo encadeamento de even-
O delineamento dessas transi- tos históricos.
ções tem como objetivo fornecer Por fim, outro ponto de diá-
uma estrutura empírica e evolutiva logo deste artigo com a obra de
para o desenvolvimento de refle- Paulo Abrantes é a discussão so-
xões sobre a evolução biológica, o bre natureza e cultura. Abran-
advento da cultura e suas impli- tes (2014c) observa que a dicoto-
cações para o comportamento hu- mia natureza/cultura é um impor-
mano atual. Nesse ponto, faz- tante entrave para o diálogo entre
se o diálogo com a obra de Paulo as ciências humanas e as biológi-
Abrantes sobre a evolução cultu- cas, especialmente no Brasil. Nesse
ral (Abrantes e Almeida, 2011) e ponto, compartilho a visão de que
a evolução da cooperação (Abran- a separação entre biologia e cul-
tes, 2014b), ambas utilizando a te- tura tem uma origem na história
oria de dupla herança. Segundo acadêmica das disciplinas envolvi-
essa abordagem, a espécie humana das (e.g., biologia, ciências médi-
apresenta tanto uma herança cul- cas, ciências sociais, psicologia, fi-
tural como uma herança biológica, losofia), e que essa separação não
que, apesar de possuírem mecanis- representa a complexidade da evo-
mos independentes, tem se influ- lução e dos comportamentos hu-

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manos. Nesse sentido, este texto texto busca sensibilizar pesquisa-


busca contribuir para que se dis- dores da área biológica para a im-
solva a dicotomia natureza e cul- portância da herança cultural na
tura, uma vez que os humanos atu- nossa linhagem, e sensibilizar pes-
ais são resultado de um processo quisadores das humanidades para
complexo de evolução biocultural, a relevância das raízes biológicas
que foi construído evolutivamente do comportamento humano.
ao longo da nossa linhagem. Esse

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Mutações no Estilo de Pensamento: Ludwik Fleck e o
Modelo Biológico na Historiografia da Ciência*

[Mutations in the Thought Style: Ludwik Fleck and the Biological Mo-
del in the Historiography of Science]

Mauro Lúcio Leitão Condé**

Resumo: O objetivo deste artigo é analisar, a partir da obra de


Ludwik Fleck, o papel da biologia e das ciências da vida como matriz
modelar na constituição de uma teoria e uma metodologia de escrita
da história da ciência; o que aqui é chamado de “modelo biológico” na
historiografia da ciência. Em contraposição ao modelo de história da
ciência kuhniano inspirado fortemente na física clássica – ainda que
posteriormente Kuhn tenha também se referenciado na biologia –,
em Fleck, podemos encontrar uma história da ciência que se inspira
na biologia e na medicina, apresentando uma fundamentação episte-
mológica mais robusta que, consequentemente, permite uma melhor
elaboração da escrita da história da ciência. Com efeito, analisando
essa questão também podemos constatar que – além da afirmação dos
aspectos sociais e históricos na construção do conhecimento científico
como por ele defendido – sua epistemologia também se assenta
profundamente no referencial biológico fazendo, assim, do pensador
polonês um precursor dessa abordagem. Ao destacar a importância
da influência da biologia em Fleck, o artigo também salienta uma
leitura não kuhniana do pensador polonês.
Palavras-Chave: Ludwig Fleck; estilo de pensamento; modelo bioló-
gico; Thomas Kuhn; historiografia da ciência

* Uma primeira versão deste artigo foi apresentada no colóquio “O homem e seus mundos: perspectivas fi-
losóficas e científicas”, em homenagem ao professor Paulo Abrantes, em 29 de junho de 2017, na Universidade de
Brasília – UnB. Junto-me aos colegas da UnB, que organizaram essa homenagem, dedicando este artigo a Paulo
Abrantes; cientista, filósofo e historiador, mas, sobretudo, um grande humanista que, com sua obra, trouxe im-
portantes contribuições para a área de história e filosofia da ciência. Agradeço aos dois avaliadores anônimos que
sugeriram pontos para melhorar as ideias aqui expostas. Agradeço ainda ao colega Carlos Alvarez Maia (UERJ)
pela leitura crítica da primeira versão do texto, o que me permitiu esclarecer melhor várias passagens.
** Professor Titular de História da Ciência [Historiografia da Ciência] - UFMG. E-mail: maurollconde@gmail.com

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MAURO LÚCIO LEITÃO CONDÉ

Abstract: The purpose of this article is to analyze, from the work


of Ludwik Fleck, the role of biology and life sciences as a modeling
matrix in the constitution of a theoretical and methodological pro-
posal of how to write the history of science; what is here called the
“biological model” in the historiography of science. In contrast to
the Kuhnian model of history of science strongly inspired by classical
physics – although later Kuhn has also referenced in biology –, in
Fleck, we can find a history of science that is inspired by biology
and medicine, presenting a more robust epistemological foundation
that, consequently, allows a better elaboration of how to write the
history of science. Indeed, analyzing this question we can also see
– in addition to the assertion of social and historical aspects in the
construction of scientific knowledge as he defended – that his episte-
mology is also based deeply in the biological referential, thus making
the Polish thinker a forerunner of this approach. In highlighting
the importance of biology in Fleck’s epistemology, the article also
highlights a non-Kuhnian interpretation of the Polish thinker.
Keywords: Fleck; thought style; biological model; Kuhn, historio-
graphy of science

Introdução mação, o pensador americano tam-


bém afastou leituras que observas-
Ao fazer referência ao livro de sem o modelo biológico como uma
Fleck na introdução de A estrutura das importantes bases da episte-
das revoluções científicas, Kuhn pas- mologia de Fleck. O próprio Kuhn
sou a ser o mais importante divul- não percebeu que, mais que narrar
gador da obra, até então quase de- a história de um objeto das ciên-
saparecida, do desconhecido pen- cias biomédicas, isto é, a história
sador polonês. Ao reconhecer que da sífilis, Fleck encontrava na nar-
Fleck o alertou em relação às ques- rativa desse objeto e das práticas
tões sociais na ciência (KUHN, correlacionadas a ele os elementos
1962 [1970]: vii), Kuhn prede- de constituição de uma nova epis-
terminou fortemente a leitura de temologia1 . Em certa medida, o
Fleck a partir dessa ênfase social. próprio condicionante histórico e
Ao mesmo tempo, com essa afir-

1 Deste modo, leitores posteriores da obra de Fleck, condicionados pela interpretação sociológica kuhniana,
também foram conduzidos a ignorar esse importante aspecto da influência da biologia e da medicina na obra do
pensador polonês. Podemos ver esse diapasão social kuhniano em importantes leitores do livro de Fleck. Para citar
alguns, LATOUR ([1979] 1996: 16-17), BLOOR (1983: 34-46) e SHAPIN e SCHAFFER (1985: 16). Esses autores
fazem referências explícitas a Fleck como pioneiro da compreensão histórica e social da ciência – como salientado
por Kuhn –, mas não fazem nenhuma observação quanto à importância da matriz biológica utilizada pelo pensador
polonês. Para usar uma analogia com Husserl em sua conhecida frase sobre Galileu como descobridor e encobridor
da ciência (HUSSERL, 1954: 53), de certa forma, Kuhn foi o “descobridor”, mas, ao mesmo tempo, o “encobridor”
da obra de Fleck.

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MUTACÕES NO ESTILO DE PENSAMENTO: LUDWIK FLECK E O MODELO BIOLÓGICO NA
HISTORIOGRAFIA DA CIÊNCIA

social da ciência, que então se tor- da ciência” produzida pela nova


nava mais evidente nos anos 1960 historiografia da ciência se instau-
– e também um ponto forte na obra rou a partir da compreensão de
de Fleck –, impediu Kuhn de per- que os aspectos sociais e históri-
ceber, de imediato, a importante cos, mais que importantes para a
contribuição do modelo biológico compreensão da história da ciên-
na epistemologia de Fleck. cia, são fundamentais no próprio
Ao longo do século XX, as abor- desenvolvimento do conhecimento
dagens históricas e sociais da ciên- científico. Ainda que sejam dife-
cia se afirmaram progressivamente rentes e tenham propósitos diver-
em contraposição às perspectivas sificados, o ponto comum que pa-
positivistas de história da ciência rece haver entre estas novas his-
predominante até então. Essas no- toriografias da ciência está, assim,
vas abordagens, ainda que com di- em torno da afirmação de que o co-
ferenças significativas entre elas, nhecimento científico não é apenas
apresentavam como característica uma resposta direta da natureza
comum, com maior ou menor ên- aos nossos questionamentos, mas é
fase, a afirmação da perspectiva também produto de um dado con-
histórica e social da ciência como texto histórico que formula questi-
um importante elemento na com- onamentos específicos à sua época.
preensão do que seja a própria ci- Esse ponto comum presente em vá-
ência. Seguindo essa diretriz, sob rios autores da nova historiogra-
vários aspectos, A estrutura das re- fia da ciência sustenta que a ci-
voluções científicas de Kuhn conso- ência tem uma história e sua his-
lidou, em 1962, o que seu autor de- tória é elemento constitutivo dos
nominou de “uma nova imagem da próprios resultados alcançados por
ciência” (KUHN, 2000: 05). Com ela (Cf. CONDÉ, 2017). Este é
o enorme impacto da obra magna o pressuposto epistemológico da
de Kuhn, a partir de então, seria nova imagem da ciência defendida
praticamente impossível analisar pela nova historiografia da ciência
a história da ciência sem conside- da qual Kuhn se tornou, se não o
rar o peso dos aspectos históricos e primeiro formulador, o maior di-
sociais na constituição do conheci- vulgador.
mento científico2 . Contudo, ainda que a valoriza-
Com efeito, essa “nova imagem ção desses aspectos sociais e his-

2 Como salientou Paulo Abrantes, mesmo procurando salvaguardar os aspectos normativos da filosofia da
ciência, após Kuhn, Lakatos se viu obrigado a reconhecer “a história da ciência como uma instância legítima (em-
bora não última) de teste das teorias de racionalidade (metodologias) propostas pelos filósofos” (ABRANTES, 2013:
150).

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tóricos tenha sido muito acentu- dicina, biomedicina, etc.), e seu de-
ada, certamente, esses não foram senvolvimento é algo que se pro-
os únicos fatores a contribuir para cessa em termos evolutivos seme-
o entendimento mais detalhado da lhantes à lógica da vida e das práti-
ciência e de sua história. Frequen- cas médicas com suas diversas in-
temente menos salientados, outros terações sociais e naturais.
aspectos foram igualmente impor- Não se trata, com isso, de afir-
tantes para ampliar essa compre- mar que um modelo baseado na
ensão da historicidade da ciência. biologia seja por si só melhor que
Com efeito, analisar como tais ou- o modelo da física para se realizar
tros fatores se articulam com a di- a história da ciência. Na medida
retriz histórica e social nos permite em que, na perspectiva de uma
compreender mais pormenoriza- epistemologia histórica (CONDÉ,
damente a epistemologia que sus- 2016), o mais importante é salien-
tenta essa nova imagem da ciên- tar o caráter histórico do conhe-
cia e, mais que isso, extrair dela cimento – incluído aí o científico
um modelo historiográfico que nos –, temos que considerar que tanto
permita fazer a história da ciên- a biologia quanto a física são, em
cia de modo mais eficaz. E, cer- última instância, constituídas his-
tamente, como pretendo salientar toricamente. Podemos chegar, com
nesse artigo, Fleck tem muito a mais ou menos facilidade, a uma
contribuir neste aspecto. mesma perspectiva epistemológica
Para além dessa amplamente di- partindo da inspiração da física ou
vulgada e discutida “perspectiva da biologia. Portanto, deste ponto
social e histórica” da nova historio- de vista essas disciplinas não são
grafia da ciência – para a qual o co- tão diferentes. Com efeito, a di-
nhecimento é resultado de um co- ferença entre essas duas matrizes
letivo e suas interações sociais situ- repousa em um caráter mais “me-
ados no tempo –, um outro impor- todológico”, no sentido literal de
tante ponto para se chegar nessa um “correto caminho”. Fleck utili-
compreensão da historicidade da zou a história da biologia e das ci-
ciência foi a influência da biologia ências biomédicas para compreen-
na epistemologia e na construção der como, epistemologicamente, se
de um modelo historiográfico, aqui estabelece a metodologia que nos
chamado de “diretriz biológica” ou mostra a história da constituição
“modelo biológico”. Para essa dire- do fato científico. Para ele, a “teo-
triz, o conhecimento é visto como ria do conhecimento é a crítica aos
algo análogo, mas não idêntico, à métodos para se chegar aos fatos”
biologia e às ciências da vida (me- (Fleck [1935] 2010: 37).

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MUTACÕES NO ESTILO DE PENSAMENTO: LUDWIK FLECK E O MODELO BIOLÓGICO NA
HISTORIOGRAFIA DA CIÊNCIA

A tradição vinda da biologia, história da ciência, isto é, compre-


sobretudo contrastada com a ma- ender a importância da diretriz bi-
triz da física clássica, parece ter ológica na constituição de um mo-
permitido a Fleck compreender delo historiográfico que permita
com maior riqueza de detalhes que uma melhor compreensão da his-
as ciências naturais também são tória da ciência.
produtos históricos3 , assim como Embora essa epistemologia ins-
qualquer outro saber humano. Em pirada no modelo biológico esti-
certo sentido, a própria matriz vesse presente desde a década de
da física moderna (especialmente, 1930 na obra de Fleck (1935) e
com a relatividade e a mecânica Canguilhem (1943)5 e, na mesma
quântica que se distanciam da ma- década, as teorias da física mo-
triz da física clássica), chegará a derna tenham trazido novas possi-
resultados muito próximos aos for- bilidades epistemológicas – como
necidos por uma epistemologia a mecânica quântica que inspi-
inspirada na biologia. Entretanto, rou Bachelard (1934) a formular
não podemos ignorar que essa tri- a necessidade de “um novo espí-
lha da biologia, ainda que chegue rito científico” –, ainda assim a
a uma concepção epistemológica hegemonia epistemológica do mo-
próxima da física moderna, tem delo da física clássica se estendeu
seu colorido próprio4 . por longo tempo na historiografia
O objetivo desse artigo é, as- da ciência e apenas com o avan-
sim, compreender a partir da obra çar do século XX a diretriz bioló-
de Ludwik Fleck a importância do gica pode se estabelecer como refe-
modelo biológico como referência rência para a epistemologia (RAD-
basilar na constituição de uma teo- NITZKY, 1993: 7-46). Com efeito,
ria e uma metodologia de escrita da a epistemologia apresentada por

3 De uma perspectiva epistemológica, a ideia de que o conhecimento apresenta um forte caráter social e
histórico já tinha sido apresentada, com diferentes nuances, por autores como Mannheim, Durkheim e Jerusalem.
Contudo, esses autores não conseguiram estender a abordagem sociológica do conhecimento às ciências naturais.
Certamente a influente distinção entre o “contexto da descoberta” e o “contexto da justificativa” de Reichenbach
(1938) refreou essas abordagens históricas e sociológicas. Contudo, procurando compreender a história da ciência,
Fleck e, posteriormente, Kuhn avançam no sentido de entender que também a ciência é um produto genuinamente
histórico e social.
4 Necessariamente, não estaria na base da ciência historiada – se biologia, física, etc. – o tipo de epistemologia
induzida, dependendo a concepção epistemológica muito mais do epistemólogo do que propriamente da ciência
analisada em sua história e filosofia. Contudo, seguindo o próprio Fleck, não podemos deixar de reconhecer que,
dependendo de onde esse epistemólogo se insere, ele poderá ter uma visão diferente de um determinado fenômeno,
isto é, condicionada por seu ambiente de interação (coletivo de pensamento), ainda que isso nunca se constitua em
uma total incomensurabilidade, posto que o estilo de pensamento possui porosidades. Por exemplo, a biologia,
como salientou Fleck, o permitiu rapidamente ver a ciência em uma perspectiva evolucionária, o que Kuhn demo-
rou muito para ver, condicionado por sua Gestalt da física clássica.
5 Para uma aproximação entre Fleck e Canguilhem sob a ótica de uma epistemologia assentada nas ciências da
vida, (cf. CONDÉ, 2016).

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MAURO LÚCIO LEITÃO CONDÉ

Kuhn, em A estrutura das revolu- cos rígidos entre o antigo e o novo


ções científicas, quase três décadas paradigma do que uma “evolu-
depois de Fleck, ainda se assentava ção” entre eles. Podemos perce-
enormemente no modelo da física ber isso claramente na afirmação
clássica. Segundo Kuhn (2000: da ideia de incomensurabilidade
285), um dos principais modelos – que tantos problemas causou –
de como fazer história da ciência entre os diferentes paradigmas em
para ele foi precisamente aquele que os limites do que pertence e
elaborado por Alexandre Koyré6 , do que não pertence a cada para-
autor que realizou uma história da digma são bem demarcados. Por-
ciência pautada no modelo da ma- tanto, essa demarcação de limi-
temática e da física clássica (Cf. tes precisos é, por exemplo, algo
CONDÉ, 2018). Em outras pala- muito longe da indeterminação (ou
vras, desde a emergência da ciên- dos critérios cambiantes) dos limi-
cia moderna, a hegemonia da fí- tes entre o normal e o patológico
sica como ciência também privi- ou da emergência e evolução da
legiou uma epistemologia e uma vida analisados pelas ciências da
historiografia da ciência construí- vida como propostos por Fleck em
das a partir de seus parâmetros. sua magna obra Gênese e desenvol-
E, ainda no século XX, isso se es- vimento de um fato científico e, pos-
tendeu por longo tempo, seja pela teriormente, por Canguilhem, em
grande influência da epistemolo- O normal e o patológico. Mais do
gia do empirismo logico – baseada que isso, o conceito kuhniano de
sobretudo na física e na matemá- paradigma se constituiu a partir
tica – que predominou até os anos da ideia de “revolução” enquanto
1960, seja, posteriormente, pela vi- ruptura radical, se contrapondo
são hegemônica da história da ci- assim à ideia de “evolução” – um
ência kuhniana, mas ainda referen- dos conceitos centrais no modelo
ciada no modelo da física clássica. biológico. Em boa medida, o am-
Em Kuhn, por exemplo, o con- plo uso do “didático” conceito de
ceito de paradigma – que tão he- paradigma (e sua comunidade ci-
gemônico se tornou – ainda que entífica) dificultou a percepção da
afirmasse os aspectos históricos e peculiar dinâmica do modelo bio-
sociais, retratou muito mais uma lógico como importante fator epis-
ideia de parâmetros epistemológi- temológico para uma compreensão

6 Kuhn não apenas deixou por escrito essa grande dívida historiográfica com Koyré (KUHN, [1962] 1970, viii;
2000: 285), mas também, segundo seu ex-aluno e orientando John Schuster, deixava isso claro em sala de aula. (cf.
SCHUSTER, 2018) para uma análise dessa grande influência de Koyré no jovem Thomas Kuhn.

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HISTORIOGRAFIA DA CIÊNCIA

mais efetiva da história da ciência. sentado em A estrutura das revolu-


Com o objetivo de demonstrar ções científicas e as ideias de Fleck
como Fleck apresenta o modelo bi- presentes, sobretudo, em Gênese
ológico como elemento marcante e desenvolvimento de um fato cien-
na constituição de uma epistemo- tífico. A partir dessa contraposi-
logia que lida melhor com a his- ção entre os pensamentos de Fleck
tória da ciência, além da aborda- e Kuhn será possível, ainda que
gem de aspectos de sua obra, irei parcialmente, delinear a especifici-
contrapor suas ideias, mesmo que dade do modelo biológico de Fleck
parcialmente, a alguns aspectos da e sua consequente utilização para
historiografia da ciência proposta uma melhor compreensão da his-
por Kuhn baseada na física clás- tória da ciência.
sica, ainda que o filósofo ameri- No que se segue, em um pri-
cano, como assinalado, posterior- meiro momento, veremos que
mente tenha caminhado em dire- Kuhn desenvolveu interesses no
ção à biologia. O foco dessa con- modelo biológico, ainda que rela-
traposição é A estrutura das revo- tivamente tardios e, em certo sen-
luções científicas, uma vez que foi tido, incompletos, ou pelo menos
essa obra que teve maior impacto inconclusos, já que ele não elabo-
na historiografia da ciência, isto é, rou, como pretendia, uma nova te-
a influência de Kuhn sobre o modo oria que considerasse em toda sua
de se fazer história da ciência se plenitude a importância da biolo-
deu, sobretudo, com a sua magna gia para a epistemologia. Mais que
obra e não com seu pensamento esse desenvolvimento posterior e
posterior. Em outras palavras, suas incompleto de suas ideias episte-
ideias posteriores, já mais próxi- mológicas a partir da matriz bio-
mas da biologia, não tiveram um lógica, como assinalado, a imensa
impacto significativo, uma vez que influência da historiografia kuhni-
nem mesmo seu livro prometido – ana baseada no modelo da física
no qual desenvolveria uma teoria foi um dos fatores a afastar um
evolucionária da história da ciên- grande número de historiadores da
cia – chegou a ser publicado7 . Com ciência dessa diretriz biológica na
efeito, a comparação que aqui se constituição de um modelo histo-
estabelece é entre o modelo apre- riográfico da ciência. Na sequên-

7 O capítulo “The road since Structure” (KUHN: 2000, 90-104), publicado inicialmente em 1990, que também
dá nome ao livro coletânea de alguns dos mais importantes artigos de Kunn republicados em 2000, é o lugar no
qual ele delineia a sua nova proposta epistemológica em que a ideia de evolução (especiação, nicho, epistemologia
evolucionária, taxonomia lexical, etc.) ganha um significado maior e que, segundo o pensador norte-americano, se
estabelece como uma proposta pós-darwiniana-kantiana.

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cia, abordarei as linhas centrais do mesmo a presença do darwinismo


pensamento de Fleck a partir do ar- nos Estados Unidos foi muito tar-
cabouço do modelo biológico para dia, e embora Darwin apareça nas
então, nas duas seções finais, te- páginas finais de A estrutura das
cer algumas considerações sobre o revoluções científicas, Kuhn estava
modo de ler esse modelo biológico longe de retirar do darwinismo,
e dimensionar suas contribuições no momento em que escrevia es-
epistemológicas na compreensão sas páginas, profundas implica-
da história da ciência. Assim pro- ções epistemológicas. Em outras
cedendo, podemos afirmar a espe- palavras, ainda que termine sua
cificidade e relevância do modelo obra magna falando de evolução,
biológico de Fleck para uma me- Kuhn não assimilou ali a diretriz
lhor compreensão da história da biológica de forma integral. E
ciência em contraposição a abor- mesmo que tenha finalizado seu li-
dagem kuhniana baseada na fí- vro apontando para a possibilidade
sica. Como Kuhn foi enormemente de incorporar o modelo biológico
responsável pela inserção da obra como um referencial epistemoló-
de Fleck na historiografia da ciên- gico, por não ser proveniente de
cia, ao destacar o modelo biológico uma área de conhecimento ligada
de Fleck não salientado na leitura à biologia e pertencer à tradição
kuhniana, em certo sentido, pro- de historiadores da ciência “revo-
ponho aqui uma leitura não kuh- lucionários”8 , Kuhn não estava en-
niana do autor de Gênese e desen- volto com a Gestalt que lhe permi-
volvimento de um fato científico. tisse compreender o completo po-
tencial da diretriz biológica na aná-
Revolução científica versus evolu- lise epistemológica da histórica da
ção da ciência ciência.
Seguindo uma orientação episte-
Como sabemos, Kuhn formou- mológica assentada na física clás-
se em física e dessa ciência extraiu sica, depois de muitos capítulos
boa parte de seus exemplos e ins- tentando mostrar como o desen-
piração epistemológica, não sendo volvimento do conhecimento se faz
inicialmente a biologia uma dis- por “mudanças de paradigmas”
ciplina central a influenciar suas que acarretam “revoluções científi-
ideias. É importante observar que cas”, nas poucas vezes em que usa

8 O que chamo aqui de historiadores da ciência “revolucionários” é o grupo de historiadores da ciência pro-
venientes na sua maioria da física (Koyré, Hall, Kuhn, Cohen, etc.) para quem, seguindo a tradição formulada
por Alexandre Koyré, a ciência moderna se caracterizou essencialmente como uma “revolução científica” ou uma
radical ruptura com a visão clássica de mundo, (cf. CONDÉ, 2005).

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HISTORIOGRAFIA DA CIÊNCIA

o conceito de evolução em sua obra gico, isto é, já traz uma compreen-


magna, Kuhn faz um paralelo entre são da evolução afeita a uma pos-
ciência e evolução a partir do en- sível aplicação epistemológica na
tendimento do conceito de evolu- história da ciência. A evolução não
ção apresentado por Darwin. Kuhn possui um fim previamente deter-
ressalta, assim, que o cientista in- minado, mas seu fim se constitui
glês critica a evolução como um no processo e isso, segundo Kuhn,
progresso inexorável rumo a um poderia ser transposto para a ci-
fim último. ência. “Se pudermos aprender a
substituir a evolução-a-partir-do-
que-sabemos pela evolução-em-
O processo de desenvolvi- direção-ao-que-desejamos-saber,
mento descrito neste ensaio uma série de problemas vexatórios
tem sido um processo de evo- podem desaparecer no processo.
lução a partir de primitivos Em algum lugar neste labirinto,
começos – um processo cu- por exemplo, deve estar o pro-
jas etapas sucessivas são ca- blema da indução” (KUHN, [1962]
racterizadas por uma com- 1970: 171). Contudo, ainda que
preensão cada vez mais deta- saliente a importância desse refe-
lhada e refinada da natureza. rencial biológico, já nas páginas fi-
Mas nada que tenha sido nais de seu livro, Kuhn não pôde
ou seja dito torna um pro- naquele momento desenvolvê-lo.
cesso de evolução em dire- “Ainda não consigo especificar em
ção a algo. Inevitavelmente, detalhes as consequências desta
essa lacuna terá perturbado visão alternativa do avanço cien-
muitos leitores. Todos esta- tífico. Mas ela ajuda a reconhe-
mos profundamente acostu- cer que a transposição conceitual
mados a ver a ciência como aqui recomendada é muito pró-
o único empreendimento que xima a uma que o ocidente em-
se aproxima cada vez mais preendeu há apenas um século”
de um objetivo estabelecido (KUHN, [1962] 1970: 171). E,
antecipadamente pela natu- por fim, ainda em sua obra magna,
reza. (KUHN, [1962] 1970: como consequência do conceito de
170-171) evolução, Kuhn menciona rapida-
mente uma ideia que procurará
Portanto, ainda que tenha sido ins- desenvolver posteriormente como
pirado no modelo da física clássica, um ponto central dessa compara-
A estrutura das revoluções científi- ção entre evolução e ciência, isto é,
cas já traz algo do modelo bioló- a ideia do desenvolvimento do co-

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nhecimento como um processo de é o fato de ter sido Carnap quem


especiação; como resultado de um valorizou a presença da teoria da
tipo de árvore evolucionária do co- evolução darwiniana, em A estru-
nhecimento. tura das revoluções científicas, de
um modo próximo ao que Kuhn
entenderá como sendo o correto ca-
Imagine uma árvore evolu-
minho para a epistemologia ape-
tiva que represente o desen-
nas décadas mais tarde. Enquanto
volvimento das especialida-
avaliador do manuscrito do livro
des científicas modernas a
de Kuhn, Carnap percebeu esse po-
partir de suas origens co-
tencial da matriz biológica apon-
muns, por exemplo, a filoso-
tado por Kuhn e, em abril de 1962,
fia natural primitiva e o ar-
escreveu a Kuhn salientando que,
tesanato. Uma linha dese-
nhada dessa árvore, nunca se
dobrando de volta, do tronco Assim como Darwin aban-
para a ponta de algum ramo donou a antiga ideia de que
rastrearia uma sucessão de a evolução era direcionada
teorias relacionadas com a para um objetivo predeter-
descendência. Considerando minado, os homens como or-
duas teorias desse tipo, es- ganismos perfeitos, e a viu
colhidas a partir de pontos como um processo de melho-
não muito próximos da sua ria por seleção natural, você
origem, deve ser fácil ela- enfatiza que o desenvolvi-
borar uma lista de critérios mento das teorias não é di-
que permitam a um observa- recionado para a perfeita te-
dor independente distinguir, oria verdadeira, mas é um
uma após a outra, a teo- processo de melhoria de um
ria anterior da teoria mais instrumento... Antes de ler
recente. (KUHN, [1962] seu manuscrito, eu não teria
1970: 205) colocado nesses termos. Mas
sua formulação e esclareci-
É bem conhecida a ironia presente mentos através de exemplo,
no fato de o livro de Kuhn, que sus- e também sua analogia com
tenta uma epistemologia contrária a teoria de Darwin, me aju-
aos ideais dos empiristas lógicos, daram a esclarecer o que eu
ter sido publicado como volume tinha em mente. (CARNAP
dois da “enciclopédia internacio- [1962] 2008: 180)
nal da ciência unificada”. Mas tam-
bém irônico, e menos conhecido, Entretanto, apesar de a ideia de
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HISTORIOGRAFIA DA CIÊNCIA

evolução não ser nova para Kuhn, Eu tentei fortalecer e ampliar


apenas depois de enfrentar, por o paralelo entre o desenvol-
mais de trinta anos, os problemas vimento científico e bioló-
trazidos por seu clássico livro ele gico sugerido no final da pri-
pretendeu constituir um novo mo- meira edição de A estrutura:
delo de história da ciência base- o desenvolvimento científico
ado não mais na física, mas em deve ser visto como um pro-
uma epistemologia evolucionaria cesso impulsionado de trás,
reorientando-se, assim, em direção não empurrado à frente –
a um modelo biológico aludido, como evolução vinda de, em
mas não desenvolvido, em sua obra vez de evolução indo para.
mais conhecida. Nas palavras de (KUHN, 2000: 96)
Kuhn,
Contudo, ainda que isso já ficasse
bastante claro em alguns de seus
Durante os trinta anos desde últimos artigos publicados, bem
que fiz o movimento evolu- como pelo título do novo livro pla-
tivo pela primeira vez, as te- nejado, A pluralidade dos mundos:
orias da evolução das espé- uma teoria evolucionária da desco-
cies e do conhecimento, ob- berta científica, infelizmente, tal te-
viamente, foram transforma- oria da ciência nunca foi comple-
das de maneiras que eu ape- tamente formulada e o referido li-
nas estou começando a des- vro (KUHN, 2000: 92, 94, 97,
cobrir. Ainda tenho muito 106), como assinalado, nunca veio
a aprender, mas até o pre- a lume. Com base apenas nesses
sente tal transformação pa- escritos publicados, Kuhn não pa-
rece extremamente provei- rece ter ido muito longe do que já
tosa. (KUHN, 2000: 94-95) poderia ter aprendido com a ma-
triz biológica de Fleck, ainda que o
pensador polonês tenha sido uma
de suas fortes influências. Em
A base dessa nova epistemologia outras palavras, mesmo que reco-
já estaria presente nessa concepção nheça no prefácio de A estrutura
de evolução que encerra as páginas das revoluções científicas que Fleck
de seu livro de 1962, e anos mais o influenciou no que diz respeito
tarde se tornam uma preocupação à importância dos aspectos soci-
central para Kuhn. ais na ciência (KUHN, [1962] 1970:
vii), Kuhn nunca se posicionou, nas
poucas vezes que fez referência a
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Fleck, quanto ao potencial episte- Fleck inicia sua obra magna exa-
mológico do modelo biológico pre- tamente salientado que um “fato
sente em Gênese e desenvolvimento científico e médico” é ilustrativo
de um fato científico9 . para a compreensão da ciência e
sua história. Afirma o pensador
polonês: “um fato científico no âm-
Fleck e o modelo biológico na te-
bito da medicina é especialmente
oria da ciência: um conhecimento
apto para as nossas considerações,
que “nasce” e “se desenvolve”
uma vez que apresenta uma confi-
guração muito rica tanto no plano
Toda a concepção de história da da história quanto no do conteúdo
ciência de Fleck é moldada pelo e que ainda não passou por ne-
arcabouço biológico. Essa impor- nhum desgaste na teoria do co-
tância do modelo biológico nos é nhecimento” (FLECK, [1935] 2010:
nitidamente mostrada não apenas 37). Conhecedor da teoria da ciên-
a partir de sua analogia entre ci- cia do Círculo de Viena, Fleck su-
ência e evolução, mas também na gere aqui ter em mente exatamente
sua ilustração do que seja a histó- uma alternativa ao “modelo da fí-
ria da ciência a partir de uma dis- sica” que até então regia a episte-
ciplina diferente do “modelo da fí- mologia.10
sica”, a saber, a história do saber Não é propriamente uma coinci-
médico nas suas múltiplas intera- dência a formulação de uma epis-
ções sociais e biológicas. Em ou- temologia com base no modelo bi-
tras palavras, não apenas a pers- ológico ser apresentada por Fleck
pectiva epistemológica de Fleck se nesse contexto. Não apenas o de-
assenta no modelo biológico a par- senvolvimento da biologia e das
tir da ideia de evolução, mas é re- ciências da vida se avolumavam
forçada pela história de uma dis- desde o século XIX, mas os limites
ciplina que também aborda as ci- da mecânica newtoniana e a emer-
ências da vida e a biologia. Essa gência de novos saberes na física
dupla presença do modelo bioló- acabaram por propiciar uma crise
gico trará importantes consequên- na epistemologia baseada na ma-
cias para a epistemologia do pen- triz da física clássica. Essa mu-
sador polonês.

9 De certa forma, em sua obra posterior Kuhn se aproxima mais ainda de Fleck, isto é, se em um primeiro mo-
mento ele percebeu a importância dos aspectos sociais salientados Fleck, seu movimento rumo à matriz biológica
o conduz mais próximo ainda do pensador polonês, embora Kuhn nunca tenha assumido essa aproximação (cf.
OLIVEIRA; CONDÉ, 2002).
10 Podemos perceber essa perspectiva pelas críticas feitas por Fleck ao Círculo de Viena e, em especial, a Carnap
(cf. FLECK, [1935] 2010: 94, 141; FLECK [1935] 1986: 63).

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dança trazida pela física moderna paço não apenas para se consolidar
foi motivadora para Fleck uma vez como ciência, mas também como
que ele se inseriu vividamente no um modelo epistemológico.
debate epistemológico sobre a me- Com efeito, inserido nesse con-
cânica quântica. Em um de seus texto, Fleck se inspira na biologia
primeiros artigos, “Sobre a crise para a constituição de uma nova
da ‘realidade”’ (1929), ele aborda a epistemologia. Para ele, muito an-
questão da observação de um fenô- tes de Kuhn, a evolução das ideias
meno natural a partir do postulado deve ser pensada analogamente ao
quântico de Niels Bohr que esta- processo evolutivo presente na na-
belece que, nos fenômenos quânti- tureza. Assim o pensador polo-
cos, o instrumento de medição in- nês nos esclarece sobre o seu qua-
terfere na medida. Fleck endossa dro de referência: “a biologia me
a posição de Bohr afirmando que ensinou a examinar uma área sub-
“observar, conhecer é sempre tes- metida à evolução sempre em sua
tar e assim, literalmente, mudar história evolutiva” (FLECK, [1935]
o objeto de investigação” (FLECK, 2010: 62). Ainda que os fenôme-
[1929] 1986: 53). Ou ainda como nos históricos e sociais sejam autô-
apresentado em sua obra magna, nomos, suas dinâmicas se asseme-
“o processo de conhecimento al- lham à dinâmica dos fenômenos
tera o sujeito do conhecimento, naturais. Na ciência não é dife-
adaptando-o harmoniosamente ao rente. Ideias científicas nascem, se
objeto do conhecimento” (FLECK, desenvolvem e morrem ao se tor-
[1935] 2010: 136). narem obsoletas ou descontextua-
Diante desse novo quadro tra- lizadas.
zido não apenas pelos avanços da
biologia e da biomedicina, mas
pela própria ciência da física, Fleck Pode-se constatar lógicas
encontrará um terreno mais propí- históricas próprias no des-
cio para desenvolver as consequên- tino das ideias, isto é, fenô-
cias epistemológicas da tradição à menos gerais peculiares da
qual ele se filia, isto é, a tradição história do conhecimento
médica, biológica ou a tradição das que se impõem ao observa-
ciências da vida. Tradição essa que dor da evolução das ideias.
remonta a um longo tempo, mas Muitas teorias, por exemplo,
que apenas nesse contexto da crise passam por duas épocas: pri-
epistemológica – estabelecida, en- meiro por uma clássica, na
tre outras coisas, pela renovação qual tudo mostra uma con-
da física – parece encontrar es- sistência notável, e depois
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por uma segunda, na qual Com efeito, ao contrário do que


surgem exceções. (FLECK, nos fez crer Kuhn com a sua no-
[1935] 2010: 49) ção de revolução científica, para
Fleck, as mutações sofridas por
Para Fleck, as teorias evoluem e um estilo de pensamento cientí-
se transformam. Consequente- fico não são necessariamente rup-
mente, fatos descritos por essas te- turas completas, pois nem tudo
orias também são vistos de ou- é mudança e nem tudo é perma-
tro modo e, assim, os próprios nência. Podemos mesmo ver na
fatos se transformam. Portanto, mudança do estilo de pensamento
aquilo que pareceu à epistemolo- os remanescentes (ainda que mui-
gia positivista como um fato fixo, tas vezes modificados) de um an-
objetivo e absoluto, na realidade, tigo estilo, o que Fleck chama de
para Fleck, passa por um longo protoideias (Urideen) ou pré-ideias
processo de evolução social, his- (Präideen) (FLECK, [1935], 2010:
tórica e linguística. A ciência 64). Da mesma forma, um es-
tem uma evolução e nesse processo tilo de pensamento contemporâ-
suas transformações são gradati- neo também pode conter protoi-
vas e não rupturas abruptas e ra- deias ou pré-ideias que prefigu-
dicais ou revoluções, como preten- ram futuras ideias, conceitos e te-
deu a noção kuhniana de mudança orias de um novo estilo de pen-
de paradigma. Em outros termos, samento que ainda surgirá. Se-
o pensamento científico de uma gundo Fleck, podemos facilmente
dada época, o que Fleck chama de ver muitos exemplos na história da
“estilo de pensamento” (Denkstil) ciência que ilustram essa afirma-
(FLECK, [1935] 2010: 49), se insere ção, como foi o caso da ideia de
em um longo contexto histórico de átomo (FLECK, [1935], 2010: 67),
transformações, isto é, ideias ci- ou do próprio conceito de sífilis
entíficas evoluem ou se desenvol- ilustrado detalhadamente por ele,
vem com o passar do tempo. Por- ao longo se deu livro.
tanto, tais mudanças históricas do Desse modo, o modelo biológico
processo científico são vistas por é a referência de Fleck para de-
ele não como uma “revolução ci- senvolver uma compreensão epis-
entífica”, mas como uma “evolu- temológica singular do que seja
ção da ciência”. Para ele, mudanças a ciência e sua história, trazendo
não são propriamente revoluções, uma nova compreensão da pro-
mas “mutações no estilo de pensa- blemática da relação entre socie-
mento” (Mutationen des Denkstiles) dade e natureza, na qual o conheci-
(FLECK, [1935] 2010: 67). mento incorpora simultaneamente

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aspectos naturais e sociais e, por se pio basilar, é a dimensão social e


desenvolver no tempo, históricos. histórica do conhecimento, sendo
Assim a tese do caráter histórico a biologia um interessante campo
e social da ciência defendida por para compreendermos essa histori-
Fleck está diretamente vinculada à cidade.
sua referência biológica, pois ainda Com efeito, diferentemente da
que todo e qualquer processo cog- concepção estática de fato pro-
nitivo seja antes de tudo um pro- posta pela epistemologia tradici-
cesso social (FLECK, [1935], 2010: onal, Fleck aponta para a dinâ-
85), processos cognitivos devem mica inerente ao modelo bioló-
ser vistos de modo análogo à evolu- gico. O próprio título de seu li-
ção biológica. Em outras palavras, vro já reflete essa perspectiva bio-
todo o esforço da teoria da ciência lógica: um fato científico tem uma
de Fleck procura mostrar que o fato “gênese” e um “desenvolvimento”.
científico não é propriamente algo Eventualmente uma mutação ou
simplesmente dado, mas algo que, uma morte. Entretanto, a ciên-
para além de uma descrição do em- cia é muito mais que um meca-
pírico, se estabelece e se desen- nismo puramente biológico, ela é
volve (evolui) através de um com- uma atividade que se processa no
plexo processo de interações soci- bojo das relações sociais que envol-
ais e empíricas ao longo de muito vem o científico e o não científico.
tempo. Processo esse que é seme- Esse aspecto social reforça o cará-
lhante, mas não idêntico, à vida ter não teleológico da ciência, isto
de um organismo biológico que é, não apenas pela analogia com a
nasce, se desenvolve, se reproduz ideia de evolução, mas também por
e morre. Enfim, além de compre- essa dimensão social, a ciência não
ender que fatores históricos e so- apresenta um progresso inexorável
ciais estão na base de todo e qual- rumo a um fim último predetermi-
quer fato científico colocando a ci- nado. Ela está sujeita à dinâmica
ência em termos de uma atividade dos processos naturais e sociais que
coletiva, Fleck pensa todo esse pro- a constituem, podendo tomar dife-
cesso a partir do referencial bioló- rentes direções.
gico. Contudo, é preciso salientar Ao constituir sua concepção
que essa referência na biologia se epistemológica inspirada no mo-
dá não como um fundamento úl- delo biológico que estabelece que
timo metafísico, mas como o per- não há limite exato entre o nor-
curso de caráter teórico e metodo- mal e o patológico (FLECK, [1929]
lógico seguido por ele. Portanto, 1986: 39), Fleck traz para a epis-
o que Fleck abraça, como princí- temologia um novo eixo de en-

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tendimento do que seja “objetivi- sua teoria da ciência, Fleck narra a


dade”, “precisão”, “certeza”, “de- história da sífilis mostrando como
senvolvimento do conhecimento”, se estabeleceu o moderno entendi-
etc. Qual é o grau de certeza mento dessa doença em seus aspec-
de que uma determinada doença tos históricos desde o fim do século
seja sífilis ou cancro? Como, se- quinze até a chamada “reação de
gundo Fleck, o “coletivo de pen- Wassermann”, descoberta no início
samento” (Denkkollektiv) (FLECK, do século XX, que estabelece o di-
[1935] 2010: 82) – o que Kuhn agnóstico da sífilis.
chamou de comunidade científica Para o pensador polonês, a sí-
– constrói os critérios de determi- filis não foi descoberta como um
nação de “objetividade” e “preci- fato científico dado, pronto e aca-
são” que nos garanta a “certeza” da bado. Contrariamente, se cons-
afirmação sobre o que é conside- truiu um entendimento científico
rado sífilis? Como a história da ci- do que seja a sífilis a partir de um
ência é a história dessas teorias e longo processo com muitos percal-
práticas circunscritas no espaço e ços e inúmeras idas e vindas. Dife-
no tempo? São respostas a questões rentes épocas e contextos elabora-
desse tipo que a teoria da ciência ram explicações variadas para a sí-
de Fleck procura nos proporcionar. filis; o que hoje entendemos como
E para responder essas e ou- um fato científico chamado “sífi-
tras questões semelhantes, mais lis” com diagnóstico e tratamento
do que estabelecer pioneiramente foi, na realidade, compreendido de
uma analogia comparativa entre forma distinta em diferentes cole-
a ideia de evolução e a ciência, tivos de pensamento situados his-
Fleck cria vários conceitos que le- toricamente, que produziram vá-
vam em consideração a dinâmica rias teorias e práticas científicas
social como algo análogo à dinâ- condicionadas por esses diversos
mica biológica. Ele entende que contextos históricos e culturais em
o conhecimento é evolutivamente que foram produzidas. É nesse
construído nesse processo histó- sentido que a constituição de um
rico de interação entre homem e fato científico se processa em um
natureza. Para ilustrar isso, ele se coletivo de pensamento que define,
põe a campo mostrando detalhada- assim, seu “estilo de pensamento”,
mente como a ciência funciona no isto é, sua capacidade de perce-
seu dia a dia, em suas interações ber os problemas e articular solu-
teóricas, materiais, técnicas, sociais ções a partir dos valores e práticas
e naturais através do tempo. Em que definem o “sistema de referên-
outras palavras, para desenvolver cia” (Bezugssystem) (FLECK, [1935]

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2010: 94) no qual esse estilo de plexo de interações. Interações es-


pensamento é criado. sas que não apenas conduzem ao
entendimento do que seja a sífi-
lis, mas pode modificar esse enten-
Podemos, portanto, definir o dimento através do tempo. Dife-
estilo de pensamento como rentes estilos de pensamento tive-
percepção direcionada em ram diferentes entendimentos so-
conjunção com o proces- bre a sífilis ao longo do tempo e,
samento correspondente no eventualmente, no mesmo espaço
plano mental e objetivo. Esse de tempo.
estilo é marcado por carac- Percebemos assim que a institui-
terísticas comuns dos proble- ção de um estilo de pensamento ci-
mas, que interessam a um entífico é construída por uma prá-
coletivo de pensamento; dos tica social e seus diferentes esti-
julgamentos, que considera los social, técnico, científico, literá-
como evidentes e dos méto- rio, em interação com a natureza.
dos, que aplica como meios Contudo, esse conjunto é visto por
do conhecimento. É acompa- Fleck a partir da matriz biológica,
nhado, eventualmente, por isto é, o desenvolvimento desse
um estilo técnico e literá- processo se dá de forma “orgânica”
rio do sistema do saber. e gradual, na maioria das vezes,
(FLECK, [1935] 2010: 149) sem transformações abruptas, se-
melhantes assim a um organismo
A sífilis não se resume ao agente vivo.
etiológico, a spirochaeta pallida A indeterminação e o caráter
(modernamente chamada de tre- inconstante do conhecimento so-
ponema) (FLECK, [1935] 2010: bre a vida que, até então, difi-
56), mas é produto de um com- cultava ou impedia esse conheci-
plexo sistema de referência que in- mento de se revestir de um rigor ci-
clui a doença, epidemias, saber po- entífico, sendo qualificado apenas
pular, julgamento moral, saber ci- como uma “arte de curar”, agora
entífico teórico, práticas laborato- passava a ser visto de outra ma-
riais, tratamentos, medicamentos, neira. Em outras palavras, o ca-
políticas de saúde pública, etc., ráter inconstante e indeterminado
tudo isso articulado em circuns- que até então dificultou a consti-
tâncias sociais e históricas especí- tuição da biologia e das ciências da
ficas. A determinação do agente vida como ciências, se torna, en-
etiológico, ainda que importante, tão, não apenas um conhecimento
é apenas um aspecto desse com- científico, mas também matéria-
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prima para o entendimento da pró- essa substancial alteração do sis-


pria epistemologia. Se a dificul- tema de referência – ou a revolu-
dade de definir limites entre o nor- ção científica como enfatizada por
mal e o patológico ou estabelecer Koyré – o foco esteve muito mais
a peculiaridade da dinâmica de or- na mudança das relações do que
ganismos vivos tinham sido empe- propriamente na constituição de
cilhos para a epistemologia tradi- novos objetos. Enfim, na “desco-
cional que buscava certezas rígi- berta” das leis naturais que regem
das e precisas, agora, essas caracte- esses objetos já conhecidos mile-
rísticas singulares do fenômeno da narmente.
vida se tornaram o ponto de par- De modo diferente do que se
tida para compreender a própria supunha serem as “descobertas”
fundamentação epistemológica da do modelo da física, a sífilis, por
ciência. O referencial do conheci- exemplo, enquanto um fenômeno
mento não é mais um ponto fixo, biomédico inserido em um con-
um fundamento último, mas a di- texto social, não é uma “desco-
nâmica de um sistema que mesmo berta” estática, mas uma “constru-
tendo elementos que apresentem ção” dinâmica a partir da conjun-
variações formam um “sistema de ção desses múltiplos fatores que,
referência” capaz de determinar o como dito, compõem o sistema
conhecimento. de referência desse estilo de pen-
É certo que, na emergência da ci- samento. Portanto, o que o ci-
ência moderna, a própria revolu- entista entende por um fato ci-
ção astronômica e a mecânica clás- entífico (o que Fleck denominou
sica surgiram a partir da constitui- de acoplamento passivo) (passi-
ção de um novo “sistema de refe- ven Koppelungen) (FLECK, [1935]
rência” totalmente contra intuitivo 2010: 49-50) se constitui a partir
que se contrapôs à intuitiva “física” de seu olhar (Gestaltsehen) (FLECK,
aristotélica, como magistralmente [1935] 2010: 142) – e esse é um
descreveu a obra de Koyré. Assim, olhar coletivo –, na interação com
com a nova astronomia, houve não os múltiplos objetos para os quais
propriamente a constituição de no- seu olhar se volta (acoplamento
vos objetos (terra, lua, planetas sol, ativo) (aktiven Koppelungen). As-
etc.), mas uma profunda alteração sim procedendo, Fleck assume um
da relação entre eles. Em outras caráter pragmático em sua teoria
palavras, o nascimento da astro- da ciência, isto é, a ciência não é
nomia e da física clássica patroci- apenas um modelo distanciado que
nou uma completa nova visão de descreve ou “representa” a natu-
mundo, mas ainda que se afirme reza, mas se constitui a partir de

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uma interação do cientista com ela. de escrita dessa história da ciên-


A ciência é um atuar. Ela é uma cia. Certamente, A estrutura das re-
práxis. voluções científicas foi o livro que
Nesse sentido, a partir da pecu- mais influência exerceu enquanto
liaridade da lógica da vida, Fleck obra modelar para esse propósito.
inverte a consideração epistemoló- Ali, Kuhn ofereceu aos historia-
gica do entendimento do que seja dores da ciência uma ferramenta
a ciência. O conhecimento cientí- analítica que permitiu ao histori-
fico não se constitui como uma “re- ador realizar a escrita da história
presentação” estática da natureza, da ciência de modo bem balance-
como postulado pela epistemolo- ado, tanto compreendendo deta-
gia tradicional, mas se forma na lhes teóricos e conceituais da ativi-
“interação” com a natureza e isso dade cientifica (internalismo), por
de modo análogo à dinâmica evo- um lado, quanto tendo uma ampla
lutiva. Enfim, Fleck é impelido a visão dos processos históricos e so-
pensar o que seja ciência a partir ciais que envolvem a atividade ci-
da necessidade de estabelecer uma entífica (externalismo), por outro.
inteligibilidade dos fenômenos da Kuhn, com seu modelo historiográ-
vida que nem sempre se mostram fico, mostrou de modo didático não
de maneira diáfana e com limites apenas como ver os detalhes da ár-
precisos, mas que nem por isso se vore da ciência, mas também como
tornam menos possível. Em outras ter uma visão da floresta em que
palavras, ao se orientar pela com- essa árvore se insere.
plexidade da lógica da vida ou dos Contudo, apesar de toda essa efi-
limites imprecisos entre o normal cácia, o modelo kuhniano enfren-
e o patológico, ele se vê obrigado a tou vários problemas – muitos de-
reorientar sua ideia do que seja a les reconhecidos e retrabalhados
precisão, a objetividade ou o pró- pelo próprio Kuhn – dos quais a
prio desenvolvimento da ciência. literatura crítica se encarregou de
analisar. O próprio fato de Kuhn
Revolução versus evolução na his- reorientar sua visão em direção
toriografia da ciência do modelo biológico já nos mos-
tra uma certa exaustão do modelo
da física – ou pelo menos da física
Além de realizar o registro crí- clássica – no qual ele construiu sua
tico do processo histórico da ci- teoria. Essa reorientação tardia de
ência, uma das tarefas mais im- Kuhn e a própria obra de Fleck nos
portantes da historiografia da ci- sugerem que, enquanto analogia, o
ência é a de constituir modelos modelo biológico parece ser mais
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eficaz na compreensão da histó- toideias” ou “pré-ideias” (FLECK,


ria da ciência11 . A analogia entre [1935] 2010: 64), como ele deno-
a história da ciência e a evolução minou, que estavam presentes em
biológica nos permite compreen- estilos de pensamento anteriores.
der com mais nitidez o complexo Portanto, mudanças radicais sem
de teorias e artefatos organizados nenhum laço com o passado são
pelo homem na produção do co- muito raras. A comunidade cien-
nhecimento, mostrando-nos, en- tífica não dorme pato e acorda co-
tre outras coisas, que não parece elho, ou no dizer de Kuhn: “o que
haver mudanças muito abruptas, era pato no mundo do cientista an-
de um ponto de vista evolutivo, tes da revolução, depois são coe-
no desenvolvimento desse conhe- lhos” (KUHN, [1962] 1970: 111).
cimento. A transição de um es- Para Fleck, este processo de trans-
tilo de pensamento a outro difi- formações das ideias e práticas é
cilmente é uma radical mudança muito mais longo e detalhado do
de paradigma. Para Fleck, existem que pressupôs a mudança de Ges-
diferentes ideias e práticas no in- talt coletiva kuhniana12 .
terior de um estilo de pensamento Assim, a dinâmica de consti-
que são as pontes, isto é, as “pro- tuição do fato científico, embora

11 Ainda que, em função de se pensar esses dois diferentes modelos de historiografia da ciência, a contraposição
aqui estabelecida seja entre Fleck e Kuhn, assinalo que a epistemologia evolucionária tal qual desenvolvida por
autores como Karl Popper (1972), a partir dos anos 1960, também se assentou no modelo biológico. Ainda que haja
semelhanças entre a epistemologia evolucionaria de Popper e a obra de Fleck, há também profundas diferenças.
Na medida em que o propósito da filosofia de Popper não era necessariamente estabelecer um modelo de escrita da
história da ciência essas possíveis contraposições não são aqui desenvolvidas. Infelizmente, a epistemologia evo-
lucionista de Popper e demais autores que se desenvolveu nas últimas décadas do século XX passou ao largo da
obra de Fleck. O pensador polonês não é sequer citado pelos principais autores interessados na relação entre epis-
temologia e evolução. Para citar, além de Popper, apenas mais um dos importantes autores para o desenvolvimento
da epistemologia evolucionária, David Hull apresenta no seu livro de 1988, Science as a process: an evolutionary ac-
count of the social and conceptual development of science, uma proposta de entendimento da ciência como um processo
evolucionário na direção já apontada por Fleck décadas antes. Assim como em Fleck, para Hull, as ciências natu-
rais (biologia especialmente) são instrumentos importantes para nossas considerações filosóficas sobre a própria
ciência. Insatisfeito com o trabalho de Kuhn e a influência neopositivista que se arrastou por décadas no século XX,
Hull pretende exatamente compreender por que ocorrem mudanças conceituais na ciência a partir dessa ideia da
ciência como processo baseada na evolução (HULL, 1988).
12 Kuhn se arrependeu de ter assim se posicionado e procurou esclarecer o equívoco de ter considerado a mu-
dança de Gestalt como um processo coletivo. Segundo ele, “em A estrutura, o argumento repetidamente move-se
à frente e retorna entre generalizações sobre indivíduos e generalizações sobre grupos, aparentemente dão como
certo que o mesmo conceito é aplicável a ambos, e que o grupo é de alguma forma um indivíduo em escala am-
pliada. O exemplo mais óbvio é meu recurso à mudança de Gestalt como pato/coelho. De fato, como outras ex-
periências visuais, mudanças de Gestalt acontecem a indivíduos, e existe ampla evidência de que alguns membros
da comunidade científica tenham tal experiência durante a revolução. Mas, em A Estrutura, a mudança de Gestalt
é repetidamente também usada como um modelo para o que acontece ao grupo, e esse uso agora me parece um
erro. Grupos não têm experiências exceto enquanto todos os seus membros tenham” (Kuhn, 1988: xii-xiii). Ou, “A
transferência de termos como ‘mudança de Gestalt’ de indivíduos para grupos é, contudo, claramente metafórica,
e neste caso a metáfora revela-se prejudicial (. . . ). Comunidades não têm experiências, muito menos mudança de
Gestalt. Enquanto o vocabulário conceitual de uma comunidade muda, seus membros podem sofrer uma mudança
de Gestalt, mas apenas alguns deles mudam e não todos ao mesmo tempo” (Kuhn, 2000: 88, 241-242).

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seja dirigida pelo coletivo do es- rischer Kreis) (FLECK, [1935] 2010:
tilo de pensamento, não acontece 164) no qual não-especialistas uti-
apenas dentro dele, isto é, apenas lizam, em um grau mais simples,
no “tráfego intracoletivo de pen- os conhecimentos de determinada
samento” (intrakollektiver Denkver- área (todos usamos matemática,
kehr) (FLECK, [1935] 2010: 152), mas nem todos somos matemáti-
mas também no tráfego que ocorre cos, por exemplo). Toda essa flexi-
entre diferentes coletivos (interco- bilidade da circulação do conheci-
letivos). Um estilo de pensamento mento compõe a estrutura de co-
nunca é um paradigma fechado. nhecimento, isto é, apenas com a
Ainda que um coletivo de pensa- possiblidade desse tráfego de infor-
mento tenha uma coesão interna mações e práticas é que se organiza
garantida por uma “harmonia das o sistema de referência, determina-
ilusões” (Harmonie der Täuschun- se objetos e práticas produzindo,
gen) (FLECK, [1935] 2010: 69), que enfim, o conhecimento propria-
faz com que seus membros vejam mente. Existe, assim, uma ten-
a mesma Gestalt mantendo assim o dência a haver mais conhecimento
“sistema de opiniões” (Meinungs- onde existe mais circulação in-
systeme), existe uma abertura den- tracoletiva e intercoletiva, isto é,
tro de um estilo de pensamento mais resultados são formados nes-
que permitirá futuras mudanças sas múltiplas combinações.
gradativas desse estilo com muito Além de ter conexões com outros
mais facilidade do que foi apresen- estilos de pensamento, um dado
tada na ideia de paradigma. Por- estilo de pensamento não é em si
tanto, é essa circulação ou tráfego algo hegemônico. Ele aceita certo
de ideias e práticas – não apenas grau de contradições e desacordos,
dentro de um estilo de pensamento isto é, ainda que unido pela “har-
quanto também entre diferentes monia das ilusões” que mantem
estilos de pensamento (tanto do sua coesão, ele também comporta
passado quanto contemporâneos) diferenças e contradições inerentes
– que confere porosidade ao estilo ao seu coletivo de pensamento.
de pensamento. Mais do que ser um físico de
Ainda nesse sentido, segundo formação e estar mais afeito aos
o autor de Gênese e desenvolvi- exemplos fornecidos pela história
mento de um fato científico, o co- da física, Kuhn, ao afirmar a ideia
nhecimento possui um “círculo de revolução na ciência, se filiou a
esotérico” (esotericher Kreis) desti- uma longa corrente de historiado-
nado aos especialistas, mas tam- res “revolucionários” – que, como
bém um “círculo exotérico” (exote- assinalado, se originou em Koyré

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– , para os quais o progresso do como as de Barbara Renzi, segundo


conhecimento se estabelece via re- a qual, em sua guinada biológica “a
voluções. Essa perspectiva foi tão tentativa kuhniana é prejudicada
forte em Kuhn que, mesmo após por sua visão inadequada do pro-
assumir a ideia de “evolução” na gresso biológico e por sua incom-
ciência, não abandonou de todo a preensão do conceito de nicho eco-
ideia de “revolução”, chegando a lógico” (RENZI, 2009: 146). Pri-
sustentar – paradoxalmente para meiro, porque a apropriação de um
a historiografia revolucionária –, conhecimento como metáfora ou
um tipo de “evolução revolucioná- analogia não implica em uma total
ria” baseada na ideia de especia- e completa fidelidade conceitual
ção. Assim, anos mais tarde, para entre os dois campos contrapos-
ele, aquilo que foi caracterizado tos (o veículo e o alvo). Segundo,
como mudança revolucionária em como ponto principal, entendo que
sua obra magna, era na realidade o problema da nova proposta de
uma especiação das novas áreas Kuhn reside no fato de ela ter per-
de conhecimento (KUHN, 2000: manecido apenas como conceitual,
98). E a especiação (evolução) se- isto é, ele não realizou – ou não
ria uma revolução. Portanto, ainda teve tempo de realizar – uma com-
que assuma tardiamente a biologia pleta e detalhada exemplificação
como um referencial epistemoló- de como sua nova formulação con-
gico, Kuhn não abandona a tradi- ceitual deveria ser empregada na
ção que entendeu o avanço do co- história da ciência.
nhecimento como uma revolução. A dificuldade maior que encon-
Então, ao pertencer a essa tradição tramos na nova e inacabada teo-
historiográfica e não estar em con- ria da ciência de Kuhn é o fato de
tato direto com as questões cien- ele não ter fornecido exemplos his-
tíficas que marcaram o desenvol- tóricos suficientemente detalhados
vimento da biologia como ciência, e esclarecedores e, com isso, nos
Kuhn não utilizou a analogia com dar um melhor entendimento da
o modelo biológico em filigrana ou ciência e sua história. Enfim, ainda
em todos os seus possíveis desdo- que ele tenha assumido a analo-
bramentos, isto é, não a utilizou gia entre a ciência e a evolução, tal
para chegar ao pormenor da intri- analogia se deu apenas de modo
cada malha conceitual e prática da incipiente e genérico sem que ele
atividade científica. a tenha utilizado para entrar re-
Ainda que Kuhn não tenha se almente nos mecanismos teóricos
aprofundado na biologia, não en- e práticos da atividade científica.
tendo que seja pertinente críticas Kuhn não usou todas as possibili-

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dades epistemológicas permitidas ou, como quis o paradigma kuhni-


pela analogia entre a história da ci- ano, como o produto final de uma
ência e o modelo biológico, ainda revolução. Em outras palavras, a
que tenha iniciado esse processo e diferença entre esses dois mode-
prometido uma nova teoria da ci- los historiográficos se dá no modo
ência evolucionista. como os objetos científicos em um
Portanto, para além da afirma- dado coletivo de pensamento fo-
ção da analogia entre evolução e ram acessados e constituídos no
ciência comum aos dois – já que sistema de referência que compõe
Kuhn a aceitou progressivamente o correspondente estilo de pensa-
– o que caracteriza a principal di- mento que envolve o social e a na-
ferença entre a historiografia da ci- tureza.
ência baseada no modelo da física, O ponto central da diferença en-
como apresentado por Kuhn em A tre a teoria da ciência de Kuhn e
estrutura das revoluções científicas, a de Fleck reside, assim, no modo
por um lado, e a proposta base- como eles concebem a estrutura-
ada no modelo biológico de Fleck, ção desses objetos, no interior de
por outro, é o modo como o pensa- um sistema de referência (estilo de
dor polonês entende a constituição pensamento ou paradigma). Um
de um objeto científico no contexto partindo de um objeto físico e ou-
das práticas científicas coletivas re- tro, de um “objeto” biológico. A
lacionadas a esse objeto. Em outras diferenciação dos objetos entre ob-
palavras, assumido que as duas jetos físicos ou objetos biológicos
perspectivas aderem à orientação acarreta também a percepção da
evolucionista, a diferença princi- diferença no seu modo de organi-
pal entre elas está, sobretudo, no zação, isto é, Fleck percebeu que a
modo de conceber a constituição e diferença existente entre a organi-
a organização dos objetos em um zação de um sistema de objetos fí-
sistema de referência, seja ele um sicos (clássicos) e a de um sistema
paradigma ou um estilo de pensa- de objetos biológicos nos mostram
mento13 . Esse modo de organiza- diferentes modos de estruturação
ção dos objetos é que nos permite do conhecimento. Existe, com
ver (Gestaltensehen) os objetos em isso, uma diferença no processo
um processo de evolução contínua de “constituição do fato científico”

13 Se não considerarmos essa diferença em profundidade, as ideias de paradigma e de estilo de pensamento se


tornam praticamente idênticas. Muitos trabalhos de história da ciência ou educação científica trocam o conceito de
paradigma por estilo de pensamento, mas atribuindo a esse último uma ideia bem próxima do que sustenta o pri-
meiro. Na realidade, trocam as palavras, mas não assimilam a ideia por traz do conceito de estilo de pensamento.

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estabelecido pelos dois diferentes mos – por meio de nosso coletivo


sistemas interpretativos. Aquilo de pensamento – na nossa organi-
que o mundo é para nós, ou o que zação do sistema dos objetos (sis-
é estabelecido por nosso ver for- tema de referência). A compreen-
mativo (Gestaltsehen) depende do são científica do modo pelo qual
modo como constituímos e organi- um objeto biológico como a sífi-
zamos os objetos e ações que nos lis se constitui nos revela mean-
cercam, que por sua vez, também dros diferentes dos apontados pela
depende da própria possibilidade constituição de um objeto cientí-
de estruturação inerentes a esses fico físico como, por exemplo, o
objetos. Em outras palavras, a dife- objeto terra no sistema heliocên-
rença entre objeto físico e objeto bi- trico15 . Sobretudo nessa compa-
ológico permitiu a Fleck conceber ração entre os dois diferentes sis-
diferentes níveis de organizações temas de organização dos objetos
desses objetos ou, em sua termino- é que reside a diferença nos mo-
logia, “acoplamentos ativos” reali- delos historiográficos de Kuhn e
zados por nós, o que, consequen- Fleck. Para o pensador polonês,
temente, institui um modo singu- não se parte de um objeto prévio –
lar de percepção desses conjuntos um tipo específico de agente etioló-
em sua formação final ou “acopla- gico, por exemplo – para se buscar
mentos passivos”, o que a tradição seu lugar no sistema de referência,
chamou de fatos14 . Portanto, o fato mas, ao contrário, se define, pe-
científico será resultado desse pro- las múltiplas interações do sistema
cesso. de referência, qual seria esse ob-
Foi analisando essa diferença jeto especificado como agente eti-
dada pela interação de objetos bio- ológico. O que causa a sífilis não
lógicos como algo diferente da in- é o que causa o cancro. Contudo,
teração de objetos físicos que Fleck para determinar essa diferença não
nos ensinou que, mais do que des- se chega a sífilis indo direto ao seu
crever um objeto, nós o constituí- agente etiológico (spirochetta pal-

14 Em certo sentido, ao denominar de “acoplamento ativo” o papel do homem na produção do conhecimento em


contraposição ao “acoplamento passivo” do empírico, Fleck retoma o conceito de objetividade em suas origens, pois,
Daston e Galison salientam que, vindo de seus cognatos do latim, com Duns Scotus e Guilherme de Ockham, a pa-
lavra “objetividade”, que surgiu posteriormente dentro deste contexto, possuía sentido contrário ao que atribuímos
hoje. “‘Objetividade’ referia-se às coisas enquanto presentes na consciência, ao passo que ‘subjetividade’ se referia
às coisas nelas mesmas” (DASTON; GALISON, 2007: 29).
15 Certamente, na física moderna a situação do que seja o objeto é algo totalmente diferente. Como salientado,
Fleck foi motivado pela obra de Niels Bohr a ver essa possibilidade de constituição do objeto em um sistema de re-
ferência. Portanto, não se defende aqui uma primazia da biologia sobre a física, mas, de certa forma até o contrário,
isto é, um estímulo da física quântica para se entender como científico o próprio caráter, inicialmente, indetermi-
nado da biologia.

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lida), mas comparando sintomas, Muitas questões práticas e teóricas


comportamentos, terapias, com o das ciências da vida nos conduzem
que causa o cancro, a gonorreia, a essa afirmação da historicidade,
etc. e a própria sífilis. A partir como concluiu Fleck. Muito possi-
desse complexo é que se chega ao velmente, o resultado encontrado
agente etiológico. Para isso, deve- por ele poderia ser obtido por ou-
se analisar todo o sistema de re- tras vias independente das ciências
ferência (pacientes, comportamen- da vida, mas foi a partir dessas
tos, teorias, terapias, etc.) que, ao ciências que ele, especificamente,
fim e ao cabo, conduzirá a consti- chegou às suas conclusões. Con-
tuição de um objeto biológico que tudo, a partir daí, ele foi lido sele-
seja identificado como o agente eti- tivamente, isto é, foi lido em suas
ológico, ainda que este, por si só, considerações históricas e sociais,
não seja a doença. mas sem se levar em consideração
Eventualmente, a compreensão como ele chegou a tais considera-
da história da ciência elaborada ções históricas a partir das ciências
por Fleck, com base no modelo bi- da vida. Essas ciências podem nos
ológico, poderia também ser trans- mostrar meandros que confirmam
posta para o entendimento dos ob- essa historicidade da ciência, mas,
jetos físicos. Portanto, o que se ob- certamente, é possível incorrer em
serva aqui é como o autor de Gênese uma visão positivista analisando
e desenvolvimento de um fato cientí- essa mesma biologia. Assim, en-
fico chegou a seu modelo teórico trar no coração da biologia apenas
e metodológico inspirado na bio- será útil se lá já formos com a tese
logia e consequente posterior uso da historicidade da ciência
historiográfico na história da me- Com efeito, ao contrastar o mo-
dicina. Potencialmente, esse uso delo historiográfico de Fleck ao de
poderia ser expandido para as de- Kuhn, o que devemos perguntar é
mais áreas de conhecimento. o que, na história da sífilis, é nar-
Fleck nos faz compreender que rado de uma forma peculiar a par-
é importante analisar a história da tir da perspectiva do modelo bio-
biologia e das ciências da vida e lógico que não poderia ser narrado
daí extrair posições epistemológi- na perspectiva do modelo da física
cas por diferentes razões. Primei- (clássica) exposto por Kuhn. Foi
ramente, por ser a biologia uma a constatação dessa diferença de
importante ciência, mas também abordagem entre o modelo físico
por ser uma excelente possibili- e o biológico que conduziu Fleck
dade de compreendermos nela a a elaborar uma nova perspectiva
própria historicidade da ciência. historiográfica, isto é, o epicentro

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da sua epistemologia se estabelece conhecido e o objeto a ser conhe-


na questão da “determinação” do cido” (FLECK [1935] 2010: 50),
objeto biológico – a sífilis – a par- isto é, a constituição do objeto se
tir de uma condição de “indeter- faz nessa passagem do indetermi-
minação”. Estabelecer esse per- nado ao determinado. “Tornar-se
curso do indeterminado ao deter- um objeto” é se determinar en-
minado implica na necessidade de quanto tal a partir de um estilo
uma abordagem diferente da ado- de pensamento. “Temos que reco-
tada para a compreensão dos obje- nhecer no pensamento uma certa
tos físicos clássicos. Assim, Fleck, força criadora de objetos, e nos
para atender a essa necessidade, objetos, uma origem a partir do
cria seus diferentes conceitos com pensamento” (FLECK [1935] 2010:
os quais articula – em sua teoria da 164). Esse processo de organização
ciência – a determinação do “inde- de objetos – do indeterminado ao
terminado” objeto sífilis (Em certos determinado – possibilita a consti-
momentos, não apenas não se sabia tuição de nossas teorias e conceitos
o que causava a sífilis, mas também e ele é sempre um processo his-
nem a diferenciavam de outras do- tórico. Para o pensador polonês,
enças venéreas como o cancro ou “as relações históricas e estilísti-
a gonorreia, por exemplo). A par- cas dentro do saber comprovam a
tir do momento em que a ciência existência de uma interação entre
consegue determinar o indetermi- o objeto e o processo do conhe-
nado da lógica da vida – que, como cimento: algo já conhecido influ-
assinalado, era excluído pela ciên- encia a maneira do conhecimento
cia por ser considerado o espaço novo; o processo do conhecimento
da imprecisão – essa possibilidade amplia, renova e refresca o sen-
mostra uma chave epistemológica tido do conhecido” (FLECK [1935]
para a estrutura móvel chamada 2010: 81). Considerando essa va-
conhecimento. riação do conhecido ao não conhe-
Da indeterminação à deter- cido (que se tornará conhecido) no
minação de um objeto há, se- processo da constituição desse ob-
gundo Fleck, um “tornar-se objeto” jeto, para Fleck, a determinação de
(Objekt-Werden) ou uma “concre- um objeto específico configurará,
tização das formações de pensa- ao fim e ao cabo, a constituição do
mento” (FLECK [1935] 2010: 200). próprio conceito que, em última
E este é um processo entendido instância, dá sentido ao objeto. É
“como um estado de educação que desse modo que o conceito de sífi-
repousa na dialética entre o su- lis não é apenas determinado pelo
jeito do conhecimento, o objeto já agente etiológico spirochaeta pal-

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lida, mas pelas múltiplas relações empírico e culturalmente determi-


e objetos no sistema de referência nado, mas partindo de um con-
da doença sífilis. junto amorfo inicial, para depois
Em algum sentido, podemos di- organizá-lo dentro de um sistema
zer que na física, ou pelo menos de referência. Isso é feito não ape-
na física clássica16 , ainda que a nas pelo conjunto dos objetos, mas
perspectiva de organização dos ob- por suas relações epistêmicas e so-
jetos científicos pudesse estabele- ciais que constituem a singulari-
cer diferentes sistemas de referên- dade desse objeto em um estilo de
cias (aristotélico, ptolomaico, co- pensamento específico. Por isso,
pernicano, etc.), tal objeto já es- para Fleck, não nos deparamos
tava constituído de modo mais ou com um fato científico ou mesmo
menos claro e visível. É possí- um objeto, mas o codificamos em
vel, por exemplo, mudar a Ges- um amplo sistema de relações (sis-
talt e entender que a “terra” gira tema de referência) no qual o valor
em torno do “sol” e não o con- singular desse objeto é dado pelo
trário, mas o objeto terra e o ob- conjunto de todas as relações do
jeto sol já estão constituídos, ainda sistema. Por estar envolto nessas
que coubesse diferentes possibili- relações sistêmicas, o fato cientí-
dades de interpretação da organi- fico é “um acontecimento que de-
zação desse sistema de objetos e corre das relações na história do
consequente alteração na sua in- pensamento”. E a partir daí Fleck
terpretação. Para Kuhn, por exem- entende a gênese de um fato cien-
plo, afirmar que a “terra é um pla- tífico da seguinte forma:
neta” antes e depois de Copérnico
acarreta sentidos muito diferentes Assim nasce o fato: pri-
(KUHN, 2000: 94), mas ainda as- meiro um sinal de resistência
sim a organização do sistema está no pensamento inicial caó-
partindo da compreensão comum tico, depois uma certa co-
aos dois sistemas (aristotélico ou erção de pensamento e, fi-
copernicano) de que existe um ob- nalmente, uma forma (Ges-
jeto chamado “terra”. Em Fleck, talt) a ser percebida de ma-
trata-se de constituir de um modo neira imediata. Ele sem-
mais “molecular” o próprio ob- pre é um acontecimento que
jeto, isto é, especificá-lo de modo decorre das relações na his-
tória do pensamento, sem-

16 Como dito, na física moderna com a mecânica quântica, a relatividade e mesmo a termodinâmica – quando a
representação da ciência se torna mais abstrata – , a representação do objeto científico se torna mais abstrata. De
certo modo, plasticamente equivalente aos objetos científicos biológicos.

