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Trabalho apresentado no XII Encontro da ANPOF (2006). GT de Filosofia da Ciência.

 S. S. Chibeni, 2006. Versão provisória; favor não citar.

Hume e o “dogma do reducionismo”


(ou: O Hume de Quine é um homem de palha) 1

Silvio Seno Chibeni


Departamento de Filosofia – Unicamp – Brasil
web: http://www.unicamp.br/~chibeni
e-mail: chibeni@unicamp.br

Resumo:

Neste trabalho examina-se uma série de acusações que Quine faz a Hume, quanto às
características de seu empirismo. Entre essas acusações merece especial atenção a de que
Hume teria adotado o dogma do “reducionismo radical” e, ainda mais, em uma versão “naïve”
e “intoleravelmente restritiva”, na qual ele assume a forma de um “impossível empirismo
termo-a-termo”. Sugere-se que o elemento da teoria epistemológica de Hume que mais se
aproxima de tal versão talvez seja o seu “primeiro princípio da ciência da natureza humana”,
segundo o qual todas as idéias simples derivam, em última instância, de impressões simples
semelhantes. No entanto, defende-se aqui que ainda que se conceda que essa aproximação
seja legítima do ponto de vista analítico, a teoria humeana do conhecimento envolve diversos
outros aspectos importantes que não parecem de nenhum modo justificar a imputação
quineana. Indica-se também que não apenas Hume não adotou as teses empiristas equivocadas
que Quine aponta, mas, ao contrário, parece mesmo ter sido um importante precursor de
posições hoje atribuídas a Quine, entre as quais o holismo e o naturalismo epistemológicos,
em versões apropriadas ao contexto de sua filosofia.

Lendo-se alguns textos de Quine, é difícil evitar a impressão de que ele, ao olhar
para os filósofos empiristas que nós costumamos chamar de “modernos”, percebia-os
num passado imensamente distante, e acreditava que, vivendo naquelas épocas
remotas – “days of yore” (Quine 1995, cap. 1) – eles não tiveram a felicidade de
perceber quase nada de correto no empirismo, além da vaga máxima fundadora de que
nihil in mente quod non prius in sensu (ibid, p. 4; 1992, p. 19). Quando Quine
pretendeu detalhar um pouco mais sua forma de ver a evolução do empirismo, em

1
Sou grato a Marcos Rodrigues da Silva e Sofia Stein pelos úteis comentários que fizeram a
versões preliminares deste texto.
2

“Two dogmas of empiricism” (1951) e em “Five milestones of empiricism” (1975),


situou explicitamente Locke e Hume num estágio primevo, no qual nenhum dos cinco
“passos para melhor” (1975, p. 67) ainda havia sido dado. Sua posição empirista
caracterizar-se-ia por um amontoado de erros, entre os quais: 1) a perspectiva
mentalista, segundo a qual a filosofia trata de idéias e percepções, ao invés de,
corretamente, tratar de palavras; 2) a adesão ao “dogma” do “reducionismo radical”,
em sua versão “naïve” e “intoleravelmente restritiva” (Quine 1951, p. 38), segundo a
qual o veículo primário do significado seriam os termos (ou idéias), considerados
individualmente; 3) um outro aspecto desse dogma, a suposição de que são os termos
(ou idéias), ainda, que carregariam todo o conteúdo cognitivo, ou seja, que eles seriam
a única porta de entrada da informação empírica na mente.
Critiquei algumas dessas concepções quineanas, relativamente ao caso específico
de Locke, num artigo recentemente publicado em Principia (Chibeni 2005a). Pretendo
agora esboçar – e não mais do que esboçar – uma análise semelhante, para o caso de
Hume. Vou me concentrar sobre alguns pontos que me parecem importantes, sem
querer cobrir todas as críticas que Quine faz a Hume.
Começo dizendo que acho simplesmente desconcertante a crítica de Quine, de
que Locke e Hume não fizeram a “virada lingüística” na filosofia dois séculos antes de
ela realmente ocorrer. Sobre isso não falarei mais nada, a não ser que não me parece
interessante a justificativa apresentada por Quine, a saber, que apenas dez anos após a
morte de Hume alguém já foi capaz perceber que “a maior parte do ensaio do Sr.
Locke, isto é, tudo o que se relaciona ao que ele chama de abstração, complexidade,
generalização, relação, etc. de idéias, na verdade diz respeito meramente à
linguagem”.2 Essa pessoa era, porém, sintomaticamente, um filólogo, John Horne
Tooke. Ademais, a julgar pelos trechos transcritos por Quine, seus méritos como leitor
de Locke são tão incertos que não sei que tipo de apoio suas afirmações poderiam dar
à invectiva quineana. Por fim, para quem já acompanhou o destino da virada
lingüística ao longo do século XX, ou que ao menos pôde vê-lo com olhos diferentes
dos de Quine, não são nada óbvias suas vantagens filosóficas globais sobre a
perspectiva tradicional na qual trabalharam os velhos Locke e Hume.

