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DÁDIVA E MANDONISMO: REFLEXÕES ACERCA DAS DISPUTAS PELO PODER NO MUNICÍPIO

DE BARREIRA (CEARÁ).

Monalisa Lima Torres


Rejane Maria Vasconcelos de Carvalho
Emanuel Freitas da Silva
Irlena Maria Malheiros da Costa
Monalisa Soares Lopes
José Cleyton Vasconcelos Monte

RESUMO
O escopo dessa análise é refletir acerca das relações de poder no âmbito local a partir da
interação de caráter pessoal entre candidato e eleitor fundada numa economia e moral
do dom. Nesse sentido, realizou-se um estudo de caso no município de Barreira (Ceará),
durante as eleições locais de 1988 e 1992 no qual se observou como o médico, no
exercício de sua profissão, acumula capital social e logra convertê-lo em capital
político/eleitoral, emergindo como um novo ator político capacitado a disputar o pleito
municipal com candidatos pertencentes a tradicionais famílias/grupos políticos. No caso
do médico em foco, Dr. Júnior, tais capitais foram acionados de modo a engendrar nos
pacientes (eleitores em potencial) vínculos de amizade, sentimentos de afetividade bem
como a obrigação moral de dívida a ser saldada. Nesse contexto, tais sentimentos e
obrigações se estendem à esfera política fazendo com que a adesão à candidatura do
médico, a militância durante as campanhas e, sobretudo, o voto, fossem percebidos
como instrumentos por meio dos quais se amortiza uma dívida, o que possibilitou
entender a continuidade de práticas e o uso de políticas que se denominam na literatura
de assistencialistas e clientelistas. Para uma melhor compreensão sobre tal fenômeno
tomou-se como referência o sistema de dádivas, de Marcel Mauss, como modelo
conceitual capaz de explicar não só o tipo de organização societária em Barreira bem
como se fundamentam as relações entre político e eleitor. Para a análise do
funcionamento da políticas no Ceará foram indispensáveis os estudos de Maria Isaura
Pereira de Queiroz, Rejane Carvalho, Mônica Martins, Moacir Palmeira, entre outros.
No que se refere à introdução dos médicos no cenário político, buscou-se as
contribuições de Marc Bloch, Odaci Coradini, Júlia Miranda e Maria Auxiliadora
Lemenhe. Além disso, o conceito weberiano de tipo-ideal serviu de instrumento para a
aproximação da realidade, na medida em que permitiu a observação dos tipos de
dominação e a construção de uma categoria analítica: os doutores-prefeitos. A
participação em eventos políticos e o uso da técnica de Entrevista Semiestruturada
possibilitou formular noções claras sobre o modo como os eleitores vivenciam a política
no município. Esta pesquisa permitiu a apreensão da política como uma relação de troca
para além da perspectiva do simples câmbio de favores, na medida em que o caráter do
relacionamento candidato-eleitor e as práticas que engendra só são aceitáveis em um
modelo de organização societário que tem como fundamento o sistema de dádivas e
contradádivas, ora os regulando, ora os legitimando, ora os reproduzindo.

Palavras-chave: dádiva, política local, médico; relação político-eleitor.


Introdução
Voltando o olhar para a realidade política brasileira atual, observamos que,
numa sociedade ainda hierarquizada, onde os princípios de igualdade ainda não estão
plenamente estabelecidos, não só nas grandes cidades como nos pequenos municípios
do interior, figuras políticas, fazendo uso de suas atribuições públicas (ou com recursos
privados), estabelecem relações onde se trocam benefícios por voto e apoio político.
Essas e outras práticas (clientelismo, patriarcalismo, patrimonialismo), ainda recorrente
nos nossos dias, poderiam ser perfeitamente identificadas como características do
coronelismo. Entretanto, preferimos adotar um modelo conceitual mais amplo, que parte
de algo anterior ao coronelismo, qual seja, as relações interpessoais que se estabelecem
antes do surgimento do coronel, e o que motiva/movimenta tais relações: o sistema de
dádivas. Aqui, entendemos por dom ou dádiva o ato voluntário que, individual ou
coletivo, precisa ou não ser solicitado por quem recebe, e que estabelece vínculos de
solidariedade e/ou laço social. Nesse caso, basta lembrar a barganha eleitoral, onde
tanto político quanto eleitor iniciam tal relação solicitando um dom em troca de outro.
Esses dons e contra-dons na política configuram o que alguns de nossos estudiosos
denominaram por favor.
A partir dessas reflexões cabe nos debruçarmos sobre o fenômeno que motivou
esta pesquisa: a coexistência de práticas políticas tradicionais e modernas no contexto da
política local em Barreira (Ceará), tendo como sujeito-objeto o médico que se torna prefeito
e fazendo uso de práticas políticas tradicionais, se mantem no poder. Ressaltando que, no
contexto desta investigação, tradicional e moderno são entendidos da seguinte maneira:
‘Tradicional’ geralmente se refere à ausência de instituições modernas que
regulem o poder dos políticos e dos funcionários públicos, ao passo que ‘moderno’
significa predominância de procedimentos legal-racionais na administração
pública, um autêntico espírito representativo nas instituições políticas e uma
efetiva preocupação com o universalismo e o ‘bem comum’ na cultura política
(OTTMANN, 2006. p. 156).