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pre é resultado de um de- jetos (Gestaltsehen) ou de organizá-


terminado estilo de pensa- los nesse sistema é que determi-
mento. Para todas as ciên- nará a figura (Gestalt) que orienta o
cias, a finalidade é a elabora- estilo de pensamento. A sífilis foi,
ção desse “solo firme dos fa- assim, vista a partir de diferentes
tos”. (FLECK, [1935] 2010: modos, em diferentes perspectivas
144-145) – mística, ética, empírica (metalo-
terapia) – e esses diferentes modos
De forma semelhante a um objeto de articulação foram estabelecendo
biológico, o fato científico nasce, as pré-ideias que conformaram um
evolui e morre. E por trás dessa entendimento do que seria, anos à
compreensão de Fleck se estrutura frente, a sífilis enquanto um fato
seu novo modelo para pensarmos científico.
a história da ciência no detalha-
mento dessa dinâmica de consti- Mutações versus revoluções: a
tuição de um fato científico. E isso evolução de um estilo de pensa-
se dá não apenas no modo como ele mento
nos ensina a ver um objeto (Ges-
taltsehen), mas no modo de “ver Pelo que foi abordado até aqui,
esse objeto” a partir de um nível podemos perceber que a ideia
molecular, isto é, das várias par- de “mutação no estilo de pensa-
tes e processos que irão – do inde- mento” apresentada por Fleck se
terminado ao determinado – com- contrapõe à concepção kuhniana
por esse objeto (é nesse sentido que de “mudança de paradigma”. Tal-
o objeto biológico spirochaeta pal- vez o ponto que mais chama a
lida isoladamente dos outros fato- atenção do historiador da ciência
res não é a sífilis – na realidade, quando está em campo analisando
isoladamente ele nem seria iden- o desenvolvimento histórico da ci-
tificado). O fato científico é, as- ência sejam as aporias impostas
sim, resultado de um longo pro- pela noção de paradigma. Basta
cesso de construção ou “objetiva- olhar para a história para vermos
ção”, isto é, para Fleck, um fato que um paradigma nem sempre
científico como a sífilis nunca é parece ser totalmente incomensu-
algo como encontrar um objeto no rável com seu passado ou mesmo
mundo (no caso, a spirochaeta pal- com os paradigmas rivais. Mudan-
lida), mas estabelecer uma série de ças nem sempre parecem ser tão
relações no sistema de referência revolucionárias quando analisadas
envolvendo objetos, práticas, cos- de perto. Fleck levou isso em con-
tumes, etc. O modo de ver tais ob- sideração ao propor a ideia de mu-
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MUTACÕES NO ESTILO DE PENSAMENTO: LUDWIK FLECK E O MODELO BIOLÓGICO NA
HISTORIOGRAFIA DA CIÊNCIA

tação de um estilo de pensamento objeto, mas do próprio processo de


(FLECK, [1935] 2010: 67), e não “constituição” do objeto.
de uma revolução do paradigma. Enfim, diferentemente da ana-
Essa perspectiva de Fleck parece logia entre epistemologia e física
convencer muito mais ao histori- clássica, ao estabelecer uma ana-
ador quando ele analisa suas pis- logia entre epistemologia e biolo-
tas. Para este historiador, as mu- gia, Fleck confere uma nova dinâ-
danças parecem ser mais graduais, mica aos processos e, consequen-
como mais tarde admitiu o próprio temente, estabelece toda uma nova
Kuhn. rede conceitual que forma sua te-
Entretanto, a grande diferença oria da ciência. Portanto, um dos
entre os dois autores não se estabe- pontos centrais da teoria do conhe-
lece apenas nessa diferença de seus cimento de Fleck é o estabeleci-
macros conceitos de estilo de pen- mento da concepção de conexões
samento e paradigma, mas, sobre- ou acoplamento passivos e ativos,
tudo, como assinalado, no modo no qual compete ao sujeito (sempre
como Fleck organiza as ferramen- um sujeito coletivo), enquanto “co-
tas conceituais e ilustra com mui- nexão ativa”, organizar os diferen-
tos exemplos como as mudanças tes objetos estabelecendo as “cone-
ocorrem de maneira gradual em xões passivas”, ou o que a tradição
um estilo de pensamento. Com epistemológica chamou de fatos.
efeito, na teoria do conhecimento Fleck entendeu que se o conhe-
do pensador polonês, em alterna- cimento for comparado a um orga-
tiva ao modelo kuhniano – que nismo vivo seria muito difícil es-
propõe uma configuração “obje- tabelecer limites muito precisos a
tiva” na construção do fato cientí- cada momento (entre a vida e a
fico, isto é, na justaposição de “ob- morte, entre o normal e o patoló-
jetos” (planetas, elementos quími- gico, etc.), mas ainda assim é possí-
cos, etc.) em sua interação com vel conhecer. E aqui estaria a chave
a comunidade científica que irá para compreendermos a dinâmica
interpretá-lo a partir da Gestalt de própria da produção do conheci-
seu paradigma – , Fleck propõe a mento. Embora seja difícil deter-
gradual constituição dos próprios minar o limite exato entre a vida e
objetos que irão compor os fatos morte de um organismo, sabemos
científicos (Por isso que, para ele, avaliar cada uma das duas diferen-
o que é objetivo e subjetivo está tes situações, isto é, ainda que não
sempre se modificando) (FLECK, saibamos com exatidão os limites
[1935] 2010: 145) no sentido de de um conhecimento, somos capa-
que não se parte diretamente do zes de produzir conhecimento. E

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não apenas sabemos o que é um um bom ferramental teórico e me-


conhecimento, mas também con- todológico para lidar com proble-
seguimos compreender a história mas de história da ciência, encon-
desse conhecimento. A história da trando soluções para as dificulda-
ciência é uma atividade possível. des que a obra kuhniana não con-
seguiu contornar. Onde o para-
Conclusão digma kuhniano encontrou a inco-
mensurabilidade, Fleck salientou
Nesse artigo vimos que, ainda os diversos tráfegos de ideias, prá-
que Fleck tenha sido introduzido ticas e ações entre diferentes esti-
na historiografia da ciência pelas los de pensamentos mostrando a
mãos do autor de A estrutura das dinâmica que se estabelece no sur-
revoluções científicas, a leitura kuh- gimento e desenvolvimento de um
niana não ressaltou a importân- fato científico. Ainda que se es-
cia da biologia para a epistemolo- truture por um tipo de “harmonia
gia de Fleck. A biologia e a física das ilusões” instruindo seus mem-
são importantes referenciais para bros pelo “ver formativo” (Gestalt-
se pensar a epistemologia. Con- sehen), o estilo de pensamento pos-
tudo, houve um predomínio do sui porosidade conectando-se a ou-
referencial da física, em especial, tros estilos do presente e do pas-
com a obra magna de Kuhn. Em- sado. Com isso, Fleck nos ofe-
bora a principal obra de história rece um interessante mecanismo
da ciência de Fleck, publicada em de compreensão do modo como
1935, tenha estruturado sua epis- a ciência se institui e se desen-
temologia a partir do referencial volve nessas inúmeras interações
da biologia, esse aspecto não foi e entre ciência e não ciência. Ainda
ainda não tem sido muito notado. que, para ele, o conhecimento seja
A própria abordagem epistemoló- um ato social, a dinâmica do co-
gica inspirada na biologia foi um nhecimento se assemelha – embora
processo tardio ocorrendo, grada- nunca seja idêntica – aos proces-
tivamente, ao longo do século XX. sos de evolução encontrados na na-
Na medida em que a epistemo- tureza. O conhecimento nasce, se
logia de Fleck, inspirada na bi- desenvolve e, eventualmente, esta-
ologia, tem se tornado mais co- belece uma mutação que permitirá
nhecida, começamos a compreen- o surgimento de um novo conheci-
der que sua obra pode nos oferecer mento.

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MUTACÕES NO ESTILO DE PENSAMENTO: LUDWIK FLECK E O MODELO BIOLÓGICO NA
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ISSN: 2317-9570
Por que o pluralismo interessa à epistemologia?*

[Why does pluralism matter to epistemology?]

Valter Alnis Bezerra**

Resumo: Neste texto faz-se uma reflexão acerca do valor cognitivo


do pluralismo, pensado tanto no âmbito do conhecimento científico
quanto do conhecimento filosófico. Inicialmente, são apresentadas di-
ferentes formas de pluralismo que caracterizam várias dimensões do
conhecimento científico (com destaque para o pluralismo de temas ci-
entíficos, de estilos de pensamento, de teorias, de metodologias, e de
formas de racionalidade). Em seguida, são apresentados os contornos
de um argumento visando estabelecer a importância do pluralismo
como um valor do conhecimento científico, na medida em que, dentro
de uma visão coerencial, o pluralismo seria conducente a uma maior
robustez do conhecimento. Finalmente, procura-se transpor esse ar-
gumento para o âmbito do conhecimento filosófico, e estabelecer o
pluralismo como um valor cuja realização seria desejável também em
filosofia. Para possibilitar essa transposição entre domínios, faz-se ne-
cessário considerar o problema da distinção entre filosofia e ciência
enquanto formas de conhecimento, bem como a suposta ausência de
caráter empírico da filosofia. Procura-se dar conta de certas objeções
de caráter geral à visão de conhecimento proposta, sustentando que
uma realização em alto grau do pluralismo não conduz, necessaria-
mente, nem à estagnação e ao conservadorismo, nem à fragmentação
do conhecimento.
Palavras-chave: Pluralismo. Robustez. Coerência. Valores cognitivos.
Conhecimento filosófico.

* Versão revisada de trabalho apresentado no Encontro “O homem e seus mundos: Perspectivas filosóficas e
científicas — Em torno do percurso acadêmico do Prof. Paulo C. Abrantes”, UnB, 28-30 de julho de 2017. A inves-
tigação aqui apresentada beneficiou-se em parte do Projeto de pesquisa CNPq 455562/2014-8 “Estilos de raciocínio
científico”.
** Departamento de Filosofia - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo.
E-mail: bezerra@usp.br, v.a.bezerra@gmail.com

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ISSN: 2317-9570
VALTER ALNIS BEZERRA

Abstract: In this text a reflection about pluralism as a cognitive value,


both in the domain of scientific knowledge and that of philosophical
knowledge, is attempted. A few distinct forms of pluralism are pre-
sented at the outset that characterize various dimensions of scientific
knowledge, with special attention being paid to pluralism of scien-
tific themes, styles of thinking, theories, methodologies, and forms
of rationality. Afterwards, the outline of an argument is presented
with an aim at establishing the importance of pluralism as a value
for scientific knowledge, insofar as pluralism would, within the scope
of a coherentist view, increase the robustness of knowledge. Finally,
the transposition of the argument is attempted towards the domain
of philosophical knowledge, thus establishing pluralism as a value
whose satisfaction would be desirable in philosophy as well. In or-
der for this transposition to be possible, it is necessary to consider the
problem of the distinction between science and philosophy taken as
forms of knowledge, as well as the latter’s alleged lack of empirical
character. Certain objections of a general nature to the view advanced
here are taken into account, and it is maintained that a realization of
pluralism to a high degree does not lead necessarily to either stagna-
tion and conservatism or to the fragmentation of knowledge.
Keywords: Pluralism. Robustness. Coherence. Cognitive values. Phi-
losophical knowledge.

Introdução Abrantes, 2004; Bailer-Jones,


1999), problemas (cf. Laudan,
Vivemos uma época, em Episte- 2011), e teorias científicas;
mologia — especialmente no que
2. pluralismo dos tipos de atitu-
se refere à sua aplicação à Filosofia
des cognitivas tomadas pelos
da Ciência — que podemos inter-
cientistas (aceitação, endosso,
pretar como marcada por uma ten-
crença, suspensão do juízo, dú-
dência de afastamento em relação
vida, entre outras) (cf. Bezerra,
a vários monismos e por um mo-
2014b).
vimento em direção ao pluralismo
— e isso em três níveis: seja no No segundo plano, que corres-
plano do discurso científico, seja
ponde ao discurso dos filósofos da
no discurso metacientífico, seja no
ciência sobre episódios específicos
discurso metafilosófico. Quanto ao
da ciência — e que diz respeito
primeiro destes, temos: àquilo que os filósofos identificam
em suas leituras das narrativas so-
1. pluralismo dos tipos de uni-
bre a ciência —, temos:
dades epistêmicas declarada-
mente empregadas pelos cien- 1. pluralismo dos valores cogniti-
tistas, como os modelos (cf. vos e sociais que são tomados
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ISSN: 2317-9570
POR QUE O PLURALISMO INTERESSA À EPISTEMOLOGIA?

como caracterizando o conhe- cos da história como P. Burke,


cimento, bem como das estru- P. Veyne, H. White, etc).
turas de valores ou perspecti-
vas de valor (axiologias) (anali- Finalmente, no plano do discurso
sado por Lacey, 2008, 2010); metafilosófico (onde a filosofia fala
sobre si mesma), encontramos:
2. pluralismo de “macroteorias”,
sejam elas p. ex. tradições 1. pluralismo de teorias da ver-
de pesquisa (tal como pensa- dade (cf. Kirkham, 2003, Da-
das por Laudan, 2011), ou pro- vidson, 2002);
gramas de pesquisa (à maneira 2. pluralismo de teorias da justi-
de Lakatos); ficação (o que pode ser ates-
3. pluralismo de estratégias de tado por qualquer bom texto
restrição e seleção (também de epistemologia contemporâ-
analisadas por Lacey); nea);

4. de visões de mundo (às vezes 3. de epistemologias (teorias ge-


já dentro de um campo res- rais do conhecimento);
trito, como uma subdisciplina
4. de imagens filosóficas da ciên-
científica, e em maior medida
cia;
quando se consideram discipli-
nas distintas); 5. pluralismo no que se refere
ao registro, estatuto e preten-
5. de imagens de natureza e ima-
sões do próprio conhecimento
gens de ciência (tal como con-
filosófico (diversas variantes de
cebidas por Abrantes, 2016);
naturalismo, equilíbrio refle-
6. de formas de racionalidade ci- xivo, filosofia da vida comum
entífica; — Porchat, 1975[1994], etc).
7. pluralismo de temas do pensa- É lícito conjecturar que o movi-
mento científico (Holton, 1975, mento para o pluralismo em epis-
1988); temologia não deixa de estar, em
certa medida, em conexão e sinto-
8. de metodologias científicas ou,
nia com um movimento mais am-
mais geralmente, de estraté-
plo, de afastamento do monismo
gias metodológicas (cf. Abran-
e de valorização e reconhecimento
tes, 2014; Laudan, 1981);
do pluralismo, que gradualmente
9. pluralismo de narrativas his- tem se difundido pela sociedade e
toriográficas (tal como defen- pela cultura. Tal movimento vem
dido por historiadores e teóri- colocando de forma crescente uma
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VALTER ALNIS BEZERRA

demanda sobre a mídia, a polí- nas descrições que ela faz de seus
tica, as instituições e o ensino, por objetos” — já delineia um primeiro
uma valorização do pluralismo em eixo ou dimensão em termos do
várias formas: seja ele pluralismo qual se pode escandir e localizar
cultural, ou de formas de vida, o âmbito em que se pode colocar
de formas de ação e representação o tema do pluralismo. Num dos
política, de organização social, de extremos desse eixo, está o campo
identidade de gênero, de saberes e das considerações epistemológicas
formas de conhecimento (além da mais normativas ou “transcenden-
ciência ocidental moderna), etc. tais”: dizem respeito ao estatuto
Tecerei neste texto alguns co- e às condições de possibilidade do
mentários sobre as características conhecimento. Neste caso, os ar-
epistemológicas do pluralismo nos gumentos visam estabelecer o plu-
três planos mencionados acima, ralismo como um traço caracte-
e esboçarei um movimento argu- rístico e intrínseco do conheci-
mentativo visando estabelecer a mento. No outro extremo, situa-
importância do pluralismo, par- se o campo das considerações mais
tindo da ciência e fazendo um des- descritivas, contingentes ou histo-
locamento em direção à filosofia. riográficas: aqui, o pluralismo é
Ao mesmo tempo, dar-se-á um vis- visto como um fenômeno cogni-
lumbre dos desafios que as formas tivo do qual as teorias epistemoló-
de pluralismo colocam para o pen- gicas precisariam dar conta.
samento epistemológico. Em ou- Este não é o único eixo de baliza-
tros termos, o que me proponho a mento ou parametrização da ques-
fazer aqui é uma pequena medita- tão que tenho em mente aqui. O
ção metafilosófica — ainda em es- outro eixo ou dimensão que desejo
tágio de desenvolvimento, e con- considerar é o que distingue aquele
tendo certamente lacunas e omis- pluralismo que é imanente à filo-
sões — a respeito de um valor pre- sofia (um pluralismo das filosofias)
sente no conhecimento filosófico e do pluralismo que caracteriza os
nas descrições que este faz dos ob- objetos sobre os quais a filosofia
jetos que toma para si como obje- se debruça (quão plurais são os ob-
tos de reflexão filosófica (como, por jetos da análise filosófica).
exemplo, a ciência): o valor do plu- Estes dois eixos, como que orto-
ralismo. gonais, podem ser cruzados entre
A própria maneira pela qual aca- si, gerando algo semelhante a um
bei de descrever o escopo das refle- “espaço de fase” conceitual a duas
xões que se seguem — utilizando dimensões no qual podemos pen-
as expressões “um valor presente sar o pluralismo.
na filosofia” e “um valor presente
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ISSN: 2317-9570
POR QUE O PLURALISMO INTERESSA À EPISTEMOLOGIA?

PLURALISMO DIMENSÃO “INTRÍNSECO / EXTRÍNSECO”


(i) Na epistemologia (ii) Nos objetos da episte-
(Aspecto “imanente” ou mologia
”intrínseco”) (“Aspecto extrínseco”)
DIMENSÃO “DES- (a) Tendência ao Pluralismo de: Pluralismo de:
CRITIVO / NOR- “descritivo” Teorias da verdade Teorias
MATIVO” Teorias da justificação Métodos
Concepções historiográfi- Metodologias científicas
cas sobre as narrativas his- Perspectivas de valor
tóricas Programas de pesquisa,
Formas de racionalidade tradições de pesquisa
Concepções de filosofia e Imagens de natureza
metodologias filosóficas Imagens de ciência
Cosmovisões
Estratégias de restrição e
seleção
Temas científicos
(b) Tendência ao (Condições de possibili- (Condições de possibili-
“normativo” dade do conhecimento dade do conhecimento ci-
epistemológico e filosó- entífico, e de outras for-
fico que se refletem no mas de conhecimento, que
pluralismo de concepções se refletem no pluralismo
filosóficas) de construtos e portadores
de conhecimento)

É no extremo mais normativo que Pretendo argumentar aqui, em


se colocará, neste texto, o meu síntese, da seguinte maneira: par-
argumento central acerca do plu- tindo de uma concepção de raci-
ralismo (porém nunca perdendo onalidade científica entendida em
completamente de vista a contin- termos de coerência, considerando
gência e a historicidade da prática o conhecimento como uma rede,
científica). (Note-se que a questão e considerando os fluxos de infor-
da distinção e relação entre os dois mação e de conhecimento ao longo
campos extremos referidos acima dessa rede, sustentaremos que o
— usualmente chamada de “pro- pluralismo reforça a robustez do
blema da distinção normativo ver- conhecimento e tem afinidade com
sus descritivo” — e a questão de de- ela.
terminar se se trata de uma distin-
ção de natureza ou apenas de grau O referencial teórico geral
— já seria, por si só, interessante
como questão metafilosófica. Acre- Pressuponho no decorrer da ar-
dito que não se trata aqui de uma gumentação duas perspectivas fi-
dicotomia nem de uma distinção losóficas, como parte do pano de
de natureza, mas isso seria ques- fundo teórico destas reflexões, e
tão para se discutir em outro mo- será relevante delineá-las aqui.
mento.) Em primeiro lugar, no que se re-
fere à estrutura do conhecimento
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VALTER ALNIS BEZERRA

— incluindo o conhecimento cien- dos ou simplificados) e a simula-


tífico, porém não se limitando ne- ção; e permite analisar uma gama
cessariamente a ele —, penso a es- de relações interteóricas de vários
trutura do conhecimento em ter- tipos.
mos da chamada metateoria estru- O segundo pressuposto de fundo
turalista (cf. p. ex. Moulines, diz respeito à racionalidade cientí-
2010, 2011), na qual teorias com fica. Penso a racionalidade em ter-
conteúdo empírico são entendidas mos de justificação coerencial em
em termos de redes de elementos relação a estruturas de valores (cf.
teóricos. Estes, por sua vez, são Bezerra, 2014b). É crucial assina-
entendidos como classes de mode- lar aqui que a noção de coerência
los (no sentido lógico do termo), é mais rica e multidimensional do
com uma distinção entre dois ní- que a consistência lógica (ou au-
veis de teorização sendo traçada sência de contradição). A consis-
por um critério de teoricidade que tência é certamente um dos fato-
é metodológico em vez de episte- res que contribuem para aumentar
mológico (isto é, não faz referên- o grau de coerência de um sistema
cia à “observabilidade”) e é sensí- — mas não é o único, nem necessa-
vel ao contexto (ou seja, é possível riamente o dominante. Um sistema
que um termo seja, em um sentido de grande escala poderia, em prin-
preciso, teórico em relação a uma cípio, ser coerente em alto grau
teoria T1 e não-teórico em rela- mesmo com a ocorrência de incon-
ção a outra teoria T2). Os elemen- sistências localizadas. (É por isso
tos teóricos são interligados den- que, nas palavras de Otávio Bu-
tro de redes teóricas por relações eno [2010], a inconsistência não re-
ditas de especialização, que não presenta um “inferno epistêmico”.)
são dedutivas. Além de admitir Mais adiante irei retomar este as-
descrição sincrônica, as redes po- pecto.
dem apresentar evolução diacrô- Cabem aqui alguns comentá-
nica, que pode dar-se segundo uma rios adicionais acerca da raciona-
tipologia de modos caracteristica- lidade científica pensada em rela-
mente distintos. Note-se que esta ção a valores. É importante no-
concepção permite dar conta de te- tar que tal concepção de raciona-
orias empíricas de tipo tanto quan- lidade, no que diz respeito às re-
titativo quanto qualitativo; pode lações teorias/valores e metodolo-
igualmente tratar de modos da ati- gias/valores, incorpora uma noção
vidade científica como a modela- instrumental de adequação meios-
gem (no sentido de modelos empí- fins (como já fora proposto por
ricos, aproximados e/ou idealiza- Laudan, 1984). Poder-se-ia objetar

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POR QUE O PLURALISMO INTERESSA À EPISTEMOLOGIA?

que tal tipo de concepção é dema- buições de valor aos objetos) não
siado limitada e, ademais, não te- serão isolados, mas estarão inevita-
ria como excluir do âmbito do ra- velmente inseridos em redes e es-
cional uma possível situação de in- truturas sociais de interação (soci-
dividualismo axiológico. Quando ais, linguísticas, culturais) em vá-
houvesse um predomínio dos inte- rios níveis. Não só a intersub-
resses pessoais de um agente indi- jetividade torna-se possível, como
vidual, ou de um grupo restrito — deve ser vista como um desdobra-
afirma a objeção — a concepção de mento inevitável da constituição
racionalidade instrumental não te- da linguagem, dos significados e
ria recursos para obstar uma ati- do conhecimento. A intersubjetivi-
tude individualista, de promoção dade é, por sua vez, segundo vários
exclusiva dos próprios fins, pos- autores, condição necessária para
sivelmente egoístas, que ameaça- uma ou mais propriedades consi-
ria viciar assim a própria noção deradas características do conheci-
de racionalidade. Contudo, penso mento científico, tais como: obje-
que pode-se elaborar uma resposta tividade; interpretação dos discur-
considerando dois pontos princi- sos (Davidson, 1975[1984]); víncu-
pais. los de teorização (Balzer, Moulines
Em primeiro lugar, os fins le- & Sneed, 2012); circulação de in-
vados em conta devem ser enten- formação (cf. p.ex. Shapin & Schaf-
didos como consistindo em valo- fer, 2005); conversão da informa-
res (ou passíveis de serem escan- ção em conhecimento e cultura; or-
didos em termos de satisfação de ganização social e divisão do tra-
valores). Como tais, desde a pers- balho científico. Em terceiro lu-
pectiva favorecida aqui, eles não gar, cabe não restringir de ante-
são dados a priori, e sim resultan- mão o campo dos valores a serem
tes de processos interativos e ite- considerados no processo do co-
rativos de atribuição de valor aos nhecimento, sendo necessário ad-
objetos pelos agentes, que podem mitir a possibilidade de esteja em
exibir convergência de valorações, ação uma variada gama de tipos
consolidação e formação de con- de valores, ultrapassando o res-
senso. Os valores e sua aplicação trito conjunto dos valores indivi-
não são estáticos; apresentam uma dualistas e egoístas. A esta opera-
dinâmica, e vale lembrar que po- ção interpretativa poderíamos dar
dem exibir tensões mútuas. Em se- o nome de alargamento do hori-
gundo lugar, cabe lembrar que os zonte axiológico. Valores de va-
agentes epistêmicos (que adotam riados tipos operam como condi-
determinados valores e fazem atri- cionantes do conhecimento — va-

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VALTER ALNIS BEZERRA

lores conceituais (p. ex. ferti- ampliado de valores, correr-se-ia o


lidade heurística; poder explica- risco de ter uma descrição muti-
tivo), metodológicos (p. ex. re- lada da atividade científica, da cul-
ducionismo); metafísicos (p. ex. tura científica e da história da ciên-
materialismo — sob alguma de cia — excessivamente simplificada
suas múltiplas acepções —; busca e idealizada. A desconstrução e ex-
de descrições/explicações mecani- plicitação do pano de fundo valo-
cistas; vitalismo), éticos (p. ex. rativo (e dos processos que leva-
respeito à diversidade), sociais (p. ram à constituição desse pano de
ex. planificação; sustentabilidade), fundo) corresponderia a algo como
cosmovisivos (p. ex. compatibili- uma “psicanálise” da historiografia
dade com a metáfora da máquina; das práticas científicas.
harmonia do indivíduo com o cos- A seguir, esboçado esse referen-
mos), valores de florescimento hu- cial geral de estrutura do conhe-
mano (p. ex. defesa de concep- cimento e natureza da racionali-
ções alternativas de “qualidade de dade, percorreremos alguns con-
vida”) — valores esses que são de- textos específicos nos quais surge a
fendidos por diferentes indivíduos questão do pluralismo.
participantes do jogo intersubje-
tivo de valoração. Alguns des-
Pluralismo de estilos de pensa-
ses valores podem estar em ten-
mento e de raciocínio científico
são entre si (isto é, a realização de
um deles em um objeto de valor Primeiramente, mencionemos
pode conduzir a uma diminuição Alistair Crombie (1994) e sua tipo-
da realização de outro valor nesse logia descritiva dos estilos de pen-
mesmo objeto); alguns podem ser samento científico que poderiam
sustentados durante um intervalo ser discernidos na história da ciên-
de tempo de tempo relativamente cia. Crombie considera seis gran-
curto, ao passo que outros podem des estilos principais: o dedutivo,
ter uma “inércia” muito maior; e é o experimental, o hipotético, o ta-
provável que nem todos condicio- xonômico, o evolucionário e o es-
nem a produção de conhecimento tatístico. Essa tipologia básica é
com a mesma intensidade. Os depois incorporada por Chunglin
agentes, seus valores e suas atribui- Kwa (2011) com alguns enriqueci-
ções de valor interagem dinami- mentos. Essa concepção descritiva
camente, e esse processo levará a de estilo ainda carece de uma ca-
uma reconfiguração das estruturas racterização mais precisa e filoso-
de valores, tanto coletivas quanto ficamente satisfatória do que vem
individuais. Na falta do horizonte a ser um estilo, bem como de um
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POR QUE O PLURALISMO INTERESSA À EPISTEMOLOGIA?

princípio de individuação dos es- conceito em termos de suas dimen-


tilos, porém já aponta para o re- sões teórica e empírica, e propõe
conhecimento de que existem di- rastrear uma sucessão de conceitos
ferentes formas de prática cien- que apresentem um fio condutor
tífica e são possíveis diferentes e compartilhem uma genealogia
processos de constituição do co- em termos de uma terceira dimen-
nhecimento científico. Como mo- são, a dimensão temática. Os te-
mentos da busca por uma concep- mas frequentemente possuem uma
ção analítica que possibilite me- natureza dialética, manifestando-
lhor individuação dos estilos, uma se como pares tema-contratema
maior controlabilidade (o termo é (poderíamos mencionar, a título
de Moulines [2011]) das aplicações de exemplo: evolução/involução,
aos casos históricos, e uma funda- mudança/permanência, reducio-
mentação epistemológica mais sa- nismo/holismo, simetria/assimetria,
tisfatória, encontramos as concep- complexidade/simplicidade, etc).
ções filosóficas gerais de estilo ci- De maneira algo análoga ao que
entífico de Ian Hacking (2009a, b) sustentava Crombie com relação
e de Otávio Bueno (primeiramente aos estilos científicos, Holton acre-
com os narrow styles [Bueno, 2012], dita que eles sejam plurais, ainda
e mais tarde com os 5-component que relativamente poucos em nú-
styles [Bueno, 2018]). mero. (Propus uma extensão do
modelo temático de Holton ao âm-
Pluralismo de temas científicos bito da filosofia [Bezerra, 2014a];
Na busca de um modelo de his- ali, tendo em conta a natureza sin-
toriografia da ciência que possi- gular do conhecimento filosófico,
bilitasse mapear as transforma- em vez das dimensões teórica e em-
ções sofridas pelos conceitos ao pírica, as dimensões relevantes se-
longo da história da ciência, Ge- riam a metafórica e a sistemática.)
raldo Holton (1975, 1988) intro-
Pluralismo de metodologias e de
duziu a noção de temas (themata)
racionalidades
no pensamento científico. O uso
dos themata visava, por um lado, Os estudos de história da ciência
preservar uma capacidade de des- (e, mais geralmente, história das
crever a especificidade dos con- ideias científicas e história da cul-
ceitos em seus próprios contex- tura científica) vêm nos apresen-
tos e, ao mesmo tempo, identi- tando a ocorrência, ao longo do
ficar suas continuidades de uma tempo, de uma pluralidade de for-
forma tanto quanto possível não- mas de racionalidade e de meto-
anacrônica. Holton caracteriza um dologias científicas. Larry Laudan
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VALTER ALNIS BEZERRA

(1989), por exemplo, é represen- (Bezerra, 2014b). De uma parte,


tante de uma concepção segundo a sua forma geral — vista quer
a qual não há um núcleo básico de uma perspectiva “macroscó-
invariante da metodologia cientí- pica”, como maximização da ade-
fica. A metodologia científica é quação mútua entre componentes
sincronicamente plural, pois é per- tais como valores, teorias, modelos,
feitamente concebível a existência problemas, metodologias, quer de
de formas variadas de metodolo- uma perspectiva “microscópica”,
gia, formadas por conjuntos dis- como maximização do grau de co-
tintos de imperativos hipotéticos erência de uma rede de atitudes
(o que faz das metodologias con- cognitivas acerca de portadores de
cepções em parte normativas e em conhecimento teóricos e empíri-
parte descritivas acerca dos méto- cos — mantém-se invariante. Ao
dos da ciência) (cf. Laudan, 1981). mesmo tempo, cada racionalidade
A metodologia também é historica- adquire uma configuração particu-
mente mutável, reagindo dinami- lar como resultado das condições
camente seja ao êxito ou fracasso contingentes reinantes em cada pe-
das teorias científicas que ela ajuda ríodo histórico, para cada comu-
a balizar, seja à viabilidade ou in- nidade cognitiva, cada contexto
viabilidade de realizar determina- conceitual, cada axiologia, cada
dos valores cognitivos (cf. Lau- agenda de problemas, cada estilo
dan, 1984). Coloca-se diante da de pensamento. Por exemplo, se
filosofia da ciência, então, o desa- mudam os valores sustentados pela
fio de dar conta dessas várias es- comunidade intelectual — ora o
tratégias metodológicas de investi- controle e intervenção na natureza,
gação — no sentido de descrevê- ora a busca de certezas indubitá-
las, compreendê-las, interpretá-las veis fundantes, ora o falibilismo do
e buscar para elas uma fundamen- conhecimento, ora a admissão de
tação, e mesmo fazer a sua crítica e explicações hipotéticas, ora a ên-
a sua problematização. fase nas relações de analogia, ora
A teoria geral da racionalidade a derrocada do determinismo cau-
entendida globalmente em termos sal, etc — a composição particular
de coerência e valores, como vimos daquilo que é considerado racional
acima, deixa espaço para uma va- irá se alterar concomitantemente, e
riedade quase ilimitada de formas às vezes de maneira profunda.
e configurações específicas de raci-
onalidade. Poderíamos dizer que
se trata de uma concepção “cova- Pluralismo de teorias científicas
riante” de racionalidade científica via subdeterminação empírica
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A situação da subdeterminação controvérsia ainda não estava de-


empírica, logicamente possível e cidida. Podemos ainda evocar as
mesmo frequente no conhecimento diferentes formulações de Pries-
científico, é capturada (e aqui uti- tley e Lavoisier para a química,
lizo as noções da metateoria estru- após a crise das teorias do flo-
turalista) pela noção de um certo gisto (as quais, elas mesmas, exis-
número N de estruturas teóricas tiam em várias formulações dife-
— chamemo-las de Ti — que pos- rentes; e também ainda persisti-
suem diferentes classes de modelos riam, por algum tempo, em versões
potenciais e diferentes termos Ti- reformuladas). Lembremos ainda
teóricos — e, deste modo, diferen- as diferentes formulações do ele-
tes potenciais expressivos —, po- tromagnetismo no século XIX (com
rém as mesmas classes de modelos ou sem ação a distância, com ou
parciais, termos Ti-não-teóricos, e sem meio etéreo, de diferentes ti-
aplicações pretendidas. Na visão pos e constituições, etc). A possi-
standard ou ortodoxa de teorias, bilidade de subdeterminação em-
como se sabe, procurava-se expres- pírica coloca desafios importantes
sar isso falando em diferentes sis- para qualquer imagem filosófica de
temas axiomáticos que possuíam a ciência. Uma das maneiras de dar
mesma classe de consequências de- conta desse desafio é admitir que
dutivas empiricamente testáveis. a mudança teórica e a escolha teó-
Os casos de subdeterminação rica se dão muitas vezes em fun-
empírica na história da ciência ção não apenas de considerações de
são frequentes. Podemos pensar adequação empírica, mas também
nas diferentes mecânicas do sé- em função de considerações pro-
culo XVII — com ou sem a no- priamente conceituais. A subde-
ção de força, com ou sem princí- terminação empírica é o outro lado
pio de conservação, propondo di- de uma moeda que tem inscrito em
ferentes conceitos de inércia, com um dos lados o pluralismo teórico.
diferentes concepções de “medida
do movimento”. Ou podemos nos
Pluralismo como possibilidade
remeter às diferentes teorias so-
de ruptura e invenção teórica,
bre o sistema solar na astronomia
contra a estagnação e o conserva-
dos séculos XVI e XVII — pto-
dorismo
lomaica, copernicana, tychobrahe-
ana, kepleriana; a existência de tra- Com relação ao tipo de plura-
tados como os de Giovanni Bat- lismo acima discutido — o plura-
tista Riccioli, por exemplo, mos- lismo de teorias científicas —, irei
tram que em pleno século XVII a me estender um pouco a seguir,
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pois é a partir daqui que podemos sistência.) Porém, na medida em


ver emergir os contornos daquilo que se contempla uma tipologia
que possa vir a ser um argumento variada de relações entre os dife-
geral em prol do pluralismo. rentes tipos de constituintes do sis-
Poderia parecer — se caracteri- tema, um quadro diferente emerge.
zarmos a racionalidade científica A consistência lógica, como já
em termos de coerência — que a assinalamos, é apenas um dos ti-
coerência representa um obstáculo pos de relações que podem contri-
de princípio à invenção e à reno- buir positivamente para a coerên-
vação teórica. A inovação concei- cia de um sistema. Num sistema de
tual, afinal, aporta novos elemen- estruturas de conhecimento cientí-
tos e tipos de elementos para o fico — por exemplo, uma rede teó-
sistema, e essas “mutações” pode- rica ou hólon teórico, no jargão da
riam comprometer ou enfraquecer metateoria estruturalista; ou ainda
o grau de coerência já alcançado; uma “enciclopédia”, como dizia
assim, um primado da coerência Otto Neurath — além de existi-
pareceria soar como um convite ao rem múltiplos tipos de portadores
conservadorismo. No entanto, não de conhecimento — como teorias,
é isso o que se passa. Poderia problemas, modelos empíricos de
ser esse o quadro, caso a coerência diversos tipos, analogias, metáfo-
fosse pensada exclusivamente em ras, themata conceituais, princípios
termos de consistência dedutiva, e leis quase-analíticas, etc — dão-
no sentido clássico; nesse caso, o se muitas outras relações além da
acréscimo ou modificação de ele- implicação lógica clássica, a saber:
mentos à rede do conhecimento, relações de aproximação, de espe-
em função do trabalho cognitivo cialização de elementos teóricos,
coletivo da comunidade científica, princípios de correspondência, re-
e como resultado das contingências lações de inclusão de subestrutu-
do desenvolvimento histórico, es- ras, de analogia formal, de substi-
taria sempre a colocar o risco de tuição metafórica, de similaridade
se acrescentar algum elemento que de família, de afinidade mútua, de
comprometesse a consistência do reforço probabilístico (cf. Foley,
sistema. (Lembremos que a consis- 1987), de condicionamento recí-
tência lógica não admite graus; de proco metodologia/teoria (cf. Lau-
um ponto de vista lógico, um sis- dan, 1981), etc (que podem ser des-
tema é consistente ou não — ainda critas e mapeadas de forma precisa
que muitas vezes seja preciso tra- na filosofia contemporânea da ci-
balhar com um sistema para o qual ência, pois existem ferramentas in-
não se dispõe de uma prova de con- terpretativas para tal). Note-se, a

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propósito, que isso sugere uma sé- ciplinas avançadas. A perfeita coe-
ria limitação para uma concepção rência nunca ou quase nunca é al-
estritamente dedutiva e proposici- cançada — para não falarmos da
onal de conhecimento. O conheci- perfeita consistência lógica, a qual,
mento científico não é construído considerando a “large-scale struc-
e não está organizado e estrutu- ture” do conhecimento, não passa
rado predominantemente em ter- de uma idealização.
mos dedutivos (embora, como ob- Minha hipótese interpretativa é
servou Neurath [1937/1983], algu- que o pluralismo intrateórico, a in-
mas partes do sistema possam ser, venção teórica e a inovação con-
em um sentido limitado, “axioma- ceitual, com a introdução de no-
tizadas” e até trabalhadas de uma vos elementos, novos tipos de ele-
maneira que lembra a dedutiva). mentos, novas conexões e novos
Em vista do pluralismo de tipos de tipos de conexões leva a sistemas
relações intrateóricas e interteóri- que, se e quando tais relações os
cas que podem vigorar no sistema, fizerem coerentes em grau signifi-
na verdade, parece pouco frutífero cativo, o serão de maneira muito
buscar uma definição fechada de mais robusta. A noção de robus-
coerência — no sentido de espe- tez vem sendo objeto de discus-
cificar condições necessárias e su- são filosófica em tempos recentes
ficientes. Penso que cabe privile- (cf. p. ex. Soler et al [eds],
giar, em vez disso, uma visão à ma- 2012). Considero a robustez aqui
neira de Paul Thagard, segundo a como um valor cognitivo que se
qual há uma grande diversidade de predica de redes ou sistemas de co-
constritores possíveis (positivos e, nhecimento — entendendo-a como
às vezes, negativos), e isso define a capacidade de sustentar uma
diferentes tipos de “problemas de prática cognitiva em andamento,
coerência”. mesmo diante das perturbações
Com a presença dessa rica tipo- resultantes do acréscimo, remo-
logia de relações, adensa-se a tex- ção, modificação ou ressignifica-
tura da rede; várias dessas cone- ção de elementos da rede. Siste-
xões incrementarão o grau de co- mas coerentes de forma mais den-
erência do sistema, ao passo que samente conectada, e mais multi-
a presença de algumas outras terá dimensional, tenderão a ser menos
o efeito de introduzir tensões in- sensíveis a alterações nas condi-
ternas no sistema, diminuindo esse ções de contorno, heuristicamente
grau de coerência. A tensão e o de- mais férteis, com maiores recur-
sequilíbrio são “fatos da vida” na sos para construir uma interpreta-
dinâmica do conhecimento em dis- ção de grande amplitude da reali-

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dade, possibilitando uma inteligi- mento sobre o pluralismo em re-


bilidade racional mais rica. Esta gistro mais geral
característica é algo que as con-
cepções mais clássicas de conhe- Até aqui, apresentamos os con-
cimento (e aí incluo até autores
tornos de um argumento (ainda
como, por exemplo, Lakatos, Pop-
necessitado de maior elaboração)
per e mesmo o Laudan da problem-
no sentido de que um rationale
solving) esforçavam-se para descre-
para o pluralismo existe no caso do
ver — de maneira geralmente uni-
conhecimento científico. E quanto
dimensional, sempre um tanto ar-
à Filosofia? Afinal, no início deste
tificial, e com êxito apenas parcial
trabalho foram mencionados o plu-
— por meio de noções como testa-
ralismo na própria Filosofia e o
bilidade, grau de confirmação, su-
pluralismo também como caracte-
porte indutivo, grau de corrobo-
rística que a Filosofia encontra em
ração, grau de adequação de umaseus objetos.) Contra a possibi-
tradição de pesquisa na solução de
lidade de uma extensão do argu-
problemas, consiliência das indu-
mento ao caso da Filosofia pare-
ções, força heurística, etc. ceria militar uma diferença apa-
Sustento que o caso (mais hipo-
rentemente decisiva entre as duas
tético do que efetivo) da coerência
formas de conhecimento — o co-
mais “trivial”, obtida de forma ho-
nhecimento filosófico não possui-
mogênea — vale dizer, a coerên-ria uma relação com os fatos em-
cia como consistência, como mera
píricos semelhante àquela que pa-
ausência de contradição (possivel-
receria caracterizar a ciência. Em
mente no contexto de uma trama vista disso, teriam o pluralismo e a
de relações de implicação dedutiva
coerência também o condão de eli-
entre elementos tais como enunci-
citar algo como a robustez em Filo-
ados) — é cognitivamente mais po-
sofia? Pode o argumento ser gene-
bre, e não é muito interessante nem
ralizado para outras formas de co-
sugestiva. A coerência mais inte-
nhecimento além do científico?
ressante e robusta, no que diz res-
Aqui, penso que a chave pode
peito ao conhecimento, será pre-
ser buscada notando, em primeiro
cisamente aquela que resultar da
lugar, que os constritores de tipo
disseminação de vínculos e cone-
empírico (solução de problemas
xões de vários tipos diferentes en-
empíricos, poder preditivo, preci-
tre um grande número de elemen-são, existência de aplicações tec-
tos também heterogêneos. nológicas, intervenção e controle
na natureza — aplicação e ade-
E quanto à Filosofia? Um argu- quação empírica, em suma) são ti-
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dos como característicos do conhe- (cf. Laudan, 1983, para um diag-


cimento científico num sentido ti- nóstico). Uma abordagem muito
picamente moderno. Essa valori- mais fecunda à caracterização das
zação integra uma certa imagem formas de conhecimento envolverá
de ciência é contingente e histo- uma análise dos valores próprios
ricamente localizada (ainda que de cada uma. As fronteiras entre
num intervalo temporal extenso). os saberes provavelmente hão de
É certo que desde a filosofia na- ser muito mais fluidas e nebulosas
tural do século XVII encontramos (o que não significa que não haja
uma valorização proeminente do diferenças importantes entre eles,
valor da adequação empírica. A va- seja no sistema de valores cuja rea-
lorização da satisfação dos constri- lização se persegue, seja nas formas
tores empíricos define um arco his- de constituição dos seus objetos).
tórico bastante longo, de pelo me- A fluidez das fronteiras se torna
nos quatro séculos. Porém, como ainda mais patente quando se pro-
se sabe, isso nem sempre foi as- cura entender considerar diferen-
sim. Houve períodos na história tes disciplinas (a ciência, a filoso-
da ciência em que a exigência de fia, e quiçá a arte, a música) como
adequação empírica foi bem menor formas de conhecimento em pé
do que na Modernidade, ou mesmo de igualdade, entendendo-as como
inexistente (cf. p. ex. Kwa, 2011, atividades de solução de proble-
e Crombie, 1994, entre muitos ou- mas. Os problemas aqui são enten-
tros). De todo modo, em certos pe- didos como unidades epistêmicas
ríodos essa exigência foi pensada que, é plausível supor, partilham
de forma bem diferente do que é certas características gerais através
hoje. O que este exemplo ilus- das disciplinas — como, por exem-
tra é que pode-se tomar a coerên- plo, o fato de serem caracterizados
cia, e a atuação de constritores de em termos de conjuntos de cons-
tipo conceitual, como característi- traints (Nickles, 1981 — a extensão
cas centrais, definidoras, da racio- à filosofia não foi feita por ele, mas
nalidade mesmo em modos de conhe- penso que seja possível), e de exi-
cer que não estão estribados em um birem certos padrões de dinâmica
acordo com algo como a “base empí- cognitiva, e o fato de as redes bali-
rica” da ciência. zadas pelos problemas serem orga-
O debate filosófico do século XX nizadas prioritariamente pela coe-
mostrou que a busca de “critérios rência (cf. Rescher, 2001).
de demarcação” nítidos e dicotô- O segundo componente da res-
micos entre ciência e aquilo que posta vem de uma reaproximação
“não é ciência” tem sido infrutífera entre a filosofia e a prática. Aqui

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retomamos uma antiga questão, considerações é que, desde uma


que já foi colocada sob inúmeras perspectiva geral, e em larga es-
formas diferentes — a questão da cala, a atividade filosófica, assim
relação descritivo-normativo, ou como o conhecimento por ela ge-
da relação entre norma e prática, rado, compartilham características
ou da possibilidade de uma filo- epistêmicas com aquela atividade,
sofia da práxis, ou ainda da rela- à primeira vista aparentemente tão
ção entre filosofia da ciência e his- diversa, que é a ciência — o que
tória da ciência. Ainda que a fi- não significa, contudo, perder de
losofia não vá formular enuncia- vista as especificidades de cada
dos testáveis sobre os fenômenos forma de conhecimento. A Filoso-
(ou, melhor dizendo, em termos da fia, por exemplo, possui uma pecu-
metateoria estruturalista, ela não liar capacidade de problematiza-
vá propor que as aplicações inten- ção de seu próprio estatuto e de seu
cionais de elementos teóricos se- objeto, e um apetite pela análise
jam modelos de dados de siste- conceitual, a investigação de fun-
mas físicos, químicos, etc) — ainda damentos e de condições de pos-
que ela não vá fazer, por exem- sibilidade. No entanto, em am-
plo, afirmações sobre os espectros bas as empresas intelectuais pode-
de emissão e absorção das molécu- se identificar traços comuns, como
las de uma amostra específica de a presença de temas organizadores,
reagente na bancada — ela pre- a abordagem de solução de pro-
cisa ter uma relação com os fa- blemas, a existência de genealo-
tos da prática. (Concebo esta re- gias desses problemas, e superpo-
lação em termos de equilíbrio re- sições nos respectivos conjuntos de
flexivo [cf. p. ex. Bezerra, 1999], valores. Entre esses valores, en-
mas isso é algo que não haveria contramos, por exemplo, a busca
tempo de desenvolver aqui.) A re- de sistematicidade, a existência de
aproximação com a prática é, afi- uma dimensão interpretativa, a re-
nal, uma das mensagens do convite lação com a prática e com a reali-
a uma “revalorização filosófica da dade (segundo modos diferentes).
vida comum” propugnada pelo ne- Isso, vale salientar, não nos com-
opirronismo de Oswaldo Porchat promete automática e necessaria-
(1975[1994]) e, mais recentemente, mente com um naturalismo de tipo
da “virada para a prática” (prac- radical (algo como uma “cientifici-
tice turn) defendida por Lena Solér, zação” da filosofia).
Hasok Chang e outros (cf. Soler et Isso posto, supondo essa apro-
al [eds], 2014). ximação entre redes, estruturas
O que desejo sugerir com essas conceituais e unidades epistêmi-

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cas científicas, de um lado, e re- gico, para a robustez desses siste-


des, estruturas conceituais e uni- mas. Ao propor a coerência como
dades epistêmicas filosóficas, por mecanismo de justificação e como
outro, ganha plausibilidade o gesto campo de forças fundamental or-
de projetar o argumento em prol ganizador da racionalidade, e o
do pluralismo do âmbito da ci- pluralismo como um valor inte-
ência para o âmbito da filoso- lectual proeminente, estamos di-
fia. Assim, sistemas concei- zendo também que a unificação
tuais/simbólicos, hermenêuticos, — quando alcançada em alguma
fundacionais e de práticas, perten- medida — encontra sua maior e
centes à Filosofia, organizados pela melhor expressão em um contexto
coerência, tenderão a ser mais ro- plural. Encontrar um quadro co-
bustos, no sentido de serem mais mum para unificar o diferente, o
capazes de sustentar uma prática dessemelhante, é mais fértil e su-
filosófica de solução de problemas gestivo do que unificar o igual, o
mesmo em face de perturbações semelhante. A imagem de conhe-
do equilíbrio resultantes do acrés- cimento resultante não é de todo
cimo, remoção, refinamento, mo- estranha àquela proposta por Otto
dificação ou ressignificação de ele- Neurath (1935)[2002] para a ciên-
mentos da rede. cia. Neurath, com os seus concei-
tos de “aglomerados” e “enciclo-
pédias”, dissolveu a exigência de
Considerações finais
que o sistema do conhecimento te-
É lícito levantar aqui uma derra- nha contornos e textura nítidos, ao
deira questão. Estará a defesa do menos no mesmo sentido da con-
pluralismo aqui apresentada em cepção axiomática; em todo caso,
contradição com a busca por um serão bem menos nítidos do que
ideal de unificação teórica ou de a imagem axiomático-dedutiva po-
unidade sistemática do conheci- deria fazer crer; e chegou a afir-
mento? Em outras palavras: será mar que, se por um lado pode
o pluralismo conducente, inevita- haver situações em que a coerên-
velmente, à fragmentação? A res- cia diminua em uma parte do sis-
posta é negativa. No quadro que tema, ela pode também aumen-
esbocei aqui, o pluralismo é uma tar em outra parte. Em conclu-
característica que contribui, em úl- são, olhando tanto para a Filosofia
tima análise, no plano epistemo- quanto para a Ciência, procurou-
lógico, para o fortalecimento da se aqui argumentar no sentido de
coerência dos sistemas de conhe- que pluralismo e coerência levam
cimento; e, no plano metodoló- a redes que podem estar em cons-

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tante fluxo e reconfiguração, mas texto que se dá a dinâmica viva dos


com maior robustez e fecundidade, problemas e dos sistemas filosófi-
afastando-se dos sistemas ossifica- cos e científicos.
dos e do dogmatismo. É nesse con-

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ISSN: 2317-9570
Sistemas de Herança: As Múltiplas Dimensões da
Evolução
[Inheritance Systems: The Multiple Dimensions of Evolution]

Rosana Tidon*
Resumo:A teoria evolutiva unifica as Ciências Biológicas e tem sido
também aplicada em diversos setores das Ciências Exatas e Huma-
nas. Originalmente proposta por Darwin como “descendência com
modificação”, ela pressupõe a existência de variação herdável que é
transmitida de forma desigual para a geração seguinte. No século
XX, entretanto, essa teoria adquiriu um viés fortemente genético: a
evolução biológica passou a ser compreendida como um processo
que modifica a composição dos genes de uma população no decorrer
de gerações. Nasce aqui o determinismo genético, o qual inspirou
ideias sobre sociobiologia e genes egoístas, dentre outras. Nas úl-
timas décadas, diversos evolucionistas têm enfatizado que, além
da dimensão genética, há outros sistemas de herança que também
podem promover a descendência com modificação. Neste artigo serão
apresentados os sistemas de herança biológica e cultural, atualmente
reconhecidos pelos biólogos evolucionistas, e que têm sido explorados
e divulgados pelo Prof. Paulo Abrantes como importantes fontes de
variação associadas à evolução humana.
Palavras-chave: Teoria Moderna da Evolução, Síntese Evolutiva
Estendida, Determinismo Genético, Teoria da Dupla Herança
Abstract: Evolutionary theory unifies Biological Sciences and has
also been applied in several areas of Exact and Human Sciences.
Originally proposed by Darwin as "descent with modification,"it
presupposes the existence of inheritable variation that is transmitted
unequally to the next generation. In the twentieth century, however,
this theory took on a strongly genetic bias: biological evolution came
to be understood as a process that modifies the composition of a po-
pulation’s genetic pool throughout successive generations. Here arises
the genetic determinism, which inspired ideas about sociobiology and
selfish genes, among others. In the last decades, several evolutionists
have emphasized that, in addition to the genetic dimension, there
are other systems of inheritance that can also promote evolutionary
change. Here I present the biological and cultural heritage systems
currently recognized by evolutionary biologists, which have been
explored and disseminated by Paulo Abrantes as essential sources of
variation associated with human evolution.
Key words: Dual Inheritance Theory, Genetic Determinism, Exten-
ded Evolutionary Synthesis, Modern Theory of Evolution.

* Professora Titular do Instituto de Ciências Biológicas, Universidade de Brasília. E-mail: rotidon@unb.br

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.6, n.1, jul. 2018, p. 209-220 209
ISSN: 2317-9570
ROSANA TIDON

A Teoria Evolutiva nos séculos rias, como as sementes de ervilhas


XIX e XX que são verdes ou amarelas, lisas
A teoria evolutiva popularizada ou rugosas, sem estados interme-
na obra A Origem das Espécies diários entre esses extremos, e que
(DARWIN, 1859) revolucionou as a mudança evolutiva ocorria aos
Ciências Biológicas. A ideia de saltos, mediante macromutações.
que diferentes espécies evoluíram Afinal, pensavam, se as caracte-
a partir de ancestrais comuns, pelo rísticas dos organismos são herda-
processo de seleção natural, con- das como unidades discretas, en-
trasta fortemente com a crença de tão a evolução ao longo do tempo
que cada uma surgiu independen- não pode ser gradual. Por fim, en-
temente por criação divina. A evo- quanto os biometristas defendiam
lução das espécies passou a ser re- que a variação populacional re-
presentada como ramificações da sulta da interação entre a herança
árvore da vida e a ser explicada por biológica e o ambiente, os mende-
mecanismos naturais. Essa mu- lianos entendiam que as caracterís-
dança de paradigma, por sua vez, ticas individuais eram determina-
inspirou diversas linhas de pes- das por fatores herdáveis (posteri-
quisa. ormente chamados de genes). Com
No início do século XX, com a morte prematura de Weldon, em
a redescoberta das leis de Men- 1906, a visão mendeliana prevale-
del (publicadas originalmente em ceu (RADICK, 2016).
1965), se estabeleceu uma impor- No período compreendido entre
tante controvérsia entre duas li- 1918 e 1950, uma nova geração de
nhas de investigação científica. Por investigadores, dotados de robusto
um lado, os biometristas regis- treinamento matemático e estatís-
travam que muitas características, tico, percebeu a possibilidade de
tais como o peso, a altura e a cor da conciliar a genética mendeliana,
pele, variam de maneira contínua incluindo as mutações, com a va-
e quantitativa entre indivíduos da riação contínua observada pelos
mesma população. Haveria, por- biometristas em caracteres quan-
tanto, farta variação com poten- titativos (MAYR, 1982). Ronald
cial de responder à seleção natural. Fisher, John B.S. Haldane e Sewall
Biometristas, portanto, defendiam Wright, dentre outros, trataram os
que a mudança evolutiva é gra- genes mendelianos como entida-
dual e conduzida por seleção natu- des matemáticas, e a evolução pas-
ral. Os seguidores de Mendel, por sou a ser entendida como a mu-
outro lado, registravam variações dança na composição genética das
descontínuas e muitas vezes biná- populações ao longo das gerações
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ISSN: 2317-9570
SISTEMAS DE HERANCA: AS MÚLTIPLAS DIMENSÕES DA EVOLUCÃO

(FISHER, 1918, 1930; HALDANE, teóricos para capturar o comporta-


1932; WRIGHT, 1932). Essa é a mento de animais sociais, particu-
base da Teoria Moderna da Evolu- larmente os insetos. Diversos ci-
ção (HUXLEY, 1942), que se sus- entistas consideram que o livro So-
tenta sobre pilares genéticos e se ciobiology, publicado por Edward
conecta com diversas outras áreas Wilson em 1975, é o marco que
das Ciências Biológicas, tais como estabeleceu essa área de investiga-
a Paleontologia (SIMPSON, 1944), ção como uma disciplina (LOSOS,
a Zoologia (MAYR, 1942) e a Botâ- 2017). Os sociobiólogos atribuem
nica (STEBBINS, 1950). bases genéticas robustas ao com-
O estabelecimento da Teoria Mo- portamento animal, por entende-
derna, também conhecida como rem que em última análise a se-
Síntese Moderna ou Teoria Sinté- leção atua sobre os genes que en-
tica, foi um dos mais importan- volvidos com diferentes tipos de
tes eventos da Biologia Evolutiva condutas perante o ambiente. Foi
do século XX (LOSOS, 2017). A nessa época que se popularizou a
descendência com modificação de metáfora de que os genes mantêm
Darwin passou a ser estudada me- a cultura sob rédea curta, repre-
diante modelos preditivos teóricos sentando a ideia de que a cultura
das áreas de genética quantitativa é o reflexo de um sistema genético
e genética de populações. As déca- que a controla. Por fim, a publi-
das que se seguiram, contudo, fo- cação do clássico The Selfish Gene
ram marcadas por avanços tecno- (DAWKINS, 1976) contribuiu para
lógicos e intelectuais que, se por defender a tese de que caracterís-
um lado criaram expectativas, por ticas complexas, como o comporta-
outro proporcionaram dados que mento, são fortemente determina-
nem sempre suportam as predições das por genes. Se estabelece aqui
da Teoria Moderna. o genocentrismo, ou determinismo
A evolução do comportamento genético.
animal, incluindo o humano, tem No cenário genocêntrico do final
intrigado diversas gerações de evo- do século XX, o sequenciamento
lucionistas. O próprio Darwin dis- do genoma humano gerou uma
cutiu nossos sentimentos sociais e enorme expectativa tanto em cien-
raciocínio sob a perspectiva evo- tistas como na população em ge-
lutiva, na obra The Expression of ral. Muitos pensaram que o conhe-
Emotion in Man and Animals, pu- cimento da sequência dos nucleotí-
blicada em 1872. Foi a partir da deos que compõem nosso DNA re-
década de 1960, contudo, que fo- velaria não só a essência, mas tam-
ram concebidos diversos modelos bém muitos detalhes do ser hu-

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ISSN: 2317-9570
ROSANA TIDON

mano. O renomado professor Har- tal toxins, sunlight, and so


vey F. Lodish (1995, p. 1609), por forth. The output will be
exemplo, quando entrevistado pela a color movie in which the
revista Science, disse o seguinte so- embryo develops into a fe-
bre sua visão de futuro: tus, is born, and then grows
By using techniques invol- into an adult, explicitly de-
ving in vitro fertilization, picting body size and shape
it is already possible to re- and hair, skin, and eye co-
move one cell from the de- lor. Eventually the DNA se-
veloping embryo and cha- quence base will be expanded
racterize any desired region to cover genes important for
of DNA. Genetic screening traits such as speech and mu-
of embryos, before implanta- sical ability; the mother will
tion, may soon become rou- be able to hear the embryoas
tine. It will be possible, an adult speak or sing.
by sequencing important re-
gions of the mother’s DNA, Já se passaram mais de duas déca-
to infer important properties das desde a publicação da predi-
of the egg from which the ção acima, e ela ainda não se con-
person develops. This assu- cretizou. Na verdade, o conheci-
mes that predictions of pro- mento produzido nesse período re-
tein structure and function velou que a predição de caracterís-
will be accurate enough so ticas biológicas complexas é muito
that one can deduce, auto- mais difícil do que se imaginava.
matically, the relevant pro- Isso acontece porque os genes não
perties of many important são fatores independentes, como
proteins, as well as the re- assume a teoria mendeliana, mas
gulation of their expression se relacionam uns com os outros e
(for example, how much will também com o ambiente. Em um
be made at a particular stage mesmo indivíduo, a expressão de
in development in a par- genes isolados, ou de conjuntos de-
ticular tissue or cell type) les, pode ocorrem ou não em fun-
from the sequence of genomic ção do tipo de ambiente onde ele
DNA alone. All of this in- se desenvolve. Nesse contexto será
formation will be transferred muito difícil descrever um indiví-
to a supercomputer, together duo com precisão, com base apenas
with information about the no seu DNA. É necessário conhecer
environment including li- também diversos aspectos do am-
kely nutrition, environmen- biente onde ele se desenvolveu, tais
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SISTEMAS DE HERANCA: AS MÚLTIPLAS DIMENSÕES DA EVOLUCÃO

como a qualidade da nutrição ob- papel do conflito e da cooperação,


tida, as interações com outros indi- e a existência de processos evolu-
víduos da comunidade, e se fo sub- tivos assentados em sistemas não-
metido a estresses climáticos. genéticos de herança (ABRANTES
A complexidade do comporta- 2011ab, 2012, 2013 ab, 2014 abc;
mento humano tem chamado a ALMEIDA e ABRANTES, 2012).
atenção não só da Biologia, mas Uma alternativa a assumir que
também da Psicologia, da Sociolo- a evolução do comportamento so-
gia, da Antropologia e da Filoso- cial se baseia exclusivamente no
fia, dentre outras áreas. Na seção sistema de herança genético, é con-
seguinte, serão discutidas algumas siderar que a herança cultural tam-
das reflexões de Paulo Abrantes so- bém desempenha um papel impor-
bre explicações biológicas para a tante nesse processo. De acordo
evolução da cooperação, e sobre a com a perspectiva adotada por Ri-
Teoria da Dupla Herança. cherson e Boyd (2005), a cultura
evolui de forma análoga à evolução
genética: determinadas variantes
Paulo Abrantes e as Ciências Bio-
culturais se disseminam, enquanto
lógicas
outras diminuem sua frequência
Ao longo de sua trajetória aca- na população. Alguns mecanis-
dêmica, Abrantes contribuiu para mos evolutivos são análogos nos
o intercâmbio entre filósofos e bió- dois sistemas de herança: novas
logos (ABRANTES, 1998, 2009, variantes surgem por mutação, es-
2014a, entre outros). No domí- tão sujeitas à seleção natural, e
nio da evolução humana, ele ar- também a forças aleatórias como
gumenta que investigações empí- a deriva genética. Outros meca-
ricas devem ser integradas a ou- nismos, como a transmissão hori-
tras abordagens, tais como análises zontal, parecem ser predominan-
conceituais e simulações, pois a as- temente culturais. Nesse sentido,
sociação entre diferentes métodos a perspectiva da Teoria da Dupla
pode revelar cenários mais plau- Herança para explicar o compor-
síveis acerca de como nossa espé- tamento humano é fundamental-
cie evoluiu em suas diversas fases. mente distinta da adotada pela so-
No presente texto, são focalizados ciobiologia. Nesta última, a cul-
principalmente artigos publicados tura é interpretada como o fruto
entre 2011 e 2014, quando Abran- de uma psicologia que evoluiu ex-
tes explora conexões entre natu- clusivamente com base em uma he-
reza e cultura, principalmente a rança genética clássica. A aborda-
evolução da mente normativa, o gem da dupla herança, por outro

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ROSANA TIDON

lado, reconhece que a cultura está nos, juntamente com seus pré-
sob uma rédea, mas que o cachorro requisitos cognitivos, em um cená-
no fim da coleira é grande, esperto rio mais amplo que contempla as
e independente. Assim, em uma demais transições rumo à nossa in-
caminhada, é difícil dizer quem dividualidade. Com base em con-
está levando quem (RICHERSON tribuições de antropólogos (SOL-
e BOYD, 2005, p. 195). TIS et al., 1995; IRONS, 2009), eles
Ao examinar a evolução hu- partiram da premissa de que dife-
mana sob diferentes perspectivas, rentes grupos culturais geralmente
Abrantes analisou criticamente a vivenciam conflitos que, por sua
dicotomia entre natureza e cul- vez, conduzem à competição entre
tura, bem como possíveis formas esses grupos. Os autores defendem
de superá-la (ABRANTES e AL- a tese de que nesse cenário, de va-
MEIDA, 2011; ABRANTES 2012, riação cultural intergrupal e com-
2014a). Em consonância com os petição, foram selecionados indiví-
princípios da Biologia, ele consi- duos que eram altruístas com ou-
dera que compartilhamos caracte- tros membros do próprio grupo,
rísticas comportamentais com ou- mas agressivos com os de outras
tros hominíneos, devido a nossa comunidades.
ancestralidade comum, e sugere Essa avaliação o levou a concluir
buscarmos em nossa ancestrali- que a cultura provavelmente de-
dade características que teriam sempenhou um papel fundamen-
sido precursoras, em alguma me- tal na conformação da nossa linha-
dida, das que nos são próprias gem, pois contribuiu para susten-
(ABRANTES, 2012ab). Dentre es- tar o comportamento cooperativo
sas características, ele se interes- em grandes grupos (ABRANTES,
sou particularmente pelos tipos de 2014c; ALMEIDA e ABRANTES,
mente que evoluíram na linhagem 2012). As contribuições de Paulo
hominínea e/ou em linhagens an- Abrantes, portanto, apoiam a Teo-
cestrais (ABRANTES, 2014b). Adi- ria da Dupla Herança ao defender
cionalmente, em sintonia com a que, a partir de um certo ponto da
Antropologia, ele investigou ca- evolução na linhagem hominínea,
racterísticas culturais que são pró- a cultura se tornou um sistema de
prias dos humanos e se sobrepõem herança que atua paralelamente e
à nossa animalidade (ABRANTES, em conexão com a herança gené-
2013b). tica. No contexto desta teoria, a
Nesse contexto, Almeida e cultura é definida como informa-
Abrantes (2012) incorporaram a ções que os indivíduos adquirem
cooperação e o conflito huma- de outros membros da sua espécie,

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SISTEMAS DE HERANCA: AS MÚLTIPLAS DIMENSÕES DA EVOLUCÃO

mediante aprendizagem, imitação se expandir a teoria moderna, de


ou outras formas de transmissão forma a agregar as contribuições
social, as quais podem alterar o das últimas décadas (CARROLL
comportamento dos próprios indi- RL, 2000; KUTSCHERA e NIKLAS,
víduos. 2004; MÜLLER 2007; PIGLIUCCI
2007; ROSE e OAKLEY 2007; CAR-
ROLL SB, 2008). Essa expansão,
A Teoria Evolutiva do século XXI:
que tem sido chamada de Síntese
expansão e integração com outras
Evolutiva Estendida (WHITFIELD
áreas?
2008; PUGLIUCCI e MULLER,
Nas últimas décadas, as Ciências 2010; LALAND 2018), resulta de
Biológicas registraram significati- linhas de pesquisa amplas e mul-
vos avanços conceituais e metodo- tifacetadas e, segundo seus propo-
lógicos, particularmente nas áreas nentes, está em andamento.
de Genética, Ecologia, Microbio- A Teoria Moderna da Evolução
logia, Biologia Molecular, Biolo- demorou mais que uma década
gia do Desenvolvimento, e Com- para ser consolidada, e a síntese
portamento Animal. Da mesma atual deve demorar mais ainda
forma, diversas disciplinas das Ci- porque contempla uma enorme
ências Humanas se expandiram e quantidade de dados proceden-
reconheceram o Sistema de He- tes de diversas disciplinas. Em
rança Cultural como um impor- julho de 2008, entretanto, ocor-
tante componente da evolução hu- reu um evento que foi considerado
mana. Apesar disso, o arcabouço um marco na história da Biologia
da Teoria Moderna da Evolução Evolutiva (PENNISI, 2008). Nessa
se manteve praticamente inalte- ocasião, um grupo de 16 biólogos
rado. O fato de que conceitos e evolucionistas e filósofos da ciên-
dados mais recentes não se en- cia se reuniram no Instituto Kon-
caixam bem no escopo original rad Lorenz, localizado em Alten-
dessa teoria, entretanto, tem pro- berg, na Áustria, para discutir per-
piciado fervorosos debates científi- tinência de se expandir a Teoria
cos e questionado vários de seus Moderna. Durante três, dias eles
aspectos (veja, por exemplo, JA- discutiram informações empíricas
BLONKA e LAMB, 1995; SCH- e teóricas de diferentes áreas do
LICHTING e PIGLIUCCI, 1998; conhecimento, identificaram mu-
GOULD, 2002; ODLING-SMEE danças conceituais em áreas tra-
et al., 2003; WEST-EBERHARD, dicionais da Biologia Evolutiva,
2003). Como consequência, tem como a Genética Quantitativa, bem
sido aventada a pertinência de como a emergência de áreas intei-

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ROSANA TIDON

ramente novas, como a Genômica e mente aos ambientes, tendo em


a EvoDevo. As contribuições desse vista que os constroem a partir de
encontro, denominado “Altenberg componentes extraídos do mundo
16” foram reunidas no livro edi- exterior. A Teoria da Construção
tado por Maximo Pigliucci e Gerd de Nicho (ODLING-SMEE et al.,
Müller (2010), intitulado Evolu- 2003) expandiu essa ideia, forma-
tion – The Extended Synthesis. lizando que os organismos modi-
Dentre as discussões promovi- ficam o ambiente a cada geração,
das no encontro de Altenberg, fo- o que altera não só as pressões se-
ram abordados e reconhecidos sis- letivas que atuam sobre o próprio
temas hereditários que não inte- organismo que promoveu a modi-
gram a estrutura da Teoria Mo- ficação, mas também sobre outros
derna de 1940. Eva Jablonka e Ma- elementos da comunidade. Trata-
rion Lamb abordaram a herança se, portanto, de uma via de mão
epigenética transgeracional, John dupla que não está presente na Te-
Odling-Smee a Construção de Ni- oria Moderna da Evolução. A cons-
cho, Chrisantha Fernando, junta- trução de nicho está por toda parte.
mente com Eörs Szathmáry, esten- Dentre os exemplos mais conspí-
deram o princípio replicador para cuos, vale ressaltar as barreiras
a evolução neuronal, cérebro e lin- construídas por castores, os ninhos
guagem, e David Sloan Wilson ex- construídos por diversos animais
pandiu o conceito de seleção natu- e, evidentemente, as alterações que
ral como um mecanismo que atua nossa espécie promove no planeta.
em vários níveis, não apenas no ní- A Teoria da Construção de Ni-
vel genético. Essas contribuições cho reconhece que, ao longo da
viabilizam a integração da Biologia evolução humana, um sistema de
Evolutiva com diversas outras dis- herança cultural transmitiu conhe-
ciplinas, e incorporam a herança cimentos e bens materiais. Ao con-
cultural como um importante com- trário da herança genética (verti-
ponente da evolução humana. cal, ao longo das gerações), con-
A ideia de que animais modifi- tudo, esse sistema também dis-
cam ambientes foi explicitada for- semina informações horizontal-
malmente em meados do século mente, inclusive entre indivíduos
XX (WADDINGTON, 1959), e pos- não aparentados. Nesse con-
teriormente aprofundada e defen- texto, ele fornece os mecanismos
dida pelo renomado biólogo evolu- que sustentam duas das dimen-
cionista Richard Lewontin (1983). sões (análogas aos sistemas de he-
Este último argumentou que os or- rança aqui explorados) apresenta-
ganismos não se ajustam passiva- das na clássica obra de Jablonka e

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SISTEMAS DE HERANCA: AS MÚLTIPLAS DIMENSÕES DA EVOLUCÃO

Lamb (2005), intitulada Evolução namente convencido disso, e


em Quatro Dimensões: a dimen- ainda é cedo para avaliar até
são comportamental e a simbó- que ponto irão essas revi-
lica. Juntas, essas duas dimensões sões. (...). Tudo indica, con-
abrangem a herança das organiza- tudo, que um maior inter-
ções sociais, das redes de comuni- câmbio entre a biologia evo-
cação, das tradições comportamen- lutiva e as ciências sociais
tais nos animais, e do legado cultu- levará a modificações, mais
ral em humanos. Por fim, os siste- ou menos profundas, nos es-
mas de herança interagem uns com quemas teóricos que hoje go-
os outros, como observado na evo- zam de consenso em cada um
lução da tolerância a lactose (sis- desses campos. Em particu-
tema genético) em povos com tra- lar, dicotomias como a de na-
dições agropastoris (sistema cultu- tureza/cultura serão deixa-
ral). das para trás, como simples
Os biólogos evolutivos que ad- contingências na história dos
mitem diferentes sistemas de he- nossos esforços para compre-
rança salientam que a integração ender o humano (ABRAN-
entre eles modifica a dinâmica TES, 2014, p. 21).
na teoria evolutiva e facilita sua Em suma, vivemos um período
conexão com outras disciplinas. muito especial na Biologia Evolu-
Nesse cenário, as Ciências Bioló- tiva, com desafios que só serão
gicas se aproximam das Huma- superados mediante abordagens
nas, e essa interação fornece sub- multidisciplinares. A compreen-
sídios para um melhor entendi- são da evolução humana, particu-
mento da evolução humana. O filó- larmente, só será possível se agre-
sofo Paulo Abrantes sempre defen- garmos as múltiplas e complexas
deu essa aproximação entre áreas, vertentes que caracterizam o ser
e ao longo da carreira contribuiu humano. Assim, é claramente de-
para concretizá-la: sejável que as interfaces entre áreas
continuem a ser exploradas por es-
Para fazer face à complexi- tudiosos e profissionais com dife-
dade dos processos de desen- rentes formações.
volvimento e de evolução no
Agradecimentos
caso humano, uma revisão
profunda da própria teoria Agradeço os colegas M. M. Brígido
sintética da evolução pode e F. Horst pelas críticas e sugestões
ser necessária, como Ingold em versões anteriores do manus-
pleiteia. Eu não estou ple- crito, e ao CNPq pela Bolsa-PQ re-
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ISSN: 2317-9570
Una Biología, Muchas Biologías: Estamos frente a un
Proceso de Fragmentación en la Biología? *
[Uma Biologia, muitas Biologias: Estamos diante de um Processo de
Fragmentação na Biologia?]

