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Universidade Federal do Ceará

Pós-Graduação em Sociologia
Doutorado em Sociologia
Monalisa Lima Torres

A PRODUÇÃO DA IMAGEM DO CANDIDATO E AS DISPUTAS


SIMBÓLICAS NAS ELEIÇÕES DE 1988 E 1992 EM BARREIRA (CEARÁ).

Fortaleza
Maio de 2014
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SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO ................................................................................ P. 03
2. . OS MITOS E A PRODUÇÃO DO CAPITAL POLÍTICO ............... P. 05
3. EMANCIPAÇÃO POLÍTICA E LUTAS PELAS TOMADAS DE
POSIÇÃO NO CAMPO POLÍTICO .................................................. P. 15
4. A FABRICAÇÃO DA IMAGEM PÚBLICA DE DR. JÚNIOR: AS
DISPUTAS SIMBÓLICAS NAS ELEIÇÕES DE 1988 E 1992.......... P. 16
5. CONCLUSÃO ................................................................................... P. 22
6. BIBLIOGRAFIA ................................................................................ P. 24

LISTA DE FIGURAS

Figura 1 – Governador Tasso Jereissati, em 15 de abril de 1987,


sancionando a Lei Estadual nº 11.307 que emancipava
Barreira. Sentado ao seu lado esquerdo, Ernani Jacó, filho e
herdeiro político de Dr. Brunilo. ............................................ P. 16
Figura 2 – Cartaz da campanha de 1992. Dr. Júnior, governador Ciro
Gomes e Zé Bernardo............................................................. P. 20

LISTA DE TABELAS

Tabela 1 - Resultado das eleições locais de 1988, no município de


Barreira ...................................................................................... P. 18
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1. INTRODUÇÃO

A redemocratização no Brasil trouxe a restauração do Estado de


direito com a queda dos governos militares. No Ceará, houve a ruptura de
ciclos de dominação tradicional de base agrária e a emergência de outras
formas de legitimação política vinculadas à ideia de administração racional-
burocrática (LEMENHE, 1995; MARTINS, 2002). Além disso, a partir de
meados dos anos oitenta, a descentralização político-administrativa
acompanhada pela ampliação dos repasses fiscais e da competência tributária
aos municípios criou um cenário favorável ao surgimento de novos municípios,
o que se intensificou com a promulgação da Constituição Federal de 1988 1.
Nesse contexto de transformações institucionais e de rupturas na estrutura
política inserimos Barreira, pequena cidade cearense, emancipado de
Redenção em 1987.
Durante muito tempo (de meados da década de 1960 até início da
década de 1990) houve um predomínio quase oligárquico da família Jacó no
campo político. Eram eles que detinham o poder de indicar aqueles que
concorreriam para cada cargo eletivo bem como o capital político e eleitoral
para definir os resultados das eleições. Tal hegemonia só é rompida no pleito
de 1992 quando um médico, Glicério de Moura Júnior (conhecido por Dr.
Júnior), é eleito prefeito. Este, em suas campanhas eleitorais, se colocava
como o “avesso dos políticos autoritários e clientelistas”, investia na imagem de
único “responsável e capaz pela mudança política no município” se opondo ao
“anacronismo das principais lideranças políticas” que, há anos, dominavam a
região.
O que nos estimulou a desenvolver esta pesquisa foi compreender a
“postura subversiva/profana” deste médico, para usar as expressões de
Bourdieu, e o modo como conseguiu redefinir os critérios de escolha dos

1
A Constituição de 1988 instituiu plena autonomia aos municípios que, agora, são de fato
“entes federativos com prerrogativas invioláveis por qualquer nível mais abrangente de
governo” (TOMIO, 2005. p. 123). A nova Carta Magna transferia à Assembleia Legislativa não
só a autoridade para definir as regras que regulamentariam o processo emancipacionista como
o controle sobre a maior parte de sua tramitação. Além disso, “a prerrogativa exclusiva de os
eleitores iniciarem a tramitação do processo e a manifestação popular no plebiscito limitaram a
capacidade de controle do poder Executivo sobre o resultado Legislativo” (Idem, p. 142). Tais
mudanças contribuíram para a criação de 1.385 novos municípios no Brasil, foi a chamada
“onda emancipacionista”.
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representantes políticos no município e “desnaturalizar” as formas de


relacionamento entre candidato e eleitor típicos da época.
A partir de uma visão da política como mercado, este artigo objetiva
analisar como se dá produção da imagem do candidato ou, nas palavras de
Peter Burke, como se “fabrica a imagem pública de alguém”; quais
mecanismos são acionados a fim de dar competitividade a candidatos que não
ocupam posição dominante (mandante) no campo político; como a propaganda
política e/ou as imagens “fabricadas” funcionam para a acumulação de capital
simbólico e como é feita e sua conversão em capital político e eleitoral.
Como fontes bibliográficas secundárias, nos apoiaremos em estudos
acerca da comunicação midiática e sua relação com a política sendo as
principais referências Rejane Vasconcelos Acciolly Carvalho, Gabriela Scotto,
Sal Randazzo, entre outros. No que se refere aos instrumentos simbólicos para
a fabricação da imagem do candidato adotaremos as contribuições de Pierre
Bourdieu, Peter Burke, Moacir Palmeira, Beatriz Heredia, Irlys Barreira, Júlia
Miranda. Essas leituras contribuirão para a compreensão das estruturas
simbólicas concernentes àquela organização societária quanto a dinâmica da
política na região.
O conceito bourdieusiano de campo político nos servirá de
instrumento para a aproximação da realidade, na medida em que possibilitará a
observação das disputas pelas posições no interior do campo bem como os
instrumentos simbólicos utilizados pelos seus ocupantes para tal fim.
Entendemos como campo político o lugar que é, ao mesmo tempo, campo de
forças e campo de lutas no qual se disputa a posse dos instrumentos de
produção da representação do mundo social.
Percebendo a memória enquanto um “atributo humano
estreitamente dependente da vida social e por ela determinada” (RIGOTTO,
1999. p. 93), a entendemos como um importante instrumento de reflexão por
ser eficaz mediador entre nossa geração e as testemunhas do passado,
intermediário informal da cultura (sendo os mediadores formais constituídos
pela escola, pelo partido político, pela igreja, etc.), meio capaz de captar as
posições sociais dos indivíduos, suas paixões, seus pontos de vista, e o
intrincado jogo de relações que mantêm com outros indivíduos e com a
5