2
Apud Quine 1975, p. 66. Ver também 1995, pp. 6 e 81; 1951, p. 38.
3

Passando agora ao tópico do reducionismo – central nas presentes notas, bem


como na crítica de Quine – começo salientando que, talvez, o elemento da teoria
epistemológica de Hume que mais se preste à interpretação de Quine seja o seu
“primeiro princípio da ciência da natureza humana”, segundo o qual todas as idéias
simples derivam, em última instância, de impressões simples semelhantes.3 Embora
muito importante, tal princípio integra a parte preliminar da teoria epistemológica de
Hume, que reflete, salvo diferenças menores, a perspectiva de Locke. Essa parte
preliminar trata do que Locke chamou de “materiais” do conhecimento (para ele, as
idéias; para Hume, as percepções: idéias e impressões). Embora de formas diferentes,
ambos sustentam que esses materiais são, em última instância, empíricos. Agora a
imputação feita por Quine a Locke e Hume de um “impossível empirismo termo-a-
termo” 4 só se sustenta se o papel exclusivo da experiência nas teorias epistemológicas
desses filósofos for o de fornecedora desses materiais. Em meu artigo já mencionado,
creio haver mostrado que, embora o Ensaio de Locke contenha passagens importantes
– como a própria definição inicial de conhecimento dada nos primeiros parágrafos do
Livro IV – que induzem a essa interpretação, o seu exame integral a desautoriza
cabalmente. Mantenho agora que o mesmo vale, mutatis mutandis, para o caso de
Hume. Minha tarefa é, pois, a de indicar, no espaço exíguo destas notas, os pontos em
que Hume atribui à experiência funções adicionais à de fonte de percepções.
No Tratado da Natureza Humana, Hume faz a enumeração exaustiva das
relações filosóficas (T 1.1.5). De um total de sete relações, quatro se distinguem por

3
Tratado da Natureza Humana, livro 1, parte 1, seção 1, parágrafo 7; Investigação sobre o
Entendimento Humano, seção 2, parágrafo 5. Daqui para frente, adotarei a forma de referência das
edições indicadas na lista de referências, segundo a qual essas duas passagens seriam indicadas por T
1.1.1.7 e E 2.5, respectivamente. Na Investigação, esse primeiro princípio tem uma aplicação
semântica explícita: quando suspeitarmos que determinada palavra é desprovida de significado,
devemos nos inquirir acerca de que impressão poderia ter dado origem à idéia supostamente designada
pela palavra; não sendo possível encontrar nenhuma tal impressão, a suspeita se confirmará (E 2.9).
4
Essa expressão é de “Two dogmas...”, p. 42. Em The Roots of Reference Quine atribui aos
“velhos epistemólogos” Berkeley e Hume uma “atitude atomista quanto aos dados sensoriais” (p. 2),
acrescentando que se ela estivesse baseada na introspecção, como eles teriam acreditado – o que
considero duplamente duvidoso – seria refutada pela psicologia da Gestalt.
4