Guillermo Folguera** y Leo Bloise ***

Resumen: Las ciencias de la vida se encuentran hace varias décadas


en un acelerado proceso de proliferación y expansión de campos del
conocimiento y de una hiperespecialización acentuada. Ante este es-
cenario, es adecuado preguntarse respecto al estado actual de la Bio-
logía en lo que refiere a una posible fragmentación y pérdida de la
unidad de índole epistemológica, ontológica, metodológica e, incluso,
de racionalidades involucradas. En este contexto, el objetivo central
del presente trabajo es tratar de entender cuáles son algunas de estas
diversidades, indagar si hay relaciones entre ellas y de qué tipo y, so-
bre todo, buscar comprender qué efectos tiene todo lo anterior sobre
la conceptualización de lo viviente.
Palabras Clave: Fragmentación de la Biología, Filosofía de la Biología,
Unidad de la Biología

Resumo: As ciências da vida encontram-se há várias décadas em


um acelerado processo de proliferação e expansão de campos do
conhecimento e de uma acentuada hiperespecialização. Perante
este cenário, é adequado colocar a pergunta a respeito do atual
estado da Biologia no tocante a uma possível fragmentação e perda
da unidade de índole epistemológica, ontológica, metodológica e,
inclusive, de racionalidades envolvidas. Neste contexto, o objetivo
central do presente trabalho é tentar entender quais são algumas
destas diversidades, indagar se há relações entre elas — e de que
tipo — e, principalmente, procurar compreender os efeitos de tudo o
supracitado sobre a conceptualização do vivente.
Palavras-Chave: Fragmentação da Biologia, Filosofia da Biologia,
Unidade da Biologia

Introducción acelerado proceso de proliferación


y expansión de campos del conoci-
Las ciencias naturales en general miento y de una hiperespecializa-
y la Biología en particular, se en- ción acentuada. Ante este escena-
cuentran hace varias décadas en un

* Homenaje a Paulo Abrantes


** Profesor Adjunto (Facultad de Ciencias Exactas y Naturales - Universidad de Buenos Aires) e Investigador
Adjunto (Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y Técnicas-CONICET-FFyL-UBA). Correo electrónico:
guillefolguera@yahoo.com.ar
*** Investigador (Facultad de Ciencias Exactas y Naturales-Universidad de Buenos Aires)

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ISSN: 2317-9570
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rio, es adecuado preguntarse res- La ruptura evolutiva-funcional


pecto al estado actual de la Bio-
logía en lo que refiere a una po- Una de las rupturas más nota-
sible fragmentación y pérdida de bles es la dada entre la biología
funcional-ecológica y la evolutiva
la unidad de índole teórica, onto-
(Eldredge, 1986). A partir de la
lógica, de racionalidad, etc. En es-
consolidación de dos tipos de inda-
te contexto, el objetivo central del
presente trabajo es tratar de en-gación de la vida, uno genealógico
tender cuáles son algunas de es- y otro sincrónico, se fueron gene-
rando a través de la Modernidad
tas diversidades, indagar si hay re-
laciones entre ellas y de qué ti-campos de saberes también dife-
po y, sobre todo, buscar compren-rentes. El primer conjunto subdis-
ciplinar indaga las denominadas
der qué efectos tiene todo lo ante-
jerarquías genealógicas o “diacró-
rior sobre la conceptualización de
nicas”. Formados por campos del
lo viviente. Para lograrlo, el tra-
saber tales como Genética de Po-
bajo presenta tres partes perfecta-
mente delimitadas. En la siguien-blaciones y Paleontología, indagan
el cambio de la vida en el tiempo.
te sección se indagarán tres de las
Si bien existe cierto acuerdo en un
principales “fisuras” de la biolo-
gía contemporánea: las jerarquíastipo de estructuración entre nive-
funcionales-ecológicas y evoluti-les, no hay total acuerdo en cuá-
les entidades la componen. El se-
vas; los niveles infra-organísmico
y supra-organísmico y la biolo- gundo conjunto de campos del sa-
gía logocéntrica y la pragmático-ber indaga las denominadas jerar-
quías funcionales-ecológicas. For-
utilitaria. En la tercera sección se
mados por campos del saber que
analizarán diversos tipos de rela-
van desde la Biología Molecular,
ciones entre las diversas áreas, pre-
las Fisiologías, hasta las diferentes
sentando alternativas a la estrate-
gia reduccionista como forma de Ecologías (de Poblaciones, Comu-
nidades, de Ecosistemas, etc.) in-
unidad o diálogo entre las mismas.
dagan diferentes aspectos del fun-
Por último, en la última sección se
cionamiento de la vida. Aquí hay
analizarán los efectos de las diver-
una mayor estructuración en nive-
sidades sobre la conceptualización
de lo viviente. les y su grados de acuerdo son ma-
yores aunque con importantes di-
Tres fisuras en la biología con- ferencias (ver Figura 1 a modo de
temporánea ejemplo).

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ISSN: 2317-9570
UNA BIOLOGÍA, MUCHAS BIOLOGÍAS: ESTAMOS FRENTE A UN PROCESO DE
FRAGMENTACIÓN EN LA BIOLOGÍA?

Figura 1. Niveles presentes en cuatro obras recientes en el caso de la jerarquía funcional-ecológica.


Se señalan los niveles que aparecen en cada uno de los casos.

Cuáles son los puntos de rup- mutación recurrente). Se entendía


tura tanto en términos conceptua- entonces a los procesos evolutivos
les, metodológicos y ontológicos? como causantes de cambios en las
Para su reconocimiento, compare- frecuencias génicas poblacionales,
mos algunas de las características y dichos cambios ocurrían en ba-
de ambos dominios. Para ello, re- se a ciertos mecanismos propues-
conozcamos algunas de las más re- tos, básicamente en términos de los
levantes del campo evolutivo para efectos de la selección.
luego buscarlas en el caso de la bio- Durante la década de 1970’, jun-
logía funcional-ecológica. Con este to con el advenimiento de nue-
fin, recordemos los elementos teó- vos hallazgos, fue necesario plan-
ricos distintivos de la Teoría Sin- tear una extensión de dicho con-
tética de la Evolución (TSE) y de junto teórico. Así, principalmente
sus dos “olas” de extensión. Du- a partir de aportes realizados des-
rante la década del 30’ del siglo pa- de la Paleontología surgió el re-
sado se consolidó un marco teóri- querimiento de generar mecanis-
co para dar cuenta de los fenóme- mos capaces de dar cuenta de los
nos evolutivos de la TSE. La misma propios fenómenos macroevoluti-
buscaba, básicamente, explicar los vos, en la medida en que presen-
fenómenos evolutivos (tanto mi- tan características no reducibles a
croevolutivos como macroevoluti- la acción de procesos microevoluti-
vos) utilizando básicamente me- vos durante tiempos prolongados.
canismos poblacionales (selección Pero no sólo eso. También se pu-
natural, deriva génica, migración y sieron límites a la capacidad de la

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ISSN: 2317-9570
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selección natural para dar cuenta del mismo nombre: la bio-


de los fenómenos macroevolutivos logía evolutiva del desarro-
y el alcance de los escenarios deno- llo, popularmente conocida
minados “panseleccionistas”, a la como evo-devo: en la men-
vez que se daría el reingreso de un te de muchos de sus partici-
campo que durante la TSE había si- pantes (especialmente de los
do marginado, la ontogenia. Prin- más jóvenes), evo–devo era
cipalmente mediante la obra “On- reciente. Era el producto de
togenia y Filogenia” de Stephen Jay un crecimiento explosivo del
Gould, estos campos darían un pri- conocimiento de la genética
mer y profundo reingreso. molecular del desarrollo en
A mitad de los 90’ se generaría la década de 1990. En un
una nueva extensión. Básicamen- sentido ellos estaban en lo
te ésta consistió en la aparición de correcto; evo-devo realmen-
dos campos de enorme importan- te era nueva. Sin el nove-
cia en la propia estructuración dis- doso conocimiento molecu-
ciplinar de la Biología. Por un la- lar, la biología evolutiva del
do, en la misma línea que en la desarrollo no podría haber
extensión anterior, el desarrollo se reunido el número de inves-
hacía presente. La forma en par- tigadores o conseguir los re-
ticular que adoptó fue mediante sultados remarcables de los
el campo de la biología evolutiva que podría vanagloriarse en
del desarrollo (EvoDevo), la cual el año 2000. Sin embargo, su
presenta una gran diversidad inter- objeto de estudio tiene más
na con numerosas líneas (Rendón de 150 años de antigüedad
2015, Rendón y Folguera 2014). Se (Amundson 2005, p. 1).
trató de la generación de algo nue-
vo, pero con una historia notable- De este modo, se incorporó un área
mente rica en términos conceptua- como la Embriología que había si-
les: do excluida originalmente. Tam-
En el encuentro anual de la bién se generó el campo de la Ge-
Sociedad para una Biología nómica, lo cual llevaba a poder
Comparada e Integrada en entender al genoma como un to-
enero del año 2000, fue rea- do. A partir de todo lo señalado
lizada una nueva división: la se pueden reconocer al menos tres
biología evolutiva del desa- ejes claves que se ponen como ele-
rrollo. Esta nueva organiza- mento central dentro de la Bio-
ción serviría como una ca- logía Evolutiva, aunque evidente-
sa para un campo de estudio mente ésta última afirmación po-
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ISSN: 2317-9570
UNA BIOLOGÍA, MUCHAS BIOLOGÍAS: ESTAMOS FRENTE A UN PROCESO DE
FRAGMENTACIÓN EN LA BIOLOGÍA?

dría ser discutida en el marco de del Desarrollo (EvoDevo) se recu-


la diversidad sincrónica y diacró- pera al estudio embriológico como
nica del pensamiento evolucionis- parte de la Teoría Sintética de la
ta. Veamos a continuación de qué Evolución (TSE), dando origen a
se tratan cada uno de ellos: análisis diversos, siendo uno de los
principales el “encendido” de ge-
nes en diferentes etapas del desa-
a) Relación genotipo/fenotipo
rrollo. Entre las principales con-
Desde la perspectiva de la TSE, clusiones conceptuales que se han
el principal determinante del fe- establecido desde esta perspectiva
notipo es el componente genéti- aparece la consolidación de un des-
co, mientras que los demás com- acople (al menos parcial) entre la
ponentes que fueron agregándo- evolución fenotípica y la genética,
se como contribuyentes a la varia- negando así cualquier posibilidad
bilidad fenotípica (del desarrollo, de una relación lineal entre am-
ambientales, interacción genotipo- bas. También desde EvoDevo sur-
ambiente) son considerados como ge el concepto de constreñimiento,
mero ruido, obstáculo de la deter- según el cual existen limitaciones
minación genética (Pallitto et al, en las posibles conformaciones de
2015). En las siguientes extensio- los fenotipos, ya sean de desarro-
nes uno de los ítems revisados fue llo, genéticas, ecológicas, funciona-
la noción tradicional de la rela- les, anatómicas, etc.
ción fenotipo/genotipo. En base a
aportes de la Genómica se reali- b) Multiplicidad de las unidades de
zaron nuevas modificaciones signi- herencia
ficativas al modelo lineal genoti-
po/fenotipo, a la vez que se amplió Otro concepto de la TSE que fue
el rol de la epistasis, se incorpora- revisado es el de la unidad de he-
ron datos asociados con la evolu- rencia, gracias al surgimiento de
ción molecular, se extendieron las la epigénesis. Al gen como única
escalas de la organización genéti- unidad de herencia, se le agregan
ca y se incluyeron datos adiciona- otros factores extragenéticos y sus-
les a la propia ubicación del gen. El ceptibles de selección (epigenéti-
rol del ambiente también empezó a cos, comportamentales, culturales,
ser tomado en cuenta como un fac- lingüísticos) que permiten la trans-
tor propiamente dicho, a partir del misión de rasgos fenotípicos entre
surgimiento del concepto de plas- generaciones, y que “determinadas
ticidad fenotípica. Con la aparición consecuencias de la interacción en-
del área de la Biología Evolutiva tre los organismos y su ambiente
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ISSN: 2317-9570
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sean incorporadas en y mantenidas de la propia jerarquía funcional-


dentro de los sistemas de informa- ecológica. En particular, el pun-
ción portadores, y la información to de fisura parece estar dado en
será transmitida a futuras genera- el nivel organísmico y las diferen-
ciones” (Jablonka et al. 1998). Vale cias notables entre los niveles su-
aclarar que esta multiplicidad tam- periores e inferiores. Por encima
bién aporta a una mirada diver- de él y por debajo, los niveles pa-
sa de la relación genotipo/fenotipo recen presentar características no
analizada en el ítem anterior, pues- coincidentes. Así, el individuo bio-
to que se plantea al fenotipo como lógico marca una diferencia nota-
punto de partida y al genotipo co- ble en ciertas características aso-
mo sólo uno de los posibles pun- ciadas. En lo que refiere a los ni-
to(s) de llegada (Jablonka, 2006). veles infraindividuales (incluido el
propio organismo) se pueden reco-
c) El rol del ambiente nocer una serie de características
comunes para las moléculas, célu-
Otro de los aspectos revisados las, órganos y organismos, entida-
por la extensión de la TSE tiene des correspondientes a los niveles
que ver con la ampliación del rol inferiores de organización. Cuáles
del ambiente en los procesos evo- son estas características? Veamos
lutivos. Desde estas nuevas posi- algunos de ellas.
ciones teóricas, el ambiente no só- Por un lado, la característica de
lo es conceptualizado como un “fil- ser discreto y cohesivo. Estos as-
tro” de la diversidad de lo viviente pectos están fuertemente asociados
sino también capaz de generar es- a una finitud espacial y temporal
tímulos que contribuyan a su pro- notable. Por supuesto que este as-
pio origen, uno de los puntos prin- pecto tiene excepciones dentro de
cipales sistemáticamente negados la propia variabilidad de lo vivien-
en décadas pasadas. Este nuevo te. Hongos de 80 km o corales de
“rol” del ambiente, que lo involu- cientos de km muestran lo difí-
cra también en el origen de la va- cil que es incorporar característi-
riación heredable, ha sido denomi- cas comunes a todos los seres vivos.
nado “inducción ambiental”. Alguna vez Lynn Margulis alertó
esto señalando que dichas carac-
Infraorganismo y supraorganis- terísticas distintivas estaban sien-
mo do obtenidas del análisis no sólo
La segunda fisura presente en de animales sino incluso de verte-
las ciencias de la vida que ana- brados. Y sin embargo, pese a lo
lizaremos se reconoce al seno correcto de lo señalado por Mar-

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ISSN: 2317-9570
UNA BIOLOGÍA, MUCHAS BIOLOGÍAS: ESTAMOS FRENTE A UN PROCESO DE
FRAGMENTACIÓN EN LA BIOLOGÍA?

gulis, podemos asumir la presen- Estos controles son difusos e inter-


cia de dichas características. Bajo nos al sistema y mantienen estados
esta consideración, la comparación estables pulsátiles dentro de cier-
con las entidades correspondien- tos límites. Los niveles superiores
tes a los niveles superiores es nota- desde el poblacional corresponden
ble. También surge la capacidad re- a los sistemas ecológicos. Los siste-
productiva como una característica mas de control difieren. Mantiene
que aunque se le asigne con cier- pulsing states dentro de ciertos lí-
ta frecuencia a las entidades de los mites y no tienen puntos específi-
niveles superiores, parece mucho cos. Tienen balances de pulsos, no
más evidente en el caso de los nive- equilibrios, a la vez que el control
les inferiores. En oposición, en los es difuso e involucra mucha más
niveles supra-individuales (pense- fluctuación.
mos por ejemplo en los poblaciona-
les, de comunidades y ecosistémi-
Alteración de las racionalidades
cos) los criterios del ser discreto, fi-
nito espacio temporal y capacidad La noción de tecno-ciencia, con-
reproductiva no se acomodan tan cebida como un cuerpo de cono-
bien. cimientos integrados en los que
Otra de las características claras tanto los aspectos científicos como
es la dada por la presencia o no de los técnicos se presentan profun-
control interno y, en tal caso, de damente articulados en todas las
qué tipo. Así, según Odum y Ba- etapas del proceso de construcción,
rret (2005) los niveles inferiores co- resulta apropiada para caracterizar
rresponden a la Biología de Siste- la actividad científica contemporá-
mas, en la medida en que mues- nea, también en el caso de la tec-
tra una regulación homeostática. nología asociada a las ciencias de
En la homeostasis (controles (+ y la vida en general y a la Biolo-
-)) se presenta una retroalimenta- gía en particular. Ciertamente, es-
ción en puntos fijos que mantie- te vínculo se pone de manifiesto
nen los estados estables dentro de en aspectos tales como la atracción
límites estrechos. El foco está en que generan determinadas “pro-
la regulación interna y el control mesas” tecnológicas para la ob-
del feedback. La homeostasis man- tención de importantes inversiones
tiene steady states dentro de cier- destinadas a investigaciones. En el
tos límites. A su vez, el control in- mismo sentido, la justificación de
terno es de tipo homeorresis, es- estas inversiones se refuerza a tra-
to es, no hay controles de retroali- vés de la adjudicación al contex-
mentación (+ y -) en puntos fijos. to tecnológico de valores presumi-
Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.6, n.1, jul. 2018, p. 221-239 227
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LEO BLOISE Y GUILLERMO FOLGUERA

blemente positivos, los cuales clá- Volviendo a lo discutido ante-


sicamente han sido atribuidos al riormente sobre la relación geno-
ámbito de la investigación cientí- tipo/fenotipo, actualmente se ob-
fica (Folguera et al, 2014). En es-serva una tendencia a abandonar
te marco, se pueden buscar algu- la idea de una relación lineal sim-
nas discontinuidades hacia dentro ple entre ambos, favoreciendo la
de las subdisciplinas de la Biología,
inclusión de factores complejizan-
encontrándose diferencias entre el tes de distinta índole (epigenéti-
discurso aplicado al objeto de es- cos, vínculos fisiología-ambiente,
tudio general del área, y el aplica-
del desarrollo, concernientes a las
do a ciertas problemáticas particu-vías de señalización celular, etc).
lares. A continuación mostraremos Es útil para nuestro análisis con-
versiones resumidas de dos ejem- trastar el concepto clásico de gen
plos de dichas discontinuidades o como determinante del genotipo
diferencias. (gen-P) y el concepto proveniente
La estrategia de reconocimien- de la genómica molecular, donde el
to de las características definitorias
gen es definido por una secuencia
de esta fisura será mediante dos de ADN y sirve de templado para
ejemplos en donde se aplican el sa-la producción de moléculas, sien-
ber biológico en términos técnicos.do indeterminado con respecto al
1 - Los OGMs y los modelos sim- fenotipo (gen-D) (ver Figura 2).
plificados

Figura 2. Esquematización de los conceptos de gen-P y gen-D. A. El concepto de Gen-P es determinado


con respecto al fenotipo, al margen de una relación compleja que involucra al ambiente y a la interac-
ción, en muchos casos excluidos o minimizados. B. El concepto de Gen-D es determinado con respecto
a ciertos productos moleculares pero indeterminado respecto al fenotipo (Adaptado de Pallitto et al,
2015).

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ISSN: 2317-9570
UNA BIOLOGÍA, MUCHAS BIOLOGÍAS: ESTAMOS FRENTE A UN PROCESO DE
FRAGMENTACIÓN EN LA BIOLOGÍA?

A partir de lo señalado es muy ecosistemas.


relevante reconocer una diversi- 2 - Las bases biológicas del TDAH
dad en el uso de ambos térmi-
nos dentro del discurso de la ge- El trastorno por déficit de aten-
nética molecular, contrastando en- ción e hiperactividad (TDAH, en
tre el mundo vegetal en general y inglés Attention Deficit Hyperacti-
las plantas modificadas genética- vity Disorder o ADHD) está tipifi-
mente. Respecto al primer caso, el cado según el DSM-5 como un tras-
discurso disciplinar utiliza la no- torno psiquiátrico. Afecta a niños
ción de gen-D, asumiendo relacio- entre 4 y 18 años y tiene efectos di-
nes complejas entre los distintos versos posteriores. Los criterios pa-
productos de la cadena, desde el ra su diagnóstico son diversos, pre-
ADN hasta las proteínas, y una in- dominando que los niños presen-
determinación respecto al fenotipo ten algún tipo de ïnatención, hiper-
del organismo. Por otro lado, al ha- actividad e impulsividad que per-
blar de organismos genéticamente judica el funcionamiento tanto en
modificados, la noción utilizada se el hogar como en la escuela an-
corresponde con la de gen-P, donde tes de que el niño tenga 7 años
el genotipo (en este caso el o los ge- de edad” (Moffitt y Melchior, 2007,
nes modificados) guarda una rela- p. 856). Desde el “Manual diag-
ción lineal y determinada con el fe- nóstico y estadístico de los trastor-
notipo resultante, minimizando el nos mentales V” (conocido como
efecto de los factores complejizan- DSM-5 por su nombre en inglés,
tes, tanto a nivel organísmico como Diagnostic and Statistical Manual of
en niveles superiores (Folguera et Mental Disorders 5) se señala que el
al, 2014). TDAH:
Surge la pregunta sobre cómo ...es un trastorno del neuro-
evaluar esta diferencia, ya que se desarrollo definido por ni-
podría argumentar que su apari- veles perjudiciales de fal-
ción es inevitable debido a las res- ta de atención, desorgani-
tricciones propias de la metodolo- zación y/o hiperactividad-
gía experimental de la subdiscipli- impulsividad. La desaten-
na. Por otro lado, podría argumen- ción y la desorganización
tarse que la diferencia es proble- implican incapacidad para
mática ya que omite factores reco- sostener una tarea, parecer
nocibles que deberían tenerse en no escuchar y perder ma-
cuenta, considerando que los pro- teriales en niveles que son
ductos finales de los estudios de inconsistentes con la edad
OMGs se ponen en contacto con los o nivel de desarrollo. La
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hiperactividad-impulsividad a la idea de utilizar característi-


implica sobreactividad, in- cas de menor heterogeneidad como
quietud, incapacidad para objeto de diagnóstico del TDAH, y
permanecer sentado, inmis- se proponen rasgos biológicos co-
cuirse en las actividades de rrespondientes a los niveles infe-
otras personas e incapacidad riores al organísmico -tales como
para esperar; síntomas que los genéticos- los cuales serían más
son excesivos para la edad o homogéneos que aquellos basados
el nivel de desarrollo..En es- en síntomas (Heiser et al., 2004).
te sentido, el TDAH es con- También se utilizan otras opciones
siderado o tipificado desde por fuera de la genética, tales como
la rama psiquiátrica de la el diagnóstico por técnicas de ima-
medicina como un síndro- gen que cuantifican variables neu-
me, determinado a partir de rológicas o cerebrales. Por otro la-
un conjunto de síntomas y do, se encuentran discursos que la
se suele abordar, entre otros definición del TDAH dada por es-
tratamientos, mediante psi- quemas basados en síntomas, y la
cofármacos (ver por ejemplo, proponen como punto de partida
Wilens et al., 2000; Beltrán para buscar las bases biológicas del
Guzmán et al., 2007 y Vol- trastorno (Swanson et al., 2007).
kow de revistas de Neurobio- Respecto a la ontología del
logía, Biomedicina y áreas TDAH, nos encontramos con una
afines et al., 2005). clasificación que concierne a cua-
tro niveles de organización dife-
Con frecuencia se presenta a los rentes: genético-molecular (genes
criterios de diagnóstico a partir de y proteínas), tisular (partes del ce-
los síntomas presentes en el DSM rebro), órgano (cerebro considera-
como incapaces de caracterizar co- do como un todo) y el organísmi-
rrectamente a los niños con TDAH. co (individuo). Pero si consideran-
Las críticas a esta forma de diag- do lo mencionado en los párrafos
nóstico por síntomas son diversas anteriores se entiende que los sus-
(Carey, 2000; Pauls, 2005 y Smoot tratos biológicos son los que expli-
et al., 2007), siendo principalmen- can los patrones comportamenta-
te presentados como vagos y subje- les, entonces aparece un privilegio
tivos (Carey, 2000), así como tam- ontológico necesario de los niveles
bién subóptimos respecto a otros inferiores de organización, en don-
posibles criterios de diagnóstico de la sintomatología de los niños
(Heiser et al., 2004). En este con- diagnosticados con TDAH sólo po-
texto se plantea una justificación see el estatus fenomenológico.

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ISSN: 2317-9570
UNA BIOLOGÍA, MUCHAS BIOLOGÍAS: ESTAMOS FRENTE A UN PROCESO DE
FRAGMENTACIÓN EN LA BIOLOGÍA?

Deteniéndonos ahora en el ni- respecto a los macros teóricos que


vel genético-molecular, se observa supuestamente le dieron origen.
una situación de discontinuidad si-
milar a la encontrada en el ca-
Relaciones no reductivas frente al
so de los OMGs. A pesar de que
escenario de fragmentación
desde el discurso neurobiológico la
complejidad genética de este tras- El estado fragmentado de las
torno es reconocida, ésta no se res- ciencias de la vida en la actuali-
cata en el diseño de los estudios. dad podría llevar a pensar que no
Esto sucede tanto en los estudios hay vínculo alguno entre cada uno
genético-moleculares çlásicosçomo de esos ámbitos. Sin embargo, no
en los estudios de tipo genómicos. es eso lo que sucede en la actuali-
Si bien se han propuesto numero- dad ni lo que queremos sugerir. En
sos genes que podrían estar rela- efecto se establecen significativos
cionados con el TDAH, la mayor vínculos entre campos que permi-
parte de las investigaciones se en- ten complejizar la pregunta inicial
foca únicamente en uno o unos po- que nos hemos hecho: qué es esta
cos de ellos. Esto se observa muy Biología fragmentada en la actua-
claramente en que estos trabajos lidad, qué límites presenta y qué
científicos muestran los resultados efectos posee sobre la propia no-
en la forma de tablas de listas de ción de vida. Sin embargo estos
"genes candidatos.” Además, estas vínculos, tal como veremos, distan
investigaciones no rescatan las im- de ser simples, a priorísticos y uni-
portantes interacciones que se dan versales.
entre el genotipo y el ambiente. La principal estrategia de unifi-
Por ejemplo, Pauls (2005) conclu- cación y/o “diálogo” entre las cien-
ye que “la mayoría de los investi- cias durante el siglo XX había sido
gadores en genética reconocen que el reduccionismo (de muy diversos
es importante evaluar factores am- tipos). En particular, un tipo de re-
bientales en estudios genéticos; sin duccionismo que resultó atractivo
embargo, muy pocos estudios han en base a una estrategia clara y ge-
sido capaces de medir adecuada- neral de búsqueda de la unidad de
mente factores ambientales.” Nue- los campos científicos fue el llama-
vamente se redunda en escenarios do reduccionismo interteórico, ba-
de fuerte linealidad y determinis- jo el cual la reducción se da cuan-
mo entre las entidades involucra- do “las teorías y leyes experimen-
das. Se tratan, al igual en el caso tales formuladas en un campo de
de los OGMs de escenarios de gran la ciencia pueden considerarse ca-
simplificación y empobrecimiento sos especiales de teorías y leyes for-
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muladas en algún otro campo cien- car de un modo reduccionista có-


tífico”, en cuyo caso “la primera ra- mo algo hace lo que hace, esto no
ma de la ciencia ha sido reducida equivale a explicar lo que algo es;
a la segunda” (Ayala, 1983, p. 12). y esta es una distinción que el re-
En las últimas décadas, el mode- duccionismo no puede recoger. Por
lo clásico de reducción interteóri- ello, tras las importantes dificulta-
ca presentó problemas de diversa des y críticas que presentaron los
índole y ha sufrido múltiples críti- intentos de aplicación de los mo-
cas (Darden y Maull 1977, Kitcher delos de reducción inter-teórica en
1984, Brigandt 2010). En particu- este caso, ese tipo de reducción ha
lar, esta estrategia no fue capaz de dejado de ser prácticamente consi-
cosechar frutos dentro de la Bio- derada por los filósofos de la biolo-
logía. Recordemos que numerosos gía (Caponi 2004, Brigandt y Love
investigadores han marcado pro- 2014).
blemas insalvables para la reduc- Y entonces cuáles son algunas
ción como estrategia de unifica- de las formas de diálogo y vínculo
ción. Por ejemplo, Brigandt (2011) que se reconocen al seno de la pro-
sostuvo que las críticas al reduc- pia Biología como alternativas a la
cionismo proceden típicamente del propia estrategia reduccionista? A
hecho de que lo indagado en un continuación presentamos una se-
campo de niveles altos y de otro de rie de alternativas a la reducción
niveles bajos mantiene relaciones interteórica1 .
muchos-muchos, y que, por ello,
no se puede obtener ninguna co- Teorías intercampos
rrespondencia sistemática entre los Esta propuesta considera como
conceptos de ambas teorías. La jus- objeto de relaciones a los campos
tificación de ello radica en que lo en general y no a las teorías. Desde
que en un campo de nivel más alto esta perspectiva, una teoría inter-
es una clase o un fenómeno unifi- campo podría establecer un víncu-
cado, puede consistir para un cam- lo entre dos campos pudiendo dar
po de nivel más bajo en diferen- cuenta de fenómenos que los cam-
tes clases o fenómenos, a la vez que pos por separado no logran expli-
una clase o fenómeno de nivel ba- car (Darden y Maull, 1977). Co-
jo puede corresponder a diferentes mo puede verse, una teoría de es-
clases o fenómenos más altos. A su te tipo no reduce los campos que
vez, Pigliucci y Kaplan (2006) con- vincula, en la medida en que ca-
sideran que aunque se pueda expli- da uno de esos campos conserva su

1 Un análisis detallado de las mismas puede encontrarse en Ferreira y Folguera, 2015.

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UNA BIOLOGÍA, MUCHAS BIOLOGÍAS: ESTAMOS FRENTE A UN PROCESO DE
FRAGMENTACIÓN EN LA BIOLOGÍA?

autonomía, a la vez que se ve be- que no existe una reducción de la


neficiado por la interacción con el genética clásica a la molecular, ya
otro campo mediante el puente tra- que ambas dan cuenta de diferen-
zado. Aunque por motivos obvios tes mecanismos en diferentes pe-
no es reconocido como ejemplo, la ríodos temporales.
subdisciplina evo-devo que previa-
mente hemos introducido parece Importación y exportación de mar-
ser un buen ejemplo de ello en tan- cos teóricos
to campo-puente. El ejemplo resul- Este tercer tipo de relación en-
ta significativo en que justamen- tre los fragmentos descriptos pre-
te logra vincular lo que hemos se- viamente corresponde al caso en
ñalado como jerarquía funcional y el que un área del conocimiento
evolutiva. adopta un cuerpo teórico (o una
“parte” de él) proveniente de otra
Integración mediante mecanismos
para explicar sus propios fenóme-
Más recientemente, Darden nos. Veamos un ejemplo de ello, el
(2005) ha propuesto una relación que se establece entre la Macroeco-
entre campos biológicos que in- logía y la Fisiología. En sus inicios,
troduce a los mecanismos. En este la Macroecología se trató mera-
contexto, los mecanismos son con- mente de un conjunto de fenóme-
cebidos como la combinación entre nos (no tenía ningún tipo de marco
entidades y actividades que logran teórico definido capaz de dar cuen-
producir alteraciones desde un es- ta de sus propios patrones), de mo-
tado inicial a uno final. El ejemplo do que los patrones generados a
que Darden propone es el tipo de partir del registro de las variables
relación que tienen la genética clá- mencionadas eran explicados acu-
sica y la genética molecular. Así, diendo a procesos tales como la ex-
por ejemplo, mientras la primera tinción diferencial, la especiación,
se centra en el mecanismo de la la colonización o las restricciones
meiosis y las entidades relevantes energéticas. Posteriormente la Ma-
son los cromosomas, la segunda da croecología importó la denomina-
cuenta del mecanismo de la expre- da “teoría metabólica de la ecolo-
sión génica, lo que significa que se gía” (TME) como conjunto teórico
trata de otro mecanismo, en tan- propio. La TME fue desarrollada a
to concierne a un período diferen- partir del análisis de las tasas me-
te en el ciclo celular y sus entida- tabólicas, susceptibles de ser estu-
des relevantes están por debajo del diadas en condiciones experimen-
nivel de los cromosomas. En este tales dentro del laboratorio (di Pas-
ejemplo se puede ver claramente quo y Folguera, 2009). Este tipo de
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vínculo es sustancial a partir del cuentra el aglutinante por pregun-


recorrido anterior pues justamente tas que guardan relaciones entre
establece un nexo entre los niveles sí y que están asociadas a ciertos
supraindividuales y los infraindi- estándares de adecuación explica-
viduales. Otro ejemplo de ello, pe- tiva. De este modo se configuran
ro ya en la jerarquía evolutiva, es el unidades que determinan los cam-
dado en el próximo tipo de víncu- pos son relevantes para resolver el
lo. problema y anticipa también có-
mo las contribuciones de los dife-
Isomorfismo rentes campos deben coordinarse
Esta terminología refiere a la e integrarse en la explicación to-
consideración de que dos áreas tal. De este modo, algunos de los
presentan entidades y/o procesos problemas científicos motivan una
similares, pero que se ubican en investigación interdisciplinaria, lo
diferentes áreas biológicas. Es de- cual es apropiadamente represen-
cir, hay isomorfismo cuando en dos tado mediante la noción de proble-
subdisciplinas diferentes son iden- ma agenda, que es compatible con
tificadas entidades y procesos que la pluralidad de metas explicati-
presentan ciertas similitudes sus- vas en Biología (Love, 2005, 2008,
tantivas. No se trata de una reduc- 2010). El ejemplo que propio Love
ción interteórica, ya que no se re- señala es el origen de la innovación
ducen leyes de una teoría a leyes de evolutiva, que constituye un pro-
la otra, ni tampoco hay reducción blema central para la Biología Evo-
ontológica, ya que lejos de reducir- lutiva, y que requiere contribucio-
se entidades de niveles superiores nes de muchos campos (Filogenia,
a inferiores, las entidades del nivel Paleontología, Biología del Desa-
inferior se multiplican en el nivel rrollo, Morfología).
más alto. El ejemplo que puede re- Todas las relaciones previamen-
conocerse es el dado entre la gené- te presentadas muestran caracte-
tica de poblaciones y la paleonto- rísticas más acotadas, locales y a
logía a partir de las propuestas de posteriori que los escenarios reduc-
autores como Gould y Eldredge y tivos. Es decir, no se logra las uni-
la idea de una selección jeráŕqui- dades “regionales” teorizando un
ca que incluya numerosos niveles modelo abstracto de unificación
propios de la jerarquía evolutiva. independientemente de los casos,
sino lidiando con casos y proble-
Agendas de problemas mas concretos. Sumado a lo an-
El último tipo de vínculo no terior, hay que notar que la for-
reductivo que presentaremos en- ma más típica de reacción al fra-

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UNA BIOLOGÍA, MUCHAS BIOLOGÍAS: ESTAMOS FRENTE A UN PROCESO DE
FRAGMENTACIÓN EN LA BIOLOGÍA?

caso del reduccionismo fue plura- complejos y compatibles entre sí.


lista, ya sea en sentido metodoló- Por un lado, la Biología mues-
gico, ontológico, teórico o explica- tra importantes líneas de fractu-
tivo; entendiendo, en general, que ras de carácter epistemológico, pe-
la Biología consiste en y necesita ro también metodológico y onto-
de una diversidad de campos, mé- lógico. En particular, hemos ex-
todos, teorías, explicaciones. Re- plorado brevemente en la segunda
cordemos que Dupré (1983, 1993) sección tres quiebres fundamenta-
plantea la desunidad de la ciencia les en la actualidad: el funcional-
en un mundo inherentemente des- evolutivo, el supraorganísmico-
ordenado. infraorganísmico y el logocéntrico-
Podemos finalizar esta sección pragmático utilitario. Así, hemos
recordando algunos autores que reconocido importantes ejemplos
han realizado aportes al respecto. de diversidades al seno de la Bio-
Por ejemplo, Kitcher (1999) sostie- logía, y las fricciones que generan
ne que la unificación de la Biolo- las discontinuidades que conviven
gía es imposible pero es un ideal dentro de subdisciplinas particu-
regulativo al que los biólogos de- lares. Ahora bien, esta diversidad
ben aspirar tanto como puedan. A tiene efectos sobre la conceptua-
su vez, Bechtel (1986, 2006) que lización de lo viviente, ya sea en
cuánta integración y qué tipo de forma de sesgos, simplificaciones,
combinación de integración y es- o modificaciones conceptuales no
peciación se necesita depende y va- asumidas. En los casos tratados en
ría con el problema científico con- este trabajo, encontramos sesgos de
siderado, es decir que la unifica- determinismo (genético en este ca-
ción no es un objetivo en sí mis- so, debido a la prevalencia de la
mo sino necesario para el propósi- noción de relación lineal genotipo-
to de resolver un determinado pro- fenotipo) y simplificaciones, apa-
blema. Brigandt (2011) agrega que recidas como consecuencia de la
se necesita alguna integración en omisión de interacciones entre en-
ciertos problemas biológicos, pero tidades y con el ambiente.
ésta no es un objetivo universal. Posteriormente, observamos que
a pesar de estas diversidades las
distintas zonas pueden establecer
Cierre y apertura: fragmentacio-
relaciones entre sí, incluso de for-
nes y efectos sobre la conceptua-
mas alternativas a las estrategias
lización de lo viviente
reduccionistas clásicas, lo que nos
Durante el recorrido realizado, lleva a negar cierta inconmensu-
el trabajo mostró dos escenarios rabilidad radical o fragmentación

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fuerte. Así, nos encontramos con tintas áreas. Dichos métodos tam-
una Biología diversa, aunque no bién son diversos y no se limitan a
parece tratarse de un fenómeno de estrategias reductivas, si bien po-
fragmentación que sugiera incon- demos encontrar discontinuidades
mensurabilidad, ya que se ponen que generan problemas al seno de
en práctica varios métodos de es- las distintas subdisciplinas.
tablecer relaciones entre las dis-

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Breve História da Inércia - I: O Problema do Movimento
de Aristóteles a Copérnico
[Brief History of Inertia - I: The Problem of Motion from Aristotle to
Copernicus]

Samuel Simon * e Evaldo Rezende **

Resumo: Nesse trabalho, examinaremos os estudos sobre o movi-


mento, entendido como translação, ou deslocamento, desde as aná-
lises de Aristóteles, passando pelas críticas feitas no período medieval
ao aristotelismo, culminando com o trabalho de Nicolau Copérnico,
que aprimora a noção de movimento relativo. Se, por um lado, Co-
pérnico prepara o terreno para os estudos de Pierre Gassendi, René
Descartes e Galileu Galilei sobre a noção de inércia, por outro lado,
ainda mantém certa imagem de natureza com elementos aristotélicos.
Palavras-chave: Movimento, Inércia, Aristotelismo, Imagem de Na-
tureza
Abstract: In the present work, we examine studies regarding motion
– understood as traversal, or change of place – beginning with the
analyses of Aristotle, passing through critiques of Aristotelianism in
the medieval period, culminating in the work of Nicholas Copernicus,
who prioritizes the notion of relative motion. If, on the one hand,
Copernicus prepares the way for the studies of Pierre Gassendi,
René Descartes and Galileo Galilei on the notion of inertia, on the
other hand, he still retains a certain image of nature with Aristotelian
elements.
Keywords: Motion, Inertia, Aristotelianism, Image of Nature

Introdução lações entre imagens de natureza


e imagens de ciência. Os estudos
A noção de inércia, consolidada
do movimento, que têm suas raí-
nos Principia de Newton, possui
zes nos pensadores pré-socráticos,
uma longa história, pois está dire-
de maneira implícita ou mesmo
tamente vinculada ao problema do
explicita, como no caso de Zenão
movimento. Essa noção é um caso
(ibid., p. 40), alcança uma elabora-
admirável das relações entre his-
ção sofisticada em Aristóteles, que
tória e filosofia da ciência, ou, na
marcará o desenvolvimento pos-
terminologia empregada por Paulo
terior de parte importante da Fí-
Abrantes (Abrantes, 2016), das re-

* Professor Associado do Departamento de Filosofia e do Programa de Pós-Graduação em Filosofia - PPG-


FIL/UnB. Trabalho parcialmente financiado pelo CNPq, na forma de Bolsa de Produtividade em Pesquisa. E-mail:
samuell@unb.br
** Mestre em Filosofia no PPG-FIL/UnB, e Membro do Grupo de Lógica e Filosofia da Ciência-UnB/CNPq. E-
mail: evaldoprezende@gmail.com

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sica, definindo-a como uma disci- ou translação, o movimento é uma


plina autônoma a partir do século das formas de mudança, na ter-
XVII. Nesse trabalho, nos limitare- minologia aristotélica. Dessa ma-
mos a mostrar as relações entre os neira, os estudos de Aristóteles,
estudos sobre o movimento, con- embora estranhos à noção de inér-
forme desenvolvida inicialmente cia nos termos modernos, certa-
por Aristóteles, evoluindo para mente foram decisivos para o de-
uma discussão sobre o movimento senvolvimento deste conceito. Já
relativo no período moderno, até no Livro I da Física, uma das prin-
preparar o terreno para a noção de cipais obras do Estagirita sobre o
inércia em Galileu, o que será apre- problema do movimento (ou mu-
sentado em outro trabalho. dança1 ), os princípios internos são
Mostraremos, nesse próximo detidamente estudados, no con-
trabalho (Breve História da Inércia texto da metafísica aristotélica.
- II: O problema da inércia em Gali- Uma conclusão importante nesses
leu), que, além dessa raiz no estudo estudos refere-se ao número des-
do movimento, a noção de causali- ses princípios para a determinação
dade tem um papel central no con- do movimento. Aristóteles conclui
ceito de inércia. Estimamos tam- que são três, consistindo naquilo
bém que Galileu pode não ter solu- que sofre a mudança e no par de
cionado completamente esse pro- contrários que representa a dico-
blema. Em parte, evidentemente, tomia falta/excesso. Esses prin-
pelo próprio desenvolvimento da cípios, associados à mudança, de
Física e da Matemática no início do uma maneira em geral, incluem
século XVII, mas, talvez também, o deslocamento, ou ainda de uma
por suas concepções filosóficas, ou maneira geral, a relação entre na-
da imagem de natureza que possuía. tureza e movimento. Como afirma
Aristóteles no Livro III da Física:

Movimento em Aristóteles
Nature is a principle of mo-
Entendido como deslocamento, tion and change, and it is the

1 Os termos movimento e mudança em Aristóteles não são equivalentes. Évora (2005) aponta as diferenças entre
essas duas noções, decisivas para o estudo da física aristotélica. Mas como bem observa Évora (ibid., p. 131), a dis-
tinção entre “mudança” e “movimento” não é algo rigidamente estabelecido, pois houve ocasiões em que Aristóteles
usou as duas palavras como se fossem apenas sinônimas, e não termos que apresentam diferentes nuances. De qual-
quer forma, a distinção entre “mudança” e “deslocamento” é bastante clara em determinadas passagens da Física,
conforme podemos observar no seguinte trecho do Livro VIII: “Now of the three kinds of motion that there are
– motion in respect of magnitude, motion in respect of affection, and motion in respect of place - it is this last,
which we call locomotion, that must be primary” (ARISTOTLE, 1991, Physics, p. 147; 260a27-260b14). Nos termos
do presente artigo, movimento será entendido no contexto da física moderna, ou seja, como deslocamento em um
dado referencial no tempo.

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BREVE HISTÓRIA DA INÉRCIA - I: O PROBLEMA DO MOVIMENTO DE ARISTÓTELES A
COPÉRNICO

subject of our inquiry. We cepção de movimento, possibili-


must therefore see that we tando uma reflexão acerca da inér-
understand what motion is; cia, embora Aristóteles nunca te-
for if it were unknown na- nha utilizado esse termo (ele não
ture too would be unknown. tinha uma noção de inércia como
When we have determined uma propriedade do movimento,
the nature of motion, our ao contrário de Galileu). De fato,
task will be to attack in the a inércia (persistência do movi-
same way the terms, which mento) não está elencada como
come next in order. (ARIS- um dos princípios internos do mo-
TOTLE, 1991, Physics, p. vimento, conforme vimos acima.
56; 200b 11-21). Ademais, Aristóteles não compar-
tilhava da ideia de que o movi-
É bem conhecida a diferença apre- mento pudesse persistir por si só,
sentada por Aristóteles entre mo- afirmando que este era uma mu-
vimento natural e não-natural de- dança de “alguma coisa para outra
fendida em Do Céu (On the heavens, coisa”, ou seja, algo que possuía um
269a33). O movimento retilíneo início e um fim (momentâneos),
admite os dois casos, enquanto o tese diferente daquela defendida
circular admite apenas o natural. É na modernidade, quando o movi-
interessante ressaltar esse aspecto, mento foi definido simplesmente
pois, para o Estagirita, o contrário como um estado. Escreve Aristóte-
de um movimento retilíneo natural les:
só pode ser violento. No caso do
movimento circular, seu contrário A consideration of the other
também seria circular pois, como kinds of movement also ma-
volta a um mesmo ponto, não é kes it plain that there is
por natureza contrário2 . Dessa ma- some point to which earth
neira, o movimento circular é sem- and fire move naturally. For
pre natural e ocorre apenas na re- in general that which is mo-
gião de cima3 (ou supralunar). ved changes from something
Os escritos aristotélicos permi- into something, the starting-
tem delinear a sua elaborada con- point and the goal being dif-

2 “Nor again can motion along the circle from A to B be regarded as the contrary of motion from A to C; for the
motion goes from the same point towards the same point, and contrary motion was distinguished as motion from
a contrary to its contrary. And even if one circular motion is the contrary of another, one of the two would be poin-
tless; for that which moves in a circle, at whatever point it begins, must necessarily pass through all the contrary
places alike. (By contrarieties of place I mean up and down, back and front, and right and left.)” (ARISTOTLE,
1991, On the Heavens, p.7-8; 271a19).
3 De acordo com Pellegrin (2010, p. 62), é preciso “notar que os termos ‘supralunar’ e ‘sublunar’ são uma criação
dos comentadores: Aristóteles fala da região ‘de cima’ e da região ‘daqui”’.

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ferent in form, and always it – retilíneo -, perpétuo.


is a finite change. For ins- Antes de analisar detalhada-
tance, to recover health is to mente a negação da inércia em
change from disease to he- Aristóteles, deve-se atentar para
alth, to increase is to change o fato de que, para o filósofo, o
from smallness to greatness. movimento tem uma finalidade, de-
Locomotion must be similar; corrência da crença de que cada
for it also has its goal and corpo possui o seu lugar natural.
starting point— and there- A partir da noção de lugar natu-
fore the starting-point and ral desenvolve-se toda a dinâmica
the goal of the natural move- aristotélica, pois tal ideia é cru-
ment must differ in form— cial para entender a finalidade dos
just as the movement of co- movimentos. Como bem lembra
ming to health does not take Koyré (1966, p.23), para Aristóte-
any direction which chance les, “todo corpo é concebido como
or the wishes of the mover possuindo uma tendência ao seu
may select. (Ibid., On the lugar natural e, portanto, a retor-
Heavens, p. 17; 277a13- nar a esse lugar, quando daí afas-
277a27). tado por violência”. Essa tendência
explicaria seu movimento natural
Essa diferenciação (mudança de al- “pelo caminho mais curto e rápido.
guma coisa para outra4 ) será re- Segue, então, que todo movimento
tomada adiante, tendo sido men- natural ocorre em linha reta, e que
cionada agora apenas para subli- todo corpo vai ao seu lugar natural
nhar que Aristóteles considerava o tão depressa que ele possa, ou seja,
movimento como uma mudança, tão rápido quanto o meio circun-
algo que tinha uma finalidade, e dante o permitir” (op.cit.)6 . Por-
que não poderia persistir indefini- tanto, o tipo de movimento reti-
damente5 . Logo, Aristóteles não líneo (ascendente ou descendente)
defenderia um movimento inercial de cada elemento é determinado

4 Talvez, pudesse se utilizar aqui o termo stoicheíon, associado a “simples corpos” (stoicheia), empregado por
Aristóteles (Do Céu, 269a). Alguns autores, como Paul Moraux (ARISTOTE, 1965, p. 20) traduzem esse termo
acima (“alguma coisa”) como “estado”, que evitamos nesse trabalho, tendo em vista o sentido utilizado no período
moderno. Preferimos manter a tradução inglesa, que nos parece mais geral e menos problemática. Peters (1967,
p. 180) lembra que Platão, no Timeu (201e), foi o primeiro a empregar o termo stoicheíon, mas em um contexto
linguístico. Nesse sentido, concordamos com Polito (2015, p.5), que identifica o movimento (deslocamento), na
física de Aristóteles, com um processo e não com um estado.
5 Aristóteles também menciona no Livro VI da Física que nenhum processo de mudança pode ser infinito com
respeito ao tempo (ARISTOTLE, 1991, Physics, p. 113; 241a 26).
6 “Tout corps est conçu comme possédant une tendance à se trouver dans son lieu naturel, et donc à y revenir
dès que, par violence, il en est éloigné (...). Il s’ensuit que tout mouvement naturel s’effectue en ligne droite, et que
tout corps va à son lieu naturel aussi vite qu’il le peut, c’est-à-dire aussi vite que le milieu ambiant le lui permet”.

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pelo fato de que cada coisa possui física moderna, o repouso é um es-
seu lugar natural, no qual tende tado do movimento.
a permanecer caso nada altere tal A citação acima mostra a dicoto-
movimento. A explicação de Koyré mia entre movimento natural e não
vem ao encontro da afirmação de natural, explicada anteriormente.
Aristóteles sobre a relação entre re- No entanto, no supracitado trecho,
pouso e ação externa (constraint)7 : o Aristóteles diz que as coisas po-
dem ser compelidas a se mante-
Now all things rest and rem em movimento. Ao dizer isso,
move naturally and by cons- ele reforça a tese de que existi-
traint. A thing moves na- ria uma tendência ao repouso, con-
turally to a place in which forme afirma Koyré:
it rests without constraint,
and rests naturally in a place Ainsi, tout mouvement im-
to which it moves without plique un désordre cosmique,
constraint. On the other une rupture d’équilibre, qu’il
hand, a thing moves by cons- soit lui-mème effet immédiat
traint to a place in which d’une telle rupture, causée
it rests by constraint, and par l’application d’une force
rests by constraint in a place extérieure (violence), ou, au
to which it moves by cons- contraire, effet de l’effort
traint. Further, if a given compensateur de l’être pour
movement is due to cons- retrouver son équilibre perdu
traint, its contrary is natu- et violé, pour ramener les
ral. (ARISTOTLE, 1991, choses à leurs lieux- na-
On the Heavens, p. 69; turels, convenables, où ils
276a22-276b22). pourraient reposer et se repo-
ser. C’est ce retour à l’ordre
Observa-se, desde já, uma impor- qui constitue justement ce
tante divergência entre a filoso- que nous avons appelé mou-
fia aristotélica e a física galileana: vement naturel. (KOYRÉ,
para a primeira, o repouso é de- 1966, p. 19)
finido pela situação transitório do
corpo e pelo lugar natural; para a Ou seja, tanto o movimento na-

7 Preferimos, aqui, não usar o termo força, como fazem alguns autores, pelo significado teórico que esse con-
ceito assume na física moderna, especialmente com Isaac Newton. Mantemos a noção de “coação” ou ação externa.
Muitas traduções utilizam o termo força em Aristóteles. No entanto, como bem observa Jammer (1999, p. 34),
Aristóteles utiliza o termo força (dynamis) em dois sentidos – ativo e passivo; Platão, como já havia assinalado
Cornford (1951, p. 236), também a utiliza nesses dois sentidos, mas a noção tem, nesse caso, origem na medicina
grega antiga.

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tural quanto o violento são dese- guinte passagem do Livro VIII da


quilíbrios, caracterizando-se como Física:
a causa da desordem (movimento
não natural ou “violento”) ou a For the line traversed in rec-
tentativa (movimento natural) de tilinear motion cannot be in-
retornar à condição anterior, que finite; for there is no such
consiste no repouso de cada coisa thing as an infinite straight
em seu lugar natural correspon- line; and even if there were,
dente. O repouso é o propósito it would not be traversed
8
(sake) do movimento . by anything in motion; for
Assim, o movimento (como the impossible does not hap-
translação) cessa (momentanea- pen and it is impossible to
mente) quando o corpo movido traverse an infinite distance.
encontra o seu lugar natural. E On the other hand, rectili-
se o movimento natural admite near motion on a finite line
um contrário, ele não pode ser cir- is composite if it turns back,
cular, afinal movimentos circulares i.e. two motions, while if
não possuem contrários (ARISTO- it does not turn back it is
TLE, 1991, On the Heavens, p. 7; incomplete and perishable;
270b32). Assim, as coisas que re- and in the order of nature,
pousam em seus lugares naturais, of definition, and of time
afastam-se deles por ação externa e alike the complete is prior to
retornam devido à natureza (admi- the incomplete and the im-
tindo sempre um movimento con- perishable to the perishable.
trário) realizam um movimento reti- Again, a motion that admits
líneo, que só pode ocorrer no mundo of being eternal is prior to
sublunar. Evidenciou-se que por one that does not. Now ro-
ser o movimento uma mudança de tatory motion can be eternal,
uma coisa para outra, ele não pode but no other motion, whether
persistir indefinidamente, logo os locomotion or motion of any
movimentos ascendente e descen- other kind, can be so, since
dente (que caracterizam contrários in all of them rest must oc-
e assim só podem ser retilíneos) cur, and with the occurrence
não são eternos. Conclui-se que of rest, the motion has pe-
Aristóteles não teria defendido uma rished. (ARISTOTLE, Phy-
inércia do tipo retilíneo ou linear, sics, 1991, p. 156; 265a17-
entendimento corroborado pela se- 27).

8 “[S]ince all the rest is for the sake of the end.” (ARISTOTLE, Physics, p. 32; 199a33)

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Ou seja, para Aristóteles é impossí- muda deve ser mudado por al-
vel um corpo mover-se sobre uma guma coisa”12 (ARISTOTLE, 1991,
linha reta infinita, pois não há li- p. 115, Physics; 241b34). Tal
nhas retas infinitas, e mesmo se princípio abrange tanto os corpos
houvesse, seria impossível de ser do mundo sublunar quanto aque-
percorrida. Afinal, é necessário les do mundo supralunar, mas en-
lembrar que Aristóteles defendia a quanto os primeiros necessitam de
existência de um mundo finito, li- uma força externa para se desloca-
mitado por uma esfera. rem de seus respectivos lugares na-
Considerando-se que Aristóteles turais, os corpos celestes não de-
tenha rejeitado a ideia de uma inér- pendem de contato para permane-
cia linear, cabe agora analisar se ele cerem em movimento, e o fazem
teria intuído algo como uma “inér- segundo sua própria natureza13 .
cia” circular9 . Em algumas pas- No entanto, como é bem conhe-
sagens de sua obra, quando trata cido, no livro XII da Metafísica,
do movimento circular, percebe- Aristóteles defendeu a existência
se que Aristóteles admitiu certa- de um primeiro movente, eterno e
mente a eternidade desse movi- imóvel, que seria a causa dos movi-
mento10 . mentos eternos e circulares no es-
Contudo, mesmo intuindo a paço, e que move sem ser movido.
conservação do movimento (circu- Além disso, Aristóteles diz que, na
lar), Aristóteles não abandonou a região supralunar, não existe ape-
ideia de causa, o que foi feito nas um único tipo de movimento es-
na modernidade11 . A sentença pacial, uma vez que existe o movi-
que inicia o Livro VII da Fí- mento irregular dos planetas; as-
sica expressa bem isso, pois Aris- sim, para cada movimento espacial
tóteles afirma que “tudo o que deve existir uma causa correspon-

9 A rigor, não se poderia falar em inércia, a não ser linear. O que queremos examinar aqui é se Aristóteles, e
posteriormente Galileu, pensam em algum tipo de movimento que persiste independentemente da ação de uma
força externa, seja retilíneo ou não. Na terminologia aristotélica, sem a ação de uma causa eficiente.
10 [...]Now rotatory motion can be eternal; but no other motion, whether locomotion or motion of any other
kind, can be so, since in all of them rest must occur, and with the occurrence of rest the motion has perished
(ARISTOTLE, 1991, Physics, p. 156; 265a 24).
11 Fátima Évora afirma que “a ideia de causa presente no conceito de movimento que sustenta e apoia a física an-
tiga e medieval é eliminada no conceito de movimento da mecânica galileano-cartesiana. De acordo com a mecânica
moderna, o movimento não mais corresponde a um processo de mudança, como ocorre na dinâmica aristotélica,
mas é um estado inteiro e absolutamente oposto ao repouso, o outro estado, e como tal não necessita de uma causa
para mantê-lo. Uma causa será necessária apenas para alterar o estado do corpo. Este novo conceito de movimento
está no cerne do princípio de inércia” (ÉVORA, 2005, p. 130, nota 6). Voltaremos a esse aspecto na continuidade
desse trabalho, quando discutiremos a inércia galileana.
12 “Everything that in motion must be moved by something”. Aristóteles retoma essa ideia em Do Céu: “Further,
since everything that is moved is moved by something” (ARISTOTLE, 1991, On the Heavens, p. 37; 288a28).
13 (Ibid., p. 4, 269a5).

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dente, sendo esta uma substância Hiparco, que contestou a expli-


eterna e imóvel. Ou seja, não existecação aristotélica acerca do movi-
apenas um movente14 . Dessa ma- mento dos projéteis, após a perda
neira, o Estagirita situa-se numa do contato com o motor. Hiparco
posição curiosa para a Física mo- elaborou o conceito de força im-
derna: para os movimentos do céu, pressa, defendendo que o projétil
defende uma espécie de causa efi- permanecia em movimento porque
ciente – pois os motores são subs- “a ação do motor (força externa)
tância -, mas sem contato, gerando imprimiria ao corpo movente (pro-
um movimento eterno, embora ir- jétil) certa ‘força impressa”’ (BER-
regular. Ou seja, é causa, mas TOLDO, 2004, p. 26). Ou seja, ao
não uma força, no sentido que será invés de o motor empurrar o ar no
aprimorada por Descartes e Gali- momento do lançamento do projé-
leu; trata-se de uma ação, ou força til (fazendo assim com que este seja
“metafísica”, se assim podemos nos impelido pelo ar e mantenha-se em
exprimir, e não física, como exi- movimento, como pretendia Aris-
girá a Física dos séculos XVII e tóteles), ele transmitiria algo ao
XVIII. Rigorosamente, não se trata próprio projétil, permitindo a con-
de uma inércia, mesmo circular, tinuidade do deslocamento deste.
pois algo causa o seu movimento. Enquanto o projétil permanecesse
No entanto, como não há contato em movimento, tal “força” dimi-
físico, temos um caso raro de movi- nuiria paulatinamente, e após sua
mento privilegiado e natural, que completa dissipação, o movimento
persiste. Ou seja, seguindo nosso cessaria e o corpo passaria ao sua
raciocínio, uma “inércia (circular) condição natural de repouso (ibid.,
metafísica”. Como veremos, Gali- p. 26).
leu ainda não irá superar comple- A tese de Hiparco não foi aceita,
tamente essa dificuldade. possivelmente por que, em parte,
contrariava os ensinamentos do Es-
As críticas à dinâmica aristoté- tagirita. Mas Bertoldo (ibid., p. 27)
lica menciona outras possíveis razões
para essa rejeição:
As primeiras críticas à mecânica
de Aristóteles surgiram menos de Provavelmente ela [a teoria
dois séculos após a morte do fi- de Hiparco] lhes devia pare-
lósofo, formuladas pelo astrônomo cer por demais abstrata ou

14 Nas palavras de Aristóteles, “That the movers are substances, then, and that one of these is first and another
second according to the same order as the movements of the stars, is evident”. (ARISTOTLE, 1991, Metaphysics, p.
177-8; 1073b17).

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especulativa. Pois, como po- dar enorme destaque à te-


deriam crer que algo empur- oria da força cinética im-
rava o projétil, mas que não pressa e incorpórea associ-
podiam ver e nem mesmo ada à explicação do movi-
imaginar? [...] Também se mento violento, ela não cons-
pode acrescentar o fato de titui um elemento inovador
que a teoria de Hiparco era isolado. Ela faz parte de toda
fraca ou mesmo insuficiente uma teoria de movimento,
porque seu autor não apre- desenvolvida por Philoponos
sentou nenhuma prova ob- que inclui um novo conceito
jetiva para dar fundamento de lugar, que implica numa
à sua revolucionária concep- nova concepção de movi-
ção de “força impressa”, o mento natural e violento, e
que também ajudou a contri- a fortiori numa nova dinâ-
buir para que ela caísse no mica, alternativa à aristoté-
mais completo esquecimento lica. De acordo com a dinâ-
durante séculos, até vir a ser mica de Philoponos, a velo-
redescoberta por outros pes- cidade de um corpo em mo-
quisadores. vimento é determinada pela
diferença aritmética – e não
Apenas no início da Idade Média a pela razão como propunha
teoria de Hiparco ressurgiu como Aristóteles – entre a potên-
uma alternativa à solução de Aris- cia motriz e a resistência
tóteles para o problema do movi- do meio através do qual o
mento dos projéteis, por meio das corpo se move. O meio, se-
ideias de João Philoponos15 (sé- gundo Philoponos, desempe-
culo VI d.C.). Como afirma Évora nha uma função unicamente
(1995a, p. 291): restritiva.

[...] apesar de a literatura Ou seja, Philoponos nega a influên-

15 A influência de Philoponos manteve-se durante a Idade Média devido à aceitação de algumas de suas ideias
por parte dos pensadores árabes. Diz Évora (1995b, p. 82): “Esta influência deu-se principalmente através dos
árabes Avicena, ou Ibn Sina (980 – 1037), e Avempace, ou Ibn Badja (1106 – 1138), que advogaram a tese de que a
lei do movimento de Aristóteles deveria ser substituída pela lei da diferença aritmética, tal qual propôs Philopo-
nos”. Ou seja, ao invés de considerar que a velocidade de um corpo em movimento é proporcional à razão entre a
força motriz (F) e a resistência ou densidade do meio (R) - ou, em outras palavras, em uma formulação algébrica
moderna para a concepção aristotélica, a velocidade do corpo é dada pelo quociente entre F e R (v = F/R)-, Avicena
e Avempace optaram por endossar a proposta de Philoponos, segundo a qual a velocidade do corpo não era dada
pelo quociente, mas sim pela diferença entre a força motriz e a resistência do meio. Novamente, em uma notação
moderna, v = F - R. Sendo assim, apesar de as primeiras edições conhecidas da obra de Philoponos acerca da física
aristotélica datarem de 1535 (grego) e 1542 (latim), “há hoje fortes evidências com respeito a sua influência no
desenvolvimento da filosofia da natureza anterior ao século XVI” (ibid., p. 82).

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cia do meio (ar) no movimento vio- ar que foi empurrado, no ins-


lento (projéteis), embora não tenha tante em que o projétil é ini-
rejeitado a ideia de que tudo o que cialmente disparado, move-
é movido deve ser movido por al- se com um movimento mais
guma coisa. A solução encontrada rápido do que a locomoção
por Philoponos foi propor que natural, para baixo do projé-
aquilo que provoca o movimento til, empurrando assim o pro-
transmite ao projétil uma força in- jétil adiante.
corpórea responsável pelo desloca-
mento das coisas após elas perde- De acordo com Évora, Aristóteles
rem o contato com o motor inicial. aparentemente preferiu a segunda
Segundo Philoponos, não haveria explicação para o movimento re-
evidências de que o movimento vi- tilíneo violento, citando algumas
olento seria causado da maneira passagens da Física para corrobo-
conforme conjecturou Aristóteles rar tal assertiva (215a15 e 266b28–
(ÉVORA, 1995a, p. 292). O Estagi- 267a15). Em todo caso, Philopo-
rita havia proposto duas possíveis nos discorda de ambas as explica-
respostas ao problema da continui- ções. No que concerne à primeira,
dade do movimento dissociado do na qual o ar empurrado pelo pro-
motor inicial, e ambas são rejeita- jétil efetua um movimento contrá-
das por Philoponos. Conforme ex- rio, retornando para ocupar o lugar
plica Évora (1993, p. 86): do corpo e impulsioná-lo adiante,
Philoponos faz a seguinte conside-
[...] os projéteis são mo-
ração:
vidos adiante mesmo depois
que aquilo que deu a eles Let us suppose that anti-
seu impulso não esteja mais peristasis take place accor-
tocando-os, ou 1) pela razão ding to the first method in-
da substituição recíproca16 , dicates above, that the air
de acordo com a qual o ar pushed forward by the arrow
empurrado adiante pelo pro- gets to the rear of the ar-
jétil volta e toma o lugar do row and thus pushes it from
projétil, e então empurra-o behind. On that assump-
adiante como alguns susten- tion, one would be hard put
tam; ou 2) pelo fato de que o to it to say what is (since

16 A ideia de substituição recíproca é denominada antiperistasis, termo que designa o processo pelo qual o ar
ocupa o lugar do projétil, impelindo-o adiante e sendo, portanto, responsável pela manutenção do movimento do
corpo. Nos termos de Cohen e Drabkin (citado também por ÉVORA, 1993, p. 87), “[t]he term is used in general of
the process whereby P1 pushes P2 into P3‘s place, P2 pushes P3 into P4‘s place,. . . , Pn-1 pushes Pn into P1‘s place
(COHEN & DRABKIN, 1966, p. 221 nota 8).

