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ALÉM DO RIO (MEDEA)

PEÇA EM DOIS ATOS

Agostinho Olavo

PERSONAGENS

Lavadeira I

Lavadeira II

Lavadeira III

Medea

Ama

Egeu

Vendedor de flores

Vendedor de frutas

Vendedor de pássaros

Vendedor de tripas

As enamoradas (3 escravas dançarinas)

Sinhazinha

Batista

Creonte

Criança I e Criança II (filhos de Medea)

Serafim

Creusa

Jasão

Escravos negros de ambos os sexos


CENÁRIO

(Uma ilha formada no cotovelo de um rio. Ao fundo, além das águas, a mata
virgem. Em primeiro plano, a margem pedregosa e estreita, onde as lavadeiras
vêm bater a roupa. Na ilha à esquerda, a casa de barro vermelho da Medea e,
à direita, um a pontezinha de pau corrido, ligando a ilha da margem do primeiro
plano.

Ao levantar o pano, vê-se apenas a margem pedregosa, pois toda a


cena está oculta por lençóis e roupa branca, lavados e estendidos em altos
varais. De muito longe, da floresta, chega, em surdina, a batida ritmada de
atabaques, marimbas e agogôs, tocando um ponto de macumba.

AÇÃO

No Brasil colonial, no último quartel do século XVII.


PRIMEIRO ATO

(As lavadeiras entram carregando trouxas de roupa)

LAVADEIRA I – Pronto, já chegamos.

LAVADEIRA II – É aqui? Vosmicê tem certeza?

LAVADEIRA I – Ô criatura! Não vê a roupa estendida?

LAVADEIRA II – Mas por que uma volta tão grande? Por lá era muito mais
perto...

LAVADEIRA III – Lá o rio é mais fundo...

LAVADEIRA I – E ninguém pode atravessar.

LAVADEIRA III – (evocativa) – Se lembra de Bastião?

LAVADEIRA II – Vosmicê já se esqueceu que eu acabo de chegar?

LAVADEIRA I – (continuando a frase da III) – E o pobre do Benedito...


Coitados! Um dia quiseram atravessar pelas pedras. Estão cobertas de lodo,
escorregam como quê.

LAVADEIRA III – Caíram na correnteza. Não houve mais salvação.

LAVADEIRA I – É lugar mal-assombrado. Ninguém passa mais por lá.

LAVADEIRA III – Pra mim, ela fez macumba.

LAVADEIRA I – Muita gente diz que sim.

LAVADEIRA II – Mas quem é que tá tocando? No arraial, me contaram que ela


vive sozinha e não fala com ninguém.

LAVADEIRA I – Vem lá da mata, não ouve?

LAVADEIRA III – São os negros fugidos do chicote do feitor. Vivem em bando,


passam fome, dormem no mato, no sereno, tremem de febre...

LAVADEIRA II – (interrompendo) – Que horror! E ainda podem cantar?

LAVADEIRA I – Quem canta seus males espanta! Vivem de dente de fora.


Estão livres, são contentes... mas ai do branco que se aproximar...

LAVADEIRA III – Tocam assim há três dias.

LAVADEIRA II – Também estão festejando?


LAVADEIRA I – Não, invocando espíritos.

LAVADEIRA III - Vosmicê está enganada. Estão chamando Medea.

LAVADEIRA I – É a mesma coisa, não é?

LAVADEIRA II – Mas de que é que estão falando?

LAVADEIRA I – Digo que estão chamando Medea. Os espíritos não baixam


sem ela.

LAVADEIRA III – Não fale tão alto.

LAVADEIRA II – Vamos chegar mais perto? Morro de vontade de espiar.

LAVADEIRA I - Cuidado! É mulher perigosa.

LAVADEIRA III – Negra suja! Feiticeira!

LAVADEIRA I – Finja que está trabalhando, que não veio para olhar, enquanto
eu recolho a roupa.

(As lavadeiras II e III desatam as trouxas e, enquanto a I vai retirando,


aos poucos, a roupa branca estendida nos varais, e começam a
ensaboar os lençóis no rio, com gestos ritmados).

LAVADEIRA II – Mas é assim tão malvada?

LAVADEIRA III – Traiu toda a tribo e nunca se arrependeu.

LAVADEIRA I – Diz que é dona da Ilha. Preguiçosa, não faz nada. Vive como
as sinhás brancas, com uma mucama ao seu lado.

LAVADEIRA III – Uma mucama. Vejam só!

LAVADEIRA II – É bonita?

(A lavadeira I dá uma risada)

LAVADEIRA III – Não ria tão alto. Se nos ouve, é praga na certa. Conhece
tanta mandinga e canjerê!... A gente pode ficar aleijada pra sempre. Com essas
coisas não se brinca.

LAVADEIRA II – Cruz! Credo! Que horror! Começo a ficar com medo.

LAVADEIRA I – Até os negros que a odeiam tem medo que se pelam.

LAVADEIRA III – Menos os que fugiram. Sentem falta da macumbeira.

LAVADEIRA II – Falta? Falta por quê?


LAVADEIRA III - Não ouve os tambores? Estão chamando Medea. Já expliquei
a vosmicê.

LAVADEIRA II – Mas chamando pra quê? Não entendo, confesso, o que


vosmicê quer dizer...

LAVADEIRA III – Digo que é a mãe de santo e os espíritos só baixam quando é


ela quem canta o ponto.

LAVADEIRA II – Deve ter muito poder.

LAVADEIRA I – Só não sei porque não vai.

LAVADEIRA III – Porque prometeu a Jasão nunca mais fazer macumba.

LAVADEIRA I – Prometer a Jasão... Imaginem! (ri)

LAVADEIRA II – Coitada! Ainda não sabe?

LAVADEIRA III – Acaba sabendo, mas não sou eu quem vai contar.

LAVADEIRA II – E quando souber?

LAVADEIRA I – Xiu! Vosmicê é novata aqui. É preciso ter cuidado.

(Ela acabou de retirar a roupa enxuta dos varais. Descobre-se o resto do


cenário. Encostada no portal da casa de taipa está Medea, tipo jovem de
mulher africana. Veste diferente dos outros negros que aparecerão depois. É
como um ídolo bárbaro. Os cabelos esticados e presos por um círculo de ouro,
abrem-se no alto da cabeça, formando uma estranha coroa natural. Traz no
pescoço um colar em forma de serpente e nos braços e pernas rodilhas de
ouro bruto. No canto oposto, está sentada, numa cena, a velha ama. O tantã é
cada vez mais rápido e Medea dá os primeiros passos do ponto, como se uma
força sobrenatural a impedisse).

MEDEA – (Cantando e dançando)

Anagogô... auê... auá.

Anagogô... auê... auá.

Ogun já chegou

Ogun vai baixar

(Da floresta, responde o coro dos negros)


Anagogô... auê... auá.

Anagogô... auê... auá.

Ogun já chegou

Ogun vai baixar

MEDEA – (parando bruscamente e lutando contra a atração do ritmo) – não,


não quero ir. Não hão de me levar. Mas por que me chamam assim? Por que
não parar de tocar?

AMA – É o tantã de nossa gente. É a nossa raça chamando a sua rainha Jinga.

MEDEA – Não me chame mais assim! Os brancos me batizaram Medea e eu


prometi a Jasão.

AMA (fazendo traços na areia) - O batismo não apaga a raça. É a nossa gente,
Medea. Vosmicê tem que voltar.