Barreira, emancipado através da Lei Estadual 11.307 de 15 de abril de 1987, é um


pequeno município do interior cearense, que teve, em toda sua história, seis chefes do
executivo, sendo dois deles médicos – dr. Glicério de Moura Júnior (ou como era mais
conhecido, dr. Júnior) e dr. Valderlan Fechine Jamacaru (o dr. Valderlan) – que, juntos,
governaram por dez anos. Ambos, em suas campanhas eleitorais, faziam discursos
modernizadores e ambos foram afastados do exercício do cargo por improbidade
administrativa. O primeiro médico eleito foi Dr. Júnior, em 1992, cassado em 1994,
assumindo seu vice, Zé Bernardo (ou professor Bernardo). O segundo, Dr. Valderlan, eleito
em 2000 e reeleito em 2004, cassado no último ano do segundo mandato. Este último, ainda
interfere na política municipal e se mantem no poder através do apoio ao seu amigo íntimo e
atual prefeito, Antônio Peixoto. Neste trabalho daremos ênfase ao Dr. Valderlan.

Metodologia
Para a apreensão do fenômeno em estudo, como a metodologia weberiana ensina,
devemos compreendê-lo a partir das peculiaridades da sociedade da qual faz parte, estando
essas peculiaridades historicamente situadas. Desse modo, no que se refere a interpretação
das relações médico-paciente e político-eleitor a dádiva nos servirá de guia. Além disso,
fez-se uso dos conceitos weberianos de tipo-ideal para a observação dos “doutores-
prefeitos”. Lembrando que os tipos-ideais são categorias puramente classificatórias e
servem como meio de aproximação com o objeto e, como construções teóricas, funcionam
apenas como instrumento de análise da realidade, não significando a própria realidade.
Nesse sentido, entendemos por “doutor-prefeito” o médico que se desloca de sua
cidade de origem para trabalhar num pequeno município do interior e, a partir do exercício
de sua profissão, mantém relações de troca recíproca (sistema de dádivas) e por isso, ganha
a confiança do paciente (eleitor em potencial), se transformando num líder carismático. Não
tem tradição política, mas foi eleito sem grandes dificuldades. E após eleito, se perpetua no
poder, seja direta ou indiretamente.
Esta investigação fez uso da técnica de entrevista semiestruturada com
importantes figuras políticas de Barreira como Zeca Torres, Zé Bernardo e Ernani Jacó
(estes dois últimos foram prefeitos de Barreira), alguns servidores públicos que trabalharam
em Secretarias Municipais nas gestões dos “doutores-prefeitos”, pessoas próximas (amigos
e/ou parentes) de dr. Júnior e dr. Valderlan. Vale ressaltar que, em relação aos entrevistados,
todos, exceto as grandes figuras políticas e os “doutores-prefeitos”, ganharam nomes
fictícios no intuito de preservar suas identidades.
O objeto de estudo é a coexistência entre práticas políticas tradicionais e modernas
no contexto da democracia de hoje, e sua figura principal, o “doutor-prefeito”. O campo de
pesquisa é Barreira, o momento histórico é o período que compreende as eleições locais de
1992 à 2012. Onde serão observados os vínculos sociais, de intimidade e dependência
geradas a partir da relação entre o médico se transferindo para o campo da política e os
desdobramentos dessas interações na conjuntura político-social barreirense.

O modelo conceitual da dádiva


“O melhor de nossa vida/ É paz, amor e união/E em cada semelhante/ A gente ver
um irmão/ e apresentar para todos/ O papel da gratidão.
Quem faz um grande favor/Mesmo desinteressado/Por onde quer que ele
ande/leva um tesouro guardado/E um dia sem esperar/ Será bem recompensado”
(Brosogó, Militão e o Diabo - Patativa do Assaré).

Analisando a tradição política brasileira perceberemos que o coronelismo foi um


sistema político que, por muito tempo, organizou o país não só política como socialmente.
Entretanto, segundo Victor Nunes Leal, após a década de 1930, o coronelismo teria sido
extinto do nosso cenário político.
Contudo, outros aspectos, que seriam característicos do sistema coronelista, se
perpetuaram no fazer político de hoje. Tais aspectos são, entre outros, o domínio sobre um
número considerável de votos de eleitores, a que poderíamos identificar como curral
eleitoral, a desorganização dos serviços públicos – e aqui, essa desorganização não só
alimenta como prolonga o domínio de determinadas pessoas/lideranças políticas sobre o
voto de seu eleitorado.
Numa crítica a Victor Nunes Leal, Domingos Neto (2010) entende que as
categorias coronel e coronelismo são advogadas com fenômenos delimitados, bem
definidos. O que contradiz a infinidade empírica de casos que apontam o contrário. Os
coronéis se apresentariam de diversas maneiras, carregando as mais diversas características
além daquelas estabelecidas por Leal.
Coronéis podiam ser ou não donos de terra, rudes senhores guerreiros e
empresários arrojados; ricos comerciantes ou fazendeiros remediados, chefes de
parentelas ancestrais ou aventureiros recém-chegados; semi-analfabetos ou
intelectuais refinados. Coronéis tinham suas autoridades derivadas tanto da força
bruta quanto da ascendência moral, da prestação de serviços com recursos
privados ou públicos ou de tudo isso combinado em diferentes proporções.
Coronéis impunham-se pela virtù e armas próprias ou pela virtù e armas alheias;
mandavam em parte do município, no município inteiro, em conjunto de
municípios e mesmo em todo o estado; subordinavam o padre ou lhe obedeciam;
buscavam a chancela do Estado ou o ignoravam, quando lhes era conveniente e
possível (DOMINGOS NETO, 2010. p. 35-36).

