Políticas: Verdade e
Representação (Parte I)
Qual seria o ponto de encontro entre a religião e a
política?
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Estado da Arte
10 de maio de 2019 | 13h00
Todo mundo já ouviu a velha história: era uma vez, o ser humano vivia em
sociedades onde a religião e a política se misturavam em promíscuas
relações de poder. Nessas sociedades, o mundo político era regido pelo mito
e pela superstição. As pessoas se aglomeravam em torno de fogueiras,
templos e igrejas para contar histórias fantásticas de como o mundo, o
homem e a sociedade vieram a ser. Deuses, monstros e heróis habitavam o
imaginário de qualquer um que tentasse fazer sentido do mundo em que
vivia, e as instituições que se propunham a explicar a natureza dessas forças
misteriosas eram recompensadas com prestígio e poder. Assim teriam
nascido as religiões instituídas, que por tanto tempo teriam mantido nossos
ancestrais cegos à razão e à ciência. Mas tudo isso teria começado a mudar
na era moderna, quando o avanço da ciência leva o homem a questionar o
poder e prestígio da religião. Na medida em que a sociedade progrediu,
teríamos aprendido então a separar a ciência da superstição, o fato do mito,
a política da religião. Daí o surgimento do estado laico e da separação entre
estado e igreja – uma medida protetiva para manter os irracionalismos da
fé longe das instituições políticas que haveriam de ser regidas pelo
progresso da razão.
2. Narrativas e verdades
Entre as maneiras mais fundamentais através dos quais o ser humano
constrói sua visão de mundo está, como vimos, a narrativa. Durante a
maior parte da história humana, a narrativa será o instrumento principal
através do qual a cultura exprime as suas noções do que é sagrado e
profano, certo e errado, justo e injusto. Já vimos também que, mesmo
removendo as mitologias religiosas da vida pública, o homem moderno
ainda cultiva a necessidade de expressar narrativamente a natureza do
mundo em que ele vive. Para justificar suas ações, suas devoções e
lealdades, não basta que o homem descreva o mundo objetivamente – ele
precisa recontá-lo narrativamente. O homem afinal não é um mero
observador passivo da realidade – ele é um seu participante ativo. Por mais
que possa se distanciar do mundo e jogar o jogo da objetificação, ele
eventualmente terá de fazer escolhas, agir sobre elas e assumir
responsabilidade por suas ações. Para que essa dimensão
fundamentalmente humana da realidade ganhe expressão e nos orientemos
dentro dela, precisamos então contar nossa própria história de modo que
ela faça sentido. Na medida em que procura recontar o mundo como um
drama no qual é um participante ativo, o homem adquire não somente um
mapa do mundo em que vive mas também um senso de identidade e a
noção de que ele é o protagonista da própria vida. As histórias que
contamos a nós mesmos são portanto uma parte essencial daquilo
que somos – e não à toa nos sentimos tão ansiosos ou até mesmo
“incompletos” cada vez que nossas narrativas axiomáticas cedem a ataques
ou perdem sentido. Quando defendemos as narrativas que acreditamos,
não estamos apenas firmando alianças político-sociais mas também (e
talvez principalmente) garantindo a integridade do nosso próprio senso de
identidade. Narrativas são portanto um instrumento primordial na
preservação da experiência de que somos participantes significativos no
drama do ser.
Voegelin sugere que a necessidade de interpretar a realidade como um
drama do qual participamos não se manifesta somente nos indivíduos, mas
também no nível da coletividade. Toda sociedade humana, diz Voegelin, é
incumbida da tarefa de criar uma narrativa desse tipo para se manter uma
comunidade coesa. Toda cultura cria, através das suas obras, narrativas e
símbolos, a imagem de um mundo ordenado – um cosmion, como chama
Voegelin. Na medida em que desenvolvem uma linguagem comum que se
tornem capazes de se comunicar uns com os outros, os membros de uma
comunidade passam a compartilhar esse cosmion e, portanto, a
experimentar suas vidas como ordenadas por uma narrativa abrangente
que explica, justifica e sacraliza a existência da comunidade e seus
membros. Uma comunidade se mantém coesa, portanto, na medida em que
essa orientação existencial se preserva como uma experiência socialmente
compartilhada, ou seja, na medida em que a narrativa é tida
como verdadeira por seus membros. Daí que, dirá Voegelin, uma sociedade
que cria um cosmion compartilhado se enxergará como representativa da
verdade da existência.
