Inquisição
A Inquisição Medieval
Esgotados todos os recursos para deter a heresia cátara, a Idade Média
viu surgirem os tribunais da Inquisição. Mas o que foram eles? Quais eram
as bases jurídicas e teológicas a orientar a conduta e os procedimentos
inquisitoriais? Por que a Igreja inclusive canonizou santos que foram
inquisidores?
Nesta aula de nosso curso, saiba por que, olhando para o contexto
histórico em que nasceu, a Inquisição, longe da "lenda negra" construída a
seu respeito, representou um verdadeiro avanço em seu tempo.
Uma Igreja em reascensão. – Quando começou a Idade Média, a Igreja foi a única instituição a
permanecer de pé diante da derrocada do Império Romano e subsequente invasão dos
bárbaros. O renascimento carolíngio tentou trazer de volta a cultura antiga e cristianizar a
Europa, mas a invasão dos vikings, ainda durante o reinado de Carlos Magno, freou todos os
seus esforços civilizatórios. No auge da decadência medieval, o século X, chamado também de
"século de ferro" ou "século obscuro", viu o trono do Apóstolo Pedro ser vendido a homens
luxuriosos e indignos, regentes de um clero laxo e dissoluto.
Enquanto pelejava com a própria reconstrução, no entanto, a Igreja se deparou com uma nova
ameaça: o crescimento e disseminação da seita albigense (da palavra "Albi", cidade da França na
qual se originou a heresia cátara). Herdeiros dos gnósticos da Antiguidade, os cátaros
começaram a influenciar áreas bem desenvolvidas comercialmente, usando a ignorância do
povo para falsear a fé verdadeira e fazendo ruir o tecido social e político da Europa medieval.
Bernardo e Domingos pregam aos hereges. – Como reação ao crescimento albigense, no fim do
século XI e alvorecer do século XII, a própria população começou a agir contra os hereges, como
foi visto na primeira aula [1].
Na verdade, a expansão dessa heresia pegou toda a cristandade de surpresa. Diz a respeito o
padre Shannon que, "por estranho que possa parecer, a própria Igreja no Ocidente tinha pouca
experiência em tratar com seitas heréticas grandes e organizadas" [2]. Heresias, de fato, sempre
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existiram; mas o catarismo, com sua estrutura bem montada – que se infiltrava na Igreja e
chegava a constituir um "clero" paralelo –, era uma novidade.
Assim, para resolver a questão, a Igreja começou como que às apalpadelas. Iniciou com o que
São João Crisóstomo mais vivamente recomenda em tempos de crise: o "aconselhamento pela
palavra" [3].
Com um clero secular em sua grande parte corrupto e mal formado, os primeiros enviados a
pregar aos hereges foram os monges, muito embora a sua mobilidade fosse limitada por conta
de seu estado de vida. São Bernardo de Claraval († 1153), por exemplo, em muitos dos seus
famosos sermões sobre o Cântico dos Cânticos [4], procurou convencer os cátaros da falsidade
de sua doutrina e da verdade da fé católica. Mesmo a sua grande santidade e eloquência,
porém, não obtiveram êxito para debelar de vez os sectários albigenses.
Soluções insuficientes. – Só a pregação, porém, não bastava. O Papa Lúcio III († 1185), no Sínodo
de Verona, condenou os cátaros e:
rumo. O suspeito do crime, o conde Raimundo VI, de Toulouse († 1222), era acusado também de
favorecer e acobertar os albigenses – um fenômeno comum na região meridional da França.
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Frente a esse problema, então, o Papa respondeu com uma iniciativa controversa: a Cruzada
Albigense (1209-1229). Impulsionados pela garantia de indulgência plenária, os senhores do
norte da França armaram os seus exércitos e partiram ao sul da França para combater os
cátaros. As boas intenções de Inocêncio, porém, não foram correspondidas pelos cruzados, que
cometeram saques e atrocidades durante uma guerra que se arrastou por anos a fio. Certas
cifras sobre esse episódio histórico são evidentemente exageradas, mas isso não torna a ação
do Papa menos questionável: há quem sustente, de fato, que ele cometeu um erro gravíssimo,
enquanto outros afirmam que ele não tinha outra opção, senão convocar a dita Cruzada.
Para compreender isso, é preciso mergulhar fundo no universo medieval e no contexto em que
se deu a Inquisição. No século XII, o direito estava passando por um processo de revitalização,
seja no âmbito civil, seja no âmbito religioso. Vale lembrar que as invasões bárbaras haviam
levado a Europa a uma verdadeira desordem cultural e práticas terríveis de tortura e execução
se difundiram mui rapidamente pelo continente. Era recorrente, por exemplo – ainda que fosse
condenada por vários Papas [8] –, a prática da ordália, pela qual uma pessoa suspeita de
cometer algum crime era submetida a forças da natureza, "obrigando" uma espécie de "juízo de
Deus".
Antes dos tribunais do Santo Ofício, de fato, o processo de investigação dos crimes era muito
rudimentar. Não havendo direito processual, os juízes dos tribunais civis emitiam sentenças
baseadas tão somente em seu arbítrio, sem a necessidade de provas contundentes para
condenar um réu. A tortura e a pena de morte eram largamente utilizadas como métodos de
punição.
Diante desse quadro, a Inquisição, dando às pessoas o direito de defesa e julgando-as com
cautela, respeito e prudência, representou um verdadeiro progresso humano e jurídico em seu
tempo. É claro que, comparados com o direito moderno, os tribunais eclesiásticos da época
eram absurdos. Mas, olhando para o que era o direito antes e examinando com sinceridade o
contexto medieval, a Inquisição significou realmente uma evolução. Não sem motivo vários
homens ligados a essa instituição foram sabiamente canonizados pela Igreja, como o mártir e
taumaturgo São Pedro de Verona († 1252) e o eminente canonista São Raimundo de Peñafort (†
1275).