sociedade. Aspectos que a História, “apoiada unicamente em documentos


oficiais, não pode dar conta” (BOSI, 2003. p. 15).
É interessante ressaltar que toda memória tem seus desvios, suas
lacunas e que esses “esquecimentos”, ao contrário de serem obstáculos ao
pesquisador, são dados que têm vários significados e precisam ser analisados.
Os esquecimentos e as omissões, ou mesmo “os trechos desfiados da
narrativa são exemplos significativos de como se deu a incidência do fato
histórico no cotidiano das pessoas, dos traços que deixou na sensibilidade
popular daquela época” (Idem, p. 18), dando importância, igualmente, a
existência de uma memória coletiva, produzida no interior de uma classe social.
Essa memória é alimentada pelos símbolos, ideias, valores e sentimentos que
constituem a identidade daquele grupo.

2. OS MITOS E A PRODUÇÃO DE CAPITAL POLÍTICO

A dominação pode fundamenta-se em diversos motivos de


submissão desde o afeto suscitado pelo chefe, a obediência a um costume
antigo ou a observância de regras/leis estatuídas (Weber, 2003). De qualquer
modo, para que um tipo de dominação se estabeleça e se reproduza deve
atender a um critério fundamental, a saber, a crença na legitimidade do mando.
Assim, a fé na legitimidade da autoridade do chefe é o que mantém o seu
domínio estabelecido e permite sua reprodução no poder. Numa perspectiva
convergente, Bourdieu defende que para um agente permanecer em situação
de domínio no interior de um campo, para que continue a exercer papel de
mandante é necessário que os mandatários possuam instrumentos de
percepção que identifiquem o mando daqueles como legítimo, ou seja, que “o
dominado aplique aos atos do dominante (e a todo o seu ser) estruturas de
percepção que sejam a mesma que o dominante utiliza para produzir tais atos”
(BOURDIEU, 1996. p. 168). É a força do poder simbólico, poder invisível que
só pode ser exercido com a cumplicidade mútua dos agentes que constituem
essa (ou qualquer) relação de poder.
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O produto oferecido pelo campo político são os instrumentos de


percepção e expressão do mundo social. Como em todo campo, estes são
desigualmente distribuídos. Os mandantes, ou seja, aqueles que ocupam a
posição de domínio no campo, possuem (e buscam manter) o monopólio
desses instrumentos cuja concentração é tanto possível quanto maior for a
condição de despossuídos de capital cultural e material por parte de seus
mandatários. Essa condição de dominado implica numa menor participação
ativa no campo político, permitindo, por parte dos mandantes, o acúmulo de
capital político e sua reprodução no poder.
Tendo como base essas idéias, voltemos o olhar para Barreira no
intuito de compreender que instrumentos de produção do poder eram
acionados pela oligarquia Jacó para a construção de sua hegemonia no campo
político. Para tanto, partimos do pressuposto que o tipo de organização
societária de Barreira era um exemplo ilustrativo do modelo denominado por
Maria Isaura Pereira de Queiroz de estrutura de parentela.
A parentela, na perspectiva de Maria Isaura, consiste em uma
estrutura forte, baseada na solidariedade social e constituída por um conjunto
de indivíduos e/ou núcleos familiares que se ligam através de laços/vínculos
sanguíneos, de compadrio e/ou matrimoniais. Devido a essa capacidade de
agrupar diferentes indivíduos, de diversas formas numa ampla e complexa rede
de solidariedade, a parentela se afasta do conceito antropológico de clã e de
grandes ou extensas famílias. Além disso, a distância geográfica – muitos dos
grupos familiares que a compõem não vivem, obrigatoriamente, no mesmo
local – não enfraquece seus laços ou impede a gama de obrigações (dons e
contradons) que os unem.

A “pirâmide truncada” caracterizaria sua estrutura social na qual o


patriarca, seguido por sua família, ocuparia o topo enquanto que os outros
grupos familiares, de acordo com suas posições socioeconômicas, se
dividiriam em sua base. Tal configuração ilustra bem o caráter de subordinação
desse tipo de organização. Por isso, afirma Maria Isaura, a solidariedade é de
tipo vertical, embora não exclua a possibilidade de existência de solidariedade
de tipo horizontal – entre mandantes ou entre mandatários que ocupam o
mesmo degrau na escala de estratificação social. É interessante observar que
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apesar da subordinação, do domínio do chefe a violência a qual a parentela é


submetida, é atenuada pelos laços pessoais que os ligam. Essa capacidade
de metamorfosear as relações de dominação (violência simbólica) em relações
domésticas de familiaridade, afetivas através da solidariedade, seja vertical ou
horizontal, e das redes de obrigações (dons e contradons) é o cimento que
mantém coeso a parentela e garante a legitimidade de mando e a reprodução
do poder do chefe. Apesar dessa estrutura piramidal, a autora observa a
possibilidade de mobilidade social dentro da organização parental, o que vai
depender da capacidade tanto pessoal do indivíduo (do carisma, na acepção
weberiana) quanto de conquistar e/ou acumular bens de fortuna, sendo este
último o de maior peso.

O patriarca da família Jacó, Brunilo Jacó de Castro e Silva,


conquistou posição de mando no campo político devido no só ao capital
econômico e cultural que possui mas também em razão das imagens que
aciona graças a sua atuação frente a população: advogado de carreira e
“médico2” nas horas vagas, fazendeiro que acolhe trabalhadores rurais em sua
propriedade (em regime de parceria), Dr. Brunilo estava “sempre disposto a
ajudar aquele que o procurasse”. Como um Grande Pai, representava a figura
do provedor, do protetor, do conselheiro, enfim, do chefe que reivindica para si
obediência a uma ordem do qual é o centro. Sua autoridade era comparada a
de um pai a quem todos respeitavam sem objeção, a quem todos recorriam em
momento de precisão, o que reforça o seu caráter de chefe patriarcal. Nas
palavras de FACS:
O Dr. Brunilo não era um poder de impor, de mandar, de gritar, era
um poder de autoridade... até para soltar criminoso, para esconder
criminoso sabe?! De amizade, de médico... o pessoal com ele tinha
uma facilidade muito grande de trocar favores. Então um criminoso
que cometesse um crime grave, se matou, se esfolou e tivesse
debaixo das asas de um deles, de um advogado, por exemplo,
estava resolvido, tava acabado, ninguém mexia com ele (FACS, 18
de novembro de 2012).