MEDEA – Não sei o que é gente nem raça. Eu só conheço Jasão.

LAVADEIRA II – Não me parece tão má. Gostaria de chegar mais perto.

LAVADEIRA I – Cuidado! Está olhando para cá.

MEDEA (à beira do rio) - O que querem aqui? O que vieram olhar?

AMA – Não falam com vosmicê. Têm medo da feiticeira.

MEDEA – Medo não, têm ciúmes, porque conhecem Jasão.

AMA – Se pudessem, vosmicê seria escrava como os outros.

MEDEA – Sou a rainha, nascida na Costa d’Ouro, nunca ninguém me mandou.


Aétes era meu pai, grande chefe de uma tribo que descendia do sol. Suana
Mulopo, meu irmão, era o mais moço, guerreiro mais forte, com cara de luz e
sombra, que as virgens da minha terra, noite e dia, disputavam entre si.

(A ama faz traços no chão e joga búzios)

LAVADEIRA II – Ela é congo ou Moçambique?

LAVADEIRA III - É monjola. Os mais bravos, os mais livres da Costa d’Ouro.

AMA – (olha os traços na areia e dá um grito, caindo em transe) – Morto!


Morto! Cheio de sangue, vejo caído na praia o corpo do velho rei...

LAVADEIRA II – Escutem! Fala de um rei!

LAVADEIRA III – Rei preto.


LAVADEIRA II – Diz que vê. É curioso.

LAVADEIRA I – Caiu em transe. É vidente.

AMA - E vejo Suana Mulopo, o guerreiro, lá, na entrada da mata! Bebeu na


cuia de coco o veneno que a rainha preparou, misturado com folha e fruto,
como a bebida gostosa da polpa do tamarindo. Porque seus olhos traidores
com os de Jasão se fundiram, Medea, com mãos sem medo, teceu o vestido
de morte, trançou a coroa de flores para o corpo de seu irmão.

MEDEA – Cala-te.

AMA – Vejo a tribo reunida. Todos seguem a rainha nos seus passos de dança
e seus requebros faceiros, sem saber pra onde vão.

MEDEA – É mentira. É mentira. Medea seguiu sozinha no veleiro que chegou.

AMA – Traição! A tribo, doida, dançando, acompanha a rainha pra cair no


cativeiro. Traição! Medea vende os irmãos. O velho rei, lá na praia, o peito
aberto pelo punhal da rainha. Já nada pode fazer. E o moço guerreiro, a
esperança da raça, apodrece na mata com o veneno de sua irmã.

MEDEA – Língua de cobra, maldita! Cala-te, ou nunca mais falarás.

AMA – Estes peitos murchos deram o leite e o calor que criou a vosmicê. Filha
da criação, se já traiu toda a tribo, também pode me matar. Vosmicê ainda é
rainha.

MEDEA – Rainha... Até o dia em que ele chegou do mar e tornou-se o meu
senhor. Com as mãos cheias de presentes, cheguei como filha de rei vencida,
em visita a outro rei. É o costume da terra. A minha tribo, a minha maior
riqueza, dei de presente ao vencedor.

AMA – E partiu deixando mortos pai e irmão.

MEDEA – Eram filhos de reis, não podiam ser escravos.

AMA – Mortos e abandonados.

MEDEA – Mas libres como viveram. Filhos do sol, como eu.

AMA – não era preciso matar.

MEDEA – Não queriam deixar que eu fosse com o meu senhor!

AMA – Num porão sem luz, nem ar, cortados de chicotadas, jogaram todos os
negros, e o navio partiu gemendo dos gemidos dos coitados.

MEDEA – Nunca ouvi um só gemido, nem um soluço sequer.


AMA – É que lá em cima, na proa, a preta nos braços do branco só pensava
em seu amor.

MEDEA – Ele me amava como nunca ninguém me amou.

(As lavadeiras riem em cadência)

AMA – Um amor feito de morte, ódio, fuga e traição! Mas os negros não se
esquecem e nas plantações do norte, onde ficaram vendidos, amaldiçoam
vosmicê e juram vingança.

MEDEA – Cala-te.

AMA – Há ódio por toda a parte. Todos fogem de vosmicê.

MEDEA – Os que fugiram pras matas continuam a chamar por mim.

AMA – Talvez pra se vingar. Talvez só pensem em matar.

MEDEA – Não teriam coragem. Na minha tribo, a rainha também é um orixá.

LAVADEIRA II – O que foi que ela disse?

LAVADEIRA I – Sacrilégio. Deus do céu! Diz que é orixá, divindade, não ouviu?
O que é mesmo é mãe de santo, macumbeira das piores.

LAVADEIRA III – E todos vêm procura-la para pedir mezinhas e canjerês.

LAVADEIRA I – E a todos ela enxota e diz que foi batizada e prometeu a Jasão
nunca mais fazer macumbas nem candomblés.

MEDEA (à beira do rio) – O que querem aqui perto? O que vieram olhar?

AMA – Vê? Não disse? Para elas vosmicê não passa de uma escrava fugida.
São brancas, não se esqueça.

MEDEA – Que me importa! Sou rainha. Elas sim, são escravas que vivem
sempre lavando tudo o que os brancos sujarem. Têm inveja de mim. Sou a
mulher do guerreiro mais valente de cem milhas em redor da vila de São João.
Têm inveja, porque Jasão trouxe Medea e Medea vive só pra Jasão.

LAVADEIRA I – Fala do amor do branco.

LAVADEIRA III – Não sabe ainda.

LAVADEIRA I – Bem feito! Vai pagar por seus pecados.

LAVADEIRA II – Coitada! Tenho pena, mas não posso deixar de rir.


LAVADEIRA III – Estúpida! Esqueceu-se de que os homens, por interesse ou
razão, colocam-se sempre antes de tudo.

LAVADEIRA I – Se esqueceu ou nunca soube; mas daqui a pouco vai saber.

(O riso das lavadeiras misturou-se com o ritmo dos tambores, que


aumenta por um momento e depois cai em uma surdina).

MEDEA – Tenho medo, ama, tenho medo.

AMA – Uma rainha com medo?

MEDEA – Sinto os espíritos chegando, rondando em volta da ilha. Estão rindo,


rindo, não ouves? Estão zombando de mim. (Pausa) Mas Jasão vai chegar e
tudo se clarear.

AMA (como um eco) – Vai chegar e tudo se clarear. (Pausa. Depois, olhando
as areias.) O caminho de vosmicê vais tão longe... Há tanta sombra a passar...

MEDEA – Ama, o que queres dizer?

AMA – Já não posso ver mais nada. As areias ficaram lisas. O vento apagou as
linhas. Fugiram todos os espíritos com medo de vosmicê.

MEDEA – Se eu cantar, eles voltam. Voltam sempre que eu quiser.

AMA – Até os tambores pararam, já cansados de chamar.

MEDEA – Mais uma vez eu venci.

AMA – Mas estão sempre tentando, e um dia, sem forças, vosmicê vai
responder.

MEDEA – Nunca! Pois prometo sobre a cabeça dos meus filhos, de seus
cabelos de ouro, os meus filhos de Jasão.

AMA – Eles mamaram o leito dos peitos de vosmicê. Também são os seus
filhos, não se esqueça.