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COPÉRNICO

there seems to be no coun- losofia:


ter force) that causes the
air, once it has been pushed From these considerations
forward, to move back, that and from many others we
is along the sides of the ar- may see how impossible it
row, and, after it reaches the is for forced motion to be
rear of the arrow once more caused in the way indica-
and push the arrow forward. ted. Rather is it necessary
(. . . ) Such a view is quite to assume that some incorpo-
incredible and borders rather real motive force is imparted
on the fantastic (Philoponos by the projector to the pro-
apud. COHEN & DRAB- jectile, and that the air set
KIN, 1948, p. 221-222). in motion contributes either
nothing at all or else very lit-
tle to this motion of projec-
A segunda opção é considerada
tile. (. . . ) And there will
mais plausível por Philoponos,
be no need of any agency ex-
mas igualmente equivocada. A
ternal to the projectile (. . . ).
suposição de que o ar seja capaz
(Philoponos apud. COHEN
de manter uma flecha ou pedra
& DRABKIN, 1948, p. 223.
em movimento, mesmo após o pri-
Grifo dos autores).
meiro motor não estar mais em
contato com o corpo lançado, se-
ria plausível e não haveria a ne- Aristóteles recusou a ideia da exis-
cessidade de um motor. No en- tência do vazio porque ela seria
tanto, logo a seguir ele apresenta incompatível com a sua Física (e
suas objeções, fazendo uso de ex- com a sua Metafísica), pois acre-
periências de pensamento (recurso ditava que o meio (ar) era o res-
análogo será empregado por Gali- ponsável pelo movimento violento,
leu, séculos mais tarde, também no algo que seria impossível no vazio,
problema do movimento). A con- uma vez que “le vide, en effet, n’est
clusão final de Philoponos se con- pas un milieu et ne peut pas re-
figura, certamente, com a primeira cevoir et donc transmettre et en-
formulação mais aprimorada de tretenir le mouvement”. (KOYRÉ,
um esboço para a noção de con- 1966, p. 23). Philoponos não con-
servação da quantidade de movi- sidera esse aspecto como uma difi-
mento e uma semente para o prin- culdade, pois defendia que o movi-
cípio de inércia, como será ex- mento era causado por uma força
pressa muitos séculos mais tarde incorpórea impressa ao corpo, sem
por Descartes nos Princípios da Fi- a necessidade da ação do meio. Sob
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essa perspectiva, o movimento vi- corpo pesado de ir para o


olento poderia persistir no vazio. seu lugar natural. Philopo-
No caso dos movimentos naturais, nos portanto permanece sus-
cujo “motor é a própria natureza tentando uma postura anti-
do corpo, a sua forma, que procura inercial, pois se, de acordo
reconduzi-lo ao seu lugar” (ibid., p. com sua teoria, a força mo-
26), o meio não desempenha o pa- triz incorpórea não pode du-
pel de conservar o movimento, mas rar para sempre, também o
apenas o de resistir a ele. Con- movimento não pode durar
tudo, os corpos tendem a retornar ad infinitum.
ao seu lugar natural o mais de-
pressa possível, sendo retardados
apenas pela resistência do meio, A questão do movimento segundo
inexistente no vazio. Consequen- Thomas Bradwardine
temente, para Aristóteles, no vá-
cuo, o movimento desses corpos se- A despeito das críticas, formu-
ria instantâneo. Em resumo, o Es- ladas nomeadamente por Hiparco
tagirita rechaça a hipótese do vazio e Philoponos, a física aristotélica
porque este implicaria a inexistên- continuou ditando os rumos da ci-
cia do movimento violento (como o ência medieval até o século XIII.
vazio não é um meio, ele não pode Segundo Steenberghen (1984, p.
conservar o movimento) e do movi- 145):
mento natural (a velocidade deste O aristotelismo, prolongado
seria infinita, algo absurdo). e completado pelo neoplato-
Finalmente, embora o vazio não nismo greco-árabe, não ofe-
seja algo absurdo para Philopo- recia somente aos Latinos os
nos, esse filósofo parece não ad- elementos de uma vasta sín-
mitir a possibilidade de um mo- tese filosófica, mas uma in-
vimento inercial. Como observa terpretação coerente e com-
Évora (1995b, p. 80-81): pleta, muitas vezes enge-
Essa força motriz incorpórea, nhosa, de todos os dados
segundo Philoponos, não é observáveis respeitantes ao
uma coisa de natureza per- universo corporal [...]. Se
manente, mas desaparece se acorda em chamar “fí-
gradualmente, até mesmo no sica aristotélica” a esta im-
vazio. Esta diminuição se ponente tentativa de explica-
dá devido a uma dupla re- ção integral da ordem cós-
sistência: a) devido ao meio, mica, pode dizer-se que esta
b) devido a tendência do física de modo nenhum fora
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posta em causa no século na qual se insere Thomas Bradwar-


XIII. dine. Enquanto Aristóteles bus-
cava investigar o movimento com-
Todavia, o prestígio do aristote- parando o deslocamento dos cor-
lismo diminuiu no decorrer do pos, Bradwardine defendeu que os
século XIV17 . Nesse século, um movimentos podiam ser analisados
grupo de filósofos e de lógicos por si mesmos, comparados por in-
resolveu empreender um estudo termédio de suas grandezas. Trata-
matemático acerca do movimento. se de um estudo que envolve pro-
Devido ao fato de a maioria deles porções, designado simplesmente
ter lecionado no Merton College, em por cálculo (CUSTÓDIO, 2004, p.
Oxford, ficaram conhecidos como 36). Acerca de Aristóteles, explica
“mertonianos”, termo que posteri- Custódio (ibid., p. 36):
ormente foi substituído por “cal-
culadores” (CROMBIE, 1953, p. Para Aristóteles, a questão
261), destacando assim a disposi- relevante não era o cálculo,
ção desses pesquisadores em inves- mas investigar quais as de-
tigar a natureza sob uma perspec- terminantes naturais que ex-
tiva matemática. Ademais, esta- plicam, objetivamente, a ex-
beleceram a distinção entre movi- periência sensível do au-
mento uniforme (cuja velocidade é mento ou da diminuição da
constante) e movimento uniforme- velocidade do movimento.
mente disforme, que na linguagem Esta investigação podia ser
moderna recebeu o nome de movi- feita considerando, por um
mento uniformemente acelerado. No lado o efeito e, por outro, a
caso deste último, não é a velo- causa. Não se trata ainda
cidade que é constante, mas sim de investigar o ato do movi-
a variação dessa velocidade. Wil- mento por ele mesmo, como
liam Heytesburg (1313 – 1372), propõe Bradwardine, mas de
membro do Merton College, definiu fazê-lo sob o ponto de vista
como a “velocidade da velocidade” do móvel, no primeiro caso,
(op.cit.). e sob o ponto de vista do
É nessa tradição de pensamento motor, num segundo caso;

17 Antes disso, ainda no final do século XIII, a doutrina aristotélica conforme era ensinada na Faculdade de Artes
da Universidade de Paris sofreu um claro revés quando, em 18 de janeiro de 1277, o papa João XXI pediu para que
o bispo da cidade, Estêvão Tempier, conduzisse uma investigação acerca dos ensinamentos dos Mestres de Artes da
Universidade. Pouco mais de um mês depois, em 7 de março, houve a condenação de 219 proposições baseadas no
aristotelismo, incluindo teses de Avicena (GILSON, 2007, p. 694), o tomismo (STEENBERGHEN, 1984, p. 133) e a
tese averroísta da “dupla verdade”, que por sua vez “consistia em sustentar que uma mesma proposição podia ser
considerada simultaneamente falsa, do ponto de vista da fé, e verdadeira, do ponto de vista da razão” (GILSON,
2007, p. 694).

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sendo que a estes dois estu- a resistência interna de um corpo


dos somava-se um terceiro, composto é a predominância de
relativo às causas. elementos “pesados” ou “leves” na
constituição do corpo. Da mesma
Assim como os corpos mais gra- forma, quando o peso é a qualidade
ves caem mais rapidamente, “entre predominante, ele se torna a força
dois corpos leves, o de maior leveza motriz do corpo como um todo,
subirá mais rapidamente” (ibid., p. tendo por resistência a leveza. A
38). Em suma, o estudo das cau- ideia é que a velocidade é direta-
sas (das inclinações “para baixo” mente proporcional ao peso e in-
ou “para cima” dos móveis) per- versamente proporcional à leveza.
mitia que Aristóteles comparasse Bradwardine parece ter sido pi-
dois movimentos naturais e perce- oneiro no estudo matemático do
besse qual deles era o “mais in- movimento, tendo buscado rela-
tenso” (ibid., p. 37). A veloci- cionar força, resistência e veloci-
dade de um corpo em movimento dade (CROMBIE, 1953, p. 247).
natural é igual a sua tendência de O resultado desses esforços consis-
deslocar-se para o seu lugar na- tiu na elaboração de um Tratado
tural, dividida pela resistência do sobre as proporções, onde Bradwar-
meio (ibid., p. 38), relação que, em dine tratou acerca da “precisa rela-
notação moderna, seria expressa, ção matemática entre a magnitude
como vimos acima (nota 15), pela da força motora de Aristóteles, a
expressão v = F/R18 . força do meio resistente e a veloci-
Bradwardine, por sua vez, acre- dade alcançada pelo corpo em mo-
ditava que os movimentos pode- vimento” (RONAN, 1983, p. 266).
riam ser comparados no que tange Após refutar todas as alternativas
às suas grandezas (velocidades). O existentes, por notar que nenhuma
peso e a leveza eram considera- delas condizia com a ideia aris-
dos qualidades dos corpos compos- totélica de que só há movimento
tos (ou seja, dos corpos formados quando a força é superior à resis-
por alguma combinação dentre os tência, Bradwardine propôs que o
elementos terra, água, ar e fogo), valor da velocidade dependia da
embora fossem consideradas forças razão entre a força motora e a resis-
agindo em direções contrárias no tência interna em uma formulação
interior de um mesmo corpo com- que poderia ser escrita, segundo
posto. Ou seja, o que determina a Crombie (ibid., p. 248), em uma
força motriz, e consequentemente notação moderna, segundo a fun-

18 Ver acima nota 14.

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ção logarítmica dessa razão força Ockham (1285–1347), e que se tor-


motriz e velocidade. Essa foi a nou reitor da Universidade de Paris
forma, segundo Crombie, conhe- em 1328. Todavia, não existem evi-
cida a partir do século XIV. dências de que Buridan teve acesso
Os estudos de Bradwardine re- aos escritos de Philoponos, pois
presentarem uma novidade em re- como esclarece Évora (1993, p. 91-
lação àquilo que era feito até o mo- 92):
mento, embora a sua base ainda
não fosse experimental, mas me- [...] existe certa controvérsia
ramente lógica, assim como a dos sobre a influência da “teoria
demais estudiosos do Merton Col- da força motriz incorpórea”
lege. Essa nova forma de investi- de Philoponos sobre a “teoria
gação física certamente influenciou da força motriz”, que se tor-
o trabalho de Galileu séculos de- nou amplamente aceita no
pois, especialmente com suas ex- século XIV e que foi poste-
periências de pensamento aplica- riormente elaborada por Jean
das ao estudo do movimento. Buridan (1300?-1358) sob
o nome de “teoria do impe-
tus”. Isso porque os escri-
Jean Buridan tos de Philoponus sobre este
Segundo Crombie (ibid., 246- tema só se tornaram conhe-
53), outros pensadores, além de cidos em 1535, numa versão
Philoponos, já no período clássico, grega, e em 1542, em latim.
não aceitavam a física aristotélica
do movimento não-natural. No Não obstante o provável desconhe-
período medieval, como vimos, os cimento das teses de Philoponos,
pensadores do Merton College de- Buridan também foi um comenta-
fendiam que o projétil mover-se-ia dor da obra peripatética e também
devido a uma “potência” proveni- criticou a explicação de Aristóte-
ente do meio. A ideia desenvolvida les para o movimento dos projé-
por Hiparco, e que foi aprimorada teis. Dentre os argumentos utiliza-
por Philoponos, segundo a qual o dos para contestar a solução aris-
motor transmitia algo ao movente, totélica para o problema do des-
voltou a ser defendida em meados locamento dos projéteis, Buridan
do século XIV, sobretudo pelo inte- analisa a possibilidade da antipe-
lectual francês Jean Buridan (1300 ristasis19 , ou seja, de que o ar mo-
– 1358), discípulo de Guilherme de vido pelo projétil no ato do lança-

19 Ver acima, nota 16.

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mento realiza um movimento con- impresses (imprimit) in it


trário e então impulsiona o corpo, a certain impetus (impetus)
mantendo-o em movimento. Buri- or a certain motive force (vis
dan demonstra a sua discordância motiva) of the moving body,
em relação à tese aristotélica men- [which impetus acts] in the
cionando o caso hipotético de um direction toward which the
navio em movimento, no qual ha- mover was moving the mo-
veria um marinheiro sobre o con- ving body, either up or down,
vés. Esse marinheiro não se senti- or laterally, or circularly.
ria impelido adiante pelo ar, mas And by the amount the
ao invés disso sentiria que o ar motor moves that moving
a sua frente oferecer-lhe-ia resis- body more swiftly, by the
tência. Ademais, caso o homem same amount it will im-
estivesse posicionado atrás de al- press in it a stronger im-
guma carga (como grãos ou ma- petus. It is by that im-
deira), ele seria empurrado violen- petus that the stone is mo-
tamente entre tal carga e o ar atrás ved after the projector cea-
dele, na hipótese de que o ar te- ses to move. But that impe-
ria o poder de locomover o navio. tus is continually decreased
Segundo Buridan, isso é refutado (remittitur) by the resisting
pela experiência20 . air and by the gravity of the
Em linhas gerais, trata-se de stone, which inclines it in a
considerar que o ar não impulsi- direction contrary to that in
ona os corpos, mas sim resiste ao which the impetus was na-
movimento destes. Portanto, se o turally predisposed to move
ar não é o responsável pelo des- it. Thus the movement of
locamento dos projéteis, algo deve the stone continually beco-
fazê-lo, e segundo Buridan tratar- mes slower, and finally that
se-ia de uma força motriz (virtus impetus is so diminished or
motiva) ou de um ímpeto (impetus) corrupted that the gravity of
impresso ao corpo, ou seja, the stone wins out over it
and moves the stone down
it seems to me that it ought to its natural place. (CLA-
to be said that the motor GETT, 1961, p. 534-535.
in moving a moving body Grifo do autor.)

20 Esse exemplo do navio, utilizado por Buridan para refutar a hipótese da antiperistasis, está contida no Livro
VIII, questão 12, de uma obra intitulada Questiones super Octo Physicorum Libros Aristotelis, publicada em Paris em
1509. Tal texto foi traduzido por Marshall Clagett em The Science of Mechanics in the Middle Age (CLAGETT, 1961).
Estamos utilizando aqui as citações de Buridan, conforme traduzido por Clagett.

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Da mesma forma como fizera Phi- sência de alguma força contrária.


loponos, Buridan admitiu que a Não obstante, é preciso atentar-se
força motriz reduzir-se-ia devido à às sutilezas envolvidas na formu-
resistência do meio, mas contraria- lação de cada conceito, relaciona-
mente ao filósofo neoplatônico, de- das com o contexto histórico do de-
fendeu que tal impulso seria de na- senvolvimento da ciência, no qual
tureza permanente, e que só não o impetus estaria atrelado a uma
se mantinha ad infinitum no pro- visão de mundo - imagem de na-
jétil por causa de forças externas tureza, na terminologia de Abran-
contrárias. Ou seja, Buridan admi- tes (op.cit.) -, mais marcadamente
tiu que o movimento pudesse di- aristotélica. De fato, no caso do
minuir, embora não aceitasse que impetus deve-se ter em mente que
tal processo tratar-se-ia de algo es- Buridan era adepto da teoria aris-
pontâneo, conforme parece ter sido totélica de que haveria lugares na-
para Philoponos21 . Para Buridan, turais, e sendo assim que os corpos
o impetus seria de natureza perma- visariam o repouso. Logo, o “ím-
nente (res nature permanentis) caso peto” explicaria porque o projétil
não houvesse a resistência do meio continuaria sua trajetória antinatu-
e a gravidade, que atuariam no en- ral, contrariando a condição natu-
fraquecimento dessa força motriz. ral de repouso. Nesse caso, o movi-
No entanto, esse autor não renun- mento (natural ou violento) repre-
ciou completamente à física aris- senta, como vimos, uma condição
totélica, pois manteve a ideia de de desequilíbrio.
que os corpos possuíam lugares na- Por outro lado, as concepções de
turais para os quais tenderiam a Buridan acerca do movimento di-
deslocar-se. ferem das de Aristóteles porque o
A ideia de que o impetus seria primeiro buscou aplicar a teoria do
uma qualidade permanente confe- impetus tanto para o movimento
rida ao projétil, responsável pelo terrestre quanto para o celeste, fa-
movimento, seria uma antecessora zendo com que as dinâmicas dos
da noção de inércia (CLAGETT, dois mundos fossem regidas pelo
1961, 525). De fato, existe certa mesmo conjunto de leis (ÉVORA,
similaridade entre ambos, nomea- 1993, p. 95). A unificação das me-
damente no que se refere à tese de cânicas terrestre e celeste contrari-
que o movimento persistiria na au- ava a separação entre as regiões su-

21 Conforme exposto acima, Philoponos postulou que haveria uma força motriz responsável pelo movimento dos
corpos, tanto natural quanto violento. De acordo com Évora, a força motriz incorpórea de Philoponos “não é uma
coisa de natureza permanente, mas desaparece gradualmente, até mesmo no vazio” (ÉVORA, 1995b, p. 80).

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blunar e supralunar, que, segundo que o aproximou de uma noção de


Aristóteles, seriam governadas por inércia e da relatividade do movi-
leis distintas. Entretanto, ao pos- mento.
tular que o impetus era conferido Oresme discute o movimento da
por Deus aos corpos celestes, Buri- Terra examinando o conhecido ar-
dan volta a se aproximar das ideias gumento da pedra atirada para o
aristotélicas a respeito do movi- alto. Segundo ele, a pedra rea-
mento na região supralunar. Ou liza dois tipos de movimentos si-
seja, diferente da noção de inércia multaneamente, tanto ao ser ar-
do período moderno, a ação de um remessada, quanto ao retornar ao
primeiro movente (Aristóteles), ou local do qual foi lançada. Isso
o impetus de origem divina22 (Bu- por que, enquanto se move verti-
ridan), exigem a presença de uma calmente para cima e depois para
força (metafísica). baixo, a pedra também efetua um
movimento circular, estando con-
comitantemente em trajetória reti-
Nicolas Oresme e a defesa do mo- línea e circular. Com isso, a pe-
vimento da Terra dra acompanha o movimento da
Terra23 , e assim cai precisamente
Discípulo de Buridan, Nicolas
no mesmo ponto a partir de onde
Oresme (1320/23-1382), discor-
foi arremessada. Entretanto, tal
dou de algumas ideias domestre,
solução apresenta outro problema:
inclusive em relação à teoria do
por que nós não percebemos esse
impetus. Para Oresme, o impe-
movimento composto do corpo?
tus não era uma qualidade per-
A resposta de Oresme vincula-se
manente conforme pensava Buri-
à ideia da relatividade do movi-
dan, mas algo que se consumia
mento, antecipando, assim, os ar-
com o tempo. No entanto, Oresme
gumentos de Nicolau Copérnico
não se limitou apenas a discutir
em quase duzentos anos. Resu-
os pormenores da teoria do impe-
midamente, o argumento pode ser
tus, ocupando-se também com a
descrito do seguinte modo: uma
discussão acerca da possibilidade
pessoa que estivesse a bordo de na-
do movimento da Terra (conside-
vio, mas sem ter consciência do
rado como uma hipótese, pois es-
movimento deste, pensaria que ao
taria em conflito com a fé cristã), o

22 Vale lembrar a semelhança incontestável da presença divina na origem do movimento na física de Descartes,
conforme apresentada nos Princípios da Filosofia. Voltaremos a esse problema no próximo trabalho.
23 Trata-se da ideia de que um corpo qualquer, tal como uma flecha ou pedra, “é parte do sistema mecânico da
rotação da Terra, tal qual um homem que move sua mão verticalmente para cima e para baixo em um mastro é
parte do sistema mecânico do navio” (CLAGETT, 1961, p. 599).

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deslizar sua mão em linha reta ao zão de que também compartilha-


longo do mastro, ela estaria em mos de tal movimento. Com isso,
movimento retilíneo, quando na Oresme opôs-se a Aristóteles, uma
verdade a mão realizaria um mo- vez que este defendia que o mo-
vimento composto: mover-se-ia de vimento circular era característico
forma retilínea para baixo e tam- dos corpos celestes, enquanto que
bém horizontalmente, seguindo a o retilíneo era próprio dos corpos
direção do navio, que por sua vez terrestres; contudo, isso não re-
deslocar-se-ia para leste. O tripu- presentou uma ruptura completa,
lante é partícipe do movimento da pois Oresme admitiu que os obje-
embarcação, e como tal não per- tos terrestres também pudessem se
cebe que está em movimento jun- deslocar naturalmente de maneira
tamente com ela. retilínea e para baixo, desde que
Porém, segundo Évora (1993, p. não estivessem em seu lugar na-
99), havia a necessidade de lidar tural (ibid., p. 100). Em resumo,
com o argumento aristotélico de Oresme defendeu a existência de
que cada corpo simples possui um dois tipos de movimento natural
princípio motor. No caso da Terra para os corpos terrestres: o circu-
imóvel, tal problema não se coloca- lar, devido ao fato de que a Terra
ria, mas caso ela estivesse em rota- mover-se-ia circularmente; e o re-
ção, sua trajetória seria antinatural tilíneo (para baixo), que ocorreria
e exigiria o contato direto e perma- quando o corpo buscasse retornar
nente de um motor externo, para a ao seu lugar natural.
manutenção desse movimento con- Gilson (2007, p. 850) defende
trário à natureza, em consonân- que Oresme superou Buridan e
cia com a filosofia de Aristóteles. anunciando as pesquisas de Des-
Oresme contornou a dificuldade cartes e Galileu, “Nicolau Oresme
propondo que a Terra deslocar-se- é o predecessor direto de Copér-
ia naturalmente de modo circu- nico” (ibid.). Entretanto, a teo-
lar, dispensando a necessidade de ria de Oresme ainda estava incom-
uma força externa para mantê-la pleta, pois lhe faltou a percepção
em movimento, já que este seria da propriedade inercial do movi-
natural. Consequentemente, este mento dos corpos.
também seria o movimento natural
dos corpos terrestres, na qualidade
Copérnico e o movimento relativo
de partícipes do deslocamento da
Terra, embora não possamos per- A importância de Nicolau Co-
ceber a trajetória circular dos cor- pérnico (1473–1543), não somente
pos a nossa volta, pela simples ra- para a Astronomia, mas também
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para a Revolução Científica do sé- nets must fit in a definite way”25 .


culo XVII, é muito conhecida e Copérnico, evidentemente, pres-
amplamente estudada (DUHEM, sionado pelas dificuldades religi-
1913-1959; REICHENBACH, 1942; osas da época, foi cuidadoso e
KUHN, 1985; CROWE, 1990; AP- afirma, também no Prefácio, que
PLEBAUM, 2000; HOLTON and a sua motivação para pensar em
BRUSH, 2005)24 . Consciente de formas alternativas para calcular
que a publicação do tratado As os movimentos das esferas do Uni-
Revoluções dos Orbes Celestes po- verso deu-se porque “os matemáti-
deria trazer-lhe problemas perante cos não estavam de acordo consigo
as autoridades eclesiásticas, Copér- próprios na investigação de tais
nico manteve o manuscrito em seu movimentos” (COPÉRNICO, 1984,
poder durante muitos anos, con- p. 7). Ainda nesse sentido, a van-
forme o próprio relata no Prefá- tagem para um modelo mais ade-
cio do livro, dedicado ao papa quado, ele afirma, seria a correta
Paulo III (COPÉRNICO, 1984, p. elaboração do Calendário eclesiás-
6). Nesse Prefácio, Copérnico apre- tico, discutida durante o Concílio
senta sua teoria como uma “hipó- de Latrão, que não pôde ser efe-
tese”. No entanto, o sentido desse tuada porque “a duração dos anos
termo não é isento de controvér- e dos meses, bem como os movi-
sias. Na verdade, importantes in- mentos do Sol e da Lua, ainda não
terpretes do trabalho de Copérnico estavam convenientemente medi-
avaliam que ele estaria conside- dos” (ibid., p. 11). Mas a defesa
rando seu modelo mais do que uma mais importante ele já havia vincu-
simples suposição, mas como um lado, páginas antes, à astronomia:
sistema (form) que permite a de-
terminação dos movimentos cele- E deste modo, admitindo os
tes (WALLIS, 1952, p. 484). Holton movimentos que eu à Terra
(op.cit., p. 20) afirma que o próprio atribuo na obra infra, com
Copérnico enfatiza que “the he- perguntas e longas observa-
liocentric system provided a uni- ções, descobri que, se estabe-
que pattern into which all the pla- lecermos relação entre a ro-
tação da Terra e os movi-

24 Considerando o desenvolvimento da Física no período moderno, especialmente com Galileu e seu trabalho
para os fundamentos da Física, concordamos com Infeld (1973, p. 66 ) quando ele afirma “[t]he work of Coperni-
cus represents not only the beginning of modern astronomy but also the beginning of the modern science of the
universe and of nature. (...) We know from the history of Science that the first step is always the most difficult”.
25 Essa questão é bastante complexa, pois Copérnico foi obrigado a introduzir epiciclos em seu sistema. O que
podemos dizer é que, de um ponto de vista geral, o modelo heliocêntrico corresponderia mais adequadamente a
um sistema de mundo, para usar os termos de Galileu, do que o sistema geocêntrico, exatamente por uma melhor
adequação e pelas previsões inéditas, como o tamanho do universo, problema indiferente no sistema ptolomaico.

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BREVE HISTÓRIA DA INÉRCIA - I: O PROBLEMA DO MOVIMENTO DE ARISTÓTELES A
COPÉRNICO

mentos dos restantes astros, observador. Ora a Terra


e os calcularmos em confor- é o lugar donde aquela ro-
midade com a revolução de tação celeste é observada e
cada um deles, não só se hão- se apresenta à nossa vista.
de deduzir daí os seus fenô- Portanto, se algum movi-
menos, mas até se hão-de in- mento for atribuído à Terra,
terligar as ordens e grande- o mesmo movimento apare-
zas de todas as esferas e as- cerá em tudo que é exte-
tros assim como o próprio rior à Terra, mas na direc-
céu (ibid., p. 9). ção oposta. É o caso em
primeiro lugar da rotação
diurna (ibid., p. 29).
Esse estudo dos movimentos dos
outros astros é empreendido a par-
tir do Livro II, e mantém-se até No entanto, a defesa do movi-
a última parte (Livro VI) do tra- mento terrestre implicava uma di-
tado As Revoluções dos Orbes Celes- ficuldade em relação à ausência de
tes, enquanto que no Livro I há a uma mudança aparente de posi-
descrição das posições das esferas ção das estrelas fixas enquanto a
e dos movimentos da Terra, con- Terra passa para o lado oposto de
forme Copérnico os compreende sua órbita (paralaxe estelar anual).
(ibid., p. 9-10)26 . Copérnico reconhece que tal mu-
O aspecto central para discutir o dança deveria existir, mesmo que
problema da inércia no sistema co- seja irrelevante, e justifica que ela
pernicano é a relatividade do mo- não é percebida pela falta de ins-
vimento, conforme pode ser no- trumentos capazes de medi-la, so-
tado na seguinte passagem: mado ao fato de que a esfera das
estrelas fixas estaria muito distante
Na verdade, entre objectos da Terra, o que tornaria o desvio
que se movem igualmente na insignificante.
mesma direcção, não se nota Além da questão da paralaxe,
qualquer movimento, isto é, Copérnico enfrentou outros pro-
entre a coisa observada e o blemas em sua defesa do mo-

26 O problema da finitude ou infinitude do mundo também é complexa no trabalho de Copérnico. Koyré (1957,
p.33-34) considera que o universo copernicano é francamente finito: “[...] the world of Copernicus is finite. Moreo-
ver, it seems to be psychologically quite normal that the man who took the first step , that of arresting the motion
of the sphere of the fixed stars, hesitated before taking the second, that of dissolving it in boundless space; it was
enough for one man to move the earth and to enlarge the world so as to make it immeasurable - immensum; to ask
him to make it infinite is obviously asking too much”. Mas o próprio Copérnico hesita em relação a essa questão.
No primeiro capítulo de seu livro, Copérnico afirma que o Universo tende a ser delimitado por uma esfera (ibid.,
p. 17). No entanto, no Livro I, Capítulo VIII, ele diz deixar aos físicos a tarefa de discutir se o mundo é finito ou
infinito (COPERNICO, 1984, p. 40).

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SAMUEL SIMON E EVALDO REZENDE

vimento terrestre. Dentre eles, Com efeito, os objectos a


destaca-se a tese ptolomaica (con- que a força ou o impulso
tida no Almagesto, I, 7) de que se a são aplicados têm necessa-
Terra se movesse com uma rotação riamente de ser destruídos
diária, tal movimento teria de ser e não subsistirão durante
bastante veloz, de modo que os ob- muito tempo, mas as coi-
jetos terrestres dispersar-se-iam no sas que são feitas pela Na-
espaço, ao invés de permanecerem tureza estão no seu estado27
em seus lugares. A rapidez com natural e continuam na sua
a qual a Terra deslocar-se-ia impe- forma perfeita. É, pois, em
diria que os corpos caíssem em li- vão que Ptolomeu teme que
nha reta em direção aos seus luga- a Terra venha a dissipar-se,
res naturais. Além disso, segundo assim como todos os objec-
Copérnico, “veríamos as nuvens e tos terrestres, devido a uma
tudo o que está impresso no ar con- rotação produzida pela força
tinuamente arrastados para Oeste” da Natureza, que é muito di-
(ibid., p. 38). Entretanto, o as- ferente do que pode ser reali-
trônomo lida com tais objeções su- zado pela arte e pelo engenho
pondo que “se alguém for de opi- humanos (op.cit.).
nião que a Terra se move, dirá por
certo que o movimento é natural e
não violento” (ibid., p. 39). Dessa Em seguida, Copérnico volta a in-
forma, a rotação terrestre não pre- sistir na ideia de que o movi-
cipitaria a desintegração do pla- mento é relativo, com a qual con-
neta, uma vez que tal movimento seguia justificar porque não perce-
seria natural. A terminologia de beríamos a rotação terrestre. Ele
Copérnico é evidentemente aristo- acreditava que os objetos terres-
télica: tres eram partícipes do movimento
da Terra, tese também defendida
[...] as coisas que são se- por Oresme. Para corroborar seu
gundo a Natureza têm efei- argumento, o astrônomo utilizou
tos contrários às que são o exemplo de um navio em mo-
provocadas pela violência. vimento, tal como fizera Oresme,

27 Mantivemos a tradução “estado” da edição portuguesa, mas, como já dissemos acima – nota 4 -, evitamos esse
termo. Concordamos com a edição inglesa, que traduz essa passage da seguinte maneira: “[b]ut the things which
are caused by nature are in a right condition and are kept in their best organization.” Grifo nosso (COPERNICUS,
1952).
28 “E por que não havemos de admitir que a rotação diária é aparente no Céu, mas real na Terra? E é assim que
as coisas se passam na realidade [...]. Na verdade, quando um navio navega com bonança, tudo o que está fora
dele parece aos navegantes mover-se pelo reflexo daquele movimento e, por outro lado, pensam que estão imóveis
com todos os objetos junto deles. Naturalmente, a mesma coisa acontece com o movimento da Terra de maneira

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COPÉRNICO

mas com as devidas modifica- Quando está nesta posição


ções28 . O astrônomo concluiu que não pode ter nenhum outro
as coisas, que de alguma forma movimento excepto o circu-
estão ligadas à Terra, deslocam- lar, pois que o corpo simples
se com ela quer porque o ar está permanece totalmente em si
“misturado com a matéria terres- mesmo como um corpo em
tre e aquosa, quer porque o movi- repouso. O movimento recti-
mento do ar é adquirido, pois par- líneo manifestar-se-á nos ob-
tilha com a Terra da sua rotação in- jectos que abandonam a sua
cessante, devido à contiguidade e posição natural ou são arras-
à ausência de resistência” (ibid., p. tados para fora dela ou de
41). qualquer modo de lá saem.
A relação entre o movimento re- [...] o movimento rectilí-
lativo e o problema da inércia em neo só ocorre nos corpos que
Copérnico é apresentado em um não se encontram no seu pró-
amalgama de concepções moder- prio estado nem em harmo-
nas e aristotélica. Para ele, os cor- nia perfeita com a sua natu-
pos terrestres são dotados de um reza (ibid., p. 42).
duplo movimento: o movimento
circular (ou horizontal), pelo fato Tal ideia também fora sustentada
de que acompanham o movimento por Oresme, conforme exposto no
da Terra, e o movimento retilíneo tópico anterior. Ambos ainda não
(vertical), que ocorre quando os tinham a noção de inércia, mas as
objetos não estão em seus lugares considerações copernicanas a res-
naturais, seja quando se afastam peito das causas dos movimentos
de tais lugares devido a um movi- circular e retilíneo corroboram a
mento violento, seja quando bus- interpretação de que ele pudesse
cam retornar ao seu estado natural ter admitido a manutenção do mo-
de repouso: vimento circular (“inércia circu-
lar”), pois a causa de um movi-
[...] o corpo simples per- mento dessa ordem manter-se-ia
manece na sua posição na- constante na visão do astrônomo,
tural e na sua unidade. o que não ocorreria com desloca-

que todo o Universo parece rodar” (ibid., p. 40-41). Essas considerações serão próximas a Giordano Bruno, como
veremos na segunda parte desse trabalho, a ser publicada. Consideramos que ambos prenunciam o princípio de
relatividade clássico, enunciado posteriormente por Galileu e, em toda a sua generalidade, por Newton. Também
como veremos, consideramos que Bruno tem teses menos aristotélicas, nesse aspecto, do que Copérnico. Talvez por
sua visão de mundo antiaristotélica.
29 O movimento circular processa-se sempre sem alteração porque a sua causa é constante. Pelo contrário, os
objetos que se movem em linha reta perdem a causa que os acelera e os levou ao seu próprio lugar. Deixam então
de ser leves ou pesados, cessando esse movimento (ibid., p. 42).

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mentos em linha reta29 . certa maneira, o próprio princí-


Veremos que parte das dificul- pio de relatividade clássico foi in-
dades de Copérnico sobre esse tuído por alguns filósofos, como
tema persistirá nos estudos de Ga- Buridan, quando realiza sua crí-
lileu. tica à noção de antiperistasis, e
posteriormente por Oresme, Bruno
(como veremos no próximo traba-
Conclusão
lho) e Copérnico, nos estudos so-
Um dos sentidos de mudança na bre o movimento da Terra e sobre
filosofia do Estagirita é o de trans- o movimento relativo. Seguindo
lação, ou descolamento. Vimos que a terminologia proposta por Paulo
vários pensadores se dedicaram a Abrantes (2016), a imagem de na-
esse complexo problema ao longo tureza de Copérnico, ao lado das
de quase vinte séculos, conside- limitações próprias do desenvolvi-
rando o período que vai da Física mento conceitual da Matemática,
de Aristóteles até a publicação do da Física e da Astronomia do final
livro de Copérnico, em 1543. Os do século XVI, pode ter desempe-
estudos desenvolvidos entre os sé- nhado um papel considerável nas
culos XIII e XVI irão aprofundar a dificuldades encontradas por esse
crítica à física aristotélica em re- astrônomo30 . Com o princípio de
lação ao movimento, examinando, relatividade e o uso implícito de
sobretudo, as concepções de mo- causalidade - no contexto de uma
vimento natural e movimento vi- revolucionária conceituação algé-
olento, ou forçado. As análises brica do movimento - Galileu irá
de Bradwardine, Oresme, Buridan suplantar muitas das dificuldades
e Copérnico preparam o cenário de Copérnico.
para o desenvolvimento posterior,
que será feito por Gassendi, Des-
cartes e Galileu, especialmente no
que se refere aos estudos do mo-
vimento relativo. Essa noção per-
mitirá o desenvolvimento dos tra-
balhos sobre o princípio de rela-
tividade e do moderno conceito
de inércia. Vale notar que, de

30 Foi necessário o desenvolvimento do cálculo infinitesimal e integral, por Leibniz e Newton, para uma ade-
quada síntese entre astronomia e física, ou ainda, entre a física celeste e a física terrestre. Mas somente a dinâmica
newtoniana fará a primeira síntese mais elaborada desse problema, onde as noções de massa e força tornam-se
determinantes.

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BREVE HISTÓRIA DA INÉRCIA - I: O PROBLEMA DO MOVIMENTO DE ARISTÓTELES A
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266 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.6, n.1, jul. 2018, p. 241-266
ISSN: 2317-9570
Pierre Duhem: Um Filósofo do Senso Comum*
[Pierre Duhem: A Common Sense Philosopher]

Fábio Rodrigo Leite **

Resumo: O presente artigo visa a elucidar os fundamentos da me-


todologia científica de Pierre Duhem, realçando alguns aspectos
anti-convencionalistas da mesma. Argumentamos que seu método
ampara-se em noções e princípios provenientes do senso comum. Ini-
cialmente, distinguimos os significados que este conceito assume ao
longo de sua obra, comparando-o com a noção de bom senso, para, em
seguida, justificarmos por que suas críticas a Wilhelm Ostwald, Al-
bert Einstein e Bernhard Riemann, feitas em nome do senso comum,
não envolvem, como alguns importantes estudiosos supuseram, con-
tradição alguma. Por fim, sustentamos que suas publicações tardias,
especialmente A ciência alemã, apesar de resultante do clima intelec-
tual belicoso, deve ser alçada ao mesmo patamar de importância ge-
ralmente atribuído a A teoria física.
Palavras-chave: senso comum, bom senso, metodologia, ciência
alemã, espírito de finura.

Abstract: The present article aims at elucidating the foundations


of Pierre Duhem’s scientific methodology, highlighting some of its
anti-conventional aspects. We argue that his method is based on
common sense notions and principles. After initially distinguishing
the meanings that the concept of common sense assumes throughout
the Duhemian works, comparing them with the notion of good sense,
we try to justify how his criticisms of Wilhelm Ostwald, Albert Eins-
tein and Bernhard Riemann, made in the name of common sense, do
not involve, as some important scholars thought, any contradiction.
Finally, we mantain that his mature publications, especially German
science, though resulting from the bellicose intellectual climate, must
be raised to the same level of importance as The aim and structure of
physical theory.
Keywords: common sense, good sense, methodology, German sci-
ence, intuitive mind.

Introdução: o estado atual do pro- controversas de Pierre Duhem. Es-


blema crito meses após a eclosão da
Grande Guerra, no contexto da fa-
A ciência alemã (1915) é, reco- migerada “guerra dos manifestos”
nhecidamente, uma das obras mais

* O presente artigo é uma versão atualizada e substancialmente remanejada da primeira parte de minha Dis-
sertação de Mestrado, defendida na Universidade de São Paulo em 2007.
** Pós-doutorando em Filosofia das Ciências pela Universidade de São Paulo. E-mail: efferrelle@yahoo.com.br.

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ISSN: 2317-9570
FÁBIO RODRIGO LEITE

entabulada sobretudo entre inte- do conhecimento vulgar, proveni-


lectuais franceses e alemães (RAS- ente do senso comum, e da física
MUSSEN, 2004), o pequeno livro teórica, reservado ao bom senso dos
chama a atenção pelo estilo elo- especialistas (cf. DUHEM, 1981,
quente, pela preocupação didática e p. 239-248, 269-271), como ele po-
pelo nacionalismo explícito. A oca- deria amparar suas críticas às te-
sião contribuiu para que sua re- orias de tipo alemão em 1915 na-
cepção fosse a melhor possível no quele mesmo senso comum, explo-
cenário acadêmico francês, alcan- rando a ausência dele nas teorias
çando, inclusive, o grande público. de seus vizinhos geográficos? Por
Classificada não por acaso como outras palavras, não estaria o filó-
“literatura de guerra” (cf. STOF- sofo traindo a distinção anterior-
FEL, 2002, p. 253-260), torna-se mente elaborada entre as “leis do
impossível negar o caráter opor- senso comum” e as leis abstratas
tunista da obra (as quatro lições e convencionais da física matemá-
constituintes de A ciência alemã fo- tica, elevando, agora, o conheci-
ram proferidas junto a um grupo mento vulgar ao patamar de cri-
de estudantes católicos da Univer- tério metodológico para a escolha
sidade de Bordeaux que se prepa- das teorias? É um erro, diz-nos
rava para ir ao front de batalha). Maiocchi (1985, p. 230), “susten-
Aspectos externos como esses, as- tar que para Duhem a escolha das
sociados a questões de cunho in- teorias dependa do senso comum”.
terno que logo examinaremos, con- De fato, continua o comentador,
duziram Roberto Maiocchi a de- toda a confusão seria resolvida se
fender a tese da existência de uma se assumisse a hipótese da existên-
contradição entre a metodologia an- cia de “deslize terminológico”, tal-
terior, exposta em A teoria física vez inconsciente, operado em A ci-
(1906), e a “infeliz” metodologia ência alemã. Como nosso autor ou-
posterior, resultante do clima beli- trora defendera que o bom senso
coso, delineada em A ciência alemã. era o apanágio dos cientistas ex-
À primeira vista, a tese do intér- perientes, desenvolvido com a prá-
prete italiano parece convincente, tica constante da ciência, a coerên-
afinal, se antes Duhem havia dis- cia tê-lo-ia obrigado a grafar “bom
tinguido nitidamente os domínios senso” em vez de “senso comum” –

1 “A fonte da confusão frequentemente operada entre ‘bom senso’ e ‘senso comum’ é um escrito de Duhem, o
seu escrito mais infeliz, A ciência alemã. [...] este livrinho ressente-se de modo pesadíssimo do clima bélico, das
exigências da retórica e de um exaltado patriotismo” (MAIOCCHI, 1985, p. 232). E, mais à frente: “Não podemos
tomar as considerações de Duhem sobre o senso comum de A ciência alemã juntamente com a epistemologia de
A teoria [física], porque a epistemologia da primeira é radicalmente diversa daquela da segunda. A ciência alemã

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PIERRE DUHEM: UM FILÓSOFO DO SENSO COMUM

apenas em nome do bom senso as o qual é o fundamento de


críticas à ciência alemã poderiam toda certeza científica, filo-
1
ser justificadas . sófica e religiosa. Meu livro
Anos depois, Jean-François Stof- sobre a teoria física não tinha
fel intentou dar uma resposta às outro objetivo senão colocar
acusações de Maiocchi. Sua argu- em evidência a verdade cien-
mentação, contudo, resumiu-se a tífica desta tese.
mostrar que a temática naciona-
lista já estava presente desde os en-
saios de juventude do filósofo. Em E ainda:
particular, no artigo “A escola in-
[...] percebi que poderíamos
glesa e as teorias físicas” (1893),
dizer o mesmo sobre todas as
quando o autor distinguia as ca-
ciências, incluindo aquelas
racterísticas das físicas inglesa e
consideradas como as mais
francesa, uma passagem prenun-
rigorosas – a física, a me-
ciaria a cisão, futuramente explo-
cânica e mesmo a geome-
rada, entre franceses e alemães2 .
tria. As fundações de cada
Mas isso é tudo. A resposta de Stof-
um desses edifícios são for-
fel afigura-se-nos deveras insufici-
madas por noções que se
ente, pois ela sequer toca no pro-
tem a pretensão de com-
blema fundamental levantado por
preender, apesar de não se
Maiocchi, referente à questão dos
poder defini-las, de princí-
critérios legítimos para a escolha
pios que se têm por asse-
das hipóteses.
gurados, apesar de não ter-
Problemas reais para o italiano,
mos nenhuma demonstra-
não mencionados por Stoffel, so-
ção deles. Essas noções e es-
brevêm quando atentamos para a
ses princípios são formados
carta endereçada por Duhem a Jo-
pelo bom senso. Sem esta
seph Récamier:
base de bom senso, que de
Creditei meu dever como ci- modo algum é científica, ne-
entista, bem como cristão, a nhuma ciência poderia exis-
fazer-me incessantemente o tir como tal; toda a soli-
apóstolo do senso comum, dez da ciência vem desta

estava provavelmente destinada a ser um infeliz parêntese no percurso duhemiano” (MAIOCCHI, 1985, p. 234).
Duas décadas depois, Maiocchi (2004, p. 511) reiterou sua interpretação, insistindo que A ciência alemã “é o mais
medíocre de todos os escritos de Duhem; [...] que esse escrito é de um nível bem inferior às precedentes produções
duhemianas; [...] que esse texto está em contradição com o que Duhem havia escrito anteriormente”.
2 Ei-la: “Enquanto o físico francês e sobretudo o físico alemão, quando descobrem uma lei nova, comprazem-se
em uní-la aos princípios admitidos, em mostrar que...” (DUHEM, 1893b, p. 370. Itálicos meus. Cf. STOFFEL, 2002,
p. 266, n. 199).

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FÁBIO RODRIGO LEITE

base. [*] O que há de sur- parece solapar a posição de Maioc-


preendente, então, se ocorrechi, uma vez que nele se afirma que
o mesmo com as noções pri- A teoria física representaria, sur-
meiras e com os primeiros preendentemente, uma defesa do
senso comum. O vigor dessa reori-
princípios da filosofia e da fé?
[**] Se eu não posso definirentação interpretativa (a avaliação
essas noções que me parecem,mesma do seu impacto está fora
entretanto, claras: “corpo”,de questão...) depende, por sua
“alma”, “Deus”, “morte”, vez, da confiança que a carta deve
receber, mormente porque ela pa-
“vida”, “bem”, “mal”, “liber-
dade”, “dever”...; se eu nãorece conflitar com o conteúdo do
posso demonstrar esses jul- livro. Essa confiança foi questi-
gamentos, que me parecem, onada por Stoffel, que levantou a
entretanto, assegurados: “O suspeita de um erro de retranscri-
corpo não pode pensar”; “O ção na carta, propondo que A teoria
mundo não tem em si mesmo física seja lida como uma defesa do
uma razão de sua existên- bom senso. Sem o perceber, o belga
aproxima-se muito mais da posi-
cia”; “Devo fazer o bem e evi-
ção de Maiocchi do que ele mesmo
tar o mal”, mereço ser recom-
pensado no primeiro caso e supõe4 . O “deslize terminológico”
punido no segundo? Nossas que este atribuíra a A ciência alemã
ciências mais certas repou- é renomeado como um “problema
sam sobre fundamentos da terminológico” ou um “problema
mesma natureza que aque- de retranscrição” que aquele iden-
les3 . tifica na carta. Tanto o primeiro
quanto o segundo não estão dis-
De imediato, o primeiro parágrafo postos a ver Duhem como um de-

3 Grifos meus. Hélène Pierre-Duhem afirma que a carta, não datada, fora destinada a Récamier e se perdera
após tê-la recebido por empréstimo do destinatário (PIERRE-DUHEM, 1936, p. 156). Pior: nunca encontramos
uma transcrição integral da missiva. Assim, vimo-nos obrigados a cotejar versões parciais disseminadas entre os
autores mais antigos. Inferimos de saída que sua escrita deve ser posterior a 1906, ano de publicação de A teoria
física. Qualquer informação adicional sobre sua composição torna-se hipotética. De nossa parte, cremos que ela
pode ter sido escrita nos últimos anos da vida de Duhem, a partir de 1914, quando a temática do bom senso e do
senso comum recebe atenção renovada. Utilizamos para a nossa tradução três fontes: PICARD, 1921, p. cxxxvii-iii;
JORDAN, 1917, p. 31-32; PIERRE-DUHEM, 1936, p. 156. O sinal “[*]” indica o fim da parte transcrita por Picard
e o início do trecho traduzido a partir de Jordan; o sinal “[**]” marca o ponto a partir do qual encontramos simila-
ridade entre os registros de Jordan e Hélène. A primeira síntese das partes citadas por Jordan e Picard foi feita por
Mentré (1922a, p. 457-458).
4 “Esse texto [a carta] fundamental coloca imediatamente um problema terminológico que, se dispuséssemos do
texto original, se revelaria possivelmente como um problema de retranscrição: no primeiro extrato citado, Duhem
se refere ao ‘senso comum’, enquanto no segundo, ele evoca o ‘bom senso’. Sendo idêntico o contexto – o funda-
mento de toda a certeza –, há aí um problema de coerência [...]. Ora, esse problema é de importância: antes de
qualificar Duhem de apóstolo do ‘senso comum’, seria preciso se assegurar de que essa leitura é melhor do que
uma outra, que faria dele o apóstolo do ‘bom senso”’ (STOFFEL, 2002, p. 80).

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PIERRE DUHEM: UM FILÓSOFO DO SENSO COMUM

fensor do senso comum; ambos ne- centa Duhem, a quantidade de hi-


gam de imediato qualquer possi- póteses acessórias assumidas na re-
bilidade de identificação entre os alização do teste é inumerável, de
conceitos de senso comum e bom modo que, em um caso de refu-
senso – quando identificados, o re- tação, diante da inumerabilidade
sultado, indicam os intérpretes, se- inicial, a lógica mostra-se incapaz
ria a incoerência5 . O problema de de determinar qual (ou quais) a
Maiocchi (agora também de Stof- hipótese responsável pelo desvio
fel) permanece sem solução. Que constatado, impedindo, por conse-
Duhem possa ser considerado um guinte, o abandono ou a modifica-
filósofo do senso comum sem pre- ção imediatos da mesma (DUHEM,
juízo da coerência de seu pensa- 1894, p. 187-193; 1981, p. 278-
mento é o que esperamos provar 285). Dada a limitação do po-
nas páginas subsequentes. der decisório da análise lógica, o
encargo da escolha é transferido
a uma faculdade de natureza dis-
Observações sobre os conceitos de
tinta:
bom senso e senso comum em A
teoria física
[...] a pura lógica não é ja-
Uma teses que mais contribuí- mais a única regra de nos-
ram para a influência da epistemo- sos julgamentos; certas opi-
logia duhemiana consiste na afir- niões, que não caem jamais
mação de que na física matemá- sob o golpe do princípio de
tica nenhum resultado experimen- não-contradição, são, toda-
tal pode ser convenientemente in- via, perfeitamente insensa-
terpretado sem o conhecimento de tas; esses motivos que não
outras teorias ou hipóteses acessó- decorrem da lógica e que, en-
rias que auxiliaram o teórico a con- tretanto, dirigem nossa esco-
ceber o próprio experimento. Toda lha, essas razões que a ra-
experiência é feita à luz de teo- zão não conhece, que fa-
rias, necessárias para a sua correta lam ao espírito de finura e
condução. Frequentemente, acres- não ao espírito de geometria,

5 Mentré (1922a, p. 458, n. 1) foi o primeiro a apontar a relação de sinonímia que os conceitos de bom senso e
senso comum exibem na carta, ainda que, acerta ele, isso nem sempre ocorra nos demais escritos do compatriota.
Recentemente, em sua edição eletrônica de A teoria física, Sophie Roux (DUHEM, 2016, p. 116, n. 68) arriscou: a
carta “mostra igualmente que não é preciso enrijecer a distinção entre o senso comum [...] e o bom senso [...] porque
nela os dois termos são empregados como sinônimos”. Lamentavelmente, a editora não esmiúça os termos em que
tal distinção poderia ser flexibilizada, nem pressente a problemática com a qual Maiocchi e Stoffel se debateram.
Ao propormos circunscrever tais conceitos, evitamos nublar a distinção entre eles. Permaneceremos diferenciando-
os quando necessário ou tratando-os indistintamente quando for o caso, aceitando ambas as possibilidades, pois
acreditamos que, quando a identificação ocorre, um terceiro referencial entra em jogo.

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FÁBIO RODRIGO LEITE

constituem o que se chama não se contradigam no interior de


propriamente o bom senso uma mesma teoria, e; [iii] que as
(DUHEM, 1981, p. 330). consequências deduzidas delas re-
presentem o conjunto das leis ex-
Se a escolha da hipótese a ser perimentais de modo aproximado
abandonada não pode ser levada (DUHEM, 1981, p. 335). Atendi-
a cabo mediante critérios estri- das essas exíguas condições, resta
tamente lógicos, o cientista deve uma liberdade quase absoluta ao
apelar para uma outra qualidade físico, e todo o restante cai sob
quando de suas opções – o bom a competência de seu bom senso.
senso (DUHEM, 1981, p. 329-332). Não nos é difícil ver que Duhem re-
Duhem aproxima o bom senso de duz drasticamente o espaço da ra-
uma espécie de intuição caracterís- zão dedutiva, questionando sua re-
tica do espírito de finura pascali- levância epistemológica. Em suma,
ano, oposta à pura dedução, associ- o bom senso designa um tipo de
ada ao espírito de geometria: “Ora, perspicácia gradualmente esculpida
o espírito de finura, aqui como com o exercício da ciência. Quanto
em toda parte, aguça-se por uma mais complexa for a decisão a ser
longa prática” (DUHEM, 1981, p. tomada, maior a finura requerida
444). É o seu bom senso particu- para a solução adequada. Desigual
lar que, paulatinamente cultivado, entre os teóricos, o bom senso va-
orientará suas escolhas para um riará conforme variar a sua prá-
conjunto mais estreito de hipóte- tica e capacidade de aprender com
ses alvo, preservando a confiança ela. As decisões atinentes ao bom
nas restantes. Toda opção envolve senso demandam amadurecimento
uma aposta, um ato de fé, cujo grau e, se porventura sucedem rapida-
de eficácia indica o grau de bom mente, é porque os condicionan-
senso. O escopo de aplicação do tes para a sua tomada haviam sido
bom senso dá-se no matiz entre o antepostos. Com isso, o profes-
preto e o branco lógicos, sendo ge- sor de Bordeaux consegue expli-
neralíssimo, uma vez que a lógica car as “longas querelas” científicas
imporia pouquíssimas restrições à sem caracterizá-las como ilógicas
escolha das hipóteses, exigindo so- (DUHEM, 1981, p. 330-331), uma
mente que: [i] as hipóteses não vez que o bom senso vê-se subsu-
sejam auto-contraditórias; [ii] que mido em uma instância de raciona-

6 Em uma teoria do método avessa a decisões de cunho algorítmico como a duhemiana, a noção de bom senso ad-
quire papel nevrálgico. Elaboramos um lista com as funções atribuídas a ela em LEITE, 2007, p. 92-93. Desde que
Stump (2007) aproximou-a da variante responsabilista da epistemologia da virtude esposada por Linda Zagzebski,
tal noção passou a receber atenção crescente entre os críticos.

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PIERRE DUHEM: UM FILÓSOFO DO SENSO COMUM

lidade emergente6 . Um dos corolá- parca precisão que revestem a sua


rios dessa concepção é que o reco- expressão. As leis típicas do senso
nhecimento geral de qual dos la- comum são, pois, incondicionadas e
dos em uma disputa estava acom- irrestritas (DUHEM, 1894, p. 213-
panhado do bom senso é sempre 216)7 . A verdade das leis do senso
feito retrospectivamente, após a in- comum, expressas em linguagem
tensificação do debate, quando as natural, decorre de seu caráter ime-
opiniões especializadas passam a diato, o qual nos dispensa de uma
convergir e formar um consenso. pesquisa detalhada. Não é preciso
Por isso, a tradição é a expressão de ser físico para reconhecer a ver-
uma certa racionalidade. dade das seguintes leis: “Todo ho-
À medida que a aptidão que fa- mem é mortal” e “Antes de ouvir-
culta a tomada de decisões adequa- mos o trovão, vemos o raio brilhar”
das no domínio das teorias é o bom (DUHEM, 1894, p. 213; 1981, p.
senso, no domínio da observação na- 250), ou a falsidade da proposi-
tural, alheia à aplicação de instru- ção: “A Lua está sempre cheia”
mentos científicos, é o senso co- (DUHEM, 1894, p. 216). Nestes ca-
mum que impera. Neste caso, qual- sos, não há, ou não deveria haver,
quer homem que observar pacien- conflito interpretativo – a averi-
temente o rumo das coisas obterá, guação da verdade ou da falsidade
por indução, leis universais cuja ver- de tais juízos é algo fácil, de sorte
dade estaria, desde o início, asse- que todos, com pouco esforço, en-
gurada (DUHEM, 1894, p. 220). trarão em acordo sobre o seu va-
Uma lei do senso comum reconhe- lor de verdade (DUHEM, 1894, p.
cida como verdadeira será “verda- 226). Os termos que as leis do
deira em todos os tempos e sem senso comum conjugam são abstra-
exceção” (DUHEM, 1894, p. 226). ções formadas instintiva e irrefleti-
Tais leis, é Duhem quem o afirma, damente, e sempre encontram um
são absolutas, isto é, não podem referencial na realidade, como um
ter o seu valor de verdade relati- homem, uma morte, um raio ou
vizado no tempo ou no espaço, e um trovão particulares, uma vez
sua certeza resulta da grande ge- que aqueles são o resultado da ex-
neralidade, enorme simplicidade e tração “[d]aquilo que há de geral
nas realidades concretas” submeti-

7 As leis do senso comum são, para Duhem, formadas indutivamente. A conhecida crítica feita pelo francês à
indução distingue-se da crítica de Hume à causação e, da mesma maneira, da crítica lógica de Popper à indução. A
apreciação duhemiana restringe-se à esfera das teorias físicas, as quais seriam formuladas de maneira convencional
(dado o reconhecimento da tese da subdeterminação) a partir das observações, ao passo que a crítica popperiana
atingiria inclusive as leis do senso comum no sentido duhemiano. Para Duhem, o método indutivo permanece
válido no âmbito pré-teórico.

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das aos nossos sentidos (DUHEM, peça é adicionada; é o capi-


1894, p. 213). Inversamente, tal de uma sociedade imensa
certos postulados da teoria física, e prodigiosamente ativa, for-
como o princípio de conservação mada pela união das inte-
de energia, não podem ser verifi- ligências humanas. De sé-
cados diretamente. É impossível, culo em século, esse capi-
por exemplo, encontrar na natu- tal se transforma e aumenta;
reza correlatos para “sistema iso- a essas transformações, a
lado” (DUHEM, 1903, p. 227) ou esse acréscimo de riqueza,
para “espaço absoluto” (DUHEM, a ciência teórica contribui
1909). Do ponto de vista estri- em grande parte (DUHEM,
tamente empírico, estes enuncia- 1981, p. 397).
dos não possuem sentido e exigem,
por isso, convenções e instrumen- Haveria, insiste o francês, uma
tos adequados para se ligarem à ex- difusão do conhecimento teórico,
periência. Até mesmo noções usu- mediado pela conversação, pelo
ais como “massa”, “temperatura” e ensino, livros e jornais, que contri-
“pressão” têm para o físico um sen- buiria para o enriquecimento e re-
tido diverso daquele que lhes con- novação do conhecimento dissemi-
fere o homem comum (DUHEM, nado entre os homens dotados de
1894, p. 214), sendo ininteligí- cultura intelectual. Ao contrário
veis para aquele que não conhece das leis verdadeiras do senso co-
os procedimentos necessários à sua mum, as proposições constituintes
composição. do conhecimento comum tornam-
Mas para além das leis do senso se cambiáveis por se mesclarem a
comum, que de modo algum po- algo não apoiado na observação di-
dem servir de base para a edi- reta e, enquanto tal, ele se apro-
ficação das teorias, dada a sua xima da opinião média compar-
generalidade, existe o aprendi- tilhada em um local e época es-
zado comum, que se soma àquelas pecíficos, sendo passível de ilus-
para formar o conhecimento comum, tração. Ele absorve, à sua ma-
compartilhado por populações ge- neira, os resultados científicos e os
ográfica e historicamente determi- traduz em sua própria linguagem,
nadas. Trata-se do conhecimento não raro transformando inadverti-
adquirido pelos homens mediante damente as hipóteses em dogmas.
o comércio cultural: Em um primeiro momento, o físico
O fundo do senso comum cria uma relação simbólica regida
não é um tesouro enterrado por definições e cálculos precisos
no solo, ao qual nenhuma sem ligação direta com a experiên-
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cia; no segundo, aquela relação vê- fornecidos pelo conhecimento co-


se assimilada pela linguagem vul- mum” (DUHEM, 1981, p. 394).
gar, passando a fazer parte do dis- Acabamos de observar que a
curso leigo. É desse modo que o modificação das hipóteses teóri-
princípio do aumento da entropia cas aceitas em uma época acarreta
transforma-se no princípio da dis- uma alteração no conhecimento
sipação da energia, de cuja formu- comum, na medida em que este é
lação o obscuro termo “entropia” influenciado pelo estado da ciên-
foi eliminado, tornando o enunci- cia que lhe é contemporâneo. Mas
ado menos caviloso. Se bem que há, em Duhem, uma preocupa-
esse processo de tradução estreita ção constante em restringir suas te-
a comunicação entre o homem co- ses epistemológicas à teoria física,
mum e o físico de formação, ele preservando a objetividade do co-
disfarça, prossegue Duhem, a dis- nhecimento pré-teórico (cf. LEITE,
paridade existente entre as lingua- 2016). Lembremo-nos que ele li-
gens teórica e vulgar, visto que o mita a impregnação teórica à expe-
sentido que o termo “energia” ad- riência controlada da física, conser-
quire em uma é muito diverso da- vando incólume a observação bruta
quele assumido na outra. Toda e as leis exclusivamente dela deriva-
analogia entre elas tende a ser me- das. Ao outorgar a verdade às leis
ramente superficial. O esqueci- do senso comum, condicionando-
mento dessa diferença pode con- as à alta generalidade, Duhem se
duzir o físico a pressupor como furta a uma crítica ampla e conse-
fundamental o que não é senão quente da indução9 . Logo, a reno-
derivado, fazendo-o crer que suas vação do senso comum não é total.
proposições possam ter sido extraí- As hipóteses, essencialmente pro-
das diretamente das proposições visórias, não projetam sua efemeri-
do senso comum8 . O físico esta- dade intrínseca sobre aquelas leis,
ria retomando do fundo do conhe- de sorte que estas resguardam sua
cimento comum algo que a ciência fixidez. Gardeil (1910, p. 26-27)
ali depositou, incorrendo em um ressalta com acerto que “a influên-
círculo vicioso. Como Duhem trans- cia das hipóteses científicas não re-
forma esse exemplo em regra ge- troage sobre os dados brutos da ex-
ral, segue-se que “As hipóteses não periência e do senso comum; – os
podem ser deduzidas de axiomas quais permaneceriam intactos”.

8 Este sentido sociológico, por assim dizer, do senso comum é bastante atual. Sua única aparição na obra duhe-
miana dá-se na seção V do último capítulo de A teoria física, intitulado “A escolha das hipóteses”.
9 Para uma tentativa de explicar o empenho duhemiano em restringir suas principais teses epistemológicas à
física teórica, preservando a objetividade do conhecimento pré-teórico, cf. LEITE, 2016.

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Pois bem, pressuposta essa dis- ores detalhes.


tinção entre o domínio do senso co-
mum, o qual inclui o conhecimento
O senso comum na base da meto-
comum, e o da teoria física, Mai-
dologia duhemiana
occhi defende, com razão, que o
senso comum e/ou o conhecimento Ao longo dos textos duhemia-
comum não deve(m) atuar como nos, o termo “lógica” comporta ao
critério(s) para a escolha das hi- menos dois sentidos. Um deles
póteses (concepção que jamais será identifica-se à análise formal das te-
alterada por Duhem). Somente o orias, ao exame que revela o que
bom senso poderia exercer legiti- estas são e, enquanto tal, é não
mamente tal tarefa. No entanto, só descritiva, como permissiva, pois
o que nem ele e nem Stoffel per- que, já o mencionamos, são mí-
ceberam é que, em A ciência alemã nimas as exigências propriamente
(o mesmo vale para a carta anteri- lógicas quando da elaboração da
ormente citada de Duhem a Réca- teoria física. Esta será definida,
mier e para “Algumas reflexões so- então, como um construto com-
bre a ciência alemã”), sempre que posto por grandezas e hipóteses
nosso autor critica as teorias ger- resultantes de um “livre decreto”
mânicas, ele o faz amparado em (DUHEM, 1981, p. 433) do es-
um outro conceito de senso comum, pírito, formuladas na linguagem
ainda que a terminologia dissimule abstrata da matemática, cujo obje-
a alteração. As verdades designa- tivo é fornecer o quadro sinóptico
das pelo “novo” senso comum têm de um conjunto de leis experimen-
natureza intelectual, sendo eviden- tais, permitindo prever os fenô-
tes e imediatas à razão. Elas com- menos (DUHEM, 1892a, p. 139-
poriam, se se quiser, as noções e 148). Desde que essa finalidade
princípios primitivos da natureza seja garantida, o físico pode lan-
humana, e, nesse sentido, estru- çar mão de hipóteses que visam
turariam o conhecimento possível tanto a explicar os fenômenos por
e alicerçariam todo o discurso. E suas causas quanto a representá-
não é só: quando Duhem se refere los fenomenologicamente; também
a essas verdades ele as nomeia in- pode erigir várias teorias incompa-
diferentemente como provenientes tíveis para dar conta de um mesmo
do senso comum e/ou do (simples) conjunto de leis experimentais. A
bom senso, algo que tende a con- lógica que desvela a subdetermina-
fundir os leitores que permanecem ção das teorias pelos dados, eviden-
atrelados ao padrão anterior de A ciando que, ao contrário das leis
teoria física. Vejamos isso com mai- do senso comum, as hipóteses são
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convenções não induzidas da expe- p. 367).


riência, é a mesma que se cala di-
ante da instauração do pluralismo A axiologia duhemiana orienta a
teórico. Nada, do ponto de vista composição de um “método mais
da pura lógica, contrange o físico perfeito”, responsável por dar cabo
à busca de uma teoria unitária de do pluralismo teórico e conduzir
máxima amplitude descritiva. a ciência à sua “perfeita unidade”
O outro sentido do termo “ló- (DUHEM, 1981, p. 152). Oriundo
gica”, menos preciso embora mais de um sentimento natural dotado
importante, remete ao que Duhem de força invencível, esse método é
(1981, p. 498; 1916, p. 150) de- capaz de gerar convicção intensa,
nomina “lógica superior”, a qual se bem que geralmente confusa, à
consiste sobretudo de “pressenti- qual é concedida a ausência de pro-
mentos não analisáveis” (DUHEM, vas ou garantias que não prove-
1981, p. 459), de “razões que a pró- nham de si mesma. O reconhe-
pria razão desconhece”. Ela é di- cimento do poder que o princípio
retiva e restritiva, pois se impõe ao metodológico de unidade interteó-
teórico quando da estipulação do rica tem sobre – todos – os homens
que a teoria deve ser. Entre esses demandaria, persiste Duhem, uma
pressentimentos encontramos o de tomada de consciência, um exame
unidade interteórica: reflexivo que exponha os princí-
É melhor, é mais perfeito pios “claros e evidentes” que guiam
coordenar um conjunto de a sua razão, lançando luz sobre
leis experimentais por meio essa “verdade admitida por todos
de uma teoria única, da sem que seja necessário comentá-
qual todas as partes, logica- la” (DUHEM, 1893b, p. 368).
mente encadeadas, decorrem O desejo de unidade constatado
em uma ordem irrepreensí- em “A escola inglesa e as teorias
vel de um certo número de físicas” tem sua origem revelada
hipóteses fundamentais esta- uma década depois, quando da de-
belecidas de uma vez por to- finição do objeto da teoria física, na
das, do que invocar, para última seção da primeira parte de
classificar essas mesmas leis, A teoria física – trata-se de um “sen-
um grande número de te- timento inato” que, se não pode ser
orias irreconciliáveis funda- justificado, tampouco pode ser evi-
das umas sobre certas hipóte- tado. Em sendo inato, é universal:
ses, outras sobre outras hipó- “Todo físico aspira naturalmente
teses que contradizem as pre- à unidade da ciência” (DUHEM,
cedentes (DUHEM, 1893b, 1981, p. 151). Não por acaso,
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a pior das acusações que se pode ria de cunho metafísico para ga-
fazer a um rival é a que lhe im- rantir aquela unidade. Não é um
puta a pecha de ilogismo. Mesmo objeto eminentemente metafísico que
os físicos negligentes em relação garantirá a realização da unidade in-
à coerência lógica10 compartilha- terteórica mas um sentimento natu-
riam desse sentimento, e se eles ral. Este será, a um só tempo, in-
constroem suas teorias assentadas terno ao sujeito e externo à ciência,
em flagrantes contradições, é, as- precedendo-a. Assim, o problema
sere Duhem, com a esperança de do relativismo não é recolocado.
que estas sejam superadas. Tal ex- Com uma terminologia outra feita
plicação faculta-lhe: em primeiro religiosa, Duhem considera que se
lugar, estimar a aceitação das con- o relativismo teórico não pode ser
tradições como uma moda, irraci- eliminado pela análise lógica, ele
onal e passageira (DUHEM, 1917, seguramente seria “excomungado”
p. 133, 150, 157); em segundo, pelo senso comum:
salvaguardar a ideia de unifica-
ção teórica em concomitância com [...] a ciência seria impo-
a negação de que as teorias se- tente para estabelecer a legi-
jam explicações metafísicas da rea- timidade dos princípios mes-
lidade material. Afinal, a renúncia mos que traçam os seus mé-
à busca da causa última dos fenô- todos e dirigem suas pesqui-
menos legitimaria a construção de sas se ela não recorresse ao
teorias díspares, uma vez que es- senso comum. No fundo de
tas ficariam dispensadas de corres- nossas doutrinas mais clara-
ponder com a ordem essencial do mente enunciadas e mais ri-
mundo externo. Mas se a aspira- gorosamente deduzidas, en-
ção de unidade interteórica é uni- contramos sempre esse con-
versal, ela acaba naturalmente as- junto confuso de tendências,
similada pela metodologia e torna aspirações e intuições. Ne-
supérflua a procura de uma teo- nhuma análise é assaz pene-
trante para separá-las umas

10 A recusa duhemiana do pluralismo teórico é feita no contexto da crítica ao estilo inglês (ou seria melhor dizer,
britânico) de fazer física, visto pelo filósofo como propício à prática da concepção há pouco mais de meio século
alcunhada de instrumentalista. Os ingleses valorizariam sobretudo o potencial heurístico, preditivo, das teorias,
sem preocupação com a sua coordenação lógica, o que explica a presença recorrente de contradições nas teorias
inglesas. Por intermédio de uma análise psicológica, Duhem deriva esse desdenho pela coerência da mentalidade
que os caracteriza: o grande potencial imaginativo, a dificuldade em abstrair e a prodigiosa memória dos ingleses
explicam o emprego de modelos incompatíveis e o descuido pelo rigor lógico. Por assimilar com facilidade diversas
construções teóricas disparatadas e reportá-las sempre a modelos mecânicos, o inglês pode dispensar o fio lógico
que liga as hipóteses em um conjunto harmonioso e simples. Duhem elegeu o escocês Maxwell como o maior ex-
poente da física “inglesa”, e a ele dedicou várias publicações de marcante acidez crítica. Até hoje, a análise mais
detalhada da recepção das teorias de Maxwell na França foi feita por Abrantes (1985).

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das outras, para decompô-las pesquisa física na direção de clas-


em elementos mais simples; sificações cada vez menos artifici-
nenhuma linguagem é sufi- ais, que correspondam com a es-
cientemente precisa e flexí- trutura e a ontologia do mundo
vel para defini-las e formulá- material11 . Essas intuições ou prin-
las; e, entretanto, as verda- cípios são “companheiras insepa-
des que o senso comum nos ráveis”, já que, exceto se se aceitar
revela são tão claras e tão que a realidade com a qual a teo-
certas que não podemos nem ria acabada vier a corresponder seja
desprezá-las nem colocá-las fragmentada, a consecução da clas-
em dúvida. E mais: toda cla- sificação natural demanda a coe-
reza e toda certeza científicas rência teórica (DUHEM, 1981, p.
são um reflexo de sua clareza 335). Em outros termos, na hipó-
e um prolongamento de sua tese de a realidade em si mesma ser
certeza (DUHEM, 1981, p. coesa, a coerência torna-se um pré-
153). requisito para a correspondência.
Ora, assegura-nos Duhem, sabe-
mos naturalmente que “a contradi-
Como na carta a Récamier, Duhem ção não está na realidade, sempre
atribui o fundamento de toda cer- de acordo consigo”, mas nas teorias
teza ao senso comum, mesmo que que a exprimem (DUHEM, 1981,
este não seja passível de uma aná- p. 243). Daí a cogência do princí-
lise lógica totalmente elucidativa. pio de unidade interteórica. Aliás,
São dois os princípios de que o salta aos olhos que, sem o presente
senso comum provê a metodologia par de princípios metodológicos,
duhemiana, quais sejam, o de coe- nenhuma descrição condizente das
rência interteórica, frequentemente críticas duhemianas às ciências in-
utilizado pra criticar os ilogismos glesa e alemã poderia ser produ-
presentes na física inglesa, e o de zida, bem como nenhuma lista dos
classificação natural, que orienta a

11 O ideal de classificação natural é demasiado complexo para ser abordado neste artigo. O acesso à nossa inter-
pretação do mesmo pode ser feito recorrendo a LEITE, 2007, p. 125-229.
12 De um modo geral, o principal critério da metodologia física duhemiana consiste na adequação empírica,
ou seja, na aproximação satisfatória entre as consequências deduzidas das hipóteses inicialmente aceitas e as leis
experimentais a serem “salvas”. Será um êxito adicional se essa adequação se fizer por intermédio de hipóteses
representativas, uma vez que estas são mais seguras e menos sujeitas à alteração, ao contrário das hipóteses expli-
cativas, mais indeterminadas porque mais afastadas dos fenômenos. As hipóteses representativas, por não envolve-
rem especulações baseadas nos mecanismos subjacentes aos fenômenos, têm a vantagem de preservar a autonomia
da física diante dos sistemas cosmológicos que almejam a descobrir as causas últimas daqueles. A abstração ma-
temática deve revestir a forma da teoria, já que ela concorre para o rigor dedutivo, em detrimento da imprecisão
característica dos modelos mecânicos de cariz figurativo. Por outro lado, a predição de fenômenos desconhecidos
era, para Duhem, desejada, mas nunca foi um valor de primeira ordem, e a simplicidade sempre foi vista por ele
como um critério relativo.