Na mitologia, os arquétipos do Grande Pai são representados pelo


Logos (ordem e razão) e simbolizam “tudo aquilo que tem idade, é ordenado e

2
Devido ao acúmulo de capital cultural, Dr. Brunilo possuía conhecimentos que lhe permitia
“identificar doenças simples e medicar as pessoas. Ele tinha, inclusive, em sua fazenda, uma
espécie de mini farmácia de onde doava medicamentos a pessoas mais carentes” (Depoimento
de ABJ, afilhado de Dr. Brunilo).
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estabelecido” (RANDAZZO, 1997. p. 141). As características positivas do


Grande Pai se constituem em regras normativas e organizativas, em leis e num
sentido de ordem hierárquica cuja manifestação arquetípica ocorrem,
principalmente, na estrutura da família patriarcal. Outras manifestações são: o
rei, o professor, o comandante, o treinador, o presidente, o padre, etc.

O mito do Grande Pai é mais antigo do que se possa imaginar. Entre


os antigos deuses gregos Cronos e Zeus são os exemplos mais remotos e
duradouros do arquétipo do Grande Pai, simbolizando “a imagem de um Pai
Universal, um deus masculino todo poderoso que defende com justiça os
fracos e indefesos” (Idem, p. 142) e, por diversas vezes, foi acionado para
legitimar uma autoridade que se constrói sob a égide de estruturas
hierárquicas, fundada em relações de tipo intimista no qual o chefe é o grande
provedor que exige, dos seus dependentes, fidelidade e obediência às suas
ordens.

O poder de mando de Dr. Brunilo, originariamente carismática, é


construído a partir do reconhecimento de sua capacidade intelectual, de seu
prestígio como “médico”, de seu bom trato com as pessoas, de sua habilidade
em conciliar conflitos bem como de sua capacidade de distribuir favores. E se
conserva, por quatro décadas, por conseguir, como nenhum outro, manter-se
como portador de diferentes tipos de capital (simbólico, cultural, econômico, de
notoriedade, político). Desse modo, tais predicativos, “santificados pela
tradição”3, para usar as palavras de Weber (2003), possibilitaram a reprodução
do domínio da família ao longo da história de Barreira.
De um modo geral, o universo da política é visto pelo cidadão
comum (aqui nos referimos àquele que não é político) como externo ao seu
cotidiano, como algo que se conhece muito pouco e identificado a uma
entidade de difícil definição, o “governo” (PALMEIRA, 2006). Desse modo, um
político se destacaria das outras pessoas pelo seu conhecimento, ou seja,
“‘saberem onde estão as coisas’, conhecerem as leis, serem conhecidos e
terem conhecidos em muitos lugares, e sobretudo serem donos de um certo

3
A exemplo do poder tradicional, um de seus instrumentos de reprodução de domínio e
autoridade foi a fidelidade passada de geração a geração – e nesse caso, no interior da
parentela –, “inculcada pela educação e pelo hábito nas relações da criança com o chefe da
família” (WEBER, 2003. p. 133).
9

saber fazer (...) que os capacite para a gerir conflitos de toda espécie”
(PALMEIRA, 2006. p. 140).
Bourdieu entende esse alheamento do cidadão comum como
conseqüência do monopólio dos meios de produção propriamente políticos dos
profissionais (mandantes). Estes, ocupando posição de domínio no interior do
campo político, impõem limites aos acessos aos recursos, aos mandantes de
outras esferas, às instituições. É a centralização do capital político que lhes
garante permanecer no controle do campo (e manter sua posição frente aos
seus concorrentes bem como aos mandatários), lhes permitindo acumulação
de outros tipos de capital.

Daí a lutas dos profissionais pelas posições no campo político assume a


forma de luta pelo monopólio da utilização dos instrumentos de poder
objetivado (o poder de dispor dos recursos púbicos e administrativos de modo
legítimo e monopolizado). Em outros termos, se manter no poder implica não
só impor uma representação do mundo social que legitime sua autoridade
frente aos mandatários como neutralizar a oposição, não lhes deixando espaço
para atuar em relação aos seus representados na medida em que reúne em
torno de si o “poder sobre os poderes públicos, se fazendo ver, crer, predizer,
conhecer e reconhecer.
(...) nas democracias parlamentares, a luta para conquistar a adesão
dos cidadãos (o seu voto, as suas quotizações, etc.) é também uma
luta para manter ou para subverter a distribuição do poder sobre os
poderes públicos (ou, se se prefere, pelo monopólio do uso legítimo
dos recursos políticos objetivados, direito, exercito, política, finanças
públicas, etc.). (...) Para garantirem esta mobilização duradoira, os
partidos devem, por um lado, elaborar e impor representação do
mundo social capaz de obter a adesão do maior número possível de
cidadãos e, por outro lado, conquistar postos (de poder ou não)
capazes de assegurar um poder sobre os seus tributos (BOURDIEU,
1989. p. 174).

A ligação pessoal de Dr. Brunilo com figuras importantes do cenário


político estadual tais como Virgílio Távora, Paulo Sarasate e César Cals, lhe
garantia o repasse de recursos financeiros, a capitação de obras, o domínio
sobre a distribuição de empregos públicos, lhe permitindo figurar como grande
distribuidor de favores “operando no limite da ‘exclusão para cima’, isto é, de
ter o poder acumulado de favores prestados e não retribuídos” (PALMEIRA,
10

2006. p. 139). Dessa forma, podia (re)fazer alianças políticas com outras
lideranças locais; conquistar apoio político dos chefes de grandes famílias.