MEDEA – São meus filhos, sim, são meus filhos; são dois punhais afiados para
cortar as cordas que me prendem à minha raça. Deste corpo preto e duro,
como o chão da minha terra, saíram dois leõezinhos dourados e me ligaram a
outra gente. São a luz da minha sombra, os meus filhos de Jasão. E quando os
tenho nos braços, quando a tarde já começa a desmaiar, sinto-me branca, tão
branca como a espuma do mar. Agora vai, vai busca-los. Ele não tarda a
chegar. É preciso prepara-los.

AMA – Há dez luas que não vem.


MEDEA – Sinto que vai chegar.

AMA – Vosmicê tem razão. Alguém vem lá.

MEDEA – Onde?

AMA – Lá, no caminho do norte.

MEDEA – É Jasão. Vai, ama, vai

(A ama sai)

LAVADEIRA I -

Pelo caminho de pedras

Vejo alguém a caminhar.

Vem devagar, hesitando.

Não é Jasão. É um velho.

Não posso saber quem é

Vosmicê não saberá?

LAVADEIRA III –

É o destino da negra

Com cara de viajante.

Vem de longe vem cansado,

As mãos cheias de presentes

Com um pedido na boca

E um punhal no coração.

LAVADEIRA II –

Vamos embora daqui

Tudo está mais triste agora

E as águas de tão frias,

Não me deixam mais lavar

(Egeu aparece no caminho junto à pontezinha).

EGEU – Salve, Medea! Trouxe-te presentes.


MEDEA – Ah! És tu. De onde vens?

EGEU – Meu veleiro vem de longe de terras estranhas e bárbaras. Trago-te


cravo, noz moscada, flor de canela, âmbar e sedas finas.

MEDEA – Tantos presentes pra que?

EGEU – Para pedir outra vez. Medea, eu te suplico.

MEDEA – Pede em vão.

EGEU – Nem no Zaipã nem na Índia eu encontrei quem me ajudasse. Só tu


conheces o remédio...

MEDEA – Não posso. Por que insistes? Fui batizada e prometi a Jasão.

EGEU – Dá-me filhos, Medea, tu os tens.

MEDEA – Lindos... lindos...

EGEU – Dá-me filhos Medea, como os teus.

MEDEA – Como os meus, ninguém terá. Os meus filhos são os filhos de Jasão.

EGEU – Pelo filho que te peço, trocarei tudo o que tenho.

MEDEA – Nunca. É a minha promessa a Jasão.

EGEU – Gosta tanto dele assim?

MEDEA (quase consigo mesma) – Por ele traí a raça, deixei mortos pai e
irmão.

EGEU – E ele tem vindo aqui?

MEDEA – Por que perguntas?

EGEU – Por perguntar. Adeus.

MEDEA – Adeus. Não posso dizer mais nada a não ser olorum modupé – Deus
vá contigo.

(Egeu vai saindo devagar)

LAVADEIRA I – Começa a cair o dia. Já é tempo de voltar.

LAVADEIRA III – Medea vai saber. Não vamos sair agora.

LAVADEIRA I – Mas temos tanto que andar...

LAVADEIRA III – A negra vai saber...

LAVADEIRA II – Coitada! Ela vai chorar.


LAVADEIRA I – Bem feito! Quis ser mais do que podia. Todo o mundo vai rir.
Feiticeira, mas não para ela. Tanta prosa para que?

MEDEA – Egeu! Egeu!

EGEU – (voltando) – O que?

MEDEA – Tenho medo. Não sei porque tenho medo. Vem para perto de mim.

EGEU – Medo de que?

MEDEA – Tenho medo de esperar. As sombras já vêm chegando e com elas a


solidão. Na noite que vem caindo, o rio fica mais fundo e a minha cama mais
fria, tão fria, sem o calor de Jasão. (Tambores começam a tocar) Só eles me
chamam da mata noite e dia, sem parar. Nunca se esquecem de mim. (Pausa)
Mas que música é essa, Egeu? Já não invocam os espíritos? Já não são os
nossos pontos? Não, não são os da mata. (gritando subitamente)Parem, parem
essa música! Não sei porque tenho medo. O que está acontecendo, Egeu?

EGEU – Em troca do filho que pedi, terás o meu barco que vai partir para terras
mais amigas, queres?

MEDEA – Por que partir para longe? Minha pátria é aqui nesta terra de Jasão.
Mas por que me dizes isso? E eu por que sinto tanto medo?

EGEU – Por que perguntar a mim? Não sei o que responder.

MEDEA – São os negros das fazendas tocando uma dança alegre.

EGEU – Sim, são os negros das fazendas. Vão á festa do arraial. Não sabias
das festas?

MEDEA – Que ar tão estranho o teu! Festa, festa por quê?

(Entram os quatro vendedores. São escravos de pés descalços, torso


nu, usando calções de cores vistosas e grandes chapéus. O primeiro vem
carregado de flores, o segundo traz à cabeça um grande cesto de frutas, o
terceiro vem com pássaros e o quarto carrega tripas secas, cheias de ar,
enroscadas numa vara com arabescos exóticos)

EGEU – Por que não perguntas a eles?

O VENDEDOR DE FLORES – (cantando)

Negro vendo flor mimosa,

Alecrim manjericão,
Dália, cravo, malva, rosa,

Manacá, flor tão cheirosa

Que faz bem ao coração

(As três escravas enamoradas entram dançando)

MEDEA – Psiu! Olá! Olá!

LAVADEIRA I – Vou comprar manjericão.

LAVADEIRA II – Será que ele tem arruda?

LAVADEIRA I – Olá, moleque, venha cá!

O VENDEDOR DE FLORES (cantando)

Compre agora, minha gente.

Estão frescas como quê

Vosmicês, que comprem agora

Depois vão se arrepender.

AS ENAMORADAS (cantando e dançando)

Quando o ramo começa

O sabiá a cantar

Porque o escuro da noite

Já principia a chegar,

As flores, como os amores,

Também começam a murchar

MEDEA (como um eco) – Como os amores, também começam a murchar.

VENDEDOR DE FRUTAS (cantando):

Tem tangerina

Lima gostosa,

Laranja da China.
Manga cheirosa.

MEDEA – Por favor, venha até cá.

VENDEDOR DE FLORES – Finja que não está ouvindo. Não olha pra ela não.

VENDEDOR DE FRUTAS – Nunca olhei praquelas bandas. Prefiro não vender


nada.

VENDEDOR DE PÁSSAROS –

Negro traz em seu balaio

Beija-flor e juriti

Pomba, rôla, papagaio,

Periquito verde-galo

Cardeal e bentevi.

VENDEDOR DE TRIPAS –

Olha tripa, iaiá!

Olha tripa, ioiô! (repetido).

AS ENAMORADAS (dançando e cantando)

Pros quindins que sinhá

Vai fazer pro sinhô (repetido).

MEDEA – Escute vosmicê aí, por favor, venha até cá.

VENDEDOR DE TRIPAS – Tesconjuro, Tarrenego. Não falo contigo não.

(As lavadeiras riem)

LAVADEIRA III – Venham cá, seus malcriados, Não querem vender pra negra
com medo do seu feitiço, não é? Vosmicês têm bem razão. Mas conosco não
há perigo. Nós só queremos comprar.

VENDEDOR DE FRUTAS (cantando) - Isso aqui já não rende.

VENDEDOR DE PÁSSAROS (idem) – Para que tanta falação?

VENDEDOR DE FLORES – Hoje bem só se vende...

VENDEDOR DE TRIPAS – Na festa do capitão.


TODOS JUNTOS (fazendo uma reverência zombeteira às lavadeiras) Na festa
do capitão.