dependerem somente das idéias comparadas: são as relações de semelhança,


contrariedade, graus de quaisquer qualidades, e proporções em quantidade ou número
(T 1.3.1.1). Hume é enfático em que somente tais relações “podem ser objeto de
conhecimento e certeza”, no sentido estrito da época (T 1.3.1.2). As outras três
relações – identidade, relações de espaço e tempo, e causação – “podem ser mudadas
sem nenhuma mudança nas idéias”, e só se estabelecem a partir da “informação da
experiência” (T 1.3.1.1). Ora, como essa “informação da experiência” evidentemente
não pode ser a que, numa etapa inicial, meramente forneceu as idéias envolvidas, pelo
processo de cópia codificado no primeiro princípio da ciência da natureza humana,
tem de referir-se a outro processo, epistemologicamente mais complexo, pelo qual se
apreende a relação por assim dizer “em bloco”. Assim, por exemplo, para que
possamos determinar se dois objetos estão próximos espacialmente, devemos ser
capazes de percebê-los conjuntamente; essa relação entre eles nunca pode ser
estabelecida simplesmente a partir das idéias que temos dos objetos.
Na Investigação sobre o Entendimento Humano, Hume substitui essa importante
análise por uma mais simples, em que introduz essencialmente a mesma distinção
epistemológica por meio das noções de “relações de idéias” e “questões de fato”.
Como o nome apropriadamente indica, o domínio das relações de idéias é aquele em
que o conhecimento se estabelece ao longo da referida definição inicial que Locke dá
do conhecimento, a percepção do “acordo ou desacordo de idéias” (Ensaio IV i 2).
Observe-se que se trata de uma percepção interna da mente, sobre suas idéias, que
tanto Locke como Hume subdividem em dois casos, intuição e demonstração. Para
ambos os filósofos, enfatizo, somente por esses meios pode-se alcançar conhecimento
propriamente dito. Fora isso, cai-se no domínio que chamaram de “probabilidade”. É
nele que estão as questões de fato, acerca das quais a única evidência que temos é
empírica: a observação direta dos fatos (e não das idéias). Assim, também nesta
apresentação da Investigação fica claro que já nos primeiros passos que Hume dá além
do estudo dos materiais do conhecimento ele se vê obrigado a estender o papel da
experiência, de forma incompatível com o que Quine chamou de “empirismo termo-a-
termo”, e que, adaptando uma expressão de Michael Ayers, poderíamos mais
5

apropriadamente chamar de empirismo de idéias.5 E mais: tal extensão é essencial,


pois é o domínio das questões de fato, ou probabilidade, que merece a virtual
totalidade da atenção filosófica de Hume, não apenas por estar nele toda a ciência –
incluindo-se aí a própria “ciência da natureza humana” de Hume – mas também por
“ter sido pouco cultivado, tanto pelos [filósofos] antigos como pelos modernos”, como
nota Hume (E 4.3).
No mesmo parágrafo da Investigação em que diz isso, Hume enuncia a questão
epistemológica central que o ocupa: “investigar qual é a natureza da evidência que nos
assegura acerca de existência real e de questões de fato além do testemunho presente
de nossos sentidos ou dos registros de nossa memória”. Como se sabe, a resposta de
Hume é, em termos sucintos, que essa evidência depende essencialmente da relação
causal. Esta, por sua vez, não é de nenhum modo conhecida a priori, mas somente pela
experiência. E a parte principal dessa experiência é a conjunção constante de objetos
ou eventos. Ora, aqui também fica clara a superação do empirismo de idéias, pois a
experiência da conjunção constante evidentemente não é a de meras impressões
consideradas individualmente, mas de complexos de impressões considerados em
bloco, e em padrões que se repetem.
Mas a atenção de Hume está voltada não tanto em estabelecer a natureza
empírica de nosso conhecimento da causação, e sim, fundamentalmente, em esclarecer
o processo inferencial, baseado na relação causal, pelo qual chegamos às questões de
fato que caem fora de nossa observação presente ou passada. Sem descer aos detalhes,
sua conclusão é que esse processo não pertence à esfera do entendimento,
classicamente considerado, mas ao âmbito das operações instintivas da mente.6 Foi
essa tese revolucionária que, mais do que qualquer outra, estabeleceu a reputação
cética de Hume, que permaneceu como um dogma até seu questionamento por parte de
Norman Kemp Smith, na primeira metade do século XX (Smith 1905, 1941). O
trabalho de Kemp Smith e de outros autores mais recentes que seguiram explorando