Algo mais deve ser dito sobre essa última frase. A noção de que uma
sociedade possa ‘representar a verdade da existência’ deve soar um pouco
estranha às nossas sensibilidades modernas, mas podemos clarificá-la com
alguns exemplos. Suponhamos que alguém diga – como é comum ocorrer
tanto no discurso popular quanto em colóquios acadêmicos – que ‘não
existe verdade’. Mesmo que o enunciador desta frase esteja convicto da sua
validade, isso não elimina de modo algum a questão da verdade da
existência. Dizer que não existe verdade e que tudo é relativo não
simplesmente liberta o sujeito do fato bruto da sua existência no mundo
real onde vivemos, agimos e assumimos responsabilidade por nossas
escolhas. Afinal, se para ele é verdade que não existe verdade, então é
verdade que ele deve viver como se não houvesse verdade. A narrativa
relativista portanto só pode ser tida como realmenteverdadeira se implica
uma realização existencial dessa verdade no sujeito que a toma como
verdadeira.
Se a questão ainda não está clara, um outro exemplo pode ajudar ainda
mais: suponhamos agora que uma sociedade se considere absolutamente
secular e pluralista, não admitindo ser guiada por nenhuma ‘verdade
absoluta’. De um modo ou de outro, essa sociedade ainda precisará se
constituir concretamente de modo a comportar a possibilidade de várias
verdades antagônicas conviverem harmoniosamente. Afinal, se é verdade
que não existe verdade absoluta pela qual se possa guiar uma sociedade,
portanto é verdade que deve se criar dispositivos institucionais concretos
para acomodar o almejado pluralismo de verdades. Em outras palavras, a
sociedade em questão deverá criar uma constituição que reflita a verdade
de que não existe verdade absoluta. De um modo ou de outro, a sociedade
secular pluralista também terá que se enxergar como representativa da
verdade (que não existe verdade) se deseja se constituir historicamente.
3. Representação existencial
O conceito de “representação” é normalmente usado na ciência política
moderna para se referir ao que Voegelin chama de representação
constitucional, isso é, a ideia de que autoridades eleitas devem representar
a vontade do povo que os elegeu. Voegelin alerta no entanto que esse
conceito de representação deve ser distinguido e complementado por outro.
Isso porque não basta para um governo que deseja preservar sua
autoridade ser apenas constitucionalmente representativo, mas ele deve
também ser representativo no sentido existencial de realizar a ideia por trás
da instituição. Governos – sejam democráticos, autoritários, monárquicos
ou de qualquer outro tipo – não dependem apenas do funcionamento
estável de suas instituições basilares. Eles dependem da manutenção de
um cosmionsimbólico que abriga tanto o indivíduo quanto a sociedade em
uma narrativa onde ações simbólicas se orientam por um papel a ser
desempenhado no grande drama do ser. É somente quando o homem
enxerga a sua ordem política como integrada de forma harmoniosa na
ordem do ser, diz Voegelin, que o governo será tida como representativo.