(Partem todos alegres, rindo, e, quando passam perto da ponte de


madeira onde está Medea, viram a cara e cospem para o lado).

MEDEA – Que o chicote do feitor deixe em sangue os lombos desses malditos!

EGEU – Não se esqueceram de ti. Por ti se tornaram escravos e nem os filtros


lhes deste e os amuletos...

MEDEA – Não podia dar e tu sabes a razão (pausa) Mas por que uma festa?

EGEU – Não sabes ainda?

LAVADEIRA I – (cochichando) – Medea não sabe ainda.

LAVADEIRA III – Já não tarda a saber.

LAVADEIRA II – Medea não sabe ainda (riem).

MEDEA – Essas risadas me doem. Riem, riem de quê? É festa: Porque uma
festa? É este medo, por quê?

AS LAVADEIRAS (sussurrando) – Medea não sabe ainda, mas em pouco vai


saber.

LAVADEIRA I – Lá vai sinhá moça faceira toda bonita e risonha, na sua rede
bordada.

LAVADEIRA III –

Olha a mucama sapeca, gingando, gingando sempre.

Nunca teve o que fazer, coça as costas da menina,

Dai cafuné na patroa, faz arros doce e moqueca

E vira os olhos dengosos pro lado do seu senhor.

(Entram dois escravos carregando numa rede enfeitada (ou uma


serpentina) uma sinhazinha faceira. Uma mucama toda engomada
acompanhada a rede, cobrindo a patroa com uma sombrinha).

MUCAMA – Que estão fazendo ai vosmicês? Hoje, ninguém deve trabalhar.


Tudo é dança, tudo é festa lá na praça do arraial. Vosmicês não vão à festa?
Santo Deus! Não é possível! Iaiá preparou presente, botou vestido de seda e
mantilha de renda e prata. Vejam só que boniteza! Olha o colar de ouro, que
minha dina escolheu e esta saia de ginga foi o patrão que me deu.

(O grupo passa).
LAVADEIRA I – Vamos, vamos depressa.

LAVADEIRA II – As roupas já estão lavadas. Ninguém pode se queixar.

LAVADEIRA III – Não vamos sair agora. Medea não sabe ainda, mas ele já vai
contar. Já chegou o seu destino, já não pode mais fugir.

VOZ LONGE DAS ENAMORADAS –

Quando no ramo começa

O sabiá a cantar

Porque o escuro da noite

Principiou a chegar

As flores, como os amores

Também começam a murchar.

MEDEA – O que se passa no arraial? Por que vão todos à festa? Festa? Festa
por quê?

EGEU – Mas já devias saber.

MEDEA – Vivo sozinha na ilha, na casa que ele deu, Mas, por que medo de
uma festa? Festa! Festa por quê?

EGEU – Já que queres saber... Festeja o noivado da filha do capitão.

MEDEA – Creusa, aquela orgulhosa que um dia enxotei daqui? Veio pedir um
despacho, queria uma coisa feita para conquistar um amor. Tratou-me como
uma escrava e eu a corri da ilha. Casa com quem?

EGEU – Já vou indo. Adeus.

MEDEA – Responde. Casa com quem?

EGEU – Se me deres o filho que pedi, contarei tudo o que sei.

MEDEA – Prefiro então não saber.

EGEU – Mas gostarias que eu contasse. És mulher e curiosa.

MEDEA – Nunca mais farei feitiços. É a minha promessa a Jasão.

EGEU – Jasão não vale a promessa.

MEDEA – Maldito! A tua língua há de apodrecer na boca cheia de feridas


nojentas.
EGEU – Um dia, pensarás no barco que parte para longe e onde te ofereci
abrigo. Não respondo a teus insultos, pois julgo-te tão desgraçada como era
uma escrava qualquer.

MEDEA – Sai daqui, cão leproso! Vou contar tudo a Jasão.

EGEU – E se ele não voltar?

MEDEA – Maldito entre os malditos! O mal de Loanda te coma a cara, a língua


suja e as mãos!

EGEU – Insulta, insulta à vontade, mas Jasão não vai voltar.

MEDEA – Não vai voltar... Por que dizes isso? O que sabes? Há dez luas, ele
não vem e mesmo mais.

EGEU – Cantam os negros das fazendas, dançam os criolos o lundu. Dança o


negro e dança o branco, lá na praça do arraial. O vinho rola das pipas, porque
Jasão, o nosso guerreiro mais bravo, nos braços da linda Creusa dança a
dança do noivado (dá uma risada).

MEDEA – É mentira! Inventas toda essa história para me fazer chorar.

EGEU – Mentira! Pergunta a Batista, o servidor de Jasão, que também vai para
a festa.

(Batista, o servidor de Jasão, aparece no fim da margem pedregosa. Vem


dançando ao som de maracatu que se ouve ao longe. Pés descalços, calção
listrado de amarelo e azul, blusa aberta até a cintura, grande chapéu de palha,
é o autêntico molecote daquela época. Mestiço nascido dos amores sensuais
do português com a escrava favorita, tem as qualidades e os defeitos dos
brancos aventureiros e dos negros sofredores. Bom do coração e, ao mesmo
tempo esperto, quer sempre dinheiro e faz de tudo para consegui-lo. Ágil e
esbelto, é todo um feixe de gestos e atitudes. Na margem pedregosa, passa
pelas lavadeiras, faz-lhe a corte. Elas riem e o enxotam).

MEDEA – Perguntar a um mudo? Só tem gestos, não tem voz. Logo vi! Só
querias me enganar.

EGEU – Com seus gestos fala mais que toda a gente. Ele te responderá.

MEDEA – Olá! Olá!

(Batista para junto à pontezinha).

MEDEA – Benza-o Deus!

(Batista faz reverência meio zombeteira).

MEDEA – Onde está o seu senhor?


(Batista, em mímica, conta uma história de caçada).

MEDEA – Da caçada, já sei. Isso foi há muito tempo. E agora, hoje, onde está?

(Batista faz gesto de que não sabe, mas vê-se que está mentindo).

MEDEA – Vai chama-lo, Batista. Vai chama-lo a toda pressa.

(Ele continua o jogo até Medea oferecer-lhe dinheiro).

MEDEA – Vai chamá-lo a toda pressa. Na volta te dou todo o resto. É tudo o
que tenho agora.

(Batista parte alegre dançando).

EGEU – Tiveste medo de saber.

MEDEA – É a dança do noivado. Tem pena de mim, Egeu. Dize que não é
verdade e eu te darei a erva amarga para te aquecer o sangue... tu terás filhos
lindos. Ainda tenho poder.

EGEU – Começo a duvidar do valor dos teus filhos. Tu mesma, infeliz, foste
abandonada e só sabe suplicar. Onde estão os teus feitiços, se nada pode
fazer?

MEDEA – No meu amor por Jasão, nunca usei de mandinga nem sequer de
canjerês. Pelo filho que me pedes, contai-me toda a verdade, Egeu.

EGEU - Gostaria de mentir, mas logo saberias a verdade e virias te vingar.

MEDEA – Fala.

EGEU – Todos dançam nos festejos do noivado do homem que te deixou.

MEDEA – Não, não!

EGEU – Riem as lavadeiras de longe, não ouves? Viraram a cara os


vendedores, não viste? Todos zombam de Medea, como eu também quis
zombar.

MEDEA – Todos dançam na alegria, todos zombam de Medea. Ai de mim! Ai


de mim! Sai daqui, impotente. Podia dar-te as mezinhas e podias ter filhos
lindos como os meus, mas só dissestes mentiras e eu quero me vingar. De
mim nunca terás nada.