5
Ayers fala em “concept-empiricism”; 1991, p. 14.
6
Sobre a teoria humeana das inferências causais, ver Chibeni 2006a.
6

sua linha de interpretação7 ajudou a reavaliar o estatuto epistemológico do produto das


inferências causais: a crença nas questões de fato não observadas. Crença aqui
contrapõe-se a conhecimento; para Hume crença não é um ingrediente na constituição
do conhecimento, como se costuma hoje entender,8 nem tampouco constitui categoria
epistêmica desprezível. É, ao contrário, um complemento essencial do conhecimento,
na medida em que é o máximo que podemos alcançar quanto ao imenso domínio das
questões de fato, no qual (como já notei) está toda a filosofia natural e mesmo a
filosofia moral de Hume.
Kemp Smith cunhou a expressão crença natural para enfatizar que, para Hume, a
crença não é fruto da intelecção, mas daquilo que ele próprio chamou de “uma espécie
de instinto natural”, ou de “instinto ou tendência mecânica”.9 As duas classes de
crenças naturais que Hume procura legitimar são a das crenças causais e a da
existência dos corpos. Não posso aqui, evidentemente, seguir explorando esses tópicos
polêmicos; menciono-os apenas para notar que, segundo a teoria humeana, no
estabelecimento dessas crenças a mente tem de ser alimentada pela experiência de um
modo extremamente complexo, que não tem a mais remota semelhança com a recepção
de percepções consideradas atomicamente, e nem mesmo com nenhum processo de
“construção lógica” a partir desses elementos. Mas é isso que Quine assume, sem
suspeitar que se trata de estrambótica projeção sobre Hume e Locke do projeto
empirista da primeira metade do século XX. Uma análise textual minimamente
completa mostra, porém, que tais filósofos não foram os iniciadores longínquos desse
projeto epistemológico fracassado. É extraordinário que Quine tenha perdido a
oportunidade de observar – estando, como estava, na posição certa, de um dos mais
importantes críticos do projeto – que Locke e Hume estavam fundamentalmente de seu
lado! Isso não apenas quanto ao dogma do reducionismo, mas também quanto a dois

7
Por exemplo, Goodman 1954, Wright 1983, Strawson 1989, Craig 1987 e Monteiro 1984,
2003. Para uma crítica a essa nova vertente interpretativa, ver Winkler 1991.
8
Ver, quanto a isso, Chibeni 2006a.
9
E 5.8; 5.2. Expressões semelhantes ocorrem muitas vezes em outros parágrafos da
Investigação, bem como do Tratado.
7

(ou um, no caso de Locke) outros pontos epistemológicos, como indicarei nos
parágrafos restantes destas notas.
Em meu artigo sobre Locke e Quine, já mencionado, procurei mostrar que até
mesmo o holismo epistemológico – o terceiro dos cinco estágios do empirismo, na
classificação de Quine – foi proposto por Locke, numa versão compreensivelmente
rudimentar. Não conheço passagens dos escritos de Hume que apontem nessa direção
de modo tão claro, mas gostaria de indicar que, efetivamente, Hume defendeu posições
que não deixam de evocar a tese de uma dependência epistêmica das proposições
relativamente ao corpo teórico mais amplo em que se inserem. Tal parece ser o caso,
especificamente, das proposições introduzidas a título de hipóteses. Em outro artigo,
apresentei um levantamento preliminar dos usos que Hume fez de hipóteses em sua
“ciência do homem”, mostrando que a famosa afirmação do Abstract, de que o autor
do Tratado “fala de hipóteses com desprezo” (A 2) não se aplica generalizadamente ao
que Hume efetivamente fez.10
Não podendo prosseguir nesse tópico instigante aqui, queria, para concluir,
chamar a atenção para uma última circunstância que aproxima Hume de Quine de
forma notável: o naturalismo.11 O naturalismo é o quinto é último dos estágios do
empirismo, na escala proposta por Quine. Assim como o terceiro estágio (o holismo),
ou talvez mais do que ele, o naturalismo tem sido considerado uma contribuição
original de Quine para a epistemologia. No entanto, mantenho que se a alguém couber
a qualificação de fundador dessa perspectiva será Hume e não Quine.12 Isso não

10
Chibeni 2005b; ver também, para alguns complementos, Chibeni 2003. Parece certo que a
afirmação de Hume no Abstract inspirou-se na não menos famosa afirmação de Newton nos Principia,
de que não fazia hipóteses. Esta também não faz justiça ao conjunto de sua obra, é claro.
11
Para o desenvolvimento um pouco mais extenso desse tópico, ver meu ensaio “A kind of
“mental geography”: Remarks on Hume’s science of human nature”, 2007.
12
Esse ponto já foi notado por diversos autores. Apenas para citar três exemplos próximos, ver
os artigos de Lívia Guimarães (1998) e Sofia Stein (2000), bem como o livro recente de Luiz Henrique
Dutra (2005). Em seus comentários, Dutra aponta diversas semelhanças e diferenças entre as posições
naturalistas dos dois filósofos, sobre as quais não me deterei neste texto. Porém, a maioria dos
comentadores deixou escapar esse ponto importante. Putnam, por exemplo, em sua famosa crítica ao
8