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critérios cognitivos elaborados por do convencionalismo popperiano13 .


nosso filósofo poderia reputar-se Começa a ser delineado uma no-
completa12 . ção de senso comum que não se
Sabemos que na Lógica da pes- identifica com a constatação de leis
quisa científica, Popper (1975, p. puramente experimentais ou com a
55-57) considerou a sua metodolo- opinião corrente admitida em um
gia como um jogo regido por certas tempo e em um espaço específicos.
convenções (como a testabilidade), Os princípios de unidade interteó-
as quais determinam o que seria a rica e de classificação natural não
própria ciência empírica. Tais con- são justificados pela lógica pura,
venções seriam irredutíveis a re- como não o são empírica ou his-
gras estritamente lógicas, e com- toricamente. Ele são suportados,
poriam, continua ele, uma teoria em uma palavra, pela natureza hu-
do método distinta daquelas. De- mana: “A natureza sustenta a razão
certo que Duhem aceitaria que as impotente e a impede de extrava-
regras metodológicas distinguem- gar até esse ponto” (PASCAL apud
se daquelas pertencentes à lógica. DUHEM, 1981, p. 154). Eis o sig-
Todavia, não nos é difícil ver, nificado do fragmento pascaliano
agora, que as principais diretrizes com o qual o autor remata a pri-
que guiam sua metodologia não meira parte de A teoria física. Isso
são convenções arbitrárias. Deri- torna defensável a tese de que esta
vados do senso comum, tanto o obra representa realmente uma de-
princípio de unidade interteórica fesa do senso comum. É mediante
quanto o princípio de classifica- as aspirações deste que o objeto da
ção natural são espontâneos, pois teoria é fixado. Quando, no último
que inatos e irresistíveis. O con- parágrafo de Salvar os fenômenos,
vencionalismo metodológico pop- Duhem (1908, p. 140) toma par-
periano contrasta profundamente tido de Kepler e Galileu, susten-
com o que podemos denominar tando que a teoria física deve “sal-
realismo metodológico duhemiano. var ao mesmo tempo todos os fenô-
Se é impossível aproximar Duhem menos do universo inanimado”, é
do pragmatismo heurístico de Poin- exatamente o princípio de unidade
caré, que propunha a importação interteórica que entra em cena. O
do pluralismo teórico para o con- espírito instrumentalista que per-
tinente, também devemos afastá-lo dura por todo o opúsculo cede, ao

13 Passa ao largo das pretensões duhemianas a tentativa de fornecer um critério demarcatório entre ciência e
não-ciência. Este tipo de preocupação não o afetou, de sorte que sua concepção do que seja ciência é pouquíssimo
restritiva. As matemáticas, a história, as físicas experimental e teórica, a química e até a metafísica seriam, para
ele, ciências. Cf. LEITE, 2016, p. 101-102, 106.

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PIERRE DUHEM: UM FILÓSOFO DO SENSO COMUM

fim, espaço a páginas de pendor sustentáculo para o realismo nos


unificacionista. A conclusão de reduz a um conflito insolúvel, pois
Salvar os fenômenos deve ser lida, o uso duhemiano da história é am-
tal qual a última seção da primeira bíguo, favorecendo ora uma versão
parte de A teoria física, como uma epistemológica do realismo conver-
vitória da natureza sobre a análise gente, ora, contrariando esta, uma
lógica. Aliás, o projeto científico imagem próxima da meta-indução
duhemiano de unificação da física pessimista, quando ele reitera que
sobre as bases da termodinâmica, as teorias desmoronam sucessiva-
que culminou em seu Tratado de mente umas sobre as outras, sendo
energética (1911), seria ininteligí- reconstruídas sobre fundamentos
vel sem o apelo ao senso comum. inteiramente novos, e que “os fí-
Tanto sua metodologia quanto sua sicos se apressam para varrer os
pesquisa científica estribam-se so- seus escombros a fim de ceder o lu-
bre o mesmo terreno. gar a outra teoria, que por sua vez
As observações anteriores têm não se eleva senão para se arrui-
consequências dignas de nota. Se- nar” (DUHEM, 1894, p. 122; cf.
guindo um padrão interpretativo 1903, p. 346; 1981, p. 322). Os-
que favorece a vinculação das pes- cila, portanto, a tentativa de emba-
quisas históricas com a epistemo- sar o realismo duhemiano em sua
logia, Maiocchi (1985), Chiappin descrição histórica/dinâmica da ci-
(1989) e Souza Filho (1996) res- ência. Ademais, como tentei mos-
saltam a função da história da fí- trar em trabalhos prévios (LEITE,
sica como apoio fatual ao realismo 2012, p. 261-388; 2017, p. 151-
duhemiano. O móvel desse rea- 156), a narrativa histórica das mais
lismo seria a – controversa – tese importantes obras historiográficas
da continuidade histórica do desen- do autor não legitima a visão do
volvimento da física, a qual vaticina- mesmo como um defensor do con-
ria uma visão cumulativista do pro- tinuísmo estrito, alheio à existên-
gresso científico. Esse vínculo fun- cia de revoluções cientificas drás-
damenta uma concepção que con- ticas. Penso que o mais seguro
sideramos legítima, a saber, que a ancoradouro do realismo duhemi-
epistemologia de Duhem possa ser ano repousa naquela “ideia da ver-
classificada como “histórica” (cf. dade”, que não carece de garantia
REDONDI, 1978, p. 26; HÜBNER, externa pois que é imediata, natu-
1986, p. 50; BRENNER, 1990, p. ral ao homem. Trocando em miú-
19; MAZAURIC, 2004, p. 99-102; dos, afirmo que a fonte inequívoca
LEITE, 2012, p. 100). Entremen- do realismo de Duhem é a sua axi-
tes, a utilização da história como ologia, derivada do senso comum.

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Tal axiologia determina, por sua 1915, onde o autor opõe-se às geo-
vez, uma metodologia realista, ma- metrias não euclidianas.
nifesta explicitamente nas diretri- Dado que tanto a relatividade
zes metodológicas que correspon- einsteniana quanto a geometria ri-
dem ao princípio de unidade inter- emanniana são expressões epife-
teórica e ao ideal de classificação nomênicas da mentalidade germâ-
natural. Sem tais princípios a física nica, urge adiantarmos algumas
degeneraria no utilitarismo da en- palavras sobre esta. Consoante a
genharia. caracterização duhemiana, o ale-
mão é, antes de tudo, um espí-
Aspectos críticos do senso co- rito forte, dotado de elevado po-
mum: os casos de Einstein, Rie- der de abstração e afeito ao rigor de-
mann e Ostwald dutivo. Seu caráter metódico e me-
cânico revela, diz Duhem, uma es-
Nosso objetivo passa a ser, a par- treiteza de espírito, uma incapaci-
tir de agora, o de dar mostras de dade de tratar de questões que en-
como o senso comum pode decre- volvam muitos princípios. É por
tar a rejeição de teorias sem, con- isso que eles trabalham lenta e pa-
tudo, fornecer princípios ou hipó- cientemente, a conduzir seus pensa-
teses genuinamente teóricos. Para mentos por longas cadeias silogís-
darmos conta desta tarefa, toma- ticas (DUHEM, 1916). Em suas es-
remos inicialmente dois exemplos; peculações filosóficas e científicas,
um será retirado de “Algumas re- o raciocínio discursivo tornar-se-ia o
flexões sobre a ciência alemã”, en- procedimento padrão. No limite,
saio no qual Duhem esforça-se o método mais caro a eles seria o
por patentear os absurdos sobre os “método puramente dedutivo”, tal
quais repousa a teoria da relativi- qual definido por Pascal, e consis-
dade; o segundo, da primeira li- tiria em “definir todos os termos e
ção de A ciência alemã, também de provar todas as proposições” (PAS-

14 Ao dissertar sobre o método geométrico no opúsculo O espírito da geometria, Pascal afirma que a geometria
é incapaz de definir todos os termos e provar todas as proposições. Por outro lado, esta fraqueza é suplantada
pelo auxílio advindo da luz natural, a qual provê o discurso geométrico da certeza dos termos primitivos e das
proposições que servirão de base para as deduções. O verdadeiro procedimento a ser adotado na construção do co-
nhecimento consistiria em saber manter-se nesse meio termo, de nunca definir as coisas claras entendidas por todos
os homens e nunca provar aquelas que são conhecidas naturalmente por eles, definindo e provando todas as de-
mais. Tempo, espaço, movimento, número, são termos que “designam tão naturalmente” as coisas significadas, que
qualquer pretensão de defini-los projetará mais escuridão que instrução sobre eles (PASCAL, 2000, p. 20). Assim, a
geometria deve ser aplicada onde houver espaço para o equívoco semântico, e de modo algum deve se estender aos
termos ou proposições que são objetos do “sentimento natural”. Demonstração e certeza, assevera Pascal, não são
coextensivas – há certezas que são obtidas pelo coração, sem demonstração. Conhecimento certo, por sua vez, não
significa conhecimento logrado por definição, pois há termos incapazes de serem definidos, mas dos quais todos os
homens possuem uma “ideia semelhante”, mesmo que a posse da ideia de uma coisa não assegure o conhecimento
de sua essência.

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CAL, 2000, p. 17; cf. DUHEM, os princípios, e é em vão que


1915b, p. 16; 1981, p. 306)14 . o raciocínio, que deles não
Daí que os alemães ajam como se participa, tenta combatê-los.
o método dedutivo fosse um ideal [...] Pois o conhecimento
a ser perseguido indefinidamente dos princípios, como o da
em todas as disciplinas (DUHEM, existência do espaço, tempo,
1915b, p. 16). Ao localizar o movimento, números, é tão
princípio de certeza no raciocí- firme como nenhum dos pro-
nio discursivo, em prejuízo do co- porcionados pelos nossos ra-
nhecimento intuitivo derivado do ciocínios. E sobre esses co-
senso comum, os alemães subme- nhecimentos do coração e do
teriam a ciência ao perigo da re- instinto é que a razão deve
gressão ao infinito, de sorte que o apoiar-se e basear todo o seu
resultado seria a perda de contato discurso (PASCAL, 1670, p.
com a realidade, de uma base fun- 158-159; citado separada-
damental inamovível. Excessiva- mente em DUHEM, 1915b,
mente dotado em matéria de raci- p. 6 e 15, mas também em p.
ocínio, os alemães intentam elabo- 70-71 e 105)15 .
rar as ciências ao seu modo, desde-
nhando as certezas intuitivas. En- Duhem faz das reflexões pascalia-
tre uma física exageradamente in- nas sobre o espírito da geometria
tuitiva ou exclusivamente dedu- a pedra de toque de sua crítica aos
tiva, eles incorrem no segundo ex- alemães. O respeito pelos ditames
cesso – “só admitir a razão” (PAS- do coração, a fonte dos primeiros
CAL, 1670, p. 49; ABRANTES, princípios, arraiga o conhecimento
1989, p. 42). Reiteradas vezes no solo firme da realidade. Sem
Duhem arroga a autoridade de Pas- o recurso proveniente do senso co-
cal, recontextualizando-a com a in- mum, que sente, convicto, aque-
tenção de impor limites à têmpera les princípios evidentes em si mes-
germânica: mos, o espírito essencialmente ge-
ométrico dos alemães vê-se fadado
Conhecemos a verdade não a operar formalmente. É a simpli-
só pela razão mas também cidade dos axiomas da álgebra, da
pelo coração; é deste úl- geometria, da mecânica e da meta-
timo modo que conhecemos física que contribui para a sua per-

15 As constantes referências duhemianas a Pascal, sobretudo esta que acabamos de destacar, atestam a dificul-
dade da interpretação de Jaki (1984, p. 323), para quem a influência pascaliana na obra duhemiana seria reduzida:
“Duhem nunca foi um intuicionista a ponto de repetir a afirmação de Pascal que ‘todo o nosso raciocínio reduz-se
a ceder ao sentimento”’. Voltaremos a esse ponto à frente.

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feita evidência e certeza, bastando rações, e não que as noções mes-


que nossa atenção se fixe por um mas do senso comum fossem refor-
momento sobre eles para que o seu muladas (DUHEM, 1915a, p. 680).
sentido seja apreendido (DUHEM, Referindo-se às consequências da
1915b, p. 25). Esclareçamos esse relatividade, posteriormente des-
arrazoado. lindadas por Minkowski, Duhem
A crítica mais elaborada à re- afirma:
latividade restrita encontra-se nas
páginas de “Algumas reflexões so- As noções de espaço e de
bre a ciência alemã” (1915), e tempo parecem ser, a to-
concentra-se na explicação einste- dos os homens, independen-
niana dos resultados experimen- tes entre si. A nova física
tais obtidos por Albert Michelson, une-as por um laço indis-
incapazes de detectar o movimento solúvel. [...] Entre a ex-
da Terra através do éter estacio- tensão do caminho percor-
nário. Uma das respostas ante- rido por um corpo móvel
riores, aventada por Hendrik Lo- e a duração desse percurso,
rentz, consistiu em assumir que nossa razão não estabelece
a negativa atestada pelo interferô- nenhuma conexão necessá-
metro devia-se a uma contração ria. Por mais longo que
dos corpos rígidos no sentido lon- um caminho seja, podemos
gitudinal à velocidade. Essa as- imaginar a sua transposição
sunção ad hoc permitia-lhe recon- em um tempo tão pequeno
ciliar a ideia do éter com os expe- quanto o desejarmos. Por
rimentos. Mais audaciososo, Eins- maior que uma velocidade
tein derivou a contração exclusi- seja, sempre podemos con-
vamente do par de postulados de ceber uma velocidade ainda
sua teoria, sem recorrer ao éter maior. (DUHEM, 1915a, p.
imóvel, visto por ele como uma 680. Itálicos meus)
hipótese supérflua. Dispensando
de vez qualquer referencial abso- Como adverte Mentré (1922b, p.
luto, prossegue Duhem, o físico 622), a teoria da relatividade não
alemão subverteu as noções intui- é criticada devido a alguma ina-
tivas do espaço e do tempo forne- dequação empírica ou por supos-
cidas pelo senso comum. A radi- tamente ser incoerente, ou, ainda,
calidade de sua inovação explica-se por ser uma explicação metafísica
porque o resultado do experimento das aparências; ela é censurada
de Michelson implicava que as teo- por contradizer formalmente nos-
rias da óptica passassem por alte- sas evidências imediatas acerca das
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propriedades do tempo e do es- física da referida “velocidade ainda


paço. Não é uma experiência sen- maior”, não é a impossibilidade
sível particular que condena a re- prática da engenharia que Duhem
latividade, mas a “razão” univer- opõe ao princípio da relatividade,
sal, pois que as noções de espaço mas uma impossibilidade lógica:
e tempo são comuns a todos os ho- “Para um defensor do princípio da
mens. Os postulados da “nova relatividade, falar de uma veloci-
física” evidenciariam uma dupla dade maior que a velocidade da
ruptura: a primeira, em relação luz é pronunciar palavras despro-
às teorias anteriores; a segunda, vidas de sentido” (DUHEM, 1915a,
mais grave, em relação ao senso co- p. 681). Com a relatividade, a ve-
mum. Ora, se as teorias são es- locidade da luz deixa de ser um in-
sencialmente falíveis e mutáveis, o finito potencial, ao qual operações
primeiro gênero de ruptura seria intermináveis poderiam fazer o seu
como que esperado. Ao contrá- valor exceder indefinidamente um
rio, a segunda ruptura representa valor dado, para se tornar, se se
muito mais que uma subversão es- quiser, um finito atual. As no-
tritamente científica – ela se arvora ções primitivas do senso comum
em uma subversão contra as certe- são obliteradas pelo espírito exces-
zas imediatamente inteligíveis da sivamente geométrico dos alemães,
“experiência comum”, que todo ho- desejoso de rigor absoluto. Daí
mem pratica desde que deixou a a tendência alemã a ignorar que
infância (DUHEM, 1915a, p. 106- espaço, tempo e movimento são
107). Por extrapolar o campo cien- ideias simples e irredutíveis, incapa-
tífico, esta ruptura carrega no seu zes de definição algébrica. O que
bojo uma temerária conclusão: o a intuição nos revela, diz Duhem,
homem da rua estaria dotado de é que “uma das primeiras ver-
recursos suficientes para recusar dades, anteriores a toda geome-
com propriedade a física relativís- tria, que nós podemos formular
tica! Eis a legítima porta de en- acerca do espaço, é que ele tem
trada do senso comum na metodo- três dimensões” (DUHEM, 1915a,
logia duhemiana16 . p. 666). O desequilíbrio entre a
Mesmo que existam limites prá- intuição e a dedução conduziria os
ticos intransponíveis à realização alemães a fabricarem o seu pró-

16 Se bem que não estejamos diante de um embate que opõe dois conjuntos de hipóteses teóricas, cumpre recordar
que a índole da crítica duhemiana à relatividade não atinge o extremo que, anos depois, caracterizaria a sua con-
denação ideológico-política, difundida sob a forma de panfletos no ambiente acadêmico europeu (cf. BROUZENG,
1987, p. 111-112); também carece de sustento a tese de que o ataque teria sido motivado por um anti-semitismo
enrustido.

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prio espaço, tempo e movimento tica deveria ser o inverso, visando


(DUHEM, 1915a, p. 683), subme- como alvo alguma suposta conexão
tendo os fundamentos da física a entre a nova teoria e o senso co-
uma reconstrução completa. Como mum, e não o apartamento entre
ocorrera com Maxwell, nosso au- estes. Faltou a Agassi notar que o
tor vislumbra em Einstein um es- senso comum que Duhem opõe à
pírito revolucionário e, na “física relatividade tem outra natureza17 .
dos elétrons” de Lorentz, o an- A crítica duhemiana à relati-
damento de uma verdadeira revo- vidade baseia-se no contrassenso
lução (ABRANTES, 1989, p. 44; fundamental tanto de seus prin-
LEITE, 2012, p. 284-285). cípios (o postulado da invariân-
Sabemos que o professor de Bor- cia da velocidade da luz) quanto
deaux descarta a noção de senso de suas consequências (o espaço-
comum calcada na experiência di- tempo quadridimensional de Min-
reta como fundamento das hipóte- kowski). Mas Einstein não é criti-
ses na física. Em A teoria física, ele cado porque sua teoria ocasionou
mostrou que se as proposições teó- uma nova definição do tempo e do
ricas fossem inferidas das observa- espaço, assim como Kant não o foi,
ções cotidianas, a dinâmica atual em A ciência alemã, por conta de
assemelhar-se-ia àquela de Aris- sua definição destes como formas a
tóteles. Deve haver, consequen- priori da percepção, nem Newton,
temente, uma “extrema diferença em Le mouvement absolu et le mou-
de natureza” entre as dinâmicas vement relatif, por causa do trato
peripatética e moderna (DUHEM, absoluto do referido par de concei-
1981, p. 403). Com base em tais tos. A crítica duhemiana ao autor
ponderações, Joseph Agassi (1957, da relatividade justifica-se porque
p. 243) considerou difícil enten- as conclusões logradas por ele con-
der a crítica duhemiana a Einstein tradisseram essas “exigências pri-
justamente porque se as teorias fí- meiras e forçosas de nossa razão”
sicas, com exceção da aristotélica, (DUHEM, 1981, p. 397). Não se
são abstratas e contrárias ao senso trata de reprovar as tentativas de
comum, então o sentido da crí- definição em si mesmas, pois, se

17 A confiarmos em Michel Paty (2003, p. 13), a dualidade concernente ao conceito de senso comum era algo
disseminado no ambiente filosófico-científico: “Os que se opunham à teoria evocavam o senso comum ou o bom
senso, entendidos como a simples razão natural, para levantar-se contra as noções abstratas, teóricas, puramente
matemáticas como a de espaço-tempo da relatividade restrita, ou a de curvatura do espaço da relatividade geral.
Os partidários da teoria de Einstein replicavam evocando um outro senso comum, que se apóia em uma análise mais
crítica dos fenômenos para justificar as novas noções e, sobretudo, para torná-las compreensíveis”. A morte prema-
tura de Duhem, em setembro de 1916, privou-o do conhecimento da relatividade generalizada e das verificações
experimentais subsequentes de maio de 1919 que confirmaram os cálculos de Einstein.

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esse fosse o caso, todos os meta- mento a esta ou àquela escola cos-
físicos seriam condenados. Uma mológica. O mesmo acontece com
das tarefas reservadas por Duhem nosso segundo caso.
ao metafísico consiste na pesquisa Bem como a física relativística,
do significado profundo de ideias e as geometrias não euclidianas não
proposições, buscando apreender a foram objeto de análise nas pu-
sua definição real ou razão de ser. blicações duhemianas anteriores a
O metafísico pode, então, especu- 1915, e é com severidade que o se-
lar sobre a essência do homem, do rão a partir de então. Desde A teo-
corpo, do tempo ou sobre as causas ria física, Duhem (1981, p. 405) ad-
de uma lei natural qualquer, mas jetivava as matemáticas como “ci-
não pode menoscabar os preceitos ências muito excepcionais”, pois,
do senso comum. Por outras pala- ao contrário das ciências experimen-
vras, entre as proposições da meta- tais, a certeza dos seus axiomas
física e do senso comum deve haver é imediata/direta, e prescinde do
harmonia. teste empírico. O modelo das ci-
É precisamente essa harmonia ências do raciocínio escolhido por
que Einstein rompeu ao postular o ele são os Elementos de Euclides.
princípio de invariância da veloci- Duas seriam as etapas da composi-
dade da luz, levando-o a redefinir ção de qualquer geometria: a aqui-
de modo inaceitável as noções de sição dos princípios e a extração de-
espaço e tempo. Entre o espaço- dutiva das conclusões a partir da-
tempo e o senso comum há solu- queles. Os princípios envolvidos
ção de continuidade. Por conse- especificamente na geometria eu-
guinte, carecerá de senso comum clidiana são, no rigor do termo,
não aquele que definir noções cuja axiomas, reconhecidos como verda-
clareza é suficiente no uso ordi- des evidentes pelo senso comum
nário, mas aquele que não enxer- (DUHEM, 1981, p. 404), são pro-
gar o solo seguro das noções in- posições universais, autônomas e
tuitivas e, em decorrência, infrin- “definitivas” (DUHEM, 1915a, p.
gir os preceitos da natureza. As ten- 659-660), que “todo homem são de
tativas de definição do tempo, por espírito sente-se seguro de sua ver-
exemplo, podem introduzir o dis- dade antes de ter estudado a ci-
sensso entre as escolas cosmológi- ência da qual eles serão os funda-
cas, mas disso não se segue estejam mentos” (DUHEM, 1915b, p. 5).
autorizadas a introduzir o contras- Mas para que conclusões verdadei-
senso! O contrassensso, ao contrá- ras sejam atingidas a partir de tais
rio, deve ser compulsoriamente re- princípios, é necessário que a de-
jeitado, independente do pertenci- dução parta de axiomas verdadei-

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ros, uma vez que “a dedução jamais mente deduzidos dos postu-
cria certeza nova; tudo o que ela lados que enuncia. Ela satis-
pode fazer, quando seguiu sem ne- faz, portanto, o espírito geo-
nhuma falha, é transportar às con- métrico. Ela não é uma geo-
sequências a certeza que as premis- metria verdadeira, pois, ao
sas já possuíam” (DUHEM, 1915b, assumir seus postulados, não
p. 15). Por isso, a matematização cuidou para que seus coro-
da física aumenta a clareza desta, lários concordassem em to-
mas não a certeza de suas proposi- dos os pontos com os juí-
ções, sempre hipotéticas. A depen- zos, extraídos da experiên-
dência que a matemática tem do cia, que compõem o nosso co-
senso comum é maior que aquela nhecimento intuitivo do es-
que a física possui, na medida que paço. Por isso, ela repugna
aquela dispensa a comparação com ao senso comum (DUHEM,
a experiência sensível. Se no caso 1915a, p. 668).
da física o senso comum age de
modo restritivo, mas não exclu- Vemos que Duhem permanece
sivo, pois ao teórico ainda resta atrelado a uma concepção “ma-
muita liberdade na escolha de seus terial” dos axiomas, entendidos
princípios, no caso da matemática, como enunciados indubitavel-
ele é determinante. Toda a certeza mente verdadeiros. Não é a va-
da matemática depende do senso co- lidade da geometria que interessa
mum. ao francês, mas a sua verdade18 ,
Para Duhem, ao abandonar o sua correspondência com nossas
quinto postulado de Euclides, a intuições, admitidas como certas
geometria riemanniana, apesar de por todos aqueles que possuírem
aceitável do ponto de vista lógico, a razão sadia (DUHEM, 1915b, p.
torna-se falsa do ponto de vista 11). A mútua independência dos
epistemológico, convertendo-se em axiomas e o impecável rigor de-
um jogo intelectual arbitrário: dutivo são condições necessárias,
mas insuficientes para sua aceita-
A doutrina de Riemann é ção – a concordância dos axiomas
uma álgebra rigorosa, pois e dos corolários deles deduzidos
todos os teoremas que ela com os ensinamentos do senso co-
formula são muito exata- mum é um requisito imprescindí-

18 O consevadorismo matemático de Duhem fez dele uma vítima do “mito de Euclides” (cf. DAVIS; HERSH, 1981,
p. 325), nublando-lhe os sintomas da “crise” atravessada pela matemática no início do século XX (BOUDOT, 1967,
p. 438). É compreensível que ele não tenha tomado parte no debate filosófico instaurado pela crise nas matemáticas.
Nem o formalismo de Hilbert nem o logicismo de Russell e Whitehead chamaram-lhe a atenção.

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vel. De igual modo, na ausência se a justificássemos apelando para


de axiomas chancelados pelo senso o contexto político. A noção de
comum, a geometria riemanniana senso comum como critério avali-
reduz-se a um “exercício mental” ador de teorias resiste à interpre-
(DUHEM, 1915a, p. 123). Tais co- tação consoante a qual Duhem te-
locações põem-nos a par do anti- ria forjado critérios de última hora
convencionalismo duhemiano em para distanciar-se daqueles que,
geometria, e, mais uma vez, da dis- até então, eram colocados por ele
tância que o separa do espírito li- próprio ao seu lado contra os ingle-
beral de um Poincaré. ses19 . Nosso último exemplo será
Resta-nos amenizar, senão evi- retirado de A evolução da mecânica,
tar, a suposição de que o acirra- publicado em 1903.
mento nacionalista suscitado pela É em “A derrota do atomismo
Grande Guerra foi decisivo na con- contemporâneo”20 que Wilhelm
cessão do privilégio epistemoló- Ostwald oferta-nos uma visão mais
gico ao senso comum. Contra os clara das consequências radicais da
ingleses, Duhem emprega uma crí- adoção de seu energetismo. Para o
tica de cunho eminentemente me- professor de Leipzig, as ideias as-
todológico, no anseio de afastar da sociadas à matéria, como a massa, a
física as incoerências resultantes impenetrabilidade e o peso, não pas-
da aplicação de modelos figurati- sariam de manifestações heterogê-
vos. À imaginação potente dos in- neas do único e verdadeiro cons-
gleses o filósofo opõe o poder de tituinte do mundo – a energia –,
abstração de franceses e alemães. a qual assumiria diversas formas
Enganar-nos-íamos em pensar que como, respectivamente, a capa-
a crítica aos alemães, autorizadas cidade para a energia cinética, a
pelo senso comum, estivesse pre- energia de volume, e a energia de
sente unicamente nos textos de posição (cf. OSTWALD, 1973, p.
1915. O engano seria tanto maior 122). Em sendo todos os fenôme-

19 De fato, não precisamos aguardar pelas publicações maduras para entrevermos ataques de mesmo jaez a outros
alemães. Nicolau de Cusa, criticado em A ciência alemã por assumir em seu sistema metafísico o postulado segundo
o qual “Em toda ordem de coisas o máximo é idêntico ao mínimo” (DUHEM, 1915b, p. 21), já fora objeto de censura
no segundo tomo dos Estudos sobre Leonardo da Vinci (1909), quando da defesa do mesmo postulado, descrito como
“a antinomia mais formal que se possa conceber” (DUHEM, 1984, p. 127, cf. 107). Heinrich Hertz, outro alemão,
depreciado em “Algumas reflexões sobre a ciência alemã” como um “algebrista” (DUHEM, 1915a, p. 670), recebera
igual rótulo nas conclusões de As teorias elétricas de J. Clerk Maxwell, por ocasião de sua famigerada definição da
teoria de Maxwell como o conjunto de suas equações. A ideia segundo a qual uma teoria pode preservar o seu
significado mesmo quando reduzida a um conjunto de equações destacadas das regras de correspondência com os
fenômenos foi sobejamente criticada por Duhem em prol do holismo semântico (cf. DUHEM, 1902, p. 222-223;
1915a, p. 676-677). Hertz expressaria, em sua definição, a preferência germânica pelo aspecto sintático das teorias.
20 O ensaio de Ostwald apareceu pela primeira vez no número 21 da Revue générale de sciences pures et appliquées
(15 de novembro de 1895), e tinha originalmente como título: “Le dépassement du matérialisme scientifique”.
Utilizamos uma reprodução mais recente anexada em LECOURT, 1973, p. 113-124.

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nos subordinados ao conceito de prioridade do projeto da energética


energia, a matéria, enquanto cate- é constantemente atribuída a Wil-
goria filosófica, ver-se-ia eliminada liam Rankine por Duhem (1896,
e, com ela, as infindáveis especula- p. 498; 1897, p. vi; 1903, p. 235;
ções sobre a sua estrutura. De que- 1981, p. 73-74; 1911, p. 3; 1917,
bra, desfar-se-ia a dicotomia en- p. 76), o energetismo de Ostwald
tre materialistas e idealistas, bem passa quase em branco em seus
como o antagonismo entre o corpo escritos, o suficiente para termos
e a alma, agora definida como ener- uma ideia de sua austeridade com
gia psíquica. Trocando em miúdos, relação e ele. Causa espécie que
a energia seria a substância última essa atitude negativa não seja jus-
da realidade. Decerto que a posi- tificada por uma concepção que
ção de Ostwald libera a física de visa a manutenção da autonomia
um compromisso com o desvela- da física diante das tentativas de
mento do mecanismo da natureza explicar os fenômenos, reduzindo-
– a máquina do mundo não pre- os a entidades metafísicas – tema
cisaria mais ser construída. En- recorrente em Duhem. Ademais,
tretanto, seu energetismo exclui poderíamos naturalmente esperar
apenas o tipo mecânico de expli- do francês uma crítica de caráter
cação da natureza, já que não se mais técnico, na medida em que, a
furta a considerações metafísicas confiamos em Meyerson (1951, p.
tangenciais, substituindo-o por ou- 401), Ostwald, e os atomistas antes
tra ontologia, como notou Meyer- dele, não conseguira compatibili-
son (1951, p. 400-401): “a energia zar o princípio de Carnot com as
do cientista de Leipzig é um ver- consequências de sua teoria. A crí-
dadeiro ser ontológico, uma coisa tica duhemiana tem natureza di-
em si. Ela existe absolutamente, versa:
independentemente de toda outra No momento de deixarmos
coisa, abrangendo a substância e o a terra firme da mecânica
acidente, o espaço e a causa, sendo tradicional para nos lançar-
ela mesma sua própria causa, causa mos, sobre as asas da ima-
sui, e causando o mundo fenomê- ginação [rêve], à persegui-
nico inteiramente”. Evitando a uti- ção dessa física que situa os
lização das noções de átomo e mo- fenômenos em uma extensão
lécula, a posição de Ostwald paga vazia de matéria, somos to-
com outra moeda o idêntico preço mados pela vertigem. Então,
do reducionismo, transformando- com todas as nossas forças,
se em uma “visão de mundo” (Cf. nos agarramos ao solo firme
DELTETE, 2012, p. 109-110). Se a do senso comum, pois nos-
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sos conhecimentos científi- Tal como contra Einstein em A ci-


cos mais sublimes não têm, ência alemã, as palavras acima ver-
em última análise, outro sam sobre a negligência do quí-
fundamento senão os da- mico para com os ditames do senso
dos do senso comum; se se comum, cuja supressão subtrai os
revoga todas as certezas do fundamentos mais firmes de todo
senso comum, o edifício in- o conhecimento (nenhuma expe-
teiro das verdades científicas riência sensível ou opinião disse-
vacila sobre suas fundações e minada são evocadas). As cer-
desmorona. tezas que não podem ser revo-
gadas transitam no domínio pré-
Persistiremos, pois, a ad- científico. Implícito nessa passa-
mitir que todo movimento gem encontra-se a noção de senso
supõe um móvel, que toda comum como evidência imediata
força viva é a força viva de ao intelecto: é inconcebível o mo-
uma matéria. “Você recebe vimento sem algo que se mova. O
um golpe de bastão”, diz-nos movimento que entretém as trans-
Ostwald; “o que você sente, formações da energia será sempre
o bastão ou a energia?” Ad- o movimento de um móvel, de um
mitimos sentir a energia do substrato – o contrário como que vi-
bastão, mas continuaremos a ola as leis do pensamento. Medi-
concluir disso que existe um ante uma analogia que é somente
bastão portador dessa ener- instigada pelo autor, podemos di-
gia. [...] Permanecere- zer que o movimento está para a
mos aquém das doutrinas se- matéria como o acidente está para
gundo as quais a existên- a substância.
cia substancial de matérias Meyerson expressou um senti-
diversas e maciças torna-se mento de desorientação com seme-
uma ilusão (DUHEM, 1903, lhante crítica a Ostwald22 ; foi ela
p. 179)21 .

21 Mais uma vez, os pressupostos da recusa duhemiana da teoria da migração de energia encontra paralelo em
Pascal, não referenciado na ocasião. Em O espírito da geometria encontramos a seguinte passagem: “Porque não se
pode imaginar movimento sem alguma coisa que se mova” (PASCAL, 2000, p. 25). Duhem utiliza duas formulações
para a sua conclusão: o movimento implica um móvel, e; a força viva implica a matéria. Em virtude da indeter-
minação da natureza do móvel ao qual Pascal se refere na passagem acima, só podemos conjecturar que se trate de
algo material, como em Duhem. Acrescentemos que a segunda edição dos Pensées, diferentemente das edições de
há mais de um século, inclui o termo “matéria” entre os primeiros princípios: “Pois o conhecimento dos primeiros
princípios, como, por exemplo, que há o espaço, o tempo, movimento, número, matéria, é tão firme que nenhum
dos nossos raciocínios podem nos proporcionar” (PASCAL, 1670, p. 159). A ausência do termo em questão na
maioria das edições atuais deve-se provavelmente a um “efeito dominó”, originado dessa omissão tipográfica.
22 “Nossa concepção está muito mais próxima daquela de Duhem, de quem, sobretudo no começo desta ex-
posição, fizemos amplos empréstimos. Entretanto, não estamos muito seguros de termos compreendido a diferença
que este cientista estabelece entre o senso comum e as teorias físicas” (MEYERSON, 1951, p. 435-436).

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também a responsável pela excla- 142)23 . Esse aparente paradoxo po-


mação de Abel Rey: deria ser desfeito de modo simples,
Essa crítica é muito curi- com a introdução de uma distin-
osa sob a pena de Duhem. ção categórica entre a termodinâ-
[...] ele se esforça para cons- mica, teoria abstrata que, de fato,
truir uma física teórica pu- permanecia sem referência à estru-
ramente matemática, logo, tura íntima da matéria, e a (proto-
sem matéria, e faz repousar )ontologia duhemianas, dimanada
esta física sobre os princípios do senso comum. Duhem ofereceu
relativos à energia (REY, a Ostwald uma resposta nos ter-
1930, p. 91, n. 1). mos do colega, deslocando o con-
fronto do terreno teórico para o on-
A nós, já avisados das publicações tológico: contra a ontologia anti-
duhemianas que se seguiram, ela materialista deste, aquele opôs um
não espanta. Mas é compreen- materialismo informe24 , desacom-
sível a hesitação de Rey na pri- panhado de um sistema cosmoló-
meira edição de seu livro (1907), gico. Outrossim, sem a assunção
pois Duhem não havia insistido da realidade da matéria, a própria
na importância metodológica do demarcação entre a física e a cos-
senso comum. O único conceito mologia, esboçada em “Física e me-
de senso comum empregado por tafísica”, ruiria. Neste artigo, tal
ele até então era o que se opu- demarcação é posta nos seguintes
nha à física simbólica. A estupe- termos: “A física é o estudo dos fenô-
fação de Rey diante do vislumbre menos, cuja fonte é a matéria bruta,
da crítica a Ostwald, um presumí- e das leis que os regem. A cosmologia
vel companheiro de batalha con- procura conhecer a natureza da ma-
tra o mecanicismo, foi interpretada téria bruta, considerada como causa
como um recuo no abstracionismo dos fenômenos e como razão de ser
propugnado por Duhem, cuja física das leis físicas” (DUHEM, 1893a, p.
o próprio positivista classificava 58). Física e cosmologia cindem-
como um “formalismo” ou “mate- se após assumirem a existência da
matismo” (REY, 1930, p. 128, 138, matéria e a sua regência por leis fi-

23 Também Maiocchi (1985, p. 6-8, 14, 310) entrevê na exigência de abstração a principal originalidade da meto-
dologia duhemiana. Por isso, a defesa do senso comum lhe parece incompatível com a abstração outrora arrogada
(MAIOCCHI, 1985, p. 233). Ao criticar os alemães, prossegue o comentador, Duhem estaria ressuscitando uma
filosofia pautada pelo fenomenalismo indutivista que ele mesmo recusara desde os escritos iniciais. Daí o caráter
problemático de A ciência alemã. Contudo, é mister notarmos que em nenhum momento o francês critica o excesso
de abstração de seus vizinhos geográficos. O que mina as teorias germânicas não é, em si mesma, a hipertrofia da
capacidade abstrativa, mas, digamo-lo, a desproporção nelas existente entre esta e a capacidade intuitiva.
24 A rigor, a concepção esposada por Duhem é condizente com o dualismo de substâncias, uma vez que o senso
comum imporia a existência de “matérias diversas” sem ser, contudo, estritamente materialista.

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xas. Ambas dependem, por conse- aos especialistas nas decisões deli-
guinte, de noções fornecidas pelo cadas em que nenhuma regra pre-
senso comum25 , e qualquer sistema cisa guia seu espírito. Doravante,
metafísico que negue terminante- cumpre mostrarmos que é possí-
mente aquela existência contradi- vel distinguir dois sentidos de bom
lo-ia. Dado o estatuto ontológico senso: um, tal como o que aparece
privilegiado da noção de matéria em A teoria física, e outro, que se
sobre o conceito artificial e simbó- identifica ao senso comum, e que
lico de energia, Duhem desfaz a in- encontramos aplicado em oportu-
versão operada por Ostwald (1973, nidades como as críticas a Einstein
p. 121), que reduzia a matéria a e a Riemman e na carta a Récamier.
uma ficção, para delegar à energia Brouzeng (1987, p. 110) des-
a qualidade de realidade efetiva. tacou o parco empenho duhemi-
ano em conceituar o senso co-
mum no domínio científico. Com
Observações sobre os conceitos de efeito, afigura-se-nos qualquer
bom senso e senso comum em A coisa como irrealizável o anseio de
ciência alemã coligir uma lista exaustiva das pro-
posições do senso comum semea-
À constatação da polissemia das ao longo de seus textos. Tam-
conceitual do senso comum pre- bém não encontraremos algures
sente em A teoria física seguiu-se uma definição detalhada e inequí-
a evidência de que em um de seus voca da referida noção. Isso não
sentidos ele pode genuina e coe- nos obriga à assunção extremada
rentemente ser eleito critério me- de Jaki (1984, p. 322-323), que
todológico para a seleção de teo- imputou uma “drástica incomple-
rias. Já o bom senso, na mesma tude” à filosofia duhemiana no que
obra, apresenta multiplicidade fun- tange à determinação do paren-
cional e univocidade semântica, ou tesco filosófico da noção de senso
seja, ele desempenha um varie- comum. O pioneirismo do intér-
gado grupo de competências, em- prete húngaro em destacar a im-
bora seja sempre compreendido portância desta para o realismo do
como a perspicácia indispensável

25 Na física duhemiana a matéria entra como termo não definido (cf. DUHEM, 1892b, p. 270-271). A questão
acerca da constituição real da matéria, se contínua ou descontínua, permanece sendo metafísica.
26 Segundo Jaki (1984, p. 319), “O papel do senso comum na filosofia de Duhem é o aspecto mais fundamental,
ainda que amplamente negligenciado e quase invariavelmente mal interpretado”. O comentador destaca que o dis-
curso duhemiano possui uma tonalidade realista que o distancia de Hume, Kant e Mach. Realmente, cremos que,
ao nível pré-teórico, o professor de Bordeaux pode ser considerado um realista ingênuo, crente na existência de
substâncias materiais como entidades individuais independentes do sujeito do conhecimento. Para ele, o homem
está em contato direto com a realidade, a qual não é dissolvida em ideias que mascaram o ser, em representações

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francês não lhe assegurou, quer- servariam plenamente a sua cer-


nos parecer, a melhor das com- teza – o que nos reconduz à carta
preensões26 . Com razão, as po- a Récamier. Como Pascal e Des-
sições de Martin (1991, p. 60) e cartes, nosso autor inspira-se no
Stoffel (2002, p. 342-345; 2007), modelo geométrico de certeza para
que fazem de Duhem um herdeiro fixar os parâmetros que integram
de Pascal, foram alçadas entre as A ciência alemã. Não é à toa que a
mais sólidas nas últimas décadas. primeira lição desta obra tem como
Afinal, não é o próprio Duhem tema as “ciências do raciocínio”, e
(1915b, p. 6) que aponta, a con- é nela que os conceitos de senso co-
tragosto de Jaki, a equivalência en- mum e bom senso aparecem iden-
tre o seu bom senso e o “coração” tificados pelo maior número de ve-
pascaliano quanto à capacidade de zes. Distanciando-se de Descartes,
“perceber intuitivamente a evidên- contudo, Duhem recusa-se a acei-
cia dos axiomas”? E essa mesma tar a distribuição natural igualitá-
capacidade não é concedida igual- ria do bom senso entre os homens:
mente ao senso comum na pri- “Não, não é verdade que a ap-
meira lição de A ciência alemã? Por tidão de discernir intuitivamente
isso, acreditamos que o bom senso o verdadeiro do falso, isto é, o
e o senso comum refiram-se ao que bom senso, tenha, em todos os ho-
o jansenista designou, em O espí- mens, um igual desenvolvimento”
rito da geometria, como luz natu- (DUHEM, 1915b, p. 11). É justa-
ral ou, nos Pensamentos, como cora- mente essa desigualdade que lhe
ção. Desse modo, para Pascal, bem faculta a crítica aos alemães. Mas
como para Duhem, o coração (ou se também este bom senso pode va-
a luz natural) e o bom senso (ou riar como aquele presente em A te-
senso comum) denotam um modo oria física, o que essencialmente os
de conhecimento não discursivo de distingue? Vimos que aquele bom
ideias ou termos primitivos, no vo- senso resulta da prática científica,
cabulário pascaliano, e de noções e de maneira que algum estudo é
princípios, segundo as expressões requerido para o seu incremento.
usadas por Duhem. Todas essas Consequentemente, é por falta de
noções e princípios teriam algo em treino que um cientista particu-
comum: seriam indefiníveis, inde- lar dele carecerá. Ao contrário, o
monstráveis e, nada obstante, con- bom senso enquanto a aptidão para

solipsistas ou em complexos de elementos. Além de nós, Martin (1987, p. 306-307; 1991, p. 81-85) foi o único
a conferir atenção às várias facetas do senso comum no pensamento duhemiano. A despeito da sagacidade que
caracteriza suas análises, os resultados atingidos por ele discrepam dos nossos.

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apreender os primeiros princípios alemã. Em algumas oportunidades


e distinguir o verdadeiro do falso é Duhem usa a expressão “simples
espontâneo, e sua ausência indica bom senso” como algo distinto do
uma deficiência mais profunda – espírito de finura. Nos casos em
a má constituição mental. Duhem que isso ocorre, o espírito de fi-
condiciona a percepção dos axio- nura identifica-se à “perfeição do
mas à sanidade psíquica, alçando a bom senso”, enquanto que o sim-
predicação discursiva à universali- ples bom senso seria o correlato de
dade ao referir-se a “todo homem senso comum. Citemos algumas
são [sain] de espírito” (DUHEM, passagens, sem a preocupação de
1915b, p. 5); a “toda razão sa- contextualizá-las, das quais pode-
diamente [sainement] constituída” mos inferir a referida distinção:
(DUHEM, 1915b, p. 71). Uma dé-
1. Assim, privado da luz do senso
cada antes, em A teoria física (1981,
comum e do espírito de finura,
p. 147), ele já defendera que o
a ciência alemã [...] (DUHEM,
desejo natural de coerência inter-
1915b, p. 76).
teórica respondia à “necessidade
de um espírito sadiamente cons- 2. A falta de bom senso e de espí-
tituído”. Ao generalizar-se, o dis- rito de finura é muito comum
curso duhemiano passa a abarcar, nos alemães (DUHEM, 1915b,
com exceções, nações inteiras: o p. 89).
alemão seria menos dotado de bom
3. [. . .] é preciso que o bom senso
senso que o francês.
transcenda-se [se surpasse lui-
O problema com a interpretação
mème], que ele desenvolva
de Jaki não se limita ao tema geral
[pousse] sua força e sua flexi-
da herança conceitual do senso co-
bilidade até seus extremos li-
mum, mas transmuda-se em uma
mites, que ele se torne o que
questão específica atinente à fun-
Pascal nomeava o espírito de fi-
ção exercida pelo bom senso em A
nura (DUHEM, 1915b, p. 29).
ciência alemã. No prefácio à tra-
dução inglesa desta obra, ele sus- 4. Essas são, com efeito, as ca-
tenta a correlação subsequente: “O racterísticas de uma razão na
espírito de finura e o bom senso, qual o espírito de geome-
[...] são uma e a mesma coisa para tria, por causa seu desenvolvi-
Duhem” (JAKI, 1991, p. xix). A mento excessivo, comprimiu o
identificação aventada por Jaki não bom senso e não lhe permitiu
encontra respaldo textual. É fácil expandir-se em espírito de fi-
mostrar que as duas noções pos- nura (DUHEM, 1915b, p. 88).
suem funções diversas em A ciência 5. No desenvolvimento excessivo
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do espírito de geometria, no relação entre o bom senso e o espí-


aborto do espírito de finura e rito de finura: este seria o desen-
mesmo do simples bom senso, volvimento extremo daquele, en-
descobrimos vícios profundos quanto a citação 9 diz o mesmo da
(DUHEM, 1915b, p. 88). relação entre o senso comum e o es-
6. [. . .] esta perfeição do bom pírito de finura. Nos excertos 6 e
senso que é o espírito de finura 7 ocorre a identificação entre a per-
(DUHEM, 1915b, p. 98). feição do bom senso e o espírito de
finura. A perfeição do bom senso, en-
7. Eu saudaria nele [Pasteur] a tão, difere do senso comum e do bom
perfeição do bom senso fran- senso, mas a citação 5 estabelece
cês, um exemplo completo do igualmente uma distinção entre o
espírito de finura (DUHEM, simples bom senso e o espírito de fi-
1915b, p. 98). nura, subjugados pelo desenvolvi-
8. Sem dúvida, o incessante uso mento excessivo do espírito de ge-
do raciocínio matemático não ometria. Assim, simples bom senso,
mudou o caráter experimental bom senso e senso comum são, to-
dessas ciências [a estática, a di- dos, distintos do espírito de finura.
nâmica...]; suas hipóteses não Ora, a passagem 8 concede ao sim-
são princípios dos quais o sim- ples bom senso o poder de confe-
ples bom senso nos dá certeza rir certeza aos princípios das ciên-
plena (DUHEM, 1915b, p. 34). cias não experimentais, enquanto a
9 reserva o mesmo poder ao senso
9. Os axiomas [da geometria]
comum (ambos são indiretamente
condensam neles tudo o que o
relacionados às ciências do raciocí-
senso comum, aguçado em es-
nio). Ao menos no que diz respeito
pírito de finura, pode desco-
à função de garantia de certeza nas
brir de verdadeiro (DUHEM,
ciências do raciocínio, simples bom
1915b, p. 71).
senso e senso comum identificam-
Conjugando as passagens 1 e 2, se e, como vimos, ambos também
vemos que elas não estabelecem são passíveis de se aguçarem em
qualquer relação entre o bom senso espírito de finura. Em suma, é ex-
e o senso comum (e sequer com um clusivamente no contexto de intuição
terceiro termo), conquanto sejam de princípios metodológicos, metafí-
suficientes para diferenciarem am- sicos, morais ou pré-científicos que
bos do espírito de finura. As cita- ocorre a identificação entre os concei-
ções 3 e 4 estabelecem a seguinte tos de (simples) bom senso e senso co-

27 Essa identificação não é exclusividade da carta a Récamier e de A ciência alemã. O neotomista e correspondente

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mum27 . conjunto de proposições ou leis de-


rivadas diretamente da pura obser-
Considerações finais vação empírica, ordinária e pouco
detalhada, e as opiniões que se jun-
Uma análise exegética compre- tam a elas para formar o conhe-
ensiva revela que a obra duhemi- cimento comum, assim como hoje
ana conjuga com coerência ao me- nos referimos à opinião mediana
nos dois conceitos distintos de senso compartilhada por um povo, va-
comum, e que cada um preserva um riável geográfica e temporalmente,
domínio específico de vigência. O portanto, “ilustrável”. Enquanto
primeiro é constituído por aspira- nesta segunda acepção o senso co-
ções, noções e princípios primiti- mum não pode ser utilizado como
vos passíveis de serem apreendidos critério metodológico para a ava-
imediata e intuitivamente, sem ca- liação de teorias, na primeira, de-
rência de demonstração, devido à vido ao seu caráter universal, ele
sua obviedade e simplicidade. Neste necessita ser resguardado. Se o
sentido, o senso comum forma a senso comum não é capaz de indi-
base universal de todo conheci- car positivamente a construção de
mento, seja ele filosófico, religioso, um sistema teórico, ele atua ne-
metafísico, científico, matemático ou gativamente na exclusão daqueles
simplesmente vulgar. A negação que o contrariam. É exatamente a
dos princípios certos deste senso este conceito que Duhem recorre
comum acarreta o absurdo e mina em suas críticas à ciência alemã.
o edifício do conhecimento erigido Por fim, há o bom senso dos espe-
sobre eles. Em muitas oportuni- cialistas, equivalente ao espírito de
dades, este senso comum é nome- finura, variável entre estes porque
ado de modo indistinto como bom decorrente do aprendizado. É ele
senso ou, eventualmente, no caso que predomina na atividade cien-
de A ciência alemã, como simples tífica, guiando a escolha das hipó-
bom senso. O segundo assinala um

de Duhem, cardeal Désiré Mercier (1918, p. 196), definia assim os juízos provenientes do bom senso: “Os julga-
mentos mais ou menos indistintos, que a natureza espontânea, deixada a si mesma, dita à inteligência, chamam-se
verdades de bom senso, de simples bom senso. Como a natureza é a mesma em todos, as verdades de bom senso
chamam-se, com razão, verdades de senso comum”. Conquanto o bom senso seja pouco instrutivo para a formação
dos sistemas filosóficos, ele exigiria, por outro lado, um acordo com os seus primeiros princípios, percebidos com
certeza. Como Duhem, Mercier (1918, p. 197) atribui ao desejo de unidade uma origem inata: “O homem possui no
coração uma necessidade inata de ordem e de unidade” e, em respeito a esta, a verdadeira ciência deve harmonizar-
se com aqueles princípios. O reconhecimento dessa equivalência terminológica já fora feito por Kant (1982, p. 16)
no prefácio aos Prolegômenos, no momento de sua crítica à solução “fácil” ofertada por Thomas Reid e seguidores
à crítica humeana à causalidade. Não creio que Duhem tenha recebido qualquer influência direta da filosofia es-
cocesa do senso comum, visto que ele não reconhece qualquer débito em relação a esta (ele sequer menciona o seu
mais excelso expoente). Ademais, encontramos no pensamento neotomista uma fonte temporal e conceitual mais
próxima dele. Esta nota almeja unicamente a apontar alguns caminhos para futuras pesquisas.

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teses. Porém, por operar em um re- mas o desnudamento dos limites do


cinto intricado para o qual conver- seu convencionalismo.
gem inúmeras soluções possíveis, É certo que as leituras das pu-
ele pode apresentar retardo em seu blicações de maturidade podem ser
afloramento. Este bom senso ja- matizadas; adjetivações mais bran-
mais se identifica ao senso comum. das que a de “contradição”, im-
A sinonímia entre senso comum putada ao francês por Maiocchi,
e bom senso que se dá na carta são encontradas tanto em Brenner
a Récamier e entre senso comum (1990, p. 124)29 , que atribui a
e (simples) bom senso em A ci- Duhem uma “inconstância” carac-
ência alemã não é resultante nem terística, quanto em Martin (1991,
de um erro de transcrição, como p. 80), que opta por realçar uma
supôs Stoffel, nem de uma confu- “mudança de perspectiva” da parte
são conceitual infeliz, como insis- do autor. Acredito ter evidenciado,
tiu Maiocchi. Nos momentos em no que concerne especificamente à
que essa identificação ocorre, o seu noção de senso comum, verdadeiro
referencial conceitual é o mesmo, “pomo da discórdia” entre os espe-
qual seja, os princípios invencíveis cialistas, a existência de uma ên-
que fundamentam todo conheci- fase cronológica crescente outorgada
mento28 . Nada nos autoriza a su- a um de seus sentidos, já empre-
por que Duhem tenha alguma vez gado nas páginas de A evolução da
aceito que a opinião comungada mecânica e de A teoria física. A meu
por leigos pudesse ter sido elevada ver, são justas as palavras de Jor-
a critério metodológico para julgar dan (1917, p. 36) dirigidas a A ci-
teorias. Não houve qualquer tipo ência alemã: “esse livro, nascido da
de recuo em seu abstracionismo, guerra, não se ressente dela”. De

28 A não observância das teses defendidas no presente artigo tem gerado problemas recorrentes de tradução. A
versão inglesa de A ciência alemã vale-se de opções questionáveis. O original sens commun é invariável e corre-
tamente vertido por common sense; já bon sens é ora traduzido por good sense ora por common sense, produzindo
conflitos interpretativos (compare-se DUHEM, 1915b, p. 33-34, 43, 60, 71 e 88, com, respectivamente, DUHEM,
1991b, p. 28, 35, 47, 55 e 67). O tradutor parece, na maioria destes casos, ter adotado a seguinte tática: nas oportu-
nidades em que bon sens aparece sem referência próxima a sens commun, a tradução preferida é common sense; do
contrário, permanece como good sense. Presumimos que essa tática resulte do fato de que a tradução não técnica
mais frequente que bon sens recebe na língua inglesa seja common sense. Outro exemplo pode ser encontrado na
introdução da segunda edição inglesa de A teoria física, escrita por Jules Vuilleman, mas não traduzida por ele,
onde encontramos a passagem conforme a qual Duhem “elege o senso comum [common sense] como o juiz capaz
de decidir quais hipóteses devem ser abandonadas” (DUHEM, 1991a, p. xx). Ao contrário, o corpo do texto, de
tradução mais fiel às teses do filósofo, indica que “O bom senso [good sense] é o juiz das hipóteses que devem ser
abandonadas” (DUHEM, 1991a, p. 216). O original em francês é bons sens, e indica que o debate propriamente
científico é sempre travado entre os físicos em nome do bom senso.
29 As referências de Brenner (1990) a A ciência alemã esgotam-se na página indicada. Em outra publicação, Bren-
ner (2003, p. 169), aproveitando-se de uma citação encontrada na primeira lição de A ciência alemã em que bom
senso e senso comum identificam-se, constatou a proximidade da noção de bom senso de um tipo de intuição
“supra-lógica”, mas negligenciou tanto a problemática conceitual em torno da noção de senso comum como a
distinção traçada entre bom senso e senso comum em A teoria física.

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PIERRE DUHEM: UM FILÓSOFO DO SENSO COMUM

fato, a crítica aos alemães não se Embora a teoria da ciência duhe-


sucedeu a um rasgo colérico. Nossa miana, no que tange à análise epis-
interpretação tem, inclusive, algu- temológica e ao recurso constante
mas vantagens adicionais. Ela ex- à história da ciência, ainda seja
plica a crítica (esquecida pelos co- atual, sua teoria do conhecimento,
mentadores hodiernos) a Ostwald, em muitos aspectos, permaneceu
a qual confundiu Rey e Meyer- engessada, impedindo a sua ade-
son; explica igualmente a censura são às teorias concorrentes. Ao
a Einstein que estarreceu Agassi e; adotar o apanágio de “apóstolo do
por fim, a obscura passagem ao fi- senso comum”, Duhem coloca-se
nal da primeira parte de A teoria fí- como um defensor de uma “me-
sica, na qual o princípio de unidade todologia perene”, o que explica
interteórica é remetido ao senso co- parcialmente as malogradas con-
mum. Sem o recurso ao senso co- denações proferidas por ele às te-
mum, seria impossível a Duhem fi- orias de Maxwell, à relatividade
xar o objeto mesmo da teoria física, e ao atomismo. Torna-se difícil
recusando a incoerência e o prag- estimar como Duhem poderia ter
matismo da escola inglesa. aceito ideias como o quantum de
Isto posto, algumas conclusões ação de Planck e sua utilização, por
se nos impõem. Não nos parece Einstein, na explicação do efeito
cabível desprezar A ciência alemã fotoelétrico ou, ainda, o modelo
como obra de qualidade inferior, atômico de Bohr (cf. DELTETE;
visto que ela aprofunda sobrema- BRENNER, 2004, p. 225). O
neira tópicos metodológicos ape- mesmo pode ser dito da interpre-
nas esboçados até A teoria física, tação de Copenhage da mecânica
e, se bem que então pouco de- quântica. As reflexões duhemia-
terminados, jamais contraditórios. nas sobre a ciência alemã eviden-
A ciência alemã introduz novas te- ciam que na base de sua sofisticada
ses metodológicas e epistemológi- teoria da ciência repousa uma rudi-
cas, como a crítica às geometrias mentar teoria do conhecimento que
não euclidianas e à relatividade a suporta e restringe. Nem o aco-
restrita. A metodologia duhemi- lhimento do falibilismo científico,
ana não estava acabada, como já se as críticas ao indutivismo teórico,
supôs (MAIOCCHI, 1985, p. 132; ao experimento crucial ou ao apri-
BORDONI, 2012, p. 17; COKO, orismo metafísico, eliminaram por
2015, p. 77), desde os ensaios inau- completo os resquícios de fundaci-
gurais, em sua maioria incorpora- onalismo de sua filosofia. Por suas
dos quando da redação de A teoria aspirações, sua metodologia impul-
física. siona à busca de uma ciência coe-

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rente e realista, contra a escola in- apego à tradição, algo já aventado


glesa; por seus preceitos, ela obriga por Paul Painlevé (1893, p. 10) nos
a ciência a respeitar princípios de- primeiros trabalhos de Duhem e
masiado simplistas, menoscabados reforçado por outros, como Maioc-
nas teorias alemãs. As restrições chi (1985, p. 259) e Ramoni (1989,
metodológicas ora desenvolvidas p. 55). Mas afirmar isso, como se
conduzem-nos reavaliar e minimi- ele agisse como um cientista normal
zar o convencionalismo do autor, na defesa de seu paradigma ter-
tanto em geometria quanto em fí- modinâmico, é permanecer na su-
sica, à medida que, reconhecemo- perfície do problema, negligenci-
lo, não se trata exclusivamente de ando a subjacente metodologia orto-
“salvar as aparências” mediante doxa do senso comum que limita a
quaisquer convenções adequadas sua metodologia teórica refinada. É
para tal fim, mas, também, de evi- do exame das condições de possibi-
tar a construção mesma de teorias lidade de todo conhecimento pos-
que contradigam os preceitos uni- sível, prévio ao debate científico,
versais e primitivos da razão hu- que decorre o conservadorismo de
mana. Sem a meditação destes, nosso filósofo. No senso comum
nenhum discurso abrangente sobre duhemiano, que não é o senso co-
a teoria da ciência de Duhem po- mum renovável, passível de escla-
derá ser erigido. Poder-se-ia pen- recimento, de “idas e voltas”, tudo
sar que essa posição antivanguar- parece deter-se – inclusive a ciên-
dista resultasse de mero conserva- cia.
dorismo ao nível científico, de um

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Comprender lo Femenino desde la Propuesta Filosófica
de Friedrich Schleiermacher

[Entendendo o Feminino a partir da Proposta Filosófica de Friedrich


Schleiermacher]

Catalina Elena Dobre *

Resumen: En este trabajo nos proponemos analizar la propues-


ta del concepto de lo femenino en el pensamiento de Friedrich
Schleiermacher, un análisis no muy común cuando se trata de uno
de los principales teólogos modernos. Sin embargo, pocos saben
que Schleiermacher ha sido entre los primeros filósofos que eleva el
tema de lo femenino a objeto de reflexión filosófica. Por lo cual, nos
proponemos, partiendo de su escrito llamado Cartas Confidenciales
a la novela Lucinde de Friedrich Schlegel, comprender el valor de
la virtud femenina necesaria para crear comunidad y cultura. Para
esto, primero presentaremos un breve contexto en el cual surge el
pensamiento de Friedrich Schleiermacher; después expondremos la
intención y el mensaje de la novela Lucinde de Friedrich Schlegel, para
de allí analizar cuál fue la intención de Schleiermacher al escribir
la Cartas Confidenciales y como llega a considerar que uno de los
principios fundamentales de la vida ética es una virtud femenina. La
vigencia de esta propuesta de Schleiermacher para nuestros tiempos
es muy importante para hacernos comprender hoy que lo femenino
no se tiene que imponer mediante una ideología de género, sino que
la mujer tiene que aprender descubrir y valorar lo valiosos en su
propia naturaleza para así contribuir, como siempre lo ha hecho, al
desarrollo de la cultura.
Palabras claves: femenino, masculino, unión sagrada, amor, virtud,
ética, comunidad.

* Investigadora del Sistema Nacional de Investigadores (SIN) de CONACYT, Nivel I (desde 2014). Doctora en
filosofía (2004) por la Universidad “Al. I. Cuza”, Iasi, Rumania. Profesora, desde 2001, en universidades como:
Universidad Dunarea de Jos, Galati Rumania, Universidad Anáhuac México, Universidad Iberoamericana México.
E-mail: katalina.elena@yahoo.com.mx.

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.6, n.1, jul. 2018, p. 305-322 305
ISSN: 2317-9570
CATALINA ELENA DOBRE

Resumo: Neste artigo, propomos analisar a proposta do conceito de


feminino no pensamento de Friedrich Schleiermacher, uma análise
não muito comum ao lidar com um dos principais teólogos modernos.
No entanto, poucos sabem que Schleiermacher foi um dos primeiros
filósofos que levantaram o tema do feminino como objeto de reflexão
filosófica. Portanto, propomos, a partir do seu escrito chamado Letras
Confidenciais ao romance Lucinde de Friedrich Schlegel, entender o va-
lor da virtude feminina necessária para criar comunidade e cultura.
Para isso, apresentaremos um breve contexto onde surge o pensamen-
to de Friedrich Schleiermacher; então apresentaremos a intenção e a
mensagem da novela Lucinde de Friedrich Schlegel, a partir daí para
analisar o que foi intenção de Schleiermacher ao escrever as Cartas
Confidenciais e como ele considera que um dos princípios fundamen-
tais da vida ética é uma virtude feminina. A validade desta proposta
de Schleiermacher para nossos tempos é muito importante para nos
fazer entender hoje que o feminino não precisa ser imposto por meio
de uma ideologia de gênero, mas que a mulher deve aprender a des-
cobrir e valorizar o que é valioso em sua própria natureza para contri-
buir, como sempre fez, ao desenvolvimento da cultura.
Palavras-chave: feminino, masculino, união sagrada, amor, virtude,
ética, comunidade.

“Todos los pueblos que han poseído costumbres han respetado a las mujeres”
Jean Jacques Rousseau

I. Introducción e inicio del Romanticismo es difí-


cil relacionarlo con uno de los dos,
por lo cual debemos entenderlo co-
Siendo conocido hoy como ”el
mo perteneciente a este momento
padre de la teología moderna”
de tensión entre una etapa y otra
Friedrich Schleiermacher es uno
(CROUTER, 2005: 72).
de los pensadores complejos consi-
A pesar de ser situado, mediante
derando su multifacética actividad
su obra, en esta etapa de transición,
como filósofo y pedagogo. Aunque
consideramos que Schleiermacher
Schleiermacher se puede relacio-
logra acercarse más al proyecto ro-
nar más con el Romanticismo tem-
mántico sin mencionar que es uno
prano, cabe decir que hay ciertos
de los primeros filósofos que eleva
aspectos de su obra y su formación
el tema de lo femenino a un pro-
que lo tienen atado a la Ilustración;
blema filosófico.
sin embargo, Richard Crouter sub-
Viviendo una época prolífica en
raya que debido al hecho de que
ideas y nos referimos a la época en-
Schleiermacher se posiciona pre-
tre el siglo XVIII y XIX, la así lla-
cisamente al fin de la ilustración
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SCHLEIERMACHER

mada la “época de oro” de la cul- tanto, a su edad; tiene un espíri-


tura alemana, el inicio de Schleier- tu original, que aquí donde hay
macher como pensador se da en tanto espíritu y talento1 , todavía
los círculos intelectuales, los famo- los superan a todos... Puesto que
sos salones, de Berlín en los cua- mi estrecha amistad con él apenas
les se juntaban varios pensadores comienza, en definitiva, comienza
románticos. Como afirma Lourdes también un nuevo periodo por mi
Flamarique “a través de la par- presencia en los mundos filosófico
ticipación en el círculo románti- y literario” (VIAL, 2013: 269).
co, Schleiermacher intenta dar una En Berlín, Schleiermacher, jun-
forma nueva al mundo de la subje- to con su amigo Friedrich Schle-
tividad interna, de la individuali- gel, y con otros como Alexander
dad hasta ahora silenciada por la von Humboldt, Wilhelm von Hum-
vigencia de categorías generales, boldt, Jean Paul, empiezan a fre-
fruto de una razón ajena a la histo- cuentar los salones de Henriette
ria y sus cambios” (FLAMARIQUE, Herz y de Rahel Levin Varnhagen,
1999: 32). mujeres con las cuales entabló una
Entre los años 1796 y hasta 1830, amistad para toda la vida.
con aproximación, los románti- Si Henriette Herz es creadora de
cos representaban “la vanguardia” un grupo de lectura llamado “La li-
(VIAL, 2013: 229) en cultura y arte ga de la virtud” (Der Tugendbund)
del pensamiento europeo, influen- que tenía una “misión” el desarro-
ciados por el anterior movimiento llo de la virtud; Rahel Levin Varn-
llamado Sturm und Drang iniciado hagen crea una bella comunidad
por Herder, Goethe o Schiller. de intelectuales unidos por el ideal
Sin entrar en muchos detalles de la cultura relacionada con el te-
biográficos, es en uno de estos sa- ma del Bildung. La labor de ambas
lones de Berlín, dónde Schleierma- mujeres, como anfitrionas de salo-
cher conoce, entre otros, a su fu- nes, era enfocada en la necesidad
turo buen amigo Friedrich Schle- de cultivar las emociones como un
gel ya una figura reconocida en- elemento vital de la expresión de
tre los románticos. En una carta a sí mismo; la necesidad de mejorar
su hermana, Schleiermacher des- las relaciones con los otros y lograr
cribe a Schlegel: “Es un joven de una relación de honestidad, así co-
solo veinticinco años, con un tan mo cultivar el sentimiento de re-
amplio conocimiento, que es difí- signación en situaciones externas,
cil concebir cómo es posible, saber todo para que cada uno sirva de

1 Seguro refiere a los salones que estaban frecuentando (el de Henriette Herz o el de Rahel Levin Varnhagen)

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la mejor manera al otro; se trataba Es en este ámbito de amis-


del desarrollo desde una perspec- tad, encuentros y diálogos, que
tiva moral, intelectual y espiritual Schleiermacher empieza tener
(CLOWES, 1996:171). también un peculiar interés sobre
Se ponen así las bases de una be- el tema de la mujer, un asunto no
lla comunidad cuya base era la idea tan novedoso para él ya que, unos
de una amistad de afinidad espi- años atrás, conoce a una joven mu-
ritual, en el sentido goetheano de jer llamada Luise “Federike” Julia-
“ideas afines” ; es decir, una amis- na Gräfin zu Dohna en cuya per-
tad entre personas reunidas bajo sonalidad se juntaban las cualida-
las mismas ideas y gustos. Por lo des que el filósofo apreciaba en
que para este tipo de comunida- una mujer: inteligencia, apertura,
des, la amistad fue esencial para inocencia, sociabilidad.
el desarrollo del ideal de forma- La presencia de Federike, ayuda-
ción de la personalidad, llamado ron a Schleiermacher comprender
Bildung. El modelo lo encontramos algo sobre el valor de la naturaleza
anteriormente en la amistad entre femenina ya que, en una carta ha-
Goethe y Schiller, o entre Goethe cia una amiga suya, Eleonor Gru-
y Johanna Schopenhauer, para dar now de agosto 1802, confiesa:
unos ejemplos. Es muy importan-
De arte y de la mujer, no
te resaltar que Friedrich Schlegel
tenía entonces ningún co-
y Friedrich Schleiermacher se en-
nocimiento. Mi respeto por
cuentran en los salones de la época
la mujer fue despertado du-
en Berlín, creándose entre ellos du-
rante mi permanencia en el
radera amistad que duró toda la vi-
círculo doméstico de Prusia.
da, apoyándose mutuamente y co-
En cuanto a mí, este meri-
laborando para para defender y di-
to se debe a Federike; porque
fundir ideas novedosas que han re-
es a través del conocimien-
presentado los fundamentos de las
to del corazón y de la men-
ideas desarrolladas más tarde y re-
te femenina que he aprendi-
presentan la estructura del pensa-
do a saber que el valor hu-
miento del Romanticismo alemán.
mano es real (Cfr. CLOWES,
Este apoyo muto empezó se refleja
1996: 86).
en el impulso para la escritura que
Schlegel le da a Schleiermacher y Como se deja entender en la carta,
como resultado surgen uno de sus la inquietud del filósofo sobre el te-
escritos más famosos llamados Mo- ma del carácter humano se clarifi-
nólogos y Sobre religión, publicados có en especial en la experiencia que
en 1799. tuvo con esta joven mujer. De igual
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SCHLEIERMACHER

manera aprender Schleiermacher be ocupar con su belleza y no tan-


de Federike cuál es el valor del to con la educación. Desde su pers-
matrimonio, dado está ultima tuvo pectiva, la mujer, al no tener capa-
el valor de enfrentar a sus padres, cidad de profundizar la reflexión y,
en el momento que estos le habían por lo mismo, al no tener la capaci-
arreglado un matrimonio. Federi- dad de entender los problemas mo-
ke, una joven con mucho carácter rales que implican el ámbito públi-
no quería casarse sólo para tener co, debería ser educada sólo para
un esposo sino quería que este fue- servir a su esposo, Kant, rechazan-
ra elegido por ella. Sin embargo, do la idea de la educación para las
Federike nunca se casó, además de mujeres.
que murió bastante joven. Fichte un lector y seguidor de
Son estas experiencias de vida Kant, continúa estas reflexiones en
que despiertan en el filósofo un torno a la presencia femenina, li-
interés para comprender lo feme- mitándola, igual que su maestro a
nino, experiencias complementa- ciertas características en especial a
das a la vez con lecturas de Rous- la idea de que las mujeres son más
seau, Kant, Fichte o de Theodor prácticas que teóricas y por lo tan-
von Hippel en torno al tema de to no tiene sentido acceder a una
la mujer, un tema muy complejo y educación institucionalizada.
muy debatido a partir de la mitad Estas ideas, que se vuelven una
del siglo XVIII. cuestión muy debatida alrededor
Sin entrar muy a fondo, explica- de los años 1790, y con Theodo-
remos que si en la cultura france- re von Hippel se empieza defen-
sa, el tema de la emancipación de der la posibilidad de la educación
la mujer empieza a ser un tópico de la mujer y el tema de ciertos
de debate alrededor de las reflexio- derechos civiles de esta misma. Es
nes de Jean Jacques Rousseau o de precisamente a esta postura libe-
Saint-Simone, en Alemania este te- ral que se unen, para dar continui-
ma se hace presente con los filó- dad, tanto Schlegel como Schleier-
sofos de la Ilustración, en especial macher que, aunque lectores, se-
con Kant y Fichte que tenían ideas guidores y admiradores de Kant y
muy estrictas en cuanto el papel de Fichte, empiezan tener posturas
de la mujer. Por ejemplo, Kant, in- mucho más abiertas y comprender
fluenciado por Rousseau, atribuía la importancia de la mujer y de su
a la mujer la belleza y la sensibi- inteligencia para el entorno públi-
lidad, mientras que al hombre atri- co no sólo privado.
buía la razón y lo sublime, conside- Consideramos que la aportación
rando, a la vez, que la mujer se de- de Schleiermacher es muy impor-

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tante para nuestros tiempos, preci- expresa en su escrito Sobre la filo-


samente para repensar la presencia sofía. Hay que especificar aquí que
de la mujer en la sociedad. Sobre to- el concepto de humanidad ha si-
do, cuando lo femenino se ha vuel- do muy importante para los pensa-
to una bandera ideológica fomen- dores románticos, en especial para
tada por una cultura meramente Schleiermacher y representaba el
competitiva, en la cual la mujer ha desarrollo y la transformación de
olvidado completamente su virtud la vida interior y de la inteligencia
y su papel. Por eso Schleiermacher de tal manera que pueda alcanzar
nos recuerda que la mujer no está este estadio de humanidad enten-
hecha para competir con el hom- dida como realización en la pleni-
bre, sino para que, mediante su na- tud de su existencia.
turaleza virtuosa, tejer con inteli- La novela Lucinde, a pesar de la
gencia y discreción los hilos más apariencia, se quería una continua-
duraderos de nuestra cultura. ción del escrito Sobre la filosofía. Si
en este último escrito, Schlegel se
II. La problemática de la novela dirige a las mujeres, con el mensa-
Lucinde je de que, siendo naturalezas poe-
En año 1799, Friedrich Schlegel, ticas, necesitan de la filosofía y a la
publicaba dos escritos que refleja- que son capaces acceder; en la no-
ban sus ideas sobre las relaciones vela Lucinde, refiere más a la natu-
entre los hombres y las mujeres: raleza masculina que necesita ser
Sobre la filosofía y su intrigante no- guiada por la poesia de la natura-
vela Lucinde, ambas pensadas co- leza femenina.
mo parte de una una trilogia que el Sin la intención de hacer al-
filósofo tenía in mente (Sobre la filo- gun analísis, este escrito –que tiene
sofía, Sobre Diotíma y Lucinde), tri- aparentamente forma de novela-
logía en la cual intencionaba crear puede ser entendido com un ex-
un nuevo tipo de moral fundamen- perimento en el cual Schlegel hace
tada en dos principios que no pue- una apología de lo femenino (de la
den funccionar por separado: Poe- poesía) en un contexto en el cual la
sie (poesia) y Philosophie (filosofía) mujer estaba apegada a las conven-
donde la primera representa la na- ciones morales y sociales. Por eso,
turaleza femenina y la segunda la Schlegel se propone “limpiar las
masculina. Según Schlegel, estos cenizas de los prejuicios” (SCHLE-
principios deben unirse para dar GEL, 2007: 29) y revelar a sus con-
lugar a la humanidad (Menschheit), temporaneos, que la mujer debe vi-
que es un momento religioso (RI- vir en funcción de la libertdad y en
CHARDSON, 1991: 83) así como lo funcción de su naturaleza que es el

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amor. La novela fue muy criticada samiento. Basta mencionar, en es-


en la época porque, contra la mo- te sentido, el surgimiento del Ro-
ral confortable del amor, Schlegel manticimo para comprender que
propone a la mujer como el con- aquel Eros platónico no fue olvida-
finum de la realización del amor do y que se necesitaba de su pre-
en el matrimonio. Es decir, lo que sencia para unir lo divino con lo
Schlegel quería enfatizar median- humano, unión que representa, en
te esta novela, “era la idea de uni- el fondo, la búsqueda romántica.
dad, donde el amor sensual y el Sin embargo, Friedrich Schlegel no
amor espiritual” (STANCO, 2013: fue el único que se atrevio plan-
54) forman una unión sagrada que tear el tema del amor sensual –an-
devuleve al ser humano su belle- tes lo había intentado Rousseau,
za y su ingenuidad, por un lado y, y ahora eran los romanticos como
por otro,quería resaltar las capaci- Hölderlin con su Hyperion, Nova-
dades intelectuales de la mujer ya lis con sus Himnos de la noche, Wil-
que ésta no puede ser reducida a helm Heinse con su escrito Arding-
un mero instrumento, en el senti- hello und die glückseligen (Ardinge-
do de que el amor hacia la mujer no llo y la felicidad, 1787), o Friedrich-
debería resumirse sólo el gozo de la Heinrich Jacobi con su novela Wol-
carne, sino dirigirse al apreció a su demar, (1794)- pero él es el único
sensibilidad y de su inteligencia. que intenta proyectar una ética ro-
Dicho de otro modo, Schlegel mántica reflejada en la idea de la
trata de sostener que no puede ha- emancipación femenina; en la idea
ber una divisón; es decir, ya no se de la liberación de la mujer de una
puede pensar que las únicas carác- moral acartonada y de su capaci-
teristicas de la mujer son el erotis- dad de realizarse como mujer me-
mo y la sensibilidad y las del hom- diante el amor.
bre el intelecto y la razón. Schlegel Por lo que el valor de Schlegel
busca la unidad de ambas posturas fue, mediante su “atrevida” nove-
porque para él la realización hua- la Lucinde, ofrecer a la mujer un
mana se logra mediante el amor co- lugar, nunca tenido antes, hacien-
mo unión sagrada entre hombre y do una “inversión de los valores”
mujer, entre filosofía y poesía. (PATTISON, 1985: 548) en el sen-
Podrá extrañar esta postura de tido de que le brinda un estatus
Friedrich Schlegel en el contexto que le permite recobrar su valor y
del final del siglo XVIII si reco- su dignidad como ser humano, li-
radmos de que precisamente es- bre de elegir cómo vivir su vida;
te momento trae consigo elemenos rompiendo así con la vieja tradi-
novedosos en el ámbito del pen- ción de comprender el matrimonio

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como un mero contrato social. pesar del contexto poco favorable,


A pesar de ser recibida con mu- decide publicar, en el año 1800,
cha reacción negativa -ya que la una reseña llamada Vertraute Briefe
mayoría de los lectores no eran su- über Friedrich Schlegel Lucinde (Car-
ficientemente preparados y abier- tas confidenciales sobre la novela Lu-
tos para esta idea novedosa de cinde de Friedrich Schlegel2 ), reseña
Schlegel de la unidad entre poe- que hace referencia a dos proble-
sía y filosofía como una unidad es- mas importantes: el valor de la in-
piritual traducida metafóricamen- dividualidad y el valor de la comu-
te en la relación entre la mujer nidad. Aunque fue publicada co-
(la sensibilidad) y el hombre (la mo reseña, está escrita a manera de
razón)- la novela no pasó desaper- cartas, cuyos “autores” son varios
cibida y tuvo un gran impacto en el personajes que hablan entre ellos
cercano amigo Friedrich Schleier- sobre la parte central de la nove-
macher. La amistad con el autor la Lucinde (CLOWES, 1996: 302): el
de la mencionada novela, ayudará tema de la transformación interna de
a Schleiermacher desarrollar tan- Julius y el camino hacia sí mismo me-
to su identidad personal, como su diante la mujer amada.
obra. Para entender la peculiaridad de
la reseña, cabe mencionar que en
aquella época la escritura de car-
III. Cartas Confidenciales sobre la
tas era algo común para comunicar
novela Lucinde
no sólo hechos diarios sino que las
La novela Lucinde generó un ám- cartas representaban un género de
bito de mucha crítica y hostilidad, escritura en sí, la llamada escritu-
dirigida contra Schlegel. En los sa- ra epistolar, mediante la cual se po-
lones de la época su obra era apre- dían transmitir todo tipo de viven-
ciada y leída, pero no lo mismo cias, de sentimientos, de tal ma-
pasaba fuera de estos círculos. Por nera que las cartas se vuelven los
eso que Schlegel pide apoyo a su testigos de verdaderos escenarios
amigo Schleiermacher, quien pa- dramáticos donde el amor, el su-
ra entonces era ya una figura res- frimiento, y la ilusión constituyen
petada, siendo pastor y estudian- los “personajes principales” de las
do teología. Schleiermacher no tar- mismas como espejos en los cua-
dó en defender este escrito y, a les reflejaban su vida interior, la

2 No sabemos si es una coincidencia o no, pero unos años antes, Hegel, contemporáneo con todos ellos, había
traducido de manera anónima un escrito llamado: Cartas confidenciales sobre la relación legal anterior entre el
cantón de Vaud y la ciudad de Berna: de la obra francesa de un autor suizo ya fallecido (1798) (KAUFMAN, 1985:
57).