Voegelin enfatiza portanto que arrogar o conceito de “representatividade” a
um tipo particular de articulação institucional “é um sintoma de
provincialismo político e civilizacional. E provincialismos desse tipo,
quando obscurecem a estrutura de realidade, podem se tornar
perigosos.”[2] Esse perigo pode se manifestar de forma clara em sociedades
em que as classes governantes se isolam da população e passam a justificar
sua autoridade em linguagens herméticas e inacessíveis. Por mais que se
diga representante do povo, o poder adquirirá um caráter de
arbitrariedade, a desarmonia com a ordem do ser será sentida e isso poderá
colocar em perigo o regime. Nos nossos tempos, a ascensão do populismo
anti-establishment pode ser vista como um sintoma desse tipo de crise, que
pode, em último caso, levar déspotas e tiranos ao poder. Para Voegelin, o
motivo pelo qual isso acontece é claro: “se um governo é representativo
apenas no sentido constitucional, um governante representativo no sentido
existencial, mais cedo ou tarde, por-lhe-á fim; e, muito possivelmente, o
novo governante existencial não será dos mais representativos no sentido
constitucional.” Voegelin argumenta que o aviso também serve para
explicar o fracasso ocidental em exportar “instituições representativas”
para outras sociedades ao redor do mundo. Essa política externa
equivocada teria sido “um fator agravante à desordem internacional através
de seu sincero porém ingênuo desejo de curar os males do mundo
espalhando instituições representativas no sentido [constitucional] para
áreas onde as condições existenciais para o seu funcionamento não eram
dadas.”
…
O Deus eterno matou e destruiu os homens daqueles reinos.
Salvo para cumprir a Ordem de Deus, como poderia alguém, por sua
própria força, matar e conquistar?
Agora, vós deveis dizer com a sinceridade no coração:
‘Nós seremos vossos súditos;
Nós vos daremos nossa força’…
Então nós reconhecermos vossa submissão.
E se vós não observais a Ordem de Deus,
E se desobedeceis nossas ordens,
Saberemos que vós sois nossos inimigos.”
Para Voegelin, essas palavras refletem uma sofisticada teologia política. De
acordo com a lei mongol na qual a mensagem se sustenta, o Khan é
considerado “único senhor dos homens sobre a terra”, o que significa dizer
que o império mundial do Khan tem existência de jure mesmo que ainda
não esteja realizado de fato. Dentro dessa concepção, não se pode dizer que
os inimigos do Khan estão legitimamente ‘em guerra’ contra a Ordem de
Deus. Eles no máximo estariam “em rebelião” contra ele, pois mesmo que
ainda não tenham sido efetivamente conquistadas, todas as sociedades
humanas já fazem parte do império mongol em virtude da Ordem de Deus.
O Khan pode se arrogar tal autoridade pois ela se sustenta sobre a verdade
inegável que rege o cosmion mongol: Deus concede poder àquele que o
conquista. A Ordem de Deus portanto legitima a sociedade que reconhece
essa verdade, e aquele que a coloca em ação adquire através dela a
soberania sobre todo o mundo – mesmo sobre aquele mundo ainda por
conquistar. A expansão do império mongol, diz Voegelin, segue portanto
“um estrito processo jurídico. As sociedades cuja hora de integrar-se de fato
ao império é chegada devem ser notificadas por embaixadores da Ordem de
Deus e instadas a oferecerem a sua submissão. Se recusarem… serão
consideradas como rebeldes e contra elas serão tomadas sanções militares.
O império mongol, assim, de acordo com a sua própria ordem jurídica,
nunca se engajou em guerras, mas apenas em expedições punitivas contra
súditos rebelados do Império.” Daí que o Khan pode dizer que não foi o seu
exército que massacrou os cristãos e magiares, mas sim a própria verdade
divina se manifestando no campo de batalha.
6. Conclusão
Notas:
[1] Para um valioso compêndio de teorias do tipo, ver SILVA, Nelson
Lehman.A Religião Civil do Estado Moderno. SP: Vide Editorial, 2016.
[2] The New Science of Politics. p. 50.
[3] VOEGELIN. Israel and Revelation. p. 118-9
[4] KOSELLECK. Crítica e Crise. p. 161
[5] TOCQUEVILLE. “Volume 2, Part 1, Chapter 20”. In: Democracy in
America.
[6] ARENDT. Eichmann em Jerusalém. p. 121-122.