Agostinho Olavo
PERSONAGENS
Lavadeira I
Lavadeira II
Lavadeira III
Medea
Ama
Egeu
Vendedor de flores
Vendedor de frutas
Vendedor de pássaros
Vendedor de tripas
Sinhazinha
Batista
Creonte
Serafim
Creusa
Jasão
(Uma ilha formada no cotovelo de um rio. Ao fundo, além das águas, a mata
virgem. Em primeiro plano, a margem pedregosa e estreita, onde as lavadeiras
vêm bater a roupa. Na ilha à esquerda, a casa de barro vermelho da Medea e,
à direita, um a pontezinha de pau corrido, ligando a ilha da margem do primeiro
plano.
AÇÃO
LAVADEIRA II – Mas por que uma volta tão grande? Por lá era muito mais
perto...
LAVADEIRA I – Finja que está trabalhando, que não veio para olhar, enquanto
eu recolho a roupa.
LAVADEIRA I – Diz que é dona da Ilha. Preguiçosa, não faz nada. Vive como
as sinhás brancas, com uma mucama ao seu lado.
LAVADEIRA II – É bonita?
LAVADEIRA III – Não ria tão alto. Se nos ouve, é praga na certa. Conhece
tanta mandinga e canjerê!... A gente pode ficar aleijada pra sempre. Com essas
coisas não se brinca.
LAVADEIRA III – Acaba sabendo, mas não sou eu quem vai contar.
Ogun já chegou
Ogun já chegou
AMA – É o tantã de nossa gente. É a nossa raça chamando a sua rainha Jinga.
AMA (fazendo traços na areia) - O batismo não apaga a raça. É a nossa gente,
Medea. Vosmicê tem que voltar.
MEDEA – Cala-te.
AMA – Vejo a tribo reunida. Todos seguem a rainha nos seus passos de dança
e seus requebros faceiros, sem saber pra onde vão.
AMA – Estes peitos murchos deram o leite e o calor que criou a vosmicê. Filha
da criação, se já traiu toda a tribo, também pode me matar. Vosmicê ainda é
rainha.
MEDEA – Rainha... Até o dia em que ele chegou do mar e tornou-se o meu
senhor. Com as mãos cheias de presentes, cheguei como filha de rei vencida,
em visita a outro rei. É o costume da terra. A minha tribo, a minha maior
riqueza, dei de presente ao vencedor.
AMA – Num porão sem luz, nem ar, cortados de chicotadas, jogaram todos os
negros, e o navio partiu gemendo dos gemidos dos coitados.
AMA – Um amor feito de morte, ódio, fuga e traição! Mas os negros não se
esquecem e nas plantações do norte, onde ficaram vendidos, amaldiçoam
vosmicê e juram vingança.
MEDEA – Cala-te.
LAVADEIRA I – Sacrilégio. Deus do céu! Diz que é orixá, divindade, não ouviu?
O que é mesmo é mãe de santo, macumbeira das piores.
LAVADEIRA I – E a todos ela enxota e diz que foi batizada e prometeu a Jasão
nunca mais fazer macumbas nem candomblés.
MEDEA (à beira do rio) – O que querem aqui perto? O que vieram olhar?
AMA – Vê? Não disse? Para elas vosmicê não passa de uma escrava fugida.
São brancas, não se esqueça.
MEDEA – Que me importa! Sou rainha. Elas sim, são escravas que vivem
sempre lavando tudo o que os brancos sujarem. Têm inveja de mim. Sou a
mulher do guerreiro mais valente de cem milhas em redor da vila de São João.
Têm inveja, porque Jasão trouxe Medea e Medea vive só pra Jasão.
AMA (como um eco) – Vai chegar e tudo se clarear. (Pausa. Depois, olhando
as areias.) O caminho de vosmicê vais tão longe... Há tanta sombra a passar...
AMA – Já não posso ver mais nada. As areias ficaram lisas. O vento apagou as
linhas. Fugiram todos os espíritos com medo de vosmicê.
AMA – Mas estão sempre tentando, e um dia, sem forças, vosmicê vai
responder.
MEDEA – Nunca! Pois prometo sobre a cabeça dos meus filhos, de seus
cabelos de ouro, os meus filhos de Jasão.
AMA – Eles mamaram o leito dos peitos de vosmicê. Também são os seus
filhos, não se esqueça.