Como exemplo ilustrativo, Manuel Domingos Neto, se referindo ao Ceará, nos


lembra as eleições estaduais de 1986, que foram vencidas por um grupo de empresários que
se colocavam como aqueles que combateriam os “coronéis retrógrados”. Todavia, os ditos
“coronéis retrógrados” implementaram políticas muito mais modernizadoras, por exemplo,
introduziram o planejamento de políticas públicas no Estado e foram responsáveis pela
criação de infraestrutura fundamental para desenvolvimento industrial. Uma das grandes
questões defendidas pelo teórico é que a modernização, urbanização e industrialização do
Brasil foram realizadas de forma desigual, regionalmente falando, e que a pobreza do
sertanejo nordestino foi aprofundada graças à maneira como tais mudanças se processaram,
e não como consequência da sobrevivência dos “coronéis” como chefes do poder local.
Para Maria Isaura Pereira de Queiroz, o poder de mando no âmbito local se
apoia/manteve não [exclusivamente] em função da propriedade fundiária como igualmente
afirma Domingos Neto, mas também, e aqui encontramos sua dimensão sociológica, na
parentela (PEREIRA DE QUEIROZ, 1976). É daí que a pesquisadora percebe que as
relações pessoais que constituem o mandonismo local na vida política não são irracionais,
mas se perpetuam através dos vínculos íntimos e/ou de cunho familiar. Desse modo, a
parentela assegura a durabilidade de posições sociais e de prestígio mesmo quando ocorrem
mudanças, inesperadas ou não, de caráter ideológico, político ou econômico: agem com
eficiência e rapidez para se acomodar às mudanças e garantir seu poder de mando.
Partindo dessas perspectivas entendemos que as categorias coronel e
coronelismo não conseguem abarcar toda a complexidade existente na conjuntura político-
econômico-social brasileira. Tampouco conseguem explicar a permanências de práticas
políticas tradicionais (características do coronelismo), nem o constante aparecimento de
figuras políticas que, utilizando-se dos mesmos meios dos “antigos coronéis”, se perpetuam
no poder seja direta ou indiretamente. Dessa forma, este trabalho se propõe a interpretar a
coexistência de práticas políticas consideradas tradicionais e modernas a partir do modelo
conceitual da dádiva (Mauss, 2007). Tal perspectiva nos permite compreender algo muito
anterior ao coronelismo (entendido aqui como sistema que organizou nossa vida político-
econômico-social, principalmente, na República Velha). Quais sejam, as relações que se
estabelecem entre as pessoas, ou ainda, o modelo que engendra tais relações: o sistema de
obrigações do dar-receber-retribuir.
Muito antes de Marcel Mauss, outros teóricos já haviam observado a
importância da troca no que se refere à produção e reprodução das relações sociais. Mas foi
em “Ensaio sobre a dádiva: forma e razão da troca nas sociedades arcaicas”, publicada
inicialmente em 1925, que tal discussão ganhou destaque. Nessa grande obra de Mauss,
notamos a influência da sociologia durkheimianai e, para muitos de seus comentadores, a
superação do mestre.
Em “Ensaio sobre a dádiva”, Mauss destaca que, independentemente do
momento histórico, em todas as sociedades existe uma força que liga as pessoas através de
laços sociais fundados em trocas e prestações. Essas trocas se manifestam das mais diversas
formas, mas em sua essência comportam três obrigações: o dar, o receber e o retribuir. Os
bens trocados, (assim como as pessoas), sejam materiais ou imateriais, são postos em
circulação no seio da sociedade e é sua circulação que garante a produção e a
reprodução/manutenção dos laços sociais. De tal maneira que uma dádiva/dom ofertado à
alguém sempre retornará ao seu ponto inicial. Para que uma troca seja considerada uma
dádiva ela deve ser voluntaria e estabelecer uma relação de caráter pessoal.
Entendemos por dádiva um sistema de trocas recíprocas que organizam toda a
vida em sociedade. É a partir dela que se estabelecem as relações/vínculos sociais sejam
entre indivíduos sejam entre grupos. Nesse sistema de prestações totais tudo é simbólico e
recíproco. Vale ressaltar que o sistema da dádiva ou sistema de prestações totais é um fato
social total (MAUSS, 2007; DURKHEIM, 2007), ou seja, ele percorre e atravessa os mais
diversos aspectos da sociedade.
Ainda no que tange a dádiva, o que se troca:
(...) não são exclusivamente bens e riquezas, bens móveis e imóveis, coisas uteis
economicamente. São, antes de tudo, amabilidades, banquetes, ritos, serviços
militares, mulheres, crianças, danças, festas, feiras, dos quais o mercado é apenas
um dos termos de um contrato bem mais geral e bem mais permanente. Enfim,
essas prestações e contra-prestações se estabelecem de uma forma sobretudo
voluntária, por meio de regalos, presentes, embora eles sejam no fundo
rigorosamente obrigatórios, sob pena de guerra privada ou pública. Propusemos
chamar tudo isso de sistema de prestações totais (MAUSS, 2007. p. 191).