EGEU – Os filhos são parte dos pais, a sua continuação, mas já não os peço
mais a ti. Já não creio em teu poder. Agora parto vingado. Vou pra bem longe
da ilha. (Sai).
MEDEA – E se ele disse a verdade? E se Jasão me traiu? Ai de mim! Ai de
mim!

(O maracatu aparece e o bando de negros passa numa orgia de cores e ritmos,


afogando os lamentos de Medea).

MEDEA – Ai de mim! Pobre de mim! Parem. Parem esta dança. Parem este
canto, parem! Se não tem pena da negra, deixem ao menos que, em silêncio,
ela escute os gemidos de seu pobre coração.

(Ela cai como se tivesse sido engolida pelo bando alegre que passa. Creonte
entra).

CREONTE – Salve, Medea. Venho falar contigo.

MEDEA – Vosmicê vem contar-me o que já sei. Se já me roubaram tudo, por


que ainda insultar—me?

CREONTE – Não venho para insultar e sim, apenas, dizer-te; é preciso que
partas.

MEDEA – Para onde? Para onde?

CREONTE – Longe daqui. Amanhã ao cair do dia, quero a ilha deserta e a


casa vazia.

MEDEA – Na ilha vivo sozinha. Não faço mal a ninguém.

CREONTE – É preciso cruzar o rio. Ir pra bem longe daqui.

MEDEA – Além do rio ficam os brancos. Não há lugar para mim.

CREONTE – É uma ordem, Medea. Jasão vai casar-se com minha filha e és
capaz de quebrar a promessa feita e, com um filtro, uma mandinga qualquer...
procurar uma vingança.

MEDEA – Jasão quebrou a promessa. Medea pode sofrer. E ainda quer me


enxotar? Se já fui abandonada pelo branco que me arrancou da terra distante,
que não me deixou nem pai, nem irmão, nem tribo onde possa me abrigar,
diga, não é o bastante?

CREONTE – Se não partires serás posta a ferros e vendida como uma escrava
qualquer.

MEDEA – Sou livre. Sou rainha. Vosmicê não pode me acorrentar. Sou a
mulher de Jasão.

CREONTE – Não conheço a tua carta de alforria e quanto a teu casamento,


não passas de uma escrava que dorme na cama de seu senhor.
MEDEA – Ao trazer-me em seu veleiro, ele tomou minha mão e com
juramentos terríveis uniu a sua sorte á minha sorte. Sou a mulher de Jasão.

CREONTE – Se não fosse por causa dele, há muito terias sido vendida como
escrava, como os outros.

MEDEA – Sou a mãe de seus filhos. Ninguém pode me expulsar.

CREONTE – És uma negra trazida por um vendedor de escravos poderoso,


que te protegeu contra toda a população. Já te esqueceste dos despachos que
fizeste, das mandingas e candomblés e tantos males que espalhaste pelo
arraial com os teus ciúmes?

MEDEA – Mas depois fui batizada e prometi a Jasão. Nunca mais fiz os
trabalhos que os brancos vêm me pedir.

CREONTE – Tenho medo que esqueças as promessas que fizeste e causes


algum mal à minha filha. Tu és hábil. Conheces os mil feitiços e todos os
canjerês. Os brancos conhecem o teu gênio e sabem que procurarás vingança.
Tu não sabe perdoar.

MEDEA – De joelhos, a vosmicê peço, pela virgindade que Creusa vai entregar
a Jasão, por sua noite de núpcias...

CREONTE – É inútil. Tens que partir.

MEDEA – Ó minha terra tão longe, ó praias de conchas brancas onde não
posso voltar. Creonte, não me expulse assim. Viverei sozinha na ilha e nunca
me queixarei. Mas além do rio o que me espera? Para onde posso ir?

CREONTE – Egeu parte para longe. Talvez possa te levar.

MEDEA – Os meus filhos não estão preparados.

CREONTE – Os teus filhos não vão contigo.

MEDEA – Partirei, não fale mais. Mas vosmicê não pode separar-me dos meus
filhos... Eles nasceram deste corpo e me fizeram sofrer. Essas crianças são
minhas, são a luz da minha sombra, o calor do meu calor. Corte-me os braços
e as pernas, marque-me com ferro em brasa, ou mande-me chicotear; mas não
me tome os filhos, eles são parte dos pais... a minha continuação.

CREONTE – Dizes bem, mulher. Os filhos são parte dos pais. Mas os teus
nasceram brancos e alforriados na pia, só pertencem à Jasão. Procura
compreender. Nem o amor de minha filha...

MEDEA – Não me fale desse amor. Vosmicê é poderoso e não posso fazer
mais nada; mas, de joelhos, eu lhe peço, Creonte, deixe-me ficar mais um dia.
CREONTE - Mais um dia pra que?

MEDEA – Dizer adeus a meus filhos.

CREONTE – Pois bem. Mas declaro: se depois desse prazo, a luz do sol te
encontrar nos limites dessa terra, não serás vendida como escrava nem
mesmo chicoteada, pois juro que te mandarei matar.

MEDEA – Não diga mais nada. (Ela faz uma reverência até se ajoelhar e
depois, docemente) Agora vai, meu senhor.

(Creonte sai, Medea se levanta e dá uma gargalhada).

MEDEA – Branco estúpido! Acreditou no que eu disse! (pausa)A minha cama


está fria, pois há dez luas, Jasão não vem. Mas não dormirá na cama de outra
mulher. A noiva vai conhecer as mandingas que, um dia ela mesma veio aqui
mendigar. (Tira do pescoço o colar e começa a encantá-lo). Agora sei de que
riam as lavadeiras da margem. Medea, filha de um rei e descendente do sol,
não pode se sujeitar às zombarias como uma escrava qualquer. Querem que
parta sozinha e deixe meus filhos para o amor de Jasão. Estes filhos malditos,
nascidos de mãe funesta, já não podem mais viver. Eles que tornam quase
branca, são a luz da minha sombra, a vida de minha vida, mas também da de
Jasão. E ele há de ficar sozinho para amaldiçoar o dia em que ele pensou
poder tomar o coração que me deu.

(Batista volta. Finge-se desanimado. Não encontrou Jasão).

MEDEA – Não é preciso mentir. Medea já sabe tudo. Lá, na praça da vila, ao
lado de sua noiva, Jasão recebe os presentes do povo e dança a dança do
noivado. Vai, Batista, vai levar à bela noiva o presente da negra que está
sozinha, não tem destino nem casa, não tem mais filhos nem amor.

(Batista, a princípio, admirado, recebe o colar e parte contente. Em surdina,


voltam os tambores a bater na mata... Medea dá uma risada estridente e
começa os passos de uma dança de macumba).

MEDEA – Anauê... agogô, anauê... agogô.

Exu já chegou, Exu vai baixar.

(Da floresta coro responde, sempre num crescente até atingir o paroxismo).

CORO - Anauê... agogô, anauê... agogô.

Exu já chegou, Exu vai baixar.

PANO
QUADRO ÚNICO

(Um palanque armado no centro da praça do arraial, todo adornado de


guirlandas de flores e laços de fitas. Há bandeirolas coloridas em longos fios
cruzando-se no ar. No palanque, estão Creonte, Creusa, a sinhazinha e outros
brancos. Os vendedores vêm chegando, em passo de dança, cantando,
acompanhados das enamoradas).