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SCHLEIERMACHER

verdad oculta de sus existencias. época sino algo que pertenecía a un


La escritura de cartas, era también futuro lejano. Es decir, el mundo
una forma sutil y delicada de crear no estaba preparado recibir ideas
lazos entre las vidas privadas y la novedosas y revolucionarias, a la
esfera pública. Por lo que, sin du- vez, sobre el amor, sobre la mujer,
da, en aquella época, escribir car- sobre la relación del hombre con
tas era todo un arte y este arte erala mujer o sobre un nuevo sentido
considerado un aspecto esencial de de la misma filosofía, por lo que el
la educación de una persona. escrito Lucinde fue en general re-
En este sentido, no extraña que chazado. No extraña que Schleire-
Schleiermacher elige el estilo epis-macher dedica esta obra, con un
tolario para su “reseña” . El es- tono irónico a los críticos literarios
crito está dividido en tres partes: dispuestos a rendir homenaje a fór-
“una carta introductoria y anóni- mulas morales sin sentido.
ma, dirigida a “aquel que no pue- La intención de Schleiermacher,
de entender” , luego nueve cartas mediante estas cartas, era remitir
y el largo ensayo Versuch über die a un diálogo en el cual todas las
Schaamhaftigkeit (Ensayo sobre la “voces” , aun siendo posturas in-
sensibilidad femenina)” (CFR. CLO- dividuales, es un diálogo en comu-
WES, 1996: 309). En la carta anó- nidad. Tomando en cuenta que Lu-
nima, que abre el escrito, se afirmacinde refleja más bien el desarrollo
lo siguiente: personal del individuo, las Cartas
confidenciales, podían ser entendi-
Ahora tenemos esta obra, Lu-
das como una continuación de la
cinde, que está allí como
novela inconclusa, en la cual se re-
una manifestación del futu-
fleja el tema de la amistad (CLO-
ro ¡Dios sabe qué lejano es
WES, 1996: 313). Una idea pareci-
el mundo! Antes que yo me
da sostiene George Pattison al decir
permitiera decir algo sobre la
que Schleiermacher simpatiza con
composición y sobre el arte
el escrito Lucinde y decide, no sólo
en ella, sin duda tendrá que
apoyar a su amigo, sino comple-
ser completada, si tomamos
mentar una novela difícil de asimi-
en cuenta que hasta ahora,
lar para los contemporáneos (PAT-
es incompleta. (SCHLEIER-
TISON, 1985: 550).
MACHER, 1980, KGA I.3:
Lo seguro está que de “manera
143-144).
indirecta” , tras estas cartas,
Es posible que Schleiermacher ha- Schleiermacher defiende, por un
bía intuido que las ideas de Lucin- lado, a Schlegel en su intención de
de no eran para la mentalidad de la crear una “nueva religión de amor”
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(Menschheit), intención muy criti- representa una idea innovadora ya


cada y, por otro, defiende los idea- que la unión entre el hombre y la
les románticos de la amistad y de la mujer no se limita a un contracto y
comunidad. El plus de este escrito no debe tener como finalidad nada
es que Schleiermacher nos presen- más la procreación, sino que repre-
ta el mundo desde una perspecti- sentaba la unión por libre decisión,
va femenina, representada por sus acompañada por el amor sensual
tres personajes Ernestine, Karoline y cuya finalidad debería ser una
y Eleonore que intercambian cartas armonía espiritual (SINGER,1992:
en las cuales expresan sus puntos 426-427). En este sentido escribía
de vista. Por ejemplo, el personaje en una carta a sobre la novela Lu-
femenino Ernestine enfatiza la idea cinde:
que el amor no puede ser separado,
Aquí tienes el amor en su
porque el espíritu no puede vivir
totalidad y en una sola pie-
fragmentado; por eso lo sensual y
za, con lo que es más espi-
lo espiritual se necesitan uno de lo
ritual y lo más sensual (. . .
otro.
). De hecho, todo en este es-
Fuera de ser una defensa para su
crito es humano y divino, a
amigo y para de la idea de amistad,
la vez. Una fragancia mágica
el escrito Cartas confidenciales sobre
de santidad surge de sus pro-
Lucinde, representa desde mi pun-
fundidades y penetra todo el
to de vista también una “defensa”
templo, consagrando a todo
en cuanto la capacidad de la mujer
aquel cuyo sentido aún no
y su más valiosa virtud: Schaamhaf-
se ha osificado (SCHLEIER-
tigkeit (el pudor), Schleiermacher
MACHER, 1980, KGA I. 3 :
expresando que el amor sensual no
194)
es algo contra la moral o contra la
religión, sino que surge por la pa-
sión que nace en la interioridad de Resulta que para Schleiermacher el
cada individuo3 . amor es una relación sagrada pe-
Inclusive como teólogo, para ro dialéctica que implica tanto al
Schleiermacher el escrito Lucinde hombre como a la mujer; una dia-
léctica que refiere al hecho de que

3 En sus Monólogos, escritos casi en la misma época que la reseña, afirma: “El uno se convierte finalmente en
el destino del otro, y con la contemplación de la fría necesidad se apaga el ardor del amor. Así, al final, la misma
cuenta los reduce a todos a la misma nada. Toda casa debería ser el cuerpo bello y la obra bella de un alma pro-
pia, y debería tener forma de rasgos propios. Pero todas son la uniformidad muda, la abandonada sepultura de la
libertad y de la verdadera vida. ¿Lo hace feliz, ella a él, vive ella absolutamente para él? ¿La hace feliz él a ella,
es él pura complacencia? ¿Es para ambos la mayor felicidad el poder sacrificarse el uno para el otro? ¡Oh, no me
tortures más, cuadro de miserias que moras profundamente oculto tras la alegría (. . . )! ¿Dónde está el amor a esta
nueva existencia creada por uno mismo amor que, antes que perderla?” . (SCHLEIERMACHER, 1991: 84-85).

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el amor no puede ser reducido só- y mediante este amor nace la con-
lo a la sensualidad o sólo a la espi- ciencia religiosa en un individuo,
ritualidad. Habla de una unión de porque para llegar a la religión el
amor que no puede ser separada ya hombre debe primero descubrir la
que el cuerpo y el espíritu no son humanidad, como afirma en el pri-
entidades per se en el hombre, sino mer discurso de su escrito Sobre la
que están en relación y forman la religión, llamado Apología. En bre-
singularidad. ve, para llegar a la religión uno de-
Con estas ideas del amor como be saber amar, saber abrirse al otro
unidad divina entre hombre y mu- y encontrar en él un espejo don-
jer, se rebasa las diferencias seña- de se debe ver reflejado a sí mis-
lada antes por Kant, Hegel o Fich- mo; formar junto con el otro una
te, entre lo femenino y lo mascu- comunidad y así descubrir el senti-
lino, representadas por las diferen- do de la humanidad. Como afirma
cias entre el sentimiento y la razón. G. Pattison con toda razón, si para
Estas diferencias ya no tienen sen- Schlegel el amor entre el hombre y
tido para el filósofo romántico, ya la mujer es el telos, para Schleier-
que las dos partes necesitan de una macher el amor entre el hombre y
unidad que se realiza mediante el la mujer es la vía hacía la religión
amor entre el hombre y la mujer. (PATTISON, 1985: 551).
Uno de los personajes femeninos
de las Cartas, Ernestine, afirma:
IV. La importancia de la virtud fe-
“El amor y el mundo me parecen
menina para una ética de la comu-
ser tan inseparables como insepa-
nidad
rables son el ser humano y el mun-
do, tanto en la vida y en la repre- No extraña entonces cuando
sentación, el que quiere separarlos Schleiermacher sostiene, más que
el uno del otro, peca” (SCHLEIER- convencido, que lo que la mujer
MACHER, 1980, KGA I.3: 164) tra- es la única capaz de transformar
tando de subrayar la estrecha rela- el amor en humanidad. Ella, me-
ción entre el significado del amor diante su misteriosa naturaleza,
para la humanidad, relación que tiene la capacidad de transformar
no se puede dividir en dos par- el amor sensual en un amor forma-
tes. Es decir, sería sin sentido sepa- tivo. Por eso, Ernestine, el perso-
rar el amor el amor de la humani- naje femenino de las Cartas confi-
dad y de la moral. Al contrario, pa- denciales, representa para Schleier-
ra Schleiermacher, el amor entre el macher la virtud femenina por ex-
hombre y la mujer es la base para celencia (Schaamhaftigkeit – una
la idea de humanidad/comunidad, característica innata de la mujer)
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concepto muy difícil de traducir, tiene innata esta sensibilidad o es-


al cual dedica 154 páginas en su te ingenio de la modestia, pero en
escrito Cartas confidenciales (CFR. oposición a sus antecesores quie-
RICHARDSON, 1991: 97), concep- re encontrar en la Schaamhaftigkeit
to que será similar a un sentido de una relación entre pensamiento,
la modestia, a un sentimiento inte- el desarrollo de la personalidad,
rior que la guía, un ingenio similar comunidad, ética y religión (CFR.
a un tipo de sensibilidad mediante CLOWES, 1996: 328); en otras pa-
la cual la mujer tiene la capacidad labras, una unidad entre individuo
de comprender de inmediato las y comunidad, poniendo así la base
características del otro diferente. de su pensamiento ético.
El concepto está inspirado en el
Émile de Rousseau, en el cual el indent En este sentido Schleierma-
concepto de Schaamhaftigkeit refe- cher analiza el concepto tratando
ría más a una característica de gé- de alargar su esfera de compren-
nero sumamente femenino, Rous- sión y partiendo de la idea de que
seau hablando a la vez de una cien- existen dos grandes fuerzas: el es-
cia femenina; una habilidad de ob- píritu (Geist) y la naturaleza/ sen-
servar al otro, afirmando que con sualidad (Natur), cada una tenien-
esta habilidad la naturaleza armó do una importancia esencial; pero
al más débil para conquistar al más lo que une estas dos fuerzas, o lo
fuerte (ROUSSEAU, 1995: 453) Pe- que da un equilibrio, es la Schaam-
ro, a la vez, es el mismo Rousseau haftigkeit (el pudor) que hace que
quien hacía la diferencia entre una lo espiritual siempre está presen-
mujer atrevida y desvergonzada te en lo sensual (CFR. RICHARD-
y una mujer que posee reserva y SON, 1991: 100) Para Schleierma-
modestia y para poder conquistar cher, esta sensibilidad es más pro-
al más fuerte es necesaria está re- pensa en la mujer y la ayuda ser
serva. Después de Rousseau, Kant moralmente más pura, elevándose
también hace referencia a este con- así por encima del hombre. Lo im-
cepto y lo entiende en oposición al portante de esta virtud es que no
concepto de razón. Del mismo mo- quiere cambiar a otra persona, lo
do, Fichte consideraba que esta ca- acepta en lo que tiene de peculiar,
racterística femenina, Schaamhaf- en su libertad.
tigkeit, impide a la mujer ser partí- Como afirma Ruth Drucilla
cipe a la esfera pública. Richardson: “redefiniendo a la
Es verdad que Schleiermacher Schaamhaftigkeit, el filósofo alemán
parte en el análisis de este con- la describe como una sensibilidad
cepto, considerando que la mujer que cada uno trae al otro, sabien-

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SCHLEIERMACHER

do dónde una persona puede ser mujeres tienen el don especial de in-
especialmente vulnerable y dón- tegrar a los miembros de una co-
de la esfera de la libertad puede munidad, de lograr la unión entre
ser violada” (RICARDSON, 1991: el individuo y la comunidad, me-
102). En otras palabras, se trata diante el pudor comprendido co-
de un sentido especial que impli- mo una sensibilidad activa, porque
ca comprender la vulnerabilidad tiene que ver con el desarrollo per-
del otro y respetarlo. sonal que se comparte con el otro,
Son las mujeres, en especial, las sin afectar la libertad del que se
poseedoras de esta virtud esencial tiene en frente. Afirmaba él mis-
para la realización de la comuni- mo, en este sentido que “la tarea
dad/humanidad. Afirma: de Schaamhaftigkeit es la de fami-
Una mujer tiene el don de liarizarse con cada ser humano, en
no decir más de lo nece- cada estado de ánimo que es co-
sario y lo digno, para dar mún a uno o a varios, para de sa-
a cada pregunta arriesgada ber dónde está la libertad más in-
una respuesta conciliadora defensa y vulnerable, con el fin de
y capaz, con giros de fra- protegerlo” (SCHLEIERMACHER,
ses alegres, con fino inge- 1980, KGA I. 2: 172).
nio; tiene el don, si es ne- Son en especial las mujeres, me-
cesario, de interrumpir una diante la sensibilidad, capaces de
conversación, que podía lle- proteger más la vulnerabilidad de
gar a ser impropia, con el los hombres, Schleiermacher ofre-
debido respecto y la gran- ciendo a esta sensibilidad feme-
deza adecuada (SCHLEIER- nina el sentido ético de la virtud
MACHER, 1980, KGA I. 2: par exellence, poniendo así la base
172) de una antropología que se desa-
rrolla en relación a su ética de la
Por eso los hombres deben apren- comunidad y como una vía ha-
der de las mujeres sobre esta sensi- cia lo religioso. Sin embargo, es-
bilidad. Esta idea no sorprende ya ta virtud tiene que ser practicada
que la experiencia de Schleierma- tanto por mujeres como por hom-
cher en Berlín, junto a sus grandes bres, transformándose así, no en
amigas: Henriette Herz, Dorothea una “característica de género” , co-
Veit, Rahel Levin Varnhagen o jun- mo en Rousseau, sino en una vir-
to a su amada Eleonore Grünow, lo tud fundamental para alcanzar la hu-
ha hecho un buen observador de manidad. Como subraya Andrew
la naturaleza femenina para poder R. Osborn, “la humanidad univer-
llegar a la convicción de que las sal en Schleiermacher, encuentra

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CATALINA ELENA DOBRE

su representación en cada hombre de la mujer observar lo peculiar del


y en cada mujer y, como cada indi- otro, de integrarlo en la comunidad
viduo, sea hombre o mujer, es es- ya que la mujer está abierta hacia el
pecifico y único, resulta que para otro mediante la intuición y la sen-
una plena realización de la huma- sibilidad, ofreciéndole a ésta un lu-
nidad es necesario que cada uno gar fundamental en el espacio tan-
debe desarrollarse en su plenitud” to privado como público.
(OSBORN, 1934: 91) Por lo que podemos afirmar que
El actuar del hombre no se re- para Schleiermacher la ética se
duce a la mera satisfacción de las construye mediante la interioridad
intencionalidades del yo. La acción y se debe reflejar en los actos ex-
debe estar dirigida para lograr la ternos, en especial en el amor, aun-
comunidad mediante esta virtud que no se agotan en estos actos.
femenina, esta sensibilidad inge- Como el filósofo afirma: “cada ac-
niosa, que nos ayuda comprender- to representa mi ser entero, na-
nos a nosotros mismos en las re- da está separado, y cada actividad
laciones que tenemos con los otros acompaña a la otra” (SCHLEIER-
(de amistad, trabajo, matrimonio). MACHER, 1991: 25). Es así como
Crear un pensamiento ético a el hombre logra dar una continui-
base de la relación entre lo mascu- dad a su personalidad, continui-
lino y lo femenino y de la recipro- dad que no se limita a lo tempo-
cidad activa benéfica tras la prácti- ral, esto porque la acción como re-
ca de la Schaamhaftigkeit, represen- sultado de la creatividad del espí-
ta un planteamiento peculiar y ori- ritu, tiene como finalidad no sólo
ginal. Para Schleiermacher no exis- lo terrenal sino también lo divino.
te ética allí dónde no hay una com- Lo que subraya Schleiermacher es
prensión recíproca, a la que lla- que el hombre se asume y se jus-
ma comprensión humana, que nece- tifica como subjetividad sólo en el
sita tanto de lo masculino (la razón) momento en el cual su actuar logra
como de lo femenino (la sensibilidad). trascender y es un reflejo de la co-
Sólo así es posible la comunidad; munidad/humanidad.
una comunidad está hecha de se- En cuanto el amor, Schleierma-
res humanos que no renuncian a lo cher considera que sólo es posible
que cada uno tiene de peculiar; al cuando está presente el ingenio de
contrario, cada miembro de la co- la mujer, ya que la tarea de los que
munidad debe ser tratado de ma- se aman es dar espacio a lo sagrado
nera singular y mediante el respe- mediante la sensibilidad. Todas las
to. En relación a esto, en una co- teorías sobre el amor, lo más poé-
munidad, depende de la capacidad ticas o filosóficas que sean, no tie-

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ISSN: 2317-9570
COMPRENDER LO FEMENINO DESDE LA PROPUESTA FILOSÓFICA DE FRIEDRICH
SCHLEIERMACHER

nen sentido si no existe una mu- Eleonore, afirma: “Solo en noso-


jer real con el cual se comparte el tras, las mujeres, el amor se supo-
amor. Mencionaba el filósofo: ne que es un sentimiento que está
totalmente trabajado y homogéneo
Porque incluso si nosotros en todas sus partes y expresiones”
(los hombres) directa e indi- (SCHLEIERMACHER, 1980, KGA
rectamente demostramos con I.3: 199). Esta capacidad de amar
las palabras más claras y las de las mujeres, mediante su virtud
pruebas a priori más con- innata puede transformar al hom-
cisas, en la forma filosófi- bre; como Julius se transforma me-
ca y en la poesía, lo que el diante Lucinde. El amor de Lucin-
amor es o debe ser, en reali- de lo salva de la auto-destrucción.
dad, todas estas palabras per- Tras las ideas expresadas en el
manecen vacías y nada se escrito Cartas confidenciales, no po-
logra porque en el fondo demos no ver en Schleiermacher
somos incapaces de demos- tanto un apologeta de lo femenino,
trar el amor. ¿Cómo podemos como el creador de un plantia-
hacer esto sí ninguna mu- miento que descansa en la sensibi-
jer reconoce nuestra invita- lidad femenina como fundamento
ción a amar? (SCHLEIER- universal de la comunidad.
MACHER, 1980, KGA I.3 : En su Lecciones de ética, Schleier-
156) macher incluye también este tema
de la relacion entre lo masculino y
No hacer presente en el amor es- lo femenino, en cuanto las ideas so-
ta virtud femenina, significa profa- bre el matrimonio, entendido por
nar el amor; ya que para Schleier- él como una comunidad en la cual
macher, depende de la mujer si el se puede ver reflejada los benefi-
amor guarda el sentido sagrado o cios de la virtud femenina. Parte
no. Es por eso que todo ser humano de una diferenciación en cuanto las
debe apropiarse esta virtud, no só- cualidades entre el la mujer y el
lo las mujeres, para que así las rela- hombre, enfatizando sobre aquello
ciones humanas sean siempre me- que cada uno carece antes del ma-
diadas por respeto y un sentido es- trimonio. Afirma en este sentido:
pecial de la belleza que las mujeres Antes del matrimonio, el
tiene por su naturaleza. En otras hombre carece de un impul-
palabras, para Schleiermacher, lo so para la propiedad. La ex-
que mejor saber hacer las muje- presión de la propriedad es
res, por naturaleza, es amar. Uno el matrimonio y viene del la-
de los personajes de las Cartas, do femenino y se convierte
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CATALINA ELENA DOBRE

en una verdadera acción co- sino más bien es un movimiento


mún (. . . ). Antes del ma- hacia afuera” (DAUB, 2012: 181)
trimonio, la mujer carece de hacia el otro. El mismo Schleier-
cuaqluier impulso para la macher subraya que el amor, antes
esfera de los derechos, que que nada, debe ser individuación;
aparece como masculina (por es el individuo que sale de sí mis-
esa razón las mujeres quie- mo y se dirije a otros individuos.
ren adjuntar la belleza co- De esta manera el amor individual
mo ornamento. En el matri- se vuelve universal, se vuelve algo
monio, el hombre y la mu- en común con los otros.
jer forman una particulari- Aún así, Schleiermacher no se
dad en común (una comuni- detiene en criticar lo que en ge-
dad) (SCHLEIERMACHER, neral pasa dentro del matrimonio,
2002: 65-66). cuando es un mero convenio social:
el hombre y la mujer acaban do-
En el matrimonio, para el filósofo minarse uno al otro y “cada uno
alemán, cada uno viene con algo calcula con tristeza en su interior
que el otro carece, así como lo ex- si la ganancia vale realmente lo
presa también en su escrito Noche que ha costado en libertdad pura
Buena, en el cual plantea el tema (. . . ) y con la contemplación de la
de la importancia de la unión es- fría necesidad se apaga el ardor del
piritual, union en la cual cada uno amor” (SCHLEIERMACHER,1991:
debe relacionarse con la peculiari- 83). Desde está postura el matri-
dad del otro y comprenderla. En monio, en lugar de una unión sa-
este sentido, el matrimonio no es grada, deviene una nada total. Pa-
sólo una unión legal, pero sobre to- ra evitar una relación fría y calcu-
do es una expresión del amor. Sin lada, Schleiermacher sostiene que
el amor, tanto la amistad como el cada uno debería preguntarse si
matrimonio son imposibles. Cuan- para ambos, hombre y mujer, re-
do habla de amor, Schleiermacher presenta el matrimonio la mayor
lo define como “la razón por la felicidad y si están dispuestos a sa-
cual uno quiere devenir espíritu” crificarse uno al otro para el amor y
(SCHLEIERMACHER, 2002: 109). la libertdad (SCHLEIERMACHER,
Es decir, el amor es más que una 1991: 83). Si no se está preparado
relación erótica; “el amor es el de- para la libertad, para el amor, y pa-
seo de realizar una comunidad; y la ra la reciprocidad, si no se sabe vi-
naturaleza ética del amor (Sittlich- vir desde estos, es imposible que
keit) no deriva de la necesidad de uno pueda estar preparado para el
transformar un impulso erótico, otro diferente a él. En otras pala-

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COMPRENDER LO FEMENINO DESDE LA PROPUESTA FILOSÓFICA DE FRIEDRICH
SCHLEIERMACHER

bras, en el matrimonio lo impor- su fortaleza y su inteligencia, a de-


tante es mostrar el valor de cada fender su valor en un mundo me-
persona ante cualquier formalismo ramente masculino y en una socie-
vacio (IZUZQUIZA, 1998: 68) dad cerrada, logrado así vivir des-
Schleiermacher anhela un nuevo de la libertad del espíritu y crear
mundo donde el matrimonio, me- ideas inspiradoras. Estas mujeres
diado sea por la virtud femenina se dejaron un legado, que Schleier-
vuelva una reciprocidad activa, no macher supo comprender y defen-
diferente a la amistad, al compa- der: que la mujer debe asumirse en
ñerismo y al amor; una presencia lo que es, en su propia naturaleza y
mutua donde reína la vida del es- en descubrir, mediante la educac-
píritu y en la cual el amor se vuel- ción, su virtud para así logar crear
ve formativo para que así, los dos, comunidades de amor. Estas ideas
hombre y mujer, descubran el va- pueden parecer intrigantes en una
lor sagrdo de la individualidad y sociedad en la cual lo femenino se
mediante, la humanidad, construir ha vuelto bandera en sentido po-
una mejor sociedad. litico, y el tema de genero ha des-
Como hemos mencionado al in- viado sus virtudes hacia una lu-
cio de este artículo, estas ideas so- cha desgastante y de poder. Creo
bre lo femenino nace en Schleier- que un filósofo como Schleierma-
macher, rodeado siendo de las mu- cher nos puede hoy ayudar a en-
jeres más brillantes de su época, tender que ser mujer es algo mera-
como fueron las saloniers (Henriet- villoso cuando la mujer se asume a
te Herz, Rahel Levin Varnhagen, sí misma y se forma para cultivar
Caroline Schlegel-Schelling etcéte- en el otro y en la sociedad lo que es
ra), muejers cultivadas, educadas valioso y duradero.
que lograron, mediante su carácter,

Bibliografía

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Heidegger e a modernidade:
Sobre a ideia heideggeriana de Consumação da Metafísica
[Heidegger and the Modernity: On the Heideggerian Idea of Consum-
mation of Metaphysics]

Eberth Santos *

Resumo: Pretendemos aqui utilizar alguns conceitos e noções-chave


em Heidegger tais como Mundo, Clareira, Pensamento, Ser, Metafí-
sica e Modernidade para a compreensão de sua ideia de consumação
da metafísica. Mantendo estes conceitos e noções no horizonte de
nosso estudo, escolhemos alguns textos deste autor, apenas os que
consideramos necessários, para delinearmos os contornos daquilo
que neles ficou estabelecido como a Tarefa do Pensamento. Trata-se de
entender a tarefa que coube à Filosofia em sua gênese e que perdurou
até o final do século XIX ao receber o tratamento que Nietzsche lhe
conferiu e que foi por ele próprio denominado de platonismo inver-
tido. Esta forma de pensamento é interpretada por Heidegger como o
momento de acabamento da metafísica ocidental. De acordo com ele,
a filosofia de Nietzsche constitui o momento extremo na história da
filosofia, a Era da Técnica, derradeiro desafio deste percurso histórico.
Palavras-chave: Modernidade; Metafísica; Técnica; Tarefa do pensa-
mento.
Abstract: In this paper, we intend to accomplish a brief account
about some key concepts and notions in Heidegger’s philosophy such
as World, Clearing/nighting (Lichtung), Thought, Being, Metaphysics
and Modernity to delineate the idea of ending of metaphysics. Kee-
ping there concepts and notions as main track of our analysis, we
chose some of Heidegger’s writings, just the necessary ones, to drive
us around the contours of the so-called Task of Thought. This desig-
nation is understood as the duty of philosophy in its genesis, that had
persevered until the treatment that Nietzsche’s philosophy gave to it
in the late nineteenth century, which was named by himself inverted
platonism. This treatment was interpreted by Heidegger as the final
culmination of Western metaphysics. According to him, Nietzsche’s
philosophy constitutes the supreme achievement in the history of phi-
losophy, the Age of Technique, the final endeavor of this historical tra-
jectory.
Keywords: Modernity; Metaphysics; Technique, Task of Thought.

* Professor Adjunto do Curso de Filosofia da Universidade Federal de Campina Grande. Doutor em Filosofia
pela Universidade de Campinas (UNICAMP). E-mail: ebertsam@yahoo.com.br.

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ISSN: 2317-9570
EBERTH SANTOS

Introdução nação e da ausência total de sen-


tido.
Desde Ser e Tempo (1927) vigora Desde Platão, este velamento se
aquilo que Heidegger chama de inscreve, segundo Heidegger (Cf.
uma “crítica imanente”. Trata-se HEIDEGGER: 2012, 33; HEIDEG-
de colocar em cena a assim de- GER: 1973, 255), no passado es-
nominada questão do pensamento sencial da metafísica e, por isto,
como busca essencial pelo sentido a determina como acontecimento
do Ser. Esta questão compreende o apropriador cuja tarefa suprema
papel fundamental desempenhado se materializa, a cada vez, como
pela metafísica durante o desenro- busca e encontro de um conceito
lar de sua história: que assegure como presença cons-
tante a totalidade do ente. Sua ta-
refa essencial é enontrar um con-
De acordo com Ser e tempo,
ceito que funde o mundo aparente
“sentido” designa o âmbito
como constância ou como perma-
projetivo, e, em verdade, com
nência na presença. Este conceito
uma intenção própria, em
quase sempre foi designado na tra-
sintonia com a questão única
dição ocidental pelo nome Ser.
acerca do “sentido do ser”, a
A pergunta pelo Ser se confi-
clareira do ser que se abre e
gura, então, como aquela que dá
se funda no projetar. Esse
ensejo à tarefa filosófica por exce-
projetar, contudo, é aquele
lência, isto é, à filosofia proprim-
que no projeto jogado acon-
mente dita: a metafísica. Por meio
tece apropriativamente como
desta pergunta, pelo menos desde
aquilo que se essencializa
Platão, se procurou assegurar o de-
da verdade (HEIDEGGER:
vir como constância por meio da
2007, Vol. II, 12).
oposição do mundo verdadeiro ao
mundo da aparência. Segundo Hei-
Paradoxalmente, a constante busca degger, este esforço teria então en-
e reafirmação do sentido do Ser contrado seu estágio final com a
pela metafísica, em suas diversas instauração da hegemonia da Téc-
épocas, avança progressivamente nica como tal asseguramento1 . Esta
através e por meio do esquecimento delineia o modo de pensar o Ser
deste mesmo sentido. Culminando na época da consumação da meta-
em uma época, a época da maqui-

1 Sobre este conceito central, além de seu artigo fundamental Die Frage nach Technik publicado pela primeira
vez em 1954, indicamos também a leitura do brilhante estudo de Francisco Rüdiger, Martin Heidegger e a questão
da técnica, Editora Sulina, 2014.

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ISSN: 2317-9570
HEIDEGGER E A MODERNIDADE

física, isto é, como vigência do Ser sentido do Ser, este é um momento


no aparente. Cuja vigência é de- decisivo, o que quer dizer: mo-
marcada por ele na transição ocor- mento de ruptura e de instauração
rida entre os séculos XII e XX, jus- de uma nova diretriz para o pensa-
tamente tomando o pensamento de mento, aquele no qual se interpela
Nietzsche como balizamento desta por um novo pensamento.
época, como acabamento e consu- Assim, duas questões são pro-
mação da metafísica. postas por Heidegger em sua con-
No Ser aparente do mundo, essa ferência de 1964 (HEIDEGGER:
busca esgotou suas possibilidades, 1973, 269):
isto é, ganhou sua última configu-
1. Em que medida entrou a Filoso-
ração possível como total inversão
fia, na época atual, em seu está-
do Ser ideal do mundo, assim como
gio final?
determinava a tradição platônica
em suas múltiplas facetas. Resta- 2. Que tarefa ainda permanece re-
ria saber se neste contexto de um servada para o pensamento no
mundo técnico, mundo do cálculo, fim da filosofia?
da aparência e do controle, ainda Estas duas perguntas são por nós
há algum sentido na pergunta pelo novamente levantadas neste artigo
Ser. Isto é, se de fato a metafísica com a intenção de revitalizá-las.
encontrou sua completa superação Isto significa que iremos retomá-
ou esgotamento na era da Técnica, las no sentido em que Heidegger
sua última configuração da antiga as pensou e ampará-las, na me-
questão pelo sentido do Ser como dida do possível, numa leitura que
afirma Heidegger, restaria tentar nós mesmos nos esforçamos por re-
identificar qual tarefa cabe ao pen- alizar, principalmente no que diz
samento que assim se define ou, até respeito à segunda questão. Ao
mesmo, se ele é ainda capaz de se procurar respondê-las esperamos,
colocar tal tarefa. Em suma, res- também, encontrar uma compre-
taria a pergunta do se e do como ensão do termo pós-modernidade.
ainda seria possível tratar a ques-
tão essencial da metafísica que é a
Seção I – A importância de Hei-
questão essencial do pensamento:
degger hoje
a questão que se pergunta pelo sen-
tido do Ser. Mais do que a simples A interpretação que Heidegger
cogitação da possibilidade ou da confere ao pensamento de Nietzs-
impossibilidade da pergunta pelo che é considerada por alguns como

2 Ver, por exemplo, o que diz Stegmaier sobre isto: STEGMAIER: 2013, 249.

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ISSN: 2317-9570
EBERTH SANTOS

“a mais bem sucedida” 2 . Essa in- de razões para toda tarefa que se
terpretação se alia ao seu próprio impõe, mesmo para aquelas cruci-
pensamento de um mundo cada ais como deve ser aquela de pensar
vez mais orientado pelo sentido da o fundamento de um mundo essen-
Técnica, como característica essen- cialmente contraditório em que se
cial da pós-modernidade e como ma- vive.
nifestação última do projeto me- Acreditamos que o pensamento
tafísico desde sempre delineado, de Heidegger nos conduz exata-
cujo acabamento ele encontra jus- mente para o âmbito dessa con-
tamente na filosofia de Nietzsche. tradição imanente ao mundo. Seu
Seja como for, e antes mesmo pensamento nos conduz exata-
de sair em busca de uma justi- mente ao âmago do viver pós-
ficativa apressada sobre a perti- moderno caracterizado, justamente,
nência do pensamento heideggeri- como um viver absolutamente re-
ano, afirmamos que refletir sobre o pleto e carente, simultaneamente,
mundo contemporâneo é uma ta- de razões e de des-razões para
refa que se impõe inconteste a todo tudo. Surpreendentemente ou
aquele que se coloca atualmente não, esta essência contraditória de
no âmbito do pensamento filosó- um mundo assim discernido um
fico. Acreditamos que mais inte- mundo no qual quanto mais razões
ressante do que construir uma in- constrói para si mais carente de-
terminável lista das razões e dos las se torna não é uma novidade
porquês de se pensar o mundo con- completa, pelo menos para aque-
temporâneo, lista esta que prova- les que já a perceberam no cerne
velmente nos conduziria através da filosofia desde sua origem, as-
de uma quantidade interminável sim como foi para Heidegger e para
de situações contraditórias que se outros que compartilharam desta
mostram muito presentes no coti- mesma percepção no século XX.
diano como, por exemplo, a mi- Neste sentido, o mundo na atuali-
séria e a abundância, o desenvol- dade se mostra como o desdobra-
vimento e o retrocesso, a paz e a mento necessário do projeto meta-
violência, a ciência e a ignorân- físico como um todo. Isto é, se
cia, a liberdade e o controle, a in- mostra como o desenlace da origi-
formação e o alheamento etc., en- nária tarefa metafísica, Um mundo
fim, mais interessante que perfilar completamente autojustificado na
à nossa frente uma lista de razões certeza oferecida pelo cálculo e,
para ler Heidegger seria refletir- ainda assim, um mundo no qual se
mos sobre a necessidade, cada vez ausenta o sentido originário do Ser,
mais premente, de justificativas e substituído, a cada vez que é bus-

326 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.6, n.1, jul. 2018, p. 323-341
ISSN: 2317-9570
HEIDEGGER E A MODERNIDADE

cado, pelo sentido provisório do jeto desde sempre delineado pela


tecnicamente consumível. metafísica.
Heidegger disponibiliza, atra-
vés de sua leitura de Nietzsche,
uma abertura para entreolharmos Seção II – A questão do pensa-
o projeto metafísico como uma fre- mento
nética busca por razões e por jus-
A denominada questão do pen-
tificativas que se assenhoraram do
samento constitui, na verdade, o
jogo filosófico, apresentando-se em
guia e o parâmetro para a com-
esquemas e fórmulas lógicas, éti-
preensão do que significa pensar a
cas e epistemológicas que se exi-
tarefa da filosofia em sentido pró-
mem da reflexão por meio delas.
prio, ou metafísico; isto é, pen-
Por meio de Heidegger nos surpre-
sar o início da filosofia, seu trajeto
endemos no ato mesmo desta re-
mesmo, e aquilo que ainda pode
flexão, agora consciente de si no
estar a ela reservado nesse âmbito
século XX e, por isso, desencan-
que nos acostumamos a chamar
tada. Isto é, por meio do pen-
de pós-modernismo. A consuma-
samento e do método heideggeri-
ção da filosofia, ou o encontro de
ano podemos entreolhar o trajeto
seu ponto terminal, é delineada fi-
da própria filosofia assim surpre-
losoficamente, segundo Heidegger,
endida em suas escolhas como re-
pela inversão do platonismo3 consu-
petições da mesma escolha originá-
mada com o amadurecimento do
ria.
pensamento de Nietzsche: “Minha
Mesmo que não concordemos
filosofia é um platonismo invertido:
com ele, o pensamento de Heideg-
quanto mais afastado do verda-
ger se mostra como incontornável
deiramente ente, tanto mais puro,
para refletirmos a contemporanei-
belo e melhor é. A vida na apa-
dade e para tentar construir o sen-
rência como meta.” (NIETZSCHE
tido da expressão Pós-modernidade,
citado por HEIDEGGER 2007, Vol.
seja como anúncio de novas possi-
I, 140). Para o pensador da Flo-
bilidades para o pensamento seja
resta Negra, essa inversão coloca
como culminação do projeto de seu
em evidência a derradeira palavra
controle total. De uma forma ou de
metafísica, uma vez que esgota as
outra, como fase derradeira do pro-
alternativas de enunciação e de va-

3 Em muitos momentos de sua vasta obra, Heidegger interpreta a inversão nietzscheana do platonismo. Para uma
explanação bastante completa a esse respeito cf. HEIDEGGER 2007, Vol. I, 137-187.
4 Optamos por seguir a opção de tradução de Manuel Antônio de Castro para das Seiende. Para o devido escla-
recimento dessa opção, no lugar da opção mais corrente "Ente", conferir seu ensaio introdutório para A Origem da
Obra de Arte, 2010, xxvii-xxviii.

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loração do Sendo4 (Seiende): Ser, Nietzsche desnudaria a meta-


física e a viraria do avesso, denun-
ciando a essência do Ser do Sendo
Ao mesmo tempo, contudo, como Vontade de Poder: “Muito,
precisamos levar em consi- para o vivente, é estimado mais
deração uma outra coisa: o alto do que o próprio viver; mas
fato de a consumação da na própria estimativa fala – a von-
metafísica buscar, a partir tade de potência” (NIETZSCHE:
da própria metafísica, su- 1973, 239). Segundo Heidegger,
perar aquela distinção en- a Vontade de Poder é a própria es-
tre o mundo “verdadeiro” sência do Poder, seu cerne meta-
e o mundo “aparente” por físico, cuja compreensão aponta
meio de uma simples in- para uma perene ampliação de si
versão (HEIDEGGER: 2007, e por si. Trata-se aqui de um que-
Vol. II, 9). rer a si mesmo, como ultrapassa-
mento de si, como decisão fundante
Assim, nos resta entender o sen- do projeto metafísico nietzscheano
tido dessa inversão para nos inserir- (Cf. HEIDEGGER: 2007, Vol. I, 35-
mos na compreensão desse estágio 41):
final da metafísica e para darmos
início à compreensão do sentido da
Porquanto a vontade é deci-
Pós-modernidade. Para tanto, inici-
são por si mesma como um
aremos pela descrição, ainda que
assenhoramento que se es-
de maneira um tanto sumária, de
tende para além de si, a
dois conceitos-chave dessa inver-
vontade é potencialidade que
são, quais sejam: Vontade de Po-
se potencializa para o poder
der e Eterno Retorno do Mesmo. A
(HEIDEGGER: 2007, Vol. I,
partir daí poderemos melhor refle-
40).
tir sobre o significado de Filoso-
fia como Metafísica para só então
apreendermos o real significado da Ou ainda:
expressão Fim da Filosofia.
A vontade de poder é a es-
1. A Vontade de Poder sência do próprio poder. Essa
essência consiste na super-
Para Heidegger, a Vontade de Po- potencialização do poder em
der diz o Ser em seu sentido último, meio à elevação disponível de
ou o último valor do Ser. Assim, ao si mesmo. (...) Pensar o
declarar o último valor supremo do ser, a entidade do ente, en-
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HEIDEGGER E A MODERNIDADE

quanto vontade de poder sig- diz Scarlett Marton:


nifica: conceber o ser como
liberação do poder em sua es-
Em Assim Falou Zaratus-
sência, de tal modo que o
tra, quando apresenta por
poder, vigorando incondici-
vez primeira, sua concepção
onalmente, estabelece o ente
de vontade de potência, é
como o objetivamente efetivo
com ela que Nietzsche passa
no primado exclusivo contra
a identificar a vida. Concebe
o ser e faz com que o ser caia
então a vontade de potência
em esquecimento (HEIDEG-
como vontade orgânica; ela
GER: 2007, Vol. II, 3).
é própria, não unicamente
do homem, mas de todo ser
No mesmo sentido, Heidegger ca-
vivo; mais ainda: exerce-se
racteriza a Mônada leibniziana
nos órgãos, tecidos e célu-
como uma “força originária” agre-
las, nos numerosos seres vi-
gante e unificante ou como vis pri-
vos microscópicos que cons-
mitiva: “Por isso é que Leibniz ca-
tituem o organismo (MAR-
racteriza estes pontos como vis pri-
TON: 2006, 52).
mitiva, force primitive, força origi-
nária” (HEIDEGGER: 1973, 415) 5 .
Esta visão organicista da Vontade
Esta concepção monadológica do
de Poder rapidamente ganha maior
Ser viria justamente ao encontro
amplidão com o conceito de Força,
do que é afirmado por Nietzsche
culminando na superação da opo-
quando este diz que “Minha teo-
sição entre orgânico e inorgânico:
ria seria a seguinte: a Vontade de
Poder é a forma primitiva do afeto,
todos os outros afetos não passam Supondo que nada seja
de configurações suas.”’ (HEIDEG- “dado” como real, exceto
GER: 2007, Vol. I, 40), isto é, desde nosso mundo de desejos e
que se entenda a Vontade de Po- paixões (...) não é lícito fa-
der como um tal ímpeto ou pulsão, zer a tentativa de colocar a
como aquilo que essencialmente im- questão de que isso que é
pele, assim como pensa Heidegger. dado não bastaria para com-
No sentido de reforçar esta inter- preender, a partir do que lhe
pretação da Vontade de Poder como é igual, também o chamado
vis primitiva, ainda que não precise mundo mecânico (ou mate-
se reduzir a ela, vejamos o que nos rial)? (NIETZSCHE: 1992,

5 Cf. também HEIDEGGER: 2007, Vol. II, 16.

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42) De fato, a pergunta colocada


por Müller-Lauter nos conduz a
Em Heidegger lemos: um ponto de inflexão, pois o “si
mesmo” é justamente aquilo cujo
sentido se perde no pensamento
Com a teoria das forças, Ni- de Nietzsche por meio da aplica-
etzsche é levado a ampliar o ção de seu perspectivismo. E é jus-
âmbito de atuação desse con- tamente neste ponto que a proxi-
ceito: se, ao ser introduzido, midade com Leibniz se faz mais
ele operava apenas no domí- presente, pois, mesmo seguindo a
nio orgânico, agora passa a recomendação de não “supervalo-
atuar em relação a tudo o que rizar” (Idem, p.71) a proximidade
existe. Se a vida é vontade de das duas filosofias, não se pode dei-
potência, isso não significa xar de notar que Nietzsche se posi-
necessariamente que a von- ciona contra todo atomismo como
tade de potência se restrinja dogmatismo ou ingenuidade:
à vida (HEIDEGGER: 2007,
Vol. I, 54).
“Quanto ao atomismo ma-
terialista, está entre as coi-
É aqui que a cosmovisão de Nietzs- sas mais bem refutadas que
che se aproxima de maneira bas- existem (...) Mas é pre-
tante instigante da visão de mundo ciso ir ainda mais longe e
de Leibniz, pelo menos quando declarar guerra, uma im-
aquele afirma que as forças só po- placável guerra de baione-
dem ser concebidas de maneira tas, também à “necessidade
plural e finita, gerando, simulta- atomista”, que, assim como
neamente, a ideia de resistência, a mais decantada “necessi-
de contraposição de forças. Neste dade metafísica”, continua
sentido, é importante salientar o vivendo uma perigosa sobre-
que diz Müller-Lauter, ao se opor à vida em regiões onde nin-
concepção de Heidegger de uma guém suspeita: (...) o ato-
“essencial” (HEIDEGGER: 2007, mismo da alma (NIETZS-
Vol. I, p.56) Vontade de Poder: “As CHE: 1992, 19).
vontades de potência, de fato, não
ocorrem isoladas, mas em sua re- Como consequência temos que
lação com outras, potentes por si sua concepção de mundo, como
mesmas. Mas o que elas são em Vontade de Poder, não se absolu-
si mesmas?” (MÜLLER-LAUTER: tiza por meio de nenhum princí-
2009, 70) pio metafísico final, materialista,
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HEIDEGGER E A MODERNIDADE

idealista, espiritualista ou o que berta como nova, redimida


seja. Vontade de Poder e mundo como nova, poderemos come-
são o mesmo, “constituem o mar çar a nos naturalizar? (NI-
que ondula em si mesmo”6 e “não ETZSCHE 1983, 200 – itá-
podem ser átomos nem substân- lico do autor).
cias” (MÜLLER-LAUTER: 2009,
71). Desta afirmação de mundo, E por meio deste questionamento
Nietzsche conclui outras formas sobre a vida e sobre tudo o que
de dogmatismo, de superstição, de existe, existiu ou existirá, o mundo
necessidade e de erro. No livro III, enfim naturalizado, Nietzsche si-
parágrafo 103, de A Gaia Ciência naliza o que será por ele chamado
ele indica claramente a amplitude de o mais pesado dos pesos (NIETZS-
que podem alcançar essas “som- CHE: 1983, 208), o pensamento do
bras” que obscurecem uma com- Eterno Retorno do Mesmo.
preensão mais profunda da vida e
do mundo: 2. O pensamento do Eterno Re-
torno do Mesmo
Guardemo-nos de dizer que O Eterno Retorno do Mesmo é
a morte é oposta à vida. O concebido como consequência ra-
vivente é somente uma es- dical da ideia de forças plurais fi-
pécie de morto, e uma espé- nitas e da realização da oposição
cie muito rara – Guardemo- dessas forças como vir-a-ser: “(...)
nos de pensar que o mundo proibimo-nos o conceito de uma
cria eternamente o novo. força infinita, por ser incompatível
Não há substâncias de du- com o conceito de ‘força’. Por-
ração eterna; a matéria é tanto, falta também ao mundo a fa-
um erro tão grande quanto culdade de eterna novidade” (NI-
o deus dos eleatas. Mas ETZSCHE: 1983, 395 – itálicos do
quando chegaremos ao fim autor).
de nossa cautela e guarda? Dada a própria caracterização
Quando todas essas sombras de força como aquilo que impele
de Deus não nos toldarão e que, portanto, necessita daquilo
mais? Quando teremos a na- que é impelido, sem o qual este
tureza totalmente desdivini- conceito perderia todo o seu sen-
zada? Quando nós homens, tido fático, então este mundo, ca-
com a pura natureza, desco- racterizado como Vontade de Poder,

6 Nas palavras de Nietzsche: “E sabeis sequer o que é para mim ‘mundo’? (...) um mar de forças tempestuando
e ondulando em si próprias (...)” (NIETZSCHE: 1983, 397).

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é esencalmente finito e plural. Dito ceito de tempo círcular. O Mundo


de outra forma, ao conceito de força concebido como Eterno Retorno do
em Nietzsche é essencial o de opo- Mesmo é consequência de sua com-
sição (antagonismo) a outra força e, preensão como Vontade de Poder.
ao de oposição, os de finitude e plu- Por isso Heidegger é capaz de
ralidade. Ao mesmo tempo, Von- afirmar que Eterno Retorno do
tade de Poder é também entendido Mesmo e Vontade de Poder dizem o
como a constante abertura para a mesmo. O pensamento do Eterno
afirmação de si mesmo, uma vez Retorno do Mesmo aponta para a
que a força é incondicionada (não perpétua presença do Sendo no de-
possui uma causa extrínseca, isto é, vir, culminando no seu esvazia-
algo que não seja também força). mento de sentido (o esquecimento
Se o mundo se realiza de ma- do Ser), estando em consonância
neira plural e finita e se possui sem- com o que diz também a Vontade
pre ligado a si mesmo essa pos- de Poder na medida em que esta é
sibilidade de realização constante, pura afirmação de si mesma no sen-
pois não há nada que não seja tido da autosuperação. Para Hei-
mundo, isto é, se sua realização degger, uno e múltiplo, constân-
é em si e por si ininterrupta, en- cia e devir, remetem-se recipro-
tão este mundo é continuamente camente desde os primórdios do
afirmação (repetição) de si mesmo. pensamento metafísico e mais uma
Neste sentido, em cada instante vez, segundo ele, no pensamento
reunem-se todas as condições para de Nietzsche, por meio da Vontade
a plena realização do mundo na de Poder e da doutrina do Eterno
totalidade, pois a cada instante o Retorno do Mesmo, mas, desta vez,
mundo se esgota inteiramente e se de maneira extrema e final, pois
renova inteiramente. A cada ins- redundam na última possibilidade
tante este mundo é inteiramente dessa reciprocidade como identi-
feito e refeito, pois o fazer ou o refa- dade completa entre Ser e devir.
zer nada mais são do que a própria Isto é, com Nietzsche estes ter-
realização da Vontade de Poder. mos se entrechocam da forma mais
O instante é justamente como Ni- extrema. Em suma, esse pensa-
etzsche entende o conceito de eter- mento fundamental pensa justa-
nidade. Modo afirmativo do tempo mente o Ser por meio do devir, ou
e não modo cronológico. Somente o Ser como devir, ou ainda o devir
aquele que for capaz de se colocar como Ser, isto é, como constância
no instante é também capaz de di- do múltiplo que devém. Este pen-
luir o aparente antagonismo entre samento anuncia a mudança cons-
passado e futuro por meio do con- tante e, devido a isto, constante

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HEIDEGGER E A MODERNIDADE

presença da mudança. Mas o que o mundo verdadeiro: que mundo


é isto, a mudança? A mudança é nos resta? O mundo aparente, tal-
o próprio Sendo e este só é por- vez?... Mas não! Com o mundo der-
que permanece no âmbito da mu- dadeiro suprimimos também o apa-
dança. O Sendo devém a si e so- rente!”7 . Em Heidegger lemos:
mente a si devém e, por isso, é
o mesmo que muda e permanece
A inversão não é certamente
sendo o mesmo. O Sendo é o que
nenhuma virada mecânica,
eternamente retorna a si mesmo e,
por meio da qual o mais
por isso, é substância. O Sendo é
baixo, o sensível, assume o
também o Mundo.
lugar do mais alto, o supra-
sensível, permanecendo os
3. A inversão do platonismo dois inalterados juntamente
com suas posições. A in-
Em Heidegger, a inversão do pla- versão é a transformação do
tonismo empreendida por Nietzs- mais baixo, do sensível, na
che configura o esgotamento da “vida” no sentido da von-
metafísica nas figuras da Vontade tade de poder, em cuja es-
de Poder e do Eterno Retorno do trutura essencial o supra-
Mesmo. Segundo ele, ambas as fi- sensível, enquanto assegu-
guras dizem o mesmo. Nelas re- ramento da consistência, é
side o sentido da inversão do pla- incorporado e transformado
tonismo em Nietznche. O Ser, o (HEIDEGGER: 2007, Vol.
Verdadeiro, o Belo, o Bom se cons- II, 9).
tituem, nesta filosofia derradeira,
justamente na e pela mudança: na Assim, segundo Heidegger, o Ser
aparência. Não se trata simples- em Nietzsche reside no âmbito do
mente de colocar o devir no lugar devir. O que constantemente de-
do Ser, estabelecendo assim a sua vém é sempre o mesmo que retorna
prioridade sobre este, o que redun- a si sendo. Neste sentido, o de-
daria numa nova forma de plato- vir se torna princípio de unidade,
nilmo. Trata-se, sim, de identi- ou princípio ontológico. Mas mu-
ficar Ser e devir de tal modo que dança implica em multiplicidade
toda forma de platonismo se vê as- e, por isto, uno e múltiplo se reco-
sim superada, esgotada, deixada nhecem e ecoam mutuamente no
para trás, esquecida: “Suprimimos mesmo, no Ser. E, apenas para

7 Como o “mundo verdadeiro” acabou por se tornar fábula: A história de um erro. – NIETZSCHE: 2000, 31-32.
(itálicos do autor)

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lembrar mais uma vez, essa me- simples, é precisamente o


tafísica extrema faz reverberar as que se chama Percepção (...)
palavras de Leibniz quando este (LEIBNIZ: 1974, 63-64 –
afirma apresentarem as Mônadas, itálicos do autor)
unidade que contém em si o múlti-
plo (as Mônadas criadas), um prin- É esta Percepção que projeta (repre-
cípio de mudança que chamou de senta) o uno no múltiplo. O múltiplo
percepção: “Dou ainda por aceito se torna re-presentado como uni-
estar todo ser criado sujeito à mu- dade por meio desse princípio. O
dança, e, por conseguinte, também Mundo é tudo que devém como fi-
a Mônada criada, e considero ser gura representada; isto é, o Mundo
esta a mudança contínua em cada é percebido como o mesmo que de-
uma delas”. E ainda: vém.
Do que dissemos conclui-se
que as mudanças naturais Seção III – O mundo na era da Téc-
das Mônadas procedem de nica: a modernidade.
um princípio interno (...).
O resultado dessa inversão ni-
É contudo necessário haver,
etzscheana reveste a filosofia com
além do princípio de mu-
a sua derradeira roupagem metafí-
dança, um pormenor (de-
sica. Toda a possibilidade de apre-
táil) do que muda, que pro-
sentação do Ser do Sendo se es-
duza, por assim dizer, a es-
gota nesta inversão. O Sendo é
pecificação e variedade das
agora transmutado no valor de to-
substâncias simples. Este
dos os valores, transvaloração, pen-
pormenor (detáil) deve en-
sado como Vontade de Poder, vida
volver uma multiplicidade
de aparência denunciada por Hei-
na unidade ou no simples
degger como ausência de sentido
porque, realizando-se toda
por meio do pensamento do Eterno
mudança natural gradativa-
Reterno do Mesmo:
mente, sempre alguma coisa
muda e outra permanece. Precisamente aqui começa
Por consequência tem de ha- a era da ausência de sen-
ver uma pluralidade de afec- tido consumada. Nessa de-
ções e relações na substância nominação, o ‘sem-sentido’
simples, embora ela não te- já é considerado como o con-
nha partes. O estado pas- ceito do pensamento da his-
sageiro, envolvendo e repre- tória do ser que deixa para
sentando a multiplicidade na trás a metafísica na totali-
unidade ou na substância dade (mesmo na inversão e
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HEIDEGGER E A MODERNIDADE

no desvio para as transvalo- sumada insiste em sua própria es-


rações (HEIDEGGER: 2007, sência da maneira mais ruidosa e
Vol. II, 12) violenta possível.” (HEIDEGGER:
2007, Vol. II, 15). Não se trata de
E na medida em que o peso mais mero esquecimento, mas de vela-
pesado, o valor de todos os valo- mento, de encobrimento. Segundo
res, se metamorfoseia neste uno- Heidegger, isto está, desde o início,
múltiplo que perenemente devém a de acordo com o projeto metafísico
si mesmo, que vale por si mesmo, que decide o Ser. Na verdade, este
o Sendo, como a substância desta projeto que decide, não se executa,
última metafísica, então deve ser sem este velamento de sentido.
anunciado como seu valor final; A vida na e para a aparência (o
neste sentido, o devir pelo devir, que aparece como valor final) na
silencia completamente toda pos- era da ausência consumada de sen-
sibilidade de Ser que não se mani- tido clama insistentemente pelo
festa ruidosamente como Sendo na novo, pois o novo reside na essên-
agitação de que é produzido pelo cia do devir. A roda gira de ma-
maquinismo. neira cada vez mais frenética, pois
É como produção do maqui- o que vale é o movimento em si
nismo que o Sendo da mera aparên- mesmo. O movimento, em si e por
cia realiza sua configuração mais si mesmo, como valor, implica na
próxima de si, isto é, como Mundo repetição de si mesmo perpetua-
moderno, justamente porque a pro- mente, do próprio movimento, e
dução materializa o movimento não daquilo que é movimentado
constante que determina o valor que é meramente acidental. Deste
final de tudo o que é o mesmo na modo, o que é assegurado na trans-
diferença. A era da ausência consu- valoração, como asseguramento do
mada de sentido reside justamente constante na presença, é sempre o
no devir como valor final. Tanto mesmo vazio. Ser-de-novo-o-mesmo
mais esquecida a busca pelo sen- como valor final quer dizer: “(...)
tido do Ser tanto mais insistente- a interpretação do ente e de sua
mente se dá a ininterrupta afir- entidade como devir torna o devir
mação do Sendo como aquilo que constante como presença incondi-
devém unicamente para si mesmo cionada. A fim de salvar seu pre-
como úníco sentido. Inversamente, domínio, o próprio devir se coloca
o aprofundamento nesta transva- sob o poder da transformação do
loração, no múltiplo-uno, no devir, presentar-se em algo constante.”
consuma a perda de sentido do Ser: (HEIDEGGER: 2007, Vol. II, 11).
“A era de ausência de sentido con- Este poder de transformação do

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sendo, cujo ponto culminante é di- que a metafísica sempre pretendeu


agnosticado por seu derradeiro es- foi, de acordo com a formulação
quecimento de si, se potencializa heideggeriana-aristotélica, presen-
por meio do cálculo. O cálculo é o tar ou re-presentar o ente enquanto
logos vigente da era do fim da meta- ente. O pensamento fundamental,
física. O cálculo dessubstancializa metafísico, presenta ou re-presenta
o sendo por meio do encontro de o ente na sua totalidade e designa
uma razão que finalmente o rela- esta totalidade com o nome Ser.
tiviza por completo. Esta razão se Trata-se aqui de uma re-presentação
apresenta como o elo entre deter- fundadora, para usar uma expres-
minações, entre quantidades deter- são corrente em Heidegger.
minadas sob as quais o ente passa Por meio da re-presentação do
então, e agora tão somente por ente como Ser, passa-se à cognosci-
meio delas, a ser compreendido. bilidade de todo ente naquilo que
Só entendemos aquilo que pode ser este é em geral. E aquilo que ente é
medido, que pode ser quantificado, em geral é dito a entidade do ente.
que possa ganhar uma razão qual- Trata-se aqui, justamente, de uma
quer. Contudo, a razão calculadora é re-presentação do ente como Ser.
apenas uma das formas desta razão Portanto, o que há de fundamen-
em geral que, no entanto, reivin- tal no ente é a sua presença que é,
dica para si, a partir de seu estabe- a cada vez, sua manifestação ade-
lecimento na modernidade, todo o quada ou particular. A presença
discurso de direito, in-significante, do ente, o Ser, funciona, para nós,
sobre o ente8 . A sociedade da Téc- como princípio geral de causali-
nica é a instanciação última desta dade do real. O real se justifica me-
razão redutora e sedutora na qual o tafisicamente, na totalidade, por
devir se torna o valor supremo. meio do Ser. O real se apoia no Ser-
das-coisas.
Por fim da filosofia Heidegger
1. O sentido (fim) da Filosofia na não compreende o extermínio da
Modernidade metafísica; isto é, o fim da filoso-
fia não significa o seu desapareci-
Heidegger entende o termo fi-
mento por uma espécie de anula-
losofia no seu sentido último. O
ção de seu poder. O fim da filosofia
que significa que, para ele, filo-
também não significa que a me-
sofia deve ser entendida, em pri-
tafísica tenha atingido a sua tota-
meiro lugar, como metafísica. E o

8 Sobre a razão como Cálculo, seja na matemática seja na ciência moderna, discorro um pouco mais em SANTOS:
2017. Para uma discussão mais detalhada sobre o tema cf. RÜDIGER: 2014, p. 97-106.

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lidade, como se ela finalmente ti- losofia no seu ponto terminal, as


vesse completado o seu percurso e técno-ciências, não é a sua dissolu-
dado por encerradas todas as suas ção, mas o seu acabamento, o seu
investigações, como se tivesse en- destino delineado desde que a me-
contrado a sua forma completa e tafísica foi decidida como assegu-
perfeita. Não se trata, em suma, ramento do real por meio da re-
de um momento de ausência me- presentação do ente na totalidade
tafísica ou de recusa metafísica, como sua causa geral.
seja devido à decadência e esva- O que estava inscrito como des-
ziamento (aspecto absolutamente tino da filosofia desde o início, e
negativo) seja por completude (as- que agora encontra o seu ponto
pecto absolutamente positivo). terminal, sempre foi a determina-
Com a expressão fim da filoso- ção da entidade do ente. A apre-
fia Heidegger pretende significar sentação do ente que, de início e
o seu acabamento, não como com- a cada época, devia ser garantida
pletude, como já foi dito, mas sim pela universalidade da presença,
como lugar (Ort) terminal (Ende). serve, ao cabo, para suportar sua
Talvez, a palavra que melhor se representação particular em cada
adeque ao sentido buscado aqui época. Em outras palavras, a meta-
seja destino. Trata-se do posicio- física sempre se preocupou, e nisto
namento que se deve ocupar, como reside o seu íntimo, em dar su-
o lugar que se pretende alcançar, porte ao particular no real, ainda
mas que nem por isso deva signifi- que este suporte empírico se apre-
car o esgotar do movimento, mas sente, quase que necessariamente,
simplesmente o ponto decidida- na forma de uma transcendência,
mente estipulado como fim e novo uma vez que é suporte e não o pró-
ponto de partida. Fim da filosofia prio real.
significa, então, o ponto terminal Como testemunho do acaba-
da filosofia, o destino da filosofia. mento da metafísica que agora se
Se a filosofia atingiu o seu des- vê, segundo Heidegger, no seu es-
tino é porque este destino estava tágio terminal, temos o seu vela-
já, desde o início, delineado. E o mento crescente no que diz res-
seu destino é o seu desdobramento peito às questões relativas à deter-
nas ciências modernas cuja apote- minação do ente. Agora, as ciên-
ose ocorre nisso que começamos a cias naturais e humanas se ocupam
presenciar como era da Técnica no dele. Como consequência desse
século XX, metafisicamente des- velamento que se dá de maneira
nudada pelo pensamento de Ni- consumada na identidade entre
etzsche. O desdobramento da fi- Ser e devir no pensamento de Ni-

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etzsche com sua inversão do pla- questão do pensamento em sentido


tonismo, observa-se uma revisão próprio. Na questão do pensamento
do conceito de teoria que, desde está colocado o problema de como
então, perdeu seu caráter ôntico o pensamento pode ser para ele
para adquirir um caráter técnico- mesmo um ente e também a condi-
cibernético (controle técnico da in- ção de possibilidade do ente. Isto
formação). Ao mesmo tempo em é, nesta questão se explora a pos-
que ocorre essa nova conformação sibilidade de autodeterminação de
do teórico, os instrumentos e as um ente que, por este motivo, não
técnicas gerados para o controle pode apenas ser mais um ente en-
da informação ganham uma di- tre outros.
mensão inédita na época do ma- Trata-se, enfim, de um inédito
quinismo. Estes instrumentos e concílio entre a subjetividade e
técnicas passam a fornecer todos a objetividade cujo resultado não
os parâmetros do ente e conse- pode ser reconhecido por nenhuma
quentemente, do mundo dos entes. dessas duas já tão desgastadas ca-
Simultaneamente, a própria lin- tegorizações. Se, por um lado, é o
guagem, ganha esta nova determi- próprio pensamento que se coloca
nação técno-científica-cibernética, em questão então, nem por isso,
in-significante desde que obediente ele deve comprometer esta tarefa
aos parâmetros calculáveis: “A ci- com a pesada carga da metafísica
bernética transforma a linguagem da subjetividade moderna, cujo re-
num meio de troca de mensagens. sultado final é exatamente o estado
As artes tornam-se instrumentos terminal da filosofia que esta nova
controlados e controladores da in- tarefa para o pensamento pretende
formação.” (HEIDEGGER: 1973, ultrapassar. Ao mesmo tempo, se
270). é o pensamento o foco desse ques-
tionamento, enquanto tal isto tam-
bém não deve conduzir a nenhuma
2. Que tarefa resta à filosofia? determinação extrínseca e defini-
Diante disso, a segunda per- tiva de si, como um resultado de-
gunta de Heidegger ganha um re- terminado de uma vez por todas,
levo e urgência inauditos: Que ta- como objeto, segundo as categorias
refa ainda permanece reservada para geradas por esta mesma metafísica
o pensamento no fim da filosofia? da subjetividade.
É a nova tarefa do pensamento O que há de inédito neste ques-
que está colocada no centro dessa tionamento é que esses dois mo-
discussão acerca do fim da filoso- mentos não são pensados em se-
fia. Esta tarefa se intitula aqui parado um do outro. Mesmo

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ISSN: 2317-9570
HEIDEGGER E A MODERNIDADE

aqui ainda utilizamos o logos vi- lução (dissolução) no logos da Téc-


gente e, por isso, não consegui- nica e da ciência. Heidegger alerta
mos escapar das dicotomias que para o erro em presumir que esta
recaem sob a polaridade objetivi- tarefa redunde num simples ultra-
dade/subjetividade. Utilizamos ter- passamento da filosofia e da ciên-
mos tais como momentos, pensa- cia, como superação ou aniquila-
mentos, extrínseco etc., por ausên- mento de ambos9 .
cia de um logos que ainda não O que está em questão aqui é
existe, justamente porque o pen- se o pensamento esgotou a totali-
samento que o sustenta ainda não dade de suas possibilidades com a
foi inaugurado. Na verdade, logos culminação da filosofia no mundo
e pensamento dizem o mesmo. E científico-técnico-industrial. É
este novo logos deverá, se quiser ser claro que esse questionamento não
realmente novo, abolir o sentido do pode ser colocado dentro deste
antigo logos, onde, por exemplo, os mesmo mundo senão como mero
termos objetividade e subjetividade esquema, como pergunta que se
seriam radicalmente relativizados questiona sobre sua própria possi-
e dissolvidos um no outro: “Nem o bilidade. Para decidir por esta pos-
pensamento permanece exterior à sibilidade de pensamento, ou por
questão, nem a questão permanece um novo destino para o mundo,
exterior ao pensamento.” (STEIN: já está implicado nisto a decisão
1973, 267). por um outro mundo. Em ou-
Como resultado desse questio- tras palavras, uma coisa é vislum-
namento que nem é mais pura sub- brar a nova tarefa da filosofia como
jetividade nem mais total objetiva- questão para o pensamento, como
ção do ente, a tarefa que ainda resta mera possibilidade; outra é decidir
para a filosofia também se apre- por esta possibilidade e, neste mo-
senta como inédita, pois agora ela mento, haveríamos de ter diante
deve se empenhar em se apresen- de nós a realização dessa possibili-
tar como algo que não pode mais dade como pensamento, ato funda-
admitir o antigo logos, por outro dor de um novo mundo, como nova
lado também não pode se identifi- filosofia.
car imediatamente como sua reso-

9 Cf. STEIN: 1973, 263-267.

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ISSN: 2317-9570
EBERTH SANTOS

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Tradução Marco Antonio Casanova. Rio de Janeiro: Conexões,
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340 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.6, n.1, jul. 2018, p. 323-341
ISSN: 2317-9570
HEIDEGGER E A MODERNIDADE

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Tradução de Ernildo Stein, São Paulo: Abril Cultural, 1973, p.263-
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Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.6, n.1, jul. 2018, p. 323-341 341
ISSN: 2317-9570
Psicologia Fenomenológica da Imaginação em Sartre: A
Eidética da Imagem
[Phenomenological Psychology of Imagination in Sartre: The Eyetics
of Image]

Gustavo Fujiwara *

Resumo: Este artigo pretende investigar a crítica sartreana da teoria


da imaginação tal como esta é esboçada em sua obra A Imaginação
(1936): ver-se-á que Sartre pretende dar conta de uma nova variação
eidética da consciência, a consciência imaginante, e de seu correlato,
a imagem como modo específico que esta consciência imaginante pos-
sui para apreender uma presença a partir de uma ausência. Assim, a
questão: o que deve ser uma consciência para que ela imagine um X
qualquer que não está nem realmente e nem presentemente dado no
campo fenomênico? Levando a cabo uma desconstrução teórica das
psicologias e filosofias seiscentistas e setecentistas (bem como das psi-
cologias positivistas do século XIX), Sartre espera renovar a teoria da
imagem a partir de uma análise eidética: nesta toada, a imagem, como
veremos, deixará de ser uma mera sensação renascente ou enfraque-
cida do objeto real. Além disso, a presente obra em curso de análise
pretenderá, igualmente, operar uma crítica precisa à noção husserli-
ana de hylé (matéria da imagem mental).
Palavras-chave: Fenomenologia, psicologia fenomenológica, imagi-
nação, imagem, hylé.
Abstract: The aim of the present article is to investigate the Sartre’s
critic about the imagination theory as it is outlined in his work The
Imagination (1936): as we will see, Sartre intends to deal with a
new consciousness eidetic variation, the imaginary consciousness,
and it’s correlate, the image as a specific mode that this imaginative
consciousness possesses to apprehend a presence from an absence.
So the question is: what must be a consciousness so that it imagines
an X that is neither really nor presently given in the phenomenal
field? Carrying out a theoretical deconstruction of the sixteenth
and seventeenth-century psychologies and philosophies (as well as
nineteenth-century positivist psychologies), Sartre hopes to renew
the image theory from an eidetic analysis: in this respect, the image,
as we shall see, will cease to be a mere revived or weakened sensation
of the real object. Moreover, the current work will also attempt to
make a precise critique of Husserl’s notion of hylé (mental image
matter).
Keywords: Phenomenology, phenomenological psychology, imagina-
tion, image, hylé.