MEDEA – São meus filhos, sim, são meus filhos; são dois punhais afiados para
cortar as cordas que me prendem à minha raça. Deste corpo preto e duro,
como o chão da minha terra, saíram dois leõezinhos dourados e me ligaram a
outra gente. São a luz da minha sombra, os meus filhos de Jasão. E quando os
tenho nos braços, quando a tarde já começa a desmaiar, sinto-me branca, tão
branca como a espuma do mar. Agora vai, vai busca-los. Ele não tarda a
chegar. É preciso prepara-los.
MEDEA – Onde?
(A ama sai)
LAVADEIRA I -
LAVADEIRA III –
É o destino da negra
E um punhal no coração.
LAVADEIRA II –
MEDEA – Não posso. Por que insistes? Fui batizada e prometi a Jasão.
MEDEA – Como os meus, ninguém terá. Os meus filhos são os filhos de Jasão.
MEDEA (quase consigo mesma) – Por ele traí a raça, deixei mortos pai e
irmão.
MEDEA – Adeus. Não posso dizer mais nada a não ser olorum modupé – Deus
vá contigo.
MEDEA – Tenho medo. Não sei porque tenho medo. Vem para perto de mim.
EGEU – Em troca do filho que pedi, terás o meu barco que vai partir para terras
mais amigas, queres?
MEDEA – Por que partir para longe? Minha pátria é aqui nesta terra de Jasão.
Mas por que me dizes isso? E eu por que sinto tanto medo?
EGEU – Sim, são os negros das fazendas. Vão á festa do arraial. Não sabias
das festas?
Alecrim manjericão,
Dália, cravo, malva, rosa,
O sabiá a cantar
Já principia a chegar,
Tem tangerina
Lima gostosa,
Laranja da China.
Manga cheirosa.
VENDEDOR DE FLORES – Finja que não está ouvindo. Não olha pra ela não.
VENDEDOR DE PÁSSAROS –
Beija-flor e juriti
Periquito verde-galo
Cardeal e bentevi.
VENDEDOR DE TRIPAS –
LAVADEIRA III – Venham cá, seus malcriados, Não querem vender pra negra
com medo do seu feitiço, não é? Vosmicês têm bem razão. Mas conosco não
há perigo. Nós só queremos comprar.
MEDEA – Não podia dar e tu sabes a razão (pausa) Mas por que uma festa?
MEDEA – Essas risadas me doem. Riem, riem de quê? É festa: Porque uma
festa? É este medo, por quê?
LAVADEIRA I – Lá vai sinhá moça faceira toda bonita e risonha, na sua rede
bordada.
LAVADEIRA III –
(O grupo passa).
LAVADEIRA I – Vamos, vamos depressa.
LAVADEIRA III – Não vamos sair agora. Medea não sabe ainda, mas ele já vai
contar. Já chegou o seu destino, já não pode mais fugir.
O sabiá a cantar
Principiou a chegar
MEDEA – O que se passa no arraial? Por que vão todos à festa? Festa? Festa
por quê?
MEDEA – Vivo sozinha na ilha, na casa que ele deu, Mas, por que medo de
uma festa? Festa! Festa por quê?
MEDEA – Creusa, aquela orgulhosa que um dia enxotei daqui? Veio pedir um
despacho, queria uma coisa feita para conquistar um amor. Tratou-me como
uma escrava e eu a corri da ilha. Casa com quem?
MEDEA – Não vai voltar... Por que dizes isso? O que sabes? Há dez luas, ele
não vem e mesmo mais.
EGEU – Mentira! Pergunta a Batista, o servidor de Jasão, que também vai para
a festa.
MEDEA – Perguntar a um mudo? Só tem gestos, não tem voz. Logo vi! Só
querias me enganar.
EGEU – Com seus gestos fala mais que toda a gente. Ele te responderá.
MEDEA – Da caçada, já sei. Isso foi há muito tempo. E agora, hoje, onde está?
(Batista faz gesto de que não sabe, mas vê-se que está mentindo).
MEDEA – Vai chamá-lo a toda pressa. Na volta te dou todo o resto. É tudo o
que tenho agora.
MEDEA – É a dança do noivado. Tem pena de mim, Egeu. Dize que não é
verdade e eu te darei a erva amarga para te aquecer o sangue... tu terás filhos
lindos. Ainda tenho poder.
EGEU – Começo a duvidar do valor dos teus filhos. Tu mesma, infeliz, foste
abandonada e só sabe suplicar. Onde estão os teus feitiços, se nada pode
fazer?
MEDEA – No meu amor por Jasão, nunca usei de mandinga nem sequer de
canjerês. Pelo filho que me pedes, contai-me toda a verdade, Egeu.