VENDEDOR I – Eu venho da serra, de longe, cansado

Pra ver os festejos, deixei meu gado.

VENDEDOR II - Também lá deixei tudo o que tinha

Só pra vir agora ver esta noivinha

VENDEDOR III - Eu venho da serra, d’além do penedo

Com o meu machetinho folgar no folguedo

VENDEDOR IV - Eu venho da roça, andando, contente,

No meu balainho trazendo presente.

MUCAMA (apontando) – Sinhá dona, minha gente, vejam só a fidalguia

Dos que vêm lá da roça trajando cerguia!

(Todos se viram para olhar o bando de negros que chega cantando e dançando
ao som do maracatu).

CORO - Ó senhor dono da casa,

Nós viemos visitar

A sua bela morada,

Nós viemos visitar.

Vinde abrir a vossa porta,

Se quereis ouvir cantar,

Acordai, se estais dormindo,

Que nós viemos festejar.

SERAFIM – Olha o mudinho que chega! Vem todo prosa e contente. Cuidado
vosmicês aí! Deixem o Batista passar.
(Os negros abrem alas e, diante da admiração geral, o Batista sobe ao
palanque para oferecer o colar à Creusa).

CREUSA – Muito obrigada, Batista. Vejam todos que beleza.

SINHAZINHA - Lindo! Lindo! Maravilha! Brilah mais que a luz do sol. Cada
qual traz seu presente. Vosmicê é felizarda. Devia estar tão contente, mas
parece querer chorar.

CREUSA (para Creonte) – E meu pai, o que me dá?

CREONTE – O que minha filha pedir, mas não com estes olhos tristes. Hoje é
dia de festa. Pede e teu pai te dará. Mas quero em troca um sorriso, um grnade
sorriso alegre.

CREUSA – Quero a ilha do rio toda vazia pra mim. Vosmicê quer um sorriso,
um grande sorriso alegre; mas, meu Deus, não é possível enquanto Medea
morar aqui. A negra tem ódio de mim e um dia vai se vingar. Como quer
vosmicê que eu ria, se o medo da feiticeira me arrepia toda a pele, desmancha
a minha alegria?

CREONTE – Já pode rir, minha filha. Amanhã, no cair do dia, a ilha estará
deserta e a casa vazia. Antes de vir para cá, eu mesmo fui em pessoa mandar
embora a escrava que um dia zombou de ti.

CREUSA – (beijando a mão de Creonte, numa reverência carinhosa) – Meu


pai, estou tão contente, que não sei o que dizer. (Correndo para Jasão, que
vem chegando) Jasão eu sou tão feliz... Se vosmicê der licença, vou descer ao
terreiro para dançar com os escravos que vieram festejar. (Ela desce os
degraus do palanque para se reunir aos negros, mas estes afastam se
intimidados) Não querem dançar comigo? Mas por que? Não tenham medo.
Meu pai já deu licença e ninguém vai castiga-los. Venham, venham dançar.

(Eles riem cheios de timidez)

CREONTE – Batista! Faça a negrada dançar!

(Batista dá um salto gracioso e, colocando-se entre Creusa e o bando de


negros, começa a dançar devagar, como se desse uma lição. Os batedores
acompanham com os batuques. Depois, um negro imita um passo do Batista,
depois outro e mais outro... e, num momento, todos dançam em torno de
Creusa, feliz. No mais alegre da dança, Creusa leva as mãos à garganta, dá
um grito e cai. Creonte tenta socorrer. Há um momentos de estupor. Creusa
morre).

CREONTE – Morta! Morta! Meu Deus!

(Os negros caem de joelhos e começam em surdina a cantar um lamento).


CORO - Morreu sinhá Creusa!

Morreu!

Ela foi pra Aruanda auê... auá,

Aruanda, Aruanda... auê... auá... auá,

Morreu sinhá Creusa!

Morreu!

Ela foi pra Aruanda auê... auá,

Foi morar em Aruanda,

Aruanda... auê... Aruanda... auá

Foi sonhar em Aruanda,

Aruanda... auê... Aruanda... auá!

(O estribilho vai num crescendo, enquanto o pano cai).


SEGUNDO ATO

(Na ilha, A ama com os dois filhos de Medea. São duas crianças, quase
brancas. De cabelos alourados. Ao longo, ouve-se o lamento dos escravos que
se mistura aos gritos de Medea).

VOZ DE MEDEA – Ai! Ai de mim! Como sou desgraçada! Como sofro! Ai de


mim!

FILHO I (á porta da casa) – Mãe! Mãe!

MEDEA (aparecendo à porta) – Ama, não quero ver as crianças. Leve-os para
bem longe daqui!

FILHO II – Por que não fala conosco? Parece nos querer mal.

AMA – Não diga assim: querer mal. Vosmicês são o seu tesouro. Está sofrendo
a coitada!

VOZ DE MEDEA – Ai de mim! Quero morrer, mas primeiro morrerão os filos


malditos de uma mulher desgraçada.

FILHO I – Tenho medo, ama, tenho medo.

FILHO II – É de nós que está falando? É ela que está gritando?

AMA – É ela mesma, meus filhos. É Medea. Não posso mais enganar a
vosmicês. Seu coração está cheio de ódio e sua raiva está fervendo. Não
fiquem aqui. Não quero assustar, meus meninos, mas fujam para o quarto que
dá para a beira do rio. Depois eu vou chamar vosmicês. Tudo isso vai passar.

FILHO I – Mas por que quer nos matar?

AMA – Não sabe o que diz, a pobre. Agora vão, vão brincar. (Eles saem).

LAVADEIRA I (voltando) – Vosmicês estão ouvindo? São seus gritos e


gemidos, não pode se conformar.

LAVADEIRA III – É a nuvem de lamentos que anuncia a tempestade que vai


arrebentar com furor. Está rasgada a alma da negra machucada pela dor.

LAVADEIRA II – Pensei que pudesse rir, mas creio que vou chorar.

LAVADEIRA III – Coitada! Uma tristeza é o amor para todas as mulheres.

LAVADEIRA I – Bem mais triste do que a morte.

LAVADEIRA II – Pois se morre muito mais. Mas não é só Medea quem chora.
Não estão ouvindo, lá longe?
LAVADEIRA III – Estranho. São os escravos cantando uma cantiga de morte.
Num dai de tanta festa, o que será que aconteceu?

LAVADEIRA I – O Serafim tem notícias. Não veem como vai correndo?

(Serafim entra correndo).

LAVADEIRA III – Venha cá, Serafim, O que aconteceu lá embaixo?

(A ama corra à margem).

SERAFIM – Morreu Sinhá Creusa. Morreu. Na hora de seu noivado, toda


vestida de branco, dançando uma dança alegra, nos braços de seu senhor.
Vosmicês não foram à festa? Pois não sabem o que perderam. Trouxeram
tanto presente, tanta flor e tanta fruta, que o palanque do capitão-mor parecia
desabar. Depois chegou o Batista com o presente mais bonito, um colar todo
de ouro para a noiva de Jasão. E a noiva ficou tão bonita, que começou a
dançar. E todos riam contentes, vendo sinhá moça, tão branca, dançando no
meio dos negros a sua dança, o lundu. De repente, ninguém sabe como foi.
Sinhá moça levou as mãos à garganta, deu um grito e caiu em pleno chão.
Parecia que o colar de Batista apertava o seu pescoço. Deu só um grito e
morreu. Estão dizendo por ai que aquilo foi coisa feita, foi mandinga ou mau
olhado que botaram na menina e Sua Mercê, o nosso bom capitão, já deu
ordem para que tragam o Batista à sua presença, pois quer saber de onde veio
o colar. Dá uma bolsa de dinheiro e uma carta de alforria para aquele que o
prender. E todos querem agarrar o Batista para ganhar as duas coisas mais
gostosas que todo o mundo quer ter: moedinhas de ouro e liberdade de viver.
Até que para nós foi bom, não acham? Vosmicês dão licença? Até mais ver.
(Sai correndo).