Vale ressaltar que as três obrigações da dádiva são igualmente necessárias,


muito embora não sejam equivalentes, principalmente no que se refere à importância da
circulação de bens. O dar é o ponto por onde se inicia a troca, mas é o retribuir que faz as
dádivas circularem, é a gratidão que faz com que o beneficiário restitua o dom que ganhou
de alguém.
Todo dom/dádiva carrega consigo aspectos do doador. Sendo uma dádiva,
comporta valor, e esse valor é estendido ao doador, ou seja, prolonga o próprio doador no
momento da troca. Esse é um dos fatores que faz a dádiva ser retribuída, é a restituição do
valor do doador. Segundo Mauss, as dádivas possuem “alma” própria, sendo uma parte
dessa alma a do doador. Daí os vínculos sociais serem de caráter moral-afetivos, já que são
estabelecidos “entre almas”. Toda relação de dom é uma relação pessoal, mesmo quando
instituído entre pessoas que, a princípio, não mantenham nenhum vínculo pessoal.
Vale notar que há uma significativa diferença entre sistema de prestações totais
e a simples troca no sistema mercantil. No primeiro tipo, a troca de dádivas a) gera valor
moral e ético, b) o que se troca possui valor simbólico muito maior que valor econômico, c)
sendo a qualidade do valor simbólico aquilo que irá determinar a intensidade do d) vínculo
que se estabelece entre as pessoas que trocam; e) a troca não precisa ser igual e/ou equitativa
– e nem poderia ser, tendo em vista que cada item trocado carrega um valor simbólico
próprio – nem imediata. No sistema de dádivas o mais importante é o vínculo social-afetivo
que se estabelece. Por isso a obrigação de retribuir com algo de valor maior do que se
recebeuii, por isso algumas de suas características marcantes serem a reciprocidade e a
dívida, sem elas não haveria circulação de bens, não se estabeleceriam as alianças. Ao
contrário, na troca mercantil o que circula deve ter valor econômico equivalente, pouco
importando o valor simbólico; não se estabelecem vínculos afetivos, sendo o contato
interpessoal concluído no instante da troca.
A dívida deliberadamente mantida é uma tendência da dádiva, assim como a busca
de equivalência é uma tendência do modelo mercantil. Os parceiros em um
sistema de dádivas ficam em situação de dívida, negativa ou positiva. Se for uma
situação positiva, significam que consideram muito aos outros. Não é uma noção
contábil. É um estado, no qual cada um considera que, em termos gerais, recebe
mais do que dá. O sistema de dádiva se situa, assim no polo oposto ao do sistema
mercantil. Não porque seja unilateral, o que não é, mas porque o que caracteriza o
mercado (...) é a transação pontual, sem dívida, ao passo que a dádiva busca a
dívida (GODBOUT, 1998. p. 6).

Cabe destacar que a relação de dádiva é uma relação de solidariedade, já que ao


doar se está partilhando com o outro. Ao partilhar criam-se dívidas por parte de quem
recebe, por isso é considerada uma relação assimétrica tendo em vista que o donatário fica
em dívida com o doador. Dívida essa só “quitada” quando o donatário retribui o presente.
No que se refere às relações assimétricas estabelecidas na dádiva, estas geram hierarquia e,
segundo Godelier (2001), se a hierarquia já existia antes da troca recíproca é através dela
que a diferença de status não só se mostra como se legitima. Daí o autor nos apresenta dois
aspectos da dádiva: ao mesmo tempo que o dom aproxima seus participantes (pois se funda
numa partilha, numa relação de solidariedade) ele também os afasta, tendo em vista que gera
dívidas.
O dom é, em sua própria essência, uma prática ambivalente que une ou pode unir
paixões e forças contrárias. Ele pode ser, ao mesmo tempo ou sucessivamente, ato
de generosidade ou ato de violência, mas nesse caso de violência disfarçada de
gestos desinteressados, pois se exerce por meio e sob a forma de uma partilha
(GODELIER, 2001. p. 23).
Se pensarmos o caso dos candidatos a cargos eletivos que prometem empregos e
contratos na prefeitura em troca de apoio político às suas candidaturas, perceberemos que,
antes de iniciarem a troca, já existe uma diferença de status. E se levarmos em consideração
que o espaço da política (aqui nos referimos ao que está sendo observado em Barreira) é um
lugar excludente (o cidadão só se insere na política local por intermédio de outros políticos),
a distância entre político e eleitor se torna maior. Além disso, o recebimento do cargo (dom)
por parte do eleitor o torna dependente do político. Não só no que tange as dívidas por parte
da dádiva que se estabelece, quanto pelo risco de perca do dom caso contrarie o donatário.
Nesse caso, o doador tem tanto o poder de presentear quanto de tomar o presente. Assim, o
respeito do donatário é constituído não só por valores morais (dádiva) quanto pelo receio de
perder a dádiva. A relação assimétrica, no exemplo citado, não só fica clara quanto se
legitima e se reproduz, como atesta Godelier:
O dom pode se opor à violência direta, à subordinação física, material, social, mas
também ser um seu substituto. E são mais que abundantes os exemplos de
sociedades em que os indivíduos, incapazes de honrar suas dívidas, se veem
obrigados a se colocar, ou a colocar seus filhos, como escravos, acabando por se
transformar na propriedade, na ‘coisa’ daqueles que lhes tinham concedidos seus
dons (Idem, p. 24).
Entendendo o sistema de dádiva como aquilo que engendra os laços sociais,
baseado na espontaneidade, na não equivalência, na dívida, na reciprocidade é possível
compreender porque ainda é um dos sistemas que organiza a sociedade. Em resumo, “por
que se dá? Se admitirmos o que precede, a resposta é simples: para se ligar, para se conectar
à vida, para fazer circular as coisas num sistema vivo, para romper a solidão, sentir que não
se está só e que se pertence a algo mais vasto, particularmente a humanidade” (Idem, p. 11).
Seguindo essa perspectiva, Godelier defende a tese de que o que faz os bens circulem são,
antes do espírito da coisa dada (hau) e do doador na coisa dada, é a vontade dos
participantes da troca de manterem laços sociais, sejam de solidariedade, amizade ou
dependência. E aqui cabe pensarmos os laços sociais que se estabelecem no domínio da
política. Desse modo, o fim não é apenas estabelecer relações de amizade mas também, e
nesse caso é um dos nossos objetos de análise, a dependência.