Com o Virgílio Távora ele tinha um poder muito grande. O Virgílio


Távora era praticamente da casa deles. Tudo o que eles queriam eles
conseguiam com o Virgílio. (...) Poço profundo aqui foi distribuído
como quem derramasse bala para menino em festa de aniversário.
“Taqui (sic) tantos poços, pode distribuir para seus amigos aí, para os
seus correligionários, para dar de presente para seus amigos
fazendeiros lá, cavar poço”. Então o Virgílio Távora tinha essa
bondade com ele e mandava fazer mesmo. Para você ter uma ideia,
no tempo em que surgiu o Danísio Correa [escola estadual de ensino
médio] não tinha concurso público. O governo do Estado nomeava as
pessoas. Eu lembro que o papai [vereador do distrito de Barreira]
recebeu, do Antônio Jacó, três fichas de nomeação para dar a quem
ele quisesse e têm pessoas de emprego efetivo até hoje (FACS, 18
de novembro de 2012).

Cada subchefe de um núcleo familiar possuía seu próprio curral


eleitoral. Era entre esses subchefes que Dr. Brunilo escolhia os candidatos,
seja a vereador seja a prefeito, que iriam concorrer ao pleito municipal. O
oligarca também determinava os candidatos a serem votados por cada curral.
Ressaltando que, segundo Maria Isaura, a parentela não eram estruturas
estáveis e imóveis – havendo a possibilidade de emergência de outros
subchefes ou mesmo chefe – muito menos harmônicas: uma de suas principais
características era o paradoxo solidariedade e conflito. A chance de ascensão
ao domínio da parentela proporcionava a disputa interna (mas também externa)
entre suas principais forças e, se intensificada, poderia dividir o grupo ou
reconfigurar as posições de mando no campo político. Diante dessas
possibilidades é notável o domínio exercido por Dr. Brunilo sobre o campo
político em Barreira permitindo-o realinhar, distribuir e/ou conciliar interesses de
forma a manter o controle sobre a política local evitando a emergência de
pessoas e/ou grupos que lhe fazendo oposição, ameaçassem o poder.
Sendo Barreira o local onde se distribuía os indivíduos de sua
parentela e onde os mais poderosos subchefes atuavam, estes na sua maioria
comerciantes, exerciam pressão para que o distrito ganhasse melhorias,
sobretudo em seu “centro urbano”. As necessidades por serviços públicos de
saúde, educação, transporte, infraestrutura, entre outros foram aos poucos
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sendo satisfeitas, o que colaborava com a reprodução no poder dessas


subchefias e da família Jacó.

A morte de Dr. Brunilo4 em 1985 abala a disposição de forças no campo


político e, consequentemente, o controle sobre os instrumentos de produção da
representação do mundo social da família Jacó (e a estrutura de parentela que
servia como paradigma para a organização social em Barreira). Tal conjuntura
estimula o realinhamento das posições políticas e a disputa pela hegemonia no
campo, proporcionando o aparecimento de forças heréticas que propunham
outras formas de percepção e expressão do mundo social. Entretanto, pela
força da tradição e devido ao capital simbólico e político acumulado pelo
patriarca da família Jacó, esta continua a manter o domínio político no distrito.
Os Jacó ainda monopolizavam a produção da representação do mundo
social. Por exemplo, os modos de relacionamento entre político e eleitor se
baseavam na mítica do Grande Pai que protege, alimenta, dá abrigo e que
exige respeito a uma hierarquia, fidelidade e obediência cega ao chefe (o
Grande Pai), respeito às regras impostas sendo que aquele que se desviasse
dessas normas de regulamentação eram, automaticamente, colocados na
periferia, implicando numa prática política patriarcalista e severamente cordial.
Depois que o Dr. Brunilo morreu ficaram alguns chefes, mas não foi a
mesma coisa. No meu entender houve uma diferença, porque o Dr.
Brunilo era flexível, era maleável, era conversador, era brincalhão. E
eles [herdeiros políticos de Dr. Brunilo, seus filhos] achavam que já
tinham o poder, e na época, realmente tinham, e dominavam e era
uma ditadura mesmo. Era dizendo que “era do meu jeito” e a gente
tinha muito cuidado em não sair do lado deles porque se saísse do
lado deles corria muito risco... era com a polícia, era com a justiça.
Tendo a proteção deles tava tudo bem, mas se a gente precisava de
alguma coisa tinha que se rebaixar, tinha que prestar cerimônia, mas
isso é coisa de chefe mesmo (FACS, 01 de dezembro de 2012).

A exemplo da dominação carismática, os herdeiros políticos de Dr.


Brunilo – Antônio e Ernani Jacó, em particular – não conseguiam reunir, em
uma só figura, tantos atributos, o que fragilizou ainda mais o grupo, que
precisava, para continuar a frente da política local, a produção/utilização de
outros meios que os legitimassem como lideranças.

4
Dr. Brunilo morre em 22 de maio de 1985, aos 82 anos.
12

Corroborando para o quadro de derrocada do poder político da


oligarquia Jacó, na esfera estadual, segundo Lemenhe (1995), Mônica Dias
Martins (2002) e César Barreira (2008), muitas circunstâncias contribuíram
para o abalo na lógica de reprodução do poder pelas antigas lideranças
políticas rurais. Entre elas podemos destacar a mudança ocorrida na economia
com o avanço das relações capitalistas e nas transformação das relações de
trabalho tanto capitalista quanto não-capitalistas (alterações no modelo de
parceria no campo, o declínio da cultura do algodão e o aumento da criação de
gado proletarizam os trabalhadores do campo, que deixem de morar no seu
local de trabalho, o que enfraquece os laços de dependência que ligam estes
aos seus patrões).

Essa nova configuração socioeconômica introduz consideráveis


modificações no campo da política, em especial, no que se refere à relação
político-eleitor: o camponês “passa a ser um novo eleitor, cujo voto deve ser
conquistado” (BARREIRA C., 2008. p. 103). Por isso, o discurso do político,
passa por algumas mudanças e contempla questões como as demandas das
populações rurais.

Vale ressaltar que, no campo político, os mandatários não estão isentos


de sofrer pressões tanto esotéricas (de outros agentes em busca de tomar a
posição de domínio) quanto exotéricas (dos mandatários e de outros elementos
exteriores ao campo). Seguindo o mesmo movimento dialético mercado-
produção (Marx), observamos uma mútua influência entre demanda-discurso
político: não só a demanda/mercado cria o produto como o produto engendra a
demanda. Quanto maior for a concorrência/competitividade dos profissionais
pelas posições de mando no campo político e/ou mais ativos forem os cidadãos
(exigindo demandas e representação de seus interesses) mais essa lógica
parece se adequar ao campo da política.

