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12/03/2019 Folha de S.

Paulo - Contardo Calligaris: Coisa de homens - 19/03/2009

São Paulo, quinta-feira, 19 de março de 2009

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CONTARDO CALLIGARIS

Coisa de homens

Os atiradores parecem agir na


tentativa desesperada de se levarem
a sério

DUAS notícias na Folha de quinta passada. Em Wendlingen,


Alemanha, Tim Kretschmer, 17, saiu de casa com uma
Beretta 9 mm e 200 cartuchos. O pai do jovem colecionava
armas, todas legais e bem guardadas, salvo a fatídica pistola,
que estava na gaveta de um cria- do mudo.
Kretschmer matou 15 pessoas, no colégio do qual ele tinha
sido aluno, ao longo da estrada e numa revenda de carros,
onde ele, enfim, suicidou-se. Em sua grandíssima maioria, os
alvos eram femininos. Kretschmer não tinha um rancor
especial pela escola onde se formara e, campeão de tênis de
mesa, não era marginalizado socialmente.
Em Kinston, Alabama, EUA, Michael McLendon, 28, matou
dez pessoas, começando pela mãe. McLendon (com dois
fuzis, uma pistola e uma espingarda) eliminou uma lista de
parentes que, aparentemente, ele detestava. As autoridades
declararam: "Ele não tinha sido demitido, não houve
rompimento amoroso. Ele não tinha ficha criminal nem
história de distúrbios mentais". Os assassinatos em massa já
são uma tradição nos EUA (desde o massacre de Columbine,
em 1999) e na Alemanha (desde o massacre de Erfurt, em
2002). Mas a epidemia começou na Escócia, em 1996, com a
morte de 16 crianças e um professor (mais o assassino,
suicida).
E houve duas manifestações na Finlândia (nove mortos em
2007 e 11 em 2008). Isso sem contar o Iêmen, em 1997, com
a morte de seis crianças e dois adultos. Claro, a mídia facilita
a identificação por contaminação: de país em país, o
comportamento extremo de alguém se torna "exemplar" para
outros. Mas isso não nos diz a razão da série, apenas explica
sua possibilidade.
A cada vez, a gente se pergunta o que pode levar alguém a
sair matando. Uma patologia? Um evento inadmissível? A
sensação de uma exclusão irremediável? A história de cada
atirador é diferente. Alguns eram de classe média, outros de
classes menos favorecidas. Alguns pareciam ter um brilhante
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futuro, outros acabavam convencidos de que o mundo não


era lugar para eles. Entre esses, havia os que execravam sua
exclusão e os que a curtiam como se fosse um privilégio.
Alguns sofriam de depressões ou transtornos mais graves,
mas não todos.
Será, então, que a série de horrores corresponde a um traço
cultural? E lá vamos nós, reinventando banalidades sobre o
"horror" moderno. Seja como for, diante dos massacres, é
difícil não procurar denominadores comuns. Por exemplo,
esses gestos homicidas e suicidas são propositalmente
públicos. Não se trata de alvejar os passantes a partir de uma
janela escondida: a matança é teatral.
Como se, para os atiradores, encarnar o anjo da morte (dos
outros e deles mesmos) fosse uma demonstração, uma prova,
que deve valer aos olhos de todos. Uma prova de quê? Pois
é, os atiradores são sempre homens. O que eles querem
provar? A identidade da gente é um tecido de imagens
incertas; nesse jogo de espelhos, há poucos atos "reais", que
possam dizer a que viemos sem que seu sentido dependa do
olhar dos outros.
Como dizia um psicanalista famoso, é possível que haja só
dois atos dessa qualidade: dar à luz e morrer. Claro, para os
"meninos" só sobraria morrer. Mas acrescento: morrer e,
talvez, matar. Atrás da singularidade de suas razões, os
atiradores parecem agir numa tentativa desesperada de se
levarem a sério e de serem, enfim, levados a sério. Algo
assim: "O mundo me desprezará, mas, diante de meu ato, não
poderá negar que sou um "macho de respeito'".
Faz décadas que a masculinidade está doente: sofre de uma
incerteza aguda sobre o que a demonstraria de maneira
irrefutável. As máscaras masculinas herdadas do século 19
(do provedor de paletó ao garimpeiro) não bastam mais. Qual
é a nova fronteira que é preciso desbravar para "ser" homem?
Na aurora da modernidade, Hegel escrevia que o
desprendimento em encarar a morte era a marca do mestre.
Depois de dois séculos higienistas, que fizeram a apologia da
sobrevivência a qualquer custo, nestas décadas em que
arriscar a vida num esporte extremo é apenas um
entretenimento televisivo, talvez, aos olhos de alguns, a
verdadeira marca do mestre pareça ser o desprendimento em
matar.
Num dos romances de Jean-Patrick Manchette (não lembro
mais qual), um jovem circula de carro pelo bulevar periférico
de Paris. Ele carrega uma pistola e, enquanto dirige, sussurra:
"Eu vou lhes mostrar que sou gente grande".

ccalligari@uol.com.br

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