* Doutorando em Filosofia pela Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), com doutorado sanduíche na
Université Paris VIII. Bolsista FAPESP. E-mail: fujiwaragustavo@gmail.com.

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ISSN: 2317-9570
GUSTAVO FUJIWARA

Introdução: a inauguração da psi- gem. O filósofo, de acordo com o


cologia eidética e o momento da Les Écrits de Sartre (1980, p. 55),
análise crítica é convidado por seu antigo ori-
entador da École Normale Supé-
Como almejamos descrever o es- rieure a escrever sobre o tema da
tatuto da imagem/imaginação no imagem. A obra, por conseguinte,
corpus da filosofia sartreana, é fun- dividir-se-á em dois momentos,
damental que neste momento per- o momento dito “crítico” e outro
corramos as sendas da obra que “científico” , “entretanto, só a pri-
inaugura, por assim dizer, os me- meira parte será aceita pela Al-
canismos dessa nova psicologia in- can, publicada em 1936 sob o tí-
vestida pela pedra de toque da tulo L’Imagination” (MOUTINHO,
consciência, a saber: a intenciona- 1995, p. 71). A parte que repre-
lidade (toda consciência é consci- senta o momento “científico” , por
ência de...). Disto, faz-se neces- sua vez, aparecerá ao grande pú-
sário frisar que todas as investi- blico apenas quatro anos depois
gações psicofenomenológicas es- com o título L’Imaginaire (1940).
tão “estreitamente ligadas ao pri- Beauvoir comenta este momento
meiro ensaio filosófico de Sartre da divisão da obra:
(...) e a sua descoberta da consci-
ência como pura espontaneidade”
(CABESTAN, 2004, p. 10), logo, Sartre redigia a parte crítica
estão ligadas ao opúsculo inti- do livro sobre L’imagination,
tulado La transcendance de l’Ego que lhe solicitara o professor
(1936). Neste esteio, frisemos, Delacroix, para Alcan; ini-
“as descrições psicológicas supõem ciara uma parte muito mais
esta espontaneidade que caracte- original em que reestudava
riza ontologicamente a consciência desde a raiz o problema da
sartreana” (CABESTAN, 2004, p. imagem, utilizando as no-
10). ções fenomenológicas de in-
Publicado por volta dos anos de tencionalidade e de hylé; foi
1936, A Imaginação apresenta-se então que acertou as primei-
aos leitores como a parte “crítica” ras idéias-chave de sua filo-
dos estudos sartreanos sobre a ima- sofia: a absoluta vacuidade

1 É importantíssimo este comentário preciso da filosofia sartreana. Definitivamente, o tema sobre a imagem,
ainda que tenha sido trabalhado quase que exclusivamente no campo da fenomenologia, não deixa de ter implica-
ções ontológicas de coloração heideggeriana. A intencionalidade – chave de ouro da filosofia de Sartre – abrirá os
caminhos para que o autor fale em “nadização” da consciência imaginante. A intencionalidade (tratada com exclu-
sividade desde os primórdios das obras de Sartre) continua sendo fundamental para o esvaziamento da consciência
e, sem sobra de duvidas, fundamental para a ideia de Nada que coroa todo o desenvolvimento de o Ser e o Nada.

344 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.6, n.1, jul. 2018, p. 343-377
ISSN: 2317-9570
PSICOLOGIA FENOMENOLÓGICA DA IMAGINAÇÃO EM SARTRE: A EIDÉTICA DA IMAGEM

da consciência, seu poder de centista e da psicologia positivista


“nadização” 1 (BEAUVOIR, do século XIX, permanece prati-
1980, p. 185). camente inalterada. Por detrás
da aparente pluralidade de teorias
sobre a imagem, o filósofo fran-
O que nomeamos como momento
cês identifica, tanto na psicologia
“crítico” dirá respeito a uma sis- 2
como na filosofia – sobretudo a
temática crítica do filósofo francês
filosofia bergsoniana 3 - o mesmo
endereçada às concepções clássi-
tratamento claudicante para com
cas da imagem forjadas, inicial-
esta, ou seja: a imagem definida
mente, pelos três grandes pensa-
como uma coisa: a partir deste di-
dores dos séculos XVII e XVIII:
agnóstico, as teorias contemporâ-
Descartes, Leibniz e Hume. No
neas da imagem são tributárias da
entanto, como constata Sartre, tal
metafísica dos seiscentos e setecen-
concepção, longo da filosofia nove-

2 “Eles, segundo Sartre, herdam e conservam a noção de imagem daqueles três “grandes metafísicos dos séculos
XVII e XVIII” (IÇ, 37), tendendo ora para uma, ora para outra concepção. O mote central da crítica será a observa-
ção de que as diferentes doutrinas, desde Descartes, têm todas uma única concepção acerca da imagem: todas elas
tomam esta com coisa.” (MOUTINHO, 1995, p. 72).
3 “A concepção da imagem proposta aqui por Bergson está longe de ser tão diferente como pretende ele da con-
cepção empirista: tanto para o filósofo francês como para Hume, a imagem é um elemento de pensamento que
adere exatamente à percepção, apresentando a mesma descontinuidade e a mesma individualidade que esta. (...)
ela – a imagem – é um decalque exato da coisa, opaca e impenetrável como a coisa, rígida, fixa, coisa em si mesma.”
(SARTRE, 1973, p. 62). Um pequeno excurso faz-se digno de nota aqui para que talvez possamos entender com
maior rigor o aspecto histórico da crítica de Sartre à filosofia bergsoniana. Traçamo-lo resumidamente. Como
Frédéric Worms deixa claro em La philosophie en France au xxième siècle (2010), uma das grandes preocupações
do espiritualismo (termo cunhado para designar o momento filosófico dos anos de 1900) é a realização de uma
série de críticas contra uma nova forma de saber que se pretende cientifica. Este saber que nasce ancorado ao
biológico, sobretudo após a localização cerebral de certas funções ligadas à linguagem, é a psicologia. Do lado da
filosofia, Bergson, contra esse domínio puramente fisiológico e mecanicista do psíquico, procura fazer emergir um
reconhecimento da realidade psicológica, ele se esforça em mostrar que “a unidade psicológica não é um elemento
atômico que poderíamos atingir através de uma análise que depois seria combinada com outras por meio de as-
sociações ou sínteses.” Mas que ao contrário, a unidade psicológica é “uma unidade global, indivisível e temporal
de uma consciência individual e pessoal (...).” (WORMS, 2010, p. 141). Como mostra o autor, a contenda entre a
psicologia e a filosofia é um dos grandes temas que orbitam em torno do momento intelectual dos anos de 1900.
Sumariamente, essa é a aurora que envolve esse momento preciso da filosofia francesa. Depois, por volta dos anos
30, um grande anseio por mudanças teóricas parece rondar os intelectuais da época (para tal afirmação, tomamos
o capítulo 8 “Trahison de clerces” ou “chiens de garde?” Les ruotures des années 30: entre deux moments philo-
sophique, do já mencionado livro de Worms). Sartre, que só havia decidido pelo curso de filosofia após incursionar
uma leitura de Matéria e Memória, também é fisgado por esse espectro de ruptura: o livro La Fin d’une parade
philosophique: le bergsonisme (1930), escrito por Georges Politzer, é decisivo aqui na medida em que ele anima
todo uma geração de filósofos. Voltemos a Sartre e sua crítica contra Bergson. Tendo como horizonte essa série
de pequenos detalhes da história da filosofia francesa, a crítica sartreana contra a teoria da imagem em Bergson
assevera que, apesar de propor uma nova concepção da imagem contra aquelas da psicologia, o autor de Os dados
imediatos da consciência (1889), sem se dar conta, procrastina a mesma teoria de seus adversários que, por sua vez,
continuam acordados àquela metafísica ingênua da imagem. Sem que entremos nos mérito da validade ou não da
crítica de Sartre a despeito das diversas teorias da imagem forjadas ao longo do pensamento ocidental, gostaríamos
apenas de sublinhar que (sempre do ponto de vista sartreano) no terreno das imagens, o pensamento de Bergson
que se pretendia contrário ao da psicologia não passa de uma repetição – falsamente inovadora – da metafísica dos
seiscentos e setecentos. Sobre a concepção bergsoniana da imagem, bem como a crítica de Sartre ao filósofo espi-
ritualista, recomendamos a leitura de Subjetividade e Imagem: A literatura como horizonte da filosofia de Henri
Bergson (2005) escrito por Rita Paiva e Presença e campo transcendental: Consciência e negatividade na filosofia
de Bergson (1989) de Bento Prado Jr.

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ISSN: 2317-9570
GUSTAVO FUJIWARA

tos. Subjaz em todas elas uma me- 1973, p. 105) 5 . Primeiramente,


tafísica ingênua da imagem (expres- propomo-nos a assinalar em que
são forjada por Sartre) como vere- consistem tais indicações impor-
mos no desenrolar-se de nossa ex- tantes feitas por Husserl à psico-
posição. logia clássica das imagens; notar-
Diante do que dissemos, A Ima- se-á que o conceito de intencio-
ginação 4 colocará em cena certo nalidade permanece fundamental
entendimento por parte de Sartre para que a fenomenologia leve a
em relação ao fazer-se da psico- cabo uma descrição das imagens
logia reelaborada fenomenológica- que devem figurar como opostas
mente, e dentro desse mesmo mo- ao modo pelo qual o ideário mo-
vimento, sua concepção particular derno lida com o estatuto da ima-
da fenomenologia. Aqui, embora ginação. Na sequência desse itine-
o filósofo use como alicerce teó- rário, buscaremos apontar o desa-
rico a obra husserliana Ideias para cordo de Sartre com o mestre ale-
uma fenomenologia pura e para uma mão, desacordo este que dividire-
Filosofia Fenomenológica (1913), e mos em duas dificuldades: em pri-
ainda que devamos situar a ideia meiro lugar, a falta de aprofunda-
sartreana de uma psicologia fe- mento da descrição sistemática da
nomenológica no prolongamento imaginação e, logo em seguida, as
do projeto husserliano, haverá dis- dificuldades com relação à hylé que
cordância em relação ao tema da Sartre parece abordar em dois mo-
hylé (matéria) da imagem mental. vimentos distintos. Inicialmente,
Logo, nossa posição no que tange Sartre duvida que toda imagina-
a este texto é a de que, embora ção contenha necessariamente uma
Husserl tenha proclamado a revo- matéria figurativa (uma hylé). A
lução psicológica guiado pelo no- partir disso, ele almejará indicar
víssimo aparato fenomenológico, as dificuldades que se desdobram
apesar de suas indicações figura- quando admitimos tal matéria fi-
rem da maior importância, Sartre gurativa, apontando em Husserl
não está de acordo com ele em to- “alguns problemas que dizem res-
dos os pontos e “suas observações peito, ao final das contas, à noção
reclamam um aprofundamento e de objeto intencional” (MOUTI-
uma complementação” (SARTRE, NHO, 1995, p. 118).

4 Obra doravante abreviada IÇ.


5 Sobre a intrincada relação entre Sartre e Husserl no que diz respeito à tematização da psicologia fenomeno-
lógica, sugerimos a leitura do capítulo primeiro do livro L’être et la conscience. Recherches sur la psychologie et
l’ontophénoménologie sartriennes (2004), escrito por Philippe Cabestan. Na referida obra, Cabestan, com maestria,
procurará restituir a concepção husserliana da psicologia em detrimento ao manejo sartreano desta.

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ISSN: 2317-9570
PSICOLOGIA FENOMENOLÓGICA DA IMAGINAÇÃO EM SARTRE: A EIDÉTICA DA IMAGEM

En courant, deve-se notar, a par- modus operandi deste saber em de-


tir do que fora exposto, que o pro- trimento à démarche fenomenoló-
jeto sartreano da psicologia feno- gica da intencionalidade.
menológica toma a espontanei-
dade da consciência como dispo- Teorias clássicas da imagem ver-
sitivo exclusivo das análises eidéti- sus fenomenologia: a psicologia
cas. Ver-se-á que o movimento de na senda das filosofias seiscentis-
transcendência – operado via es- tas e setecentistas
pontaneidade – é a chave constitu-
tiva para o possível desvencilhar-se Na introdução de IÇ, Sartre es-
da concepção clássica da imagem- tiliza o problema que deverá en-
coisa-inerte, ou seja, da velha con- frentar com a ajuda da fenomeno-
cepção metafísica da imagem como logia, ei-lo esboçado nos seguin-
representação ou sensação renas- tes termos: o que é uma imagem
cente na consciência. A esponta- e o que deve ser uma consciência
neidade, uma vez mais, aparece para que haja imagens? Ora, exis-
então como a ideia fundamental tiria alguma diferença real entre
da fenomenologia em sua contenda um objeto presente atualmente à
contra as psicologias e filosofias consciência e uma imagem? Aliás,
clássicas da imagem. No que tange podemos falar em uma presença
à espontaneidade, lemos: da imagem à consciência? Ora, o
trabalho da psicologia fenomeno-
lógico incorre a partir das análises
Apoiando-se em algumas
eidéticas da estrutura da consci-
passagens da segunda Sessão
ência transcendental; atento a essa
de Ideias I, Sartre procura
distinção entre objeto e imagem, o
mostrar que a fenomenologia
filósofo apresenta, em primeiro lu-
renova profundamente a des-
gar, sua definição de objeto:
crição do psíquico e princi-
palmente definindo a consci-
ência pelas diferentes manei- Olho esta folha branca posta
ras que ela possui de se pro- sobre a minha mesa; percebo
jetar em direção a um sen- sua forma, sua cor, sua po-
tido da coisa transcendente – sição. Essas diferentes quali-
pela intencionalidade (FLA- dades têm características co-
JOLIET, 2002, p. 126). muns: em primeiro lugar,
elas se dão a meu olhar como
Feitas as devidas observações, in- existências que apenas posso
vestiguemos, a partir da crítica sar- constatar e cujo ser não de-
treana à psicologia positivista, o pende de forma alguma do
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ISSN: 2317-9570
GUSTAVO FUJIWARA

meu capricho. Elas são para de ser em si é precisamente um ser


mim, não sou eu. Mas tam- para si” (SARTRE, 1973, p. 41) 6 .
bém não são outrem, isto é, Sobremaneira, diferentemente da
não dependem de nenhuma inércia e da passividade caracterís-
espontaneidade, nem da mi- tica dos objetos em si, a consciência
nha, nem da de outra consci- é movimento constante de trans-
ência. São, ao mesmo tempo, cendência para fora de si. Disso de-
presentes e inertes. Essa corre um importante dado que, to-
inércia do conteúdo sensí- davia, já repetimos exaustivamente
vel, frequentemente descrita, no decorrer de nosso trabalho, ou
é a existência em si. (...) seja, consciência e objeto possuem
O certo é que o branco que naturezas dispares, com isso, um X
constato não pode ser pro- qualquer não está na consciência,
duzido por minha esponta- ele é um objeto transcendente, um
neidade (SARTRE, 1973, p. “habitante” do mundo. Por parte
41). da consciência, esta não é um re-
ceptáculo no qual os objetos viriam
O objeto, com suas variadas quali- se depositar: já deixamos, desde
dades, possui uma existência em si Intencionalidade, o terreno das tro-
que não depende de minha cons- cas protoplasmáticas, da digestão
ciência, essas qualidades presen- morna, em suma, descartamos as
tes na folha são qualidades objeti- filosofias digestivas da representa-
vas dessa folha. A coisa, no caso ção. Brevemente, a consciência é
a folha branca, é inércia que está movimento espontâneo de trans-
aquém das espontaneidades cons- cendência em face de coisas que
cientes, seu modo de existência é são pura inércia; até aqui nada de
em si. A consciência, ao contrário, novo. Mas, eis que
não poderia ser uma coisa tal como
a folha em branco que se encontra
sobre a mesa, antes, ela existe na “(...) agora desvio a ca-
justa medida em que possui consci- beça. Não vejo mais a folha
ência de sua existência, “seu modo de papel. Agora vejo o pa-

6 Embora o vocabulário expresso aqui para designar um objeto e uma consciência lembre aquele de L’être et le
néant (1943), ainda estamos longe de uma série de concepções que “potencializam” o Em-si e o Para-si presentes
na referida obra. Uma dessas concepções capitais, sem sombra de dúvida, diz respeito ao nada enquanto estrutura
do ser do Para-si. A dinâmica, o drama ontofenomenológico do Para-si com o Em-si, só entra efetivamente em cena
a partir de uma nadificação, de uma falta de ser própria às estruturas do Para-si. Não obstante, o Nada enquanto
estrutura, fissura interna do Para-si, é o que marca profundamente a diferença entre os textos fenomenológicos e
os textos ontológicos de Sartre. O nada, antes de ser inaugurado propriamente no ensaio de ontologia fenomeno-
lógica, já ritma uma boa parte dos Cadernos de uma Guerra estranha: período no qual Sartre pode meditar com
mais calma a filosofia de Heidegger.

348 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.6, n.1, jul. 2018, p. 343-377
ISSN: 2317-9570
PSICOLOGIA FENOMENOLÓGICA DA IMAGINAÇÃO EM SARTRE: A EIDÉTICA DA IMAGEM

pel cinzento da parede. A fo- tência (SARTRE, 1973, p.


lha não está mais presente, 41, grifo nosso).
não está mais aí. Sei, en-
tretanto, muito bem, que ela Embora haja uma identidade de es-
não se aniquilou: sua inér- sência da folha em imagem com a
cia a preserva disso. Ela folha real, a primeira não possui
cessou, simplesmente, de ser uma identidade de existência tal
para mim. No entanto, ei- como a segunda; a folha em ima-
la de novo. Não virei a ca- gem existe, conclui Sartre, de ou-
beça, meu olhar continua di- tro modo, ela existe em imagem 7 .
rigido para o papel cinzento; Na medida em que a inércia sal-
nada se mexeu no quarto. vaguarda e conserva a autonomia
Entretanto, a folha me apa- dos objetos que existem em si, a
rece de novo com sua forma, imagem não impõe como um li-
sua cor e sua posição; e sei mite à espontaneidade da consci-
muito bem, no momento em ência e tampouco possui inércia,
que ela aparece, que é preci- “em uma palavra, ela não existe
samente a folha que eu via de fato, existe em imagem” (SAR-
há pouco. É ela, verdadei- TRE, 1973, p. 41). Destarte, os
ramente, em pessoa? Sim e objetos ou existem de fato ou exis-
não. Afirmo, sem dúvida, tem como imagem, e existir como
que é a mesma folha com imagem significa, primeiramente,
as mesmas qualidades. (...) existir sem que haja existência ou
sei que não desfruto de sua presença de fato. Assim, caberá
presença (...) A folha que à experiência reflexiva guiar-nos
me aparece neste momento pelo modo de ser da imagem sem
tem uma identidade de es- que caíamos na costumeira confu-
sência com a folha que eu são entre os modos de ser da coisa e
via há pouco. E, por essên- da imagem, uma vez que, apesar de
cia, não entendo somente a tudo, a folha em imagem e a folha
estrutura, mas, ainda, a in- em realidade são a mesma folha
dividualidade mesma. Essa em dois modos, dois planos dife-
identidade de essência, po- rentes de existência. Toda cautela
rém, não está acompanhada aqui é solicitada porque frequen-
por uma identidade de exis- temente concluímos que a ima-
gem, por ser a imagem do objeto,

7 “Eis assim configurado o pressuposto para a constituição de uma metafísica ingênua da imagem, na feliz ex-
pressão forjada por Sartre, donde esta coincide como a coisa que consiste numa realidade inerte, estranha ao do-
mínio da consciência (...)” (PAIVA, 2005, p. 97).

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existe tal e qual o objeto do qual ram à experiência era muito tarde”
ela é a imagem; tal equívoco, Sartre (SARTRE, 1973, p. 43) 9 . Voltando
chamará de “metafisica ingênua da ao exemplo da folha em branco so-
imagem” e em L’Imaginaire, “ilusão bre a mesa, nós havíamos averi-
da imanência” . guado de soslaio que a consciência
A metafísica ingênua consiste pode apreender o objeto de ma-
em fazer da imagem uma cópia neira perceptiva ou imaginativa.
da coisa, a imagem é coisificada, A folha em imagem, deste modo,
torna-se inércia, existência em si, é visada na ausência, não a vejo,
“aparece e desaparece a seu crité- pois ela não está presente, ela se
rio e não ao critério da consciên- dá como algo distinto de uma pre-
cia; não cessa de existir ao deixar sença. Entre a folha percebida e
de ser percebida” (SARTRE, 1973, a folha imaginada há uma identi-
p. 42). O autor deslinda o des- dade de essência que não coincide
compasso entre um objeto que nos com uma identidade de existência!
aparece em imagem e sua existên- Devemos considerar, portanto, que
cia concreta. No limite, essa teoria uma teoria válida sobre a imagem
“ingênua” da imagem coisificada deverá assinalar dois modos, dois
não nos fornece elementos para planos diferentes que a consciên-
que possamos distinguir os objetos cia possui de visar seu objeto. Em
das imagens, ela concebe o objeto outras palavras, uma verdadeira
em realidade e o objeto em ima- teoria da imagem buscará com-
gem coexistindo no mesmo plano. preender os mecanismos que ope-
Observa-se, que esta metafísica fez ram na consciência imaginante em
da imagem uma “coisa menor” , detrimento à consciência percep-
uma “coisa inferior” 8 , e é isso que tiva. Logo, encontramo-nos diante
encontraremos também no seio das de duas consciências que possuem
psicologias que estudaram a ques- meios diferentes de apreender in-
tão. O imbróglio, dirá Sartre, deve- tencionalmente o objeto visado.
se a confusão entre identidade de Por fim, o elemento central da
essência e identidade de existên- crítica tanto às teorias filosóficas
cia: “todos construíram a teoria a clássicas como às teorias psicológi-
priori da imagem. E quando volta- cas, ainda que haja uma aparente

8 Lê-se: “A teoria pura e a priori fez da imagem uma coisa. (...) A ontologia da imagem está agora completa e
sistemática: a imagem é uma coisa inferior, que tem sua existência própria, que se dá à consciência como qualquer
coisa e que mantém relações externas com as coisas da qual é imagem” (SARTRE, 1973, p. 42-43).
9 “A folha que me aparece neste momento tem uma identidade de essência com a folha que eu via há pouco. E
por, essência, não entendo somente a estrutura, mas, ainda, a individualidade mesma. Essa identidade de essência,
porém, não está acompanhada por uma identidade de existência.” (SARTRE, 1973, p. 41).

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PSICOLOGIA FENOMENOLÓGICA DA IMAGINAÇÃO EM SARTRE: A EIDÉTICA DA IMAGEM

diversidade, vincula-se ao fato de dental da presença de conteúdos,


todas elas partirem de um mesmo mas ainda, de se discutir a na-
solo comum: a imagem tratada tureza mesma do psíquico repro-
como coisa. O filósofo pontua: pondo assim uma nova psicologia”
(MOUTINHO, 1995, p. 72). Enfim,
trata-se de teorizar esta nova ativi-
Essa teoria, que decorre pri-
dade, esta nova variação eidética
meiramente da ontologia in-
da consciência imaginante. Desse
gênua, foi aperfeiçoada sob a
modo, a discussão acerca da na-
influência de diversas preo-
tureza do psíquico é o momento
cupações estranhas à questão
central que caracterizará o métier
e legada aos psicólogos con-
da psicologia fenomenológica, mo-
temporâneos pelos grandes
mento no qual poderemos mesurar
metafísicos dos séculos XVII
e vislumbrar as diferenças entre a
e XVIII. Descartes, Leibniz,
fenomenologia pura e a psicologia
Hume têm uma mesma con-
tornada fenomenológica. Noutras
cepção da imagem. Só dei-
palavras, o psíquico fenomenal é
xam de concordar quando se
condição sine qua non para o advir
trata de determinar as re-
de uma nova psicologia que verse,
lações entre a imagem e o
preponderantemente, nas estrutu-
pensamento. A psicologia
ras essenciais da consciência: “não
positiva conservou a noção
bastará combater a imagem-coisa;
de imagem tal como a ha-
dessa vez, combater-se-á ainda a
via herdado desses filósofos.
psicologia de coisas” (MOUTINHO,
(SARTRE, 1973, p. 43).
1995, p. 72). Em comunhão às ana-
Grosso modo, todas as teorias (fi- lises eidéticas da consciência ima-
losóficas e psicológicas) da ima- ginante, acompanharemos o reen-
gem partem do postulado de que quadramento fenomenológico da
a imagem é, na verdade, uma psicologia positiva ausente de sis-
imagem-coisa. É interessante ob- tematicidade e de essência; há, no
servar como o faz Moutinho (1995, horizonte das preocupações de Sar-
p. 72), que o combate à imagem- tre, um projeto que pretende rede-
coisa operar-se-á da mesma forma finir os domínios da ciência cha-
que TE combateu os conteúdos mada psicologia. Sob tal redefi-
de consciência. Não obstante, a nição, de algum modo já tratado
crítica sartreana tecida agora, se- em nosso capítulo anterior, a aná-
gundo o comentador, se desenrola lise eidética da imagem, tal como
em outro plano: “não se trata ape- fora posto em prática em Esquisse
nas de purificar o campo transcen- no que dizia respeito às emoções,

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deverá fixar e descrever a essên- “na diferença com a fenomenolo-


cia desta estrutura psicológica tal gia, se destacasse não por um ‘em-
como ela aparece à intuição refle- pirismo transcendental’, mas por
xiva. A psicologia fenomenológica, aquilo que poderíamos chamar de
ao contrário da psicologia, se dá um empirismo eidético” (CABES-
como tarefa “separar nitidamente a TAN, 2004, p. 35). Vê-se, então,
experiência no sentido experimen- um dos elementos que diferenciam
tal e a experiência no sentido da in- psicologia fenomenológica e feno-
tuição de essência, subordinando a menologia pura: a análise eidé-
primeira a segunda” (CABESTAN, tica das estruturas da consciência
2004, p. 35). Diante disso, a nova no mundo. Depois de clarificada
psicologia: pela psicologia fenomenológica, ou
seja, pela experiência privilegiada
da descrição eidética, a imagem de-
(...) não tomará de em- signará a ausência, o nada da coisa,
préstimo os seus métodos a divisão do mundo entre mundo
às ciências matemáticas, que real e mundo imaginário; mas isso
são dedutivas, mas às ci- seria avançar demais, e no mo-
ências fenomenológicas, que mento não dispomos ainda dessas
são descritivas. Será uma conclusões que somente aparece-
“psicologia fenomenológica” rão com força em L’Imaginaire. Por
; efetuará, no plano intra- isso, voltemos para a crítica das te-
mundano, pesquisas e fixa- orias clássicas da imagem.
ções de essências como a fe-
nomenologia no plano trans- As críticas fenomenológicas de
cendental. E certamente, Sartre são direcionadas às mais
deve-se falar ainda de expe- diversas teorias sobre a imagem
riência, na medida em que que, no fundo, partilham de uma
toda visão intuitiva de es- mesma ingenuidade metafísica: a
sência continua sendo expe- confusão entre identidade de es-
riência. Mas é uma experi- sência e identidade de existência,
ência que precede toda expe- fazendo com que a imagem seja,
rimentação (SARTRE, 1973, desse modo, coisificada. Sendo as-
p. 104). sim, iremos pontuar, de sobrevoo,
as teorias da imagem forjadas ao
longo das épocas. O elemento co-
A presente obra em tela insiste, mum partilhado por todos os pen-
portanto, nesta característica da sadores que resolveram abordar o
experiência da intuição das essên- problema da imagem é que todos
cias como se esta nova psicologia, eles têm uma concepção unívoca
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PSICOLOGIA FENOMENOLÓGICA DA IMAGINAÇÃO EM SARTRE: A EIDÉTICA DA IMAGEM

da imagem como coisa, todos fize- matéria e a consciência excluam-


ram da imagem uma cópia menos se uma à outra, porque a imagem,
intensa do objeto, relegada à con- “na medida em que é desenhada
dição de cópia, de reprodução do materialmente em alguma parte
real. No que diz respeito a Descar- do cérebro, não poderia ser ani-
tes: mada de consciência” . - Dora-
vante, conclui Sartre – “ela é um
objeto, tanto quanto o são os ob-
(...) há um abismo entre o
jetos exteriores. É exatamente o
plano ideativo e o plano ima-
limite da exterioridade” (SARTRE,
ginativo, isto é, entre enten-
1973, p. 45). Com isso, devemos
dimento e imaginação. Des-
ficar atentos para o fato de que a
cartes é o único (...) a afir-
imaginação ou o conhecimento da
mar a especificidade do pen-
imagem vem necessariamente do
samento. Por conta dessa
entendimento que, aplicado à im-
especificidade, dois campos
pressão material produzida no cé-
distintos se colocam: o do
rebro, dá-nos uma consciência da
entendimento – assegurado
imagem. Ora, a imagem cartesiana
pela afirmação da existência
é um simulacro da coisa, ela pos-
de um pensamento puro -,
sui uma inferioridade metafísica:
objeto de um estudo lógico e
de um lado o plano da existência
epistemológico, e o da ima-
de um pensamento puro e, do ou-
ginação e das sensações, per-
tro lado, a imaginação e as sensa-
tencentes ao domínio do cor-
ções, “pertencentes ao domínio do
poral e objetos da psicolo-
corporal e objetos da psicologia”
gia (MOUTINHO, 1995, p.
(MOUTINHO, 1995, p. 73). Nos
73).
quadros da filosofia cartesiana a
A grande intuição de Descartes, imagem é uma coisa corporal, o
em presença de uma tradição es- produto de movimentos mecâni-
colástica, era o de dividir, sepa- cos do corpo:
rar com rigor e distinção o me-
canismo e o pensamento, “sendo Posto que em Descartes os
o corporal inteiramente reduzido processos concernentes ao
ao mecânico” (SARETRE, 1973, p. corpo são mecânicos, a pro-
45). Nesta toada, a imagem será dução das imagens e a ati-
para o autor de Meditações Meta- vidade da imaginação serão
físicas, uma coisa corporal, o pro- também equacionados pela
duto da ação dos corpos exteriores ótica mecanicista. Nesse
sobre o nosso, fazendo com que a sentido, a imagem configura
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também o corolário das ope- tessitura de sua teoria sobre as


rações mecânicas (PAIVA, imagens busca resolver a oposição
2005, p. 99). operada por Descartes entre ima-
gem pensamento, desfigurando a
Já Espinosa, por sua vez, torna imagem. Ela (a imagem) é vin-
ainda mais claro que o problema culada ao pensamento, mas, por
da imagem só se resolve pelo en- conta disso, acaba se desvanecendo
tendimento e ele, como também como aponta Sartre. Como a antiga
fizera Descartes, separa a teo- dicotomia entre essência necessá-
ria do conhecimento da teoria da ria e fato empírico é superada, en-
imagem: as imagens são provo- contramos como que por detrás de
cadas por causas mecânicas, elas cada imagem, o pensamento: “o
são afecções do corpo humano, “o fato era já algo assim como uma
acaso, a contiguidade, o hábito, são expressão da lei, um signo da lei:
as fontes da ligação das imagens ou antes, o fato é a própria lei (...)
(...)” (SARTRE, 1973, p. 46). A no empírico pretende-se reencon-
partir de tais teorias, a psicologia é trar o necessário” (SARTRE, 1973,
rejeitada ao terreno das sensações e p. 49). Por detrás de cada ima-
das imagens concebidas enquanto gem podemos reencontrar o pen-
simulacro de menor intensidade da samento que ela implica de direito,
coisa, há certa univocidade de pen- donde se segue a assertiva: a ca-
samento que acaba por conceber a deira em imagem é a cadeira em
imagem a partir de uma base sensí- realidade. Desse itinerário:
vel.
Na teoria de Leibniz, a imagem
se acha penetrada de intelectua- Estabelecendo uma relação
lidade, seu esforço é estabelecer entre pensamento e imagem
uma continuidade entre os dois de modo que está não seja
modos de conhecimento: pensa- concebida como antagônica
mento e imagem, fazendo com que àquela, este filósofo finda por
haja uma distinção entre “mundo subtraí-la de sua condição de
das imagens ou idéias confusas e o imagem, sem que exprima
mundo da razão” (SARTRE, 1973, claramente que tipo de rela-
p. 46), haveria, na unidade de ção o produto da imaginação
um mesmo ato, imagem e pensa- tem com o objeto, tampouco,
mento. O associacionismo de Leib- a sua condição de dado ime-
niz, deste modo, asseverará que é diato da consciência dotado
na alma que as imagens são con- de uma existência original
servadas e são ligadas entre si. A (PAIVA, 2005, p. 105).
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PSICOLOGIA FENOMENOLÓGICA DA IMAGINAÇÃO EM SARTRE: A EIDÉTICA DA IMAGEM

Tal prejuízo nasce à medida que a ao sistema de imagens. Só há no


imagem leibniziana não está dis- espírito impressões e cópias des-
sociada do processo do conheci- sas impressões que são, verdadei-
mento, mas acha-se penetrada de ramente, ideias que se conservam
intelectualidade. Quando Leibniz no espírito por uma inércia; “idéias
procura solucionar a relação exis- e impressões não diferem em natu-
tente entre imagem e pensamento, reza, o que implica que a percep-
o filósofo “finda por destitui-la ção não se distingue em si mesma
de sua natureza imagética, edifi- da imagem” (SARTRE, 1973, p.
cando também uma metafísica in- 47). Aqui, as imagens cartesia-
gênua da imagem (...) A imagina- nas são transformadas em ideias,
ção em Leibniz não se emancipará há somente o mundo mecânico das
de instância inferior e subsidiária imagens “ligadas entre si apenas
do pensamento” (PAIVA, 2005, p. por relações externas (semelhança,
108). Por estar vinculada ao conhe- contiguidade, causalidade), rela-
cimento 10 , a imagem tornar-se-á ções essas que agem como ‘for-
uma versão menor e menos elabo- ças dadas’” (MOUTINHO, 1995, p.
rada da ideia. Ao trasmudar a ima- 73). A imagem, tal como postu-
gem em um pensamento menor, lada por Descartes, torna-se o ob-
Leibniz teria, segundo a argumen- jeto individual de onde o cientista
tação de Sartre, “violentado a natu- deve partir e o elemento primeiro
reza da imagem, transformando-a que, combinado, produzirá o pen-
em algo distinto dela mesma. A samento, o conjunto das significa-
alteridade da imagem em relação ções lógicas. Por operar uma iden-
ao pensamento é assim anulada” tidade entre imaginação e ideia,
(PAIVA, 2005, p. 109). a fatura dessa teoria corre no se-
No que concerne à filosofia de guinte sentido:
Hume quanto à teoria da imagem,
a lógica torna-se uma parte da psi-
(...) a imagem já não fi-
cologia, desaparecem as estruturas
gura como o sensível, que
cartesianas do mundo das essên-
é indício de intelecto, nem
cias, o plano do pensamento puro
11 como conhecimento primor-
. O filósofo escocês se esforça
dial no caminho para a cla-
para reduzir todo o pensamento
reza e para o desnudamento,

10 Aqui, podemos vislumbrar a diferença de teorias entre Leibniz e Descartes. Enquanto o primeiro associa ima-
gem e conhecimento, o segundo postula entre ambos uma relação antagônica.
11 “Ele toma de empréstimo ao cartesianismo sua descrição do mundo mecânico da imaginação e isolando esse
mundo, por baixo do terreno fisiológico no qual ele mergulha pelo alto do entendimento, faz dele o único terreno
sobre o qual o espírito humano se move realmente” (SARTRE, 1973, p. 47).

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consiste antes no meio pre- cação do pensamento cartesiano:


valecente de conhecer. As “Descartes colocava ao mesmo
ideias produzidas pelo espí- tempo a imagem e o pensamento
rito nada mais são do que de- sem imagem; Hume guarda ape-
corrência de impressões sen- nas a imagem sem o pensamento”
síveis, das quais não diferem (SARTRE, 1973, p. 49). Mesmo
radicalmente em sua natu- que Hume tenha recusado a cla-
reza. A imaginação a partir reza do cogito cartesiano, “no que
de tal compreensão definiti- tange à natureza da imagem, toda-
vamente não se distingue de via, conserva-se o mesmo registro,
outras formas de consciência preservando a condição material
e, uma vez que as ideias re- da imagem, sua origem sensível,
sultam das impressões numa que a insere no mundo dos fatos e
espécie de cópia delas, torna- das coisas” (PAIVA, 2005, p. 113).
se mais explícita a equiva- A imagem, ainda que coincida com
lência entre imagem e per- a percepção, permanece tributária
cepção. (...) a imaginação e subalterna a ela: Hume não eli-
consiste no lugar em que a mina o equívoco entre a identidade
ideia emerge. (PAIVA, 2005, de essência e a identidade de exis-
p. 111). tência, seus argumentos perduram
a tese da imagem-coisa.
Sartre, ainda chama atenção
Logo, em Hume, só existem coisas para outro elemento crucial no
que entram em relação com as ou- desenvolvimento das teorias da
tras coisas, constituindo certa cole- imagem que serão feitas no de-
ção que leva o nome de consciên- correr dos séculos. Tal desenvol-
cia: as faculdades são constituídas vimento passa, obrigatoriamente,
a partir do fluxo dos dados empíri- pelo abando das essências carte-
cos 12 . Do interior dessa filosofia sianas, ou seja, pelo abandono do
é importante pontuar que os fa- mundo inteligível. A fatura disso,
tos psíquicos serão coisas indivi- de acordo com o filósofo, é o ad-
duadas que mantém uma relação vento do psicologismo que se es-
externa que as liga entre si. Re- boça, no limite, como uma antro-
sumidamente, a filosofia de Hume pologia positiva, isto é ” (...) uma
teria operado apenas uma modifi-

12 “O associacionismo é antes de tudo uma doutrina ontológica que afirma a identidade radical do modo de ser
dos fatos psíquicos e do modo de ser das coisas. Nada existe, em suma, a não ser coisas: essas coisas entram em
relação umas com as outras e constituem, assim, uma certa coleção que se chama consciência. E a imagem nada
mais é do que a coisa na medida em que mantém com outras coisas um certo tipo de relações” (SARTRE, 1973, p.
49).

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ciência que pretende tratar o ho- lhes um nome comum que


mem como um ser do mundo, ne- nos leve a crer na existên-
gligenciando o fato essencial de cia da ideia geral corres-
que o homem é também um ser pondente, sendo unicamente
que presenta para si o mundo e real, entretanto, o conjunto
a si próprio o mundo” (SARTRE, das imagens e existindo “em
1973, p. 49) 13 . Esse psicolo- potência” no nome (SAR-
gismo, ao lançar seu olhar so- TRE, 1973, p. 47).
bre a condição humana, delimita
o homem como “ser que está no
Toda a crítica de Sartre a Hume,
mundo, assim como os fatos e as
como notamos aqui, procura apon-
coisas, circunscrevendo-o a essa
tar o modo pelo qual o filó-
condição” (PAIVA, 2005, p. 114).
sofo escocês insere as imagens no
Nas tramas de uma antropologia
universo da pura mecanicidade,
positiva, Hume nada inova em re-
confundindo-as com as dinâmi-
lação ao estatuto da imagem, so-
cas próprias do modo de ser da
mente continua fazendo reverberar
coisa (em si). Na opacidade de
a estrutura da imagem como coisa.
objetos que existem de modo in-
Vê-se que as três grandes soluções
terno ao pensamento, Hume ter-
para o problema da imaginação, no
mina por desvanecer totalmente o
fundo, comungam de uma única
princípio de translucidez da cons-
noção de imagem sempre conce-
ciência. Instaurando um reino de
bida a partir de uma base sensí-
puras imagens a partir da percep-
vel. A título de clarificar a teoria
ção, o filósofo só faz reverbera o
das imagens no fazer-se do pensa-
quiproquó entre psíquico e coisa.
mento huminiano, lê-se:
Sem mais delongas, a pluralidade
das teorias sobre a imagem guar-
As imagens estão ligadas en- dam, no fundo de suas soluções,
tre si por relações de con- uma mesma e idêntica estrutura: a
tiguidades e de semelhan- imagem permanecendo uma coisa.
ças, que agem como “folhas Em suma, a metafísica moderna,
dadas” , aglomerando-se se- ainda que tenha apresentado cons-
gundo atrações de natureza truções teóricas díspares, produ-
semimecânica, semimágica. ziu – de acordo com a crítica en-
A semelhança de certas ima- cetada por Sartre – um olhar uní-
gens permite-nos atribuir- voco quanto à imagem e que perfaz

13 Todavia, Sartre ainda alerta que esta “antropologia positiva” já se encontrava em germe na teoria cartesiana da
imagem.

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o ponto de intersecção entre Des- possíveis, “desde que se aceite o


cartes, Leibniz e Hume: a confu- postulado de que a imagem nada
são entre identidade de essência e mais é do que uma coisa e que to-
identidade de existência que de- das elas são igualmente possíveis
creta à imagem uma passividade e igualmente defeituosas” (SAR-
que lhe é intrínseca, uma condição TRE, 1973, p. 50). Logo, Sartre
de instância inferior e subsidiária esperava encontrar na psicologia
em relação ao pensamento racio- das imagens um repúdio contra
nal. Na senda desses três filósofos, sua origem sensível e sua assimi-
a imagem é coisa em si, realidade lação a “impressões francas” . A
inerte. Sobre a univocidade das te- psicologia, ao emancipar-se da fi-
orias, argumenta o autor: losofia por volta do século XIX,
“estabelece vínculos com a fisi-
ologia, o que repercutirá decisi-
Apenas se modificam suas vamente sobre a problemática da
relações com o pensamento, imagem” (PAIVA, 2005, p. 114).
de acordo com o ponto de Entrementes, será a partir da me-
vista que se assumiu a res- tafísica seiscentista e setecentista,
peito das relações do homem que a psicologia tirará suas ins-
com o mundo, do universal pirações quanto à imagem: “Essa
com o singular, da existência psicologia não só reitera a noção
como objeto com a existên- de imagem-coisa como delimitará
cia como representação da o seu domínio dentro dos moldes
alma com o corpo (SARTRE, oferecidos pelos clássicos” (MOU-
1973, p. 50). TINHO, 1995, p. 75). A crítica
de Sartre às novas teorias da ima-
Contudo, vejamos como, ainda de gem, certamente, dize respeito à
sobrevoo, os psicólogos 14 se es- emergência de uma psicologia que
forçam para encontrar um mé- se assume como ciência positiva e
todo positivo no que tange ao pro- converte a vida psíquica à logica
blema da imagem. Mesmo nas te- mecanicista e fisiológica 15 . Sobre
orias psicológicas sobre a imagem, a ideia de ciência ligada ao mecani-
iremos nos deparar com aquelas cismo e ao determinismo, assevera
três soluções (a de Descartes, Leib- o autor:
niz e Hume) enquanto as únicas

14 Trataremos exclusivamente da psicologia científica de Taine.


15 O filósofo observa que a ideia de ciência, fomentada por Giard, estava intimamente ligada às ideias de deter-
minismo e mecanicismo: “essa ciência determinista e mecanicista é que conquista a geração de 1850” (SARTRE,
1973, p. 51).

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PSICOLOGIA FENOMENOLÓGICA DA IMAGINAÇÃO EM SARTRE: A EIDÉTICA DA IMAGEM

Ora, quem diz mecanicismo um mecanismo” (SARTRE, 1973,


diz espírito de análise: o p. 52). Taine, por exemplo, pro-
mecanicismo procura redu- curando constituir uma psicologia
zir um sistema a seus ele- científica, assevera que devemos
mentos e aceita implicita- considerar o fato psíquico como
mente o postulado de que “um movimento físico” e, para
estes permanecem rigorosa- tanto, devemos – metodologica-
mente idênticos, quer este- mente – reportar-nos à experiência
jam em estado isolado ou em sensível e a uma teoria metafisica
combinação. Segue-se natu- estabelecida a priori sobre a natu-
ralmente a este outro postu- reza e os fins da experiência; lemos
lado: as relações que os ele- em Esquisse d’une théorie des émoti-
mentos de um sistema man- ons (1938):
têm entre si lhe são exterio-
res: é esse postulado que se
formula ordinariamente sob Taine não se limita a pres-
o nome de princípio de inér- crever uma ampla utiliza-
cia. Assim, para os intelectu- ção da experiência: deter-
ais da época que considera- mina, a partir de princípios
mos, tomar uma atitude ci- não controlados, o que deve
entífica em face de um objeto ser essa experiência, descreve
qualquer – é postular an- seus resultados antes de a ela
tes de qualquer investigação, se ter reportado e essa des-
que esse objeto é uma combi- crição implica naturalmente
nação de invariáveis inertes uma porção de asserções dis-
que mantêm entre si relações simuladas sobre a natureza
externas (SARTRE, 1973, p. do mundo e da existência
51). em geral (SARTRE, 1995, p.
52).
Sartre, referindo-se aos psicólogos
da segunda metade do século XIX, A psicologia de Taine, ancorada
deslinda a maneira como estes irão a uma ideal de cientificidade,
se apropriar dos mecanismos da ci- emerge como ciência dos próprios
ência para o desenvolvimento de fatos, sempre pronta a manifestar-
uma teoria das imagens. A crí- se com rigor e precisão sobre os
tica que acompanharemos através eventos psíquicos que são, em sua
de algumas observações diz res- generalidade, produtos de associ-
peito “a uma tentativa de conver- ações mecânicas. O psicólogo, as-
ter a complexidade psíquica em sim como Hume, ao ater-se a um
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modelo prévio de ciência, condi- simples mecanismo; para Sartre,


ciona metodologicamente seus re- esse modelo de ciência adapta seus
sultados - fato psíquico -: “a opção métodos à natureza de seus objetos
prévia pela análise implicará numa produzindo, por conseguinte, uma
deturpação do psíquico” (MOUTI- interpretação simplista de seus
NHO, 1995, p. 75). De acordo com progressos. Se a referida atitude ci-
o desenrolar-se argumentativo de entífica põe o psíquico como coisa,
Sartre, o problema dessa psicolo- disso resulta “a identificação do
gia que se pretende rigorosamente modo de ser dos fatos psíquicos e
científica é que ela acaba operando do modo de ser das coisas” (MOU-
a identificação entre o modo de ser TINHO, 1995, p. 76), reduzindo
do psíquico e o modo de ser da de forma inevitável o psíquico a
coisa. Tal intercruzamento segue elementos simples, reduzindo-o de
o modus operandi segundo o qual: autonomia. No caso da imagem,
esse princípio científico que não
encontra ponto de apoia em ne-
(...) tomar uma atitude ci- nhuma descrição concreta e em ne-
entífica em face de um objeto nhuma observação dos fatos, é ne-
qualquer – quer se trate de fasto: além de confirmar a imagi-
um corpo físico, de um orga- nação como algo inferior ao pensa-
nismo ou de fato de consci- mento, “vincula-a aos movimentos
ência – é postular, antes de fisiológicos, reduzindo a atividade
qualquer investigação, que imaginante à condição de reflexo
esse objeto é uma combi- das sensações, exatamente como as
nação de invariáveis inertes metafísicas anteriormente aludi-
que mantêm entre si relações das, particularmente a cartesiana”
externas (SARTRE, 1973, p. (PAIVA, 2005, p. 116) 16 .
51). Da elucidação dos mecanismos
da psicologia de Taine, Sartre pode
A partir de tal corolário os psicólo- afirmar que sua teoria sobre a
gos, em um esforço vão de cons- imagem não é auxiliada pelos da-
tituir uma psicologia científica, dos da experiência íntima e que
desvencilham-se da complexidade por isso, a imagem é uma sen-
psíquica transformando-a em um

16 Em Taine, a imagem – elemento essencial da vida psíquica – aparece de antemão ocupando um lugar determi-
nado: “Não há nada de real no eu, com exceção da fila dos seus acontecimentos. Esses acontecimentos, diversos de
aspecto, são os mesmos em natureza e se reduzem todos à sensação; a própria sensação, considerada de fora e pelo
meio indireto que se chama percepção exterior, se reduz a um grupo de movimentos moleculares. (...) Tudo aquilo
que, no espírito, ultrapassa ‘a sensação bruta’ se reduz a imagem, isto é, a repetições espontâneas da sensação”
(TAINE apud SARTRE, 1973, p. 53).

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PSICOLOGIA FENOMENOLÓGICA DA IMAGINAÇÃO EM SARTRE: A EIDÉTICA DA IMAGEM

sação renascente, “um grupo de p. 53). Alude Sartre:


movimentos moleculares” deduzi-
dos a priori: “o que significa co-
Daí esta contradição parado-
locar a imagem como invariável
xal: Taine, para constituir
inerte e, ao mesmo tempo, su-
uma psicologia sobre o mo-
primir a imaginação” (SARTRE,
delo da física, adota a con-
1973, p. 53). A démarche crí-
cepção associacionista que,
tica do filósofo francês evidencia
como Kant mostrou, leva a
assim que a definição mecanicista
uma negação radical de toda
do psíquico é coincidente à pro-
ciência legisladora. Mas, ao
dução das imagens; por ser apre-
mesmo tempo em que ele des-
endida a priori como “sensação
trói sem suspeitar a ideia
remanescente” , decorrente de
mesma de necessidade e a
“movimentos moleculares” , em
de ciência no terreno psicoló-
suma, definições que a concebem
gico, mantém, no terreno da
sempre a partir da inércia, o es-
fisiologia e da física, um sis-
pírito é, para usar um termo do
tema de leis necessárias. E,
próprio Sartre “um polipeiro de
como afirma que o fisiológico
imagens” 17 . Ainda que Taine, no
e o psíquico não são senão
momento de propor uma teoria das
as duas faces de uma mesma
imagens, aproprie-se do associa-
realidade, segue-se que a li-
cionismo de Hume, sua psicolo-
gação das imagens enquanto
gia (constituída pelo modelo físico)
fatos de consciência – a única
não faz uso da experiência 18 . Des-
que nos aparece – é contin-
tarte, há uma confusão entre expe-
gente, enquanto a ligação dos
riência e análise, que terminar por
movimentos moleculares que
conduzi-lo a constituir “um associ-
as constituem como realida-
acionismo híbrido que se exprime
des físicas é necessária (SAR-
ora em linguagem fisiológica, ora
TRE, 1973, p. 53).
em linguagem psicológica, ora nas
duas linguagens ao mesmo tempo;
A hibridez no qual cresce o associa-
assim, seu empirismo puramente
cionismo de Taine – ora fisiológico,
teórico se desdobra em um rea-
ora psicológico - não produz senão
lismo metafísico” (SARTRE, 1973,
uma “metafísica frustrada” , que

17 “Os dois grossos volumes de L’Intelligence não fazem mais do que desenvolver fastidiosamente esta simples
frases que citávamos mais acima.” (SARTRE, 1973, p. 53).
18 “Hume, porém mais hábil, havia, pelo menos, tentando constituir um fantasma de experiência. Não quis de-
duzir. Por isso suas leis de associação são postas, pelo menos na aparência, no terreno da psicologia pura: são laços
entre os fenômenos tais como eles aparecem ao espírito.” (SARTRE, 1973, p. 53).

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opera a coisificação do psíquico findam por representar “centros


através de sua identificação com de opacidade e de receptividade”
o modo de ser das coisas. A aná- , transfigurando, com isso, os mo-
lise do psicólogo, “decompõe o fato dos de ser do psíquico no modo de
psíquico em elementos, partes sim- ser da coisa.
ples; mas para que isso seja pos-
sível é necessário, antes de qual-
quer coisa, objetivar o psíquico, o A cor amarela deste cin-
que significa torna-lo coisa: esse zeiro, quando renasce a tí-
é o primeiro passo (...)” (MOU- tulo de impressão enfraque-
TINHO, 1995, p. 76). Uma vez cida, conserva seu caráter de
tornando coisa, o que significará dado: continua um irredutí-
o psíquico? Significará, em pri- vel, um irracional. Antes de
meiro lugar, uma passividade de tudo, e precisamente por ser
pura inércia já lobrigada outrora passividade pura, permanece
por Descartes e Hume. Através do um elemento inerte. Que se
associacionismo do filósofo esco- deve entender por isso? Que
cês, a imagem é concebida como ela não seria capaz de encon-
participando do sensível. No que trar em si, na intimidade de
tange a esta participação da ima- seu ser, a razão de sua apa-
gem no sensível, Hume “julga par- rição. Por si mesma não se-
tir dos dados imediatos da expe- ria capaz de renascer ou de-
riência: há impressões fortes e im- saparecer. É preciso que seja
pressões fracas” (SARTRE, 1973, p. evocada ou reprimida por
93) onde se segue que a primeira outra coisa diferente dela.
característica dessas “impressões” Mas essa ‘outra coisa’ não
é a opacidade. Quando o autor pode ser uma espontanei-
das Investigações acerca do enten- dade sistematizadora (SAR-
dimento humano (1748) não se li- TRE, 1973, p. 93).
mita somente a descrever os con-
teúdos sensíveis da percepção, mas Se essa “outra coisa” não
“compor o mundo da consciência pode ser uma “espontaneidade
por meio somente desses conteú- sistematizadora” , o que ela deve
dos; isto é, duplicar a ordem da ser? Ora, de acordo com Sartre, ela
percepção como uma ordem das será os conteúdos sensíveis, iner-
imagens, constituída pelos mes- tes que nos levam a um mundo
mos conteúdos sensíveis com um de pura exterioridade, totalmente
grau menor de intensidade” (SAR- contrários à atividade translúcida
TRE, 1973, p. 93), suas imagens da espontaneidade da consciência.
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PSICOLOGIA FENOMENOLÓGICA DA IMAGINAÇÃO EM SARTRE: A EIDÉTICA DA IMAGEM

As leis de associação (que deve- das coisas” , será caracteri-


riam conter, de acordo com Sartre, zado em L’Imaginaire como
o princípio da inércia 19 ) que nada “ilusão de imanência” , que
mais são senão “a posição de liga- consiste, grosso modo, em
ções de exterioridade entre os con- pensar a consciência como
teúdos psíquicos” (SARTRE, 1973, “um lugar povoado de pe-
p. 94), esboçam-se como as res- quenos simulacros” . Essa
ponsáveis pela inserção dos con- ilusão, segundo Sartre, tem
teúdos sensíveis da percepção na como origem “nosso hábito
paisagem da consciência donde se de pensar no espaço, em ter-
segue, como fatura disto, a inér- mos de espaço” – e Hume não
cia, o opaco e o viscoso trazidos é senão a “expressão mais
para o seu “interior” 20 . A falta de clara de tal ilusão” . Ora,
uma espontaneidade sistematiza- especializar a consciência,
dora (que nada mais é se não a falta pensá-la como lugar, signi-
de uma fenomenologia) corrobora fica trazer para o “interior”
não só na identificação do modo de dela a inércia, a passividade,
ser do psíquico com o modo de ser a receptividade próprias do
da coisa, mas também na deturpa- ser espacial (MOUTINHO,
ção da translucidez vazia da cons- 1995, p. 87-88).
ciência. De fato, podemos entrever
21
que a participação da imagem
Grosso modo, ao reclamar uma
no sensível – teorizada por Hume -
“espontaneidade sistematizadora”
acaba por figurar a confusão entre
ausente na teoria huminiana da
psíquico e coisa, entre ser para si e
imagem, Sartre parece estar ver-
ser em si. Nas tramas nas quais A
dadeiramente mais preocupado
Imaginação é tecida:
com a constituição de uma psi-
cologia outra. Esta nova psicolo-
(...) a crítica sar- gia, como não nos furtaremos de
treana reclama antes destrinchá-la, deverá revelar a es-
uma “espontaneidade sência do fato psíquico, a lei da ati-
sistematizadora” . Pensar vidade da consciência: a esponta-
a consciência em termos de neidade. Suas críticas, por conse-
elementos, como o “mundo guinte, vão além daquelas acerca

19 Tais leis deveriam conter o princípio da inércia porque espelham o modo de ser do psíquico ao modo de ser da
coisa que, como vimos, é inerte.
20 Usamos a presente palavra entre aspas porque a consciência – se bem entendida – não possui nem um dentro
e nem um fora, livrando-a de ser uma substância.
21 Não sem a ajuda do precioso itinerário traçado por Moutinho (1995, pp. 76-78).

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da “objetivação, decomposição do exteriores ao conteúdo que


psíquico e posterior estabeleci- animam. (...) Vemos agora
mento de relações de exterioridade o que é a consciência para o
entre os elementos decompostos” associacionismo: é simples-
(MOUTINHO, 1995, p. 87) tal mente o mundo das coisas.
como aparecem no pensamento Não existe, na realidade, se-
de Hume 22 . Tacitamente, a lei- não um mundo de exteriori-
tura sartreana da teoria humini- dade, que é o mundo exte-
ana da imagem revela, tout court, rior. Entre esta esfera verme-
uma consciência tornada coisa a lha e a percepção desta esfera
partir das leis associacionistas que não há diferença. (...) Tendo
identificam os modos de ser do estabelecido que os elemen-
psíquico com os modos de ser da tos da consciência são natu-
coisa, donde se segue a coisificação rezas passivas, ele aplicou o
da consciência a partir da inércia e princípio de inércia ao do-
da passividade. Sobre o associacio- mínio psíquico e reduziu a
nismo de Hume, Sartre argumenta: consciência a uma coleção de
conteúdos inertes ligados por
meio de relações de exterio-
Em realidade, a posição de
ridade (SARTRE, 1973, pp.
conteúdos de conteúdos sen-
93-94).
síveis transporta-nos para
um mundo de exterioridade
pura, isto é, para um mundo Em oposição ao métier filosófico
em que conteúdos inertes são de Hume (também àquele da psi-
determinados nos seus mo- cologia positivista, na medida em
dos de aparição por outros que esta mantém perene tais dou-
conteúdos igualmente iner- trinas metafísicas), Sartre reclama
tes, um mundo aonde to- uma psicologia “sintética” que
das as mudanças, todas as afirme - como inexorável à cons-
impulsões vêm do exterior e ciência - a espontaneidade. De
permanecem profundamente posse desta perspectiva fenomeno-

22 Ainda segundo Moutinho (1995, p. 87), é esta “espontaneidade sistematizadora” – elemento fundamental de
uma psicologia que se pretenda fenomenológica – que distingue as críticas de Sartre e de Husserl à teoria de Hume.
Segundo o comentador, a crítica husserliana apontou no pensamento do filósofo escocês uma ausência de subjeti-
vidade “que, desdobrada, redundou na subjetividade transcendental” . As ressalvas de Husserl não parecem exigir
uma “espontaneidade sistematizadora” tal como esta é reclamada por Sartre. Na verdade, o que o fenomenólogo
alemão censura em Hume é a ausência de mathesis, de um verdadeiro fundamento último em sua teoria do conhe-
cimento. Logo, o que se estabelece aqui - diferente de Sartre - é uma crítica da razão, da atitude natural da filosofia
de Hume que desconhece a intencionalidade da consciência. Para maiores esclarecimentos sobre a maneira pela
qual Husserl e Sartre abordam a démarche da teoria huminiana, sugerimos avidamente a leitura do capítulo 3,
“Fenômeno e Significado” da já referida obra de Moutinho.

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PSICOLOGIA FENOMENOLÓGICA DA IMAGINAÇÃO EM SARTRE: A EIDÉTICA DA IMAGEM

lógica, faz-se necessário assumir ciência indutiva” (SARTRE, 1973,


que a consciência é “organização” p. 101).
, “sistematização” onde o escoa- Esta psicologia de experiência,
mento dos fatos psíquicos é regido sob a rubrica da fenomenologia,
por “temas diretores” pelos quais trará diante de nós “um tipo de ex-
“a imagem não pode mais ser as- periência privilegiada” que nos co-
similada a um conteúdo de opa- locará “imediatamente em contato
cidade receptiva” (SARTRE, 1973, com a lei” . A lei, por sua vez,
p. 95). A imagem, enleada pela não será senão o eidos (até então au-
nova filosofia de Husserl, será uma sente de La transcendance de l’Ego)
realidade psíquica certa não po- dos fatos psíquicos que interroga-
dendo, de modo algum, constituir- mos. Grosso modo, para que pos-
se a partir de uma base de con- samos nos afastar das psicologias
teúdo sensível. Doravante, se se al- indutivas, a ideia de essência é fun-
meja elaborar uma “psicologia de damental aqui.
experiência” sem que, com isso,
caíamos nos imbróglios da ciência
“O grande acontecimento da
indutiva, em outras palavras, no
filosofia” : a revolução da psico-
erro da indução que, através dos
logia a partir da fenomenologia
fatos, estabelece as leis, deveremos
de Husserl
recorrer ao itinerário fenomenoló-
gico tal como ele se configura em Sendo a fenomenologia a
Husserl. Sob a perspectiva de uma “ciência da consciência transcen-
eidética da imagem que deve fi- dental pura” , ela difere no que diz
xar e descrever a essência desta respeito aos estudos da consciência
estrutura psicológica tal como ela humana operados pela psicologia,
aparece à intuição reflexiva, Sar- ciência que permanece ancorada à
tre insistirá na “característica da atitude natural, “a psicologia, para
experiência da intuição das essên- Husserl, continua sendo, como a
cias como se a psicologia, na di- física ou a astronomia, ‘uma ci-
ferença com a fenomenologia, se ência da atitude natural’, isto é,
destacasse não a um ‘empirismo uma ciência que implica um rea-
transcendental’ mas aquilo que po- lismo natural” (SARTRE, 1973, p.
deríamos chamar de um empi- 103). Já a fenomenologia, como
rismo eidético” (CABESTAN, 2004, havíamos sumariamente esboçado
p. 35) na medida em que “seria alguns parágrafos acima, começa
possível constituir uma psicologia quando colocamos entre parên-
que, permanecendo uma psicolo- teses o mundo da atitude natu-
gia da experiência, não seria uma ral, quando operamos a redução
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(epokhé). A redução, ao afastar-nos experimentar; “e isso só sabere-


da atitude natural, coloca o feno- mos por meio de uma descrição de
menólogo em contanto com “as es- essência” (MOUTINHO, 1995, p.
truturas da consciência transcen- 99). Dirá Sartre:
dental fundada sobre a intuição
das essências dessas estruturas” Não será possível, porém,
(SARTRE, 1973, p. 103), a des- perguntar primeiramente e
crição de tais estruturas operar-se- antes de qualquer recurso às
á exclusivamente no plano da re- experiências (quer se trate
flexão que buscará, por seu turno, de introspecção experimental
apreender as essências, “isto é, ela ou de qualquer outro proce-
começa por se colocar, logo de iní- dimento) o que é uma ima-
cio, no terreno do universal” (SAR- gem? Esse elemento tão
TRE, 1973, p. 103). Tal como a fe- importante da vida psíquica
nomenologia que, reflexivamente terá uma estrutura essencial
se coloca no plano do universal, acessível à intuição e que
do mesmo modo o fará o psicó- possa ser fixada por meio de
logo na diferença de que a psico- palavras e conceitos? Ha-
logia continuará a ser uma ciência verá afirmações inconciliá-
da atitude natural; “entretanto, da veis com a estrutura da ima-
mesma maneira, procurará ‘apre- gem? etc., etc. Em uma pa-
ender as essências’ e proceder a lavra, a psicologia é um em-
uma ‘descrição eidética’” (MOU- pirismo que procura ainda
TINHO, 1995, p. 98). Em uma os seus princípios eidéticos
palavra, “o que vale para o fe- (SARTRE, 1973, p. 104).
nomenólogo vale também para
o psicólogo” (SARTRE, 1973, p. A psicologia fenomenológica, já
104). Nesta toada, caso a psicolo- ressaltada por nós nos preâmbulos
gia queira vislumbrar progressos deste capítulo, será um saber que,
maiores, estes só serão possíveis no plano intramundano, fixará e
na medida em que, renunciando a descreverá as essências tal como
se embaraçar com as “experiências o faz a fenomenologia no plano
ambíguas e contraditórias” , come- transcendental; eis-nos, pois, di-
çar a apreender as estruturas es- ante do métier desta nova psicolo-
sências do objeto de suas investi- gia: a fixação e a descrição das essên-
gações. Logo, antes de partir da cias dos fatos da consciência. Dora-
experimentação e da indução, con- vante, para que haja conhecimento
vém ao psicólogo saber o máximo possível acerca da imagem, caberá
possível sobre aquilo que ele irá a este novo saber constituir uma
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eidética da imagem ao descrever a Para que possamos explicitar o


essência dessa estrutura psíquica. fundamento da atividade inten-
Ademais, o conceito fundamental cional da consciência e, em con-
da intencionalidade – estrutura es- tra partida, da consciência imagi-
sencial de toda consciência – apa- nante, tomemos o exemplo apre-
rece aqui como um dos elementos sentado pelo filósofo. Tal percurso
necessários para que se leve a um mostra-se necessário aqui na me-
bom termo a renovação da ima- dida em que, é na intencionali-
gem. Este fundamento, operando dade husserliana, que Sartre loca-
a distinção radical entre a consci- liza a inédita teoria acerca da ima-
ência e aquilo que se tem consci- gem. Em primeiro lugar, Husserl,
ência, acaba (e nós já o vimos à de acordo com Sartre, jamais ne-
exaustão) por eliminar todo e qual- gou a existência dos dados visu-
quer resquício de conteúdos dentro ais ou tácteis que “fazem parte da
da consciência, o X qualquer está, consciência como elementos subje-
por princípio fora da consciência, tivos imanentes” (SARTRE, 1973,
é transcendente: assim valerá tam- p. 105). Tomemos a impressão vi-
bém para o X da consciência imagi- sual do vermelho. Esta impressão,
nante. Em oposição à intencionali- que faz parte de minha consciên-
dade fenomenológica, a psicologia cia atual, não é o vermelho na me-
das coisas: dida em que tal cor é uma quali-
dade transcendente do objeto. Tal
impressão subjetiva é análoga ao
(...) partindo da fórmula vermelho da coisa transcendente,
ambígua ‘o mundo é a nossa “não é senão um ‘quase vermelho’:
representação’, faz com que isto é, é a matéria subjetiva, a hylé
se desvaneça a árvore que sobre a qual se aplica a intenção
percebo em uma miríade que se transcende e procura atin-
de sensações, de impressões gir o vermelho que está fora dela”
coloridas, tácteis, térmicas, (SARTRE, 1973, p. 106). Nota-
etc., que são ‘representações’. se que no caso da imagem mental,
De sorte que, finalmente, a a imagem também será a imagem
árvore aparece como uma de alguma coisa, ou seja, achamo-
soma de conteúdos subjeti- nos diante de uma “relação inten-
vos e é ela própria um fenô- cional de uma certa consciência a
meno subjetivo. Ao contrá- um certo objeto” . (SARTRE, 1973,
rio, Husserl começa por co- p. 106). Isso significa, finalmente,
locar a árvore fora de nós que a imagem deixa de estar na
(SARTRE, 1973, p. 105). consciência como elemento cons-

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tituinte, para figurar então como através de uma intenção absoluta-


um X em imagem: mente específica da consciência, ou
seja, ela é visada através da atitude
imaginante cuja “ação constitui a
Husserl, como em uma per- imagem enquanto tal, na medida
cepção, distinguirá uma in- em que atribui a ela o significado
tenção imaginante e uma de imagem e não de percepção”
hylé que a intenção vem (PAIVA, 2005, p. 123). Nota-se que
“animar” . A hylé, natural- a imagem passa a ser uma estru-
mente, continua subjetiva, tura intencional, deixando de ser
mas, ao mesmo tempo, o ob- mero conteúdo inerte de consciên-
jeto da imagem, destacado do cia e advindo como “consciência
puro “conteúdo” , situa-se una e sintética em relação com
fora da consciência como al- um objeto transcendente” (SAR-
guma coisa radicalmente di- TRE, 1973, p. 106). A apreensão
ferente (SARTRE, 1973, p. do objeto em imagem opera uma
106). atitude imaginante da consciência
e, “nessa perspectiva, a imagem
Opondo-se às teorias clássicas da (...) não sinonimiza com resíduos
imagem, Husserl (pelo menos em da percepção, antes presentifica-
um primeiro momento), estabelece se como uma forma singular de
uma entre imagem externa e per- consciência que inaugura uma ma-
cepção através das intenções e não neira original de se relacionar com
através das matérias. Para ele, a o objeto” (PAIVA, 2005, p. 124).
imagem é uma certa maneira de Podemos compreender agora que
animar intencionalmente um con- a imagem e a percepção são dois
teúdo hilético. Já aqui averigua- vividos intencionais que diferem
mos que, embora a hylé não tenha por suas intenções: a imagem do X
sido negada “tem-se a impressão qualquer é uma outra maneira que
de que ela deixa de ser essencial, a consciência intencional possui de
de que ela cessa de participar da se relacionar com ele, de apreendê-
essência mais pura do imaginar” lo, não mais como simulacro, mas
23
(FLAJOLIET, 2002, p. 130). Logo, agora como objeto em imagem .
na leitura que Sartre realiza de Diante deste fato: em oposição ao
Husserl, a imagem é apreendida psicologismo que separa radical-

23 “A imagem de meu amigo Pedro não é uma vaga fosforescência, um rastro deixado em minha consciência pela
percepção de Pedro: é uma forma de consciência organizada que se relaciona, à sua maneira, a meu amigo Pedro. É
uma das maneiras possíveis de visitar o ser real de Pedro. Assim, no ato de imaginação, a consciência se relaciona
diretamente a Pedro e não por intermédio de um simulacro que estaria nela” (SARTRE, 1973, p. 106).