A lógica da dádiva e as relações sociais e políticas


É esta perspectiva que nos permite voltar o olhar e refletir a respeito da questão
do clientelismo e patrimonialismo no Brasil para além dos significados comumente
atribuídos a eles. Quais sejam, “um tipo de relação entre atores políticos que envolve
concessão de benefícios públicos, na forma de empregos, benefícios fiscais, isenções, em
troca de apoio político, sobretudo na forma de voto” (CARVALHO, 1996) e a
distribuição/apropriação de bens públicos como se fossem privados. Nesse sentido,
recorreremos a uma das maiores obras que buscaram responder à gênese da cultura
brasileira, “Raízes do Brasil”.
Segundo Sérgio Buarque de Holanda (2004), os colonizadores portugueses não
se preocuparam em construir, no Brasil, uma sociedade organizada. Nesses termos, tal
descomprometimento favoreceu o surgimento de um tipo de sociabilidade baseada na
confusão do público com o privado, além da família como modelo de organização
societária. Para o teórico, foram esses fatores que impediram o pleno
estabelecimento/funcionamento das regras democráticas no país.
Na citada obra, ao se referir ao homem cordial, Sérgio Buarque de Holanda já
sinaliza para as manifestações do sistema de dádivas em nossa sociedade. No homem
cordial (aquele atua no mundo seguindo princípios morais-afetivos) observamos uma
considerável importância nas relações sociais de caráter pessoal/intimista, que são
estabelecidas a partir de trocas recíprocas de bens materiais e/ou imateriaisiii.
No ‘homem cordial’, a vida em sociedade é, de certo modo, uma verdadeira
libertação do pavor que ele sente em viver consigo mesmo, em apoiar-se sobre si
próprio em todas as circunstâncias da existência. Sua maneira de expansão para
com os outros reduz o indivíduo, cada vez mais, à parcela social, periférica, que
no brasileiro – como bom americano – tende a ser o que mais importa. Ele é antes
um viver nos outros (HOLANDA, 2004. p.147).
Para termos uma ideia, as relações entre os senhores de engenho e os moradores
da propriedade, fossem esses escravos ou homens livres (principalmente aqueles destituídos
da propriedade dos meios de produção) se pautavam em relações pessoais, de intimidade.
Não só os filhos dos escravos conviviam, nas Casas-Grandes, com os filhos do senhor como
também aqueles homens livres – embora dependentes social, política e economicamente do
grande proprietário –, eram apadrinhados pelo patriarca. Nesse contexto, o batismo é a
dádiva da graça divina concedida pelo padrinho ao afilhado. E por carregar um caráter
sagrado, o valor simbólico é imenso e, consequentemente, o vínculo que se cria é muito
grande, tendo o padrinho poder e autoridade de um pai em relação ao seu afilhado. Isso
explica, em parte, a força e importância que o chefe do potentado rural teve (e ainda tem, se
considerarmos as regiões mais rurais do país) sobre seus trabalhadores (LANNA, 1995).
Uma das consequências que podemos tirar dessas interações sociais baseadas em relações
afetivas é que “diminuíam o poder absoluto e o rigor da autoridade do grande proprietário.
Mas, de outro lado, elas reforçavam essa mesma autoridade” (GUALBERTO, 1995. p. 31-
32).
É nesse universo aristocrático, de homens livres, expropriados e dependentes e
extensos domínios privados com seus chefes que vemos emergir uma realidade social
bastante desigual, um espaço público vivenciado por poucos e as atividades políticas
servindo como meio por onde os grandes proprietários defendiam seus interesses
particulares e/ou os interesses de seus amigos/familiares.
Para os interesses desta investigação, destacamos a perspectiva buarquiana
acerca do cordialismo brasileiro, que reforça a importância das relações de pessoalidade
fundadas na dádiva. Para tanto, cabe fazer uma distinção entre pessoa e indivíduo,
categorias bastante pertinentes para os objetivos desse trabalho.
Indivíduo e pessoa são tidos como contraditórios no que diz respeito ao sentido da
ação social que implementam e dos valores que balizam. O indivíduo habitaria um
mundo desencantado, marcado pela distinção entre fato e valor. Dilacerado entre
um e outro, oscilaria entre uma ação racional segundo fins – fundada no cálculo,
tendo como corolário a instrumentalização dos outros indivíduos e o predomínio
da relação com os homens – e uma ação orientada por valores. Justamente tais
condições assegurar-lhe-iam orientar-se idealmente pelos princípios de autonomia,
liberdade, igualdade e – habitualmente de um mundo burguês – propriedade. O
lugar da pessoa, ao contrário, seria a sociedade hierárquica, que demandaria sua
subordinação à logica relacional e à totalidade por ela representada. Autonomia e
independência seriam estranhos ao universo da pessoa, cuja ação tenderia a
conformar-se a padrões tradicionais (CHAVES, 1996. p. 1129-130).