LAVADEIRA I – Que morte esquisita!

LAVADEIRA III – Feiticeira. Será culpada?

LAVADEIRA II – A pobre, que culpa tem?

LAVADEIRA I – Não ouviu o que disse Serafim? Andam à procura de Batista.


Ele deu o colar à Creusa.

LAVADEIRA III – Enforcada por um colar? Só pode ser bruxaria.

LAVADEIRA I – O colar era da preta.

LAVADEIRA III – Fez feitiço com certeza.

LAVADEIRA II – Coitada! Só fez chorar.

AMA – Ainda estão por aqui? Não se cansaram de olhar? Vão se embora. Já
viram tudo. Já podem contar em casa que viram a negra chorando, como
nunca ninguém chorou. Não era isso que queriam? Vosmicês são os culpados,
mas não podem compreender. Medea já foi feliz, quando nos seus brinquedos
na praia, nas suas risadas alegres e nas danças de terreiros, não sabia o que
era o amor. E os moços guerreiros da tribo saíam à caça para ela, traziam o
cabrito gordo, pescavam os peixes dourados, colhiam romãs tão doces e a
água dos cocos verdes, trançavam colares de conchas e contas de tantas
cores e mil coisas que inventavam para ganhar seu coração. E o coração da
rainha não tinha dono nem amor. Ela era feliz assim. Maldita! Maldita a hora
em que o mar trouxe à praia o veleiro de Jasão! Maldita! Maldita a hora em que
a negra viu o branco e o seu coração se adoçou!

(Medea aparece à porta).

AMA – Fuja, Medea! Vá pedir a Egeu que no seu barco leve vosmicê para bem
longe. Egeu navega para o mar e o mar é a salvação.

MEDEA – Esta ilha me pertence e daqui não hei de sair.

AMA – Na ilha entrou o desespero, já não pode mais ficar. Fuja. Medea, fuja. A
vosmicê só resta o mar. Vá pedir a Egeu.

MEDEA – Egeu não quer me levar. Veja, lá longe o seu barco, das velas cheias
dos ventos do norte, já começa a se afastar. Vai levando um pobre velho que
ao partir, chorando, me amaldiçoou.

AMA – Maldição de branco nunca pode nos tocar. Fica sempre na boca
daquele que a murmurou.

AS LAVADEIRAS (em coro) – Dor de branco... dor de negro... ela é sempre a


mesma dor.

(Batista entra correndo e, com gestos desesperados, conta à Medea


toda a tragédia).

AMA – Que desgraça! Ai de nós! Para onde irá vosmicê? Não há mais ninguém
agora, nem uma terra, uma casa onde possa se abrigar.

MEDEA – Felizes novas. Vai em paz. Para o coração de Medea, os teus gestos
foram mais doces que os beijos de seu senhor.

(Medea dá dinheiro à Batista que foge desesperado).

AMA – Já parte o veleiro amigo, já se vai toda a esperança. Veja, em pé, na


proa, vai Egeu. Parece que vai chorando os filhos que vosmicê não lhe deu.

MEDEA – Ao partir, ele disse: os filhos são parte dos pais, a sua continuação.
Não, não vai chorando; vai rindo, pois sabe que os meus também querem
roubar. Mas nem mesmo esse velho impotente há de zombar de mim. Aonde
estão os meus meninos?
AMA – Estão trancados no quarto que dá para a beira do rio, com medo de
vosmicê.

MEDEA – Vai busca-los.

(A ama sai).

MEDEA – Vai, Medea, vai. Seja rainha outra vez. Toma o caminho da dor,
aberto diante de ti. Reúne todas as forças, esquece que, de teu corpo negro,
saíram dois seres lindos, de cabelos de ouro, os dois filhos de Jasão. Esquece
as dores do parto, esquece os gestos primeiros e os doces beijos passados de
suas bocas tão frescas. Esquece, Medea, esquece. Ah! Meus filhos tão
bonitos... os meus filhos de Jasão.

(A ama volta com os meninos).

MEDEA – Venham. Tem medo de mim? (para a Ama) E tu vai no arraial buscar
Jasão. Preciso falar com ele.

(A ama sai).

FILHO I – Então, papai vai volta?

FILHO II – Não podemos ir com ela, mãe? A gente tem medo da ilha, dos
cantos que vêm da mata, dos seus gritos toda noite e suas mãos que
machucam. Vosmicê não dá licença?

MEDEA – Também querem me deixar? Meus filhos irão embora e serão


mimados por outros e outras mãos os vestirão...

FILHO I – Vamos pedir à ama pra nos levar ao povoado?

MEDEA – Esperem. Esperem. Os filhos de uma rainha não devem chegar ao


seu rei com as mãos vazias como escravos fugidos.

FILHO II – O que devemos levar?

FILHO I – Aquele colar de ouro...

MEDEA – Medea não tem mais nada, a não ser a sua dor e essas mãos
pequeninas não podem aguentar o peso...

FILHO I – Então, vamos de mãos vazias. Papai não vai se zangar. A ama já
está tão longe... Vamos correr atrás dela? Tenho pressa de chegar.

FILHO II – Vamos. Vamos depressa.

MEDEA – Não, assim não. Esperam. Não se incomodem com a ama. Depois
eu mando levar meus meninos. (Pegando-lhes as mãos) Vamos envher essas
mãos de flores e presentes da terra não querem? Vão buscar o carneirinho e o
favo de mel dos pastos daquele lado, não veem, lá longe, além do rio?

FILHO I – Atravessar o rio?

FILHO II – Tenho medo da correnteza. Não se pode chegar lá.

MEDEA – Os filhos de Jasão com medo? São dois homenzinhos tão bravos
como os leões da minha terra. São dois guerreiros valentes como o pai. Vão
atravessar o rio, como o barco que um dia chegou às praias da Costa d’Ouro: o
veleiro de Jasão.

FILHO I (rindo contente) – Valentes como papai?

FILHO II – Pois então vamos tentar.

(Eles adiantam-se para o rio).

MEDEA – Não. Não. Esperem. Venham cá. Venham abraçar-me (agarra-os


desesperada) Ó meus amores tão lindos, ó cabelos tão louros, ó olhos tão
puros! Filhos como os meus ninguém terá.

FILHO I – Vosmicê me machuca.

FILHO II – E Jasão, nosso pai, quando é que vai chegar? Quero ir embora com
ele, o mais depressa possível. Tenho medo, irmão, tenho medo.

FILHO I – Eu também não quero ficar.

MEDEA – Também querem me abandonar. Partam, partam, depressa. Vão


buscar os presentes da terra, que lhes mostrei.

(Eles saem por detrás da casa em direção ao rio).

LAVADEIRA I – É preciso salva-los. Venham.

LAVADEIRA II – Para, Medea, para!

LAVADEIRA III – São teus filhos, mulher!

LAVADEIRA II – Para, Medea e pensa!