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PSICOLOGIA FENOMENOLÓGICA DA IMAGINAÇÃO EM SARTRE: A EIDÉTICA DA IMAGEM

mente a imagem da consciência mostrar-se-ia vítima da ilusão me-


de imagem, “A Imaginação afirma, tafísica na medida em que:
a partir de Ideias I, a unidade da
consciência imaginante que é uma (...) repete essa mesma
certa maneira de animar intenci- concepção para o caso da
onalmente um conteúdo hilético imagem mental: parece que
(hylétique). (CABESTAN, 2004, p. agora a distinção não pode
101) estar apenas na ‘estrutura
Todavia, ainda que Husserl te- intencional’, ou, por outra,
nha desatado o nó que figurava parece que agora a iden-
na confusão entre objeto percep- tificação das matérias não
tivo e objeto em imagem (ima- pode ser feita, a menos que
gem mental), ainda que ele tenha eu acredite poder animar
libertado o mundo psíquico dos uma hylé ‘como percepção
grilhões de “um peso grande” , ou imagem a meu bel-prazer’
ainda que a imagem tenha se tor- (...) Será necessário afirmar,
nado, depois da fenomenologia, portanto, para além da di-
uma certa maneira de animar um ferença das intenções, a di-
conteúdo hilético, por conseguinte, ferença das matérias, e isso
desvencilhando-nos do quiproquó aparentemente contra Hus-
entre objeto da percepção e ob- serl (MOUTINHO, 1995, p.
jeto da imaginação, Husserl parece 123).
ainda “prisioneiro da antiga con-
cepção, pelo menos no que diz res- Se assim é, vejamos com mais deta-
peito à hylé da imagem, que con- lhes o porquê desta crítica de Sar-
tinuaria sendo para ele a impres- tre ao mestre alemão. Procuremos
são sensível renascente” (SARTRE, precisar, positivamente, a matéria
1973, p. 108). Portanto, na teo- da imagem em estrita oposição à
ria husserliana da imagem, é como matéria da percepção.
se se tratasse de intenções diferen-
tes animando uma mesma matéria, A crítica sartreana à hylé (maté-
isto é, “como se se bastasse a in- ria) husserliana
tenção para diferir ‘carne e osso’ Observamos que na teoria hus-
de ‘ficção’” (MOUTINHO, 1995, serliana da imagem, o que difere
p. 122). Por mais que a distinção a imagem da percepção da ima-
entre imagem mental e percepção gem da imaginação é a estrutura
já não passe mais pela intensidade intencional de animação da hylé,
humiana ou pela teoria dos redu- “tudo depende do modo de ani-
tores de Taine, Husserl, contudo, mação dessa matéria, isto é, de
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ISSN: 2317-9570
GUSTAVO FUJIWARA

uma forma que nasce nas estrutu- são dois vividos intencionais que
ras mais íntimas da consciência” diferem por suas intenções, mas
(SARTRE, 1973, p. 107). Sobre a cuja matéria impressional conti-
tese da matéria da imagem men- nua idêntica. Ainda que a passagem
tal, da distinção entre percepção e
“mereça ficar como clássica” por
imagem, lemos: desembaraçar-nos das teses psico-
lógicas24 , para o filósofo francês,
Consideremos a água-forte as linhas negras da gravura de Du-
de Durer, O Cavaleiro, a rer servem tanto para a constitui-
Morte e o Diabo. Distin- ção da imagem do cavaleiro como
guiremos em primeiro lu- para a percepção dos traços negros
gar aqui a percepção nor- sobre uma folha branca. Todavia,
mal, da qual o correlativo valerá isso também para a imagem
é a coisa “gravura” , esta mental? Aqui, o autor parece suge-
folha em branco. Em se- rir que a imagem mental poderia
gundo lugar, encontramos não ter mais a mesma hylé da per-
a consciência perceptiva, na cepção: “Terá ela (a imagem men-
qual, através destas linhas tal) a mesma hylé que a imagem
negras, pequenas figuras in- externa, isto é, em última instân-
colores, “cavaleiro a cavalo” cia, que a percepção?” (SARTRE,
, “morte” , “diabo” , nos apa- 1973, p. 108). Donde se segue o
recem. Não somos, na con- questionamento de Sartre: “Mas de
templação estética, dirigidos que natureza é a intenção da ima-
para elas enquanto objetos: gem? Em que difere da intenção
somos dirigidos para as re- da percepção?” (SARTRE, 1973,
alidades que são representa- p. 108). Mais claramente: qual
das “em imagem” , mais exa- a intenção que permite o discer-
tamente, para as realidades nimento entre a imagem oriunda
“imagificadas” (abgebildt), o da percepção e a imagem apreen-
cavaleiro de carne e osso, etc dida pela consciência imaginante?
(HUSSERL apud SARTRE, Ou seja, Husserl teria assimilado
1973, p. 107). verdadeiramente a consciência do
quadro (imagem material) e a ima-
Do exemplo, tiramos a conclusão gem livre (imagem mental)?: “(...)
de que a imagem e a percepção na realidade, se a imagem não é

24 “Esta interpretação tem por vantagem, nota Sartre, de sair das dificuldades inerentes ao psicologismo que, con-
traditoriamente, separa os diferentes tipos de imagens (ela são mentais ou materiais), e as identifica (as imagens
psíquicas são tipos de imagens materiais em nós e as imagens físicas imprimem-se em nós como imagens mentais)”
(FLAJOLIET, 2002, p. 137).

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PSICOLOGIA FENOMENOLÓGICA DA IMAGINAÇÃO EM SARTRE: A EIDÉTICA DA IMAGEM

senão um nome para uma certa matéria impressional concreta e


maneira que tem a consciência de que ela é um pleno, tal como o é
visar seu objeto, nada impede de a percepção” (SARTRE, 1973, p.
reaproximar as imagens matérias 108). Para Cabestan:
(quadros, desenhos, fotos) das ima-
gens ditas psíquicas” (SARTRE,
(...) pensar a imaginação
1973, p. 107). Se se segue atra-
e a percepção como preen-
vés desta teoria, a hylé que apreen-
chimento, e afirmar a igual
demos para constituir a “aparição
plenitude da imaginação e
estética” das figuras do quadro é a
da percepção não é de todo
mesma presente na percepção da
sem perigo. Tal pressu-
“folha do álbum” ; “a diferença
posto acaba por reconhe-
se acha na estrutura intencional”
cer, com efeito, na imagina-
(SARTRE, 1973, p. 107). Dora-
ção uma matéria impressio-
vante, a imagem e a percepção são
nal concreta idêntica àquela
dois vividos intencionais que se di-
da percepção (...). Nós
ferenciam tão somente por suas in-
nos aproximamos, com isso,
tenções.
perigosamente da tese clás-
Almejando uma possível solu-
sica da “impressão sensí-
ção para o problema (a distinção
vel renascente” . Certa-
entre imagem e percepção), Sar-
mente a hylé da imaginação
tre dirige-se às Investigações Lógi-
e aquela da percepção não
cas de Husserl, “mais precisamente
são ainda idênticas numeri-
à tese da transformação de uma
camente, mas já o são espe-
consciência significante ou vazia
cificamente. E, portanto, a
em uma consciência intuitiva atra-
imaginação não pode preten-
vés de seu preenchimento seja da
der “preencher” do mesmo
imagem seja da percepção” (CA-
modo a consciência vazia de
BESTAN, 2004, p. 102). Na refe-
significação. Ver uma coto-
rida obra, o filósofo alemão, sob a
via não é imaginá-la: não
ótica da leitura sartreana, explica
somente as intenções diferem
que a imagem tem a função de
mas também a matéria (CA-
“preencher” os saberes vazios tais
BESTAN, 2004, p. 102).
como fazem os objetos da percep-
ção. Ora, toda a inquietação por Para Sartre, esta indiferença de
parte de Sartre parece residir no preenchimento não nos autoriza
fato de que “esse preenchimento a incluir a imaginação na medida
da significação pela imagem parece em que tal preenchimento da sig-
indicar que a imagem possui uma nificação pela imagem acaba por
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ISSN: 2317-9570
GUSTAVO FUJIWARA

indicar que esta possui uma maté- ais ou, numa direção oposta,
ria impressional tal qual àquela da para o noema, por exem-
percepção. Ainda sem respostas, plo, a árvore percebida en-
o autor de A Imaginação encontra- quanto tal. O que encontra
se com dificuldades para diferen- no olhar nessa última dire-
ciar a imagem mental da percep- ção é, na verdade, um objeto
ção se é verdade, como fora dito, no sentido lógico, mas um
que Husserl lhes conserva a mesma objeto que não poderia exis-
matéria. Ratificando tal problemá- tir por si. Seu “esse” con-
tica, Sartre chama a atenção para siste exclusivamente no seu
o fato de que quando operamos a “percipi” . Mas essa fór-
redução, “parece-nos muito difí- mula não deve ser tomada
cil distinguir por sua intenciona- no sentido berkeleyano, uma
lidade imagem e percepção, se for vez que o “percipe” não con-
a mesma a sua matéria” (SARTRE, tém aqui o “esse” como ele-
1973, p. 108). Ou seja, a redução mento real (HUSSERL apud
fenomenológica, tendo colocado o Sartre, 1973, p. 109).
mundo entre parênteses, acaba por
distinguir os elementos reais – a As noeses são, com efeito, princi-
hylé e os variados atos intencio- pais e essenciais no processo de
nais que a animam – e o “sentido” constituição do sentido da obje-
que essa consciência tem. De um tividade “animando a matéria e
lado, a noese, realidade psíquica, se combinando em sistemas contí-
do outro o sentido, noema, que nuos e em sínteses unificadoras do
vem habitá-la. A “‘árvore-em-flor- diverso (...) instituem a consciên-
percebida’ é o noema da percepção cia de qualquer coisa” (HUSSERL
que tenho neste momento. Mas apud FLAJOLIET, 2002, p. 150).
esse ‘sentido noemático’ que per- Logo, Sartre tem toda a razão ao in-
tence a cada consciência real não dicar que o sentido da objetividade
é em si mesmo nada de real” (SAR- constituída é um irreal, um “nada
TRE, 1973, p. 109). O esquema de real” . Todavia, para que possa-
noema/noese em Husserl dá-se da mos compreender a censura tecida
seguinte forma: aqui em relação a este ponto, é im-
portante que explicitemos o sen-
Cada “Erlebnis” é feita de tal tido tanto do noema como da no-
forma que existe uma pos- ese na obra de Husserl. Em Ideias,
sibilidade, em princípio, de Husserl tratará a fenomenologia
dirigir o olhar para ela e com um novo conceito de fenô-
para os seus componentes re- meno, o noema deverá se reportar
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PSICOLOGIA FENOMENOLÓGICA DA IMAGINAÇÃO EM SARTRE: A EIDÉTICA DA IMAGEM

aos fenômenos no sentido “ôntico” além do X idêntico e va-


da palavra, ou seja, fenômenos que zio de seus modos subjeti-
não são partes reais da consciência, vos de doação, o objeto é, ele
fenômenos dados segundo os mo- mesmo, “subjetivo” . Em re-
dos subjetivos de doação. Tal con- gime de redução fenomenoló-
ceito, segundo Moura (2006, pp. gica é o próprio mundo que
21-22), será fundamental para que se torna subjetivo. E en-
a fenomenologia fale em um a pri- quanto tal esse mundo per-
ori da correlação entre consciên- tence à região da consciên-
cia e objeto. Entrementes, por não cia. É apenas na orienta-
ser parte real da consciência, o no- ção natural que a subjetivi-
ema afirma seu aspecto subjetivo, dade mundana ou psicoló-
ou seja, “em regime de redução fe- gica, aquela inaugurada por
nomenológica é o próprio mundo Descartes, se apresenta como
que se torna subjetivo” (MOURA, um interior ao qual se opõe
2006, p. 22). Como meio ideal pelo um exterior. A subjetividade
qual a realidade se oferece a cons- “transcendental” , ao con-
ciência, o noema acentua o modo trário, é aquela que inclui em
subjetivo de doação, ele acentua si mesma o seu “mundo” ,
a esfera normativa que regula e ela não tem mais nada que
dá sentido aos objetos mundanos. lhe seja exterior (MOURA,
Neste sentido, a árvore pura e sim- 2006, p. 22).
ples pode queimar, dissolver-se em
elementos químicos, já o sentido Esta nova noção de fenômeno, ori-
desta percepção não pode queimar, entada a partir da aparição do no-
e tampouco possuí elementos quí- ema, pode ser interpretada como a
micos, propriedades reais: síntese das variações eidéticas, ele
se reporta a uma instância trans-
É graças à introdução da no- cendental completamente livre do
ção de noema que a fenome- domínio empírico, este fenômeno
nologia poderá falar em um “recebe” sentido a partir de um ou
“a priori da correlação” en- outro modo subjetivo de doação,
tre consciência e objeto, essa sentido que só se entrega através
certeza de que toda cons- de uma esfera normativa pura, per-
ciência é sempre consciên- manecendo independente de suas
cia de um objeto, e de que qualificações. Se o noema figura
todo objeto é sempre objeto o a priori da correlação, o objeto
para uma consciência. E transcendente é, como lemos no
como esse objeto não é nada excerto acima, sempre subjetivo e
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GUSTAVO FUJIWARA

vazio. Doravante, o noema é um parte alguma, nem em mim,


“nada que não tem senão uma exis- nem fora de mim. Agora,
tência ideal, um tipo de existência a coisa árvore foi posta en-
que se aproxima do tipo de lektón tre parênteses, não a conhe-
estóico” (SARTRE, 1973, p. 109). cemos mais senão como o
A partir de uma tal leitura, parece noema de nossa percepção
que tanto o noema da imagem per- atual; e, como tal, este no-
ceptiva como o noema da imagem ema é um irreal, assim como
mental, remete-nos e coincidem o centauro (SARTRE, 1973,
em sua irrealidade, em sua inexis- p. 109).
tência material real. Ora, como en-
tão, uma vez a redução em curso, Entrementes, a crítica de Sartre in-
poderemos diferenciar o centauro dica, através deste fragmento, a
que imagino da árvore em flor que insuficiência e o pouco esclareci-
percebo; dado que o centauro é mento a despeito da constituição
também o noema de uma consci- das noeses que animam a hylé em
ência noética (um objeto ideal e cada tipo de sentido noemático (a
irreal da consciência transcenden- percepção e a imaginação). Logo,
tal)? N’outros termos, como dife- é necessário encontrar os meca-
renciar a imagem da percepção da nismos fenomenológicos capazes
imagem mental, se é verdade que de engendrar uma imagem men-
ambas, operada a redução, são no- tal distinta daquela em que a ma-
emas, logo, um nada? Percebe-se téria a informa como percepção.
que a quimera imaginada: Se Husserl, como assinala Sartre,
tende à afirmação de que as no-
(...) é nada, também ele não eses são indiferentes às matérias
existe em lugar nenhum: nós que elas animam, a questão da mo-
o vimos há pouco. Somente, tivação através da qual a consciên-
antes da redução, encontrá- cia “decide” , por exemplo, a apre-
vamos neste nada mesmo um ender um X perceptivo ou um X
meio para distinguir a fic- imaginativo, é aqui colocado em
ção da percepção: a árvore jogo. Posso, nesta senda, animar
em flor existia em algum lu- a meu bel-prazer uma matéria im-
gar fora de nós, podíamos pressional como percepção ou ima-
tocá-la, estreitá-la, virar-lhe gem? Todavia, o que significará,
as costas e depois, dando novamente, imagem e coisa perce-
meio volta, reencontrá-la no bida? Por que “minha consciência
mesmo lugar. O centauro, intenciona uma matéria em ima-
ao contrário, não estava em gem ao invés de fazê-lo em percep-
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ISSN: 2317-9570
PSICOLOGIA FENOMENOLÓGICA DA IMAGINAÇÃO EM SARTRE: A EIDÉTICA DA IMAGEM

ção? Esse problema se refere ao neira a consciência vazia de sig-


que Husserl chama de motivações” nificação, afinal, ver uma cotovia
, logo “(...) como encontrar mo- de “carne e osso” é diferente de
tivos para informar uma matéria imaginá-la: não somente as inten-
em imagem mental de preferência ções diferem, mas também a maté-
a informa-la em percepção?” (SAR- ria.
TRE, 1973, p. 110). Se as maté- Almejando um critério fenome-
rias da percepção e da imaginação nológico mais rígido que possa dis-
possuem a mesma natureza, pa- tinguir a percepção da imagina-
rece correto afirmar a inexistência ção, o filósofo francês atesta que
de um motivo válido para o pro- há, talvez, no pensamento de Hus-
blema esboçado acima 25 . Na es- serl, “uma aparência de resposta” .
teira da crítica de Sartre à teoria Vejamo-la. Apropriando-se de cer-
da consciência imaginante do fi- tas passagens das Ideias e das Medi-
lósofo alemão, somos informados tações cartesianas, Sartre inicia uma
de que a imagem mental (Phan- solução plausível a partir da distin-
tasie) equaliza-se com a imagem ção entre síntese passiva e síntese
perceptiva (imagem material, ou ativa. A partir desses dois elemen-
Bildbewusstsein), uma vez que am- tos, duas vias se oferecem a nós;
bas possuem o mesmo núcleo noe- “de início a via clássica pela qual
mático, ou seja, este sentido subje- a Phantasie seria uma síntese ativa
tivo que anima a noese. Doravante, de uma matéria passiva, ou seja, de
pensar a imaginação e a percepção impressões sensíveis renascentes”
como preenchimento, logo, afir- (CABESTAN, 2004, p. 105); via
mar a igual plenitude entre ambas esta que Sartre recusa desde o iní-
é, ao que parece, um equívoco, pois cio. Já a segunda, abandonando
tal afirmação, com efeito, reco- a identificação entre percepção e
nhece na imaginação uma matéria imaginação, leva-nos a uma ma-
impressional concreta idêntica a da téria radicalmente diferente entre
percepção. Operando nestes ter- uma e outra, de sorte que a cons-
mos, Husserl parece aproximar-se ciência imaginante “não seria mais
da tese clássica da impressão sen- síntese ativa de uma matéria pas-
sível renascente. Tal como entende siva, mas uma consciência que se-
Sartre, a imaginação não pode pre- ria de ponta a ponta espontanei-
tender preencher da mesma ma- dade, e na qual a matéria, por con-

25 “A imagem aqui parece possuir uma ‘matéria impressional concreta’, ser um cheio, como a percepção. Se isso
é admitido, o problema se agravará ainda mais depois de operada a redução fenomenológica: com ela, surgirão
dificuldades que tornarão a distinção entre imagem mental e percepção ainda mais difícil” (MOUTINHO, 1995, p.
121).

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ISSN: 2317-9570
GUSTAVO FUJIWARA

sequência, seria ‘uma espontanei- a partir da espontaneidade degra-


dade, mas uma espontaneidade de dada da consciência imaginante.
tipo inferior’” (CABESTAN, 2004, A passagem citada acima sugere
p. 106). Deste modo, para o filó- que uma diferença nítida separa
sofo: a matéria da percepção (que vem
da simples exterioridade inerte) da
matéria da imagem mental (espon-
(...) podemos pensar que taneidade degradada, inferior): di-
a matéria impressional da ferença esta amparada pelo movi-
percepção é incompatível mento de transcendência da cons-
com o modo intencional da ciência em direção ao X qual-
imagem-ficção. (...) a distin- quer. Mas, como podemos en-
ção entre imagem mental e tender esta espontaneidade degra-
percepção não poderia proce- dada? Como conciliar matéria
der unicamente da intencio- e espontaneidade? Em que con-
nalidade: é necessário, mas siste, não obstante, esta matéria
não suficiente, que as inten- da imagem mental se ela é, como
ções difiram, é preciso tam- esboça Sartre, diferente da ma-
bém que as matérias sejam téria impressional da percepção?
dessemelhantes. Talvez seja Se o presente ensaio não nos ofe-
até preciso que a matéria da rece ainda os subsídios teóricos
imagem seja, ela própria, es- necessários para o completo en-
pontaneidade, mas uma es- tendimento desta expressão, vere-
pontaneidade de tipo inferior mos que em L’Imaginaire – parte
(SARTRE, 1973, p. 111, “científica” -, Sartre referir-se-á à
grifo nosso). hylé, quando animada por uma in-
tenção imaginante, como um ana-
Nota-se que o filósofo almeja pos- logon, um equivalente da percep-
tular uma diferença de essência en- ção: mas essa é uma outra histó-
tre a matéria da imagem mental ria e fica, portanto, para uma outra
e a matéria da imagem material oportunidade.

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ISSN: 2317-9570
PSICOLOGIA FENOMENOLÓGICA DA IMAGINAÇÃO EM SARTRE: A EIDÉTICA DA IMAGEM

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Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.6, n.1, jul. 2018, p. 343-377 377
ISSN: 2317-9570
Reconciliação com a História: Foucault do
Estruturalismo ao Pós-Estruturalismo

[Reconciliation with History: Foucault from Structuralism to Posts-


tructuralism]

Leonardo Masaro *

Resumo: Desde a década de 1980, convencionou-se rotular Foucault,


bem como outros pensadores franceses contemporâneos, de “pós-
estruturalista” . Neste artigo, indaga-se em que medida tal epíteto faz
sentido, buscando compreender até que ponto a noção foucaultiana
de epistémê é tributária da noção de estrutura. Para tanto, investiga-
se a invenção da noção de estrutura por Saussure; sua transformação,
por Lévi-Strauss, em conceito epistemológico; e sua utilização, por
Foucault de As Palavras e as Coisas, em modelo para a noção de epis-
témê. Neste processo, fica clara uma transformação deste conceito: a
ideia de estrutura enquanto sistema transcendental formado por opo-
sições binárias, presente em Saussure e Lévi-Strauss, é substituída em
Foucault pela noção de uma forma a priori “vazia” , isto é, sem pré-
determinantes. A mudança diacrônica é concebida por Foucault como
um acontecimento radical. Argumenta-se que a fase seguinte da obra
do filósofo, conhecida como “genealogia do poder” , ao voltar-se sobre
a intervenção humana sobre os discursos, corresponde a uma tenta-
tiva de re-inserir a dimensão histórica nos estudos do saber. Neste
sentido, mesmo adotando a ideia-mestra do estruturalismo, Foucault
vai além dele.
Palavras-chave: Foucault. Estruturalismo. Pós-estruturalismo. Ar-
queologia do Saber. Genealogia do Poder.

* Doutor em Filosofia pela USP. Mestre em Sociologia pela UNICAMP. E-mail: leonardomasaro@gmail.com

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.6, n.1, jul. 2018, p. 379-400 379
ISSN: 2317-9570
LEONARDO MASARO

Abstract: During the 1980s, it became common to name Foucault,


and other contemporary french thinkers, as “poststructuralists” . In
this paper, it is asked if, and to which extent, such labelling makes
sense. For such, the relation between Foucault´s concept of epistémê
and the notion of structure is investigated. The invention of the
concept of structure by Saussure; its transformation, by Lévi-Strauss,
into an epistemological concepct; and its use, by Foucault, in Words
and Things, as a model to his notion of epistémê are traced. In this
process, it becomes clear a conceptual transformation: the idea of
structure as a transcendental system composed of binary oppositions,
present in Saussure and Lévi-Strauss, is substituted, in Foucault,
for the idea of an “empty” a priori form, that is, a form without
any pre-determination. Diacronic change is conceived, by Foucault,
as a radical event. It is argued that Foucault´s next intellectual
phase, commonly known as “genealogy of power” , as it focuses on
human agency upon the discourse, stands as a way of reinserting the
historical dimension into the study of knowledge. In this sense, even
thought adopting structuralism´s main idea, Foucault surpasses it.
Keywords: Foucault. Structuralism. Poststructuralism. Archeology
of Knowledge. Genealogy of Power.

Durante os anos 1980, 1990, e “movimento intelectual” , e ideias


2000, esteve em voga falar de pós- semelhantes? Isto se aplica sobre-
estruturalismo. Trata-se de uma tudo ao pós-estruturalismo que, ao
designação “guarda-chuva” para contrário de seu antecessor, não
o pensamento de diversos autores é um termo autóctone, quer di-
franceses ativos sobretudo durante zer, foi proposto não pelos (su-
as décadas de 1960 a 1990 (Fou- postos) membros do “movimento
cault, Derrida, Lyotard, Baudril- intelectual” , mas por seus leitores.
lard, Lacan, etc.), que possuíam em Contudo, o epíteto “pós-
comum uma referência intelectual estruturalista” acabou por firmar-
a outro “movimento” intelectual se no mundo acadêmico durante as
francês, o estruturalismo. Como referidas décadas de 1980 a 2000,
não poderia deixar de ser, ambas apesar do amplo conhecimento da
as designações, estruturalismo e generalidade e insuficiência de tal
pós-estruturalismo, são bastante nomeação. Por exemplo: num livro
polêmicas e controversas: afinal, publicado em 2000, Michael A. Pe-
se já é temerário identificar pon- ters afirma que
tos comuns na obra de pensado-
res deste quilate, que dirá agrupá-
los sob a identidade comum de um Devemos interpretar o pós-
“grupo” , “escola de pensamento” , estruturalismo como uma
resposta especificamente fi-
380 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.6, n.1, jul. 2018, p. 379-400
ISSN: 2317-9570
RECONCILIAÇÃO COM A HISTÓRIA: FOUCAULT DO ESTRUTURALISMO AO
PÓS-ESTRUTURALISMO

losófica aos status preten- bora nominalista, é muito interes-


samente científico do estru- sante: o que indicaria o prefixo
turalismo e à sua preten- pós? Uma superação completa,
são a se transformar em um além do estruturalismo, um
uma espécie de megapara- pensamento absolutamente hete-
digma para as ciências soci- rogêneo, ou uma espécie de su-
ais, (...) criticando a me- peração conservadora, que ultra-
tafísica que lhe estava sub- passaria o estruturalismo conser-
jacente e estendendo-o em vando dele características funda-
uma série de diferentes dire- mentais? Pós-estruturalismo ou
ções, preservando, ao mesmo pós-estruturalismo? (Eis o que
tempo, os elementos centrais está em questão, por exemplo, na
da crítica que o estrutura- definição de Micheal Peters acima
lismo fazia ao sujeito hu- citada).
manista (PETERS, 2000, p. Guiados por esta questão, pre-
10). tendemos aqui analisar breve-
mente um dos autores mais
De muito ajudou à aceitação do identificados com o “pós-
termo “pós-estruturalismo” a re- estruturalismo” : Foucault. Busca-
cepção dos autores franceses a remos mostrar que a influência do
ele identificados nos EUA a par- estruturalismo na obra do “jovem
tir do início dos anos 1980, onde Foucault” , isto é, no período de
recebeu também a alcunha de As palavras e as coisas, incidirá so-
French Theory (CUSSER, 2008). bre um problema fundamental: o
No início da década de 2000, a problema da mudança histórica,
existência de uma escola filosó- ou, em termos abstratos, da pas-
fica que vinha após (e em larga sagem do tempo, entendido no es-
medida contra) o estruturalismo, truturalismo com problema da di-
mesmo se vagamente definida, já acronia. Constituinte do estrutu-
era consenso; começam então a ralismo desde seu início, a ques-
surgir livros introdutórios ao pen- tão da historicidade da(s) estru-
samento pós-estruturalista, inclu- tura(s) foi vista por muitos como
sive para o público não-acadêmico, seu ponto mais frágil. Mostrare-
como o de Catherine Belsey, Post- mos como a passagem da arqueo-
Structuralism: a very short introduc- logia do saber à genealogia do po-
tion (BELSEY, 2002). der se configura principalmente,
O termo “pós-estruturalismo” embora não exclusivamente, como
(ao contrário de French Theory) dá tentativa de solução do problema
margem a uma questão que, em- da diacronia. Para tal percorre-

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remos o seguinte trajeto: primei- permanente e universal, em todas


ramente veremos como, no seu as línguas e deduzir as leis gerais
surgimento com a Lingüística de às quais se possam referir todos os
Saussure, o estruturalismo só con- fenômenos peculiares da história”
segue pensar a modificação tem- das línguas (SAUSSURE, 1999, p.
poral da estrutura de modo está- 13). O modo como Saussure conce-
tico, por meio de cortes sincrôni- berá estas “leis gerais” é que dará
cos. Em seguida, veremos o que origem ao conceito de estrutura.
torna possível a promoção do es- Notemos, entretanto, qual a noção
truturalismo lingüístico a método de temporalidade aí subjacente: a
epistemológico por Lévi-Strauss, e estrutura linguística é algo da or-
em que medida e de que modo ele dem do “permanente e universal” .
se vê confrontado com a questão A partir disto, o objeto da lin-
da diacronia. Por fim, examinare- guística se constituirá duplicada-
mos Foucault, e mostraremos como mente: um, são as diversas línguas,
ele em certa medida absorve o mé- em suas mudanças contingentes
todo e a temática estruturalista em e influências recíprocas; outro, é
sua arqueologia do saber, porém a linguagem, enquanto estrutura
sem “resolver” o problema da pas- permanente e universal que de-
sagem histórico-temporal de uma termina as leis gerais de cada lín-
estrutura/epistémê a outra, quer gua. Saussure propõe uma teoria
dizer, sem propor uma lógica da não-correspondencionalista da lin-
sucessão histórica das epistémês; e guagem, calcada na arbitrariedade
como seu direcionamento à gene- do signo lingüístico. Para ele, um
alogia do poder visa cumprir esta signo lingüístico é uma junção ar-
função. bitrária de uma imagem acústica
(significante) a um conceito (signi-
ficado) (SAUSSURE, 1999, p. 79ss).
Saussure e o surgimento da noção
Nada há num significante que o
de estrutura
predestine a algum significado; as-
O conceito de estrutura, tal sim, por exemplo, o significante
como iria pautar o debate intelec- mar e o conceito mar se correspon-
tual francês das décadas de 1950 e dem por uma pura e arbitrária con-
60, deve seu surgimento à Lingüís- venção; de fato, o mesmo conceito
tica, disciplina criada por Saussure é expresso em francês por mer e em
e cujo principal texto, Curso de Lin- inglês por sea. Disso resulta que o
guística Geral, é de 1916. O obje- sistema dos signos da linguagem é
tivo de Saussure era “procurar as uma convenção.
forças que estão em jogo, de modo A noção de estrutura decorre di-

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PÓS-ESTRUTURALISMO

retamente desta teoria convencio- (SAUSSURE, 1999, p. 105).


nalista da linguagem. Se a rela- Uma estrutura é, pois, uma teia
ção do significante ao significado transcendental de elementos míni-
é completamente arbitrária, a es- mos relacionais opositivos, que de-
trutura da linguagem (isto é, as termina uma outra estrutura atual,
tais “leis gerais” de funcionamento na qual estes elementos mínimos
da linguagem) não deve ser pro- se configuram de uma determi-
curada nas línguas empíricas, com nada forma. A estrutura é dupla:
seus signos arbitrariamente variá- uma, virtual, na qual estão conti-
veis, mas numa dimensão outra, das todas as possibilidades de con-
“permanente e universal” , desco- figuração dos elementos mínimos;
lada dos acasos que o tempo im- outra, atual, na qual estes elemen-
prime na linguagem – uma dimen- tos adquirem uma configuração es-
são transcendental. Os desloca- pecífica própria. Na definição de
mentos de significante a signifi- Deleuze:
cado e de significante a significante
devem pois ser procurados num O todo [de elementos relaci-
terceiro1 , numa estrutura trans- onais que constitui a estru-
cendental de determinação, que é tura] não se atualiza como
essencialmente uma estrutura re- tal. O que se atualiza, aqui
lacional. e agora, são tais relações,
Assim, o que compõe a estrutura tais valores de relações, tal
da linguagem são relações entre repartição de singularidades;
elementos mínimos opositivos, os outras se atualizam alhu-
fonemas. Por meio de combinações res ou em outros momen-
e permutações fonemáticas, a lín- tos. (...) Portanto, devemos
gua se altera, e compreender a es- distinguir a estrutura total
trutura de uma língua é compreen- de um domínio como con-
der quais as combinações e permu- junto de coexistência virtual,
tações permitidas e quais as proibi- e as subestruturas que cor-
das. A estrutura é essencialmente respondem às diversas atu-
regulatória. Saussure a compara alizações do domínio (DE-
às regras um jogo de xadrez: a es- LEUZE, 1974, pág. 284).
trutura determina o que é permi-
tido e proibido ao jogador/falante Assim, por exemplo, em relação à

1 “O primeiro critério do estruturalismo é a descoberta e o reconhecimento de uma terceira ordem, de um ter-


ceiro reino: (...) para além da palavra em sua realidade e em suas partes sonoras, para além das imagens e dos
conceitos associados às palavras, o lingüista estruturalista descobre um elemento de natureza completamente di-
ferente, objeto estrutural” . (DELEUZE, 1974, pág. 273)

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linguagem, segundo Deleuze, da ordem do psiquismo inconsci-


ente. Para Saussure, “a imagem
verbal não se confunde com o pró-
não há língua total, encar- prio som, ela é psíquica, do mesmo
nando todos os fonemas e modo que o conceito que lhe está
relações fonemáticas possí- associado” (SAUSSURE, 1999, p.
veis; mas a totalidade vir- 20). Ser da ordem do psíquico não
tual da linguagem atualiza- significa ser consciente: se é ver-
se segundo direções exclu- dade que o sujeito falante é ativo2
sivas em línguas diversas, e escolhe conscientemente os sig-
cada uma encarnando cer- nos empregados num ato de fala,
tas relações, certos valores de aquele que escuta só o é limitada-
relações e certas singulari- mente, pois se ele tem consciência
dades dessa linguagem (DE- do signos em jogo naquela mensa-
LEUZE, 1974, pág. 284). gem em particular, ele é por outro
lado puramente passivo3 no que
tange à estrutura da língua, sua
Nisto consiste a distinção saussuri-
compreensão não depende de sua
ana entre língua e linguagem: esta
consciência das regras da língua.
diz respeito à estrutura enquanto
Há “uma faculdade de associa-
todo virtual; aquela, à estrutura
ção e de coordenação que se mani-
enquanto uma determinada atu-
festa desde que não se trate mais
alização particularmente configu-
de signos isolados, e que desem-
rada deste todo relacional possível.
penha o principal papel na organi-
A estrutura é um certo vazio: en-
zação da língua enquanto sistema”
quanto pura virtualidade, ela em si
(SAUSSURE, 1999, p. 21). Esta fa-
mesma nada é além de uma forma
culdade é uma estrutura psíquica
sem conteúdo fixo, um conjunto
inconsciente, uma rede categorial
de lugares variavelmente ocupá-
que precede a fala e que determina
veis num desenrolar do tempo,
e organiza suas possibilidades de
mas sem que o tempo influa sobre
combinação simbólica.
eles. Dissociada completamente
de qualquer determinação empí-
rica por si perpetrada, a estrutura As leis linguísticas desig-
é um puro transcendental. nam um nível inconsciente
No que tange ao falante, isto sig- e, neste sentido, não refle-
nifica dizer que a estrutura é algo xivo, não histórico do espí-

2 isto é, parte de um conceito em direção a uma imagem acústica. (SAUSSURE, 1999, p. 21)
3 isto é, determinadas imagens acústicas suscitam-lhe determinados conceitos (SAUSSURE, 1999, p. 21)

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PÓS-ESTRUTURALISMO

rito; este inconsciente não o estudo da língua, mas nunca du-


é o inconsciente freudiano rante o exercício de comunicação
da pulsão, do desejo em sua cotidiano.
potência de simbolização; é Portanto, a língua é algo não
mais um inconsciente kanti- da ordem privada dos indivíduos,
ano do que freudiano, um in- mas da ordem social, que coabita
consciente categorial, combi- o psiquismo inconsciente; isto é
natório. (...) Inconsciente possível porque cada língua é uma
kantiano, mais visto somente atualização determinada de uma
por sua organização, pois se estrutura transcendental compar-
trata de um sistema cate- tilhada, que determina a compre-
gorial sem referência a um ensibilidade dos signos lingüísti-
sujeito pensante (RICOUER, cos.
1997, p. 37).
Com o separar a língua e
Atentemos para esta distinção a fala, separa-se ao mesmo
saussuriana entre língua e fala: a tempo o que é social do que
língua é um transcendental trans- é individual. (...) [A lín-
individual, realizado empirica- gua] é a parte social da lin-
mente na fala de um indivíduo. Na guagem, exterior ao indiví-
língua “a parte psíquica não entra duo, que, por si só, não pode
(...) totalmente em jogo: o lado exe- nem criá-la nem modificá-la;
cutivo [ativo] fica de fora, pois sua ela não existe senão em vir-
execução jamais é feita pela massa; tude duma espécie de con-
é sempre individual e dela o indiví- trato estabelecido entre os
duo é sempre senhor; nós a chama- membros da comunidade”
remos fala (parole)” (SAUSSURE, (SAUSSURE, 1999, p. 22).
1999, p. 21). A fala é um ato in-
dividual, enquanto a língua é algo
de coletivo, um sistema comparti-
A linguagem é, pois, um fato so-
lhado por todos e que possibilita a
cial, mas não um fato empírico, e
expressão por meio da fala. “A lín-
sim transcendental:
gua não constitui uma função do
falante: é o produto que o indiví-
duo registra passivamente; não su- Sendo a língua uma insti-
põe jamais premeditação, e a refle- tuição social, pode-se pensar
xão nela intervém somente para a a priori que ela esteja regu-
atividade de classificação” (SAUS- lada por prescrições análo-
SURE, 1999, p. 22), ou seja, para gas às que regem as coleti-
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vidades. Ora, toda lei so- 96). Os falantes não possuem di-
cial apresenta duas caracte- mensão da historicidade da língua:
rísticas fundamentais: é im-
perativa e é geral; impõe-se
para o indivíduo falante, a
e se estende a todos os ca-
sucessão dos fatos da lín-
sos, dentro de certos limites
gua no tempo não existe: ele
de tempo e lugar, bem enten-
se acha diante de um es-
dido (SAUSSURE, 1999, p.
tado. Também o lingüista
107).
que queira compreender esse
estado deve fazer tábula rasa
de tudo quanto produziu e
A questão da diacronia ignorar a diacronia. Ele só
pode penetrar na consciência
Se a língua é fato social, suas dos indivíduos que falam su-
mudanças no correr do tempo não primindo o passado. A in-
dependem dos que a praticam. De- tervenção da História apenas
certo que é através da fala que lhe falsearia o julgamento
a língua é modificada, porém os (SAUSSURE, 1999, p. 96).
falantes não possuem consciên-
cia de assim o fazerem. “Se, com Com isto uma questão se coloca:
relação à idéia que representa, o qual a relação a ser estabelecida
significante aparece como esco- entre o estudo sincrônico e o di-
lhido livremente, em compensa- acrônico da língua? Sabe-se que
ção, com relação à comunidade lin- o linguista deve partir expressa-
guística que o emprega, não é livre: mente do ponto de vista sincrônico
é imposto” (SAUSSURE, 1999, p. e, num primeiro momento, igno-
85). rar a diacronia. Isto significa que
Por causa disso, Saussure se virá estudar a língua será estudar seu
forçado a dividir a linguística em momento sincrônico. A questão é
duas: a linguística sincrônica, que saber o que ocorre numa mudança
estuda a língua enquanto sistema diacrônica, isto é, o que é modifi-
num determinado momento, e lin- cado na passagem de um momento
guística diacrônica, que estuda a sincrônico a outro – como na mo-
língua em suas transformações no dificação histórica por que passam
decorrer do tempo. “É sincrônico as línguas.
tudo quanto se relacione com o as- Ora, o que muda numa língua
pecto estático de nossa ciência, di- neste caso não é todo o seu sis-
acrônico tudo que diz respeito às tema de inter-relações, mas sim as
evoluções” (SAUSSURE, 1999, p. relações entre alguns elementos.
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PÓS-ESTRUTURALISMO

Os “fatos diacrônicos não tendem é possível) da duplicidade da es-


sequer a alterar o sistema. Não trutura, ao mesmo tempo atual e
se quis passar de um sistema de virtual; de um lado, do ponto de
relações para outro; a modifica- vista da estrutura virtual, a mu-
ção não recai sobre a ordenação, e dança de um elemento não altera
sim sobre os elementos ordenados” a estrutura mas sim, pelo contrá-
(SAUSSURE, 1999, p. 100). Numa rio, está nela subsumida, pois o
mutação diacrônica, o que muda que se alterou foi apenas a posi-
não é a estrutura transcendental ção de um elemento4 em relação
da língua, mas a posição nela ocu- aos outros no interior da estrutura;
pada por certos elementos. Pro- de outro lado, do ponto de vista
blema vira pobrema: o encontro da estrutura atual, é uma nova es-
consonantal bl transforma-se em trutura linguística que surge, pois
br, e a sílaba pro é simplificada todos os seus elementos estão inter-
para po – o que não engendra uma relacionados.
nova língua portuguesa. Contudo, A diacronia é pensada portanto
na medida em que se tenha um como uma sucessão de sincronias,
novo arranjo linguístico de vali- e a cada vez a mudança é interna
dade para toda a língua, têm-se ao sistema sincrônico mas lhe ad-
a vigência de uma estrutura. O vém de fora:
latim perde substitui declinações
por preposições: surgem as línguas
italiana, romena, espanhola. Por Sem dúvida, cada alteração
isso Saussure afirma que, na pas- tem sua repercussão no sis-
sagem de uma sincronia a outra, tema; o fato inicial, porém,
“não foi o conjunto que se deslo- afetou um ponto apenas; não
cou, nem um sistema que engen- há nenhuma relação interna
drou o outro, mas um elemento do com as consequências que se
primeiro [sistema sincrônico] mu- pode derivar para o conjunto
dou e isso basta para fazer surgir (SAUSSURE, 1999, p. 102-
outro sistema” (SAUSSURE, 1999, 3). (...)
p. 100).
Esta dupla mudança – de um Na perspectiva diacrônica,
elemento no interior de um sis- ocupamo-nos com fenômenos que
tema e de um sistema em outro – não tem relação alguma com os sis-
se superpõe a cada momento dia- temas, apesar de os condicionarem
crônico. Isto decorre (e só por isso (SAUSSURE, 1999, p. 101).

4 No caso da língua, sempre um par opositivo

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Não há, portanto, nenhuma cau- tre esses tempos (DELEUZE,


salidade interna na passagem de 1974, pág. 285).
um momento sincrônico a outro,
que possibilite elaborar uma lei da
mudança diacrônica; “a antinomia Lévi-Strauss: da ciência da língua
radical entre o fato evolutivo e o à ciência do homem
fato estático tem por consequên-
cia fazer com que todas as noções Com Lévi-Strauss, o estrutu-
relativas a um ou ao outro sejam, ralismo passa de ciência da lin-
na mesma medida, irredutíveis en- guagem a método epistemológico
tre si” (SAUSSURE, 1999, p. 107). de uma antropologia etnológica.
A diacronia é “um acontecimento” Como isso é possível?
(SAUSSURE, 1999, p. 107) impre- Com Saussure, a linguagem é
visível a partir da dentro da estru- concebida não como um meio de
tura. designação de objetos por um su-
É toda uma concepção do que jeito irradiador do sentido, mas
é o tempo que subjaz a este mo- como uma entidade autônoma, que
delo: a história é pensada como fala nos sujeitos, que significa in-
uma sucessão de momentos está- dependentemente do sujeito; o su-
ticos. Como bem resume Deleuze: jeito é que é meio da linguagem,
e não a linguagem meio do sujeito
atingir a significação. Com isto, a
o tempo é sempre um tempo
linguagem extrapola a individua-
de atualização, segundo o
lidade e se mostra como coletiva,
qual se efetuam, em ritmos
como algo da ordem do social.
diversos, os elementos de co-
Se a linguagem é fato social,
existência virtual. O tempo
e é pensada como uma estrutura
vai do virtual ao atual, isto
inconsciente, então também ou-
é, da estrutura às suas atua-
tros fatos sociais podem ser pen-
lizações, e não de uma forma
sados como estruturas. Para Lévi-
atual a outra forma. Ou,
Strauss,
pelo menos, o tempo conce-
bido como relação de suces-
são de duas formas atuais a linguagem aparece tam-
contenta-se em exprimir abs- bém como condição da cul-
tratamente os tempos inter- tura, na medida em que esta
nos da estrutura ou estrutu- última possui uma arquite-
ras que se afetam em profun- tura similar à da lingua-
didade nessas duas formas, gem. Ambas se edificam por
e as relações diferenciais en- meio de oposições e correla-
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PÓS-ESTRUTURALISMO

ções, isto é de relações lógi- Esta é a estrutura elementar do


cas. Tanto que se pode consi- parentesco, composta de pares
derar a linguagem como um como pai-filho, esposo-esposa,
alicerce destinado a receber brasileiro-brasileira, etc., e que
as estruturas às vezes mais se atualiza diferentemente con-
complexas, porém do mesmo forme a cultura, segundo atitu-
tipo que as suas, que cor- des de “mutualidade, reciproci-
respondem à cultura enca- dade, direito e obrigação” (LÉVI-
rada sob diferentes aspectos STRAUSS, 1996, p. 67). Esta estru-
(LÉVI-STRAUSS, 1996, p. tura forma um sistema; numa dada
86). cultura, a relação entre pai e filho,
por exemplo, não pode ser com-
Assim, Lévi-Strauss buscará en- preendida independentemente da
contrar estruturas elementares de relação entre germano e germana
sociabilidade em certas culturas e entre esposo e esposa. Muito re-
não-ocidentais, estruturas estas de sumidamente, é assim que Lévi-
formas análogas às das estrutu- Strauss absorve a linguística como
ras linguísticas, ou seja, pensadas método da antropologia estrutu-
como um sistema de pares oposi- ral. O que interessa aqui é exami-
tivos. Tomemos, por exemplo, as nar a questão da diacronia dentro
estruturas elementares de paren- do pensamento etnológico de Lévi-
tesco. Strauss.
Percebemos que para Lévi-
Para que uma estrutura de Strauss a estrutura (virtual) per-
parentesco exista, é necessá- manece imutável; todos os da-
rio que se encontrem presen- dos empíricos de uma determi-
tes nela os três tipos de rela- nada pesquisa sócio-etnológica po-
ções familiais sempre dados dem ser subsumidos a uma mesma
na sociedade humana, isto é estrutura, independentemente da
uma relação de consangui- cultura em questão. Neste nível
nidade, uma relação de ali- (da estrutura virtual) não pode ha-
ança, uma relação de filia- ver espaço para a diacronia; po-
ção; em outras palavras, uma rém, quando se pensa um largo
relação de germano com ger- período de tempo numa determi-
mana, uma relação de es- nada cultura, a diacronia reapa-
poso com esposa, uma rela- rece – embora só possa ser pensada
ção de pai (ou mãe) com fi- como passagem de uma totalidade
lho (LÉVI-STRAUSS, 1996, sincrônica a outra:
p. 64).
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A lei sincrônica de correla- alização desta estrutura, atualiza-


ção pode ser verificada dia- ção sempre sujeita, a qualquer ins-
cronicamente. Se resumimos tante, a uma mudança diacrônica.
a evolução das relações fa- “Seria um grave erro considerar a
miliais na Idade Média, (...) estática e a sincronia como sinôni-
obtém-se o seguinte esquema mos. O corte estático é uma ficção;
aproximativo: o poder do ir- é apenas um procedimento cientí-
mão sobre a irmã diminui, fico de auxílio e não um modo par-
o do marido prospectivo au- ticular de ser” (JAKOBSON, 1971,
menta. Simultaneamente, o p. 218).
elo entre pai e filho se debi- Contudo, se a rígida fixidez do
lita, o elo entre tio materno corte estático é ficcional, a fixidez
e sobrinho se reforça (LÉVI- relativa da sincronia não o é; se há
STRAUSS, 1996, p. 63). uma estrutura determinante, toda
a empiria deve necessariamente
ocupar nela seu devido lugar; é as-
Ao contrário de críticas feitas à
sim que, mesmo sujeita a mudan-
época, contra as quais se levan-
ças diacrônicas, a sincronia sempre
tou, por exemplo, Jakobson, (JA-
se restabelece.
KOBSON, 1971), este modo estru-
turalista de compreensão da his-
tória como saltos sincrônicos não Se uma ruptura de equi-
significa uma oposição entre uma líbrio do sistema [ou seja,
estática e uma dinâmica, mas sim o irromper de um aconte-
uma subordinação da diacronia à cimento diacrônico] precede
sincronia; “a diacronia não é signi- uma mutação dada, e se re-
ficante a não ser pela sua relação sulta dessa mutação uma su-
com a sincronia” (RICOUER, 1997, pressão do desequilíbrio, nós
p. 36). Isto porque “toda modi- não temos nenhuma dificul-
ficação deve ser tratada em fun- dade em descobrir a função
ção do sistema no interior do qual dessa mutação: sua tarefa é
ela tem lugar” (JAKOBSON, 1971, restabelecer o equilíbrio (JA-
5
p. 203) . A oposição entre diacro- KOBSON, 1971, pp. 218-9).
nia e sincronia não tem cabimento
porque a sincronia não é uma fi- Porém, uma dificuldade se coloca.
xidez imutável como é a estrutura Na linguística, os objetos – as lín-
virtual, mas uma determinada atu- guas – são todos de mesma natu-

5 Este texto de Jakobson é citado por Lévi-Strauss a propósito da discussão sobre diacronia e sincronia na pes-
quisa antropológica em (LÉVI-STRAUSS, 1996, p. 109)

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PÓS-ESTRUTURALISMO

reza, e um solo comum está assegu- sos conscientes e inconscien-


rado para a sua compreensão. Mas tes, um sistema complexo de
o que dizer das culturas? Como referências, consistindo em
poderia o etnólogo realmente com- juízos de valor, motivações,
preender uma cultura outra, se ele centros de interesse, com-
não pode desvencilhar-se da es- preendendo aí a visão re-
trutura categorial de sua própria flexiva que a educação nos
e situar-se na perspectiva da cul- impõe do devir histórico de
tura estudada? Este a priori estru- nossa civilização, sem a qual
tural e irrefletido que determina esta se tornaria impensável
sua compreensão, ao invés de per- ou apareceria em contradi-
mitir uma objetividade – ao per- ção com as condutas reais.
mitir ao pesquisador perceber a Deslocamo-nos literalmente
presença de uma outra estrutura com esse sistema de referên-
similar em sua forma, porém di- cias, e as realidades cultu-
ferente em seu conteúdo, na ou- rais de fora só são observá-
tra cultura – não a impossibilita- veis através das deformações
ria? Afinal, o antropólogo pensa que ele lhes impõe, chegando
com as categorias empíricas de sua mesmo a colocar-nos na im-
própria cultura. Em outras pala- possibilidade de perceber o
vras: se cada cultura é uma estru- que quer que seja (LÉVI-
tura irredutível, ou um momento STRAUSS, 1993, p. 345).
sincrônico irredutível (o que dá no
mesmo), como poderia haver com- O problema só piora quando se
paração possível? Se o antropólogo pensa a auto-compreensão da his-
não pode elevar-se ao nível trans- tória segundo diversas culturas e
cendental onde habita a estrutura, verifica-se que “em algumas a his-
deve ser possível uma tradutibili- tória é estacionária; em outras,
dade entre as estruturas, ou o es- evolutiva” (LÉVI-STRAUSS, 1993,
truturalismo, ao invés de garantir p. 344). Como resolver este pro-
a cientificidade, a tornaria definiti- blema?
vamente impossível, descambando Ora, para Lévi-Strauss o pro-
para um culturalismo irredutível. blema da estacionariedade ou evo-
Lévi-Strauss é sensível a este lutividade histórica é um falso pro-
problema: blema, decorrente da nossa pers-
pectiva de análise; para nós, mem-
Desde nosso nascimento, bros de uma cultura que pensa a
nosso meio faz penetrar em história evolutivamente, “as ou-
nós, através de mil proces- tras culturas nos pareceriam es-
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tacionárias, não necessariamente


porque o são, mas porque sua li- contribuições que oferecem
nha de desenvolvimento nada nos um caráter de sistema. (...)
significa, não é mensurável nos Com efeito, as tentativas de
termos do sistema de referência acomodação só podem chegar
que utilizamos” (LÉVI-STRAUSS, a dois resultados: ou uma de-
1993, p. 344). Na verdade, a his- sorganização e um desmoro-
tória está presente em e para todas namento do sistema de um
as culturas, e “a diferença nunca é dos grupos; ou uma sín-
entre história cumulativa e história tese original, mas que, então,
não cumulativa; toda história é cu- consiste na emergência de
mulativa, com diferenças de grau” um terceiro sistema, o qual
(LÉVI-STRAUSS, 1993, p. 357); se torna irredutível em rela-
nós apenas não nos apercebemos ção aos outros dois (LÉVI-
disso por não estarmos cientes das STRAUSS, 1993, pp. 361-
especificidades próprias (estrutu- 2).
ralmente determinadas) segundo
as quais a história adquire sentido Irredutível, porém não ininfluen-
para as outras culturas. ciável. O modo de mudança
Desfeito o falso problema da re- diacrônico, que funciona através
latividade irredutível da noção de da passagem de um modelo sin-
história, a questão que resta é a crônico a outro, continua funcio-
da tradutibilidade inter-estrutural nando, quer se aplique a duas es-
como condição de possibilidade do truturas sincrônicas diferentes no
estatuto científico da antropolo- interior de uma mesma cultura,
gia. Para Lévi-Strauss ela existe, quer se aplique a duas estruturas
e por dois motivos: em primeiro sincrônicas de duas culturas dife-
lugar, as culturas não são estan- rentes. Duas estruturas se influen-
ques, isoladas. Elas se comunicam, ciarem, isto é o mesmo que passar
se influenciam reciprocamente; de uma sincronia a outra – esta in-
“nenhuma cultura está só, ela é fluência só pode se dar no tempo,
sempre dada em coligação com ou- e está, portanto, sujeita às leis di-
tras culturas, e é isto que lhe per- acrônicas de mudança. O próprio
mite edificar séries cumulativas” fato de haver influência recíproca e
(LÉVI-STRAUSS, 1993, p. 359). O comunicação entre culturas atesta
modo de coligação destas estrutu- para existência de uma espécie de
ras culturais distintas é o mesmo solo comum entre elas.
para qualquer estrutura sincrônica Em segundo lugar, a tradutibi-
numa mesma cultura: são lidade está assegurada pelo pró-
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RECONCILIAÇÃO COM A HISTÓRIA: FOUCAULT DO ESTRUTURALISMO AO
PÓS-ESTRUTURALISMO

prio conceito de estrutura: cada possibilidade de seus fenômenos


cultura é uma estrutura atual, e o do que seu modo de apresentação
que permite compará-las é a trans- positivo. Também este será o mote
cendentalidade vazia da estrutura do “jovem Foucault” , criador da
virtual. O verdadeiro lugar do arqueologia do saber: descobrir as
qual o antropólogo, enquanto cien- condições de possibilidade, as ori-
tista, fala, é o da estrutura virtual gens secretas dos discursos de uma
– portanto não de uma subjetivi- época, mesmo se tratando de dis-
dade fundadora de certeza eterna, cursos antagônicos; desvendar o
mas de uma subjetividade que se solo comum que possibilitou a pro-
sabe caso de uma estrutura univer- dução destes discursos, a raciona-
sal superior, que prevê subjetiva- lidade comum que permitiu com
ções outras - e embora “as realida- que eles, mesmo em sua divergên-
des culturais de fora só sejam ob- cia, pudessem ser pensados, deba-
serváveis através das deformações tidos, negados como falsos ou as-
que ele [nosso sistema categorial sumidos como verdadeiros; uma
estruturalmente determinado] lhes
impõe” (LÉVI-STRAUSS, 1993, p.
região ‘mediana’ [que], na
345). Quando a “impossibilidade
medida em que manifesta os
de perceber o que quer que seja”
modos de ser da ordem, pode
(LÉVI-STRAUSS, 1993, p. 345) não
apresentar-se como a mais
se coloca e algum conhecimento
fundamental: anterior às pa-
é possível, este possui sua cienti-
lavras, às percepções e aos
ficidade assegurada, já que o an-
gestos; (...) mais sólida,
tropólogo pode sempre contar com
mais arcaica, menos duvi-
a redução dos dados empíricos à
dosa, sempre mais ‘verda-
estrutura, que permite a compa-
deira’ que as teorias que lhe
ração. Assim, “cada vez mais, a
tentam dar uma forma explí-
Etnologia moderna dedica-se me-
cita, uma explicação exaus-
nos a erigir um inventário de tra-
tiva, um fundamento filosó-
ços separados, do que a descobrir
fico (FOUCAULT, 2000, p.
as origens secretas dessas opções”
xvii).
(LÉVI-STRAUSS, 1993, p. 349).
Só que agora não mais como es-
Foucault e a arqueologia do saber tudo antropológico, não mais a tí-
tulo de ciência ao mesmo tempo
Estranha positividade a dessa positiva das diversas diferenças en-
ciência humana, que se contenta tre as culturas e das condições de
mais em conhecer as condições de possibilidade da cultura em geral,
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e sim como uma arqueologia dos de uma totalidade sincrônica a ou-


saberes de nossa cultura ocidental. tra. Foucault identifica três episté-
Arqueologia porque mês na história do saber ocidental
desde o século XVI até seus dias.
Assim, por exemplo, a passagem
o que se quer trazer à luz
da epistémê renascentista à epistémê
é o campo epistemológico,
clássica – passagem do mundo da
a epistémê onde os conhe-
semelhança ao mundo da ordem
cimentos, encarados fora de
(FOUCAULT, 2000, pp. 1-295) –
qualquer critério referente a
será uma ruptura, um corte epis-
seu valor racional ou a suas
temológico: nada há em comum
formas objetivas, enraízam
entre elas, regias por lógicas pró-
sua positividade e manifes-
prias irredutíveis, a não ser o fato
tam assim uma história que
de possuírem uma tal lógica a pri-
não é a de sua perfeição cres-
ori de duração determinada.
cente, mas, antes, a de suas
E reencontramos aqui o pro-
condições de possibilidade;
blema da diacronia: Foucault ab-
neste relato, o que deve apa-
solutamente não explica o porquê
recer são, no espaço do sa-
nem o modo de passagem de uma
ber, as configurações que de-
epistémê a outra: trata-se de um
ram lugar às formas diversas
acontecimento diacrônico, de mo-
do conhecimento empírico.
tivo completamente indetermi-
Mais que de uma história no
nado. A ponto de, ao se perguntar
sentido tradicional da pala-
vra, trata-se de uma arqueo-
logia (FOUCAULT, 2000, p. donde vem bruscamente essa
xix). mobilidade inesperada das
disposições epistemológicas,
A arqueologia foucaultiana é um o desvio das positividades
tipo de análise estruturalista: umas em relação às outras,
busca pensar um período em fun- mais profundamente ainda a
ção não da positividade das pro- alteração de seu modo de ser?
duções de seu “espírito” , mas de Como ocorre que o pensa-
suas condições de possibilidade; mento se desprenda daque-
ao saber de cada época corres- las plagas que habitava ou-
ponde uma estrutura, um “a priori trora (...) e deixe oscilar no
histórico” (FOUCAULT, 2000, p. erro, na quimera, no não-
xxi) que a possibilita e determina; saber aquilo mesmo que, me-
a passagem de uma época a outra é nos de 20 anos atrás, es-
uma ruptura, tal como a passagem tava estabelecido e afirmado
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PÓS-ESTRUTURALISMO

no espaço luminoso do co- modo, uma mudança na estru-


nhecimento? A que aconte- tura fonemática da língua pode to-
cimento ou a que lei obede- mar várias formas – desfonologi-
cem essas mutações? (FOU- zação, na qual uma relação de di-
CAULT, 2000, pp. 297-8). ferença fonológica entre dois fo-
nemas é suprimida; fonologização,
a resposta seja apenas: “se, para a processo inverso no qual uma di-
arqueologia do saber, essa abertura ferença fonológica surge, etc. (JA-
profunda na camada das continui- KOBSON, 1971) – todas elas re-
dades deve ser analisada, e minuci- dutíveis a uma mudança na estru-
osamente, não pode ser ela ‘expli- tura atual, segundo a forma da es-
cada’, nem mesmo recolhida numa trutura virtual. Também, numa
palavra única. É um aconteci- manifestação cultural, por exem-
mento radical” (FOUCAULT, 2000, plo, no estudo antropológico dos
pp. 298). mitos, cada um pode ser subscrito
numa fórmula bem determinada,
De novo a diacronia, porém com não importa a cultura ou época
diferenças em questão (LÉVI-STRAUSS, 1996,
Seria o Foucault de As palavras cap. XI).
e as coisas um estruturalista, por- A historicidade do devir estrutu-
tanto? Não exatamente: há uma di- ral é entendida segundo um modo
ferença entre a concepção foucaul- de funcionamento bem determi-
tiana de estrutura (sob a figura da nado. Daí que recusar a histo-
epistémê) e a dos estruturalistas. ricidade estruturalista implica re-
Tanto para Lévi-Strauss quanto cusar esta noção de tempo como
para Saussure e os linguistas, uma atualização da estrutura virtual;
estrutura é uma virtualidade vazia, mas, aceita esta noção de tempo-
porém dona de uma forma posi- ralidade, o modo de temporaliza-
tiva muito bem determinada: toda ção das estruturas necessariamente
estrutura é formada por uma rede aparecerá como composta por sal-
de pares opositivos, e isso já pré- tos sincrônicos. Ora, esta concep-
determina o seu devir. Por causa ção de temporalidade é aceita pelo
disso, uma mudança diacrônica só Foucault de As palavras e as coi-
pode se dar através de um acon- sas, que pensa a história dos sa-
tecimento que gere uma mutação beres como composta de rupturas
pelo menos num destes elemen- epistêmicas aleatórias. Ele, porém,
tos fundamentais – quer dizer, so- introduz uma modificação no edi-
bre a relação entre dois elemen- fício epistemológico estruturalista
tos de um par opositivo. Deste – não na noção de devir histórico,

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ISSN: 2317-9570
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mas na noção de estrutura. subsumidos às regras formais das


Foucault elimina todas as bali- epistémês. Se a aleatoriedade abso-
zas transcendentais da estrutura, luta rege a gênese dos discursos –
some com sua forma a priori; de absoluta porque responsável tanto
fato, qual homologia formal have- pelo momento histórico determi-
ria por exemplo entre a epistémê nado de seu surgimento quanto
renascentista das similitudes e a pela forma engendrada – então es-
epistémê clássica da ordem? Fou- tudar discursos enquanto objetos
cault conduz a noção de estrutura históricos é tarefa que só fará sen-
a uma verdadeira, profunda e ra- tido se for esclarecido como, uma
dical vacuidade: não há absoluta- vez engendrado por um aconteci-
mente nada que pré-determine a mento, um discurso passa a ser ob-
forma da próxima estrutura epistê- jeto de ações de recusa, aceitação,
mica, nada que permita enquadrar controle, contenção, propagação, e
seu devir num modelo regulatório similares, por parte de agentes his-
prévio. tóricos. Diz o filósofo que
Com esta mudança, o problema
da diacronia – que a rigor, nos ou-
tros autores analisados, não era um Em toda sociedade, a produ-
problema, isto é, uma falha de fun- ção do discurso é ao mesmo
damentação ou coerência que colo- tempo controlada, selecio-
casse em risco, a partir de dentro, nada, organizada e redistri-
a teoria – em Foucault será uma la- buída por certo número de
cuna que chega a ameaçar toda a procedimentos que têm por
sua construção teórica: pois se a função conjurar seus poderes
passagem de uma epistémê a outra e perigos, dominar seu acon-
se dá num passe de mágica, como tecimento aleatório, esquivar
fugir das acusações de irraciona- sua pesada e temível materi-
lismo?6 alidade (FOUCAULT, 1996,
pp. 8-9).

A genealogia do poder
Se a irrupção de uma epistémê é
Resposta: com a elaboração um acontecimento aleatório, o des-
do que ficou conhecido como tino dado aos discursos elabora-
“genealogia do poder” , que vi- dos seguindo sua forma é determi-
sará explicar a historicidade dos nado por acontecimentos empíri-
saberes e seus discursos, enquanto cos, ou seja, históricos. Desta ma-

6 Por exemplo (HABERMAS, 2000, caps. IX e X)

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RECONCILIAÇÃO COM A HISTÓRIA: FOUCAULT DO ESTRUTURALISMO AO
PÓS-ESTRUTURALISMO

neira, se não faz sentido para Fou- (FOUCAULT, 1996, p. 69). Na me-
cault a busca de uma lógica his- dida em que um discurso é neces-
tórica na passagem de uma epis- sariamente produzido conforme o
témê a outra, deve-se pensar a rela- molde uma epistémê, seu estudo
ção do ser humano com os discur- toca no território da arqueologia
sos como eminentemente histórica. do saber – mas sem equivaler exa-
Os “procedimentos” utilizados por tamente a ela. A diferença está
agentes históricos para tentar con- no fato de que a arqueologia parte
trolar discursos cuja forma geral dos discursos em busca de sua
escapa ao controle humano, sendo forma a priori, ao passo que a crí-
determinada a priori por uma epis- tica foca na dimensão por assim
témê em geral inconsciente para su- dizer “empírica” do discurso, es-
jeitos discursivos, são obra da pura tudando seu aparecimento, orde-
empiria dos acontecimentos histó- nação, transformação, míngua, e
ricos: resultam da forma de reação assim por diante. Trata-se de um
de grupos sociais a esta produtivi- passo além da arqueologia, e que
dade da linguagem. Para dar conta revela uma nova dimensão, para
de estudar esta nova dimensão do além da transcendental, atuante
saber, Foucault precisará de novos no discurso: a dimensão do poder.
instrumentos de investigação. Pois, se não está em poder dos ho-
Logo, para estudar os discursos, mens fugir à forma a priori seguida
Foucault propõe, numa conferên- por um discurso, está sob seu al-
cia ministrada apenas quatro anos cance escolher produzir discursos
após a publicação de As palavras e ou buscar impedi-los de vir à luz;
as coisas (FOUCAULT, 1996), dois divulgá-los ou proibi-los; concor-
por assim dizer “métodos” : um dar ou discordar deles; e assim por
“conjunto crítico” e um “conjunto diante.
genealógico” . O conjunto crí- Logo, o se dá a conhecer, no pro-
tico compreende algo à primeira cedimento de crítica discursiva, é
vista parecido com a arqueologia a vinculação entre poder e saber.
do saber: “a crítica analisa os pro- Por exemplo, dentre os procedi-
cessos de rarefação, mas também mentos de exclusão do discurso, na
de reagrupamento e de unifica- interdição, na limitação de quem
ção dos discursos” (FOUCAULT, pode falar o que onde e quando,
1996, p. 65); ela “liga-se aos siste- descobre-se que o “discurso não é
mas de recobrimento do discurso; simplesmente aquilo que traduz as
procura detectar, destacar esses lutas ou os sistemas de dominação,
princípios de ordenamento, de ex- mas aquilo por que, aquilo pelo
clusão, de rarefação do discurso” que se luta, o poder do qual que-

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remos nos apoderar” (FOUCAULT, controle humano sobre o aconteci-


1996, p. 10); na separação entre mento radical que é o discurso, a
razão e loucura, descobre-se que genealogia discursiva se detém so-
o discurso da razão, para se fun- bre a produtividade que tal acon-
dar em sua identidade, necessita tecimento engendra, ou seja, sobre
excluir por completo sua alteri- seu poder de fomentar vários dis-
dade como desrazão; descobre-se cursos. Em resumo:
também que a oposição entre falso
e verdadeiro não é objetivamente
As análises que me proponho
neutra, mas radica-se numa von-
a fazer se dispõem segundo
tade de verdade, vontade de ver-
dois conjuntos. De uma
dade esta que não é um impulso
parte, o conjunto “crítico” ,
natural ou metafísico abstrato, mas
que põe em prática o prin-
que, “como os outros sistemas de
cípio da inversão: procurar
exclusão, apóia-se sobre um su-
cercar as formas da exclu-
porte institucional” (FOUCAULT,
são, da limitação, da apro-
1996, p. 17). Se o foco da arqueo-
priação [dos discursos] (...);
logia do saber era eminentemente
mostrar como se formaram,
epistemológico, estudando as con-
para responder a que necessi-
dições de possibilidade epocais dos
dades, como se modificaram
discursos, na etapa seguinte do
e se deslocaram, que força
pensamento foucaultiano, conhe-
exerceram efetivamente, em
cida como “genealogia do poder” ,
que medida foram contor-
o foco passa a ser sobretudo polí-
nadas. De outra parte, o
tico: está em foco a relação entre
conjunto “genealógico” que
poder e saber.
põe em prática outros três
Quanto ao segundo “método” de
princípios: como se forma-
estudo do discurso, chamado de
ram, através, apesar, ou com
“conjunto genealógico” , ele pro-
o apoio desses sistemas de
põe se deter “nas séries da forma-
coerção, séries de discursos;
ção efetiva do discurso: procurar
qual foi a norma específica de
apreendê-lo em seu poder de afir-
cada uma [das séries] e quais
mação, e por aí entendido (...) o po-
foram suas condições de apa-
der de constituir domínios de obje-
rição, de crescimento, de va-
tos, a propósito dos quais se pode-
riação. (FOUCAULT, 1996,
ria afirmar ou negar proposições
pp. 60-61)
verdadeiras” (FOUCAULT, 1996,
pp. 69-70). Se a crítica discur-
siva busca mapear as tentativas de

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RECONCILIAÇÃO COM A HISTÓRIA: FOUCAULT DO ESTRUTURALISMO AO
PÓS-ESTRUTURALISMO

Conclusão cursos, seja este destino “negativo”


, isto é, buscando limitá-lo, seja ele
O trajeto intelectual percor- “positivo” , buscando engendrar
rido sugere que pensamento do mais discursos segundo uma forma
“primeiro Foucault” , aquele da ar- geral dada.
queologia do saber, pode ser iden- Haveria, portanto, em Foucault
tificado ao estruturalismo com res- dois regimes de historicidade: a
salvas fundamentais: com ele com- aleatoriedade radical das epistémês,
partilha a noção de história en- e história da ação humana sobre os
tendida como diacronia, mas dele discursos conformados pelas epis-
discorda ao entender a mudança témês. Desta forma, tal concep-
histórica no domínio por ele estu- ção de história parece qualificá-
dado, o do saber, como puramente lo como pós-estruturalista: pós,
aleatória, isto é, sem seguir uma ao recusar qualquer lógica pré-
forma pré-determinada, mesmo determinada de mudança histórica
se tratando de uma forma pura- diacrônica; estruturalista, por coa-
mente “virtual” (DELEUZE, 1974). dunar com a noção de uma instân-
Coerente com esta sua concep- cia superior ao sujeito e à consci-
ção de tempo, Foucault compre- ência, atuando como condição de
enderá como de natureza propri- possibilidade dos discursos fala-
amente histórica o estudo do des- dos por sujeitos conscientes – um
tino dado pelo ser humano aos dis- transcendental sem sujeito.

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