Se o indivíduo é aquele que se refugia no espaço privado, ser autônomo e


independente que busca revolver seus problemas por si mesmo; a pessoa, ao contrário,
responde a tais problemas na medida em que se relaciona com o outro (ou que delega esse
poder ao outro) e/ou por intermédio das relações de caráter intimista que cultiva e mantém.
É salutar afirmar que o sistema de dádivas é um dos principais modelos organizadores da
sociedade, independente dela ser constituída, em sua maioria, por indivíduos (sociedades
democráticas/igualitárias) ou pessoas (sociedades hierárquicas), mas é no segundo tipo
societário que a dádiva conquista maior liberdade e importância.
Num mundo pautado pela hierarquia, as relações pessoas com figuras políticas
assegura àqueles que se situam na base da escala social um tratamento diferenciado,
vantagens que sua própria posição não permitiria e/ou em alguns casos, faz valer direitos
que, dentro dessa ordem, não seriam possíveis de serem garantidos. É a pessoalidade das
relações adentrando nas mais diversas esferas da sociedade brasileira. Relações entre
pessoas – em oposição a indivíduos – que, ao mesmo tempo que mascara/eufemiza, sustenta
o caráter hierárquico de nossa sociedade. Em outros termos, o dar-receber-retribuir entre
político e eleitor, por exemplo, garante a esse último a conquista de direitos (ou a certeza de
manter relações pessoais com uma autoridade, a esperança/expectativa de receber um
benefício), que são percebidos como benefícios, e por isso, dádivas.
Levando em consideração as mudanças ocorridas nas modernas sociedades
ocidentais, observamos que a superação das “velhas corporações de ofício” pela dinâmica
da produção em larga escala – consequente da lógica da indústria capitalista – foi
responsável pela individualização dos homens, pela transformação da pessoa em indivíduo.
Segundo Sérgio Buarque de Holanda, foi o “moderno sistema industrial que, separando
empregados e empregadores nos processos de manufatura e diferenciando cada vez mais
suas funções, suprimiu a atmosfera de intimidade que reinava entre uns e outros e estimulou
o antagonismo de classe” (HOLANDA, 2004. p.142). A partir daí, a clara separação entre
classe trabalhadora e burguesa, a perda dos vínculos de intimidade que os uniam, a
individualização favoreceram o pleno estabelecimento do liberalismo.
No Brasil, ao contrário, segundo Maria Sylvia Franco, a estrutura e divisão de
nosso território entre grandes potentados, a lógica da produção mercantil voltada para os
mercados externos, baseada na monocultura e no trabalho escravo, deu origem a uma classe
de homens livres, porém, dependentes do proprietário de terras. Esses homens:
(...) não foram plenamente submetidos às pressões econômicas decorrentes dessa
condição, dado que o peso da produção, significativa para o sistema como um
todo, não recaia sobre seus ombros. Assim, numa sociedade em que há
concentração dos meios de produção, onde vagarosamente, mas progressivamente,
aumentam os mercados, paralelamente formam-se um conjunto de homens livres e
expropriados que não conhecem os rigores do trabalho forçado e não se
proletarizam. Formou-se antes uma ‘ralé’ que cresceu e vagou ao longo de quatro
séculos: homens a rigor dispensáveis, desvinculados dos processos essenciais à
sociedade. A agricultura mercantil baseada na escravidão simultaneamente abria
espaços para sua existência e os deixava sem razão de ser (Franco, 1997:14).

Dessa forma, essa “ralé” contribuiu substancialmente não só para a


personalização de nossa esfera pública, para a manutenção do homem cordial – já que
dependia das relações patriarcais, dos vínculos intimistas com os senhores de terra para se
inserirem na vida em sociedade – como para a resistência no que tange a introdução do
indivíduo na dinâmica econômico-político-social do país. Daí, mesmo após a crise do açúcar
e a ascensão do café, o centro da vida social sendo transferido para as cidades, a
industrialização e o advento da democracia – que demandavam outro tipo de homem: o
“homem-indivíduo” – o brasileiro continuou a resistir à substituição da pessoa pelo
indivíduo ou pelo menos, a priorização deste em detrimento daquele.
Entendendo a sociedade brasileira como, ainda, hierárquica e pessoal, é possível
compreender a permanência do personalismo hoje, na nossa cultura. É através da pessoa
pública, e aqui nos referimos ao político profissional e/ou algum tipo de representante de
demandas políticas, que a pessoa consegue se inserir nessa sociedade e garantir seus
direitos. É interessante perceber que esses “direitos” carregam dois aspectos: como algo
inerente à cidadania, e por isso é responsabilidade do Estado garanti-los a todos de igual
maneira; e como “benefícios” – nesse caso, direito confundido com privilégio já que o
acesso a eles é exclusivo àqueles que têm vínculos com uma pessoa pública. Muitas vezes o
benefício é consentido através de recursos públicos/estatais, mas distribuídos como bens
privados, reforçando seu caráter de dádiva.