Nessa nova conjuntura, a lógica do voto por fidelidade e/ou gratidão


vai dando lugar a outra lógica, ao “voto racional, consciente” e obrigando o
político a pensar em programas de governo que atenda aos anseios de seus
eleitores. Mudança que é reforçada devido a importantes transformações no
cenário nacional e estadual. A revitalização política (período marcado pela
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redemocratização brasileira, década de 1980 e início de 1990) instaura no


imaginário social da época e, por conseqüência, nas falas dos mais diversos
agentes políticos uma dimensão valorativa que aponta para o “novo”; no Ceará,
ganha força política um grupo de empresários que se colocam contra as
“antigas lideranças tradicionais”. Estas, ligadas ao “clientelismo” e ao “atraso”
seriam as responsáveis pela pobreza, pelo paternalismo e empreguismo no
estado (MARTINS, 2002) e por isso se fazia necessário:

(...) o deslocamento dos ‘coronéis’ (...) do centro de poder, embora


identificados com o empresariado, inclusive representantes do capital
financeiro, (...) [como] condição para implantar uma política
econômica com justiça social que atenda aos interesses dos novos
empresários os quais, segundo sua argumentação, se confundem
com os da coletividade (MARTINS, 2002. p. 147-148).

O grupo dos “novos empresários” se destaca no cenário estadual


por introduzirem na política a mentalidade moderna e por trazer em seus
discursos a ideia da administração pública pautada na racionalidade e na
competência. Aliado a isso, a modernização e ampliação do Parque Industrial
cearense expandiu consideravelmente a oferta de trabalho na região
metropolitana, e em especial em Fortaleza, o que exigia outra postura por parte
do Estado, qual seja, a “racionalização dos custos e a operacionalização da
máquina administrativa” (BARREIRA C., 2008, p. 106).

O discurso dos novos empresários é o da moralização dos serviços


públicos, de conteúdo social-democrata: melhoria do padrão de vida e
consumo, desenvolvimento do mercado interno, direitos do cidadão,
entre outros. O modelo que melhor se adequa à nova administração é
o da empresa capitalista: gerenciamento moderno e racional –
eficiência na prestação dos serviços básicos, maior produtividade dos
servidores, eficácia na aplicação de recursos, utilização da
informática no planejamento e tributação – aliado ao ‘marketing’
político da ação de governo, através do uso intenso dos meios de
comunicação de massa tanto da grande imprensa como de veículos
alternativos (MARTINS, 2002. p. 149).

Na campanha para governador em 1986, Tasso Jereissati levanta a


bandeira da necessidade de renovação política no Ceará. É contra a estrutura
clientelista responsável pela miséria, o analfabetismo e o atraso econômico que
o grupo dos “novos empresários” se coloca. É nesse sentido que a vitória de
Tasso Jereissati sinaliza para um momento de ruptura, para a separação entre
o passado e o futuro, entre o velho e o novo, entre o atrasado e o moderno,
14

nas palavras de Irlys Barreira: para a “delimitação simbólica de uma época”.


(BARREIRA I., 2008). Foram as ações subversivas de vanguarda do grupo de
Tasso que deslegitimaram as “antigas” formas de fazer política introduzindo
uma outra lógica de ação política.

Mais uma vez os mitos são acionados para retratar e/ou legitimar
posições. Dessa vez, temos a disputa imagética entre pai e filho, entre as
velhas e as novas gerações: o Pai Terrível – que quer manter seus
descendentes sobre sua autoridade e domínio, impedindo-os de crescer e se
tornarem “autônomos, independentes, livres5” – e o Filho, que luta para
subverter a ordem estabelecida.

O Pai Terrível, simbolizado na mitologia clássica por Cronos-Saturno,


é o pai devorados, o macho que tenta evitar o crescimento de seus
rebentos e impede que eles encontrem seu próprio caminho e sejam
donos de si mesmos. O aspecto devorador deste arquétipo de pai
fica manifesto na rigidez da ordem patriarcal existente, nas suas
regras e leis que limitam e coagem o desenvolvimento do ego. Cada
nova geração tem que lutar contra os pais (RANDAZZO, 1997. p.
159-160).

O Pai Devorador, aspecto negativo do Grande Pai, é representado


como o velho, o atrasado, o violento, o autoritário cuja manifestação
arquetípica é o patriarca que, no caso em discussão, foi identificado com o
paternalismo, o clientelismo, o coronelismo. O Filho é a imagem do novo, do
progresso, da razão e sua função é romper os grilhões que o prendem ao pai
numa analogia a eterna luta entre as velhas e as novas gerações.

Na mitologia grega, a castração de Uranôs por parte do filho Cronos-


Saturno simboliza a nova geração desafiando a ordem estabelecida
da velha. A castração é uma necessidade inevitável que precisa ser
encarada por cada nova geração. Logo depois de castrar o pai,
Cronos começa a devorar os seus próprios rebentos pois temia que
um deles lhe tomasse o lugar. Pai e filho vêem um no outro o que
está esperando por eles – inevitável velhice e decadência para o
jovem, confisco e desprestígio para o velho (Idem, p. 160).

O controle e uso estratégico das posições de domínio no campo, o


monopólio dos meios de produção políticos, o emprego das mídias de massa
para a fabricação, difusão e reprodução de uma imagem mítica dos chefes

5
Nesse contexto, tais aspectos (independência, autonomia e liberdade) foram identificados
com os princípios democráticos defendidos pelos heréticos, numa clara tentativa de
diferenciação (e subversão) da doxa consagrada pelos mandantes do campo.
15

políticos estaduais assegurou vitórias sucessivas do grupo dos “novos


empresários” não só no âmbito estadual como local e nacional.

Ao passo que essas mudanças introduziam novidades no cenário


político nacional e estadual outras demandas vão surgindo, ampliando-se,
assim, os espaços para a emergência e/ou concorrência de antigas e novas
forças políticas barreirenses.