MEDEA – Fala.
EGEU – Os filhos são parte dos pais, a sua continuação, mas já não os peço
mais a ti. Já não creio em teu poder. Agora parto vingado. Vou pra bem longe
da ilha. (Sai).
MEDEA – E se ele disse a verdade? E se Jasão me traiu? Ai de mim! Ai de
mim!
MEDEA – Ai de mim! Pobre de mim! Parem. Parem esta dança. Parem este
canto, parem! Se não tem pena da negra, deixem ao menos que, em silêncio,
ela escute os gemidos de seu pobre coração.
(Ela cai como se tivesse sido engolida pelo bando alegre que passa. Creonte
entra).
CREONTE – Não venho para insultar e sim, apenas, dizer-te; é preciso que
partas.
CREONTE – É uma ordem, Medea. Jasão vai casar-se com minha filha e és
capaz de quebrar a promessa feita e, com um filtro, uma mandinga qualquer...
procurar uma vingança.
CREONTE – Se não partires serás posta a ferros e vendida como uma escrava
qualquer.
MEDEA – Sou livre. Sou rainha. Vosmicê não pode me acorrentar. Sou a
mulher de Jasão.
CREONTE – Se não fosse por causa dele, há muito terias sido vendida como
escrava, como os outros.
MEDEA – Mas depois fui batizada e prometi a Jasão. Nunca mais fiz os
trabalhos que os brancos vêm me pedir.
MEDEA – De joelhos, a vosmicê peço, pela virgindade que Creusa vai entregar
a Jasão, por sua noite de núpcias...
MEDEA – Ó minha terra tão longe, ó praias de conchas brancas onde não
posso voltar. Creonte, não me expulse assim. Viverei sozinha na ilha e nunca
me queixarei. Mas além do rio o que me espera? Para onde posso ir?
MEDEA – Partirei, não fale mais. Mas vosmicê não pode separar-me dos meus
filhos... Eles nasceram deste corpo e me fizeram sofrer. Essas crianças são
minhas, são a luz da minha sombra, o calor do meu calor. Corte-me os braços
e as pernas, marque-me com ferro em brasa, ou mande-me chicotear; mas não
me tome os filhos, eles são parte dos pais... a minha continuação.
CREONTE – Dizes bem, mulher. Os filhos são parte dos pais. Mas os teus
nasceram brancos e alforriados na pia, só pertencem à Jasão. Procura
compreender. Nem o amor de minha filha...
MEDEA – Não me fale desse amor. Vosmicê é poderoso e não posso fazer
mais nada; mas, de joelhos, eu lhe peço, Creonte, deixe-me ficar mais um dia.
CREONTE - Mais um dia pra que?
CREONTE – Pois bem. Mas declaro: se depois desse prazo, a luz do sol te
encontrar nos limites dessa terra, não serás vendida como escrava nem
mesmo chicoteada, pois juro que te mandarei matar.
MEDEA – Não diga mais nada. (Ela faz uma reverência até se ajoelhar e
depois, docemente) Agora vai, meu senhor.
MEDEA – Não é preciso mentir. Medea já sabe tudo. Lá, na praça da vila, ao
lado de sua noiva, Jasão recebe os presentes do povo e dança a dança do
noivado. Vai, Batista, vai levar à bela noiva o presente da negra que está
sozinha, não tem destino nem casa, não tem mais filhos nem amor.
(Da floresta coro responde, sempre num crescente até atingir o paroxismo).
PANO
QUADRO ÚNICO
(Todos se viram para olhar o bando de negros que chega cantando e dançando
ao som do maracatu).
SERAFIM – Olha o mudinho que chega! Vem todo prosa e contente. Cuidado
vosmicês aí! Deixem o Batista passar.
(Os negros abrem alas e, diante da admiração geral, o Batista sobe ao
palanque para oferecer o colar à Creusa).
SINHAZINHA - Lindo! Lindo! Maravilha! Brilah mais que a luz do sol. Cada
qual traz seu presente. Vosmicê é felizarda. Devia estar tão contente, mas
parece querer chorar.
CREONTE – O que minha filha pedir, mas não com estes olhos tristes. Hoje é
dia de festa. Pede e teu pai te dará. Mas quero em troca um sorriso, um grnade
sorriso alegre.