significa, é claro, que o naturalismo epistemológico assuma exatamente as mesmas


feições nos dois filósofos. Mas aquilo que considero o núcleo dessa perspectiva está
tão claro em Hume como em Quine: a abordagem de pelo menos parte das questões
sobre a cognição por métodos típicos das ciências naturais. Note-se que os próprios
título e subtítulo da mais importante obra de Hume já declara isso em termos
insofismáveis: “Um Tratado da Natureza Humana. Sendo uma tentativa de introduzir
o método experimental de raciocínio nos assuntos morais”.13 Ainda num plano muito
geral, deveria ser indicativa, para aqueles que não enxergaram esse ponto, a própria
forma pela qual Hume denominou a sua filosofia: “ciência do homem”, ou “ciência da
natureza humana”. Hume não economizou espaço em ressaltar o paralelo entre a
filosofia natural e essa “ciência”, explorando-o sob diferentes ângulos, em numerosas
passagens do livro.
Não posso aqui fazer um inventário dessas passagens, é claro. Limito-me a
mencionar que o tratamento que Hume dá às duas principais questões epistemológicas
de que já falei brevemente, ou seja, a das crenças nas questões de fato não observadas
e a da crença na existência dos corpos, é irredutivelmente naturalista. Isso porque ele
mostrou (aproveitando, aliás, argumentos de seus predecessores próximos) que estão
excluídas da esfera do entendimento, visto não poderem ser produzidas nem pela
experiência nem pela razão. Isso significaria uma conclusão cética – e foi aí que os
intérpretes tradicionais de Hume ficaram –, não fosse o recurso, que Hume
explicitamente faz, a outra faculdade da mente, a que chama de imaginação. É essa
faculdade – que não deve, segundo argumentou convincentemente Kemp Smith, ser
confundida com a imaginação, no sentido popular do termo – que se responsabiliza
pela geração daquelas crenças. A forma pela qual o faz é extremamente complexa,

naturalismo de Quine analisa diversas outras versões, mas não faz nenhuma referência a Hume (ver
Putnam 1981).
13
‘Assuntos morais’ indica aqui não somente os da alçada da ética, lembremos, mas todos os
referentes ao homem, em suas dimensões cognitiva, emotiva, seus juízos estéticos, etc.
9

segundo a teoria humeana, mas nem por isso deixa de ser automática, instintiva,
mecânica.14
Não poderia concluir sem apontar aquela que parece ser a mais importante
diferença entre o naturalismo de Hume e o de Quine. É que o primeiro, ao propor o
estudo científico da mente humana considera-a em termos próprios, ou seja, em termos
de idéias e impressões, sentimentos e paixões, crenças e conhecimento, etc., enquanto
que o segundo, embora tenha caracterizado o naturalismo como a perspectiva segundo
a qual a epistemologia é entendida como “um capítulo da psicologia”,15 no
desenvolvimento da proposta efetivamente cai num fisicalismo radical, em que, na
verdade, a epistemologia dedica-se a investigar “as irritações de nossas superfícies”
físicas (1975, p. 72) e os efeitos físicos disso no sistema nervoso, na suposição de que
tal investigação capture todos os processos e produtos da mente humana, inclusive a
própria ciência.16 No entanto, este projeto não passa, no estagio atual de
desenvolvimento, de mera declaração de intenções, sendo muito mais programático do
que o projeto do Aufbau, de Carnap, que ele pretende explicitamente substituir. Pior:
parece-me incorrer numa confusão de categorias, em nome de uma perspectiva
reducionista que, para a maioria de seus proponentes, é aceita como um dogma.
Assim, poderíamos, talvez, ironicamente observar que embora Quine tenha
recriminado Hume por adotar o “dogma do reducionismo” semântico-epistemológico
– o que vimos não ser o caso –, ele próprio aderiu tenazmente, durante quase toda a
sua vida, a outro dogma reducionista, desta vez ontológico e metodológico, com
resultados incertos para o real progresso no estudo da mente humana. O fato de Quine