A dádiva em Barreira (Ceará)


Em Barreira, os serviços públicos ainda são precários e isso faz com que a
população carente busque, nos representantes do poder público, a satisfação de suas
necessidades. Essas necessidades são as mais diversas, às vezes de saúde, estruturais como
pavimentação, água encanada, saneamento básico, ou mesmo particulares como o
pagamento de uma conta de energia vencida, a compra de gás de cozinha, etc. A grande
questão é que a pessoa política é vista como distribuidor de benefícios, e não como um
funcionário público cumprindo uma obrigação de sua função. O que pode ser observado em
entrevista com Paulo, quando este, refletindo sobre a realidade de Barreira aponta a ideia do
político-profissional como um distribuidor de benefícios, que ajuda seus eleitores-amigos
(ou são procurados) quando estes precisam de favores privados:
(...) a maioria do pessoal são pessoas pobres, de zona rural e todas dependem do
serviço público. Às vezes, ajuda pra comprar um remédio, pra pagar uma conta de
luz, uma corrida, uma mudança, então o povo não (...) tem autonomia, não tem
vida própria. Não tem autonomia porque são todos dependentes, alienados ao
poder público né?! Quem tem independência não vai nem se prender nisso, mas a
maioria do povo que não tem, que depende muito do poder público, não diz nada,
não adianta! Porque eles acham que se ofender o prefeito vão perder o direito de
andar na ambulância, de fazer uma mudança, de, numa emergência, precisar de
um carro e não ter (Paulo, autônomo. Entrevista realizada em 11 de junho de
2012)

Nesse contexto, por exemplo, se o município não tem ambulâncias suficientes


para fazer o deslocamento de um doente e o prefeito concede um carro particular para
realizar o transporte, o problema não é visto como sendo carências de serviços públicos de
saúde e transporte, mas como um favor, uma dádiva da pessoa política. Isso gera vínculos
moral-afetivos entre o prefeito e o beneficiado, e este, em dívida, retribui como pode – com
o carinho, respeito e fidelidade ao doador da dádiva.
Na Barreira já tem pouca ambulância, se não me engano, são três ambulâncias,
três ambulância! E se você vê o estado da ambulância! Teve uma vez que uma
dessas ambulâncias ficaram presas lá na Polícia Rodoviária... pra você ter uma
ideia, essa ambulância, os espelhos eram pregados com fita adesiva. Não sei nem
como aquilo ainda roda nessas estradas daqui da Barreira. Aí o que acontece, a
pessoa passa mal, consegue um transporte pra ir pro hospital e chega lá o médico
manda logo ir pra Fortaleza. Aí a ambulância não tá lá, tá levando outra pessoa ou
já tá na Fortaleza. E aí, o que é que faz? Pede pro prefeito, ou pra quem quer que
seja, um carro particular. O prefeito, ou um vereador amigo da pessoa vai e arruma
um carro, freta um carro de praça e leva o doente pro hospital de Fortaleza.
Pronto! A pessoa fica grata pelo resto da vida. Uma colega minha, professora
também, aconteceu isso com ela. O pai dela teve um ataque de coração, sei lá o
que foi, mandaram pra Fortaleza e não tinha como levar o homem. Foi um
vereador amigo dela que pagou o carro. Ele nem era o candidato dela, ela votava
em outro, mas no ano seguinte, que era ano de eleição, ela votou nele porque
achava que devia muito pra ele. Tudo bem que foi um favorzão que ele prestou pra
ela, é claro que ela ia ficar grata, eu também ficaria. Mas a questão aqui é que não
tem ambulância no município pra todo mundo. E isso, quem era pra providenciar
eram os políticos. Aí como não tem, quem não tem carro, num caso desses, tem
que ficar dependendo de boa vontade de prefeito e vereador. Não era pra ser assim
(Anita, servidora pública de Barreira. Entrevista realizada em 08 de junho de
2012).

No “tempo da política” que a quantidade e qualidade dessas dádivas se


intensificam. Os discursos agora são proferidos aos “meus amigos iv”, se fortalecem os laços
de confiança e amizade. E embora a relação político-eleitor seja uma relação entre pessoas,
e por isso percebida por este último como igualitária, ela esconde seu caráter assimétrico e
hierárquico.
Partindo dessas perspectivas que é possível compreender a importância do
médico (ou da relação que se mantém com ele) em Barreira. No que se refere a esse
profissional de saúde, as dádivas tem forte peso. A cura, a restituição da saúde é um
presente de valor simbólico muito grande, por isso a dívida por parte do paciente é
entendida como impagávelv e o laço social que se estabelece, muito forte. O médico escuta,
dá atenção, às vezes remédios (já que a distribuição de medicamentos no posto de saúde é
limitada tanto quantitativa quanto qualitativamente), consulta, marca exames em hospitais
da capital.
Levando em consideração que nas trocas mercantis não há a obrigação de se
relacionar pessoalmente com aqueles com quem se negocia além do fato da relação se findar
no momento da troca; o indivíduo é livre para entrar e sair das negociações bem como de
romper o comércio no momento em que desejar. Tal princípio, nas sociedades modernas,
regula não só a venda de mercadorias como a prestação de serviços. A partir daí, notamos
que em Barreira, por mais que o ato de consultar e medicar seja inerente à profissão de
médico, o fato de este, para além de suas obrigações, estabelecer relações mais íntimas,
pessoais dão a essa relação um outro aspecto, qual seja: as trocas de dádivas. Nesse caso, o
médico não só atende, mas escuta, dá atenção, demonstra familiaridade com o paciente. O
que transforma o exercício de sua profissão em trocas de dádivas. Foi o que aconteceu com
o dr. Júnior, por exemplo. Ao serem entrevistados, diferentes barreirenses afirmavam que o
dr. Júnior (trabalhava além do que era remuneradovi) realizava consultas com muita
dedicação, ia a casa dos pacientes que não conseguiam/podiam ir ao seu consultório, fazia
amizade com seus pacientes, demonstrava preocupação, inclusive, com os familiares
daqueles que consultava.
Nos consultórios dos postos de saúde e hospitais de pequenas cidades do interior
é possível ver os pacientes levarem presentes (castanhas de caju assadas, ovos de galinha
caipira, frutas, cajuína, legumes, etc.) para os médicos como forma de retribuir os serviços
prestados.
E além da dádiva da cura, vale ressaltar o prestígio que os médicos têm, histórica e
culturalmente, no Brasil. Considerando as análises tecidas por Sérgio Buarque de Holanda
sobre o bacharelismo brasileiro, que consiste na valorização do trabalho intelectual em
detrimento do trabalho manual, entendemos o profissional da medicina como aquele que
representa o conhecimento científico, aquele cujo saber é indiscutível, inquestionável e
respeitado. O “doutor-prefeito”, observado nessa pesquisa comporta não só o imaginário
daquele que detém o conhecimento (o homem da ciência), que tem o poder da cura (o que já
lhe confere um poder e autoridade transcendentes, basta lembrar a grande obra de Marc
Bloch, “Reis Taumaturgos”). Mas que detém também o poder político, o poder de decidir
sobre os rumos do município e isso o transforma em uma figura quase heroica, um ídolo, um
ícone em que as pessoas confiam, respeitam, amam.