LAVADEIRA III – Medea, Medea ainda há tempo!

(Elas tentam atravessar a ponte. Medea, meio louca, barra-lhes a


passagem).

MEDEA – Como? Falam comigo? O que querem aqui? As brancas já falam


com a preta? Não ousem se aproximar.

LAVADEIRA I – Medea, ainda há tempo. São teus filhos, mulher.


MEDEA – Filhos meus, lindos... lindos... mas também os de Jasão.

LAVADEIRA III – Medea, por piedade! Também somos mães, mulher. A nossa
cor não importa.

LAVADEIRA II – Corra, corra para salva-los

MEDEA – Mas de que falam vosmicês? Mandei meus filhos buscar presentes
para que cheguem ao povoado como os reis da minha terra em visita a outro
rei.

LAVADEIRA I – A correnteza é forte, as águas fundas e as pedras cheias de


limo... Nunca chegarão no outro lado. São teus filhos, mulher!

(Ouve-se um fraco grito, vindo do rio. As lavadeiras escondem os rostos


e, chorando, vão se afastando. Há um silêncio. De novo, de mais longe ainda
quase imperceptível, chega o lamento dos negros).

MEDEA – Ah! Nunca mais verei os meus filhos, nunca mais me estenderão os
seus braços, nunca mais os vestirei. Não, não quero lágrimas. De que me vale
chorar? Devo partir enxotada, devo fugir para as matas... e não os verei
crescer, nem arrumarei o seu quarto, nem acenderei as velas no dia do
casamento; não envelhecerei a seu lado e não serei enterrada por suas mãos
tão queridas...

(Ela se deixa cair atrás do braseiro, cujas brasas ainda ardem).

LAVADEIRA I – Não há mais nada a fazer. Vamos embora daqui.

LAVADEIRA II – Olhem! O rio está todo vermelho. Parece cheio de sangue.

LAVADEIRA III – É o sol que se esconde. A noite chegou depressa.

LAVADEIRA II – E eles não voltam mais.

LAVADEIRA I – Vamos embora daqui. Na ilha só há desespero.

LAVADEIRA II – E no rio, solidão.

(Afastam-se lentamente pela margem. Jasão aparece, Medea atiça o


fogo como uma barreira entre os dois).

JASÃO – Mulher!

MEDEA – Que queres aqui? Se tens alguma coisa a dizer-me, podes fazê-lo;
mas é tarde, é muito tarde. Nunca mais me alcançarás. Já acendi a fogueira
que me separa de ti.

JASÃO – Sei que és culpada, Medea.


MEDEA – Culpada de te haver seguido. De haver traído a minha raça. Por ti
matei pai e irmão.

JASÃO – Ainda se escutam os cantos fúnebres dos escravos que


acompanharam o corpo da filha do capitão. Todos dão caça a Batista e ele vai
acabar confessando. Tu és culpada, mulher.

MEDEA – Ninguém vai poder provar.

JASÃO – Serás morta a pedradas. Ninguém pode te salvar. Quero livrar os


meus filhos da fúria dessa gentalha. Quero os meus filhos, mulher.

MEDEA – Nunca.

JASÃO – E tu para que os queres, se não os podes guardar?

AS LAVADEIRAS (num lamento) – Jasão não sabe ainda, mas em pouco


saberá.

JASÃO – Depois de mais esse crime, só te resta fugir. Fuja Medea, fuja. Que
nunca mais nesta terra se ouça o teu nome sinistro. Fuja, é só o que podes
fazer. Fuja, mas deixe-me os filhos. Eles são brancos, mulher.

MEDEA – São meus filhos muito mais.

JASÃO – Um dia te verão preta e vão perguntar espantados o que fazem junto
a ti.

MEDEA – Basta! Basta! Quando precisaste de mim, não viste minha pele preta
e tu me amaste, Jasão. Acreditei em tuas promessas...

JASÃO – Não podes compreender. Com o meu casamento com Creusa, queria
dar a meus filhos uma nobre posição. Dá-me os meus filhos, Medea. Tudo os
separa de ti.

MEDEA – Queres os filhos? Vá busca-los

(Jasão corre à casa)

MEDEA – Não, aí não.

JASÃO – Onde estão?

MEDEA – Não vês? Lá, lá longe, no rio. Não vês os corpos boiando? Vai
busca-los, Jasão.

JASÃO – Não! Não! Não é possível! És um monstro, Medea! Mataste os teus


próprios filhos, porque sabias que sem eles eu não posso mais viver.

MEDEA – Não. Tu vais viver. É o teu castigo.


JASÃO – Fui um louco em pensar que de uma terra de bárbaros podia trazer
uma mulher para mim, (ri desesperado) uma mulher que depois de haver traído
a tribo, depois de matar pai e irmão, deita-se nos meus braços e troca juras de
amor. Tu és o gênio do mal, que os deuses enviaram contra mim para pagar
pelos escravos que fiz acorrentar nas praias da África. Nenhuma mulher branca
ousaria fazer o que fizeste.

MEDEA – Sou mais humana que as brancas, mas também sou uma rainha...

JASÃO – Um bicho cheio de fome mais feroz que os bichos da tua terra.

MEDEA (continuando a frase) – Que não se deixou vencer.

JASÃO – Chorando, acompanhei o enterro da noiva que não conheci e parto


pela vida afora, chorando o destino cruel dos filhos por mim gerados, crianças
que alimentei e que amava como nunca amei ninguém.

MEDEA – Eu os amava como tu.

JASÃO – Mas tu serás perseguida por sua lembrança cruel e viverás sempre
fugindo, numa grande solidão.

MEDEA – E tu envelhecerás sem coração e sem risos, porque pensaste em


tomar o amor que me havias dado... mas matando os meus filhos, matei
também esse amor... ninguém o possuirá.

JASÃO – Ó filhos meus, que nunca mais verei sorrir!

MEDEA – E nem mesmo a sepultura deles será tocada por tuas mãos, já os
levam as águas que não voltam nunca mais. Vão ao encontro da fonte eterna e
da grande solidão, pois lá, a perder de vista, as águas do grande rio vão
misturar-se às do mar.

JASÃO – E o rio será lembrado e será rio maldito por todos os que mais tarde
ouvirem a sua história.

MEDEA – E o rio será lembrado e será rio sagrado. Suas águas rolando vão
sempre dizendo que não há maior glória que a que se alcança em não se
deixar vencer. Vai-te daqui para sempre, nada mais tenho a dizer.

(Jasão sai. Um longo silêncio. As chamas da fogueira baixaram).

MEDEA – Mulheres! Mulheres! Elas também já se foram para nunca mais


voltar. As sombras já me rodeiam, calaram-se as vozes da mata, só me resta a
solidão. Vozes, ó vozes da raça, ó minhas vozes, onde estão? Não ouso cruzar
o rio e tenho medo da ilha, de seu silêncio tão grande. Ó vozes da minha raça,
ó minhas vozes, onde estão? Por que se calam agora? A negra largou o
branco. Medea cospe esse nome e Jinga volta a sua raça, para de novo reinar.

(Lentamente começam os atabaques, os tantãs e os agogôs a tocar um


ponto de macumba. A floresta vai se iluminando. Vultos se recortam entre as
árvores. São os negros fugidos, seminus, que numa macumba sangrenta
festejam e volta de Medea à raça).

MEDEA – Ainda tocam o ponto. Ainda precisam de mim. Ainda sou rainha.
Ainda sou preta e orixá.

PANO

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