CREUSA – Quero a ilha do rio toda vazia pra mim. Vosmicê quer um sorriso,
um grande sorriso alegre; mas, meu Deus, não é possível enquanto Medea
morar aqui. A negra tem ódio de mim e um dia vai se vingar. Como quer
vosmicê que eu ria, se o medo da feiticeira me arrepia toda a pele, desmancha
a minha alegria?
CREONTE – Já pode rir, minha filha. Amanhã, no cair do dia, a ilha estará
deserta e a casa vazia. Antes de vir para cá, eu mesmo fui em pessoa mandar
embora a escrava que um dia zombou de ti.
Morreu!
Morreu!
(Na ilha, A ama com os dois filhos de Medea. São duas crianças, quase
brancas. De cabelos alourados. Ao longo, ouve-se o lamento dos escravos que
se mistura aos gritos de Medea).
MEDEA (aparecendo à porta) – Ama, não quero ver as crianças. Leve-os para
bem longe daqui!
FILHO II – Por que não fala conosco? Parece nos querer mal.
AMA – Não diga assim: querer mal. Vosmicês são o seu tesouro. Está sofrendo
a coitada!
AMA – É ela mesma, meus filhos. É Medea. Não posso mais enganar a
vosmicês. Seu coração está cheio de ódio e sua raiva está fervendo. Não
fiquem aqui. Não quero assustar, meus meninos, mas fujam para o quarto que
dá para a beira do rio. Depois eu vou chamar vosmicês. Tudo isso vai passar.
AMA – Não sabe o que diz, a pobre. Agora vão, vão brincar. (Eles saem).
LAVADEIRA II – Pensei que pudesse rir, mas creio que vou chorar.
LAVADEIRA II – Pois se morre muito mais. Mas não é só Medea quem chora.
Não estão ouvindo, lá longe?
LAVADEIRA III – Estranho. São os escravos cantando uma cantiga de morte.
Num dai de tanta festa, o que será que aconteceu?
AMA – Ainda estão por aqui? Não se cansaram de olhar? Vão se embora. Já
viram tudo. Já podem contar em casa que viram a negra chorando, como
nunca ninguém chorou. Não era isso que queriam? Vosmicês são os culpados,
mas não podem compreender. Medea já foi feliz, quando nos seus brinquedos
na praia, nas suas risadas alegres e nas danças de terreiros, não sabia o que
era o amor. E os moços guerreiros da tribo saíam à caça para ela, traziam o
cabrito gordo, pescavam os peixes dourados, colhiam romãs tão doces e a
água dos cocos verdes, trançavam colares de conchas e contas de tantas
cores e mil coisas que inventavam para ganhar seu coração. E o coração da
rainha não tinha dono nem amor. Ela era feliz assim. Maldita! Maldita a hora
em que o mar trouxe à praia o veleiro de Jasão! Maldita! Maldita a hora em que
a negra viu o branco e o seu coração se adoçou!
AMA – Fuja, Medea! Vá pedir a Egeu que no seu barco leve vosmicê para bem
longe. Egeu navega para o mar e o mar é a salvação.
AMA – Na ilha entrou o desespero, já não pode mais ficar. Fuja. Medea, fuja. A
vosmicê só resta o mar. Vá pedir a Egeu.
MEDEA – Egeu não quer me levar. Veja, lá longe o seu barco, das velas cheias
dos ventos do norte, já começa a se afastar. Vai levando um pobre velho que
ao partir, chorando, me amaldiçoou.
AMA – Maldição de branco nunca pode nos tocar. Fica sempre na boca
daquele que a murmurou.
AMA – Que desgraça! Ai de nós! Para onde irá vosmicê? Não há mais ninguém
agora, nem uma terra, uma casa onde possa se abrigar.
MEDEA – Felizes novas. Vai em paz. Para o coração de Medea, os teus gestos
foram mais doces que os beijos de seu senhor.
MEDEA – Ao partir, ele disse: os filhos são parte dos pais, a sua continuação.
Não, não vai chorando; vai rindo, pois sabe que os meus também querem
roubar. Mas nem mesmo esse velho impotente há de zombar de mim. Aonde
estão os meus meninos?
AMA – Estão trancados no quarto que dá para a beira do rio, com medo de
vosmicê.
(A ama sai).
MEDEA – Vai, Medea, vai. Seja rainha outra vez. Toma o caminho da dor,
aberto diante de ti. Reúne todas as forças, esquece que, de teu corpo negro,
saíram dois seres lindos, de cabelos de ouro, os dois filhos de Jasão. Esquece
as dores do parto, esquece os gestos primeiros e os doces beijos passados de
suas bocas tão frescas. Esquece, Medea, esquece. Ah! Meus filhos tão
bonitos... os meus filhos de Jasão.