"Ele deve ser diligente e fervoroso em seu zelo pela verdade religiosa, pela salvação
das almas e pela extirpação da heresia. Deve portar-se diante de situações difíceis e
desconfortáveis de modo a nunca perder o controle de si com acessos de raiva ou de
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ódio; nem deve, por outro lado, se render à letargia e à languidão, já que tal torpor
exaure a força de um administrador. O inquisidor deve ser constante e perseverante
nos perigos e adversidades, até a morte. Deve estar disposto a sofrer pela causa da
justiça, nem se precipitando imprudentemente, nem se retraindo vergonhosamente
de medo, já que tal covardia debilita a estabilidade moral. Mesmo permanecendo
inflexível às súplicas e lisonjas dos pecadores, não deve endurecer o seu coração a
ponto de repelir apelos de concessão ou mitigar penitências de acordo com as
circunstâncias que sugerirem o lugar e o tempo, já que tal procedimento cheira mais a
crueldade." [9]
Resta claro que um inquisidor deveria ser virtuoso e meticuloso em seu proceder. As palavras
de Bernardo Guy delineiam um belo modelo de justiça também para os juízes e magistrados do
nosso século.
Colocado diante da verdadeira fé, um grande número de pessoas se apresentava aos frades,
assumia os seus erros, pedia uma penitência e voltava para o seio da Igreja. Os próprios
membros mais "puros" do clero cátaro confessavam a sua heresia, embora não quisessem
ceder. Também eram recolhidas denúncias e acusações, as quais eram devidamente
averiguadas e julgadas diante de um grupo de testemunhas. Ainda assim, o número de
condenações era muito baixo. Bernardo Guy, por exemplo, dos mil casos que julgou, só proferiu
40 condenações, das quais muitas se reduziam a penitências.
Geralmente, eram entregues ao poder civil e condenados à pena capital somente os reincidentes,
isto é, pessoas que voltavam à heresia, mesmo depois de um tempo de penitência. O
fundamento para essa praxe era retirado das próprias Sagradas Escrituras (cf. Tt 3, 10-11: "Após
advertir um herege pela primeira e segunda vez, evita-o sabendo que é um pervertido"), as
quais Santo Tomás comentava do seguinte modo:
"A respeito dos heréticos, há duas coisas a considerar: uma da parte deles e outra da
parte da Igreja. Da parte deles, há um pecado pelo qual mereceram não somente
serem excluídos da Igreja pela excomunhão, mas também do mundo pela morte. É
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muito mais grave corromper a fé, que é vida da alma, do que falsificar o dinheiro, que
serve à vida temporal. Ora, se os falsificadores de moeda ou outros malfeitores logo
são justamente condenados à morte pelos príncipes seculares, com maior razão os
heréticos desde que sejam convencidos de heresia, podem não só ser excomungados,
mas justamente serem condenados à morte."
"Do lado da Igreja, ao contrário, ela usa de misericórdia em vista da conversão dos que
erram. Por isso, ela não condena imediatamente, mas só 'depois da primeira e
segunda advertência', como ensina o Apóstolo. Se, porém, depois disso, o herege
permanece ainda pertinaz, a Igreja, não esperando mais que ele se converta, provê à
salvação dos outros, separando-o dela por uma sentença de excomunhão; e
ulteriormente ela o abandona ao juízo secular para que seja excluído do mundo pela
morte." [10]
Embora pareça estranho ao homem moderno um discurso desse gênero, os tribunais da Igreja
eram realmente brandos e misericordiosos, se comparados aos excessos da justiça civil. Tanto é
verdade que,
"Lendo os autos dos processos inquisitoriais, mais de uma vez encontramos bandidos
comuns que, surpreendidos pela polícia no ato de violação, de roubo, de assalto à mão
armada, rapidamente inventavam uma motivação religiosa para explicar o seu
procedimento. Por quê? Simplesmente para cair na esfera da justiça da Inquisição e
não da justiça civil ou temporal. Pois a justiça inquisitorial garantia pelo menos uma
investigação, em vez da pena de fogueira imediata, a qual – como a pena de morte ou
o decepamento da mão – não foi absolutamente invenção dos inquisidores." [11]
Olhando para os fatos, pois, a Inquisição medieval foi realmente um grande avanço na sua
época. Certas realidades – como a pena capital e o uso, ainda que mitigado, da tortura –
retratam os limites da época, mas não tiram o mérito da Igreja em conformar o direito barbárico
do primeiro milênio à consciência do Evangelho, ainda que de modo lento e gradual.
Referências
2. SHANNON, Albert C.. The Medieval Inquisition. Michael Glazier/Liturgical Press, 1991.
p. 44.
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5. Cf. Santo Tomás de Aquino, Suma Teológica, II-II, q. 188, a. 6: "Assim como é maior
iluminar do que simplesmente brilhar, maior é dar aos outros o que foi contemplado do
que simplesmente contemplar."
6. Denzinger-Hünermann, 761.
9. SHANNON, Albert C.. The Medieval Inquisition. Michael Glazier/Liturgical Press, 1991.
p. 71.
11. KONIK, Roman. Inquisição: Mito e realidade histórica. [Setembro, 2006]. Catolicismo.
Bibliogra a
BARBER, Malcolm. The Cathars: Dualist Heretics in Languedoc in the High Middle
Ages. New York: Routledge, 2000. 304p.
SHANNON, Albert C.. The Medieval Inquisition. Michael Glazier/Liturgical Press, 1991.
182p.
VIDMAR, John, O.P.. 101 Questions and Answers on the Crusades and the
Inquisition: Disputed Questions. Paulist Press, 2013. 128p.
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