As coisas que saem da boca de um médico são sagradas. Se um médico chega


numa comunidade e diz, por exemplo, alguma coisa de outra, então aquilo ali é
sagrado para aquelas pessoas não informadas, aquilo é uma verdade absoluta
(Verônica, servidora pública de Barreira. Entrevista realizada em 08 de junho de
2012).

Conclusão
Se a lógica que organiza essa sociedade [aqui nos referimos à Barreira] é o sistema
de dádivas, com as dádivas criando e recriando/reforçando os laços sociais e as relações
pessoais entre os entes envolvidos, ou seja, regendo nossos modelos de vinculação
societária. Daí a continuidade, nos nossos dias, do homem cordial, esse homem que é motor
das relações de dádivas. Por isso a permanência de relações paternalistas, personalistas,
clientelistas, ora vistas como práticas arcaicas, no sentido pejorativo do termo, ora como
práticas comuns, normais ao cotidiano das pessoas. Nesse sentido, a fala de dona Rita, ao
ser questionada sobre o papel e as obrigações de um político profissional, atesta tal
fenômeno:
– Para a senhora, qual a função de um político?
– (...) fazer as coisas pro povo, dar atenção pro povo, dar atenção para os eleitores,
ajudar o povo, fazer o que prometeu pra melhorar a vida do povo.
– Ajudar o povo como?
– Ajudar ... a pessoa precisando de uma coisa ele pudendo ajudar ele ajudar. E
num tem só a ajuda de dinheiro, (...) até uma conversa é uma ajuda. Às vezes as
pessoas [es]tão desorientadas, a pessoa chega e conversa e diz “fulano é assim e
assim”, isso aí já é uma ajuda que ele [es]tá dando (dona Rita, aposentada.
Entrevista realizada em 10 de abril de 2012)

i
Marcel Mauss, sobrinho de Èmile Durkheim, foi o maior e mais importante herdeiro da sociologia
durkheimiana.
ii
O sistema de dádivas é constituído pela obrigação de dar, de receber e de retribuir. Mas ao retribuir, a
pessoa deve ser mais generosa que o primeiro doador (MAUSS, 2007). E é nesse “retribuir mais do que
recebeu” que se garante a perpetuação do vínculo, tendo em vista que na dádiva se está sempre gerando
uma nova dívida.
iii
Lembrando que esses bens imateriais são os mais diversos, podendo ser identificados como
amabilidades, cortesia, hospedagem, atenção, carinho, sorrisos, etc. Por isso, afirmamos que nas
interações interpessoais entre senhor e escravo havia também, além da exploração do trabalho do
segundo, a possibilidade de relações baseadas no sistema de prestações totais.
iv
Durante a realização da pesquisa empírica, tivemos a oportunidade de estar na inauguração da
pavimentação de uma rua em Barreira, realizada pela gestão do atual prefeito, Antônio Peixoto, e
percebemos que as falas de todas as figuras políticas presentes no palanque, dentre elas o ex-prefeito e
sua esposa, dr. Valderlan e dra. Auxiliadora, foram iniciadas pela expressão “meus amigos de Barreira”.
E muitos deles falaram o nome de alguns desses amigos presentes, demostrando a familiaridade com eles.
Isso reflete o quanto é pessoal a relação político-eleitor.
v
Se ao receber um dom, o donatário fica em dívida com seu doador, podemos arriscar a dizer que fica,
igualmente em situação de dependência, enquanto não restituir o presente recebido. No caso dos médicos,
a cura, por exemplo, é um dom que, na acepção do donatário, não pode ser retribuído, gerando, a partir de
nosso entendimento, uma permanente dívida moral e dependência por parte do paciente (donatário).
vi
Dona Iolanda, em entrevista, lembra que em um determinado período da história de Barreira, não havia
escola de ensino fundamental para seus filhos estudarem. Então, dr Júnior convocou os pais dos alunos
prejudicados e propôs que se fizesse uma espécie de fundo para financiar os estudos das crianças. Os pais
contribuiriam com uma taxa, fixada em reunião e de igual valor para todos, para pagar o salário dos
professores que ministrariam as aulas. Isso demostra que atuava em Barreira para além de suas
atribuições como médico.
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