3. EMANCIPAÇÃO POLÍTICA E LUTAS PELAS TOMADAS DE


POSIÇÃO NO CAMPO POLÍTICO

O crescimento do comércio e a necessidade de melhoria de vida da


população exigiam algumas providências e iniciativas que o poder público
redencionista não satisfazia apesar das pressões dos subchefes bem como do
eleitorado. Em torno dessa problemática, lideranças políticas interessadas em
assumir posição de comando na política local iniciaram um movimento pró-
emancipacionista de Barreira mesmo a revelia da família Jacó. O movimento
foi ganhando corpo e o grupo emancipacionista, liderado pelo comerciante
Zeca Torres e o seu cunhado, o médico Glicério de Moura Júnior, agregando
capital político. Fato que pressionou os Jacó a aderirem ao movimento.

“(...) a relação que os vendedores profissionais dos serviços políticos


(homens políticos, jornalistas políticos, etc.) mantêm com seus
clientes é sempre mediatizada, e determinada de modo mais ou
menos completo, pela relação que eles mantêm com os seus
concorrentes. Eles servem os interesses de seus clientes na medida
em que (e só nessa medida) se servem também ao servi-los, quer
dizer, de modo tanto mais exacto quanto mais exacta é a coincidência
de sua posição na estrutura do campo político com a posição de seus
mandantes na estrutura do campo social. (...) Em conseqüência, os
discursos políticos produzidos pelos profissionais são sempre
duplamente determinados e afectados de uma duplicidade que nada
tem de intencional visto que resulta da dualidade dos campos de
referência e da necessidade de servir ao mesmo tempo os fins
esotéricos das lutas internas e os fins exotéricos das lutas externas”
(BOURDIEU, 1989. p. 177).

A disputa pelo domínio no campo levou lideranças políticas


concorrentes a lutarem juntas pela autonomia político-administrativa de
Barreira, processo que durou pouco mais dois anos (início de 1985 à início de
16

1987). E em 15 de abril de 1987, a Lei Estadual nº 11.307 foi sancionada pelo


então governador Tasso Jereissati elevando Barreira a município.

Figura 1 - Governador Tasso Jereissati, em 15 de abril de 1987, sancionando a Lei


Estadual nº 11.307 que emancipava Barreira. Sentado ao seu lado esquerdo,
Ernani Jacó, filho e herdeiro político de Dr. Brunilo.

4. A FABRICAÇÃO DA IMAGEM PÚBLICA DE DR. JÚNIOR: AS


DISPUTAS SIMBÓLICAS NAS ELEIÇÕES DE 1988 E 1992.

O primeiro contato de Glicério de Moura Júnior com Barreira se faz


por intermédio de seu então cunhado, Zeca Torres. No início da década de
1980, Glicério em dificuldades financeiras e desejoso por se formar médico,
aceita o convite do cunhado e muda-se para o Ceará. Após ter concluído o
curso superior, graças ao apoio financeiro de Zeca Torres, o recém-formado
médico inicia sua carreira profissional numa pequena associação de
agricultores que funda com o cunhado em Barreira, ainda distrito de Redenção.
17

Meu marido trabalhava para o Zeca e eu lembro que ele e o Dr.


Júnior tinha uma associação de agricultores. Era por essa associação
que ele consultava a gente. A gente pagava uma taxa pequena –
porque eu lembro que qualquer um podia pagar – para poder se
consultar... e eu lembro também que quando a gente perguntava
quanto era a consulta ele perguntava: “você pode pagar?”. Aí se a
pessoa dissesse que sim ele dizia que era tanto (ISC, 29 de abril de
2012).

Ingressa no quadro de funcionários do Hospital dos Arrumadores,


em Fortaleza, sem deixar de lado seu trabalho junto a população barreirense
mais carente, se notabilizando enquanto “médico caridoso” .
Durante as campanhas pró-emancipacionista em Barreira, utiliza o
momento de suas consultas para esclarecer a população da “importância da
conquista da autonomia político-administrativa para o distrito”. Nesse período,
com recursos econômicos de Zeca Torres, abre uma casa de apoio em
Fortaleza para acolher barreirenses que precisam realizar exames e/ou
consultas em hospitais da capital.
Eu pagava o Dr. Júnior pra cuidar do povo aqui. Ele já tinha uma
grande influência no Hospital dos Arrumadores e... Nós alugamos
uma casa lá [em Fortaleza]. Eu botava carro, aqui, pra levar gente pra
Fortaleza. Quando não tinha um leito desocupado lá no Hospital, nós
botava (sic) essa pessoa nessa casa e eu pagando tudo por minha
conta, pensando em ser candidato (Zeca Torres, 05 de junho de
2012).

Ao financiar essas ações, Zeca Torres pretendia, através dos


“sentimentos de gratidão” daqueles beneficiados por esses serviços, construir a
imagem de homem caridoso e conquistar capital simbólico e político no intuito
de se projetar enquanto liderança política diante dos barreirenses. No entanto,
a transformação de diferentes tipos de capital em votos exige construir relações
personificadas, vínculos pessoais e íntimos que Zeca, apesar das atividades
que patrocinava, não soube (re)produzir, ao contrário de Dr. Júnior (TORRES,
2013). Tais aspectos definiram a configuração da chapa que concorreu às
eleições de 1988: Dr. Júnior como prefeito e Zeca Torres, vice-prefeito, o
oposto do que desejava o comerciante.
Acerca da primeira eleição pós-emancipação dois grandes conjuntos
de imagens e sentimentos foram acionados para conseguir a adesão dos
eleitores pelas facções concorrentes: de um a família Jacó (Zé Boanerges Jacó
e Antônio Jacó, sobrinho e filho, respectivamente, de Dr. Brunilo) invocando
18

sentimentos de gratidão e de fidelidade, exigida por anos de serviços prestados


a Barreira. Do outro, Dr. Júnior e Zeca Torres, apelaram para sentimentos de
esperança e se auto-afirmavam como os responsáveis e capazes de
transformar o município.
Apesar do candidato a prefeito Dr. Júnior ter acumulado significativo
capital simbólico (em decorrência de sua atuação como médico no município e
da participação ativa no processo emancipacionista) e ter acionado as mesmas
imagens de Filho Herético utilizados por Tasso Jereissati (e que o levaram a
vitória) sua estratégia não logrou êxito. Segundo Torres (2013), sua derrota se
justifica por um conjunto de fatores, mas destacamos a ineficiência da
conversão dos diversos capitais acumulado em recursos eleitorais, além da
família Jacó ter se colocado não só como os “maiores e mais importantes
responsáveis pelo progresso conquistado até então” em Barreira bem como
“seus emancipadores”. O uso da imagem de “líder-fundador”, e por isso
merecedor de confiança, capaz de trazer melhorias para a cidade pesaram na
hora da escolha.