14
Ao invés de isso representar uma desvantagem, ou mesmo a desqualificação epistêmica total
de seus produtos – as crenças – é, antes, diz Hume, uma vantagem clara para os homens, seres que,
acima de tudo, precisam ter uma cognição que os ajude a agir com acerto no trato com o mundo que
os cerca. Ver E 5.21-22.
15
Ver e.g. 1968, pp. 82-83; 1975, p. 72.
16
Cumpre notar, como uma qualificação importante nessa distinção que estou fazendo, que
Hume também se permitiu especular sobre possíveis bases ou correlatos fisiológicos dos processos
mentais. Mas isso ele o faz em umas poucas passagens isoladas, como por exemplo em T 1.2.5.20,
1.3.8.2 e 1.3.10.7, e sem jamais vacilar quanto à prioridade epistêmica que concede ao nível
especificamente mental.
10

haver abrandado essa posição em seus dois últimos livros parece-me uma sinalização
importante para as pessoas que seguem pesquisando o tema.17

Referências 18

AYERS, M. Locke. (2 vols.) London, Routledge, 1991.


CHIBENI, S. S. Hume on the principles of natural philosophy. Manuscrito, 26 (1):
183-205, 2003.
–––. Locke on the epistemological status of scientific laws. Principia, 9 (1-2): 19-41,
2005a.
–––. A Humean analysis of scientific realism. Ensaios sobre Hume, Lívia Guimarães
(org.), Belo Horizonte, Segrac Editora, 2005b. Pp. 89-108.
–––. Hume e as crenças causais. In: Ahumada, J., Pantalone, M. e Rodríguez, V.
(eds.), Epistemología e Historia de la Ciencia, vol. 12. (Selección de trabajos de
las XVI Jornadas de Epistemología e Historia de la Ciencia.) Córdoba:
Universidad Nacional de Córdoba, 2006a. Disponível, em versão integral, em:
www.unicamp.br/~chibeni.
–––. As inferências causais na teoria epistemológica de Hume. Texto apresentado no V
Encontro de Filosofia e História da Ciência da AFHIC, 2006b. Submetido aos
anais do evento. Disponível em: www.unicamp.br/~chibeni.
–––. A kind of “mental geography”: Remarks on Hume’s science of human nature.
Apresentado no III Colóquio Hume, Departamento de Filosofia, UFMG, Belo
Horizonte, 28 a 31 de agosto de 2007. Disponível em www.unicamp.br/~chibeni.

17
Curiosamente, apesar de o título do último livro de Quine ser justamente a expressão dessa
posição fisicalista, From Stimulus to Science, em seu último capítulo Quine admite que, ao menos
quanto ao conteúdo de nossos pensamentos, “não tem esperança” de que possa ser reduzido a noções
físicas, expressando moderada simpatia para a posição do monismo anômalo de Davidson, que
representa um dualismo de predicados. (Ver, especialmente, pp. 87 e 93.). Mesmo em seu livro
anterior, Pursuit of Truth, Quine já havia feito concessões semelhantes. (Ver especialmente os
parágrafos 24 e 29.) Para uma análise detalhada da evolução da posição de Quine quanto a esse
assunto, consulte-se Dutra 2000.
18
As datas entre colchetes são as da publicação, ou apresentação oral, inicial dos textos.
11

CRAIG, Edward. The Mind of God and the Works of Man. Oxford: Clarendon Press,
1987.
DUTRA, L. H. A. Quine on the nature of the mind: From behaviorism to anomalous
monism. In: Dutra & Mortari 2000, pp. 279-312.
–––. Oposições Filosóficas. Florianópolis, Editora da UFSC, 2005.
DUTRA, L. H. A. & MORTARI, C. A. (eds.) Princípios. Seu papel na filosofia e na
ciência. (Coleção Rumos da Epistemologia, vol. 3.) Florianópolis, NEL – Núcleo
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LOCKE, J. An Essay concerning Human Understanding. P. H. Nidditch (ed.) Oxford,
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View. 2 ed., revised. Cambridge, MA, and London, Harvard University Press,
1980.
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New York, Columbia University Press, 1969.
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and London, Harvard University Press, 1981.
–––. Pursuit of Truth. Cambridge, MA, and London, Harvard University Press, 1992.
–––. From Stimulus to Science. Cambridge, MA, and London, Harvard University
Press, 1995.
12

MARGUTTI PINTO, P. R. et al. (orgs.) Filosofia Analítica, Pragmatismo e Ciência.


Belo Horizonte, Editora da UFMG, 1998.
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