Noturno
É importante ter em conta que o presente texto de análise sobre o conto “A Ilha ao
meio-dia” apresentará, no mínimo, dois Cortázar's: Um teórico e crítico literário, autor de
Valise de Cronópio (2008), e outro literato, o contista da obra a que são propostas as
anunciadas explanações. O Cortázar da teoria, no ensaio "Alguns aspectos do conto",
elabora definições do conto e trata de elementos constituintes que ele identifica. Nesse
texto, como definição, o escritor argentino não nos apresenta apenas um número reduzido
de enunciados lacônicos e curtos ou diagnósticos e demarcações pontuais, o que poderia ser
relacionável com a própria extensão do conto. O autor vai talhando o conceito sondando a
natureza do gênero com justa intensidade e delonga, de forma contínua e cautelosa,
dissolvendo o objeto da análise que ele observa ser “tão esquivo nos seus múltiplos e
antagônicos aspectos [...] tão secreto e voltado pra si mesmo” (p.149). O conto para Júlio
Cortázar é marcado pela tensão, é um "caracol da linguagem": o tempo e espaço do conto
condiciona sua forma técnica de constituição, submetida a uma alta pressão de espírito e em
que a pequeneza de extensão exige a abertura para além do próprio texto. Cabe ao conto ser
uma fotografia, ao passo que caberia ao romance ser um filme. O conto recorta de modo
que atire o leitor numa imensidade de sugestões existentes no que é tematizado, ou seja,
parte do limite físico, e é determinado pela forma estética como é utilizada essa limitação.
Contudo, nos momentos finais do conto, após a descrição do resgate do homem que
estava no avião, feito por Marini, se instaura um paradoxo que recai também sobre a
questão do gênero de produção literária com o qual Júlio Cortázar declara trabalhar
predominantemnte, isto é, o realismo fantástico. Klaios, o patriarca e mais velho da ilha de
Xiros, ao ver o corpo do homem na praia, se pergunta como o homem completamente
dilacerado e insanguentado pôde nadar e se arrastar até a ilha. A presença de Marini diante
desse questionamento é posto em xeque. Nesse momento, muda-se o plano da narrativa do
conto, e nesse, Marini não está na ilha. Essa informação é ratificada nas palavras que
encerram o texto, em que o patriarca olha fixamente para o mar procurando novas pessoas
envolvidas no acidente, mas como é de costume, estavam eles, moradores da ilha, sozinhos,
e o que havia de novo entre eles e o mar era exclusivamente o corpo de um sujeito
desconhecido.
Ricardo Píglia em Teses sobre o conto (2004), afirma ter o conto um caráter duplo.
No que é posto como conto clássico, existiria uma estrutura em que é narrada uma história
em primeiro plano, e uma história secreta no segundo plano, esta última sendo elíptica e
somente desvendada no lumiar do final do texto. Nesse sentido, o conto consistiria sempre
na coexistência de duas narrativas. O conto como ambivalência, antagonismo,
bifacetariedade. Em A ilha ao meio-dia de Cortázar temos o rompimento com a história
contada no primeiro plano nos trechos finais apontados. Com a apresentação de uma
dimensão da história de Marini e a ilha de Xiros em que ele não estava na ilha, e que não
abandonou seu mundo para o exílio de gozo e conciliação, temos sugestões que apontam
para a história não contada e misteriosa. Como parece razoável, o homem que estava no
avião, que caiu no mar e se arrastou até a praia, poderia ser o próprio Marini, e não alguém
que estaria o substituindo.
Na Poética do Aristóteles, o filósofo ao tratar da verossimilhança e distinguir o
discurso poético do historiográfico diz ter na poiesis aquilo que poderia ser, enquanto que a
historiografia trata do que de fato é. No texto do Cortázar, têm-se dois planos de narrativa
em que o segundo é revelador e transformador em relação ao primeiro, e ao dialogar os dois
planos é possível recolocar a primeira narrativa dentro da realidade do personagem central
como aquilo que poderia ser, e isso dentro do literário. A obsessão pela ilha, a dimensão do
desejo, da necessidade de reecontro, de negação da sua realidade produz a transcendência
das próprias dimensões narrativas. A fusão do que é e do que poderia ser, da realidade e do
sonho, da consciência e inconsciência.
Cortázar ao tratar das razões do gênero realismo mágico cita crer, como Alfred Jarry
que o verdadeiro estudo da realidade não está nas leis físicas, químicas ou geográficas que
inspiraram o positivismo e a revolução científica do século XVIII, e sim nas excessões. O
escritor argentino converte as formas tidas como irreais, fantásticas para tornar o
inexprimível e indível do real, expressáveis. O conto A ilha ao meio-dia reúne elementos
acerca da condição da existência humana que evidentementemente emergem ao que é
comunicável graças à força da ruptura que se faz do mundo regular e regido por constantes.
Bibliografia
CORTÁZAR, Julio: <<A ilha ao meio-dia>>, in: Todos os fogos o fogo. Tradução de
Glória Rodrigues. Rio de Janeiro, 2009.
PIGLIA, Ricardo: <<Teses sobre o conto>>, in: Formas breves. São Paulo: Companhia das
Letras, 2004.