Tabela 1 - Resultado das eleições locais de 1988, no município de Barreira.


Resultado eleitoral para cargo majoritário
Coligação Nome Votos
PDS/PDT José Boanerges de Oliveira Jacó 2.900
(prefeito)
Antônio de Almeida Jacó (vice-pref.)
PMDB Glicério Moura Júnior (prefeito) 2.143
José Torres Maia (vice-pref.)
Fonte: Ata Geral de Apuração – Eleições Municipais (1988) – Tribunal Regional
Eleitoral do Ceará (TRE-CE).

Com a derrota nas urnas, o médico intensifica suas atividades no


município, principalmente no sentido de se mostrar o “oposto” do então
prefeito, Zé Boanerges. Ao descrever a gestão deste, ISC enfatiza sua má
administração e as ações de Dr. Júnior para se sobressair em relação ao
prefeito.

O Zé Boanerges, como prefeito, não foi muito bom. Primeiro, quando


começou tinha a pré-escola. (...) acho que foi bem no primeiro ou no
segundo ano ele já acabou com a pré-escola, ‘criança não precisava
de ir para a escola!’ Aí, na época (...) tinha a escola da Batalha
[comunidade de Barreira], meus meninos estudavam lá... teve uma
reunião com a diretora (...), aí reuniu os pais, para os pais pagarem
uma taxa para os alunos não perderem o ano. Aí a Glébia, que era a
19

diretora na época, conversou com o Dr. Júnior, e ele disse que os


pais que não pudessem pagar, ele pagava por esses pais. Só que era
uma taxa tão pequena (...) e a professora ainda ganhou mais do que
o que ganhava pela prefeitura. (...) e ainda teve o atraso, quando ele
[Zé Boanerges] terminou o mandato tinha três meses de atraso, que
foi pago todo quando o Dr. Júnior e o Zé assumiram (ISC, 29 de abril
de 2012).

É no exercício de sua profissão, ao manter relações de caráter


intimista com seus pacientes que o médico fabricava sua imagem pública e
capitalizava adesões, acumulava capital simbólico. Nesse sentido, Dr. Júnior
manteve e intensificou, quantitativa e qualitativamente, esses vínculos
intimistas, acentuadamente no período da gestão Zé Boanerges, fortalecendo a
imagem de “médico caridoso” e “pessoa humilde”, observável na fala de Zé
Bernardo, quando este evidencia a postura do médico quando visitava seus
pacientes.

Dr. Júnior era um ídolo. As pessoas queria estar perto dele, pegar na
mão dele. Ora, um médico. Ele chegava numa cozinha de chão
batido e sem cimento, sentava na soleira da porta ou no chão do
quintal para comer feijão com farinha e isso para o povo era uma
coisa muito importante... Então essa postura, que é característica do
populismo, ações dessa natureza para poder conquistar o povo... eu
até nem julgo, as vezes, isso como populismo porque eu não sei, de
repente ele achava bom mesmo fazer aquilo. Para mim o populismo é
quando o cara acha ruim e faz só para enganar o povo. Eu não sei do
sentimento dele em relação a isso (Zé Bernardo, 14 de outubro de
2012).

O empenho no exercício de sua profissão se projetando frente a


outros colegas da área da saúde contribuiu para a construção da imagem de
grande benfeitor, de Grande Pai. Seus pacientes e muitas das pessoas com
quem mantinha contato o percebiam como “homem bom”, “desprendido” e
“caridoso médico”, características de uma liderança carismática. Foi com essas
imagens que construiu sua candidatura para o executivo municipal em 1992.
Ao lado de Zé Bernardo, concorre mais uma vez contra a família Jacó (Ernani
Jacó e Carlinhos Jacó, filho e sobrinho de Dr. Brunilo).
No pleito daquele ano, a facção da oposição logra a fusão de dois
grandes arquétipos: o Grande Pai (manifestada nas imagens de filantropo, de
homem caridoso, competente médico que se dedica às pessoas mais carentes,
que entrega sua vida ao cuidado dos menos favorecidos) e, dentro de um
contexto de profundas transformações, o Filho Herético (o jovem intelectual,
disposto a subverter a ordem, romper com o atraso e o autoritarismo, com
20

competência para executar as transformações necessárias ao crescimento do


município) e obtém êxito ao vinculá-las aos anseios da população barreirense.
A própria capacidade do médico em produzir relações
pessoais/individualizadas com base em práticas assistencialistas, de se colocar
como “amigo com quem se pode contar em qualquer circunstância” (PFA, 22
de fevereiro de 2013), de manter e aprofundar contato com os seguimentos
mais populares conferiu ao candidato uma mística de “amigo do povo”.

Numa campanha você vai expor a vitrine, que é o palanque, em


várias localidades. E o Dr. Júnior, como sempre, era um bom médico,
era uma pessoa boa [grifos nossos]. O Dr. Júnior era uma pessoa
muito simpática, muito, muito popular mesmo. Ele era uma pessoa
que era amigo mesmo. E uma coisa: ele gosta das pessoas, conhece
o nome de todos eles. E ele começou a conquistar. E olha só o quê
que ele fez. Ele montou uma casa de apoio em Fortaleza – eu não sei
quem ajudou ele ou se foi ele próprio... porque ele já era médico e
trabalhava na Casa dos Arrumadores – onde as pessoas iam daqui
pra lá pra Fortaleza, marcava consulta e, se não pudesse ser
atendido no mesmo dia, voltava pra essa casa de apoio e tinha
almoço, tinha banho, tinha acompanhamento. No outro dia tinha um
carro indo pra levar eles. Quer dizer, é um conforto muito grande.
Então as pessoas queriam muito isso, gostavam muito disso né?! E
como muita gente se curou e a medicina no sertão é uma coisa muito
louvável e até muito endeusada por alguns ruralistas... então só por
ser médico e sendo um médico dessa forma, aí era que o pessoal
gostava dele mesmo! (Chico Torres, 08 de fevereiro de 2013).