MEDEA – Venham. Tem medo de mim? (para a Ama) E tu vai no arraial buscar
Jasão. Preciso falar com ele.
(A ama sai).
FILHO II – Não podemos ir com ela, mãe? A gente tem medo da ilha, dos
cantos que vêm da mata, dos seus gritos toda noite e suas mãos que
machucam. Vosmicê não dá licença?
MEDEA – Medea não tem mais nada, a não ser a sua dor e essas mãos
pequeninas não podem aguentar o peso...
FILHO I – Então, vamos de mãos vazias. Papai não vai se zangar. A ama já
está tão longe... Vamos correr atrás dela? Tenho pressa de chegar.
MEDEA – Não, assim não. Esperam. Não se incomodem com a ama. Depois
eu mando levar meus meninos. (Pegando-lhes as mãos) Vamos envher essas
mãos de flores e presentes da terra não querem? Vão buscar o carneirinho e o
favo de mel dos pastos daquele lado, não veem, lá longe, além do rio?
MEDEA – Os filhos de Jasão com medo? São dois homenzinhos tão bravos
como os leões da minha terra. São dois guerreiros valentes como o pai. Vão
atravessar o rio, como o barco que um dia chegou às praias da Costa d’Ouro: o
veleiro de Jasão.
FILHO II – E Jasão, nosso pai, quando é que vai chegar? Quero ir embora com
ele, o mais depressa possível. Tenho medo, irmão, tenho medo.
LAVADEIRA III – Medea, por piedade! Também somos mães, mulher. A nossa
cor não importa.
MEDEA – Mas de que falam vosmicês? Mandei meus filhos buscar presentes
para que cheguem ao povoado como os reis da minha terra em visita a outro
rei.
MEDEA – Ah! Nunca mais verei os meus filhos, nunca mais me estenderão os
seus braços, nunca mais os vestirei. Não, não quero lágrimas. De que me vale
chorar? Devo partir enxotada, devo fugir para as matas... e não os verei
crescer, nem arrumarei o seu quarto, nem acenderei as velas no dia do
casamento; não envelhecerei a seu lado e não serei enterrada por suas mãos
tão queridas...
JASÃO – Mulher!
MEDEA – Que queres aqui? Se tens alguma coisa a dizer-me, podes fazê-lo;
mas é tarde, é muito tarde. Nunca mais me alcançarás. Já acendi a fogueira
que me separa de ti.
MEDEA – Nunca.
JASÃO – Depois de mais esse crime, só te resta fugir. Fuja Medea, fuja. Que
nunca mais nesta terra se ouça o teu nome sinistro. Fuja, é só o que podes
fazer. Fuja, mas deixe-me os filhos. Eles são brancos, mulher.
JASÃO – Um dia te verão preta e vão perguntar espantados o que fazem junto
a ti.
MEDEA – Basta! Basta! Quando precisaste de mim, não viste minha pele preta
e tu me amaste, Jasão. Acreditei em tuas promessas...
JASÃO – Não podes compreender. Com o meu casamento com Creusa, queria
dar a meus filhos uma nobre posição. Dá-me os meus filhos, Medea. Tudo os
separa de ti.
MEDEA – Não vês? Lá, lá longe, no rio. Não vês os corpos boiando? Vai
busca-los, Jasão.
MEDEA – Sou mais humana que as brancas, mas também sou uma rainha...
JASÃO – Um bicho cheio de fome mais feroz que os bichos da tua terra.
JASÃO – Mas tu serás perseguida por sua lembrança cruel e viverás sempre
fugindo, numa grande solidão.
MEDEA – E nem mesmo a sepultura deles será tocada por tuas mãos, já os
levam as águas que não voltam nunca mais. Vão ao encontro da fonte eterna e
da grande solidão, pois lá, a perder de vista, as águas do grande rio vão
misturar-se às do mar.
JASÃO – E o rio será lembrado e será rio maldito por todos os que mais tarde
ouvirem a sua história.
MEDEA – E o rio será lembrado e será rio sagrado. Suas águas rolando vão
sempre dizendo que não há maior glória que a que se alcança em não se
deixar vencer. Vai-te daqui para sempre, nada mais tenho a dizer.
MEDEA – Ainda tocam o ponto. Ainda precisam de mim. Ainda sou rainha.
Ainda sou preta e orixá.
PANO