Figura 1 - Cartaz da campanha de 1992. Dr. Júnior, governador


Ciro Gomes e Zé Bernardo.
21

Assim, tem-se como candidatos do grupo situacionista Ernani e


Carlinhos, que passam a ser identificados, pelos eleitores barreirenses, com a
“política do passado”, o “autoritarismo e a perseguição política” 6. Na facção da
oposição Dr. Júnior e Zé Bernardo, um médico e um professor, vinculados a
ideia do “novo”, da “mudança”, do “democrático”, da “razão” e simbolizando os
“renovadores”, aqueles que pelas suas capacidades intelectuais, pelo seu
capital cultural, capazes de introduzirem o progresso no município.

Ele era uma pessoa muito querida. Dedicou muita parte de vida dele
trabalhando pela saúde da Barreira. Ele tinha um calendário anual...
começava o ano ele tinha um calendário anual: onde era que Dr.
Júnior estava: em tal comunidade.... até dezembro já tava. Então, ele
vinha para Barreira, ele era médico do Estado, as pessoas entendiam
que ele fazia aquilo de graça, mas ele era remunerado. Mas, com
certeza absoluta, o trabalho que ele prestava era muito além do que
ele precisava prestar pela remuneração que recebia. Então ele foi
bom para a população nessa parte. Por isso conquistou uma
popularidade muito grande e ganhou com uma diferença de mais de
1.400 votos num total de votos que talvez fosse de 8.000 eleitores (Zé
Bernardo, 12 de agosto de 2013).

Se aproveitando dessa nova configuração, um dos maiores


recursos eleitorais do grupo que ganhou as eleições locais de 1992, em
Barreira, foi a polarização dos símbolos políticos. Se de um lado se apoia a
continuidade de domínio sob o argumento de que “é melhor não trocar o certo
pelo duvidoso”; do outro, se aposta na “mudança”. Nesses termos, a
construção da imagem de Dr. Júnior apoiada no imaginário social da época se
contrapõe ao que a família Jacó representava.

(...) e a gente via o trabalho que o Dr. Júnior fazia... aí a gente


acabava comparando mesmo o que os Jacó tinham feito, o que foi
que o Zé Boanerges fez na época dele [enquanto prefeito] e o que o
Dr. Júnior fazia pelo povo. (...) E o povo queria mudar mesmo [grifos
nossos], queria que fosse diferente do que era com os Jacó. (...) Eu
lembro que muita gente, na época do Zé Boanerges, se sentia
perseguido, humilhado e queria mudanças (...) E a gente pensava: se
ele [Dr. Júnior] faz isso só como médico, imagina o que ele vai poder
fazer se for prefeito! (ISC, 29 de abril de 2012).

Dr. Júnior soube explorar muito bem os arquétipos que atendiam aos
anseios da população bem como os diferentes tipos de capital acumulados no
exercício de sua profissão e, o mais importante, convertê-los em capital
6
Fazendo referência, principalmente, ao modo como Zé Boanerges teria administrado a
prefeitura: “com mãos de ferro” (PFA, 22 de fevereiro de 2013) e acrescenta “se você estivesse
do lado deles, estava tudo bem; mas se você fosse oposição... e mesmo quando você
estivesse do lado deles e não concordasse com qualquer coisa, já era logo tratado diferente”
(Idem).
22

eleitoral de modo a adquirir capital político que lhe garantiu competitividade


para lutar e conquistas posições de mando no campo político e resignificando a
lógica de funcionamento no campo.

5. CONCLUSÃO

Os mitos, assim como os sonhos, são reflexos de nossos desejos e


anseios mais ocultos. Eles representam nossos “sonhos coletivos”, aspirações
instintivas, sentimentos e modos de pensamento que parecem estar enraizados
em nos e que, desde sempre, orientam nossos comportamentos. De modo
semelhante, as imagens públicas “fabricadas” por chefes políticos ou por
postulantes a cargos eletivos têm buscado refletir nossos desejos
inconscientes. Segundo Randazzo, podemos interpretar simbolicamente a
eleição de um presidente como uma “mítica procura do Grande Pai”.
Tal como uma mercadoria, para competir no campo político com
agentes já consagrados e que têm a seu favor diferentes tipos de capital, o
candidato precisa descobrir os desejos (demandas) do eleitor (consumidor) ao
qual possa recorrer para constituir uma imagem pública que se posicione de
modo eficaz tanto na mente do votante quanto no mercado eleitoral (onde vai
disputar o voto com outros candidatos). Para tanto é imprescindível que ele
observe o contexto no qual se insere (cada conjuntura exige uma simbólica
especfica), desvende os modos de percepção (bem como os medos e anseios)
de seu público-alvo e, em cima disso, mitologize suas práticas e imagens.
Aproveitando as transformações políticas na esfera estadual, Dr.
Júnior foi capaz de acionar imagens, símbolos e sentimentos para a construção
de sua Imagem-Marca, para usar a expressão de Rejane Carvalho, e lograr
vencer o poderio político de uma família que há anos monopolizava os
instrumentos de produção política sem sofrer significativa concorrência. Assim,
a “nova forma de fazer política”, introduzida pelo grupo dos empresários em
oposição aos “coronéis retrógrados”, com a administração pública pautada na
racionalidade e competência, a instalação de parques industriais na região
23

metropolitana de Fortaleza (e o aumento da oferta de empregos) e a melhoria


da infraestrutura no Ceará, por exemplo, foi responsável pela ruptura com
instrumentos de representação do mundo social até então considerados
cânones.

A utilização das ideias do “novo”, do “moderno”, do “racional” bem


como a fusão de dois importantes arquétipos (o Grande Pai e o Filho Herético)
se colocaram como os principais instrumentos de conversão de capital
simbólico em eleitoral, sendo determinante para a vitória sobre chefes políticos
há bastante tempo consagrados no campo político.
24

6. BIBLIOGRAFIA

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